ANO 01 | NÚMERO 01 | MACEIÓ/AL | 2014
PLURAL
Prostituição A vida de mulheres travestis que tiram da noite o seu sustento, entre preconceito e falta de segurança 14
IGREJA INCLUSIVA Fiel desmistifica a ideia de que homossexualidade não combina com religião 8
TABU Transexualidade: transtorno ou condição? Entenda o que é e como tratar o assunto 10
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Sobre ser diferente por Igor Gouveia
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erdão, mas eu sou diferente. Isso pode parecer pouco, porém é decisivo na luta dos que são considerados diferentes. Porque sendo homem, mesmo que de um tipo diferente, muito provavelmente, em mais de uma ocasião de minha vida, expus meu machismo e desconhecimento acerca da vida de quem sofre diariamente na pele o preconceito por ser diferente. Além disso, de certo, agi de acordo com isso. Mas sou alguém que se esforça pela conversão. Por ser mais tolerante. Menos machista. Eu não sou travesti ou transexual, mas faço parte de um grupo estereotipado e criminalizado por toda a sociedade, e dizer isso significa que não tenho a menor ideia do que seja ser normal. Não posso saber ao certo por que mulheres nascidas homens lutam pra mudar seu corpo e outras optam (ou são levadas) para uma vida de prostituição e reclusão. Não sei por que umas trabalham nas ruas e outras não conseguem trabalhar. Mas sei como é lidar com preconceitos e com exigências da sociedade na qual estamos inseridos. Não sei de muita coisa, pois ao ser diferente, deixo de enxergar a lógica pela ótica considerada normal. Não sei dessas coisas, mas muito provavelmente os leitores desta primeira edição da Revista Plural terão alguma ideia. Ainda assim, eu, um ser diferente, que ainda alimenta e é alimentado por hábitos conservadores, tenho a responsabilidade de apresentar essa revista, cujo tema trata daquilo que é considerado diferente. Ela é resultado do trabalho final da disciplina Português para Comunicação II do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas. Nós temos uma metodologia de escolha de tema e pauta muito simples: o diferente. E é ai que está a única interferência do professor Miguel: o pedido de escolha de um tema diferente como assunto para compor um trabalho final. Por isso que nós, que não somos nada iguais, resolvemos tratar das diferenças. Escolhemos esse tema por ele ser diferente e por acreditarmos que são as diferenças que movem o mundo. Estamos certos de que muita gente irá se chocar ao ver alguns textos e fotos que mostraremos aqui. Mas o que significaria ser Plural sendo igual? É esta a nossa revista: uma oportunidade para conhecermos e reconhecermos as várias formas de sermos plurais e diferentes. Espero que gostem e divirtam-se! 3
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Sumário
Definindo os desejos A desmistificação da sexualidade humana por Danielle Quartezani Igor Gouveia
Definindo os desejos 5 A desmisitificação da sexualidade humana Espelhos e cores Crônica
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O mundo de Natasha 7 Travesti conta sua história e fala da luta contra o preconceito “Gays são criação de Deus e não uma doença” 8 Membro de Igreja Inclusiva fala sobre homossexualidade e religião Tabu 10 Quando a desinformação vira um problema da sociedade Diferenças em quadros 12 Ensaio fotográfico Prostituição 14 Carma ou escolha? Casamento gay 18 União homoafetiva é reconhecida nacionalmente Dança e preconceito Entrevista
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Cinema contra o preconceito 20 Filme triunfa em tratar a orientação sexual dos jovens Parada 22 Conto
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Quem é plural Edição: Igor Gouveia Repórtagem: Daniel Borges, Danielle Quartezani, Igor Gouveia, João Paulo Farias, Tácila Clímaco e Tamires Wanessa Fotografia: Igor Gouveia Ilustração: Gabriel Borges Diagramação: Eduardo Leite
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m um mundo com mais de 7 bilhões de pessoas é de se espantar que temos apenas duas categorias para nos enquadrarmos quando o assunto é a sexualidade. Ser heterossexual ou homossexual? Eis a questão! Observando o tamanho e a grande diversidade que a população humana tem, percebeu-se, logo no século XX, que classificar todo esse contingente em apenas duas áreas era inviável. Já que são os desejos, pensamentos e hábitos diferentes definem a sexualidade humana, tornou-se errado querer definir essa questão de forma tão simples. Com esses questionamentos é que os termos “assexualidade” e “bissexualidade” surgiram, na tentativa de contemplar todas as pessoas que não sentem atração sexual por nenhum gênero ou a sentiam por indivíduos de ambos os sexos. Todavia, essa ampliação não diminuiu a discussão sobre ela. Com esse crescimento de indefinições definidas, debates para tratar sobre o limite de cada uma estão, cada vez mais, surgindo. Para o psicanalista Fernando Santana, a vontade de classificar e dar nome as coisas é inerente ao ser humano. “É muito entendível que nós precisamos nomear tudo. Todos os seres humanos possuem essa necessidade de se fixarem em algum lugar, em algum quadro”, explica. A vontade de definir grupos e dar nomenclaturas a tudo, ganha uma nova dimensão em um contexto onde as pessoas estão mais abertas as relações interpessoais no sexo. O estudante Ricardo Costa, de 23 anos, se relaciona com pessoas de ambos os sexos e diz ter prazer nisso. Porém, diferente do que as pessoas costumam achar, ele não se considera bissexual ou homossexual. Para
