LABIRINTO BRINQUEDO BRINCADEIRA
O uso da cidade pela criança como crítica ao ideário moderno
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Sebastião Salgado (1980): crianças brincando com ossos de animais mortos durante seca no Nordeste
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“Fazíamos teatro com as vértebras, com os trapézios, lisos e carecas, a gente limpava o que tivesse ficado de pelo e pele, dos restos alheios eram construídos brinquedos, bolotas de fibras fósseis, nossas rodas, moeda de troca, às vezes eu saía por detrás da cacimba vestido igual a um cangaceiro. Capa de couro bovino, espada de fêmur, saiote de cóccix e uma máscara natural, a minha cara borrada de carvão, gesticulava feito um demônio, assustava a todos com a minha voz de trovão saída do estômago, EM PÉ, EU, SOBRE UMA PEDRA, NO DESERTO QUE FOI A MINHA INFÂNCIA. Minha dramaturgia veio daí, hoje eu entendo, desses falescimentos construí meus personagens errantes, desgraçados mas confiantes, touros brabos, povo que se po~e ereto e ressuscitado, uma galeria teimosa de almas que moram entre a graça e a desgraça.” (FREIRE, 2013)
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BRINCADEIRA Brincar, segundo a educadora Lydia Hortélio é como “batizar” uma pipa, soltar todo o fio do carretel, é usar todo o fio da vida. A brincadeira é uma característica definidora e universal da infância, embora culturalmente variável. Não importa onde, na cidade ou no campo, no bairro ou na favela, brincar é uma característica predominante nas crianças, mas não está ausente entre os adultos. Ainda que cada cultura, cada grupo ou mesmo cada criança tenha suas brincadeiras particulares, a simples existência do fenômeno é inquestionavelmente universal. Antes de qualquer definição, é importante registrar que não só as crianças brincam. Filhotes de outras espécies, principalmente mamíferos, também o fazem. Brincar é, provavelmente, um sistema comportamental que melhora a adaptação do indivíduo nos estágios imaturos da vida, perdendo grande parte do seu significado na idade adulta. A infância é um momento de descobertas essenciais para a construção do ser humano. É nesta etapa da vida que o ser criança inicia a sua relação com o mundo. Os aprendizados nascem de experiências que são viabilizadas através do brincar, o movimento mais espontâneo que cada criança carrega naturalmente dentro de si. “Brincar estimula o imaginário infantil, e consequentemente, toda a criação que nasce do saber intrínseco e essencial presente em qualquer menino. Todas as crianças tem a capacidade de admirar-se com o mundo, até então desconhecido para a partir daí explorá-lo, e assim passar a viver em contato com o que está sendo criado e oferecido, compondo um universo cultural de saberes e fazeres apreendidos através do brincar. (Hortélio, 2012)
Em respeito aos aspectos educativos, como atividade lúdica voluntária, a brincadeira é a melhor forma da criança se comunicar, de relacionar-se com outras crianças, uma vez que brincando, a criança adquire experiência e desenvolve naturalmente o pro-
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BRINCADEIRA cesso de crescimento físico e cognitivo. Devemos compreender a brincadeira como um processo de relações, as quais se estabelecem com as outras crianças e adultos, mas também com o brinquedo e com os jogos. É fundamental oferecer às crianças, este tempo de infância. Um tempo sem pressa, de relações e conflitos saudáveis, de alegrias e muito respeito. Pensar a cidade como espaço que acolhe esta construção é fundamental na vida e movimento das crianças, não apenas para a garantia do seu futuro, mas principalmente para a vida no seu presente, para que cada menina ou menino tenha a possibilidade de entender o mundo como ele realmente se apresenta. Um mundo real, e não adocicado, infante. É preciso agregar ao conhecimento da criança todas as cores, formas, cheiros, sons e texturas que o viver oferece. Pensar o brinquedo hoje, como criação da criança, não como criação para a criança e o brincar numa perspectiva não-adulta, sob o ponto de vista da criação e não da imitação, seria talvez a garantia da plenitude da infância. É na imprevisibilidade da sua reação que a criança preserva a sua autonomia e é preciso