Residência Artística Cambridge.

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março-agosto / 2016

Edições Aurora / Publication Studio SP

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Ícaro Lira


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sumário

alex flynn

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canar isam

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carmen silva 25 cineclube 26 clínica de psicanálise

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dulcinéia catadora 40 edições aurora

58

fabrica de estampas filme frente

60

66

ícaro lira

74

isam ahmad issa 82 josep segarra e silvia zelaya

86

juliana caffé

88

lucia rosa

98

marta ramos-yzquierdo

102

o mal educado

107

vilma balente 114 yudi rafael 116 créditos 122



e i x o s d e p r át i c a n o c o t i d i a n o

A Residência Artística Cambridge é uma proposta que faz uma contribuição específica e contextualizada com um diálogo global em curso: enraizada dentro de uma série de espaços contestados, o projeto propõe uma forma diferente de praticar e se envolver com a arte contemporânea. Numa análise mais simples, é um programa de residência que convida quatro artistas a trabalhar por um período de três meses cada durante um ano. O lugar dessa residência, no entanto, é a chave para essa prática do projeto: longe dos espaços típicos da arte contemporânea, situa-se num movimento social radical, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Centro (mstc), num edifício residencial que abriga 550 pessoas, e talvez um dos locais mais estigmatizados do centro de São Paulo: a Ocupação Hotel Cambridge (um dos nove espaços administrados pelo mstc, movimento social que articula a luta pela moradia em São Paulo, uma das cidades mais estratificadas e desiguais do mundo). Desse modo, a Residência responde e articula uma compreensão muito diferente da prática da arte contemporânea, uma compreensão que está informada pelo cruzamento de vários eixos: estética e política; intervenção artística e ativista; e modelos horizontais e verticais de organização. Realizado nas bordas das estruturas usuais da arte contemporânea, o projeto se considera extra-institucional e experimental. Afinal, se a prática da arte acontece num contexto de perguntas e modelos de sociabilidade distintos, então por que não estruturá-la de forma diferente? O projeto visa apresentar uma proposta mais ampla, que vai além da sua localização geográfica, na tentativa de realizar uma política prefigurativa, ou seja, incorporar na prática política cotidiana aquilo que se busca alcançar através do modo de atuar nas próprias relações sociais, nos modelos de tomada de decisões e na deshierarquização do conhecimento, podendo esta atitude contribuir nas discussões de projetos de arte contemporânea iminentes. Assim, um elemento importante da Residência é o desejo de criar horizontalidade nas relações que constrói e, deste modo, abrir um campo reflexivo que permite uma autocrítica contínua, seja das atividades do projeto, seja dos parâmetros em que ele se realiza.

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alex flynn

h o r i z o n ta l i d a d e n o v e r t i c a l


Enraizada num contexto relacional, as perguntas que tal reflexividade suscitam são múltiplas e interligadas. Já constatamos que o projeto acontece num interstício inquieto, numa fronteira porosa, entre o que é ou não considerado como prática artística legítima. Sendo assim, até que ponto o projeto pode “ir além” dos circuitos da arte contemporânea? Será que podemos entendê-lo como algo extra-institucional, mesmo dentro de um movimento social, idealizado e organizado centralmente? E quais são as implicações do desejo de atuar horizontalmente na prática cotidiana? Que tipo de conhecimento, ou arte, ou output, pode ser produzido por um projeto horizontal que realiza suas ações dentro de uma organização vertical? Tais pontos de divergência são inevitáveis e bem-vindos. São endereçados no “desenho emergente” da proposição curatorial da Residência, bem como na prática dos próprios artistas. Fica claro para todos os participantes que apesar das restrições associadas a instituições de arte contemporânea não serem imediatamente presentes, não significa que elas não existem. Pelo contrário, a maneira como os projetos são gerenciados, como o trabalho é divulgado, o formato que esse trabalho pode assumir, e como as diferentes formas de transações econômicas podem ser conceituadas está diretamente vinculado às relações contratuais dos artistas com as galerias privadas: estes vínculos criam ângulos interessantes, provocando um grau de reflexividade relacional sobre práticas fundamentais. Uma questão recorrente nesse sentido é a visibilidade e como públicos diferentes a enxergam. Quais são as conotações de uma entrevista para a Rede Globo, tendo a liderança do mstc de um lado e os participantes da Residência de outro? Como seria apresentado um trabalho artístico e sem produção de objetos, que frequente se vê atravessado por questões paternalistas de “assistência social”? Se esse trabalho é tão intangível, então o que “pertence” à ocupação e o que ao artista? Como as galerias que representam os artistas, Jacqueline Martins, Leme, e Nara Roesler vão engajar e responder a um processo artístico que possa rejeitar a mercantilização e a alienação do trabalho artístico da categoria de mercadoria? A partir de agora, completando a segunda Residência de um programa de quatro, nenhum objeto material foi produzido, e nenhum desses processos desenvolvidos alimentaram a disponibilidade de trabalhos no mercado. No entanto, é uma certeza que esse ponto de contato chegará, levando a um compromisso reflexivo com uma nova série de discussões. Tais discussões naturalmente incluem o diálogo produtivo com atores da Ocupação Hotel Cambridge. Ainda que o projeto não tenha

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vínculos diretos com instituições de arte contemporânea, patrocínio de empresas, ou financiamento do Estado, não significa que tal caráter extra-institucional não seja continuamente desafiado e negociado. Até mesmo interações da Residência com instituições de arte pode ser um desafio a estrutura horizontal do projeto. Tornou-se claro que articular uma política horizontal dentro do mstc – um movimento social com liderança e estrutura vertical – é também uma negociação exigente. Visibilidade é um ponto delicado nessa relação de colaboração, mas existem vários outros espaços contestados que se tornaram motes de pesquisa do projeto. A interação cotidiana no contexto de um movimento social concebido e organizado centralmente revela noções de “participação” inteiramente diferente das articuladas por Claire Bishop e Nicolas Bourriaud, ambas forjadas em contextos explicitamente ligados às estruturas do campo artístico. O projeto atua tanto dentro como fora de uma lógica de movimento social que visa mobilizar e massificar seus membros e estruturas, uma tecnologia social que tem como premissa a estrutura piramidal de poder, e o carisma de uma liderança para direcionar um grande grupo a um único propósito. Basta dizer que os projetos articulados pela Residência partem de uma compreensão muito diferente de como “participar”. Os artistas Ícaro Lira, Jaime Lauriano e Raphael Escobar trabalham com um processo artístico que poderia ser descrito como relacional, que convida os moradores da ocupação a se envolver. Suas lógicas são diferentes, mas ambas residências têm focado sobre relacionamentos, redes e uma remarcação simbólica das linhas e práticas a partir da qual a ocupação é percebida e experimentada. Nenhum dos eventos que os artistas vêm organizando são obrigatórios aos moradores, e por vezes esbarram com os eventos organizados pela liderança do mstc. Para garantir a harmonia e o bom funcionamento do espaço existem tarefas obrigatórias de limpeza, mutirões e assembleias gerais, entre outras regras de convivência. Há também um certo grau de disciplina sobre a questão de bebidas alcoólicas, festas e barulho: a ocupação abriga famílias com crianças pequenas, idosos e pessoas com deficiência, a liderança do mstc tem que estar ciente dos indivíduos vulneráveis que ​​ convivem em uma dinâmica de comunidade. Quer se concorde ou não com as regras disciplinares do espaço comum, o processo de residência deixa claro que a participação nas ocupações do mstc é bem diferente de interagir com uma obra relacional numa galeria, tampouco fazer parte de uma chamada experiência antagônica, pois o significado de “participação” para os moradores, neste caso, é a moeda que sustenta seu direto pela


moradia. Sem participação, no primeiro momento em uma das bases do mstc espalhadas pela Grande São Paulo, e, no segundo momento – se for selecionado – na própria ocupação. Não existe uma relação sustentável de longo prazo entre morador e movimento sem participação, que leva a uma ressignificação do termo. Para qualquer evento “participativo” proposto pela Residência, tem uma série de questões: será que é obrigatório? Se não, qual o motivo por trás do evento? Quem está organizando, se não é a liderança e por quê? Consequentemente se manifesta uma diversa gama de reações nas atividades, de um morador explicando que ele estava presente porque as líderes disseram que era uma boa ideia e que valeria “pontinhos”, até alguém entusiasmado pelo trabalho, contribuindo com críticas importantes. Trabalhar nos interstícios entre um movimento social e a prática artística revela que a participação tem uma posição simbólica num relacionamento complexo e estruturado por uma troca: moradores investem energia e tempo para uma casa. Para muitos moradores, o tempo e a energia necessários para essa troca faz com que a participação adquira o status de uma dádiva única que eles trocam para habitação acessível. Se for considerar este conceito antropologicamente, cada dádiva – neste caso, a própria participação – contém um hau, o espírito que vive dentro da coisa dada que quer voltar ao doador inicial. Na troca com o mstc, o vínculo espiritual criado pela transmissão dessa coisa se resolve numa casa, mas e no caso do artista que entra sem orientação numa complexa série de relações transacionais? Como pode uma arte em que se visa evitar a mercantilização, afastando-se da redução a mercadoria, ainda oferecer um retorno claramente definido? De que forma assumirá o hau do artista? Essas e muitas outras questões estão sujeitas a reflexão no projeto, em tentativas da Residência à horizontalidade. A noção da “tentativa” aqui não é para antecipar e justificar o que pode dar errado, mas a própria crença de que conceitos como “democracia” e “horizontalidade” não existem em abstrato, mas sim em sua prática diária. Horizontalidade para o projeto é a própria tentativa de horizontalizar e reconceitualisar as relações. E tendo em vista sua natureza experimental, é inevitável que em alguns pontos tal forma de organização não funcionará. Afinal de contas, um dos aspectos mais interessantes da Residência é como tornar visíveis suas contradições, na medida em que equilibra eixos opostos: um projeto horizontal localizado em espaços verticais. Neste sentido, a Residência gera certo ruído entre duas esferas com as quais interage: a ecologia política mais ampla, no vocabulário de Arturo Escobar, a do mundo da arte contemporânea e a lógica prag-

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mática do movimento da luta pela moradia. Se o ruído parte da fricção entre essas duas esferas, então qual é o modo que o projeto informa os processos de pesquisa artística que ocorrem dentro da Residência? E como a tentativa de horizontalizar acontece dentro dessas limitações? Será que uma estrutura diferente pode facilitar a produção de uma arte, ou conhecimento, diferenciado? Uma das práticas diárias que sustenta o desejo de horizontalizar é a maneira como os praticantes, os curadores e os artistas procuram conceitualizar as estruturas em que operam. Através do seu trabalho, Ícaro Lira, e Jamie Lauriano e Raphael Escobar põem em questão como o projeto se engaja, atenua ou até visa contestar os dispositivos de massificação social ou a mercantilização da estética. Esses artistas têm negociado continuamente com a equipe curatorial, suas galerias, a liderança do mstc, e os moradores do Hotel Cambridge, para tentar entender o que constitui uma intervenção artística, e como noções como participação pode ser repensada a partir da estética. Essas discussões são altamente reflexivas e situadas dentro de uma “reflexividade relacional” que provoca um processo de autocultivo ético, tanto no indivíduo como no coletivo: no primeiro momento, as perguntas apresentadas por tal processo são a respeito de “que tipo de trabalho eu quero criar”, para quem, e qual a importância que terá. No segundo momento, essas questões começam a dimensionar um contexto profundamente relacional, tais como: quais conotações éticas este trabalho tem? Que tipo de participação sugere? Em qual contexto relacional queremos participar? Deste modo, a horizontalidade é tentada numa base diária. Os curadores não tomam decisões sem discussão em grupo. O tempo de residência, previsto para três meses, pode ser prorrogado, e artistas cujo período terminou são convidados a continuar a contribuir, levando em consideração os desejos e a prática dos outros. Canais de comunicação, decisões financeiras, e toda a atividade diária de uma residência artística é discutida neste coletivo, que reflete continuamente sobre a realidade volátil que informa e que ao mesmo tempo é informada. Talvez o que retenha a Residência diante da possibilidade de fragmentação durante essas discussões seja a própria descrença no potencial emancipatório da arte. De fato, se há um fio condutor na prática dos participantes, ele deriva do afastamento destes a reificação da arte e do artista, dando lugar a uma abertura de possibilidades através do diálogo com o cotidiano, o relacional e o aparentemente invisível. Na Residência não há posições políticas pré-determinadas, apontando assim para “uma postura sem postura”, essa condição é