ele, se definir é sinônimo de se limitar já que, em seu entendimento, a sexualidade é algo muito amplo. “Acredito que se enquadrar em determinada categoria é interessante quando estamos nos descobrindo. É muito comum, quando estamos entrando nesse novo mundo, que apareçam dúvidas, mas depois essa questão de autoconhecimento vai ficando mais clara em nossa cabeça. É por isso que não me classifico. Sou livre, leve e solto”. A negação de uma nomenclatura para determinar a orientação sexual é uma explicação para a mudança comportamental das pessoas. No lugar de qualquer nomeação, os indivíduos alegam, cada vez mais, que se sentem confortáveis em simplesmente gostar das pessoas. A psicóloga Elisabeth Rocha acredita que não há categorias exatas que dê para enquadrar todo mundo. Para ela, cada pessoa teria uma maneira diferente para lidar com esse assunto e, justamente por isso, as categorias comuns são
muito reduzidas para abranger todas as diferenças e preferências da população em geral. De acordo com Elisabeth, o que realmente problematiza essa questão é a grande rigidez que existe dentro dessas categorias. “Percebemos que existe uma grande dificuldade das pessoas em lidar com a rigidez que há nas categorias de definição. Um homem que se diz gay, por exemplo, se vir a ficar com uma mulher, as pessoas continuarão o considerando gay. Isso é interessante, pois percebemos a resistência que a homossexualidade tem é enorme, ao passo que na categoria heterossexual isso é bem mais frágil.” A QUESTÃO DO GÊNERO A universitária Maria Cassia, de 22 anos, sempre gostou de relacionamentos com pessoas do mesmo sexo que o seu. Porém, com o passar do tempo, descobriu que há
uma maneira de sentir prazer com pessoas do sexo oposto. “Eu sempre preferi a feminilidade das mulheres. Porém, comecei a vislumbrar nos homens a maturidade que eles têm. Acho que isso é uma questão de experiência, autopermissão e, principalmente, autoconhecimento”. “Vamos nos permitir!” é a expressão que pessoas como Maria Cassia preferem ter em seu vocabulário. Para elas, a sexualidade não é estritamente a questão do corpo ou da carne. A inteligência e a personalidade são fatores que definem a hora de construir um novo relacionamento, seja ele uma amizade, namoro ou apenas uma relação casual. Por este motivo, que colocar o fator ‘gênero sexual’ como principal motivador seria uma maneira de se restringir a viver o que a vida lhes oferece. Para a estudante de psicologia Mayara Santana, de 18 anos, a principal diferença entre ficar com um homem e uma mulher é totalmente referente à personalidade. “Acredito que com o homem existe a questão da proteção, e geralmente os meninos são mais compreensivos. Mulher é mais neurótica. Dá trabalho, mas eu gosto”. O pensamento de Mayara é comum ao de várias outras pessoas. O ato de gostar mais de um sexo ou ampliar esse gosto é natural e, de acordo com a psicóloga Elisabeth, tende a mudar com o passar dos anos. “É por esse motivo que devemos discutir essa rigidez que há nas categorizações. Não temos como saber o que estaremos sentindo daqui uns anos. Cada corpo e mente tem a possibilidade de ir se modificando aos poucos. Além disso, nosso desejo é algo transitório”, explica. 5
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O mundo de Natasha
Espelhos e cores
Travesti conta sua história e fala da luta contra o preconceito por Daniel Borges
por Danielle Quartezani
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om uma dura história de sobrevivência ao preconceito, Natasha Kiss, vinte e nove anos, não se acanha em falar de todas as bordoadas que levou da vida, muito menos do trabalho como prostituta. Apesar de todas as passagens doloridas de sua vida, ela exibe um bom humor invejável. Um jeito de lidar com as adversidades próprio de quem sabe que se abater não é uma opção. Natural de Correntes, Agreste de Pernambuco, Natasha é um dos raros casos de travestis em Alagoas que tem conquistas a comemorar. Para muitos pode não significar grande coisa, mas para ela é a representação de um histórico de luta e muito sofrimento. Nascida como Severino Pe-
dro da Silva, ela conta que desde criança se sentia num corpo errado e logo cedo descobriu que queria se transformar. Tudo começou aos 13 anos, quando foi a um circo e assistiu à apresentação de uma travesti que imitava a cantora Madonna. Ficou fascinada com o que viu e procurou saber como fazer para que seus peitos também crescessem. Não poupou esforços para conseguir! Já como Natasha, passou a se prostituir nas ruas de Maceió. Não demorou muito para seguir para São Paulo, onde foi convidada por uma “bicha”, como ela própria fala, que considerava amiga, para se prostituir na Espanha. Iludida pelo sonho de enriquecimento, aceitou a proposta. Mas nada foi como esperado. Ela estava sendo vítima de tráfico inter-
nacional de pessoas. “Aceitei e viajei, mas chegando lá descobri que estava sendo vítima de um golpe. Eu tinha que pagar 45 mil euros a quadrilha para ser liberada. Trabalhei incansavelmente, mas consegui”, conta. Voltando para Maceió, sem alternativa de emprego, retornou para a vida de prostituição. Mas, paralelamente, começou um curso técnico de enfermagem. Hoje, Natasha é uma das poucas de seu grupo que tem um emprego formal do Estado. Ela também é uma das coordenadoras da Associação das travestis e transexuais de Alagoas (ASTTAL). Durante um descontraído bate-papo via internet, Natasha contou para gente um pouco de seu trabalho e a realidade de transexuais e travestis em Alagoas.
Como é seu trabalho?
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egundo a minha professora de física, espelho é uma superfície que reflete um raio luminoso em uma direção definida. Uma espécie de câmera fotográfica que faz tudo ficar preto e branco. Mas,sempre que olhei o espelho, eu enxerguei em mim cores. O azul do esmalte que aos oito anos eu não sabia por que não podia usar. A cor púrpura do salão de brinquedo da minha irmã, que sempre me atraíram mais do que as bolas de futebol que eu ganhava de aniversario. O preto do salto alto da minha mãe, o vermelho do batom que meu pai lavou da minha boca quando eu tinha 11 anos. A
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ais de Alagoas no Estado?
