L A B I R I N T O

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LABIRINTO BRINQUEDO BRINCADEIRA

O uso da cidade pela criança como crítica ao ideário moderno


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Dentro da pesquisa Cronologia do Pensamento Urbanístico (do Laboratório Urbano), realizamos em 2013 um encontro com a Profa Margareth da Silva Pereira, coordenadora do grupo carioca, que ofereceu um mini-curso intitulado “Sete pontos a favor (e contra) uma historiografia da arquitetura e do urbanismo”. Decidimos, então, incorporar a ideia de “nebulosas” de ideias, na construção dessas “nebulosas”, interconexoes em fluxo. Para dar início a estes debates, pontos de inflexão foram escolhidos entre os grandes momentos na história do urbanismo contemporâneo que marcaram e influenciaram o pensamento urbanístico e que portanto, de alguma forma, se relacionam e debatem com o maior número de ideias, sejam elas anteriores, posteriores, críticas ou armadoras, facilitando a visualização e a compreensão do pensamento urbanístico e sua evolução como um processo “nebuloso” e multifacetado, ao invés de linear. A pesquisa e as “nebulosas” do pensamento urbanístico podem ser visualizadas no site <www. cronologiadourbanismo.ufba.br>. 1

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LABIRINTO Na intenção de traçar uma leitura da construção do pensamento urbanístico num determinado recorte, através da contradição dos diversos discursos, este CADERNO segue no caminho de contar uma outra história do urbanismo. Esta outra história vem questionar - através da presença da criança na cidade, e também como meios e fins nos projetos de cidade - o discurso da ordem urbana, a partir da metáfora do LABIRINTO. Num plano maior, é preciso perceber e compreender, historicamente, a partir do tempo presente, os fluxos e circulação de ideias, planos e projetos e as próprias redes intelectuais do pensamento sobre a cidade. Trabalhando com o conceito de “nebulosas de ideias”1, esta pesquisa centra nos debates entre pontos de ruptura da forma de se pensar e trabalhar o meio urbano e os acontecimentos relacionados (por concordância ou discordância), de forma anacrônica. O racionalismo modernista contribuiu na transformação das nossas cidades em espaços fragmentados, de descontinuidade, desconforto e insegurança. Não se pretende, portanto, a partir desta crítica, cair na tendência historicista e evolucionista de recorrer ao passado para explicar ou resolver o presente. Mas sim, ao acreditar que presente, passado e futuro são tempos que se envolvem mutuamente, estão entrelaçados, e recorrer a essa visão historiográfica como uma maneira de contribuir para refazer uma área de domínio profissional, ajudando a construir novos conceitos, examinando os resultados do que na maioria das vezes nos é apresentado como verdade ou como única solução possível. A Cidade Funcional de Le Corbusier (1928-1946) será objeto de estudo e de análise crítica, por se tratar de um modelo abstrato e simplificador de produção de cidade, baseado na separação de funções. Modelo este, que foi amplamente difundido no Brasil, principalmente a partir do concurso para o Plano Piloto de Brasília (1956) e inauguração da nova capital do país (1960); e em Salvador, a partir de 1942, com a criação do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador (EPUCS), com intuito de

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LABIRINTO elaborar um plano diretor para a cidade. A pesquisa vai, ainda, buscar possibilidades nas favelas, enquanto outros espaços de aprendizado para os arquitetos urbanistas. É justamente a partir das fotografias do inglês Nigel Handerson, que mostram as crianças dos slums (favelas) de Londres brincando nas ruas, depois apropriadas pelo casal Alison e Peter Smithson na “grille corbusiana”, e apresentada durante o CIAM IX (1953), que ocorre essa inflexão. Daí a importância da criança nesta pesquisa, enquanto desordenadora desses espaços planejados para um uso específico. A criança aparece, nesta história, como uma potência de desestabilização dos postulados da Carta de Atenas. São estas conexões entre pontos de ruptura e inflexão na história da cidade e do urbanismo, os elementos que interessam, sempre tentando inserir a criança nesse processo. Uma tensão entre ordem e criação; entre brincar e urbanizar. A figura do LABIRINTO ajudará a tensionar e compreender esses aspectos. Enquanto forma, pode ser entendido como brinquedo, imagem que pode se desfazer a partir da presença do Minotauro (o ordenamento urbano). A ideia de que os espaços na cidade não são estanques, de que pequenos movimentos criativos estão sempre presentes na desestabilização da ordem imposta, está aqui representada pelo fio. O fio de Ariadne - que transforma o labirinto brinquedo em brincadeira - é a criança, que perpassa e costura esse trabalho. Labirintos são símbolos pagãos encontrados em todos os continentes: dos povos tidos como primitivos, à civilização grega. Segundo Valentine (2005), as formas circulares dessas primeiras representações remetem ao útero materno e ao interior da terra; outras, ao interior do próprio homem, uma imersão em si, um encontro com a sombra ou uma simulação da morte em vida. Na Europa medieval, este símbolo reaparece no cristianismo, gravado em paredes ou pisos de igrejas, representando o cami-

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LABIRINTO nho da salvação. Esta metáfora, o mundo como labirinto, sob o ponto de vista religioso, representava a queda e a perdição do espírito no plano da matéria e a dispersão do homem na perplexidade do mundo. Embora o labirinto fosse essencialmente um símbolo pagão, a Igreja não teve dificuldade em associá-lo à iconografia cristã: o seu caminho unidirecional ao centro seria uma ilustração perfeita do caminho único para a salvação. Na entrada da Catedral de Santa Lucca, na Itália, um labirinto na parede convidava os fiéis ao seu traçado com os dedos, a fim de aquietar a mente antes de adentrar no ambiente sagrado. As representações dos labirintos em pedra, construídos dentro dos princípios da geometria das catedrais, eram comuns no piso das grandes igrejas medievais da Europa. Muitas vezes eram indicados pelos padres aos fiéis, como pagamentos de penitências. Um dos mais famosos labirintos cristãos foi gravado em 1197 no piso da Catedral de Chartres, na França. Este labirinto era conhecido por quatro nomes diferentes: Le chemin de Jerusalem (o caminho de Jerusalém): caminhar pelo labirinto representava uma alternativa ao perigoso caminho à Terra Santa; Le chemin du paradis (o caminho do paraíso): ao percorrer o labirinto, o peregrino traçava o seu próprio caminho de vida, do nascimento (a entrada) à morte (o centro). A saída significava o purgatório e a ressurreição; La lieue (a ligação): em igrejas como Chartres e Reims os peregrinos tinham de perfazer seu trajeto de onze voltas de joelhos. O onze estava associado ao pecado por ser o número que excedia aos dez mandamentos sagrados, com saída de frente ao altar, para simbolizar essa ligação com o Divino. Le dedale (ou Daedalus): o famoso arquiteto que construiu o labirinto de Creta. O labirinto de Reims foi destruído em 1768

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LABIRINTO porque o clero irritou-se com as brincadeiras de crianças dentro dele, e isso lembrava antigos ritos pagãos, como os que eram oferecidos a Dédalo e Ariadne na Grécia. Segundo a mitologia grega, o Labirinto de Creta foi construído pelo arquiteto e artesão Dédalo, a pedido do Rei Minos, para prender o Minotauro, personagem mitológico com corpo humano e cabeça de touro. Dédalo foi chamado para construir um palácio labiríntico com a finalidade de manter o monstro aprisionado e impedir que suas vítimas fugissem. Para alimentar o Minotauro, Minos decidiu que todos os anos sete donzelas e sete rapazes de Atenas lhe seriam entregues: com isso vingava a morte de seu filho Andrógeo, morto pelos Atenienses. No momento do terceiro pagamento do tributo, Teseu, filho do rei de Atenas, ofereceu-se em sacrifício. Quando chegou a Creta, porém, conquistou o amor de uma das filhas de Minos, Ariadne, a quem prometeu casamento, se ela o ajudasse. Foi, assim, por artimanha dele, que ela deu ao herói um novelo (o ‘fio de Ariadne’). Teseu entrou no Labirinto, desenrolou o fio até encontrar o monstro, o matou e conseguiu depois fazer o caminho de volta, à medida que enrolava de novo o novelo. Como castigo e temendo que o arquiteto revelasse os segredos da construção do labirinto, o rei Minos prendeu Dédalo e seu filho Ícaro no labirinto. Dédalo, entretanto, teve a idéia de fugir pelo céu, fabricando asas artificiais com as penas dos pássaros que sobrevoavam o labirinto e que nele faziam seus ninhos, e coladas com cera das abelhas. O único perigo, segundo Dédalo alertara a seu filho, seria a cera derreter com o sol, caso o vôo fosse muito alto. Ícaro, encantado com a experiência, voou muito além e suas asas derreteram. Ícaro caiu no mar, para o desespero de Dédalo, que chorou a morte do filho por toda sua vida. Esse significado simbólico dos labirintos enquanto cenários de jogos do amor - numa clara alusão ao mito de Teseu e Ariadne - ressurgiu e adquiriu um sentido de prazer e excitação nos jar-

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LABIRINTO dins franceses do século XV e XVI. Projetados pelos arquitetos e construídos nos grandes palácios, o seu significado religioso - do caminho único que conduzia à purificação os peregrinos pecaminosos - se transformou numa invenção secular que oferecia entretenimento e diversão. A excitante confusão criada pelo desafio da escolha do caminho certo constituiu uma atraente brincadeira de chances que, naquele tempo, fascinava os cortesãos frívolos e hedonistas. Os labirintos constituíam então a moldura adequada para os jogos do amor, e simbolizava, também, o dualismo de sorte e azar, prazer e sofrimento, que se pode entender como parte da realização do amor. O labirinto, entendido também como percurso, relacionado à experiência do espaço urbano, faz relação direta com a favela, espaço urbano espontâneo, que difere profundamente do espaço urbano planificado dos arquitetos urbanistas. O labirintofavela é, nesta pesquisa, lugar da aprendizagem da verdadeira complexidade espacial, enquanto o espaço urbano formal - o espaço sem surpresas - é questionados aqui pela sua imposição, planejamento, projeto, particularmente, aqueles que são ortogonais e racionalistas, os cartesianos. Paola Berenstein Jacques afirma que “a arquitetura e, sobretudo, o urbanismo são antilabirínticos; existem para evitar o labirinto, a desordem e o caos espacial.” O planejamento urbano surge, portanto, para controlar o crescimento de labirintos nas cidades já existentes e para evitar a criação de outros labirintos urbanos, propondo, em seu lugar, novas cidades racionalmente planejadas, a partir de planos e projetos prévios. “Os arquitetos-urbanistas tradicionais lutam contra esse movimento preexistente,com a finalidade de estabelecer uma pretensa ordem formalista na cidade.” (JACQUES, 2001) A favela, diferente do espaço formal, não tem plano, não é construída a partir de um projeto. É constantemente criada e modificada, não é fixa, acabada. O labirinto se dá, justamente, no

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LABIRINTO espaço deixado entre as casas e os barracos, que forma as ruelas e os becos tão característicos. Dessa forma, não há um mapa fixado, só há mapas instantâneos. É do alto que se pode ver a situação geral num dado momento, como fizeram Dédalo e seu filho Ícaro, ao fugir voando do labirinto mitológico. O projeto corta a experiência labiríntica e todas as possibilidades e transformações possíveis, por ser o inverso da experiência, uma antecipação do mapa. Esta experiência está diretamente ligada ao espaço-movimento - o que segue o movimento dos corpos - no labirinto. “A possibilidade de um espaço-movimento (...), [está} ligado à existência de espaços que estão em movimento, em transformaçoes contínuas, em eternos deslocamentos, em suma, espaços em fuga. O espaço-movimento não seria mais ligado somente ao próprio espaço físico, mas, sobretudo, ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, o que é da ordem do vivido e, simultaneamente ao movimento do próprio espaço em transformação, o que é da ordem do vivo. Diante disso, só podemos considerar a favela um espaço-movimento.” (JACQUES, 2001)

O projeto convencional, num espaço-movimento, tende a acabar com as potencialidades imanentes do já existente, fixa formas por antecipação, inibe ações imprevistas e, sobretudo, impede uma participação dos habitantes da cidade. A própria estética das favelas está diretamente ligada aos sujeitos da ação, seus moradores e visitantes. Ao contrário dos habitantes passivos dos espaços quase estáticos, planejados, projetados e acabados. O labirinto é, ele mesmo, “o próprio percurso, o trajeto, a repetição diferente dos caminhos”. A criação de espaços inacabados, para serem explorados, percorridos, torna possíveis diversas experiências, de acordo com a disponibilidade criativa das pessoas que neles entram. Um outro urbanismo, que se propõe participante, deve pensar práticas labirínticas da cidade, afinal, quando a cidade se fixa completamente, “o mistério do labirinto vai pro-

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Le Corbusier (1936): Museu de Crescimento Ilimitado

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LABIRINTO gressivamente desaparecendo na monotonia dos traçados regulares (...); o labirinto sobrevive, mas a experiência de percorrê-lo deixa de ser da mesma ordem”(JACQUES,2001). Mas é preciso não confundir o labirinto enquanto movimento, experiência e complexidade, com a sua própria ideia formalista, caminho comum entre arquitetos e urbanistas. Uma construção deliberadamente feita para que a pessoa se perca seria apenas um contra-exemplo desse tipo de experiência labiríntica. Esse labirinto formal, construído a partir de um projeto anterior usa da reprodução igual de fragmentos para dar a sensação de se estar sempre no mesmo lugar, anulando qualquer possibilidade de experiência. Aqui, a uniformidade do espaço é que causa a desorientação. O próprio Le Corbusier tinha um projeto para

um museu de “crescimento ilimitado” (1936). A cidade (ou a arquitetura) sem fim, a repetição do mesmo volta para a mais perfeita ordem. Presentes na publicidade, em metáforas descritas em livros e jornais, nas artes, como brinquedos, gibis infantis, nos jogos ele-

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LABIRINTO trônicos e na literatura, de maneira alguma o labirinto deixou de exercer o seu antigo fascínio ao longo de quase 5 mil anos. Este CADERNO busca encontrar na metáfora do labirinto - enquanto forma e pensamento - as relações com o urbanismo moderno, na tentativa de ordenamento das cidades e sobretudo, da criança enquanto potência desviante, capaz de desestruturar esta forma de pensar e produzir cidade. Esta crítica se dá através das brincadeiras urbanas (sejam dos adultos ou crianças) e da transformação da cidade existente, pela criação de brinquedos a partir do que a cidade oferece enquanto (e da cidade como) instrumento.

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Utilizo neste trabalho o conceito de dispositivo de Foucault, que o define enquanto “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituiçoes, organizaçoes arquitetônicas, decisoes regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposiçoes filosóficas, morais, filantrópicas.” (FOUCAULT, 1995, p. 244) 2

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1 O CAMINHO DAS MULAS, O CAMINHO DOS HOMENS O ideal contido na máxima cartesiana do arquiteto e urbanista franco-suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le Corbusier, direcionou parte do pensamento urbanístico, ao longo de décadas, a um modelo de cidade e a um modo de fazer cidade. As mulas, que, segundo Le Corbusier, ziguezagueia e vagueia para evitar os grandes pedregulhos, se esquivar dos barrancos e buscar a sombra, “cabeça ôca e distraída” empenha-se o menos possível; já o homem que, regido pela razão, refreia seus sentimentos e instintos em proveito de um objetivo, é capaz de dominar os animais - dentre eles, a própria mula - por ser possuidor da inteligência e construir regras a partir da sua experiência, fruto do seu trabalho. Portanto, seria preciso “obedecer as regras da experiência” (LE CORBUSIER, 1925), construir uma linha de conduta dentro do urbanismo. O termo urbanizacíon (do latim urbs, cidade), foi utilizado pela primeira vez em 1867 por Ildelfonso Cerdá, arquiteto responsável pelo plano para Barcelona (1858), em sua Teoria General de L’urbanizacíon, para nomear uma nova disciplina científica que surgia de maneira efetiva naquele momento. Esta disciplina, que surge a partir da modernização das cidades européias no fim do século XIX, já nasce moderna e vem se desenvolver enquanto dispositivo2 de ordenamento das cidades, com a finalidade de eliminar a ideia de labirinto. Os profissionais urbanistas começam, portanto, a traçar mapas e planos reguladores, a fim de controlar o desenvolvimento orgânico e empírico, como ocorria nas cidades medievais e evitar o surgimento de novas cidades com tais feições, propondo, em seu lugar, cidades planejadas racionalmente, a partir de planos e projetos prévios.

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CerdĂĄ (1858): projeto para a expansĂŁo de Barcelona, com cerca de vinte e dois quarteiroes de profundidade, orlada pelo mar e cortada por duas avenidas diagonais.A cidade antiga aparece em preto.

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É preciso destacar, entretanto, de qual cidade se está falando. Primeiramente, não é correto afirmar que todas as primeiras vilas e cidades não possuíam planos, pelo contrário. O que aqui está colocado em discussão é a própria disciplina urbanismo, enquanto meio disciplinador dessas cidades. Um outro ponto a chamar a atenção, diz respeito ao momento histórico que estas cidades viviam - um momento de crise urbana sem precedentes. Transformações técnicas e socioeconômicas alcançaram as cidades européias a partir da segunda metade do século XVIII. A cidade finita, tal como chegou a existir ao longo dos quinhentos anos precedentes, foi totalmente transformada, no lapso de um século. O século XIX foi marcado por transformações culturais, territoriais e técnicas, e pelo súbito aumento da capacidade humana em exercer controle sobre a natureza. Sobretudo, foi acompanhado de uma acentuada queda da mortalidade, devido a melhores padrões nutritivos e a técnicas médicas aperfeiçoadas, provocando uma concentração urbana em todo o mundo em desenvolvimento.

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Imagens do documentário “Le siècle de Le Corbusier Arte documentaire” (2015): as ruas de Paris do início do séc. XIX

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LABIRINTO A acomodação de tão volátil crescimento levou à transformação dos velhos bairros em áreas miseráveis e à construção de moradias baratas e de cortiços. Naturalmente essas habitações congestionadas tinham condições inadequadas de luz e ventilação, carência de espaços abertos, instalações sanitárias inadequadas e despejos de lixos contíguos. Condições que ocasionavam, naturalmente, uma alta incidência de doenças - primeiro a tuberculose, depois, ainda mais alarmante para as autoridades, os surtos de cólera na Inglaterra e na Europa Continental, nas décadas de 1830 e 1840.