garantir às crianças a plenitude da sua infância. A criança faz da cidade o seu próprio brinquedo. Faz o nada virar qualquer coisa e, mesmo depois da brincadeira ter chegado ao fim, ela permanece como uma criação nova, uma memória guardada em cada um. É transmitido e torna-se tradição. O espaço reservado para brincar na cidade é brinquedo do adulto para a criança, não é brincadeira criada por ela. Assim como o são todas as formas e funções dos terrenos especializados para o lazer - lugares isolados, fechados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Basta conviver um tempo com essas meninas e meninos, tentar entrar no seu mundo imaginário, e rápido compreendemos cada brincadeira tornando-se uma ferramenta criativa impor-
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BRINCADEIRA tantíssima nos ambientes da cidade. É por isso que as crianças são temidas. Uma só palavra, um único gesto delas pode fazer desmoronar qualquer reino construído à base de muito trabalho e horas de pranchetas. Os adultos sabem muito bem disso e procuram silenciá-las, domesticar seus impulsos e aplicar sobre elas sua milenar cultura e educação por meio de ameaças e uso dos castigos, fazendo-as acreditar em fantasmas e inibindo suas atitudes despojadas. Espera-se da criança que ela se transforme num bom cidadão, num bom trabalhador, numa boa pessoa, tolerante, moderada e pacífica. Espera-se que as crianças agora e no futuro colaborem para a conservação e aprimoramento desses mesmos costumes. São as crianças pobres que encarnam e escancaram o medo de crianças nas nossas cidades. Elas são vistas como potencialmente perigosas, porque são pobres, por não possuírem uma família estruturada como a burguesa, não frequentarem regularmente as escolas, por viverem em “situação de risco” (como são denominadas no “Estatuto da Criança e do Adolescente”). A criança perigosa é aquela que a sociedade não conseguiu calar e domesticar. Da mesma maneira, o conhecimento produzido pelas ciências não consegue assimilar e admirar a criança e suas surpreendentes atitudes. Prefere uniformizá-la e imobilizá-la por meio do conceito de infância, determinando quais são as condutas esperadas e adequadas, segundo uma classificação normatizadora. A criança, que é um perigo para a cidade, pode ter possíveis respostas para uma outra forma de fazer urbanismo.
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1 JOGAR BOLA OU BRINCAR DE ESCONDE-ESCONDE? Construir uma definição de brincadeira e do brincar, pode ser realizado através de discursos teóricos semelhantes. Comparo aqui o conceito de jogo e de lazer para se chegar a uma definição de brincadeira. A brincadeira é um a atividade livre, incerta, improdutiva, governada por regras e caracterizada pelo faz de conta. É uma atividade bastante consciente, mas fora da vida rotineira e não séria, que absorve a criança intensamente. Diferente do jogo, ela não se processa dentro de seus próprios limites de tempo e espaço de acordo com regras fixas e de um modo ordenado. O lazer produtivo vem na tentativa de introduzir a brincadeira para educar e desenvolver a criança, a partir do pressuposto de que brincar permite o estabelecimento de relações entre a criança, os bens culturais e a natureza, unificados pelo mundo espiritual. O brincar, nesse sentido, deixa de ser uma atividade livre e espontânea vinda da criança. Ao fazer a distinção entre jogo e brincadeira pode-se dizer que o jogo é uma brincadeira com regras e a brincadeira, um jogo sem regras. O jogo se origina do brincar ao mesmo tempo em que também pode ser o brincar. Já o lazer, consiste, portanto, numa ocupação para fins de repouso, seja através da diversão, do recreio ou do entretenimento, ou ainda para desenvolver determinada formação pessoal. É uma participação social e livre, longe das obrigações familiares ou profissionais. Em sua forma ideal, o lazer seria um instrumento de rompimento com a alienação do trabalho, através do estabelecimento de novas perspectivas de integração social, da sua capacidade crítica, criativa e transformadora e por proporcionar condições de bem-estar físico e mental do homem.
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Sobre a função LAZER na cidade, ver caderno LABIRINTO desta pesquisa.