Trabalho com pessoas que fazem uso de drogas, e que convivem em situação de vulnerabilidade social, e sou técnico de enfermagem. verdade é que não é muito fácil de entender porque todos os seus extintos são considerados errados. Quando se tem 14 anos, está na puberdade, achar que vestidos e maquiagem fazem mais sentidos não é algo muito aceito na sociedade. Não que eu saísse contando a todo mundo que tinha vontade passar blush porque minhas bochechas não eram suficientes rosadas. Mas não falar, não quer dizer que está tudo bem. Foi isso o que minha mãe me disse quando meus cabelos estavam quase alcançando a minha cintura e eu me recusava a corta-los. E, entre um soluço e outro, eu contei que queria
o corpo da minha irmã, mas amava minha namorada. Ela me abraçou e disse que resolveria o problema. Então por um ano e sete meses eu pude passar rímel, terminar com a namorada, continuar com um longo rabo de cavalo até ela me expulsar de casa. Porque supostamente isso não era um distúrbio de personalidade causado pelo divorcio dos pais, que poderia ser tratado. Em suas palavras, eu era uma aberração mimada que só queria chamar atenção. E depois de vários outros meses em algum tipo de depressão absurda parei de me olhar no espelho e comecei a viver em preto e
branco. Uma solução plausível e desesperada exigida pelas regras. O cabelo foi cortado, a boca parou de ser pintada e arranjei uma nova namorada. Fechei os olhos para que as cores sumissem até perceber que eu não me encaixava onde queria me encontrar. Eu não conseguia ser o que o mundo queria que eu fosse, nem tão pouco conseguia me achar nas outras opções. Eu não sou homem, mulher, gay. Eu não sou nada. Me procurei nos lugares errados e ainda não sei onde estou. Quero dizer, o que você é quando gosta de meninas mas também quer ser uma delas? Ando tentando descobrir.
Nós fazemos reuniões quinzenais para discutimos políticas públicas para as meninas transexuais e travestis. Estamos com dificuldades financeiras, não temos apoio, o que atrapalha muito nosso trabalho. As pessoas não ajudam por causa do preconceito.
Você sofre descriminação no trabalho? No trabalho, por parte dos usuários, sou bem tratada. Não sofro nem um tipo de descriminação, mas às vezes encontro dificuldade com os funcionários.
Qual a principal dificuldade enfrentada pelos transexuais e travestis em Alagoas?
A nossa principal dificuldade em Alagoas está na parte do mercado de trabalho, por conta do nosso corpo feminino. Quando levamos um currículo para um local, o mesmo alega não ter preconceito, porém nunca somos chamadas. Alguns até riem da gente.
Existe algum projeto de apoio aos transexuais e travestis no Estado? Natasha Wonderfull é técnica em enfermagem e venceu a vida de prostituição
Algumas transexuais falam que é muito comum a rejeição das empresas em relação a elas. Isso realmente acontece? E qual são as profissões que mais empregam as trans? O único emprego das travestis em Alagoas é a Avenida da Paz,
infelizmente, no mundo da prostituição. Atualmente, aqui no município, só trabalham duas transexuais como técnicas de enfermagem, eu e Cris de Madri, a presidenta da associação. Atuamos no consultório na rua.
De que forma atua a Associação das travestis e transexu-
A associação existe há três anos e não temos nenhum projeto aprovado. Eu criei um projeto chamado Grupo Trans Show, que tem a proposta é tirar as meninas da rua e envolve-las no mercado da arte transformista. Esse ano foi realizado nosso primeiro evento no teatro do Sindicato dos Bancários. Nossa batalha é conseguir patrocínio da Secretaria da Cultura do Estado de Alagoas.
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“Gays são criação de Deus e não uma doença” Membro de Igreja Inclusiva fala sobre homossexualidade e religião por Tácila Clímaco
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pesar de não querer revelar sua imagem e nome, JR, como o chamaremos, é natural de Maceió, tem 40 anos, possui formação em Pedagogia pelo CESMAC, é funcionário público e atua profissionalmente no setor administrativo de uma escola municipal na cidade de União dos Palmares há 8 anos. Depois de anos de espera pela fundação da Igreja Inclusiva em Maceió, JR diz desfrutar da presença divina nos cultos e relata sobre família, preconceito, aceitação e “cura gay”. Leia a seguir: A não aceitação da homossexualidade de seus membros pela igreja Católica e outras denominações evangélicas convencionais são a principal razão para a formação das igrejas inclusivas. Como é ser membro de uma igreja predominantemente destinada ao público LGBTT? A iniciativa foi maravilhosa, a igreja inclusiva no Brasil já existia há alguns anos mas, aqui em Maceió ela não tem nem 3 anos. O público LGBTT estava esperando por essa igreja há muito tempo. Eu me sinto muito bem quando estou participando dos cultos, ser membro da Inclusiva é como ser membro de qualquer outra igreja. O que lhe motivou a procurar uma igreja inclusiva e a quanto tempo você a frequenta?
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Faço parte da igreja há p ou c o mais de um ano e o maior motivo de eu ter procurado a igreja foi saber que lá eu poderia ser eu mesmo, sem máscaras. Como as pessoas que fazem parte do seu círculo familiar, veem a sua participação em tal denominação? Boa parte da minha família é cristã e faz parte de igrejas evangélicas convencionais, por isso não aceitam a minha participação na Inclusiva, mas não me menosprezam (e também se menosprezassem, eu não ligaria). Eles têm suas convicções e eu as minhas. No passado, você fez parte de uma igreja evangélica convencional. Qual foi o determinante da sua saída? Sim, passei muitos anos da minha vida numa igreja convencional, tentando ser aquilo que os outros queriam que eu fosse. Tomei a decisão de sair porque senti a necessidade de não ter mais que esconder aquilo que eu era e que lá, eu não poderia ser.
Há diferenças na liturgia das igrejas convencionais para a igreja inclusiva? Incrivelmente, não. As práticas religiosas durante os cultos são bem semelhantes, o que muda é apenas o público. As pessoas lá dentro são levadas à presença de Deus, assim como nas igrejas evangélicas convencionais. Não vejo diferença alguma. Eles veem. A doutrina da igreja é baseada em quê? Na bíblia, nos baseamos na mesma bíblia utilizada nas outras
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igrejas não são inclusivas.
Como os membros das outras igrejas veem os fiéis da igreja inclusiva? Eles acham (pelo menos 95%) que nós somos aberrações, falsos profetas. Não acreditam que as pessoas mesmo sendo gays possam ser cristãs. Acreditam que a igreja inclusiva é uma afronta ao cristianismo e a Deus. Há preconceito social por você ser membro dessa igreja?