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Lewis Hine (1908): criança trabalhando em fábrica de algodão na Carolina

Esse ideal positivista foi esboçado e experimentado em diferentes projetos de cidades-modelo: a Cidade Industrial Ideal, de George Pullman (início da década de 1880); a CidadeJardim linear espanhola, de Arturo Soria y Mata (início da década de 1880); a Cidade-Jardim concêntrica inglesa - amplamente adotada -, de Ebenezer Howard (1898); e a Cidade Industrial de Tony Garnier (1899-1918). Nesta pesquisa, a Cidade Funcional de Le Corbusier (1928-1946) 3

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O final do século XVIII e o início do XIX presenciaram ainda mudanças radicais da técnica, dos métodos construtivos e da possibilidade dos profissionais urbanos - sanitaristas, engenheiros, urbanistas - interferirem no desenvolvimento destas cidades que, muito rapidamente, transitavam da cidade tradicional à metrópole em expansão permanente. Justificada a necessidade desse ordenamento do espaço urbano, fissuras começaram a surgir no modo de pensar as grandes cidades desse período3. Le Corbusier, um desses pensadores, propunha como resposta, a chamada Cidade Funcional, exaustivamente defendida em seus muitos escritos, apresentada enquanto modelo em 1922 - a Ville Radieuse4 - e discutida durante Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (do francês Congrès Internationaux d’Architecture Moderne ou simplesmente CIAM) - sobretudo no IV CIAM (A Cidade Funcional), em 1933.

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será objeto de estudo e de análise crítica, por se tratar de um modelo abstrato e simplificador, baseado na separação de funçoes (habitar, trabalhar, circular e recrear). Além do mais, este modelo foi amplamente difundido no Brasil, principalmente a partir do concurso para o Plano Piloto de Brasília (1956) e inauguração da nova capital do país (1960); e em Salvador, a partir de 1942, com a criação do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador (EPUCS), com intuito de elaborar um plano diretor para a cidade. 2 A Ville radieuse consiste numa proposta urbanística desenvolvida por Le Corbusier em 1922. Caracteriza-se por um projeto de cidade da máquina, zoneada em funçoes previamente estipuladas. Na urbanística deste projeto, a cidade é tratada como um fato abstrato, fruto de uma utopia que transformaria a sociedade de forma abrangente, a começar pela implantação de um novo desenho urbano à custa da supressão do tecido existente, pela reorganização funcional do território e pela introdução de um novo estilo de habitar a casa e a cidade. A Ville Radieuse de Le Corbusier é a proposta que melhor expressa o ideal urbanístico e estético da Cidade Funcional.

Le Corbusier (1925) recortes de jornais de Paris

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LABIRINTO No livro Urbanisme (1925), Le Corbusier dedica várias páginas aos recortes de jornais da época, na tentativa de confirmar suas hipóteses: o desaparecimento quase total dos cavalos de Paris; o carro não mais como uma prova manifesta de luxo, mas um instrumento de trabalho; números, estatísticas e comparações. “Em 1922, os diários ainda estavam mudos à respeito das questo~es do urbanismo; em 1923, o aparecimento intermitentes de artigos consagrados a tal questão era significativo; começava-se a avaliar que se tratava de uma questão vital. Em 1924, pode-se dizer que toda a imprensa noticiou, e quase diariamente; realmente o urbanismo fazia que falassem dele, pois Paris estava doente, muito doente.” (LE CORBUSIER, 1925)

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Recorte do jornal “Le Peuple” (data não especificada) Tradução: O CARRO NÃO É UM LUXO É UM INSTRUMENTO DE TRABALHO Já dissemos que há nos Estados Unidos um carro para cada 8 habitantes contra um para 100 na França. Entretanto, lá, nem todos são ricos, mas todos consideram o carro como um instrumento de trabalho. Nos Estados Unidos: 4.500.000 pertencem a agricultores 1.600.000 são caminho~es 900.000 pertencem a casas de comércio 150.000 pertencem a médicos 110.000 são taxis 90.000 são ônibus Os 7.350.000 carros, que são unicamente instrumentos de trabalho, representa a metade dos veículos. A outra metade serve ora para os negócios, ora para o passeio; na proporção de 60% para os negócios, para ir ao escritório ou à fábrica, e de 40% para passeio.

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LABIRINTO Ilustrados os problemas, concluía o arquiteto: “Eis um recorte de jornal que diz o que se torna o caminhão na vida urbana. Então? Então é preciso conceber ruas que levem em conta o caminhão.”

As cidades enquanto instrumentos ordenadores e de trabalho, não cumpriam, normalmente, essa função. Eram ineficazes nesse sentido. A desordem dominante era o principal agravante, “já não eram dignas da época, nem dos urbanistas ou dos seus habitantes”. Mas como encontrar na arquitetura uma solução eficaz a tal problema? A resposta, segundo Le Corbusier, já estava impressa no verso dos cadernos de classe das escolas primárias da França: a geometria.

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Le Corbusier (1925): “Isto está impresso no verso dos cadernos de classe das escolas primárias da França; é a geometria.

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Ela era a base de qualquer projeto e, segundo ele, “o meio que nos proporcionamos para perceber à nossa volta e para nos exprimir”. Era também o suporte material dos símbolos que significam a perfeição, o divino. “Ela nos traz as elevadas satisfações da matemática”. Portanto a máquina, objeto de fascínio do arquiteto, procederia da geometria. As artes e o pensamento modernos, caminhariam para além do fato acidental, a geometria os conduziria a uma ordem matemática. Desta forma, a Cidade Funcional, assim como as demais propostas de cidades-modelo modernas, se apresentava como representação da ordem: a casa, o trabalho, o lazer e a rua deveriam estar em ordem constante, uma vez que em desordem, elas se oporiam ao morador/habitante, assim como se opõe a natureza, constantemente controlada e combatida pelo homem moderno. A fim de dar fundo às suas respostas formais, o arquiteto vai buscar nas ruas o que, para ele, seriam os maiores problemas das cidades modernas: 39


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Exercício de desenho à mão livre (1899)

Reproduzido em “New Methods in Education: Art, Real Manual Training, Nature Study”, de James Liberty Tadd. Tadd enfatizou desenho à mão livre no quadro negro como forma de combinar o exercício físico e intelectual de uma forma que refletia a tendência natural das crianças de se expressar através do movimento.


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A RUA UMA PICARETADA. Poema de Edgar Poe? Não. Uma picaretada catastrófica nessa rua milenar que já não rima com nada. A rua é uma máquina de circular; é uma fábrica cujas ferramentas devem realizar a circulação. A rua moderna é um órgão novo. Urge criar tipos de ruas que sejam equipadas como é equipada uma fábrica. (LE CORBUSIER, 1925)

É a partir deste conceito de rua como justificativa para a construção do seu ideário que Le Corbusier direcionava o seu discurso positivista. Em seus projetos, ficava claro que o arquiteto planejava abolir a rua da cidade ou, como ele mesmo defendia, por serem ideias obsoletas, “não deveria existir nada parecido com uma rua; temos de criar alguma coisa para substituí-las.” O produção de um conceito de rua, então formulado, exigia soluções e proposições que, futuramente defenderiam a necessidade de áreas verdes, a criação ou instalação de áreas de lazer, a adesão aos conjuntos ou condomínios, de preferência fechados e dotados de áreas de lazer comunitários. As ruas, segundo esse imaginário seriam inseguras, inóspitas, pouco sadias, de moralidade, no mínimo, duvidosa e devem ser evitadas, pois nelas só encontraremos a dureza, os lados negativos e feios e os perigos da vida na nossa sociedade. Reduzida a rua desta forma, degradada - real ou na produção de um imaginário -, não restaria senão abandoná-la rapidamente. O preconceito contribui para o estabelecimento de respostas urbanísticas de tendência de empobrecer o significado e a expressividade da via pública. A rua passa a desempenhar a sua função de circulação, de atalho entre pontos no espaço. 43


O discurso comparativo das cidades modernas enquanto organismos vivos serviu de base para muitas reformas urbanas. Foi na Europa, no século XVIII, que começou a ser elaborada uma política pública baseada na higiene que, para Michel Foucault não se tratava de “uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposiço~es, fermentos; uma medicina das condiço~es de vida e do meio de existência. (...) A relação entre organismo e meio será feita simultaneamente na ordem das ciências naturais e da medicina, por intermédio da medicina urbana. (FOUCAULT, 1984. Apud. COSTA, 2012). Le Corbusier também faz referência ao termo em seus trabalhos: “Havia acabado este estudo [Urbanismo, 1925]. Meu sócio disse-me: “Por que não mostra, para fazer pensar, uma concha perfeita, o esquema do sistema cardíaco, um belo corte de um aquecimento central... O livro de história natural que comprei trouxe-me as configuraço~es, as demonstraço~es, os incentivos. Contestando essa forma de pensar, o arquiteto e matemático Christopher Alexander, publica em 1965 o artigo “A City is not a Tree”, onde critica o modo moderno de se pensar e produzir cidades ou partes delas, nas quais o sistema de semitrama, próprio das cidades por ele 5

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LABIRINTO A regra estava criada! Assim como crianças precisam de horário regular para dormir e se alimentar, as cidades, enquanto organismos5 vivos, precisavam da disciplina que a similaridade das formas e das suas respectivas funções oferecem, para que os ambientes atuem como guardiões de uma calma e de uma orientação sobre as quais o homem teria um controle precário. De uma forma simbólica, se buscava adquirir um comando sobre um futuro incomodamente desconhecido. Mas crianças comem chocolate antes do almoço ou, se perdem a vontade, não comem na hora determinada; brincam até tarde, mesmo sob a vigilância dos pais mais atentos. Da mesma forma, os materiais usados na arquitetura “guardam em si suficientes sinais de vida para se contraporem à geometria do carpinteiro. Podemos ver redemoinhos, rodopios e imperfeições. [...] Irregularidades permanecem.” (DE BOTTON, 2007, p 188) A tensão é permanentemente viva entre ordem e caos. Todo esse discurso da linha reta, do eficiente, planificado, cartesiano, dos padrões repetitivos perfeitos, do espetáculo das precisões, que se deu desde a tentativa de se criar um estilo internacional6 dentro da arquitetura moderna, até se chegar a um modelo de cidade a ser seguido à risca, descrito num manual - a Carta de Atenas7 - não residiram em paz, à margem de críticas. O discurso da linha reta ia de encontro à tração contrária e subversiva exercida por uma curva. E não me refiro à imagem formal da rua curva, como o próprio Le Corbusier observou em seus estudos. Contra à ordem, a curva seria uma subversão à esta geometria do ordenamento,

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Le Corbusier (1925) “Uma curva cuja razão não é ambígua: uma escada para carros.” chamadas de “naturais”, é substituído por um sistema extremamente hierarquizado e menos complexo, que ele define como “estrutura em árvore”. As cidade “artificias”, planejadas por esses projetistas modernos, tornam-se incapazes de desenvolver essa “pátina da vida” que as cidades naturais possuem. A origem do termo International Style (Estilo Internacional) se encontra no título de um livro publicado em 1932 por Henry-Hussel Hitchcock e Philip Johnson. No mesmo ano a Exposição Internacional de Arquitetura Moderna no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque contribuiu para a divulgação do movimento, tornando-o uma das tendências dominantes da arquitetura do século XX. Foi uma modalidade arquitetônica cubista/ funcionalista que nunca se tornou um estilo verdadeiramente universal, mas não é incomum usála ao referir-se ao movimento moderno como um todo (e viceversa). Como regra geral tendia à flexibilidade hipotética da planta e fachada livres, à técnica leve, aos materiais sintéticos modernos e às partes modulares padronizadas, de 6

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pois, como a criança “rueira” e traquina que “saiu da linha”, as ruas, enquanto máquinas de circular, sempre propiciam surpresas, num constante embate entre ordenamento e imprevisibilidade. É neste cenário caótico que se dá a criatividade da criança que usa a cidade como brinquedo ou como suporte para suas brincadeiras.

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modo a facilitar a fabricação e a construção. Carta de Atenas foi um dos mais importantes documentos do movimento moderno. Elaborada durante o IV CIAM, num cruzeiro entre Marselha e Atenas, em 1933 e divulgada quase oito anos após sua redação, é um texto dogmático e polêmico, formulando exigências e estabelecendo os critérios para organização e gestão das cidades em quatro funço~ es básicas: habitar, trabalhar, circular e recrear. Este tema será debatido no próximo capítulo desta pesquisa. 7

Mão de Le Corbusier sobre o Plan Voisin para Paris, 1925

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2 OS DONOS DA BOLA “Para que o leitor distante do mundo futebolístico, explico o sentido da expressão àqueles que são alheios às peladas de rua, às partidas de futebol da infância, disputadas em ruas sem asfalto ou calçamento, terrenos irregulares de terra batida. “Dono da bola” é aquele menino que chega ao campinho improvisado com o mundo debaixo do braço. O jogo, no final de tarde, não começa sem ela - a bola - nem sem ele - o dono da bola. As traves, de cada lado do campinho, são feitas de qualquer coisa: pau, pedra, tijolo. As linhas são traçadas por qualquer pé descalço ou por uma chinela de borracha. Mas a bola não se improvisa. Se o menino é o dono da bola, a bola é a dona do jogo. O dono, normalmente, tem como único talento a própria bola. Por ironia do destino - ou mesmo por sua inerente lógica - aquele que possui a matéria é desprovido de energia. O dono da bola só tem à bola, e mais nada. Não tem força, não tem velocidade, não tem ginga. Não fosse dono da bola, nem jogaria, ficaria no “time de fora”. Mas ele é o dono da bola, é o proprietário do meio de produção da alegria, então a ele é concedida pelo laborioso proletariado a permissão de jogar - mesmo que o menino não saiba jogar direito. Uma vez começado o jogo, os demais meninos devem controlar não apenas a bola - arisca em meio ao terreno não plano -, mas também o humor do menino que não sabe jogar. Há que se driblar as insatisfaço~es do dono da bola, que fica minutos sem recebê-la porque não sabe o que fazer dela

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LABIRINTO com os pés. Se o jogo é com goleiro, há que se convencer o dono da bola, com muita diplomacia, que ele deve ficar no gol. Se o jogo é de travinha, e não há goleiro, passa-se a bola para o seu dono de vez em quando, como quem paga um amargo imposto, inútil porque não se traduzirá em nenhuma obra social. Todo esse cuidado porque o dono da bola costuma ser um menino facilmente irritável que, se constantemente aborrecido, pode pegar o mundo, colocá-no novamente embaixo do braço e sair de cena, terminando o jogo antes do tempo, ocasionando um temido apocalipse. Não pense o leitor que o dono da bola é um tirano. Talvez até seja, mas é um tirano sofrido, que sabe da sua situação, de sua posição de inferioridade em relação aos jogadores de verdade, aqueles que fazem embaixadinha, dão banho de cuia, aplicam o drible da vaca e fazem os gols. No fundo, quando o jogo fica realmente bom, o dono da bola tem vontade de deixar o campo e assumir a função de gandula, ou até mesmo de sair simulando uma contusão, mas deixando todo mundo tranquilo: “Vocês ficam com a bola e deixam lá em casa quando terminar o jogo”. (LOUREIRO JR., 2011)

No campo do urbanismo, uma elite acadêmica e técnica, considerada detentora de um saber-fazer científico, naturaliza uma postura de se portar diante da cidade e, sobretudo, dos seus habitantes. Promovem, a partir de um conhecimento prévio e determinado, indicações superiores e iluminadas quanto aos melhores caminhos para a construção ou apropriação dos seus espaços sociais, muitas vezes já praticados. Por outro lado, a maioria da população que não tem tido outra alternativa, senão aceitar as imposições, acabou por criar mecanismos de defesa e superação: reverte os significados dos espaços que lhe são impostos, incorpora e cria, às vezes com muita dificuldade e desgaste, ordens próprias que ul53


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LABIRINTO trapassem as ordens simplistas e abstratas dos planejadores. O que escapa a essas regras de ordenamento, o faz através das brechas encontradas nos próprios dispositivos de controle. O urbanismo, como meio disciplinador, possui suas brechas: os sujeitos praticantes da cidade e, dentro do próprio campo, os arquitetos urbanistas que passam a contestar essa unidade na maneira de pensar/fazer cidade. A expressão “ir a campo”, ato comum aos profissionais e estudantes de arquitetura e urbanismo estão simbolizadas à metáfora do menino dono da bola - o conhecimento científico -, que “ chega ao campinho improvisado com o mundo debaixo do braço”. Entretanto, por mais que se insista nas ruas asfaltadas ou calçadas como símbolos de desenvolvimento, existirão sempre os terrenos irregulares de terra batida; um grupo de garotos desenhará o seu próprio campinho; farão traves com seus chinelos, pedaços de pau e restos de tijolos. O time do baba pode, um dia, pular o muro e invadir o campo oficial.

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Le Corbusier durante o CIAM IV (1933)

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LABIRINTO Projetar (do latim projecto, projectare - lançar para frente): lançar de si, arrojar, arremessar, estender, cobrir com, fazer incidir, fazer tenção de, planear. Geom. Topogr. Traçar a representação de um corpo num plano segundo certas regras geométricas, estender-se, delinear-se, prolongar-se, incidir. É o projeto que determina o fim, o momento de parar, a conclusão da obra. Quando não há projeto, a construção não tem uma forma final preestabelecida e, por isso, nunca termina. Os projetos e maquetes são geralmente concebidos numa perspectiva do teto. As projeções são representadas num “vôo de pássaro”, de cima para baixo, apontando para uma visão da ação do arquiteto urbanista como artífice da ordem. Dessa forma, o projeto constitui um ato divino, demiurgo (termo utilizado para designar a divindade organizadora do universo - ‘O Deus arquiteto do universo’) e de postura excludente e estetizante. Os mapas oferecem uma visão do alto, totalizante. De cima, o labirinto deixa de ser labirinto, perde o mistério e impede a surpresa, pois as saídas se tornam facilmente identificáveis. O labirinto passa de desordem à ordem. Não foi por acaso que Dédalo saiu do seu labirinto voando. A imagem de Le Corbusier apontando de cima para baixo para a maquete do Plan Voisin é emblemática para falar do demiurgo. Ela reflete o olhar hierárquico do arquiteto, a maneira vertical, manipuladora e totalizadora da abordar uma dada situação. A tábula rasa será a proposição moderna fundamental, uma condição básica para a implementação das mudanças por vir. Noção moderna que se refere ao poder de decisão sobre o que destruir e o que manter, bem como o que introduzir “de novo” sobre um dado território. A tábula rasa moderna implica numa desafiante condição de potência 59


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LABIRINTO criativa frente à história reiterando a atitude demiúrgica do arquiteto urbanista. “[...] Tabula rasa do latim, “folha em branco”. Tabula se refere a uma superfície de pedra para se escrever, Rasa, feminino de Rasus, significa apagado, i.e. “em branco.” Tabula rasa. Filos. No empirismo mais radical, estado de indeterminação completa, de vazio total, que caracteriza a mente antes de qualquer experiência.. [...] Tábua rasa. S.F. Superfície plana preparada para receber uma inscrição, porém onde nada ainda se gravou. Quadro ou tela antes de receber as tintas.” (FERREIRA, 1986).