tanto uma necessidade precária, quanto uma proposta alternativa à mercantilização do trabalho do artista. Neste esquema, afastando-se da arte como ferramenta de emancipação, ou como uma mercadoria com um valor de câmbio flexível, os artistas buscam o cultivo de redes entre atores independentes, cada um com uma subjetividade. E o processo de pesquisa que visa trabalhar em tais espaços torna-se necessariamente incremental, baseado na prática pós-material. No entanto, a horizontalidade é um desafio, e por vezes as discussões entre os praticantes da Residência ficam bloqueadas tornando o diálogo temporariamente impraticável. Há uma tentativa constante de encontrar o equilíbrio entre o chamado impulso artístico para autonomia – que é teórico e imaginado, desejado e projetado – e a realidade deste conceito num projeto coletivo, no qual a autonomia revela-se parcial e incompleta. Como qualquer tentativa experimental e prefigurativa à horizontalidade, a Residência realiza-se em eixos de contenção que são inevitáveis: o maior desafio é manter o diálogo aberto entre todos os participantes, para que nenhum ator sinta-se marginalizado ou cooptado. Esta pode ser uma luta diária: a falta de autoridade centralizada às vezes leva a processos unilaterais de tomada de decisão que podem parecer abusivos e egoístas. No entanto, esses pontos de dissenso são fundamentais para o projeto: a diversidade de opinião é em si um objetivo, mesmo se o conflito que segue seja inevitável, o que realmente importa em tais situações é como as pessoas refletem e respondem. A partir de sua experiência com o Movimento Antiglobalização, a antropóloga Marianne Maeckelbergh ressalta como o conflito pode ser contraditório, mas também construtivo, dependendo de se enxerga: “A diversidade leva ao conflito, é verdade, mas o conflito entre adversários não é causado por esse fluxo da diversidade, e sim surge quando esses fluxos estão bloqueados. O conflito pode ser produtivo se for dado espaço para se expressar. Nutrir o poder construtivo e limitar o poder contraditório do conflito exige um trabalho contínuo” (2009: 137). O trabalho da Residência acontece nos interstícios da estética e da política, do vertical e do horizontal, de modo que está continuamente sujeita aos fluxos entre essas dinâmicas. Se a Residência poderá continuar a operar em tais condições é uma questão em aberto. Numa análise final, as atividades da Residência Artística Cambridge são o resultado de uma série de conversas entre perspectivas radicalmente diferentes, sobre modos de viver na cidade e atuações de práticas culturais. As diversas atividades da Residência promovem a noção de que o conhecimento

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não se restringe somente aos espaços institucionais, mas também irradia de dentro das comunidades, através da ativação das relações ali presentes. Essa produção de um conhecimento particularmente situado é o cerne da proposição experimental da Residência, localizada nos interstícios de diferentes eixos de organização, de mundos existentes, e mundos ainda por vir. Talvez esse seja o sentido que uma tal “postura sem postura” poderia articular: que o conhecimento produzido nas interpolações do horizontal pela vertical é precisamente o material estético em questão do projeto.


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c a r m e n p r oj e c t pa r a :

<carmensilva@mylife.com.br>

Residência Artística Cambridge <cambridge.residencia@gmail.com>

a s s u n to :

depoimento

A Experiencia de viver a residência artística com ÍCARO ,juliana, Yudi, Alex para mim foi Incrível , vi momentos simples se tornarem mágicos os temas das palestras foi de uma Riqueza de troca de assuntos , as oficinas de pintura coisas corriqueiras e fáceis mas que Não aplicamos e vemos que no nosso dia a dia é possível fazer arte com beleza , as brincadeiras A simplicidade ao ensinar dos artistas a construção de atividades que nos tira da correria do Da vida com lisura com descanso com reflexão . Gostaria de dizer mais palavras podem ser Resumidas com simplesmente. MÁGICO, PERFEITO . Obrigado por esta experiência . Resistir Existir Sabedoria Ideologia Dinamico Excentrico Nativismo Cientifico Ireverante Amizade

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carmen silva

1 de agosto, 2016 — 17:31


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nosso não-lugar na experiência do cambridge ou uma psicanálise nômade

Nesse grupo há quem pense com os olhos, veja com os ouvidos e quem escreva com o olhar. Somos assim, essa soma cheia de diferenças e afinidades. Essa produção é o reflexo do nosso processo de trabalho, que ainda bem, se encontra em construção. Peu e Luiza fizeram seus textos em imagens.

Miriam Chegar ao Hotel Cambridge, ocupação no centro de São Paulo, já é uma experiência singular. Andar pela rua que desce até a av. 9 de Julho, onde fica o edifício, passar pelo mercado Ben-Hur onde adolescentes, de diferentes não-lugares, conversam na busca de intensidades da noite, passar pela casa noturna gay, que ainda tem o mesmo estilo anos 50, e depois, na esquina, aquele edifício monumental, lindo. Em frente, alguns refugiados falam outras línguas. Fumando, olhando a rua, encontrando parceiros. Paula No centro os estranhamentos se fazem de forma sutil, silenciosos e corrosivos porque não conseguimos distinguir rapidamente o que no centro é nosso e o que foi inventado para acreditarmos que nos diz respeito. Tudo fica muito embaralhado, como se uma cidade invisível morasse dentro de uma outra, visível, que está alí, acessível e próxima, pronta para ser usada. Nos últimos três meses, o exercício de estar em contato com a vida do centro passou a ser uma rotina pra mim. Através do grupo “psicanálise e cidade”, todas as terças-feiras acontece no antigo Hotel Cambridge uma roda de conversa com os moradores das Ocupações da área central. Sempre que vou pra lá, me deparo no meu percurso com a Ladeira da Memória e aquele Obelisco pontudo e escondido na encosta da rua Xavier de Toledo. Ele fala de uma Memória Monumental da cidade que me parece cada vez mais nebulosa e pouco significativa do que realmente seria a memória de todos nós.

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clínica de psicanálise

s e n s a ç õ e s e s pa r s a s :


Bem próximo da Ladeira da Memória, esta o antigo Hotel. Dentro dele outras histórias enchem de vida o centro que por tanto tempo ficou sem moradores e silencioso... Miriam Sempre adoramos nos perder pela cidade.... Ter a experiência de ser tragado pela cidade, pelos seus redemoinhos e intensidades, uma vertigem necessária no abandono da zona de conforto em que circulamos enquanto psicanalistas. Alê As cidades sempre exercem uma enorme atração sobre mim, me ativam uma espécie de pulsão exploratória que se traduz em uma vontade irrefreável de ir desvendando lugares (me sinto como uma criança vendo as coisas pela primeira vez) e a maneira como faço isso é por associação livre. Vou andando e me deixo levar por pequenos detalhes que chamam minha atenção: uma placa de ferro, uma fachada, um cheiro, uma lojinha. O mais perturbador é que posso fazer esse exercício de “me deixar” em muitas outras cidades do mundo porém, em São Paulo, não consigo agir da mesma maneira. Não consigo ter a mesma liberdade para fazer as minhas associações, me sinto insegura, perco o faro. E me incomoda demais me sentir assim em relação à minha própria cidade. Entrar em contato com o estranho e o desconhecido que tanto me atrai quando estou fora, aqui me gera tensão e me paralisa. Soraia A rotina de ir ao centro guiada pelo convite que o Ocupação Cambridge faz com toda sua contradição me levou a perceber um vício no olhar/escutar. Vou desde o ônibus, em horário de rush, ouvindo os sons mudos dos cidadãos mergulhados nos seus celulares, desdenhando o espaço coletivo. Ouço as conversas entre novos amigos que a geografia cria: muitas pessoas tomam a mesma condução, no mesmo horário por anos e ouço ainda os ruídos internos que nunca me abandonam. Quando criança , fazíamos as compras das roupas do dia a dia num lugar chamado pela minha mãe de cidade. O centro era a cidade, o comércio era a cidade. Tempo de consumo pela necessidade. Curiosa imagem, onde circulavam as pessoas de todas as camadas sociais, ali era a cidade, vivíamos no bairro.

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Alê Fomos, Luiza e eu até o Cambridge para conversar com o Ícaro. Sentia certa estranheza, não sabia muito bem o que esperar. O que esperar do quê? Não me parecia que tivesse algo que ver com encontro com o Ícaro, mas com o encontro com o território. Miriam Fomos ao Cambridge num sábado. Peter Pelbart falaria e havíamos marcado uma reunião com Danilo. Queríamos deixar claro que não faríamos grupos terapêuticos, estávamos propondo uma roda de conversa aberta. Levávamos o texto da carta-convite que distribuiríamos a todos que vivem no Cambridge. Aqui, um trecho da discussão que precedeu a elaboração dessa carta-convite, em nossa troca de mensagens: Quanto a questão da cidade talvez seja legal inserir algo como a questão dos direito por moradia, desigualdades sociais impressas

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Miriam Fomos até o Hotel Cambridge como um grupo de psicanalistas que se dispunha a refletir sobre a errância, sobre a cidade. Queríamos nos impregnar da fuligem, do asfalto, do burburinho, e sermos afetados pela cidade. Miriam, psicanalista, tinha a experiência de, nos seus documentários, ir ao encontro de mundos outros, fazer percursos inusitados. Cada um de nós tinha um pouco dessa experiência – Luiza como fotógrafa e psicanalista em formação, Peu vindo da economia e do cinema, agora psicanalista, Paula que é antropóloga e anda pela cidade atrás de suas histórias, Soraia e Alessandra nos seus caminhos de trabalhos com a saúde mental e diferentes inserções no trabalho psicanalítico. Agora, enquanto grupo, queríamos mergulhar na cidade para refletir sobre a psicanálise a céu aberto. Uma psicanálise andarilha.... Antônio Lancetti escreveu sobre uma psicanálise caminhante. Assim é que, através da Luiza, Ícaro nos contactou, pedindo atendimento para alguns moradores da ocupação. Nós poderíamos sim cuidar de encaminhamentos. Mas estávamos interessados em entender a ocupação enquanto um todo, em refletir sobre a moradia, sobre as subjetividades que se formam nessas condições-limite. Queríamos mesmo pensar a cidade e os não-lugares, ou os lugares de passagem. Foi assim que propusemos nosso trabalho lá dentro.


no espaço ourbano e a diferença entre morar no centro e na periferia. Enfim, questões urbanas que se relacionam com as conquistas e reivindicações que eles estão fazendo nas ocupações. Ahhh, lembrei algo fundamental: ressignificação dos espaços, ou seja, lugares fechados, vazios que se tornam moradias e passam a alterar a lugar…

Alê Quando faço essa descrição, me vem à mente as histórias que escutamos dos moradores nas nossas rodas de conversa de como foi ocupar esse prédio, e outros também. Mas a primeira que escutei, foi nesse primeiro dia de visita, vinda da boca do Danilo. Ele usou a palavra nascimento para descrever a sensação de estar em um lugar escuro, sujo, sem poder sair por uma semana e de repente alguém consegue fazer a ligação da luz, outra faz o banheiro funcionar. A partir daí começa o trabalho dessas pessoas, de fazer com que um lugar fechado e abandonado há anos literalmente recobre vida e possa chegar a ter um estacionamento de carrinhos de bebês. Miriam Entrar pela porta de ferro que separa a ocupação da rua é sempre emocionante. A porta se abre e zelosamente somos interrogados sobre nossa ida. Temos que deixar o nome. Há uma comissão de frente que não deixa entrar estranhos. Se alguém quer levar um namorado ou namorada tem que deixar o nome com alguns dias de antecedência. Depois eu veria que o controle é feito também através de câmeras na sala onde fica a direção da ocupação. Esse nível de organização e de controle surpreende. Chegar ao Hotel Cambridge e, depois de explicar a razão de estar lá, ver aquele hall cheio de brinquedos construídos com pneus e madeira, ver mães acompanhando seus filhos que brincam, subir as escadas e chegar na cozinha e no mezanino, ver como estão equipados, que vendem bolo durante a semana, é algo inesperado. Depois, já no grupo, as pessoas falariam dos enormes preconceitos que existem em torno das pessoas que vivem em ocupações. Alê Quando entro pela porta vermelha da ocupação Cambridge, sempre penso: que porta tão estreita para um lugar tão grande, aqui dentro é um mundo!