Claro que sim. Na verdade, eu acho que sempre haverá. Muitas pessoas vêm com aquele papinho formado de não preconceito, quando na verdade estão apenas fingindo. Na prática é que a teoria é revelada. A maioria acha um absurdo existirem igrejas “desse tipo”. A homofobia é velada dentro das igrejas convencionais e fora delas também. O preconceito sempre existirá. Você consegue enxergar Deus
na igreja inclusiva? Se eu não enxergasse, eu não participaria. Tenho certeza de que seu eu nasci gay foi por vontade e propósito divino. A igreja Inclusiva é um lugar de aceitação, onde eu posso me encontrar com Deus. Em tempos de discussão sobre a “cura gay”, projeto de lei que determina o fim da proibição pelo Conselho Federal de Psicologia de tratamentos que se propõem a reverter a homos-
sexualidade, qual o seu posicionamento acerca disso? Você acredita nessa possibilidade? Eu nem gosto de discutir sobre isso, acho uma palhaçada, algo que nem precisaria ser discutido. Tantas outras coisas importantes para se tornarem projeto de lei, que isso pra mim é até piada.
Como eu já falei anteriormente, nascer gay ou não, é vontade de Deus. Gays são criação de Deus, e não uma doença que precise de cura. 9
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Quando a desinformação vira um problema da sociedade por Igor Gouveia
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uando se fala em sexo, gênero, identidade de gênero, homossexuais, travestis, transexuais e outros tantos termos, uma nuvem nebulosa se instala e os conceitos acabam se misturando. Atualmente, com mundo em que vivemos, é preciso entender o que cada expressão significa para que classificações incômodas não sejam realizadas. Diferente do homossexualismo, o qual já foi excluído do rol de transtornos mentais em 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o transexualismo ainda hoje é considerado uma doença. De acordo com a Classificação Internacional de Doenças em sua 10ª versão (CID-10), insere-se como um tipo de Transtorno de Identidade de Gênero o transexualismo, o travestismo bivalente, os transtornos de identidade de gênero na infância, além de outros transtornos de identidade de gênero não especificados. Para a psicopedagoga e professora Ana Cássia Lima, a transexualidade é uma questão de identidade e não tem relação com nenhuma doença mental. “As pessoas costumam achar que o individuo
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transexual sofre de algum distúrbio. No entanto, sabemos que não é bem assim. A transexualidade não é doença e nem uma perversão sexual. Na verdade, ela funcionaria mais como uma condição de identidade”, explica. Estudos na área da psicologia social afirmam que ao contrário do que alguns pensam, o que determina a condição transexual é como as pessoas se identificam, e não um procedimento cirúrgico. Esse fato reflete na grande confusão que há entre o travestismo e a transexualidade. Conforme a sexóloga e professora Jaqueline Gomes, muitas pessoas que hoje se consideram tra-
vestis seriam, em teoria, transexuais. “É necessário entender que o transex sente que seu corpo não está adequado à forma como pensa e se sente, e, por este motivo, ele quer corrigir a sua forma corpórea para se adequar ao seu estado psíquico. No entanto, a cirurgia de transgenitalização não é o que define se o indivíduo é ou não transexual”, alerta. Entender e aceitar a transexualidade para muitas famílias ainda é difícil. Para a cabelereira e transexual Camilla Karla, o desconhecimento, a religiosidade, a moralidade e outros motivos acabam levando as pessoas a não visualizarem nessas situações um momento de união, acolhimento e proteção. “No meu caso, por sorte, minha família me apoiou e entendeu a minha condição. Sei que sou uma exceção. Infelizmente, ainda há uma pressão social muito grande, mas o apoio deles foi essencial para que eu não acabasse sendo mais rejeitada pela sociedade”, comenta. No entanto, raros são os casos como o de Camilla, que encontraram em sua família um local seguro e cheio de proteção. Soraia Mikaele Santos é um exemplo disso. Nascida em Arapiraca, interior de Alagoas, a transexual sofreu muito na mão da intolerância familiar. “Perdi as contas de quantas vezes fui espancada dentro de casa por ser diferente. No dia em que decidi contar aos meus familiares que não me sentia confortável com o meu corpo, o meu pai me deu uma surra tão forte que chegou a sangrar”, relembra. “Tenho certeza que não teria sofrido tanto
se eu tivesse o acolhimento deles”. A confusão que existe entre os dois termos ainda está presente em toda a sociedade. Entende-se que são travestis as pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres. Segundo o psiquiatra Humberto Rosa, travestis são aqueles indivíduos que desejam assumir um ‘outro lado’. “Alguns se travestem para excitação sexual e pela vontade de pertencer a outro gênero. Mas, os indivíduos que são travestis, tanto as travestis homens quanto os travestis mulheres, têm uma identidade de gênero dupla, porque é um gênero masculino e um feminino mesclados dentro da mesma pessoa”, explica. Para o doutor em sociologia Esmeraldo Silva, a denominação travesti é estigmatizada e precisa ser mais bem entendida. “Infelizmente, a nossa sociedade tem estigmatizado fortemente as travestis, que sofrem diariamente com a dificuldade de serem empregadas, mesmo que tenham qualificação. Em sua maioria, elas acabam sendo forçadas a trabalharem como profissionais do sexo”, relata. De acordo com dados do Centro de Luta Pela Livre Orientação Sexual (CELLOS), quase 98% das travestis já sofreram algum tipo de preconceito no Brasil. A presidenta do órgão, Anyky Lima, que enfrentou a família na adolescência por ser diferente, salienta que o preconceito começa dentro de casa. “Crescemos acreditando que há cidadãos de primeira e segunda classe, e que os transgêneros não devem ser tratados como humanos. Mas, por trás de todos os preconceitos, existem pessoas com histórias e sonhos. A sociedade não vê a travesti e o transexual como ser humano. Mas sabe o que mais choca? Saber que aprendemos tudo isso dentro de casa”.