No urbanismo, a noção de tábula rasa como um posicionamento que inclui ações, projetos, tomadas de decisões, de ruptura em relação às experiências ou concepções anteriores, envolve o desejo de abrir espaço para a criação e destruição através da ruptura no que diz respeito a uma ordem existente.

O TIME OFICIAL E A CONSTRUÇÃO DO CAMPINHO Dissipar o irracional e o meramente ornamentado. Purificar o corpo e curar a alma. A arquitetura moderna, e seu desejoso estilo cosmopolita e internacional, estava cheia de boas intenções. Ao anunciar um novo começo, negou a história e por vezes o próprio presente. E por algum tempo, pelo menos na Europa, pareceu possível manter-se nesta ilusão. Mas então veio a queda. Os arquitetos se rebelaram contra suas restrições, os moradores rejeitaram suas disciplinas severas, e os historiadores começaram a expor suas conexões. No entanto, o pensamento modernista mantém algumas de suas atrações; há uma sedutora disciplina do

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Registros do CIAM IV (1933), a bordo do navio Patris II, entre Marselha e Atenas

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LABIRINTO corpo e do espírito e uma nostalgia frequente por suas utopias já há tanto questionadas. Os Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (do francês Congrès Internationaux d’Architecture Moderne ou simplesmente CIAM) constituíram justamente, uma série de eventos organizados pelos principais nomes da arquitetura moderna européia a fim de discutir os rumos da arquitetura, do urbanismo e do design no início do movimento. Coube a Hélène de Mandrot estimular aquilo que veio a se constituir o CIAM I, realizado no Castelo de La Sarraz na Suíça, em 1928. Teria ela anunciado às delegações na época: “(...) o objeto principal e a finalidade que aqui nos reúne, é articular os diferentes elementos da arquitetura atual em um todo harmônico, e dar à arquitetura um sentido real, social e econômico. A arquitetura deve, portanto, liberar-se da estéril influência das Academias e de suas fórmulas antiquadas.” O ideário dos CIAM já nasce sob o compromisso de dar um sentido social e econômico à arquitetura, vinculado à noção de um todo ordenado que rejeita o academicismo em voga no ensino e nas práticas. No primeiro documento publicado - a Declaração de La Sarraz - já assumiam uma atitude radical em relação ao planejamento urbano ao declarar que a essência do urbanismo era de ordem funcional, em defesa da introdução de dimensões normativas e de eficiência dos métodos de produção. Um primeiro passo para a racionalização da indústria da construção. “No Congresso Internacional Preparatório de Arquitetura Moderna, realizado em 1928, em La Sarraz (França) - o I CIAM -, o urbanismo é definido como organização das funço~es da vida coletiva, que envolve a cidade e o campo, cuja essência é a ordem funcional, já se apontando as três funço~es-chave da cidade - habitação, trabalho, lazer - a serem articulados pela circulação. Para efetivar esses princípios, controle do uso do solo, a legislação e a regulação do tráfego são destacados. (FELDMAN, 2005)

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CIAM - Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna 1928, Suíça - CIAM I (La Sarraz) Fundação dos CIAM 1929, Alemanha - CIAM II (Frankfurt-am-Main) Die Wohnung fur das Existenzminimum (Habitação para o mínimo nível de existência) 1930, Bélgica - CIAM III (Bruxelas) Rationelle Bebauungsweisen (Uso racional do lote) 1933, Grécia - CIAM IV (Atenas) The Functional City (A Cidade Funcional) 1937, França - CIAM V (Paris) Habitação e Lazer 1947, Reino Unido - VI CIAM (Bridewater) Reafirmação dos objetivos do CIAM 1949, Itália - CIAM VII (Bérgamo) Sobre a cultura arquitetônica (Concerning Architectural Culture) 1951, Reino Unido - VIII CIAM (Hoddesdon) The Heart of the City (O Coração da cidade) 1953, França - IX CIAM (Aix-en-Provence) Habitat 1956, Croácia - X CIAM (Dubrovnik) Carta do Habitat 1959, Holanda - Congresso de Otterlo Fim dos CIAM


O CIAM IV seria realizado em Moscou, cenário de um grande laboratório onde o problema da construção das cidades socialistas já aparecia desde 1930, com Sotsgorod, de Nicolai Miliutini. As mudanças políticas na URSS, que culminaram com a ascensão de Stalin, e as reaço~es à nova postura face ao movimento moderno, explicam a mudança de planos. Em 1931, através do concurso para o Palácio dos Sovietes, Stalin veio propiciar na URSS a volta da arquitetura como imagem do poder e da autoridade, rejeitando os projetos modernos (inclusive a proposta de Le Corbusier). O resultado final do concurso e as reaço~es do CIRPAC (Comité international pour la résolution des problèmes de l’architecture contemporaine) mostraram uma fissura muito além do que se imaginava, registra-se alí a desistência na escolha de Moscou como sede do CIAM IV, cuja ausência dos alemães e soviéticos deixou o congresso inteiramente sob o comando de Le Corbusier e José Luis Sert. 8

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LABIRINTO Os CIAM passaram por três etapas distintas de desenvolvimento: CIAMs I a III, dominada pelos arquitetos de língua alemã (suíços e alemães), quase todos de tendência socialista, início do movimento e preocupações sociais e técnicas (racionalização da construção); CIAMs IV a VII, domínio da língua francesa, representado pela figura de Le Corbusier, com ênfase das discussões para uma doutrina funcionalista urbana, a Carta de Atenas; CIAMs VIII a X, domínio de língua inglesa (ingleses e holandeses), emergência do Team X e dissolução do movimento.de ordem funcional, em defesa da introdução de dimensões normativas e de eficiência dos métodos de produção. Um primeiro passo para a racionalização da indústria da construção. Entre julho e agosto de 1933, arquitetos representantes de 10 idiomas partiram a bordo do navio S. S Patris II, de Atenas a Marselha, através dos mares da França, Itália e Grécia. A viagem foi na verdade a ocasião do CIAM IV8, sob o tema A Cidade Funcional e pretendia ser o primeiro de uma série sobre o assunto. Um congresso de esplendor cênico, mas que aconteceu bem longe da realidade da Europa industrial. Uma suspensão temporária da realidade, que resultou, a partir da análise de 33 cidades9, num documento de conteúdo dogmático, abstrato, desprovido de valor simbólico e cultural e, sobretudo, de aplicabilidade universal: a Carta de Atenas. “O cruzeiro havia se transformado em salas de reunio~es, comisso~es e secretariado. Um só ruído: o rumor da água ao longo do casco; uma só atmosfera: de juventude, de fé, de modéstia e de consciência profissional. Um fruto precioso depois de quinze dias de duro trabalho: A CARTA DE ATENAS. A Carta de Atenas abre todas as portas para o urbanismo moderno. É uma resposta ao caos das cidades. Colocado nas mãos da autoridade, detalhada, comentada, iluminado por uma explicação suficiente, é o instrumento que indicará o destino das cidades.

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J. L. Sert e GATCPAC (1933) Painéis da exposição de Amsterdam, durante o CIAM IV

Talvez, o indicador mais revelador e quantificável de uma cidade insalubre é alta mortalidade infantil entre os pobres da cidade, como sugerido pela visão de Sert, sobre a Barcelona de 1933. O estudo analítico do seu grupo, chamou a atenção para as crianças nos cortiços da cidade, muitos dos quais sofreram problemas de saúde e desnutrição em ruas congestionadas onde a doença era endêmica. Com o apoio das autoridades catalãs, o grupo espanhol propôs um “masterplan” - não implementado devido ao início da Guerra Civil Espanhola - que pretendia transformar a vida dessas crianças, incluindo uma ligação de trânsito rápido para uma nova estância costeira popular para descanso e relaxamento.


O CIRPAC, reunido de 29 a 31 de março de 1932 em Barcelona, havia feito um programa de análise de 33 cidades em 18 países (Amsterdam, Atenas, Bruxelas, Baltimore, Bandoeng, Budapeste, Berlim, Barcelona, Charleroi, Colônia, Como, Da Lat, Detroit, Dessau, Francfurt, Genebra, Gênova, La Haya, Los Angeles, Litoria, Londres, Madrid, Oslo, Paris, Praga, Roma, Rotterdam, Estocolmo, Utrecht, Verona, Varsóvia, Zagreb, Zurich). 9

Não existe um documento original, mas sim verses da Carta de Atenas. Em 1933 foi publicado pelo GATEPAC (Grupo de Artistas y Técnicos Españoles Para la Arquitectura Contemporánea) as Concluso~es do CIAM IV, traduzidas na revista AC-GATEPAC n.12 (Barcelina, 1933). A famosa Carta em francês, cuja autoria se deve a Le Corbusier, que não é sequer assinada pelo arquiteto, foi uma publicação atribuída ao grupo francês dos CIAM, publicada nove anos após o CIAM IV. Uma dessas verso~es - Can our cities survive? (1942): - foi publicada por J. L. SERT, membro fundador do GATCPAC e vicepresidente da primeira comissão permanente dos CIAM, que foi exilado nos Estados Unidos. São encontradas, ainda, diversas traduço~es destes documento. Dentre elas, é de interesse nesta pesquisa a publicada em 1955 por Admar Guimarães, membro do EPUCS e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, traduzida da versão de SERT. 10

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LABIRINTO As pranchas estão pregadas ao longo do navio (...); Existem, permanecem, consiste numa imponente exposição. Se encontram, a partir de então, acessível a todos, magistrais documentos de consulta neste tempo premonitório, menos de dez anos antes da tragédia mundial que cobria a terra de escombros e que, acima de tudo, levantará a questão fundamental: a da reconstrução da habitação humana, a casa dos homens.” (LE CORBUSIER, 1950)

Ao descrever, à posteriori10, o clima do congresso, as palavras de Le Corbusier deixam escapar detalhes importantes: Quando se pensa na ideia de “um só ruído” e “uma só atmosfera” num congresso que se propunha criar um modelo universal de urbanismo ou, como ele define, “o instrumento que indicará o destino das cidades”, ficaram ausentes as diversas realidades não contempladas nos diagnósticos realizados sobre as cidades analisadas (sendo 28 delas européias, 03 americanas e 02 asiáticas) ou, como bem afirma o documento, estas “ilustram a história da raça branca nos climas e latitudes mais diversos”. Finalmente, as questões formuladas possuem generalidades demasiadas e afastam-se muito das questões práticas levantadas nos primeiros CIAM: para cidades tão diferentes como Paris e Varsóvia, eram vislumbradas as mesmas soluções universais de ordenamento do espaço urbano. É importante situar a discussão da Cidade Funcional em termos de instrumentos tecnológicos disponibilizados para o planejamento urbano a partir da primeira Guerra Mundial. Ao discutir os problemas urbanos neste período, os arquitetos apontavam para as novas perspectivas reveladas pelas fotografias aéreas das cidades, que permitiam uma visão total das cidades até então desconhecida. “Nas vistas aéreas, as cidades eram apreendidas em sua totalidade, como unidades, em uma escala que não distinguia edifícios individuais, ruas, lotes, etc, mas tomava o objeto urbano como um todo, colocando novos problemas. (...)

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Vista aérea Miguel Calmon-Ba (data não especificada) + Emiliano Espinosa (1937) desenho de um ataque aéreo sobre uma cidade espanhola

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LABIRINTO A precisão da imagem nas fotos gistros formais que revelavam a urbana. (...) Essa disposição para era também um novo instrumento planejador.” (BARONE, 2002)

aéreas resultava em recomposição da totalidade lidar com o objeto total de controle nas mãos do

As cento e onze propostas da Carta consistiam numa declaração sobre os problemas das cidades modernas e, em parte, de propostas para a correção dessas condições, agrupadas sob quatro categorias principais: Habitar, Recrear, Trabalhar e Circular. A sobrevalorização da questão da unidade de habitação, tomada como função primordial, acabou por criar um achatamento das diferenças entre o público e o privado na cidade. Pretendia a Carta “dar a cada função e a cada indivíduo seu justo lugar”, fundamentada na “discriminação entre as diversas atividades humanas que reclamavam individualmente seu espaço particular”. “O CICLO DAS FUNÇO~ES COTIDIANAS: HABITAR, TRABALHAR, RECREAR-SE (RECUPERAÇÃO), SERÁ REGULAMENTADA PELO URBANISMO DENTRO DA MAIS ESTRITA ECONOMIA DE TEMPO, CONSIDERANDO-SE A HABITAÇÃO COMO O CENTRO PRÓPRIO DAS PREOCUPAÇO~ES URBANÍSTICAS E O PONTO DE UNIÃO DE TODAS AS MEDIDAS. (...) O zoneamento, tendo em conta as funço~es-chave: habitar, trabalhar, recrear-se porá ordem no território urbano. A circulação, quarta função, não deve ter senão um objeto: pôr em comunicação, sob forma útil, as outras três. (...) As vias de comunicação, as ruas de nossas cidades, têm fins díspares. Recebem os pesos mais dessemelhantes, e prestam-se tanto a marcha dos pedestres como a condução. (...) Este estado de cousas reclama uma modificação radical: as velocidades dos pedestres, quatro quilômetros por hora, e as velocidades mecânicas, 50 a cem quilômetros por hora, devem ser separadas. (Carta de Atenas - Grupo CIAM França, 1941)

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LABIRINTO O urbanismo moderno deveria ter, a partir de então, quatro objetivos: 1) Assegurar aos homens alojamento saudável, isto é, lugares em que o espaço, o ar puro e o sol, estivessem amplamente garantidas; 2) Organizar os lugares de trabalho de modo que este, em vez de ser uma penosa sujeição, recuperasse o seu caráter de atividade humana natural; 3) Prever as instalações necessárias para uma boa utilização das horas livres, fazendo-as benéficas e fecundas e; 4) Estabelecer o vínculo entre estas diversas organizações por meio de uma rede circulatória que garantisse os intercâmbios sem deixar de respeitar as prerrogativas de cada uma delas. As propostas da Carta de Atenas tornaram-se tentadoras e ganharam resultados significativos a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando a destruição das cidades exigia urgência nas políticas de reconstrução. O modelo funcionalista, amplamente divulgado pelas revistas internacionais de arquitetura, foi adotado como solução genérica nas cidades arrasadas pela guerra. Era a efetivação da tão sonhada tábula rasa11 moderna. No seu livro “Urbanismo”, Le Corbusier inicia o texto com uma página branca, uma representação clara da tábula rasa, pois só a partir do vazio se poderia pensar o novo. O movimento moderno em arquitetura, que pautado na desconsideração das culturas, das diferenças e da própria história das cidades e, sobretudo, na crença do poder transformador da arquitetura e do urbanismo, trabalhou no sentido da desqualificar os homens comuns no que diz respeito aos aspectos ligados à vida urbana e elegeu especialistas que “viam a cidade” e que possuíam o conhecimento científico e métodos eficientes para a resolução dos seus problemas. A tábula rasa implica, portanto, numa recusa das experiências não-modernas, das experiências do “passado” o qual se desejava superar ou extinguir. É nesse contexto de destruição, que a tabula rasa, em sua implementação foi viabilizada pela própria guerra através da destruição de grandes áreas nas cidades a serem reconstruídas.

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J. L. SERT, The Town Planning Chart (1942): as quatro funço~es da cidade Esse estudo considera o conceito de tábula rasa vinculado às práticas urbanísticas e à ideia de supressão de um determinado tecido urbano existente, envolvendo o desejo de abrir espaço para a criação, incorporando criação e destruição. Corresponde a um posicionamento de ruptura daquele que pensa ou age, em relação às experiências ou concepço~es anteriores, tal qual a tela branca, ou no espaço a ser preenchido; a um estado idealizado da pureza total. Sobre o termo, ele também foi utilizado, num outro contexto, pelos surrealistas artistas e escritores da corrente moderna de representação do irracional e do subconsciente -, que entendiam a tabula rasa como potencia de criação, para romper com a tradição artística, libertando-se das exigências da lógica e da razão. Estava associado aos poderes da imaginação, castrados pelos limites do utilitarismo da sociedade burguesa dos anos 20 e 30. 11

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Bernard Huet (1986 Apud. BARONI, 2002), arquiteto e urbanista que foi editor da revista L’Architecture d’aujourd’hui entre 1974 e 1978, aponta as fissuras do Movimento Moderno em Arquitetura, e enumera os motivos pelos quais este modelo teve aplicação generalizada: por coincidir perfeitamente com as necessidades da reconstrução, pela construção maciça de habitações, a forte intervenção do Estado, a utilização da indústria fundida pela ação do Estado e a gestão urbana eficaz e simplificada pela própria ordem de composição, repetida e mecanizada. Este autor destaca ainda o Caráter abstrato da carta: Os termos empregados para designar os espaços eram relacionados a suas funções, cores, atributos e ideias que diluíam sua concretude. A habitação era chamada de alojamento, a rua era percurso, o parque era espaço verde. A rua-corredor, que Le Corbusier pretendia suprimir, era transposta para o corredor das habitações do

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Balanรงo improvisado num poste em meio aos destroรงos causados por um bombardeio sobre Londres (1940)

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edifício. Com isso, a própria cidade de que tratava o documento perdia seu significado concreto em meio a denominações distorcidas, tornando-se tão abstratas como eram as propostas. Entre 1942 e 1948, na tentativa de uniformizar ainda mais os parâmetros do urbanismo moderno, Le Corbusier desenvolveu um sistema de medição que ficou conhecido por “Modulor”. Baseado na proporção áurea e nos números de Fibonacci e usando também as dimensões médias humanas (dentro das quais considerou 1,83 m como altura padrão), o Modulor, como uma sequência de medidas que Le Corbusier usou para encontrar harmonia nas suas composições arquiteturais12, seria talvez o homem-padrão para habitar a sua “cidade ideal”. Dessa forma, Le Corbusier propõe colocar como medida o homem ideal - o Modulor -, a despeito do homem real das ruas.

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Para Le Corbusier, a forma artística era resultado lógico do “problema bem formulado”. No livro “Por uma Arquitetura” (1923), faz um manifesto de rompimento com os paradigmas do classicismo “meramente ornamentalista”. Fascinado com os avanços da engenharia, o arquiteto via nos transatlânticos e avio~es, uma estrutura que permitiria ousar de forma barata e rápida, e adequar métodos construtivos, espaços, formas às suas necessidades. É nesta publicação que postulou os cinco pontos da nova arquitetura, fundamentais para criação e fortalecimento de um novo movimento na arquitetura e no urbanismo. Le Corbusier trata do conceito de “máquina de morar”, no qual pesquisou as medidas ideais para o movimentar do homem universal moderno, suas necessidades, simplificou o morar em funço~es, para construir o modelo de habitação perfeita para a sociedade moderna. No livro está escrita a sua célebre frase: “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução”. 12

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LABIRINTO SOMENTE PELA ESCALA HUMANA DIMENSIONAMENTO DE TODAS AS DISPOSITIVO URBANISMO.