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Soraia Na portaria, encontro o rapaz que cuida das assinaturas de quem chega e quem sai, sentado ali no balcão, comendo um prato cheio de arroz, feijão , linguiça e farofa. Prato de trabalhador braçal. “Não tive tempo de cozinhar, a vizinha trouxe da casa dela pra mim.” Logo chega da rua uma moça, outra vizinha: “— ai, que fome!! vem cá, dá pra dois!” e sem nenhuma cerimônia dividem o garfo, o prato e o que tem dentro. Ainda me oferecem um bocadinho, dá para três. Agradeço sorrindo e penso que lá é assim, tudo junto e misturado. Será? Não, nem tudo, certamente! (Esse será um tema muito importante na experiência vivida entre nós. Compartilhar espaço físico, sonhos de conquista de moradia e ações da militância não abre necessariamente uma possibilidade de intercâmbio das histórias pessoais. Descobrimos uma outra faceta dessa luta: uma posição firme e clara dos participantes sobre manter os códigos individuais ou familiares sob a guarda do espaço privado.)(não tenho muita certeza dessa interpretação mas podemos deixar assim…) Miriam Sempre lugares de passagem, na ocupação a escada é passagem obrigatória. Não há elevadores e todos sobem e descem as escadas em movimento contínuo infinito. E lá vimos cadeirantes, mães com bebês de colo, pessoas adoentadas, famílias com crianças de todas idades, subindo e descendo. Muitas vezes até os catorze andares. Há os horários onde a movimentação é maior. São os horários de ir para o trabalho ou da volta. Um estranho trânsito, o rush da cidade vivido naquela escada. Aqui um trecho de nossa troca de mensagens:

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Bem, mas eu queria falar da minha primeira vez... da minha primeira vez em uma ocupação. De entrada você se depara com aquele saguão, os pneus, o parlatório (sempre penso que esse espaço poderia ser melhor utilizado), a lousa com os avisos, os cartazes. E com o tempo fomos descobrindo outros espaços: a cozinha, a horta, o estúdio de música, o mezzanino com aquele manequim meio surrealista pendurado no teto, o bazar, o salão de beleza, a oficina de costura e a última descoberta, essa para mim a mais tocante de todas, o “estacionamento” dos carrinhos de bebês.


Trabalhamos bastante na divulgação. Hoje teve a versão escadaria: respire um pouco por aqui, enquanto conversamos... Foi um jeito de abordar as pessoas subindo a escada na volta do trabalho.

Soraia (Uma noite, um grupo... Arrumando as cadeiras para constituir o espaço grupal, encontro pedaços de corpos humanos jogados no chão. Faço uma aproximação ressabiada. São braços e mãos prontos pro abraço, prontos para a batalha pela sobrevivência, prontos para construir, limpar, arrumar.... são partes de vários manequins que foram desmontados, sabe-se lá porquê. Uma intervenção artística? Uma brincadeira para assustar um tolo desavisado? Um descuido? Assim seguimos, parecendo que só a mim aquilo chamava a atenção. O grupo acontecendo e aqueles pedaços a me lembrar que aqui tem sangue que corre pelas veias. Sinal contraditório que faz pensar na luta travada pelo direito à moradia, mas também nas dores pelas perdas, sinal de vida pulsante, mas também de risco. O sangue a lembrar da porta de entrada do prédio pintada de um vermelho vivo. Nascimento e morte. Qual é o sentido maior desse adereço nas bordas do mezanino? Com os sentidos bastante aguçados vou ouvindo o relato denso da empreitada da Ocupação. Dia D. As descrições lembravam o universo onírico do Ensaio sobre a cegueira, só que na versão contrária. Do encontro com o caos e a escuridão, com os ratos, com as toneladas de entulho, falta de esgoto, de água encanada vai surgindo a casa de tantos. Faz-se claro o ambiente, fruto do trabalho orquestrado. Cada um com o seu fazer por todos e pra cada um. Tantos heróis que sabem que só a força do coletivo para levá-los a alcançar seus sonhos. Foram dias de superação suportados pela solidariedade e pela força motivadora. Intuíamos os não-ditos. Tem conflito, dor , desamparo? Será que só tem bravura? Aos poucos o diálogo foi permitindo a emergência de experiências comuns de gente comum.) Paula No mezanino do prédio, todas as terças-feiras, acontece a nossa roda de conversa. Num ritual de confiança puxamos as cadeiras de plástico e vamos sentando até formarmos uma aliança. Os ruídos

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Sempre com infinitas questões, fomos ( refletindo sobre nossa intervenção), dentro desse mundo de passagem, buscando o movimento do nosso não-lugar: Queria que a gente se encontrasse pra pensar nossa inserção no Cambridge. Realmente não senti que tenhamos o que fazer por lá. Ter, teríamos. Mas senti que é como se estivéssemos pedindo pra fazer um trabalho por lá. E não uma demanda de lá. E vamos mexer com algo delicado. Porque eles encontraram um jeito de funcionar. O que vocês acham? Eu também senti algo por aí. Acho que precisamos mesmo de um encontro. No dia da Funarte ouvi uma frase que ficou na minha cabeça: — Vocês querem apresentar o projeto de vocês? — O nosso projeto? Pois é.... Precisamos saber o que é nosso e o que é deles. Participar, sempre podemos. Do jeito queparticipamos ontem. Sim, vamos conversar. Eu entendo a sensação que vocês tiveram. E concordo. Mas não acho que a demanda dos moradores não exista.

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da cidade entram pelas frestas do prédio e muitas vezes sentam na roda também. Não dá pra esquecer que a rua é logo ali e a fronteira é tênue entre o dentro e o fora. Aos poucos a pressa, a falta de tempo, os afazeres do dia vão cedendo lugar à história de cada um. Quase como uma catarse as histórias se ligam formando um eu repletos de nós. Abre-se uma fissura entre a cidade visível e invisível e na duração de uma hora e meia aquela vestimenta de pressa, da cidade que não pode parar, enrijecida nas figuras de pedra que habitam a versão mais aparente de São Paulo, se desfazem. Tenho a nítida sensação que os ponteiros andam mais devagar à medida que a roda vai se tornando mais envolvente. A cada semana, por mais que os integrantes mudem, entramos em contato com uma camada do prédio, como se explorássemos um pequena cidade por dentro, nas suas intimidades, com histórias que mudam conforme o ponto de vista de quem entra na roda. Conhecemos quartos com portas fechadas, “copinhas” compartilhadas e solitárias, corrimãos perigosos, andares altos e baixos, cantos imprecisos e aqueles silêncios e vazios que mesmo no substantivo de uma Ocupação cavam como cupins um espaço oco dentro da gente e se instalam sem pedir licença. Acho que só agora estamos chegando no centro e parece bem mais longe do que a gente imaginou no começo.


Mas tenho vontade de conhecer outras ocupações, conversarcom outros coordenadores (talvez seja um bom jeito de começar). Acho que é a segunda vez queouvimos que a coordenação precisa ser atendida, acho que aí tem uma demanda que se anuncia/enuncia.

(Fomos assim, criando vários canais de comunicação entre nós que mantivessem viva a noção de pertencimento) Alê Frequentar a ocupação restabeleceu para nós a possibilidade de uma outra forma de circulação, não apenas pela cidade mas a possibilidade de adentrar outros mundos, outras formas de vida. Quero falar do dentro e fora, do diferente, daquilo que em nós é ao mesmo tempo estranho e familiar, de que quando eu estou nos grupos existe uma parte de mim que se sabe analista mas outra que está em um lugar mais híbrido, que lugar é esse? Miriam Sabemos que o Cambridge é um lugar já conhecido, mapeado. Mas, estar em meio a uma ocupação fez com que nos indagássemos sobre a possibilidade de construir casas nômades (texto da Eliane Brum: Casa é o lugar onde não tem fome, El País). Ir atrás da errância que nos constituiu como grupo, buscar o inexplorado de uma cidade como São Paulo, foi para isso que nossa experiência no Cambridge nos instrumentou. Nossa gratidão. Soraia Ainda aquela noite, aquele grupo Solidão. Luta! Palavra-tatuagem porque não me saia da cabeça. Nesse grupo, destacam-se as mães, na sua esmagadora maioria, carregando os filhos pela escada, pra cima e pra baixo todos os dias. Reflito que o desamparo as levou a rememorar experiências infantis. Toda mãe foi um dia uma filha e as identificações às vezes apareciam como mistura entre sujeito e objeto, porém o desejo de liberdade gritou mais alto na decisão de seguirem seu caminho sem seus parceiros, pais dos filhos. Não aceitam qualquer acordo para estar junto quando já não são companheiros em suas jornadas diárias. Num instante, passam a falar a partir de um único lugar, são mães que superam a ausência dos pais dos seus filhos. Voltam as heroínas, mais humanizadas, sem dúvida. Melhor assim! Não falam como mulheres que se sentem sozinhas. Não se sentem sozinhas.

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Muitas vezes fomos ao Cambridge e as rodas de conversa aconteceram com dois ou três participantes ou não aconteceram. O que não tira a riqueza dos momentos onde o grupo pôde acontecer. De forma fragmentária, respeitando os não-lugares, o ir e vir de um movimento onde o estar é precário, é instável.

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Sentem a falta que os filhos sentem. Os homens do nosso grupo não são pais ainda, mas são filhos que sofreram a falta de seus pais também. Eita mundo cão! Levante feminino. Quem segura essa mulherada? — quem precisa deles? o arrimo é sempre a mãe, a mulher que é mãe! Coube aos homens restituir um lugar para os pais. — não foi grande coisa, mas é meu pai e gosto dele assim mesmo. Claro que é diferente com a mãe, pela mãe daria a vida. — Eu também. — eu também. Entretanto, que fique claro, os filhos querem buscar seus pais mesmo assim! Fomos tateando um jeito para garantir um lugar para os homens-pais, falíveis, mas quem não é? Será que elas conseguem se refletir na imagem do ser com fendas, mas sem perder a força e sucumbir nas tragédias vividas? Precisamos saber dessa condição para possibilitar as entradas e saídas do outro. Um lindo depoimento vai dando ensejo ao final elaborativo naquele dia: a filha pequena, conta uma delas, elogiou um dia, seu pijama com corações desenhados e uma frase sobre amor. Um pouco de cor-de-rosa açucarado, por favor! A mãe conta pra filha que ganhou há muitos e muitos anos do pai da menina. A menina surpresa tenta imaginar, pela primeira vez, um casal para a sua origem e indaga se eles já tinham sido namorados. A mãe confirma que sim, há muito tempo. Tempo para pensar no que constitui cada um. Comovente é a força da palavra que circula e cria sentidos. Final. Saímos com a emoção à flor da pele. Uma pizza nos chega pelas mãos de um dos ocupantes. Com a pizza meio fria precisávamos nos sentar fora dali. Buscamos uma mesa no bar do BinLaden, figura folclórica que personifica o tirano nos trajes, mas que acolhe toda a diversidade que circula naquele quarteirão. Esse espaço ao lado, fora dali e ainda tão ali. Não dá para ir embora de uma vez. Uma cerveja, vários copos, guardanapo para a gordura do queijo que transbordava e celebramos mais um dia naquele lugar contraditório e excitante. Será que conseguiremos dormir?


Pensamos desde o início que propor um grupo terapêutico propriamente dito, seria complicado, por se tratar de um espaço coletivo, de vizinhança, de militância. Muitas dobras a fazer ruído na necessidade de um enquadre que contenha a intimidade dos participantes. Em uma das rodas de conversa, ouvimos um depoimento muito revelador: disseram que é muito difícil expor a vida pessoal para pessoas do seu convívio, afinal, qual seria o destino daquilo que abririam no grupo? A fofoca preocupa, o julgamento também. Assim como sabem que podem contar uns com os outros na militância e nas necessidades do dia a dia, prezam muito pela sua privacidade. Discutiam o mal-estar do que acontece nos corredores e o desejo de ter seus filhos protegidos em casa. Reivindicam que seus problemas domésticos sejam discutidos na esfera privada. Isso define o que é uma casa: o lugar onde você delimita o dentro e o fora. Desde o início apostamos que a vontade de compartilhar levaria os participantes do grupo para um lugar onde valeria mais o desejo de cada um se contar, de narrar suas pequenas, grandes e heróicas histórias na presença de outros que estivessem dispostos a escutar. Porém há uma questão que sempre nos inquietou e segue inquietando: será que a mobilização coletiva que aparece na militância, na luta pelo direito à moradia pode permitir a emergência da subjetividade, ou seja, daquilo que faz de cada um de nós um sujeito singular no mundo? Naquilo que diz respeito a sustentar o desejo de frequentar o grupo, temos nos deparado com uma certa instabilidade. O grupo só passa a lhes pertencer no seu tempo de duração... e como aproveitam!!!! O aviso na lousa que convoca à participação semanal muitas vezes é esquecido ou apagado, e os moradores mais assíduos acabam se ressentindo. Perguntamo-nos pelos motivos desse apagamento, da dificuldade do grupo se organizar para que a roda de conversa seja lembrada através da iniciativa deles. Temos tentado afirmar a existência desse território dentro da ocupação. Em outras palavras, através de nossa presença todas as terças-feiras, das 20:00 às 21:30 hs, estamos tentando que esse espaço deixe marcas dentro de cada um. As rodas não tem nada a ver com a coordenação! A contagem de pontos a que estão acostumados na participação junto aos movimentos de moradia, faz uma enorme sombra e confunde desejo e necessidade. Como criar a possibilidade de uma fala livre nessas circunstâncias? O que podemos fazer como psicanalistas interessados no burburinho