PLURAL PARA ENTENDER MELHOR Gênero (expressão de) Diz respeito aos maneirismos, forma de vestir, forma de apresentação, aspeto físico, gostos e atitudes de uma pessoa. Geralmente é referido que uma pessoa tem uma expressão de gênero diferente da maioria quando quebra aquelas que são as expectativas ou regras de comportamento e aparência, num dado tempo e cultura, a partir do seu sexo biológico. Gênero (identidade de) A experiência emocional de uma pessoa enquanto feminina, masculina ou andrógina definida pela cultura de origem. Transgênero É alguém que não corresponde às categorias tradicionais dos gêneros. No quadro português, são todas as pessoas que não se comportam conforme se esperaria, de acordo com as convenções sociais, em função do seu aparelho reprodutor. Transexual Termo médico criado para referir as pessoas que desejam que o seu sexo biológico corresponda à sua identidade de gênero, mudando assim o seu corpo através de hormonas e/ou cirurgias. Note-se que nem todos os transexuais podem ou desejam fazer cirurgia nos genitais. Travesti Pessoa que se veste com roupas do sexo oposto por prazer ou diversão. Um travesti não é necessariamente um homossexual. Andrógino/a Pessoa que apresenta uma combinação de traços físicos quer masculinos, quer femininos ou uma aparência que não permite identificar claramente qual é o seu sexo biológico. Crossdresser Pessoas que, regular ou ocasionalmente, usam roupas que socialmente são vistas como sendo usadas por pessoas do sexo oposto. Geralmente estas pessoas sentem-se bem com o seu sexo biológico e não querem mudá-lo. Drag Diz respeito à adaptação de roupas e de papéis que tradicionalmente estão relacionados com um sexo diferente do seu. O objetivo é o jogo, o entretenimento ou o erotismo. Os homens que adotam elementos convencionais da mulher denominam-se Drag Queens e as mulheres que adotam elementos convencionais do homem denominam-se Drag Kings. Esta palavra não deve ser confundida com a palavra crossdresser.
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DIFERENÇAS EM QUADROS
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PROSTITUIÇÃO carma ou escolha? por Igor Gouveia
Nove e meia da noite de sexta-feira. Olhos delineados, batom vermelho, saia justa, mostrando as coxas grossas, salto alto, blusa decotada, acentuando o volume dos seios. Sem esquecer, é claro, da tradicional bolsinha girando nas esquinas mais movimentadas da orla de Pajuçara, bairro turístico de Maceió. É esse um dos pontos que Karla Rodrigues, cabeleireira durante o dia e profissional do sexo nas noites maceioenses, disputa com outras travestis os clientes da região. Exercendo uma profissão considerada tabu pela sociedade, a prostituta de 23 anos revela que entrou nessa vida porque quis. Mas será mesmo que a jovem, nascida com o nome de Marcelo Rodrigues, resolveu entrar nessa vida por escolha própria?
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os últimos anos, a sociedade brasileira tem experimentado uma convivência cada vez mais cotidiana com as travestis. Elas têm aparecido como personagens nas telenovelas, como atores políticos importantes no cenário dos direitos humanos e da saúde, como objeto de estudo de várias disciplinas acadêmicas, como cidadãs que convivem em nossos bairros e comunidades, e até mesmo como candidatas a cargos eletivos em diversos municípios do país. No entanto, ainda existe uma problemática muito grande quando a questão é o mercado de trabalho. Segundo uma das coordenadoras da Associação das Travestis e Transexuais de Alagoas (ASTTL), Natasha Wonderfull, muitas jovens entram no ramo da prostituição na tentativa de garantir a independência financeira, através do mito do dinheiro fácil, e, consequentemente, fugir das regras impostas no âmbito familiar. No entanto, ao se depararem com a vida noturna, muitas acabam se decepcionando com a triste realidade. “As meninas
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acabam indo mesmo parar na prostituição. Infelizmente, são poucas as que conseguem sobreviver de outra forma. Há uma luta muito grande, mas é difícil reverter esse quadro”, lamenta. De domingo a domingo, Karla vai para as esquinas da cidade atrás de sua renda. Filha de agricultores, a jovem viu que cultivar o fumo, planta comum do agreste alagoano, não era o futuro que ela queria ter. Aos 16 anos começou a colocar pra fora tudo aquilo que sentia desde pequena: a necessidade de se auto afirmar como uma pessoa diferente. Nascida em uma família pobre, a travesti sofreu todos os tipos de preconceitos existentes e, com ajuda de alguns conhecidos, viu na prostituição a forma mais rápida de se tornar independente. “Eu comecei a me transformar com 16 anos. Foi muito difícil, pois no interior ninguém está preparado para isso. Sabe como é, né? A cidade
é pequena e todo mundo conhece todo mundo. Mas acho que o choque não foi tão grande pelo fato da mudança ter sido gradual. Não foi de uma hora pra outra. Nem eu mesmo sabia o que era ser travesti na época”. A rotina de Karla não é fácil. Todos os dias a jovem precisa acordar no meio da manhã para trabalhar como cabelereira num salão perto de sua casa. Ao contrário do que as pessoas costumam achar, a prostituição não é luxo. Para a travesti, o mercado do sexo funciona como um complemento de sua renda mensal. De acordo com Karla, o programa custa, em média, R$ 40,00 a R$ 50,00 a depender do serviço que será prestado. “A vida de prostituta não é fácil. Ainda mais sendo travesti. As meninas têm um preço tabelado, por isso que todo mundo sai ganhando no final. Mas se me oferecerem mais, vou sem pestanejar. Em
“Queria
ficar como uma mulher. Precisava disso
”
dias bons, é comum chegar em casa com o suficiente para fazer a feira do mês”, relata. De acordo com estudos e pesquisas desenvolvidas por algumas universidades brasileiras, a realidade é muito mais impactante do que se pensa. O preconceito contra as travestis começa nos ambientes mais importantes para as pessoas: no próprio lar e na escola. São nesses locais que elas sentem pela primeira vez o estigma e a descriminação que, em geral, as acompanham para o resto da vida. Para o psicólogo Gilmaro Nogueira, esse processo de sofrimento e exclusão que as travestis sofrem é o que acarreta na saída de casa e no precoce contato com a prostituição. Além disso, ele acredita que esse carma acaba as levando a abandonar a vida acadêmica. “De modo geral, muitas travestis são postas para fora de casa pelos seus próprios familiares, por volta dos 13 ou 14 anos. A baixa escolaridade deste segmento é enorme por vários motivos. Há uma pressão muito forte nos indivíduos que fogem dos padrões. É extre-