PODE REGER-SE O COISAS DENTRO DO

A medida natural do homem deve servir de base a todas as escalas que se encontram em relação com a vida e as diversas funço~es do ser. Escala das medidas aplicáveis às superfícies ou às distâncias, escala das distâncias que serão consideradas em relação ao andar natural do homem, escala dos horários que devem ser determinados tendo em conta o curso cotidiano do sol. (Carta de Atenas - Grupo CIAM França, 1941)

Enquanto isso, durante os CIAM, Le Corbusier pretendia continuar promovendo a condução das discussões para a temática do urbanismo funcionalista, através de uma padronização dos documentos e representações durante as discussões. Durante o CIAM VII (1949) - o primeiro congresso do pós-guerra -, ele propôs que todos os trabalhos discutidos nos congressos fossem apresentados sob uma única forma, em uma “grade” - a grille corbusiana - organizada a partir das funções primárias contidas na Carta de Atenas. Sob o pretexto de facilitar a comparação entre os projetos apresentados de modo padronizado, armazenando o material com mais praticidade, a utilização da grade reforçava a leitura das cidades pela separação das funções, produzindo e generalizando um método de análise que pretendia estar na base da própria produção de projeto. Para dar continuidade à discussão da Cidade Funcional do CIAM IV (1933), o tema do CIAM V (1937) seria “alojamento e lazer”, duas das funções primárias contidas na Carta. Uma tentativa de legitimar o conceito urbanístico desenvolvidos durante o congresso anterior, a partir do desenvolvimento de soluções universais para cada função específica. É de interesse nesta pesquisa uma análise acerca da abordagem dada pelos arquitetos modernos à função RECREAR.

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Desenho do Modulor de Le Corbusier (1942-1948)

CIAM Grille do Grupo FrancĂŞs: Habitar (verde), trabalhar (vermelho), cultivar o corpo e a mente (amarelo) e circular (azul)

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A HORA DO RECREIO Parece razoável concluir que o lazer preenche as seguintes funções: repouso, diversão e desenvolvimento pessoal. É, sobretudo, uma forma de ter o tempo de sobra como fator de integração do homem nos grupos sociais. Como fenômeno historicamente constituído, o lazer requer ser pensado a partir de um dado contexto social. Segundo Werneck (2000 apud PINTO, 2001), na modernidade, o sentido de lazer vem se desenvolver a partir

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LABIRINTO dos movimentos trabalhistas, sobretudo ingleses, que, no contexto da Revolução Industrial, simbolizaram a revolta contra a escravização econômica. Lutas dos trabalhadores contra as longas jornadas de trabalho que, muitas vezes, chegavam até a 14 horas diárias. O trabalho industrial, de execução mais fragmentada e disciplinada, feito em tempo rápido, exigia menos energia física que no século anterior, porém fatigava mais os nervos, exacerbando a necessidade de repouso. Mas o que fazer das horas livres, dessas “horas vazias”? Preenchê-las. O urbanismo, portanto, se destinaria a conceber as regras necessárias para garantir aos cidadãos condições de vida capazes de salvaguardar não somente a saúde física, como também a saúde moral e a alegria de viver do habitante. É evidente que, para os arquitetos modernos, se trataria de um problema de arquitetura: a habitação; e de urbanismo: a organização dos bairros residenciais e a organização da máquina de espairecer. “Ao vazio da vida (não mais toda absorvida pelo ganhapão), à solidão (decorrente da indiferença mútua entre cidadãos) e ao anonimato (na massa de desconhecidos) vieram somar-se à monotonia da atividade profissional (resultante da extrema subdivisão das tarefas) e a padronização da produção (que o progresso tecnológico persegue, insensível aos anseios individuais de auto-expressão). (...) O trabalho é cada vez mais executada por equipes de especialistas, dispostos segundo uma hierarquia de funço~es e obrigados a seguir rotinas, tanto mais rígidas quanto mais se isenta manter o nível da produção.” (MEDEIROS, 1971)

Acerca da análise das cidades existentes, a Carta de Atenas constatou que o aumento do tempo livre - conseguido pela máquina e estendido pela maior tempo da vida -, as tensões da vida numa sociedade em acelerada mudança e o rápido desenvolvimento urbano aguçaram nos profissionais responsáveis pelo bem-estar da coletividade a consciência do potencial do lazer como uma

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Cambalhotas na praia registradas por Le Corbusier durante os eventos do CIAM IV (1933).

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LABIRINTO das quatro funções principais da cidade. Legisladores e administradores foram reconhecendo o valor da recreação organizada e ampliando, consequentemente, as acomodações públicas para a sua prática. Dessa forma, foi se configurando para estes profissionais novas responsabilidades relacionadas à promoção do uso adequado da folga, que por isto começou a merecer mais atenção no planejamento urbano. “Às horas de trabalho, geralmente esgotadoras, muscular ou nervosamente, devem seguir cada dia, um número suficiente de horas livres. Estas, cuja quantidade influirá infalivelmente no maquinismo, serão consagradas a uma permanência no seio de elementos naturais. Pode-se classificar as horas livres ou de recreio em três categorias: diárias, semanais, ou anuais. As horas de liberdade diária devem ser despendidas proximamente à habitação. As horas de liberdade semanais autorizam a saída da cidade e os deslocamentos regionais. As horas de liberdade anuais, ou sejam as férias, permitem verdadeiras viagens, além da cidade ou da região. Assim exposto o problema, propo~e-se a criação de espaços verdes: 1o - próximo às habitaço~es; 2o - na região; 3o - no país. Uma vez escolhida as localizaço~es situadas nos arredores imediatos da cidade para os centros adequados de recreio semanal, traçar-se-á o problema dos transportes em massa.” (Carta de Atenas - Grupo CIAM França, 1941)

Nesta cidade-máquina - lugar de trabalho e do homem moderno ideal -, essa especificidade extrema dos usos, mesmo quando se tratava do tempo livre do cidadão, categorizava os diversos

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LABIRINTO tempos e espaços (dias, semanas, anos, espaços verdes, deslocamento e relações de proximidade entre regiões e cidades), quando se referia a uma suposta “hora de liberdade” do habitante. Uma espécie de traçados rígidos entre funções - e não uma sobreposição e/ou correlação entre elas -, a fim de obter respostas formais para a habitação e o transporte na cidade. O que se buscava era fixar uma separação racional e “encaixotada”, se não maquínica, para a disposição desses usos: “um programa divertimento útil, que previsse atividades de todos os tipos e que compreendesse todos os tipos de espaços, reservados e organizados, de modo a torná-los acessíveis por meios de transportes suficientes e cômodos”. “QUE TODO O BAIRRO DE HABITAÇÃO COMPORTE, DAQUI EM DIANTE, A SUPERFÍCIE VERDE NECESSÁRIA PARA A DISPOSIÇÃO RACIONAL DOS JOGOS E DESPORTOS INFANTIS, DOS ADOLESCENTES E ADULTOS. (...) Não se trata de simples extenso~es de gramados mais ou menos plantados árvores, à volta da casa, mas de verdadeiros prados, bosques, praias naturais ou artificiais, que constituam uma imensa reserva cuidadosamente protegida, capaz de oferecer ao habitante da cidade mil ocasio~es de atividade sã ou de divertimento útil.” (Carta de Atenas Grupo CIAM França, 1941)

Mas onde abrir essas superfícies verdes - denominados por Le Corbusier como os “pulmões da cidade” -, nas metrópoles que aumentaram a sua densidade em detrimento das próprias árvores? A solução da Carta para esse déficit, era que a nova cidade deveria aumentar sua densidade, ao mesmo tempo que aumentaria consideravelmente as superfícies arborizadas. Para tal, faria uso das chamadas “ilhotas insalubres”: os espaços informais, velhos bairros em áreas miseráveis, onde predominavam as moradias baratas e de cortiços. “QUE

AS

ILHOTAS

INSALUBRES

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SEJAM

DEMOLIDAS

E


J. L. Sert: Can our cities survive? (1942): Necessidades de lazer de diferentes grupos de idade. Programa de estudo para a cidade de Rotterdam.

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LABIRINTO SUBSTITUÍDAS POR SUPERFÍCIES VERDES: LIMÍTROFES FICARÃO SANEADOS COM ISTO.

OS

BAIRROS

Um elementar conhecimento das principais noço~es de higiene basta para discernir o que é impróprio e discriminar as ilhotas nitidamente insalubres. Estas ilhotas deverão ser demolidas.

(...) Entretanto é possível que certas destas ilhotas ocupem uma situação particurlamente conveniente à construção de certos edifícios indispensáveis para a vida na cidade. Neste caso, um urbanista inteligente saberá dar-lhe o destino que o plano geral da região e o da cidade predeterminarem, como mais útil.” (Carta de Atenas - Grupo CIAM França, 1941)

O programa de distribuição dessas facilidades - a natureza, a capacidade, a localização mais favorável das instalações respectivas

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LABIRINTO pode variar consideravelmente, de acordo com os costumes e preferências dos diferentes povos, as percentagens de seus grupos etários, as horas de trabalho, o clima e outras circunstâncias. Desprezadas tais considerações, era tarefa dos profissionais urbanistas, prever as instalações necessárias para uma boa utilização das horas livres, fazendo-as benéficas e fecundas, e fazer com que o dia de descanso do habitante atuasse verdadeiramente sobre sua saúde física e moral, não abandonando a população “ao sabor das múltiplas desgraças da rua”. Falava-se da necessidade do lazer da vida moderna, enquanto efeito aliviador da tensão e reabastecimento da energia consumida pelas dificuldades em viver e trabalhar em ambientes cada dia mais densos e congestionados. E não do lazer enquanto momento de criação, que perpassava as demais funções, numa clara impossibilidade de criação contínua. O grupo que propôs a síntese do urbanismo moderno através da Carta era representado principalmente por Le Corbusier e José Luis Sert. Foi durante o exílio nos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial, que Sert, membro fundador do GATCPAC (Grup d’Arquitectes i Tècnics Catalans pel Progrés de l’Arquitectura Contemporànea) e vice-presidente da primeira comissão dos CIAM, publicou, em 1942, a sua versão da Carta de Atenas. A diferença desta, para a versão francesa estava em alguns termos traduzidos no texto da Carta e na leitura que Sert fazia dos problemas das cidades modernas através de textos mas, sobretudo, das imagens das cidades norte-americanas. Neste livro, é retomada a discussão da Cidade Funcional e suas quatro funções, registrada na Carta de Atenas, mas é uma visão particularmente significativa por apontar que as sábias previsões esboçadas pela Carta se materializavam em um anúncio da cidade moderna já em crise. Suas abstrações se tornavam concretas através daquelas imagens, muito mas como uma critica ao futuro das cidades modernizadas, do que como um diagnóstico ou uma interpretação simplista, como apontaram os arquitetos do CIAM IV.

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Capa do livro de J. L. Sert, Can our cities survive? [Poderão as nossas cidades sobreviver?](1942); e capa original, desenhada por Herbert Bayer: Should Our Cities Survive? [Devem sobreviver as nossas cidades?] (1941). O título da publicação foi mudado por Dumas Malone, diretor da editora da Universidade de Harvard.

L - J. L. Sert, Can our cities survive? (1942): “Os problemas apresentados neste livro são comentados e discutidos todos os dias pela imprensa, cinema e rádio. Isso é natural quando se considera que as vidas de muitos milho~es de pessoas são afetadas por esses problemas de urbanismo. No entanto, a frase ‘urbanismo’ assusta o público como ‘muito técnico’, e a maioria das pessoas nem sonham em conectá-lo às manchetes acima.”

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As imagens aéreas de Coney Island, península (anteriormente uma ilha) localizada no Distrito de Brooklyn, Nova Iorque, Estados Unidos, apontam para os resultados desse previsto do “uso feliz das horas livres de recreio”, propostos pela Carta de Atenas: espaços naturais que serviriam às horas de liberdade semanais e anuais; os grandes congestionamentos; boa parte do território natural reservados aos estacionamentos; o aumento da ocupação desses espaços por comércios especializados para o turismo e; o super povoamento desses lugares de recreio.

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M - J. L. Sert, Can our cities survive? (1942): imagens aĂŠreas de Coney Island, no Distrito de Brooklyn, Nova Iorque, Estados Unidos

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As imagens contidas no livro de J. L. Sert, mesmo se tratando de um contexto Norte-Americano, diferente da situação da Europeu no pós-guerra (1939-1945), já representavam o anúncio de uma crise maior, que viria a se consolidar alguns anos depois, ainda durante os Congressos de Arquitetura Moderna.

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J. L. Sert: Can our cities survive? (1942)

“As crianças são vítimas do caos urbano. As nossas cidades não têm espaços abertos onde creches e playgrounds poderiam ser localizados. Buscando compensar esta falta de serviços à comunidade, alguns pais têm descoberto novos sistemas. Acima: Em Londres, um pavimento ensolarado e, na fronteira com uma via de tráfego, crianças podem brincar, amarradas, em segurança. Abaixo: As crianças são obrigadas a atravessar vias de tráfego intenso por conta da má distribuição das escolas e playgrounds. Imagens que apontam os resultados desta falta de premeditação.”


O tema do Coração da Cidade, do CIAM VIII foi definido após o CIAM VII de 1949, realizado em Bérgamo, cidade histórica italiana devastada pela guerra. Nesse caso, entretanto, os responsáveis pela escolha do tema do Congresso, comparam o centro da cidade ao coração dos seres vivos. No CIAM VIII, José Sert reconhecia que: “[…] muitas cidades do passado possuem formas e padro~es definidos e eram construídas em volta de um núcleo que geralmente era um fator determinante para essas formas. Eram as cidades que faziam os núcleos, mas em retorno, eles faziam da cidade uma cidade e não um agregado de indivíduos”. (SERT, 1952) 13

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O TIME 10 E A INVASÃO DO CAMPINHO Com os conflitos, que já começavam a desenvolver durante os primeiros congressos do pós-guerra, é durante o CIAM VIII (Hoddesdon, Inglaterra), em 1951 que eles se tornam fundamentais para a quebra da hegemonia existente. Sob o tema The Heart of the City13, o coração da cidade é apontado como núcleo, uma ideia muito mais rica que a relação de centro cívico, proposta pela “velha guarda”. Este novo discurso, levantado a partir da observação da cidade, questiona a requalificação social dos centros urbanos. Fala-se do coração, dos espaços públicos, da escala humana, da nova monumentalidade e dos edifícios históricos como força simbólica. Antes disso, a nova monumentalidade não representava a recuperação dessa historicidade e os monumentos modernos deveriam ser construídos sobre grandes espaços abertos, sob a ótica da tábula rasa proposta pela Carta de Atenas. Mudanças importantes foram registradas em 1951: a chegada de novos países da África e Américas, provocaram uma diversidade de assuntos tratados durante o CIAM e já não havia um único tema em debate e novas questões eram formuladas ainda durante o congresso. Foi durante o CIAM VIII que o arquiteto italiano Ernesto Nathan Rogers formulou pela primeira vez a questão das “preexistências ambientais”, uma metáfora para “contexto”, onde defendia que a arquitetura não estaria isolada do seu redor e, sobretudo, do que a precedeu. Os discursos anteriores perdiam seu dogmatismo e se tornavam cada vez mais absorventes e esponjosos. As novas ideias - mais complexas e sensíveis - apresentavam-se irrecusáveis, impossíveis de serem ignoradas e utilizadas de forma clara nos projetos propostos. “No CIAM VIII fica latente para alguns arquitetos urbanistas que a cidade produzida pelo urbanismo moderno ca-

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Nigel Henderson (1951) Crianรงas brincando nos slums (favelas) de Londres

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LABIRINTO rece de qualidades ligadas ao encontro, à reunião e à vida coletiva. Esse debate internacional sobre arquitetura e urbanismo moderno evidencia que a espontaneidade presente nas cidades “do passado” é um atributo que o emprego do cientificismo não conseguiu produzir. É interessante percebermos que já nesse momento os arquitetos urbanistas se dão conta de que algo faltava às partes récem-construídas da cidade moderna e o CIAM procura por esses valores ao seu redor, na cidade não-moderna. (...) Se a tábula rasa é um rolo compressor a suprimir diferenças através de sua potência devastadora, os debates a partir do CIAM VIII e mais veementemente no CIAM IX vão assumir preocupaço~es com os modos de aço~es mais comprometidos com as realidades concernidas, mesmo que muitas vezes através de posturas também modelizadoras.” (MARQUES, 2010)

O CIAM IX de 1953, realizado em Aix-en-Provence (França), tem uma importância fundamental na história dos Congressos Internacionais. Ao mesmo tempo em que são apresentadas as experiências exóticas de habitações padronizadas na cidade de Chandigarh, propostas por Le Corbusier, Georges Candilis mostra suas análises das habitações tradicionais no Marrocos e sua tentativa de transpor essas moradias num edifício de altura. E é, sobretudo, na apropriação da grade apresentada pelo casal Alison e Peter Smithson, para o projeto Urban Reidentification, que a crítica se dá de maneira mais incisiva. Nesta representação do que seria a Grille corbusiana, inexistem fotos aéreas das cidades. Pela primeira vez na história dos CIAM, são retratadas pessoas reais (crianças brincando na rua), propondo o questionamento das relações e dos conceitos de hierarquias e lugares; As quatro categorias funcionais foram substituídas por escalas de associação: a casa, a rua, as relações, o bairro e a cidade; A rua, aqui, seria como uma extensão da casa, fundamental para a formação da identidade e da vida comunitária do habitante; Ao centro, uma figura que pode ser entendida como um “Modulor explodido”. Elementos que representavam

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A Internacional Situacionista foi um movimento artístico europeu de crítica social, cultural e política dos anos de 1950. A IS se posicionava contra a cultura espetacular e pretedia novas propostas de apropriação da cidade, por meio da participação ativas dos seus habitantes. 14

Houve uma razão direta para que Nigel Henderson vivesse em Bethnal Green. Foi devido ao trabalho antropológico da sua esposa Judith Henderson. Judith deu um curso com o sociólogo J. L. Peterson chamado Descubra seu vizinho, que visava adaptar os princípios da antropologia para uso geral: médicos, clérigos, estagiários oficiais, que lhes desse conhecimento sobre a cultura em que eles trabalhavam. 15