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da cidade quando as formas de funcionamento são essas? Como dar lugar à dor e ao questionamento? Temos pensado sobre os desdobramentos daquilo que vimos escutando nas rodas de conversa. Esse é um trabalho em processo que seguirá por novos caminhos daqui a um tempo. Alguns pedidos dos moradores nos levaram a pensar numa rede de encaminhamentos para psicoterapia individual ou grupal. Alguns desejos nossos de retomar percursos fora do prédio vêm sendo gestados. (Nesse tempo de intervenção fomos todos atravessados por vicissitudes políticas. Houve o toda a tramitação do impeachment e as manifestações contrárias. As forças de resistência não bastaram. O medo do desmonte desse grande projeto fez uma sombra, não explicitada, mas que foi silenciando um a um. Recolhendo os participantes em suas casas, ocupados com as suas preocupações concretas. Aconteceu o momento da decisão de quem vai ficar e quem vai embora daquela ocupação. Não se trata mais de desejo. O grupo foi minguando, porque não se pode falar muito. Hora de silenciar e seguir em frente, seja lá para onde for. )


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p r e fá c i o

O interesse das práticas artísticas no ativismo político é cada vez maior, e não é de hoje que se vê em exposições de arte, bienais ou documentas um convite, cada vez mais aberto, a ações de movimentos sociais, atos políticos e arquivos com documentação de ativistas. Por outro lado, também são grandes as dúvidas e os dilemas éticos e políticos sobre os limites e possibilidades dessa relação: mercado, fetiche, relações de poder, cinismo e eficácia. Nessa complexa relação entre arte e ativismo, surge no início de 2016, na Ocupação do Hotel Cambridge, coordenada pelo mstc (Movimento de Sem Tetos do Centro), o programa Residência Artística Cambridge, curado por Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. O primeiro artista convidado a participar foi Ícaro Lira, que tem uma trajetória de pesquisa, arquivo e exposições sobre temas como imigração e lutas populares. Um dos eixos dos trabalhos que Ícaro desenvolveu dentro da Ocupação foi a formação de uma comunidade que participou do seu processo de residência a partir de ações vinculadas a diferentes áreas de atuação. Além disso, por meio de uma programação de palestras, cineclube e oficinas, levou até o edifício a frequência de um público que, apesar de sensível e empático ao problema da moradia, nunca havia entrado no Hotel Cambridge. Entendendo os problemas e questões envolvidos num processo como esse - uma residência artística numa Ocupação -, Ícaro trouxe algumas questões que de certa forma se tornaram também da comunidade que ele formou: “Nesse primeiro momento, surgiu a proposta de não produzir obras, de buscar outra possibilidade de atuação como artista, partindo de inquietações como: por que um artista dentro de uma ocupação? Pra que esse trabalho? Como poderia ser esse trabalho? Qual o interesse do movimento, da Ocupação, de se ter um artista ali? Qual o interesse do artista em estar ali?”1 Edições Aurora foi convidada a pensar uma publicação, e passou a frequentar a Ocupação. Como editora, estávamos munidas de questões e receios: como fazer um livro sobre o trabalho de um artista em residência em uma Ocupação sem virar um catálogo? Como trazer diferentes vozes, experiências e contradições no processo editorial, 1  Notas sobre um processo partilhado: entrevista com Ícaro Lira, por Yudi Rafael.

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onde acaba prevalecendo a voz e narrativa do editor/autor? Como não fetichizar a Ocupação? Decidimos propor que os diferentes públicos da residência ocupassem o espaço do livro respondendo, da forma como melhor julgassem, àquele contexto. Convidamos muitos colaboradores, entre moradores, Residência Artística Cambridge, e colaboradores. Muitos deles, principalmente os moradores, acabaram não participando. O conteúdo foi organizado em ordem alfabética, já que cria uma narrativa “inusitada”, sem forçar vizinhanças e proximidades entre os conteúdos a partir de uma ideia pré-estabelecida. Residência ocupação cambridge, em seu conjunto, acabou se tornando um misto de vozes em primeira pessoa refletindo sobre como ocuparam e ocupam a ocupação. Longe de trazer uma resposta, e justamente por não se propor a isso, trata de um micro universo de um breve período de tempo de um longo ano que foi 2016, quando a presidente em vigor era Dilma Rousseff, e debatia-se os problemas do programa Minha Casa Minha Vida. Após mais de um ano, esses temas estão ultrapassados, tendo em vista as novas urgências, mas este registro ajuda a refletir sobre possibilidades de ação, ativismo e prática artística e suas contradições e, por que não, traz certo saudosismo.



Pensamos el grabado como herramienta que históricamente sirvió para ilustrar, denunciar, compartir y enseñar. Acompaña la palabra o prescinde de ella porque la imagen grabada tiene la fuerza que tienen las cosas hechas con las manos. Nuestra intención es continuar la historia de este oficio y utilizarlo para mostrar problemáticas que siguen existiendo como el racismo, la discriminación, la identidad, el hambre o el machismo. Tomamos como recurso la poética de las formas, las referencias a la historia del arte y el trabajo con las comunidades. El mural de lambe lambe que hicimos en la Residencia Ocupación Cambridge fue el resultado de un trabajo colectivo. Por un lado un conjunto de xilografías que surgieron de nuestro recorrido por la ciudad, el museo afro, la pinacoteca y la muestra “Ex machine” en Itau. Y por otro lado, las estampas que hicieron los chicos que habitan en el edificio en un taller que dictamos de grabado en telgopor. Junto con ellos pegamos las estampas y compusimos el mural. Sumando afiches de Ediciones Aurora. Ahora ese espacio que estaba vacío se lleno de colores y formas. Es un collage donde conviven el Mestizo de Portinari con elementos del escudo de Haití, la escultura de la alegoría a África hecha tan a la manera occidental con su contrapposto, ex votos, instrumentos de torturas a esclavos, afiches que tienen escrito “ el machismo mata” al lado del lema “Vivas nos queremos”, criaturas del Minecraft, princesas y casas que salen del imaginario de los chicos, mandiocas, plantas, y etcéteras de elementos que se entrecruzan y se resignifican.

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el mural de lambe-lambe


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um poema meu ... ja escrevi o pode escrever um poema ruim ou muitos poemas maravilhosos a coisa.... .....nao precisa da lingua! nem mesmo das folhas e canetas que sangra a poesie .... ....apenas precisa... ...que amar!

Caia uma arvore... todos ouvirao a voz da sua queda enquanto.. ...ninguem pode ouvir o silencio ! o silencio profundo... do crescimento da floresta

Vou retirar-me para mim mesmo vou ouvir passos... ...duma noite distante ouvi-los subendo ....... ........subendo ............... ...............subendo ao ceu... ...das perguntas eternas!

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isam ahmad issa

13 de junho – 4 de setembro, 2016


lagrimas nos olhos da Sao paulo vento viciado do isolamento da vida uma alma ferida.... ..... nao alcanca seu proprio corpo ah ....meu coracao! sera que voce ... ...uma nuvem orgulhosa se sucidou do ruido da solidao? meu coracao !!! .............a chuva refugiada dos invernos da Asia!

Acordo do sonho que nao tem acordo dormo no sonho que nao tem sono parece que entrei ... ...numa celula pagunsada do tamanho da SP .... .....onde os poetas bebem a bebeda ... ....a bebeda de sal amargo! sera que a vida ... ....os espinhos das rozas ? ....as brincadeiras das abelhas? ainda sim ainda nao ainda!!?? sou um pastor safado ... ...estou me ancostando dos pecados de Deus!

A ilusao ... ...abre as portas do ceu ! eu. ? sou apenas um poeta sonhador chuva ... chuva! eu vou lavar meu unico corac.. ..pela agua sagrada ... do rio de setembro!

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Va .... ....ate fim deste carrinho continuamente ...ate... as fronteiras do esterno confuso ... as extrenidade do cerco dos arcos va leticia ! para onde as primeiras deusas ... ...e nao chegarem !! sera que voce ..... ....foi la ...no seus (la)?! sera que voce... ....voltou aqui ... para o espaco dos poemas ?! avisa me ... voce senteu o tadio de flores? sua raiva ... .....sua !? que sangra-se as galaxias ... .....nesta poeira epica !!

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isam ahmad issa

Eu! Quando fique a vida... a vida mesma uma das distâncias ... ...do um passo ...um passo só ! quem pode ir ? Quando ... as noites altas ...todas as noites altas eram... ...um espaço do um poema ..um poema só ! quem vai escrever? Vou.... .............Escrever!



jo sep juan sega rr a pa r a :

<josepjuansegarra@gmail.com>

Residência Artística Cambridge <cambridge.residencia@gmail.com>

a s s u n to :

Convite | Participação na Publicação Res_Cambridge | Icaro Lira

Oi gente! fiz umas pequenas montagens com algumas imagens e algumas ideias textuais, as copio/anexo em .jpg e em caso de que gostem de alguma para usar posso enviar tb em .tiff escrevi o seguinte (nao sei qual o tom da publicação.. tá aberto para corrigir, sugerir, etc): No Cambridge apresentamos e debatemos o filme “Morar na ‘Casa do Povo’” e pensamos as especificidades das ocupações como forma de ação coletiva. Ocupações do mst, Ocupações de Câmaras Legislativas, Ocupações por Moradia, Ocupações de Escolas... Podemos pensar as ocupações como uma proposta política integral? Todos os aspetos da vida precisam ser abordados nas Ocupações: limpar, cozinhar, gerir conflitos, agir e viver coletivamentse... Por outra parte, no Cineclube conversamos sobre como o direito ao Transporte Público e o direito a Moradia fazem parte do direito de todxs a aceder os diferentes lugares da Cidade. Finalmente, o que seria “a Arte”? Muitas vezes a arte apresenta-se de forma elitista em prédios caríssimos reservados para as elites, e essas mesmas elites criam as suas próprias narrativas e, no fundo, na maior parte das vezes, enquanto auto-legitimam-se, acabam por reproduzir abismos sociais. A Residência Artística Cambridge diferencia-se por ser uma confluência de sementes, pensantes e sensíveis, que germinam dentro da Casa do Povo do Cambridge. Algumas destas sementes moram fora do prédio do Cambridge, mas todas elas se juntam na Casa desse Povo para crescer conjuntamente. E, nessa jun­ção, a Ocupação Cambridge acaba sendo a Casa de um Povo Amplio e Diverso, como o Mundo mesmo. Muito obrigado a todxs xs moradorxs, ao Ícaro e a toda a equipe da Residência Artística Cambridge. Josep Juan Segarra

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josep segarra e silvia zelaya

2 de agosto, 2016 — 18:05


residência artística cambridge

O contexto A cidade expressa estilos de civilização e de vida intimamente vinculados ao dia a dia das pessoas que ali vivem, suas condições concretas de vida e de trabalho. Segundo a geógrafa Ana Fani Carlos,1 a paisagem urbana é uma forma histórica específica que se explica através da sociedade que a reproduz. A história possui uma dimensão espacial; o urbano, como produção e reprodução do homem, é produto histórico. Nessa mesma linha, Henri Lefebvre afirma que “a paisagem reproduz, num determinado momento, vários momentos passados que, na articulação com o novo, reproduzem uma paisagem peculiar onde a história tem um peso importante”.2 Analisar as características e dinâmicas de uma cidade é apreender a lógica de seus habitantes e a forma como constituíram a vida em sociedade. O sociólogo urbano Robert Park compreende a cidade como um lugar arquitetado pelo homem para tornar o mundo mais próximo dos seus ideais: A cidade é a tentativa mais consistente do homem e a mais bem sucedida como um todo para refazer o mundo em que vive o mais próximo de seu desejo íntimo. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, é o mundo no qual ele está doravante condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem qualquer clareza da natureza de sua tarefa, fazendo a cidade o homem refaz a si mesmo.3

Tendo em vista esse viés utópico das cidades, que constituem lugares construídos por nós para nós mesmos, o geógrafo David Harvey4 advoga pelo direito à cidade não apenas como um direito ao acesso àquilo que já existe, mas como um direito de poder mudar a cidade de acordo com o nosso desejo íntimo. Essa liberdade para nos fazermos e refazermos, assim como nossas cidades, é para Harvey um dos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais negligenciados. O sistema capitalista que media as relações em nível global atualmente é dirigido pela necessidade de encontrar terrenos lucrativos para 1  carlos , Ana Fani Alessandri; A (Re)Produção Do Espaço Urbano; edusp, 2016, São Paulo, SP. 2  lefebvre , Henry. Writing on Cities. Oxford, Blackwell, 1996, p.158. 3  park , Robert. On Social Control and Collective Behavior. Chicago University Press, 1967, Chicago, IL; p. 3. 4  harvey, David. A Liberdade da Cidade. São Paulo: geousp – Espaço e Tempo, nº 26, 2009. Disponível em <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2009.74124>. Acesso em julho de 2017.

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5  Censo Demográfico 2010. Características da população e dos domicílios. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf>. Acesso em julho de 2017. 6  Programa de Metas da Cidade de São Paulo 2013-2016. Prefeitura da Cidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/planejamento/arquivos/15308-004_AF_FolhetoProgrmadeMetas2Fase.pdf>. Acesso em julho de 2017.