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BRINCADEIRA O valor do lazer1 como tentativa de humanização da nossa cultura técnica insistiu nas vantagens de aproveitá-lo com atividade criadora, em lugar de mero entretenimento, pois só a criação compensa o sentimento de insatisfação, derivados da mecanização do trabalho. Tida a princípio como passatempo inofensivo, as atividades lúdicas - em especial, os jogos - começaram a ser indicadas para as crianças, ao se perceber que favorecem o seu desenvolvimento físico. Compreendida a ajuda que as brincadeiras movimentadas ao ar livre davam à saúde e ao crescimento da força, resistência e coordenação motora, viu-se também, na recreação orientada, um meio de prevenir um lado negativo das atividades infantis: as travessuras escondidas e das brincadeiras nas ruas cheias de automóveis nas cidades modernas. São dessa época as caixas de areia em praça pública, já que o surto industrial ia fazendo desaparecer os quintais, enquanto a gente ia aglomerando em volta das fábricas. O crescimento das cidades e a problemática da carência de espaços para viver, provoca também o aumento da delinquência juvenil, facilitada pelo anonimato da vida nos grandes centros. A recreação teve por isso o seu papel salvador estendidos aos adolescentes, em face da sua eficiência na prevenção de comportamentos anti-sociais entre os jovens. Dada em ambiente favorável e sob a orientação hábil, mostrou-se valiosa para substituir as formas menos desejáveis (e cada vez mais numerosas) de preencher as horas livres nos grandes centros urbanos. Entre atividades esportivas, artísticas, aulas de música e teatro, o jovem foi sendo levado a canalizar energias e desprender tanto tempo com tais ocupações, que pouco lhe sobrasse de lazer (e ânimo) para a ociosidade ou a transgressão da ordem. Essa recreação organizada, que promete benefícios, tanto em termos de desenvolvimento pessoal quanto de ajustamento ao grupo, pode ser traduzido, inclusive, em maior rendimento no trabalho. “Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos
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A diferença entre as principais línguas européias (onde spielen, to play, jouer, jugar significam tanto jogar como brincar) e a nossa nos obriga freqüentemente a escolher um ou outro destes dois, sacrificando assim à exatidão da tradução uma unidade terminológica que só naqueles idiomas seria possível. 2
Jogos Infantis, Pieter Bruegel (1560): 250 crianças brincando pelas ruas em 84 brincadeiras diferentes
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BRINCADEIRA tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto poder servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo2. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.” (HUIZINGA, 1938)
Em “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura”, Johan Huizinga define as origens do conceito de jogo, que vai acompanhar de forma paralela a evolução do homem, dos primórdios à atualidade, e presente em todas as civilizações. Poderíamos considerar o jogo como a forma primária do lazer nas cidades contemporâneas, se o considerarmos como formas de recreação e divertimento.
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O lĂşdico na cultura romana: panem et circenses
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BRINCADEIRA Na tentativa de verificar a presença do “elemento lúdico” em épocas culturalmente mais desenvolvidas e sofisticadas do que os períodos primitivos, Huizinga vai procurar determinar em que medida o espírito lúdico continua vivo em nossa época, nas diferentes partes do mundo. Para ele, por exemplo, na Idade Média, a cultura medieval era sob muitos aspectos rude e pobre e estava saturada de jogo. “Ora são jogos populares desenfreados, humor e bufoneria, ora os solenes e pomposos jogos de cavalaria, os jogos sofisticados de amor cortês etc.” Em todas as atividades relacionadas com o mundo arcaico, o fator lúdico exerce plenamente sua função, como autêntica força criadora.