Grille Urban Reidentification, Alison e Peter Smithson, CIAM IX (1953): revisão e desafio à “grille corbusiana”

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LABIRINTO uma crítica ao caráter abstrato da matriz racionalista precedente, considerado demasiado idealizante para interagir com as particularidades da vida cotidiana. As fotografias do britânico Nigel Henderson (colega do casal Smithson do The Independent Group londrino, ligado ao ICA e aos situacionistas14), que faziam parte da grelha Urban Reidentification dos Smithson representavam um mapeamento da experiência urbana que rompia barreiras entre a casa e a rua, ou entre o bairro e a cidade. Eram as crianças brincando nos slums (favelas) de Londres que encarnavam o princípio orientador da interação social, e que sustentavam o conceito de uma “cluster city” dos Smithson. Uma declaração visual influente de uma nova abordagem para o planejamento urbano, que rompia com o pensamento ortodoxo modernista - do racional, da cidade zoneada. Em seu lugar, ficava o questionamento para uma arquitetura de desdobramento das relações espaciais, observadas nas brincadeiras infantis. Esta criança da fotografia, por mais que esteja uniformizada, padronizada, que pertença a uma instituição de ensino, que a regule, jamais se transformará na imagem do homem ideal, proposta por Le Corbusier (ou pelos arquitetos modernos da velha guarda). A apropriação da rua através das brincadeiras, rompe com qualquer limite entre funções pré-estabelecida por quem a projetou. Segundo Frampton, não foi, entretanto, o registro fotográfico que Nigel Henderson fez da realidade social e física do East End de Londres - suas fotos sobre a vida comunitária em Bethnal Green15 - que proporcionou essa mudança no modo de

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Le Corbusier (1942-1948): desenho do Modulor + Nigel Henderson (1951): Crianรงas brincando nos slums (favelas) de Londres

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O conjunto habitacional Golden Lane, em Londres (1952) tinha a nítida intenção de ser uma crítica á Ville Radieuse e ao zoneamento das quatro funço~es da cidade em Habitação, Trabalho, Lazer e Transporte. Os Smithsoon opunham a essas funço~es as categorias de Casa, Rua, Bairro e Cidade. Em seu projeto, a casa era a unidade familiar; a rua era um sistema de acesso com base em galerias unilaterais de largura generosa, elevado do solo; o bairro e a cidade eram vistos como domínios variáveis que ficavam fora dos limites de definição física. 16

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LABIRINTO pensar do casal. Os Smithson visitavam regularmente a casa de Henderson em Bethnal Green a partir de 1950, e foi com base em sua experiência direta com a vida das ruas na região (hoje anulada pelos sobrados altos construídos pelo Estado do BemEstar) que eles extraíram suas primeiras noções de identidade e associação. O fim dos CIAM, de alguma forma, foi anunciado por estas fotografias. Elas não provocam o colapso em si, mas apontam para o aspecto que o CIAM tinha perdido de vista: a ambição do modernismo, de assistir a totalidade da vida cotidiana. Peter Smithson descreveu as fotografias de Nigel Henderson: “a ‘vida nas ruas’ mostrada por estas fotos é sobrevivente de uma cultura anterior - uma cultura substancial. Mas nós ainda não descobrimos uma forma equivalente para a forma da rua no presente momento. Todos nós sabemos que a rua tem sido invadida pelo carro.” Alison e Peter Smithson apresentam com base numa metodologia antropológica e sociológica, uma síntese dos padrões de contato urbanos: da casa em relação à rua, este em relação ao bairro e por último, o bairro em relação à cidade. Os subúrbios e ruas degradadas, “locais ainda calmos”, apresentavam qualidades inerentes da vida em comunidade, permitindo que certas práticas sociais tradicionais continuassem a existir nas ruas16. “O exemplo das crianças brincando na rua chega a ser uma visão emblemática da poética da rua ideal. A rua é o primeiro contato externo com o mundo fora da família, onde as crianças aprendem com as mudanças das estaço~es, com a mudança das brincadeiras e aprendem sobre o cotidiano com o ciclo das horas das atividades comerciais - de um dia a um ano, a vivência na rua apresenta a escala de tempo para o pequeno aprendiz, de como a vida cotidiana acontece e se modifica - a rotina estabelecida pela natureza, dia e noite, inverno e verão. A vida na rua como a primeira escola, o primeiro aprendizado fora do núcleo familiar.” (AMORIM, 2008)

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LABIRINTO A geração seguinte, liderada pelo holandês Jacob Bakema e composta pelos britânicos Alison e Peter Smithson, pelos franceses Georges Candilis, Alexis Josic e Sadrach Woods, pelo italiano Giancarlo De Carlo, pelo holandês Aldo Van Eyck declara que “A ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa com frequencia o redesenvolvimento espaçoso.” O impulso crítico em encontrar uma relação mais precisa entre a forma física e a necessidade sociopsicológica tornou-se tema do CIAM X, realizado em Dubrovnick, em 1956 - o último encontro dos CIAM - organizado pelo então grupo de arquitetos do chamado Team X. O CIAM X foi marcado por uma clara violência nas discussões. Embates ideológicos e pessoais entre gerações bem distintas constatavam a fragmentação e descentralização dos grupos. Em 1961, ao escrever ao editor Karl Krämer, Le Corbusier se diz “feliz” com que “cada geração ocupe seu lugar no devido tempo”. Porém, ao enviar cópia da carta as outros colegas, rabisca nela uma caricatura de um jovem brandindo a bandeira da “verdade” e pisoteando as “bobagens” que teriam resultado dos “trinta anos de trabalho” da velha geração de “chatos”. E comenta: “Montam sobre os [nossos] ombros, mas não dizem obrigado.” A extinção oficial dos Congressos e a sucessão do Team X foram confirmadas em um novo encontro realizado em 1959, no Museu de Otterlo, de Van de Velde, sob a presença do velho mestre. Em carta dirigida ao CIAM de Dubrovnick, Le Corbusier afirma: “São aqueles que hoje têm quarenta anos de idade, nascidos por volta de 1916 durante guerras e revoluço~es , e os que nessa época nem haviam nascido, e estão hoje com vinte e cinco anos, os que nasceram por volta de 1930, durante os preparativos para uma nova guerra e em meio a uma profunda crise econômica, social e política, e que, portanto, se situam no âmago do período presente, são esses os únicos indivíduos capazes de sentir, pessoal e profundamente, os problemas concretos, os objetivos a ser seguidos e os meios

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Carta de Le Corbusier ao editor Karl Krämer (1961): “Montam sobre os [nossos] ombros, mas não dizem obrigado”

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LABIRINTO para alcançá-los, e a patética urgência da situação atual. São eles os que sabem. Seus antecessores foram excluídos, ficaram de fora, não estão mais sujeitos ao impacto imediato da situação.” (LE CORBUSIER, 1956. Apud: FRAMPTON, 2008)

O jovem casal Smithson não foi o único a fazer a crítica ao pensamento moderno, a partir do uso da cidade pelas crianças. Três anos após a exposição da grille Urban Reidentification do jovem casal Smithson, o holandês Aldo van Eyck começou a aprofundar a ideia do brincar enquanto ato criativo, capaz de invocar a atitude espontânea, improvisada e curiosa da criança: uma forma de sociabilização fundamental para a vida urbana. Mas a relação da criança com a brincadeira é também marcada por um grande descomprometimento, por estar sempre preparada para começar de novo, recriar toda a situação. É este princípio fundamental do jogo (o começar de novo) que vive a potencia da criação, e é na criança que o homem contemporâneo se revê. “O funcionalismo matou a criatividade”, declarou em um artigo publicado na revista holandesa Forum17.

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A revista Fórum foi fundada em 1946 e, entre 1959 e 1963, Bakema e Van Eick nela colaboram. Acompanhava as discusso~es dos CIAM a partir das atividades das delegaço~es holandesas De 8 e Opbouw.

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Aldo van Eyck também realizou estudos etnológicos, principalmente nos Dogons e Pueblos, e sempre se interessou pela chamada arquitetura vernácula ou popular. Inspirado nos seus estudos da arquitetura vernácula dos Dogons, van Eyck desenvolveu uma ideia de claridade labiríntica em seus escritos e projetos. 18

Essa interação entre público e privado também foi questionada por Aldo van Eyck em seu projeto para o Orfanato Municipal de Amsterdam. Organizado em torno de uma sequência não hierárquica, interligando os espaços com um telhado de conexão feita de cúpulas, e contendo pequenas “ruas” e “praças”, espaços intermediários, onde as crianças pudessem se conhecer e interagir. Van Eyck descreveu a importância destes espaços em facilitar a transição entre a realidade exterior e a de dentro, e ajudando “a mitigar a ansiedade que faz a transição abrupta, especialmente nessas crianças.” 19

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LABIRINTO Na primeira edição da Forum, em 1959, a equipe publicou um famoso manifesto baseado nas ideias do Team X, criticando a arquitetura fria do Funcionalismo do pós-guerra. Propuseram substituí-la por uma arquitetura baseada na interação e escala humana. Van Eyck18, como seus amigos Peter e Alison Smithson, era fascinado pela relação entre a criança e a cidade do pós-guerra. Ele entrou para o Departamento de Desenvolvimento de Obras Públicas da Cidade de Amsterdã em 1947, e nas décadas que se seguiram ele projetou mais de setecentos playgrounds para a cidade. Estes espaços dotados de imaginação, muitas vezes criados a partir de lotes abandonados, incorporando caixas de areias, paredes de escalada em metal, trampolins e pequenos torrões de concreto para coletar água da chuva em composições abstratas. Van Eyck desenhava conscientemente os equipamentos de forma mínima para estimular a imaginação de seus usuários: as crianças. O objetivo era que pudessem apropriar-se do espaço, deixando as interpretações em aberto. A escolha por terrenos baldios e lotes vagos para a construção dos playgrounds foi uma opção tática, uma vez que o Serviço de Preparação de Obras do Departamento de Desenvolvimento Urbano, em colaboração com as associações de moradores locais, estipularam que cada bairro tivesse o seu próprio playground. Van Eyck, que considerou a recreação física uma parte importante do desenvolvimento das crianças, definiu áreas para a atividade de forma livre sem ser fechado a partir da comunidade do entorno19. Um outro arquiteto importante na história do Team X, cujas inquietações sobre a responsabilidade social do arquiteto se deu através de processos participativos na arquitetura e no urbanismo foi o italiano Giancarlo de Carlo. Em 1959, durante o Congresso de Otterlo, ele se juntou ao grupo do Team X e, a partir da reunião de Royaumont (1962), a sua contribuição para o discurso do grupo iria gradualmente ganhar profunda influência.

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Congresso de Otterlo (1959): arquitetos do Team X realizam o enterro simb贸lico dos CIAM

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Dentro do Team X, as questões elaboradas por De Carlo - autor de um dos primeiros livros sobre Le Corbusier (1945) - iam à favor de uma leitura do contexto histórico e territorial das cidades, bem como as questões sociais, como a participação e a reutilização de locais e edifícios históricos. Giancarlo de Carlo foi um dos pioneiros na reflexão sobre o que hoje conhecemos como “Arquitetura Participativa”, no desenvolvimento de procedimentos de trabalho que incorporassem a participação dos usuários no processo de elaboração de projetos. Tais procedimentos para um projeto político e participativo são exemplificados no projeto de habitação operária em Vila Matteotti, em Terni (1964-1974) ou no estudo para o desenvolvimento urbano de Urbino (1958-1976), ambos na Itália. Em termos de proposição participativa, a experiência do projeto de Vila Matteotti, é um dos projetos mais significativos da obra do arquiteto. O plano do conjunto habitacional estabelece relações com o padrão cultural popular através de uma linguagem que dialogue com a expressão arquitetônica e o padrão cultural locais, influenciada pelas referências da tradição italiana. Contando com a participação de antropólogos, sociólogos e outros profissionais e, dessa forma, o acesso à arquitetura pôde ser popularizado, utilizando métodos de trabalho interdisciplinares e aprimorando o diagnóstico da situação local. Através do trabalho com o Estado, estabelecendo uma relação da obra com a realidade

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Aldo Van Eyck (1947): Playgrounds em Amsterdam

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Aldo van Eyck (1960): desenho de caixas de areia, paredes cambalhotas, parede de escalada, mesas de jogo e montanhas de escalar

O termo “antropologia do espaço” está relacionado à “Antropologia urbana”. Sobre esse assunto, ver o caderno BRINQUEDO, desta pesquisa. 20

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social e política enfrentada e a inserção da comunidade como agente no processo, de Carlo firmava sua opção profissional de realizar arquitetura como processo político. Giancarlo De Carlo foi ainda, pioneiro ao solicitar uma avaliação das arquiteturas pelos habitantes, inquietude que fundou, alguns anos depois, o nicho da antropologia do espaço20 e do urbanismo que tem como eixo a recepção das arquiteturas e a avaliação pós-ocupação. “A arquitetura de Giancarlo de Carlo pretendia ser não um resultado pronto, concebido a partir de fundamentos estéticos dados a priori, mas um processo de trabalho que levasse em consideração os sujeitos “para quem” ele estava sendo feito. Sua arquitetura buscava ser uma arquitetura de todos, e não uma obra autobiografada.” (BARONE, 2002)

A participação é um tema corriqueiro no debate atual sobre a arquitetura e o urbanismo. O processo participativo tem sido apresentado como uma forma de enfrentar a dimensão social e política dos projetos de interesse coletivo, fazendo valer a opinião e o desejo dos usuários, com o fim de garantir maior cidadania e democracia na concepção dos espaços urbanos. Não há dúvida de que todo esse empenho tenha resultado na cons-

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As crianças que lutaram para tirar os automóveis de seu bairro

Em 1972, enquanto Aldo van Eyck projetava playgrounds em seu escritório, o bairro de Pjip, na cidade de Amsterdam, passava por sérios problemas de superlotação nas habitaço~es e a invasão dos automóveis, que impedia a vida urbana. As crianças não tinham onde brincar. Estas, juntamente com os adultos vizinhos, se organizaram para protestar pelo direito de permanecer e brincar nas ruas, bloqueando as pistas para brincar. A batalha foi dura e, às vezes, violenta. O forte ativismo desses anos contra uma massiva motorização da cidade rendeu bons frutos. Hoje, no bairro De Pijp, as faixas para carros são bastante reduzidas, as calçadas foram ampliadas e se reduziu drasticamente a oferta de estacionamentos. No lugar, plantaram árvores e colocaram estacionamentos para bicicletas.


Giancarlo de Carlo (1964-1974): Vila Matteotti, em Terni

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Giancarlo de Carlo (1964-1974): Vila Matteotti, em Terni

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LABIRINTO trução de moradias de qualidade e diversidade extraordinárias, muito embora o modo como os desejos dos usuários acabaram sendo uma questão sujeita a controvérsias. Esse período da história da arquitetura e do urbanismo foram marcado por uma intensa revisão de valores. A hegemonia do movimento moderno abala-se justamente com a crítica ao modelo funcionalista. Entretanto, enquanto grande parte dos arquitetos dessa nova geração aguardavam a chegada de uma nova vanguarda de inovação tecnológica, forte o suficiente para substituir a anterior, o Team X posicionou-se na fronteira da crítica e

auto-reflexão, que desdobrou-se em diferentes posturas. Coletivamente, o grupo tensionou a responsabilidade social do arquiteto frente ao problema das grandes cidades, mas as soluções dadas aos problemas da ordem social eram procuradas no âmbito dos processos de trabalho de cada membro. Assim, se para Giancarlo de Carlo, a questão social deveria ser resolvida através da participação da comunidade nos processos de proje-

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LABIRINTO to; para os Smithson, era um compromisso ético com a criação de elementos de identidade entre a arquitetura e a comunidade; para Aldovan Eyck, através da apropriação dos elementos arquitetônicos por parte dos usuários, em um diálogo entre a obra construída e a interação das pessoas. Se na visão moderna da velha guarda, a cidade era vista como um objeto construído segundo regras padronizadas, justificadas exclusivamente pelos critérios da racionalidade e da otimização, pelos novos critérios ela deveria ser produzida “pela valorização da ótica do usuário, pela consideração dos aspectos culturais envolvidos em arquitetura, pela leitura da cidade em termo dos diferentes níveis de associação humana, pelo retorno da valorização da rua como espaço de convivência.” (BARONE, 2002). A queda da aspiração universalista fez surgir a diversidade que o Team X privilegiou e procurou preservar na sua constituição enquanto grupo.

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Luís Teixeira (1574): divisão do Brasil em 12 capitanias hereditárias + Jan Manzon (1950): primeira fotografia de uma aldeia xavante

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3 O BRASIL CRIANÇA Fomos ensinados a não gostar de passado, a viver como se não tivéssemos memória ou mesmo acreditando que ela não serve para nada. A historiografia brasileira - de trajetória retilínea - nos habituou a acreditar num país que é produto de casualidades, que, antes inabitado, nasceu pronto e que foi ocupado a partir de decisões governamentais pré-estabelecidas. “Basta pensar nas primeiras tentativas de conciliar administração e território; aquelas capitanias hereditárias, linhas paralelas feitas a esquadro sobre uma terra que nem se sabia como era nem o que continha. Mas que se queria disciplinada e sob controle, aumentando glória e riqueza dos colonizadores.” (SANTOS, 1988)

As primeiras cidades brasileiras - São Vicente de Salvador, Olinda - foram pré-concebidas; pedaços de Lisboa nos trópicos. Os funcionários que vinham fundá-las traziam orientações estritas: Casa da Câmara aqui, igreja ali, adiante fortaleza e colégio. Se já havia contradições durante o período colonial, elas só aumentaram com o uso funcional das cidades como impulsionadoras do desenvolvimento do país. O Rio de Janeiro, bom exemplo por ser modelo urbano para o país em todo o período, sofreu grandes e sucessivas intervenções. É reconstruído e embelezado por Pereira Passos para que tivéssemos uma capital que não nos envergonhasse frente aos países progressistas e civilizados. Tempos depois, foi entregue à sabedoria de ilustres europeus que vêm aqui desenvolver idéias sobre planos diretores urbanísticos e testar suas teorias. Esses laboratórios de ampliar e reorganizar cidades se justificava por muitas razões: garantia de salubridade; investimento em beleza; alívio de áreas congestionadas; compatibilização com novas atividades econômicas. Por trás de tudo, o desejo de um

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João Teixeira Albernaz, (1631): Planta da restituição da Bahia

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espaço que seja, ele mesmo, um discurso de ordem: sem misturas ou dissenso. Um lugar onde pessoas, atividades e usos devem ser bem classificados e discriminados nos devidos lugares. Ao longo do século XX, o país tem demonstrado, por inúmeros exemplos, a associação emblemática da cidade com anseios por progresso e modernização. Começa pelo Rio de Pereira Passos e atinge o clímax em Brasília. Surge a ideia de afirmar, através do urbanismo, o poder do Estado e tratar o território nacional como se fosse uma gigantesca cidade. Escreveu Carlos Nelson Ferreira dos Santos, “a capital fazendo as vezes de praça, as estradas de rua”. A resposta adequada a esse ideário foi encontrada nas proposições do international style e do urbanismo racional e funcional, comprometidos com desenvolvimento e progresso, inimigos de histórias, questões locais e tradições. O Brasil, em busca de uma identidade nacional, constrói e reproduz nacional e internacionalmente, uma imagem de si, baseada na harmonia racional, na cordialidade, nas riquezas naturais inexploradas e, sobretudo, no novo modelo de ordem e progresso.