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a absorção de capital excedente. Nesse cenário, a urbanização constitui um processo que proporciona um mecanismo eficiente para solucionar essa questão. Segundo Harvey, essa dinâmica do capital culminou na apropriação da liberdade das cidades pela elite financeira, que acabou regendo os espaços urbanos de acordo com seu próprio interesse. A acumulação de capital, segundo o geógrafo, “não pode continuar sua trajetória corrente, e abstratamente determinar nossos destinos e fortunas, ditar quem e o que somos e o que nossas cidades devem ser”. Nesse sentido, Harvey compreende os movimentos sociais urbanos como grupos de pessoas que confrontam o problema do capital excedente em sua raiz, de modo que deveriam ser considerados mais que apenas “fragmentos perdidos da cidade”, como são comumente encarados. Em São Paulo, existem diversos movimentos sociais que lutam contra a financeirização da cidade. Destacam-se aqueles que protestam pela função social da moradia, tanto na periferia como no centro. Segundo dados do Censo 2010,5 existem hoje em São Paulo 290 mil imóveis não habitados e 130 mil famílias sem moradia. Só no centro da cidade, 40 mil estão vazios ou semiabandonados por conta da especulação imobiliária, que faz com que proprietários deixem seus imóveis desocupados enquanto não conseguem vendê-los ou alugá-los por valores exorbitantes. Segundo a Prefeitura, milhares de famílias vivem em prédios ocupados por movimentos sociais no centro.6 A entrada e a permanência das famílias nesses prédios é feita mediante constante conflito entre os movimentos, a polícia, o judiciário, o poder público e os proprietários. A negociação entre as partes pode resultar no despejo dessas famílias ou na desapropriação do imóvel para utilidade pública ou interesse social. Nesse contexto, a Residência Artística Cambridge nasce como um projeto curatorial estruturado para desenvolver propostas artísticas e culturais em um desses prédios localizados no centro de São Paulo, a Ocupação Hotel Cambridge, do mstc Movimento Sem Teto do Centro. A realização do projeto dentro da Ocupação só foi possível através do diálogo desenvolvido entre a dupla curatorial e Carmen Silva, uma das líderes do mstc e coordenadora da Ocupação, que aceitou gentilmente a proposta mediante o estabelecimento de algumas contrapartidas.


Assim, a Residência Artística Cambridge propôs desenvolver pelo período de um ano um programa com ênfase em práticas colaborativas, desenvolvidas em diálogo com a comunidade local e com parceiros, cuja pesquisa se relacionasse com assuntos ligados ao cotidiano da Ocupação. Para tanto, foram convidados quatro artistas e um escritor para realizar quatro residências de três meses cada: Ícaro Lira, Jaime Lauriano e Raphael Escobar, Virgínia de Medeiros, e Julián Fuks. A partir da residência do artista Ícaro Lira, também passou a integrar o projeto como curador convidado o antropólogo Alex Flynn. O mstc, fundado em 2001, é um movimento autônomo que luta pelo direito à cidade, à moradia digna, e pela conquista de políticas sociais e projetos habitacionais para população de baixa renda no centro de São Paulo.7 Comparada com as regiões periféricas da cidade, a região central garante maior acesso a educação, transporte, saúde e emprego, oferecendo assim melhores condições de vida. O intuito do movimento é a democratização do acesso à esses equipamentos públicos. Uma das bandeiras do mstc é a conscientização e o combate da moradia como um ativo financeiro antes de desempenhar a sua função social. Hoje, o movimento ocupa dez imóveis na região central, transforma locais abandonados e depredados em lares organizados e com capacidade produtiva e residencial. A gestão do espaço é feita de forma compartilhada, e diversas ações culturais, sociais e políticas são desenvolvidas a fim de que os moradores passem pelo círculo completo de ocupação, resistência e empoderamento social. O antigo Hotel Cambridge, localizado na região central de São Paulo, foi construído no final dos anos 1950 e funcionou como um hotel de luxo até 2004, quando assumiu falência e fechou suas portas. Em 23 de novembro de 2012, após oito anos de abandono, foi ocupado pelo mstc, e hoje abriga em torno de 170 famílias, cerca de 500 pessoas, sendo considerada uma das maiores ocupações da América Latina. Com a realização de reformas e a retirada de toneladas de lixo do edifício, essas famílias adequaram apartamentos para moradia, e passaram a gerir e manter o edifício, cuja posse se tornou possível de ser homologada ao Movimento apenas em julho desse ano, a partir da seleção feita no Chamamento nº 002/2015,8 referente ao programa Minha Casa Minha Vida.

7  Disponível em <http://ocupcambridge.wixsite.com/mstc01>. Acesso em julho de 2017. 8  Disponível em <http://migre.me/uRd8z>. Acesso em julho de 2017.

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O projeto Como conduzir uma residência artística dentro de uma Ocupação? Como atuar dentro de um contexto repleto de conflitos e já afetado por tantas causas? Como se relacionar com as diferentes pautas e interesses ali presentes? Como se colocar e se apresentar naquele lugar como projeto artístico? Para quem e por quê? Começamos os trabalhos com todas essas questões delicadas postas em aberto. Ao estruturar o projeto e fazer os convites aos residentes, Yudi Rafael e eu sabíamos que seria um trabalho experimental, que poderia dar certo, ou não, e que se desenvolveria a partir de muitas negociações e articulações. Desde o início, foi importante trabalhar com a perspectiva de que tratava-se de um projeto e não de uma instituição. Não estávamos abrindo um espaço dentro de uma Ocupação, estávamos propondo uma experiência curatorial, experimental, site specific, com duração de um ano de trabalho, dentro de um contexto político-social pré-determinado. Os artistas convidados foram escolhidos a partir desse desígnio, de seu trabalho artístico e dos modos de atuação de cada um. Diante das peculiaridades do projeto, deixamos claro aos residentes convidados que não seria exigido, ao final do período de trabalho, a apresentação de uma obra de arte, tampouco uma exposição. Essa materialização poderia ser uma contradição a tudo o que representa aquele lugar de resistência, e o esforço para que ela se desse não seria relevante diante da riqueza da experiência que o contexto oferece. Dessa forma, a contrapartida oferecida pela curadoria, tanto para os residentes convidados como para a Ocupação, foi a construção de um acervo do projeto, composto pelos registros das atividades desenvolvidas e por quatro publicações, editadas ao fim do período de trabalho de cada artista, com o intuito de documentar o que aconteceu. Ao iniciarmos a primeira residência, do artista Ícaro Lira, a construção da dinâmica de trabalho da equipe se deu de forma coletiva, a partir do exercício constante de autocrítica, de refletir sobre a forma como estávamos atuando naquele espaço e entre nós mesmos. A Residência se afirmou como um projeto horizontal. A constante negociação entre partes acontecia não apenas com os atores da Ocupação, mas também entre as pessoas da equipe. Essa dinâmica interessou à curadoria na medida em que esmiúça a reflexão sobre o trabalho, que passa a ser discutido a partir da articulação de vários pontos de vista. O diálogo permanente travado no âmbito do projeto reforçou o seu caráter processual. Ele nunca se resolveria em uma estrutura palpável, teríamos que lidar, do começo ao fim, com a incerteza própria da sua


natureza dinâmica. Logo percebemos, também, que esse “fim” seria subjetivo, já que o vínculo criado pelos artistas com o lugar e com o projeto ultrapassaria o tempo de três meses de residência. Nesse ponto é importante ressaltar que a Residência não se propôs em momento nenhum a tarefa de eliminar ou negar as relações de conflito próprias da intersecção entre arte e sociedade, e sim questionar esse entrelaçamento, a fim de trabalhar seus atributos e suas condições. O contexto da Ocupação não apareceu como pano de fundo, ele esteve posto como ponto de partida para pensarmos, de forma mais ampla, nossa relação com o mundo e uns com os outros. Nessa linha, vale citar a crítica de Claire Bishop à estética relacional do curador Francês Nicolas Bourriaud. Segundo a autora, a arte relacional privilegia as relações intersubjetivas entre sujeito, objeto e contexto, em vez de uma visualidade impessoal da obra de arte; no entanto, peca ao pressupor que “todas as relações que permitem ‘diálogo’ são automaticamente democráticas e, portanto, benéficas”. Para Bishop, o conceito de Bourriaud valoriza os nexos produzidos pelo trabalho artístico, mas deixa de examiná-los e colocá-los em questão: Para Bourriaud, a estrutura é o tema – e nisso ele é muito mais formalista do que percebe. Desarticulados tanto da intencionalidade artística quanto do ato de considerar o contexto mais amplo em que operam, os trabalhos de arte relacional se tornam, assim como os avisos no quadro de Gillick, apenas um “retrato constantemente mutável da heterogeneidade da vida cotidiana”, e não examinam sua relação com ela. Em outras palavras, apesar de os trabalhos afirmarem depender de seu contexto, eles não questionam sua imbricação nesse contexto.9

Assim, a Residência Artística Cambridge propôs o exercício de trabalhar sua inserção e atuação no contexto em que está inserida sem a pretensão de ser um ideal de si mesma, na tentativa pueril de apaziguar a tensão natural entre arte e sociedade. Ao contrário, visa sustentar, a partir do diálogo e da autorreflexão, as relações ali presentes, e investigar como elas podem acontecer e o que podem refletir. O intuito é trabalhar com os atritos que advém da existência do projeto e não excluí-los, pois são parte fundamental do trabalho. Ressalta-se nesse ponto que esse atrito também está presente na equipe do projeto, que ao buscar trabalhar horizontalmente também articulou pontos de tensão, em seus múltiplos pontos de vista. Cada 9  bishop , Claire. Antagonismo e estética relacional. Revista Tatuí 11. Disponível em <http://docslide. com.br/documents/claire-bishop-antagonismo-e-estetica-relacional.html>. Acesso em julho 2017.

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Incursões sobre as primeiras experiências do projeto No dia 19 de abril de 2016, às 21h, a biblioteca da Ocupação estava cheia, chegava ao fim o primeiro programa público da residência de Ícaro Lira, com a fala da urbanista Raquel Rolnik sobre seu mais recente livro Guerra dos lugares. A partir da sua experiência como relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel evidenciava o processo global de financeirização das cidades e seu impacto sobre as políticas habitacionais e urbanas: Uma ocupação é uma forma de resistência ao processo de financeirização da moradia e da terra. A ocupação de um lugar e a sua destinação a uma apropriação pública, popular e para moradia de quem precisa é fundamental na guerra dos lugares, onde o espaço ganha um lugar enorme no sistema financeiro, em um momento da história que o capital domina as relações públicas, sociais e políticas.

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decisão, que se pressupôs coletiva, gerou reflexão e discussão. Assim, o projeto caminhou a partir do dissenso, que enriquece e fortalece as decisões do grupo. Trabalhar divergências e estar aberto a rever suas próprias ideias é um desafio e um exercício político que faz com que o integrante do projeto promova e realize o trabalho em equipe. O interesse da curadoria nessa proposta de trabalho foi o de investigar questões artísticas, éticas, sociais e mercadológicas fora do ateliê e de espaços expositivos. O formato “residência artística” foi escolhido por possibilitar a imersão no contexto da Ocupação. No intuito de potencializar essa relação, o residente foi convidado a trabalhar nos locais comuns do prédio, permanecendo em contato constante com as questões que habitam o espaço. A equipe curatorial acredita que essa dinâmica fortaleceu o desenvolvimento do projeto, na medida em que reforçou o contato de todos com o objeto de pesquisa. Pelo fato de não se tratar de um lugar institucional, a equipe curatorial procurou ao máximo acompanhar os residentes na imersão, pensando e vivendo o processo de pesquisa junto com o artista. A comunicação e a produção também foram feitas coletivamente, tornando-se parte do trabalho do residente, que passou a pensar e a trabalhar todas as instâncias do projeto. Assim, o convite feito pela curadoria a partir da Residência Artística Cambridge não foi apenas o de analisar as imbricações entre arte e sociedade, mas também experimentar, pensar e discutir as relações artísticas institucionais e mercadológicas e o papel dos personagens que as compõe, bem como o desenvolvimento do processo artístico na arte contemporânea.