mamente complicado manter alguém dentro de um local em que só há preconceito e ofensas”, explica. Karla relata que largou os estudos no primeiro ano do ensino médio por não aguentar mais as brincadeiras dos amigos e de funcionários da própria escola. Para ela, o ambiente escolar era sinônimo de tristeza, pois, muitas vezes, o sentimento de rejeição chegava a machuca-la mais do que os maus-tratos cotidianos que sofria dentro de casa. “Eu ia pra escola e voltava muito triste. Sempre foi horrível. Teve um dia que me trancaram no banheiro masculino e começaram a falar um monte de palavras ruins. Eu ficava arrasada. Foi uma época muito complicada para mim. Até penso em voltar a estudar pra ver se saio dessa vida, mas tenho medo de passar novamente pelo que passei”, conta. MODIFICANDO O CORPO Para ter acesso ao mercado do sexo, Karla precisou modificar todo o seu corpo. O processo não foi demorado. Segundo ela, em poucos meses
seu cabelo já estava grande e seu corpo já tomava forma devido aos hormônios que ingeria escondida. Em pouco tempo os traços masculinos foram desaparecendo e os femininos surgiam. “Queria ficar como uma mulher. Precisava disso”, categoriza. Para ela, a sua busca era pela feminilizacão do seu corpo e a afirmação de sua identidade, e não necessariamente para ser prostituta. Todavia, confessa que era necessário se transformar para conseguir clientes. “Fiz aplicação de silicone líquido em uma clinica daqui de Maceió. Foi ilegal, claro. Lembro que na época o processo foi muito dolorido e alguns procedimentos foram caros e perigosos de serem realizados, mas entendo que é o
preço que se paga pela beleza”. O pesquisador e sociólogo Bruno Souza diz que a violência contra as travestis prostitutas é algo alarmante e que se faz necessário pensar em políticas publicas voltadas para esse grupo. “Há uma marginalização muito grande dessa parcela da sociedade. Atu a l m e n te vemos que as políticas voltadas para as travestis são quase inexistentes. Se vai para rua e é uma travesti, é quase certeza que essa pessoa vai acabar caindo na marginalidade. E outra, muito provavelmente, a única coisa que vai encontrar no mercado de trabalho é a prostituição ou, raramente, em algum salão de beleza”, analisa. Apesar da triste reali-
“A verdade é que
tenho medo do dia. Prefiro a noite, que é o momento em que tenho coragem de mostrar para o mundo o que eu gosto de ser: uma travesti livre e forte
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dade e dos perigos que existem nas noites da capital mais violenta do país, Karla diz que não vê outra opção em seu futuro. A rejeição social que impacta o seu modo viver é o agente que a faz sobreviver na escuridão. A travesti, mesmo não se envergonhado do que é, relata que tem medo de sair de casa durante o dia para não sofrer agressões maiores. “A verdade é que tenho medo do dia. Prefiro a noite, que é o momento em que tenho coragem de mostrar para o mundo o que eu gosto de ser: uma travesti livre e forte”. Mesmo com todos os problemas encontrados nas ruas (a violência, as drogas, os clientes loucos e a bandidagem) a principal queixa que Karla tem é com a forma com que as famílias das travestis as tratam. “Sabe o que mais machuca a gente de verdade? A família. Eu digo isso porque, pelo menos pra mim, é assim. Sei que tem um monte de gente que nem liga pra isso, mas tenho certeza que lá no fundo a única coisa que realmente queremos de verdade é ouvir de quem a gente ama um ‘eu te aceito do jeito que você é...’”. 17
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Casamento gay
União homoafetiva é reconhecida nacionalmente por João Paulo Farias
Dança e preconceito por Tamires Wanessa
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m 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) conferiu aos casais homoafetivos o direito à união estável. A decisão foi publicada no julgamento da ADI 4277-DF e ADPF 132-RJ. Antes a união estável era um direito do homem e da mulher, artigo 1.723 do Código Civil. Após a decisão do STF, diversos casais começaram a requerer a conversão de suas uniões estáveis em casamento. Outra decisão, desta vez, feita pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do RESP 1.183.372 – RS reconheceu o direito a um casal homoafetivo a requerer habilitação direta para o casamento. Daí em diante começou os entraves dos Tribunais de Justiça dos 26 estados brasileiros, que autorizavam ou não o casamento gay. Alguns editaram procedimentos positivos, enquanto outros tratavam o assunto de forma desigual. Um exemplo positivo veio de Alagoas, que foi o primeiro estado do país, onde após a decisão do Tribunal de Justiça (TJ/AL), Provimento
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n°40 de 6 de dezembro de 2011, autoriza os cartórios a habilitarem o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Em 14 de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução de n° 175, autorizando de vez por toda, o casamento homoafetivo, seja por habilitação direta, ou por conversão de união estável, o que pôs um fim na guerra entre os Tribunais de Justiça do Brasil. UNIÃO DOS PALMARES TEM SEU 1° CASAL GAY O município de União dos Palmares, interior de Alagoas, tem pouco mais de 65 mil habitantes e ainda guarda resquícios de uma sociedade tradicional, marcada pelo coronelismo e exploração canavieira, marcas herdadas dos colonizadores do local. Mas um fato considerado inusitado pela maioria da população movimentou a cidade na manhã ensolarada de quarta-feira. No auditório lotado da sétima Coordenadoria Regional de Ensino (CRE), era celebrado o
primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo de União dos Palmares e o terceiro do estado. A cerimônia foi presidida pela juíza Lorena Carla Sotto-Mayor, titular da segunda Vara de Justiça do município, que além do casamento homoafetivo, realizou outras doze uniões. Antes da cerimônia a juíza falou da alegria e da experiência nova de realizar a primeira união de pessoas do mesmo sexo. “É uma evolução da sociedade e dos direitos também. A sociedade acolheu a ideia de que existem pessoas com orientação sexual diferenciada e o Judiciário depois acolheu, sufragando e sustentando a união de pessoas do mesmo sexo”, destacou a magistrada. Os noivos, Cristiano Costa Amorim, 43, e Josenildo Soares da Costa, 33, conhecido como Babalu, mostraram que é possível ser feliz e tiveram a coragem de provar o seu amor em público perante a Lei. A emoção do casal era grande durante toda a cerimônia. Cristiano Amorim, que trabalha como mecânico em
União dos Palmares, falou das dificuldades enfrentadas pelo casal que tem uma relação de 16 anos. “Hoje quebramos um tabu. O importante é o amor e a convivência. Compartilho com ele os meus problemas e ele compreende minha vida”, disse o noivo. Josenildo Rocha, que assumiu o papel de noiva, não conseguia controlar a alegria de estar realizando um sonho. Para ela, o amor, a dedicação e o respeito que há entre os dois, superam as dificuldades e barreiras. “Agradeço a toda a sociedade que nos apoiou e também aqueles que nos desprezaram”, afirma. Após o juramento perante a Lei e a certeza de estar casados, o beijo de Cristiano e Josenildo simbolizou um grande passo na luta contra o preconceito num município e estado ainda conservador. Na saída do local, onde foi realizado à cerimônia, o casal recebia elogios e também os olhares indiferentes de pessoas e casais héteros que se uniram no mesmo ambiente. À noite, uma pequena festa restrita a amigo, celebrou a vitória dos noivos.