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O BRASIL MODERNO Segundo o arquiteto Vilanova Artigas, as primeiras tentativas de Arquitetura Moderna no Brasil são uma consequência da Semana da Arte Moderna de 1922, “importado da Europa daquela época e embalado com cores brasileiras”. Mas o que pode ser considerada como arquitetura moderna, genuinamente brasileira, não é resultado de uma eclosão espontânea. “Por volta de 1930, jovens arquitetos puristas se reuniram sob a liderança de Lúcio Costa para estudar as obras dos grandes mestres europeus da nova arquitetura que nascia. Conheceram assim a obra de Gropius, ainda presente nessa época na Bauhaus, de onde Hitler em breve ia expulsá-lo. Conheceram igualmente a obra de Mies van der Rohe e sobretudo as teorias de Le Corbusier.” (PEDROSA, 1953. In XAVIER, 2003)

A inspiração doutrinária do grupo purista de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Moreira, Reidy, fundidas nas ideias de Le Corbusier, gerou entre eles um estado de espírito revolucionário, pautado nas virtudes democráticas da produção em massa, sentimento similar ao dos arquitetos da primeira fase dos CIAM. As teorias de Le Corbusier eram, para esse grupo de jovens, “o livro sagrado da arquitetura moderna brasileira”, segundo expressão do próprio Lúcio Costa. A explicação para a súbita aceitação dessas ideias - combatidas na Europa deste período - estava no clima de revolução que o Brasil vivia nos anos pós Golpe de Estado de 1930. O país passava por um momento de desequilíbrio econômico e, como consequência direta ou indireta, de revolução política. É neste período, que Lúcio Costa assume a direção da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e este é considerado um ato verdadeiramente revolucionário pelos aspirantes a modernos daquela

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Gustavo Capanema, logo no início do seu mandato, propõe ao presidente a construção de um Palácio-sede para o Ministério, cuja escolha do projeto se daria através de concurso. Concurso feito, a escolha da comissão julgadora foi a do arquiteto eclético Archimedes Memória, o que não agradou ao ministro Capanema e ao arquiteto responsável pela construção do edifício, Marcello Piacentini, que não aceitaram o resultado do concurso e propuseram, ao presidente, uma mudança: trocar o projeto de Memória pelo projeto de Lucio Costa e sua equipe: Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira. “O marco definitivo da nova arquitetura brasileira, que se haveria de revelar igualmente, apenas construído, padrão internacional e onde a doutrina e as soluço~es preconizadas por Le Corbusier tomaram corpo na sua feição monumental pela primeira vez, foi, sem dúvida, o edifício construído pelo ministro Gustavo Capanema para a sede do novo ministério. Baseado no risco original do próprio Le Corbusier para outro terreno, motivado pela consulta prévia, a meu pedido, tanto o projeto quanto a construção do atual edifício, desde o primeiro esboço até a definitiva conclusão, foram levados a cabo sem a mínima assistência do mestre, como espontânea contribuição nativa para a pública consagração dos princípios por que sempre se bateu.” (COSTA, 1951. In: XAVIER, 2008). Sobre esse assunto, ver o caderno BRINQUEDO, desta pesquisa. 21

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LABIRINTO geração. Ainda nesse clima contraditório, obras marcantes dessa nova arquitetura são produzidas no país, dentre elas, o Ministério de Educação e Saúde Pública21 (1936), no Rio de Janeiro; e o Conjunto da Pampulha (1942), em Belo Horizonte. É também nesse cenário que a ditadura se instala no país. Uma total liberdade do Estado e opressão dos cidadãos. A ditadura militar brasileira buscou em sua tendência totalitária, atrair os jovens arquitetos cujas ideias e concepções eram, entretanto, de inspiração completamente oposta. O escritor e crítico de arte Mário Pedrosa sugere que a ditadura tenha oferecido esta possibilidade, que contradizia os ideais democráticos e sociais da nova arquitetura, entre seus princípios racionais e funcionalistas e as preocupações de autopropaganda do governo, de exibição de força, o gosto do sinuoso e da riqueza para impressionar, simbolizada, talvez, pelos excessos e formas gratuitas que se tornaram uma moda da arquitetura brasileira, reconhecida mundialmente. Max Bill, um dos arquitetos europeus da segunda geração dos CIAM, combateu fortemente essa forma de fazer dos arquitetos brasileiros. Dirigindo-se a eles, escreveu: “Alguém já deveria ter dito aos brasileiros, sem papas na língua, sem medo de parecer um estraga-prazeres e de quebrar o encantamento de uma arquitetura ‘orgiasticamente livre, transbordante de vitalidade, incrivelmente fantástica’, tentativa extrema de legitimar uma poética dos arranha-céus de vidro que há tempos perdeu a batalha européia e norte-americana. Há dez anos, apontando o dedo para o famoso ministério de Educação no Rio de Janeiro, o International Style procura no Brasil a compensação para os próprios fracassos. Cada vez que se constata a crise dos cubos volumétricos, dos pilotis, das fachadas envidraçadas, dos brise-soleils, enfim, dos vários clichês lecorbusianos nos Estados Unidos, na Inglaterra, nos países escandinavos, até na França e na Suíça, ouvimos repetirem os racionalistas, e, em nome deles, seu apóstolo Siegfried Giedion: ‘mas no Brasil...’”(BILL, data não encontrada. In: XAVIER, 2008)

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LABIRINTO É durante esse momento, condicionado pela formação de uma identidade nacional da arquitetura moderna e do próprio país, somado à força exercida pelas ideias válidas a qualquer cenário, de Le Corbusier, que o debate da Cidade Funcional vem parar aqui. Os ideais contidos na Carta de Atenas são transpostos, em 1956 através da escolha do projeto de Lúcio Costa durante o concurso do Plano Piloto da nova capital do Brasil.

A CAPITAL-PRAÇA “No começo, (...) naquele mundo que se estruturava de desejos e se constituía em intensidades, a transformação da paisagem aproximava seres e diminuía distâncias impostas pela geografia e arquitetura. Todos se sentiam protagonistas da construção. Crianças, inclusive. Elas viviam imersas em dualidade violenta, que só a maturidade tornaria consciente. Havia a languidez de uma natureza devastada, tornada apenas chão, solo composto de poeira e lama. Persistia a saudade de jardins, mares, famílias e amigos deixados para trás pelos mais velhos. E sobressaía o ritmo frenético de betoneiras, com sua música diuturna impregnando-as do ideal de uma nova civilização. Na alternância entre recolhimento e excitação, impôs-se o vasto mundo artificial, exigindo ser explorado. (...) Estava tudo planejado, projetado para dar certo. Um ordenamento por quadras modulares, completas em seus limites, com tudo à mão, como as escolas classes públicas, de excelência. Estavam tão próximas das residências que dava para acompanhar o ir-e-vir dos pequenos estudantes pelas janelas. Mas as crianças foram, pouco a pouco, aumentando as áreas de domínio. Já não bastavam os canteiros de obras usados como parque de diverso~es. Brincadeiras com restos de ferro

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LABIRINTO utilizados nas fundaço~es dos edifícios foram ficando de lado. Encontrar e aproveitar pedaços de madeira retirados das construço~es para fabricar engenhos, como os carrinhos de rolimã – ideais para derrapar nas curvas das tesourinhas – não apresentava mais a mesma emoção. (...) Muitos começaram a experimentar as distâncias. (...) Habitavam, as crianças, um deserto, com seus riscos e calmaria, que as instigava a ser andarilhas. (...) O branco do mármore impunha-se com força. Contemplar apenas o desenho não bastava. Crianças tinham liberdade de escalar as estruturas de prédios destinados aos três poderes, reunidos em uma desabrigada e fria praça. A ocupação dava-se nos finais de semana, e o maior prazer era subir naquelas colunas que apenas tocavam o chão, suave exercício de desafio à gravidade. (...) Nascer e ser criado sob o signo de uma utopia coletiva deixou marcas na geração que tem a mesma faixa etária desta cidade fundada por aquele político afetivo e viril e batizada como “a capital da esperança”. (...) Os que aqui aportaram no início da década de 1960 puderam descobrir a cidade livremente. Nada de passeios organizados pelos mais velhos – até porque os equipamentos urbanos para o lazer e a cultura eram minguados. Asas e eixos simbolizavam vasto quintal. (...) Daquele projeto herdeiro das utopias modernistas sobressai dramático convite à interiorização. A monumentalidade espacial, os volumes da arquitetura escultórica, os milhares de árvores, as inúmeras espécies de pássaros, os silêncios entre as quadras aproximam, afastando, a urbe de design cartesiano da natureza, inclusive da humana.” (RAMOS, 2010)

Os conceitos racionalistas da Carta de Atenas fizeram carreira rápida por aqui, sobretudo a partir das vindas de Le Corbusier ao Brasil. Os governos passaram a adotar o modernismo pro-

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Lúcio Costa (1936): Plano Piloto de Brasília + Roberto Burle Marx e Haruyoshi Ono: crianças na Praça dos Cristais em Brasília

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Dentre as propostas apresentadas no concurso, ficaram empatados em 30 lugar as propostas de Rino Levi e a dos M.M.M. Roberto. O projeto dos irmãos Roberto, que pretendia definir e defender “os verdadeiros valores da vida humana, reduzia a cidade à escala das curtas distâncias e do convívio íntimo. Além disso, fazia clara referência ao “core”, termo escolhido pela equipe para designar o centro das unidades, cujo caráter pretendia ser o de “coração, centro vital da comunidade urbana”, numa clara menção à revisão do urbanismo moderno preconizado pela Carta de Atenas, desenvolvido durante o CIAM VIII (1951). 22

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LABIRINTO gressista como o seu estilo oficial, uma correlação óbvia com o “desenvolvimento”, proposto como programa nacional, que vai desembocar em Brasília. É providenciada a mudança da capital para o centro do país, símbolo e paradigma de uma fórmula de poder autoritário e ufanista, enfim consolidada no espaço. Incomodado com a falta de campo e interesse dos europeus principalmente os franceses - sobre seus trabalhos, Le Corbusier articulou-se, através de cartas, com intelectuais, artistas e políticos sul-americanos (no Brasil, principalmente com Cendrars e Paulo Prado) para levar suas idéias e projetos para uma série de conferências realizadas em Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro. Publicado em 1930, Précisions sur un état présent de l’architecture et de l’urbanisme (Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo) é o resultado das viagens de Le Corbusier pela América Latina e passagens pelo Brasil, em 1929 e 1936. A partir desta viagem e durante todo o período em que manteve contatos com os brasileiro, Le Corbusier alimentou o desejo de construir no país algo de “grandioso, puro e verdadeiro”, que registrasse as transformações do mundo contemporâneo. Desde 1930 ele já escreve: “são vocês, do Brasil, que podem me dar esta oportunidade.” Em carta enviada a Le Corbusier, em 1926, Cendrars fala ao arquiteto sobre a intenção do Governo Brasileiro na construção da nova capital federal do país: “PLANALTINA, numa região ainda hoje virgem! Creio que isto deva lhe interessar! Se for mesmo o caso, colocarei você em contato com quem de direito.” A imagem do Novo Mundo era, mais uma vez, descortinada como uma tela em branco, inconcluso, sempre apontando para a urgência de construção. A realização do concurso nacional de projetos para a capital federal exclui, entretanto, a possibilidade de participação de Le Corbusier no concurso. Contudo, é certamente Chandigarh (1951), a nova capital do Punjab, projeto

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Marco Zero de Brasília, aberto por tratores. O cruzamento do Eixo Rodoviário com o Eixo Monumental, o sinal da cruz do Projeto Lúcio Costa

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deste arquiteto, o modelo mais evidente para a Brasília de Lúcio Costa22. O diagrama antropomórfico da capital indiana - cabeça, corpo, braços, espinha dorsal, estômago, etc - do novo plano estava acentuado mediante rotas axiais que se cruzavam na direção do centro, virava com mais exatidão à forma da Vila Radieuse. O traçado de Chandigarh deveria ser - a pedido do governo local - moderna e eficiente, de espaços limpos e abertos, diferente das cidades indianas “aborrotadas e imundas”. A capital, que devia ser um instrumento visível do desenvolvimento econômico e social da nação, nunca foi concluída. A Cidade Funcional de Le Corbusier (com Maxwell Fry, Jane Drew e Pierre Jeanneret), cujos princípios projetuais ficaram estabelecidos em apenas quatro dias, possui, ainda hoje, partes incompletas, onde os equívocos modernos podem ser vistos. Por fim, em 1960 inaugurou-se Brasília, concretizando antigo sonho de interiorização da capital do país, agitado várias vezes desde os tempos de D. João VI. Foi assentado por Lúcio Costa, dois eixos de aproximadamente 10 km, dispostos em cruz: o monumental (retilíneo) e o rodoviário-residencial (arqueado e mais largo). Nas duas asas deste eixo, situou as quadras residenciais,

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Tia Margarida vai a Brasília

“Encontra-se em circulação, o primeiro livro para crianças, do prof. Jayme Martins, sobre a nova Capital. Destina-se este livro de história às crianças do Brasil, mostrando-lhes como os homens de fibra lutam e vencem. O professor Jayme Martins escrevendo esta obra, a primeira no gênero, sobre a mudança da Capital, prestou um grande serviço, não só à Pátria, mas a toda juventude brasileira. É assim o livro do escritor em apreço, pleno de poesia, repleto de glória, com emoçoes em cada instante e ensinamentos sobre a Nova Capital que surge em pleno sertão brasileiro, como raio de sol entre as moitas floridas, convidando o povo para a festa do progresso do Brasil gigante.” Revista “Brasília”, da Novacap, ediço~es de março de 1958 e 1959 (números 15 e 27, respectivamente)


Carta de Cedrars a Le Corbusier (1926)

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esclarecendo no “Relatório do plano-piloto de Brasília” que seriam “emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagem”. Ao criar tais superquadras, o planejador teve o objetivo explícito de garantir a sua ordenação urbanística, ao mesmo tempo oferecendo “aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer”, cuidado que o levou a estabelecer nítida separação entre o tráfego de veículos e o trânsito de pedestres. Havia ainda, as funções recreativas esportes náuticos e clubes - desempenhadas pelo lago artificial, resultante da barragem do Paranoá. No mesmo relatório se encontra a seguinte visão geral da cidade, na mente do seu idealizador: “Brasília deve ser concebida não como um simples organismo, capaz de preencher satisfatoriamente, sem esforço, as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer. (…) Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível (...). É assim que, sendo monumental, é também cômoda e eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. O tráfego de auto-

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Chandigarh (1951): jumentos na Cidade Funcional de Le Corbusier

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móveis se processa sem cruzamentos, e se restitui ao chão, na justa medida, ao pedestre.” Esse plano foi completado pela solução arquitetônica de Oscar Niemeyer, que criou, inclusive, um serviço de aprovação das plantas dos prédios urbanos a serem projetados por outros profissionais. É importante destacar ainda, o momento histórico deste período, dentro do próprio urbanismo. Desde 1953, após o CIAM IX, estes profissionais já vinham realizando uma revisão da urbanística, numa clara crítica à Carta de Atenas e à separação de funções na cidade, a partir da observação dos usos das pessoas nas ruas das cidades existentes. Esta crítica é fundamental na concretização do projeto e construção da nova capital, já em 1956, ainda seguindo os moldes da Carta. Há de se falar ainda, da experiência dos trabalhadores na construção da cidade e dos movimentos populares e lutas sociais diante da segregação entre plano piloto e as cidades-satélite. Sobre esse aspecto, escreveu Milton Santos: “Capital administrativa e canteiro de obras, essas duas realidades - a realidade planejada e a realidade condição para a primeira - vão contribuir para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo. Da maneira ideal - e

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LABIRINTO era a pretensão dos planejadores - a realidade planejada iria substituindo a realidade condição. Brasília seria cada vez mais Capital voluntariamente construída e cada vez menos um canteiro de obras. Essa evolução complementar, em sentidos contrários, poderia continuar marcando a vida da cidade, se ao longo dos dois não permanecesse um fator de complexidade mais forte: o subdesenvolvimento do país e tudo que o acompanha. (...) Os “candangos” vindos de partes diversas do país, mas, sobretudo das regio~es mais deserdadas, a princípio quase os únicos habitantes do canteiro de construção, que era Brasília, incorporaram-se, definitivamente, à vida da cidade, porque, inclusive, passaram a residir nela mesmo quando o mercado de trabalho não era favorável, pois não devemos esquecer de que o ritmo de construção da cidade não foi e não é sempre o mesmo. A essa população de trabalhadores deve Brasília muitas das suas condiço~es atuais. (SANTOS, 1965)

Posteriormente, a convite da Divisão de Educação Física do Departamento Nacional de Educação e Ministério da Educação, foi elaborado o “Plano preliminar das facilidades de recreação pública para Brasília”. Mais tarde, foi projetada as primeira instalação de recreação em uma das superquadras, que serviria como experiência-piloto de entregar a administração das atividades recreativas aos próprios moradores. Os estudos e os exames dos urbanistas, acompanhado de um roteiro, à ser seguido à risca, sobre dimensões das áreas e das respectivas instalações, propunham as seguintes facilidades materiais para a recreação na cidade: número de lotes de recreio, por quadra, por número de habitantes; localização destas áreas, junto aos jardins de infância, Escola Parque e escolas médias; parques de vizinhança, com praças e jardins (com locais para pique-nique, atividades aquáticas e jogos), tudo a ser distribuído de acordo com a topografia local, as belezas naturais, a densidade e