A fim de evocar um sentimento positivo diante da dura realidade da moradia na era do capital, Raquel finalizou o encontro afirmando a importância daquele lugar: “na ocupação, estamos observando outras formas de experimentar a política, a cidade, a moradia e a cidadania.” No segundo encontro articulado por Ícaro, em 26 de abril, Luiz Kohara, educador popular e secretário executivo do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos traçou um histórico sobre a disputa pela terra, a expansão urbana e a luta popular em São Paulo. Nesse resgate, ressaltou a relação entre a construção da lógica da propriedade privada na cidade com os mecanismos escravocratas utilizados na época para não empoderar os escravos após a abolição, o que fez com que os mais pobres fossem morar onde a terra não tem valor, na periferia, longe dos centros e dos serviços públicos. Kohara enfatizou a diferença entre luta por moradia e luta por moradia adequada. Para o educador, apenas um lugar para se morar, próximo aos equipamentos urbanos, não basta, tem que haver uma política de inclusão social. A segregação e a discriminação estão tão incutidas na sociedade brasileira, que a luta não se restringe apenas ao território geográfico, ela deve adentrar a subjetividade de cada habitante da cidade. Trata-se de uma questão cultural, que se refere a muitos aspectos. Segundo Kohara, o próprio morador de baixa renda que mora no centro não frequenta as atividades públicas recreativas que a cidade oferece, por não se sentir cidadão digno e merecedor desses serviços como, por exemplo, os espetáculos gratuitos do Teatro Municipal, ou a programação da Biblioteca Mário de Andrade. Para Kohara, a moradia adequada deve ser reconhecida por todos como um direito do cidadão, caso contrário, será sempre marcada por uma questão de classe social. Na manhã do sábado seguinte, no intuito de conhecer outras Ocupações do movimento, Yudi, Ícaro e eu fomos visitar a Ocupação José Bonifácio, constituída desde 2012 por 81 famílias. Fomos recebidos pelo coordenador Ronald Felisberto, que conversou longamente com a equipe, mostrou todos os andares do prédio, apresentou alguns moradores, os espaços comuns e as regras de convívio. Ronald também falou sobre o processo para ser aceito como residente em alguma Ocupação do mstc. Segundo o coordenador, todos os interessados devem passar pelo Grupo de Base, onde conhecem as regras do movimento e alguns de seus integrantes. A coordenação, nesses encontros, seleciona como morador aqueles que se mostram

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aptos a participar das ações políticas e a seguir as regras de convívio do grupo. A moeda de troca para integrar o mstc, portanto, é a participação nas ações coletivas do movimento e da vida em comunidade Quando chegamos no último andar do prédio, Ronald nos mostrou sua casa. Batia um sol forte e ele nos levou orgulhoso ao seu terraço, onde crescia um pé de tomate. A vista dava para os fundos do quarteirão onde havia outra Ocupação, mas esta não era do mstc, e sim de outro movimento que também luta por moradia adequada no centro. Nesse momento, percebi que estávamos de fato conhecendo e entendendo outro modo de se viver na cidade de São Paulo, que ultrapassa a dinâmica do aluguel e da casa própria. No prédio em que moro, não sei o nome de vários dos meus vizinhos, nem onde eles trabalham, mas lá na José Bonifácio todos os moradores se conhecem, se ajudam, se revezam na limpeza do prédio, compartilham a máquina de lavar roupa, cuidam uns dos outros, isso tudo depois de conquistar, através da luta, a sua própria moradia. Entendi, então, a força daquele lugar como espaço de resistência a um sistema capitalista extremamente violento e opressor. Percebi como aquela realidade também me afeta, e reconheci o esforço que eu também faço para dar conta dela. Entendi a força com que aquelas pessoas exercem a sua cidadania e o seu poder político, de uma forma totalmente diferente da minha, e fiquei admirada. Passei, então, a ver a minha presença na cidade de forma diferente, como se eu tivesse descoberto outra camada de São Paulo. No dia 3 de maio, a arquiteta, pesquisadora e curadora Ligia Nobre foi convidada por Ícaro para uma fala acerca da intersecção entre práticas artísticas e outros agenciamentos na cidade. No encontro, Ligia falou sobre as suas experiências como curadora na X Bienal de Arquitetura de São Paulo e na Plataforma EXO Experimental org, espaço autônomo de investigação e ativação de práticas estéticas contemporâneas relacionadas ao contexto sociopolítico brasileiro, tendo como epicentro a metrópole de São Paulo. Ligia ressaltou a potência da relação entre ações artísticas e questões urbanas, sociais e políticas. Segundo a curadora, essa intersecção opera com instâncias tão variadas que, quando articulada, cria “potências capazes de construir outras formas de viver”. Para ela, é uma inteligência entender esses movimentos como estratégias possíveis de construir a cidade. Na Ocupação Hotel Cambridge é perceptível a riqueza que advém da convivência entre os diferentes grupos que habitam aquele


espaço – a equipe do projeto, os moradores da Ocupação, os grupos de refugiados, a militância política. A relação entre esses grupos, feita mediante constante conflito e negociação, tem a capacidade de articular interesses distintos que juntos somam às respectivas pautas. No mesmo dia da fala de Ligia, foi publicada no caderno de cultura do O Estado de S. Paulo uma matéria da jornalista Camila Molina sobre a Residência e outros projetos artísticos que acontecem no Cambridge. Na discussão que seguiu à palestra, o artista Claudio Bueno citou a matéria, atribuindo o seu enfoque à fala de Ligia: “a Ocupação sair do caderno de polícia como ‘invasão’ e entrar no caderno de cultura como ‘ocupação’ é um resultado da intersecção entre práticas artísticas e outros agenciamentos na cidade.” A partir de sua imersão na Ocupação, Ícaro captou a potência dessa hibridação, e começou a trabalhar com o manejo dessas intersecções, exercendo um papel de observador e interlocutor entre as pessoas que circulam e habitam o Cambridge. Seu processo de residência foi se desenvolvendo a partir da conexão e expansão de redes de trabalho, integrando uma série de atividades que foram divididas em dois eixos: encontros públicos e grupos de trabalho. Os encontros públicos foram uma série de debates e conversas realizadas na Ocupação sobre temas que foram suscitados a partir da residência do artista. Já os grupos de trabalho, ou gt’s, foram espaços de encontro criados por Ícaro dentro do Cambridge com o escopo de articular e concretizar ideias e desejos comuns. Alguns gt’s sobrevivem ao período de residência e, em virtude da natureza de seu trabalho, Ícaro permanece em contato com a Ocupação e com o projeto. Ao convidar o público externo para conversar e refletir sobre as pautas que afetam a Ocupação, Ícaro introduziu o espectador no contexto do projeto, convidando-o a fazer uma imersão coletiva. Ao criar esse espaço de convivência, ampliou o raio de fricção do projeto e o “espectador observador” passou a participar ativamente do trabalho, sendo afetado por todas as tensões próprias do projeto e da Ocupação. Uma questão que atravessou o período de residência de Ícaro foi a conturbação política pela qual o país passou no primeiro semestre do ano. O golpe político e as manifestações sociais interferiram de maneira visceral o cotidiano da Ocupação e reverberaram no trabalho do artista. Presenciamos a angústia do movimento frente às ameaças de mudança do governo, bem como às articulações em torno de ações de luta e resistência.

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10  O Brasil tem hoje 7.700 refugiados de 81 nacionalidades diferentes. Segundo o Conare, o número de pedidos de refúgio no Brasil cresceu 2.131% nos últimos cinco anos – de 1.165 em 2010 para 25.996 em 2014. Em 2015, o Brasil se tornou o país que mais recebe solicitações de refúgio na América Latina.

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Outra pauta que movimenta constantemente a comunidade é a dos refugiados, migrantes e imigrantes de baixa renda.10 Essas pessoas chegam à cidade de São Paulo em busca de uma vida melhor, mas acabam enfrentando as mesmas dificuldades encontradas pelos integrantes dos movimentos que lutam pelo direito à cidade. Na ausência de políticas públicas eficientes para recebê-las, algumas passam a integrar a luta dos movimentos contra a especulação imobiliária. Encontros, festivais, eventos culturais são organizados pelos estrangeiros nas Ocupações, a fim de fortalecer a causa. Presenciamos mais de uma campanha eleitoral dentro do Cambridge. Candidatos a prefeito e vereador foram recebidos pela cúpula do movimento para fazerem suas promessas. Evidente, portanto, que aquele prédio no centro é ocupado não apenas pelos integrantes do movimento por moradia adequada, mas também por todas as questões pulsantes da cidade. Trata-se de um microcosmo de São Paulo, e representa o ponto mais forte do elo mais fraco da sociedade brasileira. O projeto acontece, portanto, como uma experimentação de como pode se dar a inserção de práticas artísticas em um contexto de conflito e resistência político-social. Quais são os resultados dessa interação? Como operar? A autorreflexão constante possibilitada pelo projeto cria formas diversas de atuação, que variam de acordo com cada artista e seu respectivo processo de residência. A horizontalidade impede a definição de uma dinâmica de trabalho impositiva, e instaura o diálogo como ferramenta principal. Assim o projeto nasce e se desenvolve como uma experimentação apta a investigar e adquirir múltiplos formatos. A riqueza da proposta da Residência Artística Cambridge, portanto, não se restringiu à imersão artística no contexto do projeto e ao que isso poderia reverberar tanto no processo de trabalho de cada residente como na Ocupação; ela também se consubstancia na dinâmica de trabalho estabelecida a partir (i) do desafio e do exercício político constante de pensar as relações horizontalmente; e (ii) da permanente autorreflexão da equipe em como se apresentar e se comportar como projeto artístico diante das diversas pautas que perpassam o prédio e afetam a vida de todos que frequentam aquele espaço.


9 de agosto, 2016 — 17:57

d u lc i n é i a c ata d o r a pa r a :

<dulcineia.catadora@gmail.com>

Residência Artística Cambridge <cambridge.residencia@gmail.com>

a s s u n to :

para o livro sobre residência de Icaro

Oi Juliana, tudo bem? Envio fotos de uma publicação que estou iniciando junto com os moradores da ocupação e que é um desdobramento do trabalho que iniciei com o Ícaro (as oficinas). É um livro com termos que fazem parte da vida diária dos moradores da ocupação – contém a definição de cada termo dada em dicionários, acrescida de definição dada por um morador. Está em processo, ainda sujeito a modificações, ajustes, mas é essa a ideia e eu acho legal pensar em desdobramentos decorrentes do processo colaborativo que, pelo menos no caso da ocupação, é bem marcante no trabalho de Icaro. Me diga o que você acha. Abraço, Lúcia -Site: www.dulcineiacatadora.com.br Blog: http://noticiasdacatadora.blogspot.com/

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vocabulário vivido é um livro que está sendo

feito com moradores da ocupação e não tem data limite para ser finalizado. Foi iniciado em agosto de 2016, como desdobramento das oficinas de Dulcinéia Catadora feitas a convite de ícaro Lira, na ocupação Cambridge em São Paulo.

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imigrante 1. Pessoa que habita e possui residência fixa (legal ou ilegal) num país estrangeiro 2. pessoa que abandonou o seu país para escapar à guerra, fome, condenação ou perseguiição

É aquela pessoa que vem de outro país pra cá e precisa de ajuda. Precisa de apoio. A pessoa mesmo precisa de tanta coisa. O Brasil tem pra dar pra eles. Eu conheço alguns de vista. Não tenho muito contato. Moro aqui desde o primeiro dia, mas saio de mahã e chego de noite, então não tenho contato. Antonia apto 60

moradia 1. designação comum de habitação, morada, casa movimento 1. ação de deslocar ou deslocar-se; seu efeito 2. mudança pela qual um corpo está sucessivamente presente em diferentes pontos do espaço 3. ação, variedade, animação 4. [Figurado] Agitação, fermentação política.Parte de uma graduação do metrônomo 5. denominação de certos agrupamentos políticos 6. a marcha real ou aparente dos corpos celestes 7. variante em certas quantidades: movimento da população 8. promoção, transferências, demissões etc., nos corpos civis e militares 9. circulação, agitação produzida por uma multidão que se move em diferentes sentidos.

Movimento de moradia É todo mundo lutando com o mesmo objetivo. A gente tá aqui, mas não é definitivo. é ter um sonho. Pra uma pessoa chegar e financiar um carro é muito fácil. Mas uma casa não, não é tão fácil. E é aí que a gente vai colocar seus filhos, na casa, você vai criar seus filhos, você tá tirando espaço pro aluguel. Luana apto 59 100


ocupar 1. encher um espaço de lugar e tempo 2. habitar 3. tomar posse de

Ocupação é muito diferente de invasão. Ocupação é quando o dono não paga imposto e deixa aquele imposto acumular a tal ponto que não consegue pagar aquele imóvel, que já não pertence a você. Aí o imóvel fica pro Estado. Aí a pessoa vai e ocupa porque o que é da prefeitura, o que é do Estado é do povo. Por que que eu digo isso, porque a Constituição de 88 diz que todo brasileiro nascido em terra brasileira tem direito a saúde, educação, moradia e segurança. então como a moradia é garantida pro povo, então quando a pessoa ocupa algo que é do governo, isso pra mim é legal. Roseana Rosa apto 131

regra 1. princípio que serve como padrão; norma, preceito 2. expressão de ordem; disciplina: uma casa com ordens. Exemplo que se deve seguir; modelo: usei as regras do seu projeto 3.determinação legal; lei: seguia as regras da Constituição.