Já nas culturas greco-romanas, à primeira vista, a sociedade romana parece possuir muito menos características lúdicas do que a grega. A importância do elemento lúdico na civilização romana está bem presente em sua estrutura acentuadamente ritualística, só que aqui os jogos não se revestiam da vivacidade de colorido e da brilhante imaginação que apresentam na civilização grega. O elemento lúdico impõe-se fortemente, mas não desempenha mais a sua função orgânica na estrutura da sociedade. Os grandes e sangrentos jogos romanos eram uma sobrevivência do fator
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BRINCADEIRA lúdico arcaico sob uma forma despotencializada: circos e anfiteatros para jogos bárbaros e sanguinários. O exemplo mais claro da presença do elemento lúdico na sociedade romana é o grito por panem et circenses (pão e circo). “Quanto mais nos aproximamos de nossa época, mais difícil se torna determinar objetivamente o valor de nossos impulsos culturais. Surge um número crescente de dúvidas quanto ao caráter lúdico ou sério de nossas ocupaço~es, e com essas dúvidas aparece uma incômoda sensação de hipocrisia, como se a única coisa de que pudéssemos ter certeza fosse o ‘faz de conta’.” (HUIZINGA, 1938)
Parece haver pouco lugar para o jogo no século XIX. Já no século XVIII o utilitarismo e o ideal burguês do bem-estar social haviam deixado uma forte marca na sociedade. Estas tendências foram exacerbadas pela revolução industrial e suas conquistas no domínio da tecnologia. O trabalho e a produção passaram a ser o ideal da época. Assim, as dominantes da civilização passaram a ser a consciência social, as aspirações educacionais e o critério científico. Segundo Huizinga, “o autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde ele parece ainda estar presente trata-se de um falso jogo, de modo tal que se toma cada vez mais difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não-jogo.” Huizinga define jogo como: “uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana.” No caso do brincar/jogar, este é um conceito com contornos imprecisos, que apresentam diferentes significados no 25
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BRINCADEIRA interior de uma mesma origem semântica. O termo brincar não possui equivalentes nas principais línguas européias: os verbos spielen (alemão), to play (inglês), jouer (francês) e jugar (espanhol) significam tanto brincar quanto jogar e são utilizados também para definir outras atividades, como a interpretação teatral ou musical. O termo brincar, do português - oriundo do latim vinculum, que significa laço, união -, possui uma especificidade que as palavras de outras línguas não apresentam. No dicionário Aurélio, o termo brincar é definido como “divertir-se infinitamente, entreter-se em jogos de crianças, recrear-se, distrair-se”. O lúdico, do latim ludus, que remete às brincadeiras, aos jogos de regras, a competições, recreações, representações teatrais, litúrgicas e aos jogos de azar, também não é brincadeira. Ludi, uma variação do ludus, significou o jogo público, termo latino que, ao passar por transformações nas linguas românicas, deu origem a “iocus, iocari”, assumindo o significado de diversão. A noção do brincar tem sido construída no uso cotidiano. A dificuldade está em definir as situações e comportamentos como sendo brincadeira ou jogo para cada indivíduo e no interior de grupos sociais. Em geral os conceitos de brincar e jogar acabam sendo utilizados como sinônimos, apesar de o jogo diferir do brincar em alguns aspectos. Enquanto brincar aparenta ser mais livre e possuir um fim em si mesmo, o jogo possui regras e pode ser utilizado como meio para chegar-se a um fim. O conceito de jogo para Huizinga se aproxima da brincadeira, ao afirmar que aquele “é livre, ele próprio é liberdade. (...) Jamais é imposto por uma necessidade física ou pelo dever moral, nunca constitui uma tarefa ou uma obrigação. E é, sobretudo voluntário e, quando sujeito a ordens, deixa de ser jogo”. Para ele, a noção de liberdade 27
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BRINCADEIRA do jogar está ligada à ideia de que o jogo não é vida “real”, trata-se de um recorte temporário da realidade, tendo uma finalidade autônoma e que se realiza em função de uma satisfação que consiste exclusivamente na sua realização. O ato de jogar situa-se como intervalo na vida quotidiana, não estando ligado a quaisquer interesses materiais imediatos ou a necessidades biológicas, como no lazer. Huizinga o caracteriza, ainda, como uma atividade não-séria, capaz de absorver inteiramente o jogador. Neste sentido, o jogo se aproxima do brincar enquanto gesto da criança, se verificarmos que a brincadeira se baseia numa certa manipulação de imagens, numa “imaginação” da realidade: uma constante transformação e criação destas imagens. No papel que assume enquanto brinca, a criança transforma suas ações e a atitude diante da realidade. O caráter de liberdade se expressa no fato de que a criança escolhe o tema com o qual brinca. O seu desejo individual é a característica principal desta atividade. Essa peculiaridade da forma como a criança se coloca na brincadeira lhe confere um caráter de atividade autônoma. “Quarta característica [do jogo]: ele cria ordem e é ordem. (...) Exige um ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. É talvez devido a esta afinidade profunda entre a ordem e o jogo que este parece estar então larga medida ligado ao domínio da estética.” (Huizinga, 1938)