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LABIRINTO o tipo da população das várias zonas da cidade; local para acampamentos, piscinas naturais, colônias de férias e zonas de conservação da natureza; campo de recreação, com facilidades para a prática esportiva, junto à futura universidade; estádio municipal, o teatro ao ar livre e; facilidades para a recreação nos conjuntos residenciais, internatos, hospitais e fábricas. “Os que chegaram primeiro expandiram-se pelos terrenos vazios, reivindicando o risco da aventura. Adolescentes buscam novos perigos. Um deles é conhecer os subterrâneos da rede de fios, passeando pelos bueiros. Outro: subir nas caixas de elevadores e realizar uma viagem para lá de arriscada. Mais um: escalar até o sexto andar os prédios que têm janelas em forma de retângulos encaixados. Ou prender mangueiras de incêndio, retiradas dos prédios, nos cobogós, e nelas se balançar, como se fossem redes. Havia ainda os que jogavam peteca no teto dos edifícios (...). Mais inocentes eram os banhos clandestinos, nos finais de semana, na piscina da Escola Parque daquela que é a única superquadra completa. (RAMOS, 2010)

Ao “modo de fazer” da Carta de Atenas, essa concepção de lazer fixado no Plano de recreação para Brasília não possui qualquer dimensão conflitiva e transversal à lógica preestabelecida. O lazer/recreação aqui - como o foi na Carta -, é naturalizado enquanto complemento lógico da vida, do trabalho e sem conflitos. Isso explica a presença de extensos espaços verdes, que atuariam como uma reconciliação do homem com a natureza. Esses espaços, pobres em ambiências, em estímulos ao convívio, não refletem, como são propostos, a capacidade criativa e singular dos seus habitantes. É por isso que, mesmo com a dificuldade de se andar a pé em Brasília, o registro dos “caminhos”, marcados nos gramados verdes, encurtam distâncias e são o registro de uma vivência não-planejada. Brasília tem aproximadamente 50 milhões de metros quadrados de área gramada, são 120 metros quadrados por habitante, en-

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LABIRINTO quanto padrões internacionais estabelecem como “ótimo”, 25 metros quadrados por habitante. Os imensos gramados de Lucio Costa, de onde os “verdes de Brasília provêm”, sempre foram, do ponto de vista da administração pública, um problema criado pelo projetista da capital. A mesma técnica primitiva que desenhou as curvas no concreto da arquitetura da cidade, foi usada para o plantio e manutenção dos seus gramados, sem máquinas adaptadas pela NOVACAP e impróprias para jardins dessa magnitude. E, como forma de controlar e preservar os gramados recém plantados, o DPJ (Departamento de Parques e Jardins) instituiu, durante os primeiros anos de existência da capital, a figura dos “Graminhas”, funcionários vestidos dos pés à cabeça de verde, que rondavam o Plano-Piloto em suas Kombis, à procura de menores infratores: crianças que insistiam em enxergar naquela enormidade de grama pública campos perfeitos para campeonatos de futebol. Cumprindo ordens, esses funcionários, sempre que conseguiam capturar uma bola em meio à partida, a furavam com seus afiados canivetes. Afinal, a função primeira desse verde interminável sempre foi “monumental”, ao contrário do que imaginavam aquelas crianças. Depois de alguns anos, os “Graminhas” foram extintos na capital, mas sobreviveram no imaginário do brasiliense que viveu aquele período. “Por que deveria Brasília - cuja construção tanto está custando ao povo brasileiro e cujos arquitetos se consideram tão modernos - menosprezar as alteraço~es revolucionárias da organização social que a tecnologia está provocando? Por que deveriam estar arquitetos de inclinaço~es socialistas construir uma cidade nova para uma ordem burguesa antiquada? Em cidades mais antigas, em toda parte, o problema de preparar o povo para o lazer o oferecer-lhe oportunidades para diverso~es criativa diversificadas está sendo cuidadosamente estudado por sociólogos, higienistas e urbanistas. Entretanto, na cidade inteiramente nova de Brasília, que se supo~e esteja sendo construída para durar

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Caminhos de pedestres em BrasĂ­lia

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LABIRINTO séculos, o problema foi completamente esquecido. (...) Essa poderia ser uma das misso~es de Brasília: ser uma cidade ultramoderna, onde o lazer seria a nota dominante na atmosfera social. Seu povo teria espaço suficiente para se expressar criativamente nas artes, na religião, nos esportes e até na arte de cozinhar e comer. Em lugar disso, a abundância aparentemente extravagante de espaço em Brasília foi utilizada de maneira convencional, limitada e antiquada.” (FREYRE, 1960)

O autoritarismo militar implantado com o golpe de 1964 mudou os rumos do sonho político e social dos anos 1950. Brasília, cidade nascida na democracia, tornava-se a capital da ditadura

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LABIRINTO por imposição. A angústia desses tempos difíceis atormentou seu criador, que a defendia em seus princípios, em 1967: “Contudo, apesar desses problemas de ordem política, econômica e social - aos quais se vieram a juntar agora outros de natureza institucional -, a verdade é que Brasília existe onde há poucos anos só havia deserto e solidão; a verdade é que a cidade já é acessível dos pontos extremos do país; a verdade é que a vida brota e a atividade se articula ao longo dessas novas vias; a verdade é que seus habitantes se adaptam ao estilo novo de vida que ela enseja, e que as crianças são felizes, lembrança que lhes marcará a vida para sempre; a verdade é que mesmo aqueles que vivem em condiço~es anormais na periferia sentem-se ali melhor que dantes(...); a voerdade, finalmente, é que Brasília é verdadeiramente capital e não cidade de província uma vez que por sua escala e intenção ela já corresponde, apesar de todas as suas deficiências atuais, à grandeza e aos destinos do país”. (COSTA, 1967)

A afirmação de Lúcio Costa de que em Brasília as crianças são felizes é, ainda, uma crença do arquiteto num futuro de cidade que já desmanchava naquele período. O positivismo que não se mostra como observação real da vida na cidade é tão fruto do seu imaginário, quanto o dos pais que acostumaram-se à idéia de que até mesmo do sexto andar daqueles prédios de dimensão horizontal poderiam gritar os nomes dos filhos e serem escutadas, imaginando controlá-los. “Construir permanecia sendo o verbo predileto, quando na tenra infância, na passagem de março para abril, tanques posicionaram-se na larga Esplanada, ocupando o grande Eixo. Chegaram a uma das entrequadras (...). Crianças, sem saber do perigo, subiram nos tanques que estacionaram. Queriam conversar com os homens fardados (...). Sem saber do grave, crianças resistiram. Continuaram a brincar e a se divertir entre si, entre os blocos, entre as quadras.” (RAMOS, 2010)

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Candangos + Construção de Brasília + Cidade Livre

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LABIRINTO Essa separação de usos e funções, que influenciam de maneira direta o sistema de relações interpessoais, tende a silenciar uma dimensão que é crucial quando se trata da apropriação dos espaços públicos - o conflito. Sua existência não deve ser vista de maneira negativa, pois difícil seria imaginar qualquer processo de apropriação de um bem coletivo sem dissenços e discordâncias. Por mais que a Carta de Atenas tenha se proposto como um manual de fazer e de como o habitantes deveriam fazer uso das cidades, os espaços não vêm acompanhados de folhetos contendo instruções para rua utilização. Essas disputas e negociação dos diferentes usos e das diferenças deverá se dar na cidade. As normas num espaço público são permanentemente discutidas e renegociadas. E se em Brasília, cidade planejada por excelência, esses conflitos entre crianças e cidade existiram desde o seu canteiro de obras, como seria a aplicação das funções da Carta de Atenas numa cidade colonial, onde as ruas já nasceram enviezadas, prontas para os usos mais desviantes?

MARSELHA - ATENAS - SALVADOR A experiência de construção de Brasília representa um marco na história do urbanismo no mundo. Construída, praticamente em três anos, a partir do nada, constitui a ideia da tábula rasa proposta na Carta de Atenas. Entretanto, tal documento não chegou por aqui apenas quando se trata de uma não-preexistência urbana. Se considerarmos o caso de Salvador, por exemplo, cidade colonial, primeira capital do Brasil e que, assim como Brasília, no século XVI, surgiu de uma decisão política de ocupação do território, e ambas, cada uma a seu tempo, trouxeram inovações urbanísticas. Era pelo porto que a cidade se articulava com o mundo. Assim, Salvador foi desde o primeiro instante cosmopolita. Não se tratava de um povoado que foi crescendo. Salvador nasce, já estruturada, de um projeto de futuro que era construir o Brasil.

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EPUCS (1942-1947): Esquema RadioconcĂŞntrico da Cidade de Salvador + Pierre Verger na Bahia (1940)

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LABIRINTO Elaborado entre 1942 e 1947, o Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS), ocupa um lugar de grande importância na história urbanística da cidade. O EPUCS, elaborado no período da ditadura varguista e em plena segunda guerra mundial, é até hoje considerado como a mais importante experiência de planejamento urbano soteropolitano do século XX, em termos de sua abrangência e das teorias, concepções e desenho de cidade ali desenvolvidos. Capitaneado pelo engenheiro e urbanista Mário Leal Ferreira (1895-1947), o EPUCS congregou uma equipe multidisciplinar e trabalhou a partir de uma tradição múltipla de pensamento e de intervenção, com influências nacionais e internacionais. A partir de um modelo espacial radioconcêntrico, o seu conjunto de diretrizes guiará, efetiva ou referencialmente, o planejamento da cidade: a articulação regional, o duplo sistema de deslocamentos – o de avenidas de vale e o das cumeadas –, os aspectos sanitários e os sistemas de infraestrutura, o sistema de áreas verdes, o centro urbano e os centros cívicos, o zoneamento, a distribuição dos equipamentos de saúde e educação e habitação proletária. E foi Admar Guimarães, então membro da equipe do EPUCS e ex-professor da disciplina Organização Social das Cidades do curso de Arquitetura na Universidade Federal da Bahia, que publicou, em 1955, “A Carta de Atenas (urbanismo dos C.I.A.M.)”, uma tradução e releitura das conclusões do IV-CIAM e da versão da Carta de Atenas (do original The Town Planning Chart), publicadas no livro Can Our Cities Survive?, de J. L. Sert (1941). “E foi assim, mercê desse concurso de circunstâncias propícias, que a associação nascida cinco anos antes em La Sarraz lançou, auspiciosamente, os fundamentos da Cidade futura, humanizada pelo respeito às leis da Natureza, ao traçar as linhas mestras de sua arquitetura ideal - harmoniosa e lógica antecipação do Mundo unido e pacífico de Wendell Wilkies [‘Um Mundo Só’, trad. Brasileira do original inglês ‘One World’, 1943] entreviu e que, já agora, é a

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EPUCS (1942-1947): Gráfico com os principais circuitos de circulação, a base de tráfego e os centros cívicos da cidade

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LABIRINTO aspiração generalizada, ainda que obscura para tantos, de todos os seres humanos.” (GUIMARÃES, 1955)

Admar Guimarães, ao reinterpretar a realidade de Salvador, “à luz da Carta”, mas sem aquela visão dogmática tão cara aos modernistas ligados a Le Corbusier, acaba trazendo em sua tradução o que podem ser consideradas interpretações suas - e do Escritório - à respeito desta cidade. “As notas intercaladas, em destaque, no texto da Carta visam a esclarecer os leitores a quem este opúsculo especialmente se destina - estudantes da Universidade da Bahia. Daí, serem tais esclarecimentos, sempre que necessário, para a melhor compreensão dos conceitos ou fenômenos a que se reportam, referidos a esta Cidade do Salvador e aos trabalhos do EPUCS [Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador], - sigla por que é conhecido o escritório que teve a seu cargo, de 1943 a 1947, a preparação do Plano de Urbanismo desta capital.” (GUIMARÃES, 1955)

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Ademar Guimarães (1955): “Para que os jovens, ainda ignorantes, possam iluminar o espírito por meio deste maravilhoso estudo contemporâneo.”

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A opção por manter os comentários feitos sobre Salvador decorre da necessidade histórica de registrar como as lideranças locais, ligadas ao EPUCS absorviam e interpretavam o pensamento moderno dos CIAM neste contexto baiano, em meados do século XX. É instigante ver que, embora o texto preferido para a tradução de GUIMARÃES seja The Town Planning Chart (1942), o título adotado em português seja o de A Carta de Atenas, retomando o título consagrado pela versão francesa e o mais divulgado no Brasil e no mundo a partir dos anos 50. Acerca da interpretação dada à função recrear, destaca-se o seguinte trecho, comentado: “O programa de distribuição dessas facilidades - a natureza, a capacidade, a localização mais favorável das instalaço~es respectivas - pode variar consideravelmente, de

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Admar Guimarães define estes termos da seguinte forma: “ São as ‘avenidas’, uma série de cubículos dispostos lado a lado, em poro~es infectos, ou de casinhotos ao rez do chão, edificadas em fila, paredes meias, encostadas aos prédios vizinhos, uns e outros com as escassas aberturas que possuem, e pelas quais se podem receber ar e luz, dando para a viela ou para o pátio, de serventia comum de todo o lote. São as ‘favelas’ e ‘mucambos’, aglomerados de choças construídas a êsmo, com materiais usados de todas as procedências, ou de madeira rústica e barro, dito “de sopapo”, resultado das vulgarmente chamadas ‘invaso~es’ - ocupaço~es subreptícia, na maioria, ostensiva em alguns casos, de terrenos baldios de domínio privado ou publico, - todos eles, por igual, desprovidos de quaisquer instalaço~es ou serviços sanitários.” 23

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LABIRINTO acordo com os costumes e preferências dos diferentes povos, as percentagens de seus grupos etários, as horas de trabalho, o clima e outras circunstâncias. Sem embargo disso, é universal a necessidade, que as populaço~es urbanas têm, de tais facilidades de recreação.” (SERT, 1942)

Admar Guimarães comenta: “Essa necessidade de áreas livres, agenciadas de modo a criar o ambiente saudável e inspirador que convém às atividades físicas e mentais em que se resolve a função urbana de “cultivar o corpo e o espírito”, encontra no modelado do solo na Cidade do Salvador condiço~es singularmente propícias à satisfação de seus propósitos. A verdadeira rede de vales que sulcam as encostas do promontório sobre que ela assenta, além de facilitar sobremodo a solução de outros problemas urbanos, enseja a localização, no parque contínuo em que se devem converter as áreas planas e os primeiros aclives desses vales {vale Av. Centenário}, das instalaço~es, estruturas e sítios adequados à fruição das “horas livres” a que tem indeclinável direito o ser humano, qualquer que seja seu sexo, idade ou situação social. E, como tais vales envolvem e demarcam os setores residenciais e, em grande parte, os bairros em que estes se subdividem, os locais de recreio ou lazer ali situados constituem, em verdade, prolongamentos ou dependências desses setores e bairros, a que ficam adjacentes e, portanto, ao alcance das populaço~es que os habitam.” (GUIMARÃES, 1955)

Aliado às questões habitacionais, muitos terrenos, vistos como “áreas deficientes em estrutura e ambiência”, resultado de invasões, serão utilizados como terreno de projeto - a tábula rasa soteropolitana -, por se tratar de áreas inadequados ou inadaptáveis às finalidades ou funções novas das zonas em que estão situados. Degradadas econômica e socialmente, arruinados, irão os cortiços, as avenidas, favelas e mucambos23 que, segundo da-

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Avenidas (esquerda, acima), mucambos (esquerda, abaixo) e cortiรงos (direita) em Salvador

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LABIRINTO dos reunidos pelo EPUCS, correspondiam a cerca de 75% aos tipos de alojamentos da população local, se converter em zonas de lazer, “habitação adequada”, trabalho ou circulação.

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“Contradiço~es Urbanas” (1981): Selva de Pedra e crianças do Catumbi, montagens a partir de frames do documentário de Sérgio Peo

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Num cenário internacional, os profissionais à frente de tal debate são, em sua maioria, os jovens arquitetos que haviam se envolvido no debate acadêmico no fim dos anos 50, tais como Lucien Kroll, Ralph Erskine, Christopher Alexander, Giancarlo de Carlo, John Turner, Bernard Rudofsky, Hassan Fathy, Walter Segal, Nicolas John Habraken e Yona Friedman, entre outros. Eles não só se envolveram nas discusso~es teóricas, como tentaram projetar e construir usando alguma forma de participação, ainda que de maneiras bem distintas. 24

Brás de Pina foi uma experiênciamodelo, um marco na história das políticas habitacionais, sobretudo porque se contrapôs a uma tendência autoritária, de erradicação de favelas. Desde a década de 30 já se falava em urbanização e melhorias nas favelas, mas a maneira como foi levado adiante o projeto é que era extremamente inovador. Os seus habitantes seriam realojados em 12 mil habitaço~es edificadas em áreas periféricas. Por sua localização em área de valorização fundiária, Brás de Pina foi uma das escolhidas para a operação “bota abaixo”. Os moradores de Brás de Pina resolveram se unir e se organizaram em torno da associação de moradores e da igreja para resistir à desapropriação e relocação. 25

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AQUI SE BRINCA NA RUA “A inabilidade material das favelas é preferível à inabilidade moral da arquitetura útil e funcional. No que chamamos favelas, o homem só pode padecer fisicamente, enquanto que, na arquitetura planejada, que se pretende seja projetada para ele, ele padece moralmente (perde a alma).” (JACQUES, 2001)

Os habitantes das cidades, inseridos nessa tentativa de ordenamento urbano, tiveram de enfrentar como puderam a necessidade de inventar empregos, lugares de moradia, transporte, saneamento e opções de lazer. Os bairros - espaços formais das cidades - hoje se opõe de maneira quase intuitiva tanto ao centro da cidade como ao campo, do mesmo modo que as aglomerações supostamente instáveis chamadas de favelas, invasões ou ocupações. As ocupações, construções e consequente adensamento de aglomerados habitacionais informais, surgiram no Brasil, principalmente na década de 1950. Essas “cidades informais, campo de luta” instigaram o interesse de profissionais ligados à arquitetura, ao urbanismo e as ciências sociais nos anos 1960 e início da década de 1970, foram criadas, mundo afora, posturas incorporadas de arquitetos urbanistas à respeito desses espaços. “Aí está a verdadeira tarefa acadêmica: refazer uma área de domínio profissional, propondo novos conceitos, examinando os resultados do que antes era apresentado como verdade.” (SANTOS, 1965). Dizia Carlos Nelson Ferreira dos Santos, arquiteto e urbanista carioca responsável por trabalhos de habitação popular de grande importância no Brasil. Foi responsável pelas ações nas favelas do Rio de Janeiro, nos anos 1960, onde se destaca a urbanização participativa24 na Favela de Brás de Pina25, pela CODESCO (Companhia de Desenvolvimento de Comunidades), sob o governo autoritário do então governador Carlos Lacerda.

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Croqui de morador (esquerda) e planta adaptada da CODESCO (direita).