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ailarino alagoano, estudante de Ciências Biológicas e uma figura para além do bom humor, Marcel Soares conta sua experiência na dança e a aceitação de sua orientação sexual pela família. Ele revela receios, motivações e ainda situações que permearam e construíram o Marcel de hoje. Aos 24 anos, ama tudo o que escolheu fazer e tem certeza que entre as suas escolhas, uma das melhores foi a de deixar o sofrimento e ser quem ele deseja, quer, sente e é. Para você alguém nasce homossexual ou escolhe ser homossexual? Não opto pela minha orientação sexual, o que não se enquadra em “opção sexual”. A orientação sexual é inata ninguém escolhe. Então posso dizer que sou Homossexual. O que me motivou a assumir minha orientação sexual foi simplesmente a vontade de viver bem comigo mesmo e com as pessoas, porque desde muito cedo eu soube que o que eu sou e o que eu queria me tornar não dizia respeito
a ninguém e se alguém tivesse algo contra é porque de fato não merecia meu amor ou a minha amizade. Talvez minha ÚNICA relutância em me assumir tenha sido minha mãe, porém eu sempre tive certeza que ela me ama e que ela ia se acostumar e nós um dia riríamos e compartilharíamos das minhas experiências, o que hoje é real. Somos verdadeiros melhores amigos, relato tudo sobre minha vida para ela e ela está sempre pronta a me ouvir e me aconselhar. Como as pessoas que fazem parte do seu círculo familiar veem a sua realidade homossexual? Na época que assumi, minha família era composta por mim, minha mãe e meu irmão e eles não gostaram muito da ideia. Porém, minha mãe se adequou à situação. Meu irmão demorou um pouco mais, e até hoje não aceita, porém também tenho a convicção de que ele me ama independente disso. Mesmo assim, ele não tem influência nenhuma na minha vida, então se ele aceita ou não, é problema
dele e não meu. O mesmo digo para os meus familiares, primos, tios e tias que não aceitaram. No passado, você fez parte de uma formação escolar básica católica. Você sempre foi vinculado a religiões? Crê que exista um ser maior? Fiz parte de uma instituição de ensino de base católica, porém não tive escolha, era uma criança. Sempre acreditei na existência de um Deus único. Já fui protestante, mas desisti justamente porque não aguentava mais viver sob as minhas próprias condenações, as quais, muitas vezes, eram condenações imposta por pessoas. Hoje tenho a convicção de que Deus me ama independente da minha orientação. Para mim o pecado é aquilo que a gente escolhe praticar, e ser homossexual não é escolha, até porque se fosse uma opção quem iria escolher sofrer com a discriminação? Hoje frequento uma igreja protestante inclusiva, porém não faço parte ativamente do grupo de membros, pois nas coisas espirituais, prefiro manter distância das pessoas e
mais proximidade de Deus. Qual é o principal motivo para a não aceitação e inclusão de homens na dança? Para mim a razão para a não aceitação de homens no meio artístico, principalmente na dança, se dá pela ignorância das pessoas, pelo preconceito mantido pelo fato de que homem não pode dominar o corpo em função de um movimento artístico porque muitas vezes este requerer uma sensibilidade maior. Há preconceito por você ser um bailarino? Não, porém muitas pessoas ligam a figura do bailarino homem ao homossexual. E a culpa é da nossa cultura atrasada. Preconceituosamente, nós pensamos que ballet é coisa para homossexuais, dando assim apenas espaço para que somente estes façam aulas de ballet ou se tornem bailarinos. Óbvio que existem muitas exceções no nosso país, vários grandes bailarinos são heterossexuais, mas poucos perto da quantidade homossexual. 19
CINEMA CONTRA O PRECONCEITO
PLURAL
por Daniel Borges
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em chamada no intervalo da novela, ator famoso no elenco ou combo promocional em alguma franquia de fast food. Mesmo assim, não é exagero dizer que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho foi uma das estreias mais aguardadas do primeiro semestre de 2014 entre os adolescentes brasileiros. Produção independente nacional, o primeiro longa-metragem do jovem cineasta paulista Daniel Ribeiro continua fazendo sucesso entre o público nos cinemas e festivais internacionais. Por trás de todo esse entusiasmo, existem diversos fatores para a sua boa receptividade: a qualidade do filme, o elenco afiado, a linguagem bastante simpática e a premiada estreia no Festival de Berlim. Mas a força que transformou esse projeto em algo muito maior atende por um nome: fãs. O filme retrata a vida de um adolescente cego, Leonardo (Ghilherme Lobo), cuja rotina ao lado de sua melhor amiga, Giovana (Tess Coelho), muda com a chegada de um novo aluno na Escola, Gabriel (Fábio Audi), despertando nele sentimentos até então desconhecidos e fazendo-o redescobrir sua maneira de ver o mundo. Os personagens não são desco-
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nhecidos. Em 2010 tornaram-se famosos no curta-metragem Eu Não Quero Voltar Sozinho, que já tem mais de 3,5 milhões de visualizações no Youtube. Com os mesmos atores, o longa amplia a história e dá uma atenção especial ao núcleo de socialização. O roteiro, também assinado por Daniel Ribeiro, apresenta os personagens em uma trama original, que investe em um universo que exclui toda negatividade e cria uma arma contra o preconceito. Também representa uma luz para problemas que os adolescentes não viam ser espelhados em programas da televisão brasileira. Anderson Perez, 19 anos, é um exemplo dos muitos jovens que viram na história uma maneira de entender sua realidade. “O curta me ajudou muito em um momento muito triste pra mim, chorei demais assistindo. Nessa época, eu precisava de coisas que me dissessem que não havia problema nenhum em ser gay. Antes disso, cheguei a passar um ano frequentando a Igreja para tentar ser outra pessoa”, disse. Para ele, o êxito de diretor é tratar o tema sem colocar o problema dos personagens em suas orientações sexuais. “Fui ver aquela versão nova de Confissões de Adolescente no cinema. E uma das meninas tem uma namorada que nunca aparece