Ainda sobre a idea de ordem, as regras determinam o que “vale” ou não dentro do jogo; não permitem discussão ou ceticismo. Quem quebra as regras é visto pelos demais jogadores como um “desmancha-prazeres”, alguém que está 29
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BRINCADEIRA mostrando aos demais como é tênue a linha que separa a realidade do jogo do “mundo real”. Se nos referimos à brincadeira da criança – em especial, na cidade – “quebrar a regra do jogo” é o próprio ato criativo. No interior de uma brincadeira, esse sistema de regras é passível de transformação, quando há liberdade de negociação destas regras, que deverá ser aceita em comum acordo por todos aqueles que brincam. Nessa perspectiva, a brincadeira torna-se um espaço de decisão, não existe brincadeira se ela não for totalmente livre para fornecer àqueles que brincam a possibilidade de escolher por sua participação ou não desta. O mesmo comportamento ordenador do jogo é também possível de ser observado quando os adultos ordenam e regulam as atividades lúdicas das crianças, da mesma forma que se impõem na construção dos seus brinquedos. “Aprender brincando” na lógica escolar, na maioria dos casos, não é o imaginário criativo que importa, mas a realidade do resultado que domina o processo. Este percurso deveria, portanto, ser alterado, focalizando a atenção não nos resultados, mas no processo. A liberdade da atividade lúdica das crianças, seja através do dos jogos, brinquedos ou brincadeiras, está em permitir que de uma forma livre, possam, segundo os seus próprios desejos, compreender o mundo real sem nunca negar seus desvios no sentido de descobrirem mundos imaginários. Neste sentido o lugar do brincar está para além de uma atividade determinada, apontando a presença da subjetividade que envolve o brincar. Tal atividade não é só uma atividade individual vinculada ao desenvolvimento infantil, mas uma prática social que se transforma a cada geração, estando 31
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Tinta Cria Quadra de Futebol
Sharjah, Emirados Árabes Unidos, 2007 Ferramentas : Dois gols, pincéis e tinta Como parte da Bienal de Sharjah, o artista Maider López pintou de vermelho as linhas de um campo de futebol em uma praça pública de Sharjah, colocando um gol em cada ponta. Devido ao fato de elementos preexistentes, como bancos e postes de luz, não terem sido alterados, a praça se tornou um estranho novo ponto para partidas de futebol. O projeto sugere um modelo de integração fácil e descontraída de diferentes atividades.
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BRINCADEIRA intimamente vinculada aos processos sociais e subjetivos. A necessidade da criança de brincar com a realidade e construir um universo particular, dando outra significação ao cotidiano e ao espaço, incorporando às suas vivências, enfatiza sua sensibilidade criadora no mundo material. Na experiência da cidade, como a criação de uma possibilidade utópica de questionamento da realidade existente, ou o desejo de construir o seu próprio mundo, um mundo melhor, por intermédio da brincadeira, a brincadeira pode ser compreendida como uma experiência estética. E mesmo depois de o jogo e da brincadeira terem chegado ao fim, eles permanecem como uma criação nova do espírito, algo a ser conservado pela memória. É transmitido, tornase tradição.
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SLT (Sistema Lúdico de Transporte)
Arquitetos: Jana Lopes, Joana Pinheiro, Marina Teixeira e Rafael Souza A idéia do SLT surgiu em 2008, como exercício da disciplina Atelier 5, na FAUFBA. Parte do pré-suposto de que nos comunicamos com a cidade à medida que nos deslocamos nos nossos percursos cotidianos. O SLT propo~e - através do universo lúdico - transformar a maneira cega, surda e monótona, que muitas vezes nos relacionamos com a cidade, reinventando o cotidiano e criando possibilidades de expressão, novas perspectivas e percepço~es que se revelam ao nosso redor.
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Para a ciência, um “Pterogyne nitens Tul”. Para mim, um “chicotinho-queimado”
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2 RESTOS E IMAGINAÇÃO “(...) A Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e da ação das crianças. Objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhados em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade - com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento - encontre por si mesma o caminho até elas.” (BENJAMIN, 1924)
Experimentar a cidade, assim como faz a criança, desde os primeiros anos de vida, como forma de reconhecimento do mundo. Observa mais intimamente com as mãos, todo o seu desempenho, orienta-se não pela “eternidade” dos produtos, mas pelo “instante” do gesto. Assim também o fizeram artistas que enxergavam a cidade como campo de ação crítica. Um campo de criação. É “nesse mundo permeável, adornado de cores, em que a cada passo as coisas mudam de lugar, a criança é recebida como participante. A fantasia da criança desperta sonhadora em si mesma, como fenômeno primordial da infância.”