É não fazer aquilo tudo que você acha que deve fazer. Você tem que ter um limite. Se você for fazer tudo o que você acha que quer, você tem que ter um pouco de tudo. Antonia apto 60 101

lúcia rosa

ocupação 1. ação de ocupar, de tomar posse de uma propriedade ou de um lugar através de invasão: a ocupação de terras improdutivas. 2. ação de se apoderar militarmente de uma cidade, de um país: a ocupação do Afeganistão. 3. serviço; o trabalho mais importante da vida de alguém; os afazeres com os quais nos ocupamos: você precisa arrumar uma ocupação.


residência é sinônimo de moradia

No contexto político e social em que que vivemos hoje, o compromisso presente em nossas práticas artísticas e na produção de cultura pode se converter em uma alternativa para a resistência. Walter Benjamin1 restabelece a função social do artista e, dessa forma, “ganha o intelectual para a causa operária”, ao propor um trabalho coletivo, no qual haja participantes e não espectadores. Sob esse prisma, trata-se de operar e não de representar. No antigo Hotel Cambridge está se desenvolvendo uma das experiências mais recentes de inserção da atividade artística dentro de um contexto de luta ativa. O encontro entre seus agentes – os moradores da ocupação, a equipe curatorial, os artistas e colaboradores – está compondo um campo de coalisão que projeta a pergunta: quais são as expectativas que criam e qual a sua capacidade de reverberação para além de suas paredes? Arte e o mstc na ocupação hotel cambridge O mstc (Movimento Sem Teto do Centro) luta pelo direito a uma moradia digna no centro da cidade, onde já há serviços sociais, de educação e cultura. No dia 23 de novembro de 2012, o movimento ocupou o Hotel Cambridge, iniciando um primeiro processo de posse e limpeza. O espaço agora conta com 119 apartamentos com famílias de brasileiros, imigrantes e refugiados de países como Bolívia, Haiti, Palestina, Camarões e República Dominicana. Além da manutenção da ocupação, a criação de laços é prioritária, por isso a existência de espaços culturais coletivos. Nas palavras de Carmem Ferreira da Silva, coordenadora do mstc, “a cultura cria comunidade, em seu fluxo entrelaça e alcança todas as camadas”. Houve um ponto de inflexão há dois anos durante a filmagem de Era o Hotel Cambridge, de Eliana Caffé. Do lado de dentro do movimento, já se estava acostumado a um uso interessado e de curto prazo por parte das propostas culturais. Do lado de fora, houve uma mudança de percepção em relação à marginalidade dos movimentos de ocupação. Os coletivos de atividades formados durante a filmagem se multiplica1  benjamin , Walter. L’Auteur Comme Producteur. Paris, 1934.

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Residência artística cambrigde Os curadores Juliana Caffé e Yudi Raphael já haviam trabalhado sobre e com movimentos migratórios. Em janeiro de 2016, quando surgiu a possibilidade de começar um projeto dentro da ocupação Cambridge, a pergunta era “como trabalhar neste contexto?”. Para isso, eles estão tentando reformular a prática curatorial e artística através da experimentação, retomando a problematização acerca da questão expositiva que surge nos anos 1990, especialmente as teorias da psicanálise na cidade ou os modos de estética relacional,2 através da visão crítica de Claire Bishop:3 não teria sentido um laboratório de microutopias se ele acontece dentro do espaço institucional. Não é uma “ocupação dentro da ocupação”, por isso seu nome oficial é Residência Artística Cambridge. Nela são unidos seus pressupostos de trabalho horizontal e orgânico com os interesses culturais do mstc, dos habitantes, com uma porcentagem significativa de refugiados e outros imigrantes, dos artistas e colaboradores. No momento, o projeto conta com o apoio do mstc, além de mstc-Projetech, da Lanchonete.org, das Edições Aurora/ Publication Studio São Paulo e da Dulcinéia Catadora. O capital cognitivo da rede, de colaboradores de dentro ou fora da ocupação, é considerado imprescindível, pois é a partir dele que as ações são viabilizadas. Os eixos de trabalho se concentram em criar relações com o entorno e legitimar o uso do espaço. Dessa forma, se busca criar um campo reflexivo apontando para questões que não podem ser subestimadas: quem e como ganha visibilidade com esse projeto e sua viabilidade. “Ativismo é fazer e também pensar em como fazer”, afirmam os curadores. As atividades tiveram início em março de 2016, com o primeiro artista residente, Ícaro Lira, e terão continuidade até janeiro de 2017 com outros residentes: Jaime Lauriano e Raphael Escobar, Virginia de Medeiros e o escritor Julián Fuks. Cada um deles permanecerá um período de três a cinco meses no espaço. As experiências realizadas serão registradas em uma publicação final. Os curadores destacam a exigência de uma negociação contínua nesse desejo de horizontalidade. É necessário um esforço permanente de reconfiguração dos papéis 2  bourriaud , Nicolas. L’esthétique Relationnelle. Dijon: Les Presses du Réel, 1998. 3  bishop , Claire. Antagonism and Relational Aesthetics. Nova York: October n 110, 2004.

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ram, e de suas atividades surgiram uma biblioteca, uma horta e outras iniciativas, inclusive a Residência Artística Cambridge.


para dar sustento real ao projeto. Eles não esperam criar conexões através de uma cultura do evento ou da obra material, mas priorizar sua função de catalizadores dentro da ocupação, dando-se e dando voz a todos. Para isso, Lira tem articulado diversas táticas que se estendem para os seguintes residentes: criação de trabalhos colaborativos; o uso das áreas comuns como lugar de trabalho; formação da rede de interlocução com a comunidade; pensando sempre na duração das iniciativas para além do período de residência. A partir da própria comunidade surgiram várias iniciativas que se têm articulado através da atuação de Ícaro Lira: a organização de clínicas para terapias de grupo, a potencialização do cineclube já existente e o censo audiovisual de moradores com a colaboração de Isadora Brant e Fernanda Taddei. Ícaro Lira: trajetória de desmaterialização Ícaro Lira (1986, Fortaleza, CE) ocupou o espaço entre os meses de março e julho. Ele define seu papel como o de agente para a ativação de ideias e ações de maneira transversal, pensando o que é ser artista nesse contexto, qual poderia ser seu trabalho e que retorno existiria. Desde o primeiro momento estava certo de que não iria produzir “obras” e que iria basear sua prática nessa ação artística como capital social. Dessa forma, ele se concentrou na criação de redes, sejam elas internas, com a consolidação de relações pessoais com os moradores, sejam externas, com a abertura de canais para refletir sobre as conjunturas que rodeiam os fenômenos de migração e ocupação. Suas exposições se formalizavam como grandes e heterogêneos arquivos mutáveis acompanhados de encontros para a atualização das histórias. Nessa ocasião, Lira deixa de lado a produção material para concentrar-se em um “trabalhar juntos”. Ele retoma o que Lygia Clark, Oiticica e a cena carioca já definiam como um “novo comportamento perceptivo” de mistura, numa estratégia emancipadora e de empoderamento através do reconhecimento de identidades plurais. Dentro de sua metodologia, existem sempre cadernos. Neles foram registradas as informações sobre diversas histórias esquecidas no Brasil, atualizadas com uma contínua correspondência com os acontecimentos contemporâneos. Esses fatos atuais são herdeiros dessas narrativas afastadas e são surpreendentemente semelhantes. Em todos eles, a figura do trabalhador e do imigrante são centrais. O caderno que leva agora, de capa de couro negro com o rótulo “Ocupação Cambridge”, recolhe as palavras-chave das ideias sobre temas, públicos e ações. Pela biblioteca já passaram Raquel Rolnik, Peter Pál Pelbart, Luiz Kohara, Ligia Nobre, Alex Flynn,

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Reflexão: sonhos e expectativas Alex Flynn é um dos colaboradores que chegaram ao Cambridge pela rede gerada por Lira. Antropólogo inglês, desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea, política e mobilização social, e ressalta a “complexidade do projeto, do ponto de vista interno e externo. É ponto de encontro de várias lógicas de participação: a antropológica, a artística, a das redes de movimentos sociais”. E tudo isso num espaço que define como “contestado”: “Tudo está sempre em jogo, é mutável, o que significa um desafio e uma oportunidade”. Ainda sem um programa de atuação definido, os próximos residentes, Jaime Lauriano e Raphael Escobar, acreditam, assim como Lira, na formação de uma atuação em contexto. Trabalharão centrados na rede de moradores e ao mesmo tempo rastrearão iniciativas anteriores. Sabem que não são os primeiros, tendo como referente a ocupação do edifício Prestes Maia entre 2003 e 2006. Na revisão de André Mesquita4 se questionam quais foram os verdadeiros interesses de cada uma das partes envolvidas – entre a necessidade de legitimação do movimento na imprensa e a busca dos artistas por um espaço alternativo –, assim como a compreensão real das necessidades do outro. Marcio Harum, curador de artes visuais do Centro Cultural São Paulo, se aproximou da ocupação Cambridge graças ao seu interesse pela programação agenciada por Lira. Aí ele achou “um ponto de encontro entre as classes artística e cultural brasileira e de outras nacionalidades, que não acontece em nenhum outro lugar de São Paulo. É um público elástico”. 4  mesquita , André Luiz. Insurgências poéticas. arte ativista e ação coletiva (1990-2000). Mestrado em História – Departamento de História da Universidade de São Paulo, 2008. Disponível em <www. espiral.fau.usp.br/arquivos-artigos/2008-dissertacao_Andre_Mesquita.pdf>. Acesso em julho de 2017.

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Beto Brant e Camila Márdila. Foram projetados filmes no que Lira chama de “sessões nômades rotativas” – como a seleção de Leon Hirszman que eu tive a sorte de mediar –; foram realizadas oficinas de edição com Dulcinéia Catadora e Aurora; e feitas caminhadas pela São Paulo migrante e ocupada. E ainda mais. Lira tem projetado encontros com o movimento Ocupação Preta Funarte do grupo gapp, e sessões de cinema palestino, haitiano e africano. Existem ainda outras atividades, como o censo já citado, aulas de idioma e ainda o esforço para ativar a biblioteca com sessões de leitura. Nesse contexto, não é casual a deriva de Lira para a desmaterialização da ação artística também como ato de resistência. Não é uma casualidade que o último evento da lista, no final de julho, tenha como tema “o artista como agente gentrificador”.


O projeto responde ao contexto político atual e suas realidades sociais, no qual a sociedade paulistana parece estar saindo de uma anestesia para aumentar sua participação colaborativa. São vários os desafios que podem ser identificados e que estão sendo confrontados na Residência Artística Cambridge: num primeiro lugar, a formação de uma comunidade que – mesmo heterogênea, e é um dos valores que ressaltam Caffé e Raphael – só existe por uma primeira coesão em sua luta pela moradia digna, mas não necessariamente em seus objetivos, interesses e concepção de modos de vida. Para isso, como aponta Isam Ahmad Issa, refugiado palestino que vive na ocupação, é necessário um entendimento global do que significa um ato de resistência na atual situação política e econômica. Seria o primeiro passo para um pensamento livre e não atado somente ao medo de não poder cobrir as necessidades básicas. Por outro lado, é preciso pensar a construção consciente da visibilidade das ações e a possibilidade, ou não, de uma reverberação para além dos limites do puramente artístico. Ecoando uma preocupação do Situacionismo, o projeto deve ser um elemento ativador em compromisso com o contexto, e não somente preocupado com este a partir da esfera do simbólico. É esse o modo proposto por essa rede de pessoas ligadas à Residência Artística Cambridge: moradores, artistas e curadores. A partir da prática artística colaborativa, buscam juntos como pensar num território onde seja possível compartilhar o sensível e reimaginar modos de produzir tensões e alternativas através de práticas transdisciplinares que se potencializem entre elas. Seria então uma oportunidade de despertar a capacidade de pensamento crítico, sendo a arte o catalisador em união com outras áreas do conhecimento.