O trabalho escrito é complementado por um filme homônimo, cujo roteiro é de autoria de Carlos Nelson F. dos Santos e Arno Vogel, dirigido por Maria Tereza Porciúncula de Moraes. 26

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Entretanto, é no livro “Quando a Rua vira Casa”26, que Carlos Nelson - então arquiteto, urbanista e antropólogo - propõe uma análise interdisciplinar da apropriação de espaços urbanos, através da comparação de um centro de bairro tradicional com uma área nova, inteiramente planejada de acordo com parâmetros e concepções modernas do Rio de Janeiro. Com essa finalidade foram escolhidos, respectivamente, o Catumbi e a Selva de Pedra. O Catumbi, bairro considerado de qualidades urbanísticas indesejáveis, teve a sua erradicação proposta por um plano de renovação urbana em 1964 e se valorizou ainda mais com a abertura de um túnel que o deixou próximo da área mais rica do Rio, o que fez se voltarem para ele os interesses do capital imobiliário. A Selva de Pedra surgiu, no começo da década de 1970, na área mais valorizada da cidade e ocupa o lugar de uma favela, fruto da política de remoções do Governo estadual da época. Representa, além disso, o resultado do planejamento racionalista de meios urbanos modernos. Por esse motivo se prestava perfeitamente à comparação com o Catumbi.

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LABIRINTO A metodologia do trabalho procurava aliar o conhecimento arquitetônico e urbanístico à abordagem peculiar da antropologia social. Seu problema: estudar, nos casos escolhidos – Catumbi e Selva de Pedra – o caráter próprio e diferencial do uso de espaços coletivos, quando voltado para o lazer. A partir dessa visão comparativa, são avaliados os pressupostos e as proposições das políticas de inspiração racionalista, no planejamento urbano. É por essa razão que essa análise é de interesse nesta pesquisa. E é também por considerar que, além de dois tipos principais de espaços nas cidades - o construído, fechado e, em maior ou menor grau, privatizado; e o aberto e de uso coletivo -, exista ainda um espaço “entre” estes dois pólos, que “serve para armar as representações do urbano, se estabelecem relações de apropriação diferencial”. “As manifestaço~es sócio-culturais características de um grupo (...) sempre estarão referidas a conceitos de “aberturas” dos espaços. Irão se dar em locais públicos ou naqueles que, por força de um uso especial, passarão a ser vistos “como se fossem públicos”. Jogos, reunio~es, festas, encontros, cerimônias e atividades assemelhadas que se oponham às ideias de privacidade e de intimidade, encontram na rua o seu lugar ideal. É aí que deve estar o que é de todos, de modo que, quando se dão em locais fechados, fazem-nos sofrer uma transformação. Em contrapartida, quando são levados à rua aço~es que tenham sido particular e restrito, a via pública como que ‘se fecha’.” (SANTOS, 1985)

O desenho de Carlos Nelson representa as apropriações, “preferencialmente lúdicas” do Viaduto da Linha Lilás, no Catumbi. O imenso estacionamento, apropriado pelos meninos para suas brincadeiras, possuía o desenho de um campo de futebol. As entradas e saídas dos carros eram tomadas como traves. Mesmo num ambiente de difícil acesso, de travessia das pistas arriscada, esses locais serviam para soltar balões ou empinar pipas, por estarem afastados da rede de energia elétrica.

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Carlos Nelson (1985): Mapa de referências do Catumbi LEGENDA 01. Túnel Sta Bárbara 02. Garotos soltando pipa 03. Brincadeira na árvore 04. Escadaria para Santa. Tereza 05. Ambulantes na passagem subterrânea 06. Antiga chaminé 07. Futebol no viaduto 08 .Baloeiros 09. Reunião do pessoal do Bafo de Onça 10. Túnel para a Lapa 11. Encontros 12. Formas de apropriação do estacionamento 13. “Campo de pelada” do pessoal da Frei Caneca 14. Instalaço~es da Light 15. Presídio 16. Travestis na porta de casa ocupada 17. Meninos invasores jogando bola 18. Bar-Armazém Brasil 19. Conversa na porta de D.Leonor 20. Òtica do Sílvio 21. Bar Mulambo 22. Oficina Rio-Neiva 23. Oficina do Santos 24. Operários das oficinas jogam bola 25. Bar do Garrincha 26. Bicheiros 27. Bar do Amaral 28. Igreja da Salete 29. Lava a jato 30. Feira da rua Emília Guimarães 31. Bar e Armazém São José 32. Cadeiras na Calçada 33. Quitanda em frente

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“O fato de [o viaduto] suportar uma infinidade de atividades sob seus vãos, não elide seu caráter de símbolo, de marco da tragédia que a ‘renovação urbana’ trouxe aos moradores do bairro.(...) Assim como a rua é a forma de utilizá-la, o espaço é o uso que permite. (...)Os significados que um determinado suporte material (esquina, calçada, quintal, rua) pode assumir, resultam da sua conjugação com uma atividade e mudam de acordo com ela.” (SANTOS, 1985)

Na sua análise dos usos dos espaços na favela, Carlos Nelson não acreditava na existência prévia e estanque de um conjunto de regras a um lugar. Para ele, sempre existe a possibilidade de criação e transformação em todas as maneiras pelas quais um local venha a ser, de fato, apropriado e usado. As regras de utilização do espaço estão permanentemente em construção, sempre produzida a partir das relações sociais dos habitantes.

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34. Jogo de bola 35. Jogo de sueca 36. Chácara do Chichorro 37. Garagem Presidente 38. Jogo de Raquete 39. Skate na rua 40. Venda “ambulante” na subida do morro 41. Jogo de bola no campo da Mineira 42. Capela do Cemitério 43. Garotos soltando pipa 44. Porta do Cemitério 45. Esquina das ruas do Chichorro e do Catumbi 46. Jogo de bola em frente da oficina 47. Ótica do Ítalo 48. Conjunto da Cooperativa 49. Conjunto Ferro de Engomar 50. Casa da festa de Cosme e Damião

Ao se falar de Le Corbusier, relacionado ao tema favela, é impossível não citar a ocasião da sua segunda passagem pela cidade do Rio de Janeiro, em 1936. Le Corbusier faz um filme chamado “Voyage à Rio”, onde registrou a sua subida à favela do Morro da Providência. Segue trecho das suas impresso~es, publicado em seu livro ‘Preciso~es’: ‘Quando escalamos as ‘favelas’ dos negros, morros muito altos e escarpados, onde eles dependuram suas casas de madeira e taipa, pintadas em cores vistosas, e que se agarram a esses morros como os mariscos nos enrocamentos dos portos - os negros são asseados 27

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LABIRINTO As diversas atividades empregadas nesses espaços, se apropriam deles, “conformando-os, e sendo conformadas de volta”. Uma coimbricação entre usuário e cidade, onde distinção de funções, forma e fundo, perdem totalmente o sentido. As crianças das favelas provocam muito essas contestações e nos levam a pensar muito seriamente nesse dilema. A forma como fazem uso dos seus próprios espaços de lazer no Catumbi levantavam o dilema que opõe a rua tradicional ao Condomínio fechado, que se revelava como uma formulação simplificadora das opções que a vida numa grande metrópole oferece aos que nela vivem. As práticas cotidianas não só na favela, mas também na cidade formal tem desafiado abertamente o ideário racionalista. A ideia de que se devam construir espaços próprios para cada uma das funções não parece, em geral, absurda. Entretanto, basta um olhar mais atento e sabemos que é possível convertê-las mutuamente. Basta determinados gestos ou movimentos, para se mudar de categoria e então, converter de uma função a outra. Ou mesmo, espaços podiam ser transformados em outro pelo simples modo de estar neles. Nas ruas de uma cidade, atividades oscilam o tempo todo entre lazer e trabalho, trabalho e habitação, circulação e lazer, são infinitas as possibilidades. Tais categorias não são separáveis. O estacionamento do Catumbi é um bom exemplo. Para alguns moradores significava lazer, enquanto para outros trabalho. Outros ainda o identificam como local de circulação. Na rua, essas mudanças são mais instáveis e, por isso, mais rica e mais importante. A imagem das cidades propostas por Le Corbusier27 pode ser desconstruída mentalmente, só de tentar imaginar uma cidade sem as suas ruas. Tendo a cidade como um equipamento potencial de lazer, quanto mais complexo e diversificado, tanto mais plenamente pode ser apropriado para este fim. Planejar espaços para fins de lazer não se resume a construir campos de futebol, ciclovias, ou criar áreas verdes. É cultivar um meio urbano cujas ruas permitem

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e de estatura magnífica, as negras vestem-se de morim branco, irrepreensivelmente lavado; não existem ruas ou caminhos, é tudo muito empinado, mas atalhos por onde escoam o esgoto e a água da chuva; ali ocorrem cenas da vida popular animadas por uma dignidade tão magistral que uma requintada escola de pintura encontraria, no Rio, motivos muito elevados de inspiração; o negro tem sua casa quase sempre a pique, sustentada por pilotis na parte da frente, com a porta atrás, do lado do morro; do alto das ‘favelas’ sempre se contempla o mar, as enseadas os portos, as ilhas, o oceano, as montanhas, os estuários; o negro vê tudo isso; o vento reina, útil sobre os trópicos; existe orgulho, no olhar do negro que contempla tudo isso; o olho do homem que avista horizontes vastos é mais altaneiro; tais horizontes conferem dignidade; eis aqui uma reflexão de urbanista.”

Carlos Nelson (1981): “O mito da cidade funcional onde todas as funço~es se integram como engrenagens de um mecanismo harmônico fez surgir os Condomínios Exclusivos”

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LABIRINTO jogar um “baba” entre vizinhos, andar de bicicleta, ou simplesmente passear na rua a qualquer hora. Para Carlos Nelson, “o planejar é cultivar no sentido primeiro da palavra; acompanhar o dia-a-dia, intervir dia-a-dia na escala do dia-a-dia.” O projeto e o plano são intervenções normativas e autoritárias, afinal, não há uma coisa apropriada para cada espaço, nem um espaço apropriado para cada coisa. A mistura de atividades numa rua de favela não é um acidente. O lazer se apresenta, portanto, como atividade fundamental para a socialização nos lugares que tem na rua um dos seus possíveis domínios. A favela, que não tem plano ou projeto, está em constante estado de transformação. Os arquitetos-urbanistas tradicionais lutam contra esse movimento, com a finalidade de estabelecer uma pretensa ordem formalista na cidade ou da cidade para as favelas. O projeto convencional, num desses espaços-movimento, acaba com as potencialidades do já existente, fixa formas, inibe ações imprevistas dos habitantes da cidade. “A partir do momento em que a cidade se fixa completamente, o mistério do labirinto vai progressivamente desaparecendo na monotonia dos traçados regulares. Os incertos caminhos de terra são substituídos pelo asfalto das ruas planejadas; o labirinto sobrevive, mas a experiência de percorrê-lo deixa de ser da mesma ordem.” (JACQUES, 2001)

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Favela-Bairro (1993): proposta geral de intervenção na favela Chacara Del Castilho, Rio de Janeiro

Em 1994, ao iniciar os trabalhos, a Secretaria Municipal de Moradia organizou, em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil IAB/RJ, um concurso de metodologias para intervenção em 18 favelas do Rio de Janeiro. Foram selecionadas 15 equipes, que participaram do concurso de propostas metodológicas, integrado a oficinas de profissionais com os moradores das favelas. 28

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LABIRINTO A disciplina urbanística tradicional é, em grande parte, orientada para a organização formal e racional do espaço urbano. Desta tal forma, os arquitetos passaram a intervir nas favelas impondo a sua própria estética formal, visando transformá-la em bairros. O programa de melhorias habitacionais Favela-Bairro28, da prefeitura do Rio de Janeiro nos anos de 1990, foi parte integrante da Política Habitacional do Rio de Janeiro, cujo principal objetivo foi a implantação de melhorias urbanísticas, incluindo obras de infra-estrutura urbana, acessibilidade e a criação de equipamentos urbanos, através a integração e transformação da favela como bairro da cidade. Mas porque o modelo do bairro é o modelo a ser seguido, mesmo numa realidade tão genuína como a da favela?

A experiência do labirinto está relacionada à incerteza de ser estar dentro ou fora deste. Segundo Paola Berenstein Jacques, “esta indefinição de escala é parte integrante da noção de labirinto”. É deste mesmo limite difuso ou indeterminado que Carlos Nelson trata, ao falar do espaço urbano intermediário entre exterior e interior, entre público e privado. “As favelas continuam a ir além de seus limites por meio das relaço~es que estabelecem com a cidade, às vezes culturais, coletivas, como o samba e o carnaval. Mas elas extravasam, sobretudo, por meio de elos que se estabelecem de maneira mais sutil e penetrante, de um modo mais “subterrâneo”: em relaço~es individuais, já que a maioria dos favelados trabalha nos bairros formais da cidade.” (JACQUES, 2001)

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Célula Urbana (1999): proposta geral de intervenção na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro

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LABIRINTO Essa tensão entre os limites formal-informal “pode e deve ser útil até mesmo para se atuar na própria cidade dita formal, principalmente nas áreas de contato (que na verdade são muros psicológicos que precisam ser derrubados)”. Uma outra experiência que seguiu nessa direção, por objetivar intervir não somente na favela como também no seu limite com o bairro vizinho, propondo uma ponte entre esses dois espaços, é o de intervenção na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, chamado Célula Urbana (convênio Bauhaus/Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, dirigido por Maria Lucia Peterson e Dietmar Starke). O projeto traz também a interessante ideia de criar uma célula de melhorias que poderá ser reproduzida naturalmente. Foi estruturado de acordo com as premissas de melhorar a qualidade da moradia, demolição de um mínimo de casas, re-assentamento e manutenção das famílias que ficam em melhores condições de habitabilidade, reforma e reconstrução de novos espaços públicos/privados com funções múltiplas para atividades de trabalho, cultura e lazer e criação de um “cordão umbilical” indutor da integração com a cidade.

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Carlos Nelson (1981): “qualquer baldio pode abrigar peladas�

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LABIRINTO A importância de se preservar o movimento das favelas é fundamental para a favela e para a cidade como um todo, sobretudo para os limites e fronteiras, onde os arquitetos e urbanistas tendem a encontrar sérias dificuldades de intervenção. Nesse processo, é necessário seguir não somente a estética das favelas, como respeitar o seu caráter labiríntico, fugir da lógica dos planejadores urbanistas, em geral. “A possibilidade de um espaço-movimento (...), ligado à existência de espaços que estão em movimento, em transformaço~es contínuas, em eternos deslocamentos, em suma, espaços em fuga. O espaço-movimento não seria mais ligado somente ao próprio espaço físico, mas, sobretudo, ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, o que é da ordem do vivido e, simultaneamente ao movimento do próprio espaço em transformação, o que é da ordem do vivo.” (JACQUES, 2001)

Ao falar em movimento, estando este diretamente ligado aos sujeitos da ação e, observando as imagens e relatos de Carlos Nelson, deparamos com o movimento do brincar na rua. Fluxos

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LABIRINTO naturais e espontâneos, que praticamente independem de grandes intervenções urbanas. As crianças são, sempre criadoras e participantes nesses espaços-brinquedos. Só se pode, portanto, conservar esse movimento se deixarmos que ele se movimente, sobretudo da favela para fora, para além dos seus limites. O papel do arquiteto, seria então, além do olhar respeitoso sobre esta outra escala de cidade, o da possibilidade de mediar criações. Uma mudança no modo de atuar, uma fuga dos padrões preestabelecidos, papel este de fundamental importância e de participação recíproca. E, tendo as brincadeiras como exemplo, o que se questiona é uma proposição em pequena escala, discreta e pouco visíveis, diferente do ideal tábula rasa moderno, o de preencher o vazio. “Mais do que o próprio espaço, é a temporalidade que marca a diferença. (...) Uma arquitetura sobretudo “temporalizada” seria possível a partir da valorização da temporalidade sem, necessariamente, menosprezar o espaço.” A criação de espaços inacabados que tornam possíveis diversas experiências, de acordo com a disponibilidade criativa das pessoas, sugerem usos possíveis dos espaços criados, incitam novas situações criativas. Em vez de criar um espaço para determinado programa de usos e funções fragmentadas, deve-se propor o espaço para, em seguida, deixar que sejam descobertos os usos e funções possíveis, sempre em respeito as invenções particulares do cidadão. Este outro urbanismo age como uma fuga do discurso contemporâneo da velocidade e das ruas feitas para o carro, somente. Pode nos ajudar a repensar nossas próprias definições de cidade, de urbanidade, de formas contemporâneas de vidas em sociedade. É impossível ter-se qualquer previsão (projeto) das experiências a serem vividas pelos habitantes no espaço. Como pensar, por exemplo, uma arquitetura que permita o movimento do brincar, que esteja preparada para receber esses outros usos criativos, que também são práticas labirínticas da cidade.

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LABIRINTO O LABIRINTO (legenda figurinhas)

Debate por proximidade Debate por oposição A Le Corbusier (1936): museu de crescimento ilimitado A B A B Jumentos na rua (1992): Arroz de Baixo, Miguel Calmon-Ba A B CC Cerdá (1858): projeto para a expansão de Barcelona A B D Le Corbusier (1925): recortes de jornais de Paris CD B CD E Le Corbusier (1925): a geometria como resposta aos probleE CD F mas da cidade E F D E G Le Corbusier (1925): uma curva para carros F G E F H Mão de Le Corbusier sobre o Plan Voisin para Paris (1925) G H F G H II Emiliano Espinosa (1937): desenho de ataque aéreo na Espanha G H J J. L. SERT (1942): as quatro funções da cidade IJ H IJ K Le Corbusier (1942-1948): Modulor K IJ L CIAM grille do Grupo Francês K L J K M J. L. Sert (1942) : recortes de jornais norte-Americanos L M K L N J. L. Sert: (1942): imagens aéreas de Coney Island, EUA M N L M O CIAM IX (1953): grille Urban Reidentification, de Alison e Peter N O M N P Smithson O P N O P QQ Nigel Henderson (1951): crianças brincando nos “slums” de O P R Londres QR P QR SS Aldo van Eyck (1960): “playgrounds” de Amsterdam QR STT R STU U STU V V

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L N M M O N

LABIRINTO

N P O

O QP Giancarlo de Carlo (1964-1974): Vila Matteotti, Terni P R Q Crianças tomam banho em fonte pública, Brasília QSR Juscelino Kubitschek e Lúcio Costa (1956): Avenida R TS Monumental, Brasília SU T Caminhos desviantes em Brasília TV U EPUCS: gráfico dos circuitos de circulação para Salvador U X V Carlos Nelson (1985): mapa de usos de estacionamento do V ZX Catumbi X Z Favela-Bairro (1993): favela Chacara Del Castilho, RJ Z

Célula Urbana (1999): favela do Jacarezinho, RJ

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Igor Queiroz ThaĂ­s de B. Portela Orientadora FAUFBA . TFG . 2015


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