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BRINCADEIRA “‘Pôr em ordem’ significaria aniquilar uma obra repleta de castanhas espinhosas, que são as clavas medievais, papéis de estanho, uma mina de prata, blocos de madeira, os ataúdes, cactos, as árvores totêmicas e moedas de cobre, que são os escudos.” (BENJAMIN, 1928)
O espírito criativo da criança, em face da cidade, questiona justamente o ordenamento urbano proposto pelos urbanistas. Essa ordem, intimamente ligada às ideias de espetacularização das cidades e da não participação dos habitantes, era justamente a crítica que faziam os artistas da Internacional Situacionista, na Europa dos anos 1950 e, no Brasil, Hélio Oiticica numa crítica à ideia de autoria e obra de arte, com os seus Parangolés e Penetráveis, nos anos 1970. O cientificismo e sua realidade planificada, tenta pôr em cheque essa imaginação desviante, na tentativa de ordenar, catalogar e explicar o mundo. Mas, “atrás do cortinado, a própria criança transforma-se em algo ondulante e branco, converte-se em fantasma. (...) E atrás de uma porta, ela própria é a porta. (...) A mágica experiência torna-se ciência.” (BENJAMIN, 1928). Experiência e brincadeira se fundem para as crianças.
A INTERNACIONAL SITUACIONISTAS A Internacional Situacionista constituiu-se por um grupo de artistas, pensadores e ativistas liberados pelo cineasta Guy Débord nos anos 1950 que lutavam contra o espetáculo, a cultura espetacular, a não-participação, contra a passividade e a alienação da sociedade. Passou rapidamente a ter adeptos em vários países, entre eles: Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia. O grupo publicou também 12 números de um jornal homônimo, Inernationale Situacionniste (IS), entre 1958 e 1969.
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O final do século XVIII e o início do XIX presenciaram mudanças no desenvolvimento das cidades que, muito rapidamente, transitavam da cidade tradicional à metrópole em expansão permanente. Le Corbusier, um desses pensadores, propunha como resposta ao ordenamento do espaço urbano, a chamada Cidade Funcional, apresentada enquanto modelo em 1922 - a Ville Radieuse - e discutida durante Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (do francês Congrès Internationaux d’Architecture Moderne ou simplesmente CIAM) - sobretudo no IV CIAM (A Cidade Funcional), em 1933. Sobre esse assunto, ver o caderno LABIRINTO, desta pesquisa.
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BRINCADEIRA Para os seus membros, o principal antídoto contra o espetáculo seria o seu oposto, a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas é uma consequência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. A Internacional Situacionista pretendia novas propostas de apropriação da cidade por meio da participação ativa de seus habitantes, numa postura claramente provocativa e crítica ao urbanismo moderno. No contexto europeu dos anos 1950-1960, os situacionistas foram um dos primeiros grupos a criticar de forma radical o movimento moderno em arquitetura e urbanismo, principalmente seus maiores símbolos, a Carta de Atenas e o seu maior defensor, Le Corbusier . A IS pretendia novos meios de apropriação da cidade, conformando o território através da participação ativa dos seus habitantes. “A necessidade de construir rapidamente, e em grande número, cidades inteiras, necessidade provocada pela industrialização dos países subdesenvolvidos e pela aguda crise habitacional do pós-guerra, levou o urbanismo a uma posição de destaque entre os atuais problemas da cultura. (...) O urbanismo, tal como concebem os urbanistas tradicionais de hoje, reduz-se ao estudo prático da habitação e do trânsito, como problemas isolados. A total ausência de soluço~es lúdicas na organização da vida social impede que o urbanismo se mostre criativo.” (CONSTANT, 1959. In JACQUES, 2003)
A proposta urbana da Carta vinha sendo massificamente construída na Europa do pós-guerra, principalmente sob a forma de enormes conjuntos habitacionais modernistas. para os letristas (futuros situacionistas), esses conjuntos e a doutrina da Carta provocavam a passividade e a alienação da sociedade diante da vida cotidiana moderna. Desde os primeiros números da Potlatch (informativo da Internacional Letrista) de 1954, Le Corbusier3
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A deriva é uma técnica de apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação de andar sem rumo; está diretamente ligado à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo. A psicogeografia seria uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulaço~es urbanas que eram as derivas situacionistas. 4