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Entrevista com Ícaro Lira, por Yudi Rafael Outubro de 2016

Yudi Rafael: Conversávamos há pouco sobre o trabalho que você tem desenvolvido junto à Residência Artística Cambridge, e sobre o termo “programação”, que às vezes surge para se referir ao conjunto de ações que foram articuladas por você nesse contexto, e que gera um incômodo, já que pode carregar alguns sentidos que não traduzem adequadamente seu trabalho. Você pode falar um pouco sobre isso? Ícaro Lira: Acho que quando se diz programação, ou mesmo curadoria, não se fala sobre o processo, que foi mais orgânico. Quando tivemos a primeira conversa, em janeiro, eu já tinha uma ideia de atuar dentro do movimento por moradia. Nesse primeiro momento, surgiu a proposta de não produzir obras, de buscar outra possibilidade de atuação como artista, partindo de inquietações como: por que um artista dentro de uma ocupação? Pra que esse trabalho? Como poderia ser esse trabalho? Qual o interesse do movimento, da Ocupação, de se ter um artista ali? Qual o interesse do artista em estar ali? Um ponto importante era a não financeirização da experiência, o que em certa medida acabou extrapolando para os outros residentes. Essas bases iniciais foram pensadas juntas e talvez, em parte, continuem: propor outra forma de criação, que passa por trabalhar não só de forma coletiva e colaborativa com vocês, da Residência Artística Cambridge, mas também com os moradores e outros parceiros, artistas e interessados. Então partimos de uma rede inicial de nomes como Raquel Rolnik, Edições Aurora, Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Lanchonete.org, Ligia Nobre e o próprio Alex Flynn. Pessoas que estavam ao redor, tanto fisicamente, vizinhos, mas também em termos de discussões e preocupações – o Grist (Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto), o Isam Ahmad, o Maestro [Louides Charles]. A partir desse primeiro mapeamento, começaram a surgir as atividades, das quais foram se desdobrando

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Yudi Rafael: Com relação à dinâmica de trabalho, a curadoria buscou estabelecer um conjunto de parâmetros, discutidos e reformulados continuamente junto aos artistas, para que a Residência se constituísse por meio de práticas dialógicas, colaborativas e abertas no contexto da Ocupação. Como você pensa a relação e as correspondências entre os procedimentos que adotou e as especificidades desse espaço? Ícaro Lira: A Ocupação é um lugar de encontro de pessoas de vários locais, com histórias e vivências. Existe uma preocupação que acho que deveríamos ter como agentes do campo da arte que é reverberar o nosso trabalho para além de meia dúzia de pessoas que vão nas exposições. Acho que foi interessante para o processo também o momento histórico do impeachment, do golpe e de incertezas, que reforçaram a percepção de que a ocupação, seguindo um histórico recente das ocupações das escolas pelos secundaristas, das Funartes do Brasil e das ocupações de moradia, se tornou um lugar importante nesse xadrez político. E muitos intelectuais e artistas perceberam isso, que a ocupação deve ser valorizada, protegida, pensada, discutida, enfim. É de interesse de muitas pessoas ali dentro criar um lugar de discussão e de encontro, e que a ocupação pudesse ser este lugar. Tive uma experiência anterior com a Ana Pato, na Bienal da Bahia, onde ela criou alguns grupos de trabalho com jovens da periferia de Salvador para pensar a própria Bienal, a curadoria e o trabalho que estava sendo desenvolvido no arquivo público, do qual participei. Um grupo de trabalho é basicamente uma reunião aberta a quem quiser participar, em que são discutidas questões, sejam elas temas como migração, ou a ativação de uma biblioteca. Na Residência, isso gerou ruídos pelo fato das reuniões terem muita gente discutindo muitas questões. Mas aos poucos aquilo foi se configurando mais claramente como forma de trabalho, como grupo de trabalho, e esses encontros serviam para conversar e pensar o lugar onde estávamos, e trazer as inquietações que a gente já tinha para junto das inquietações das pessoas que estavam chegando e daquelas que viviam ali, e a partir disso pensar o que poderia ser feito. Assim foram surgindo coisas como o

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outras ações. Isso sempre aberto para receber qualquer tipo de proposição, escutar e pensar junto, e atuar mais como um articulador de propostas e ideias.


Diálogos sobre arte, imigração e trabalho, as caminhadas, as falas, as oficinas e a publicação. Yudi Rafael: Os grupos de trabalho permitiram que se sustentassem articulações em várias frentes. Ícaro Lira: São partes de uma mesma coisa, são desdobramentos de um trabalho feito por vários braços, onde cada um se empenhou de alguma forma. Com as falas públicas, por exemplo, pensamos em pessoas que poderiam contribuir com esse debate. Elas ajudaram a fomentar e viabilizar outras ações, mais tarde, como as clínicas ou o cineclube. Os filmes que foram projetados estavam imbuídos das discussões que ocorreram ali, como abc da greve (1990), do Leon Hirszman, Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, ou Morar na casa do povo, do Josep Segarra. Yudi Rafael: Partimos de um cronograma maleável em que os períodos de trabalho dos residentes dividiram o ano da duração prevista do projeto em quatro partes e tomamos, ao mesmo tempo, a ideia de uma temporalidade estendida, por meio da qual as articulações e os vínculos pudessem suscitar outros arranjos e desdobramentos. A duração do projeto e o período de cada residência tem sido uma questão recorrente nas discussões entre equipe de curadores e residentes, estendendo-se por vezes a colaboradores e interlocutores. Como essas questões se colocam no seu trabalho? Ícaro Lira: Existiu uma tentativa real de que as oficinas que foram iniciadas pudessem continuar de forma autônoma à atuação dos artistas e da Residência, e isso foi alcançado num nível satisfatório com as clínicas, o trabalho da Dulcinéia Catadora, com a Lúcia, o cineclube, e também as caminhadas, que foram interrompidas, mas vão continuar. As próprias entrevistas do filme Frente, realizado com Isadora Brant e Fernanda Taddei, seguiram, e também os registros, de modo que esta publicação lida com os arquivos dessas ações e seus desdobramentos. Eu penso em tudo como uma coisa só. Yudi Rafael: Qual a relação entre os trabalhos que você tem realizado em outras situações e sua atuação no Cambridge?

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Yudi Rafael: Lembro de quando assistimos a uma fala do Luiz Kohara, pouco depois do encerramento da exposição Museu do estrangeiro, em 2015. Foi nessa ocasião que soube do seu interesse por refugiados e imigrantes nas ocupações e movimentos de luta por moradia em São Paulo. Mais tarde, convidamos ele para fazer uma fala no Cambridge. Como você pensa esse percurso e os interesses que o levaram a buscar esses espaços? Ícaro Lira: A vontade de trabalhar neste local surge muito de uma inquietação e de uma frustração com o trabalho artístico strictu sensu, ou de como ele costuma ser percebido, e de uma vontade cada vez menor de participar desse sistema ou forma de trabalhar: exposição, portfólio, edital, que já está saturada. E também perceber que num lugar como este havia a possibilidade de uma atuação mais abrangente, mais autônoma, livre, e para isso foi importante o respaldo do Movimento [mstc], que me deu carta branca para pensar e produzir o trabalho da forma que fosse – claro, dentro de limites éticos e de bom senso que estabelecemos. Yudi Rafael: Houve, ao mesmo tempo, um processo contínuo de negociação da nossa presença, e levou um tempo para se construir uma relação de confiança com a coordenação do Movimento. Digo isso no sentido de um entendimento mútuo sobre, de um lado, as práticas e os procedimentos de trabalho da Residência e dos residentes, que não corresponderam de imediato às expectativas da coordenação sobre o que poderia ser realizado por um projeto artístico neste espaço e, de outro, a organização e a participação nas atividades gerais do Movimento no edifício, em outras ocupações e nas manifestações de rua, às quais fomos nos familiarizando. Ícaro Lira: O Movimento é uma coisa, os moradores são outra, a Residência é outra, mas rola essa confusão geral, de achar que é

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yudi rafael

Ícaro Lira: Penso que certas ações na Residência configuram uma mistura com outros trabalhos. Algumas atuações foram do Museu do estrangeiro, como o Diálogos sobre arte, imigração e trabalho, a relação com o Grist, com o Maestro, e as entrevistas que eu fiz com ele. Seriam como um braço do Museu do estrangeiro, que não é fictício, é um museu que existe mas que não tem um lugar e um acervo, é um museu para discussões e debates.


tudo a mesma coisa. Aos poucos essas questões foram ficando mais claras até pra gente mesmo, e o Movimento foi percebendo que nossa atuação não seria nem contemplativa, do artista com uma musa de inspiração, que vai lá e produz um objeto, nem uma atuação paternalista, de ajuda. Aos poucos foi-se entendendo que lugar é esse, e eu não tenho certeza se esse lugar chegou a ser entendido por todos. Algumas pessoas acredito que entenderam, e por isso elas se aproximaram, como o Isam e o Louides. Estive lá recentemente e uma pessoa do escritório me perguntou se eu não fazia nada, se eu não trabalhava. Respondi que estava trabalhando ali há seis meses, e ela disse que não viu nada. E aí eu comecei a listar algumas coisas, inclusive que ela tinha participado, como as aulas de inglês e a clínica, e ela não sabia que isso eram coisas que a gente estava fazendo, mesmo estando ali no escritório todos os dias. Claro que quando ela falou isso, me chateou, mas logo percebi que de certa forma era interessante. No jantar que a Carmem Silva fez para a campanha do Manoel Del Rio, ela listou para os presentes as atividades da Residência, inclusive coisas que acabaram não acontecendo, como a oficina de poesia do Gian Spina. Mas as atividades não foram listadas como ações da Residência, e sim como se a Residência fosse uma delas. Então esse desentendimento existe, tanto interna como externamente – acharem que o Paço comunidade era uma coisa da Residência, ou que minha atuação era a do Jaime [Lauriano] e do [Raphael] Escobar e vice-e-versa. Também teve um desentendimento sobre o lugar do Alex nesse jogo, ou se eu era curador, de pensarem que meu trabalho não é um trabalho de artista. Essa nebulosidade, que eu acho que é inerente ao trabalho, é interessante, mesmo que seja talvez contra-produtiva ou que deponha contra, de alguma forma. Acho interessante muitas pessoas não entenderem o que o Alex faz, acharem que eu sou curador, que aquilo não é um trabalho de artista ou, como já me falaram mais de uma vez, que é um trabalho social. Mesmo questionando tudo isso, é produtivo criar esse tipo de lugar de indefinição.

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r e s i d ê n c i a o c u pa ç ã o c a m b r i d g e

março-agosto / 2016 projeto editorial  ícaro lira, júlia ayerbe e laura daviña edição  júlia ayerbe projeto gráfico  laura daviña artista  ícaro lira colaboradores cineclube (beto brant, camilla márdila, juan segarra, ícaro vilaça​), clínica de psicanálise (alessandra sapoznik; luiza sigulem; miriam chnaiderman; paula janovitch; pedro [peu] robles e soraia bento), dulcinéia catadora (lucia rosa, maria aparecida dias da costa, andréia emboava, eminéia silva santos), edições aurora (júlia ayerbe e laura daviña), fabrica de estampas (delfina estrada e victoria volpini) filme frente (isadora brant e fernanda taddei), marta ramos-yzquierdo, o mal educado, vilma balente curadores  alex flynn, juliana caffé, yudi Rafael moradores  canar isam, ana carolina, kauan, leonardo e amigos que participaram das oficinas da dulcineia catadora e fábrica de estampas, isam ahmad issa mstc carmen silva capas  pintadas pelas crianças da ocupação em oficinas da dulcinéia catadora impressão e acabamento  parquinhográfico (edições aurora / publication studio sp) agradecimentos  akon patrick, alessandra sapoznik, alex flynn, alexandra pechman, alexandre loyola, andre de sampaio penteado, anna muylaert, antonio pradel, beatriz lemos, beto brant, bruno gari baldi, camila molina, camilla márdila, cannar isam, carlos monroy, carmen silva ferreira, carolina caffé, célia ribeiro, claudia rodriguez ponga, claudio bueno, daniel lima, daniela bousso, danilo martinelli, delfina estrada, delfina estrada, edgar calel, elena lespes muñoz, fabio ando filho, felipe ramirez, fernanda taddei, gabriela serfaty, gian spina, guido moreira, ícaro vilaça, isadora brant, isam ahmad issa, ivo mesquita, jake falchi, joselia lopes da silva, josep juan segarra, júlia ayerbe, júlian fuks, juliana caffé, karlla girotto, keti angelova, larissa souto, laura daviña, leni ferreira lemes, leonardo araújo, ligia nobre, lila botter, lino divas, louides charles, lucia rosa, luciana pereja norbiato, luisa puterman, luiz kohara, luiza abrantes, luiza sigulem, marcelo delamanha, marcio harum, maría agustina comas, marta ramosyzquierdo, mildo dos santos, miriam chnaiderman, nice leonice, noara quintana, paolo colosso, paula janovitch, peter pál pelbart, peu robles, preta ferreira, priscilla arantes, rafael marat, raphael daibert, raphaela melsohn, raquel rolnik, ronald felisberto, rose satiko, roseana rosa, sandro caje, tresor mutaba, sebastião oliveira neto, shambuyi wetu, silvia zelaya, silvia zelaya, solange farkas, soraia bento, sylvia monasterios, tainá azeredo, tati frança, todd lanier lester, tresor muteba, val lima, victoria volpini, vilma balint, virginia de medeiros, yannick delass, yudi rafael.

filme frente youtu.be/-DzDAaTTT40 encontros públicos youtu.be/lK6bBE76DYg oficina dulcinéia catadora youtu.be/h4Ky5tSMmYQ


ocupação hotel cambridge av. nove de julho, 216 centro, são paulo - sp cargocollective.com/rescambridge

apoio


Edições Aurora / Publication Studio SP edicoesaurora.com

este livro foi composto em Akzidenz-Grotesk e impresso em risografia sobre papel offset 75g/m2 no Parquinho Gráfico em agosto de 2017


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