no filme. Não pode ser assim. A diferença pro filme do Daniel é essa”, completa. “Os personagens gays estão na televisão há muito tempo. Começaram a surgir desde os anos 90, de pouquinho em pouquinho, e hoje em dia dificilmente uma novela não tem um personagem gay. Então eu acho que isso gerou uma mudança de pensamento. Antes, eu acho que as pessoas viam um homossexual como alguém que estava muito distante do universo delas. E aí, de repente, as novelas começaram a retratar essa realidade e encorajarem a sociedade a ter menos medo de se declarar quem é e assumir suas relações. Isso criou uma visibilidade maior. O audiovisual ajudou muito a mostrar que é normal e as pessoas estão mais livres pra não ficarem se escondendo, e os outros a não terem esse tipo de preconceito.”, destaca o diretor. A questão do bullying na sala de aula pontua a história em vários momentos. Há um grupo de garotos que, com frequência, faz piadas com a deficiência do protagonista e sua proximidade com Gabriel. Matheus Arantes, que pertence ao núcleo dos figurantes do longa, sentiu na pele como funciona a dinâmica do ambiente escolar quando nem mesmo os
professores são preparados para lidar com a questão. “Quando eu era representante de classe, ouvi de uma professora que ninguém ali precisava tratar do tema homofobia, porque eles sabiam que naquela escola não tinha nenhum ‘viadinho’. Esses colégios funcionam mais ou menos assim: ‘gays, a gente sabe que eles existem, mas quando aparecerem por aqui a gente vê como faz’. Todo o discurso para não tratar do assunto é sempre igual, justificam com frase como: ‘e se um pai vier bater na minha porta pedindo explicação?”, diz. Daniel ressalta que o amor livre de preconceitos está mais próximo das novas gerações e isso ajudou na aceitação do filme. “Acho que a geração que o filme retrata é muito mais aberta para essa questão do que a minha. Tenho 31 anos e na minha época o gay praticamente “não existia”, no sentido de ser pouco representado, não sentia muita abertura para se expressar. Hoje, os jovens da idade do Leo convivem muito mais com gays assumidos porque têm amigos que se abrem mais cedo, ou têm alguém na família que seja e em outros ambientes. O cinema e a televisão ajudaram nesse processo também”, disse.
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PLURALIZANDO dicas de filmes
por Igor Gouveia
Clube de Compras Dallas Baseado em fatos reais, o filme retrata a vida do eletricista Ron Woodroof, um homem comum que se viu numa batalha de vida ou morte com a classe médica e as companhias farmacêuticas. Em 1985, Ron foi pego de surpresa com um diagnóstico de HIV. Com medicamentos ainda restritos nos EUA e o país ainda dividido sobre como combater o vírus, Ron adquiriu tratamentos alternativos não-tóxicos de todo o mundo através de meios legais e ilegais.
Tomboy Laure é uma menina de 10 dez anos, mas ela sempre se sentiu um moleque. Ao mudar com a família para um outro bairro, ela então resolve se apresentar como “Mickäel” para os novos amiguinhos. Porém, apesar de parecer um menino como os outros, Mickäel é diferente o suficiente para despertar a paixão de Lisa, uma garota da turma. Enquanto isso, em meio às brincadeiras de verão, Laure arrisca-se a explorar os limites de sua nova identidade.
Transamerica Bree é uma bem ajustada transexual. Ela nasceu como Stanely, geneticamente um homem, mas ela dará o último passo para se tornar a mulher que sempre sonhou, até descobrir que é o pai de um garoto de 17 anos. Com medo de lhe contar a verdade, ela embarca em uma jornada que pode mudar suas vidas e trazer a tona a verdade que os une.
Má Educação Na década de 1980, Ignácio procura um antigo amigo de infância, Enrico. Ignácio virou ator e está lá não somente para pedir emprego ao velho conhecido que se tornou cineasta, mas também para que ele leia uma história de sua autoria: A Visita, baseada nos fatos acontecidos na infância dos dois.
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ônibus estava saindo da Praça Centenário, indo para a região central da cidade. No último ponto antes da chegada, uma senhora com saltos em detalhes de oncinha, esmalte encarnado nas unhas, saia preta e blusa vermelha chamava atenção. No rosto marcado pelo tempo, um sorriso de Miss Benguela causados pelos percalços da vida. Óculos gigantes cobriam-lhe os olhos cansados de mais uma noite de trabalho e suas longas madeixas ao vento conseguiam-lhe encontrar a visão. O ônibus parou. Muitos homens, alguns quarentões, começaram a rir . - Travesti! Travesti! Pega o traveco.
Outros poderiam pensar em uma senhora de maior altura usando algumas roupas não convencionais aquela hora da manhã. A curiosidade e a malícia despertou todos daquela chatice cotidiana. Se era travesti, se era nova ou velha, se era travesti nova ou velha. Não importava. - Mais respeito com a senhora! Gritou o cobrador. Mais respeito com a senhora travesti. O que mais impressionou, no entanto, não foi a missão quase impossível que era classifica-la segundo os moldes sociais já definidos. O que mais impressionou foi o equilíbrio e a destreza em plena manhã sobre um par de saltos 22. 23