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BRINCADEIRA passa a ser um dos maiores alvos de críticas irônicas. Enquanto, para a primeira geração dos modernos, a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade e onde prevalecia a máxima de corbusiana “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução”, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo, queriam provocar a revolução e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação. Práticas como a “deriva”, a “psicogeografia”4 e o “desvio” promoviam as perambulações ao acaso pela cidade e estimulavam as reinterpretações do espaço com base na experiência vivida. A plataforma que marcou o início das atividades da Internacional Situacionista intitulou-se “Para um urbanismo unitário”. Os situacionistas propunham a idéia de um novo tipo de urbanismo, o UU (Urbanismo Unitário) – unitário no sentido de que é contra a segregação do zooning moderno da Cidade Funcional – um urbanismo altamente participativo, feito pelos cidadãos. Para os situacionistas, devia-se “passar do conceito de circulação como suplemento do trabalho e como distribuição nas diversas zonas funcionais da cidade à circulação como prazer e como aventura.” Era preciso construir aventuras e experimentar a cidade como um território lúdico a ser utilizado pelos habitantes através de uma vida autêntica. Na base das teorias situacionistas estava a aversão ao trabalho e a suposição de uma iminente transformação do uso do tempo na sociedade: com a mudança dos sistemas de produção e do progresso da automação, ter-se-ia reduzido o tempo do trabalho a favor do tempo livre. Declararam Alberts, Armando, Constant e Oudejans na Première proclamation de la Section Hollandaise de l’I.S., Internationale Situationiste: “Os novos poderes tendem a um complexo de atividades humanas que se situa além da utilidade: os tempos disponíveis, os jogos superiores. Contrariamente ao que pensam os funcionalistas, a cultura se encontra lá onde termina o útil.” (IS nº 3, 1959)
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BRINCADEIRA Se o tempo do espairecimento se transformava cada vez mais em tempo de consumo passivo, o tempo livre tinha de ser um tempo dedicado ao jogo, não utilitarista, lúdico. A deriva urbana letrista transforma-se então em “construção de situações”, através da experimentação de comportamentos lúdico-criativos e ambientes unitários. Substituem as errâncias surrealistas por uma ideia de jogo. Jogar significa, para os situacionistas, “sair deliberadamente das regras e inventar as próprias regras, libertar a atividade criativa das constrições socioculturais, projetar ações estéticas e revolucionárias que ajam contra o controle social.” “Nossa ideia central é a construção de situaço~es, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grande componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram.” (DEBORD, 1957)
Os situacionistas tinham encontrado na deriva psicogeográfica o meio com o qual despir a cidade, mas também com o qual construir um meio lúdico de reapropriação do território: a cidade é um jogo para ser utilizado para o próprio bem-estar, um espaço para ser vivido coletivamente e onde experimentar comportamentos alternativos, onde perder o tempo útil para transformá -lo em tempo lúdico-construtivo. Cartografias subjetivas, ou mapas afetivos, chegaram a ser realizados, e um deles virou um símbolo situacionista: The Naked City, assinado por Debord em 1957. Este talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista, a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da própria ideia de urbanismo unitário. É composto por vários recortes do mapa de Paris - as unidades de ambiência e setas vermelhas que indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatórias, pois não correspondem à sua
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Debord (1957): The Naked City
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localização no mapa da cidade real, mas demonstra uma organização efetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva. The Naked City têm nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952. Neste estudo, observa que “um bairro urbano não é determinado apenas pelos fatores geográficos e econômicos mas pela representação que seus moradores e os de outros bairros têm dele”; e apresenta no mesmo livro - para mostrar “a estreiteza da Paris real onde vive cada indivíduo... geograficamente num perímetro de âmbito muito axíguo” - o traçado de todos os percursos efetuados durante um ano por uma estudante parisiense. Esses percursos formam um triângulo de dimensão reduzida, sem alternâncias, cujos três ápices são a École des Sciences Politiques, sua casa e a casa do seu professor de piano. Esses mapas, resultados de experiências na cidade, ilustravam uma nova maneira de apreender o espaço urbano. Desprezavam os parâmetros técnicos habituais do campo do urbanismo,
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Paul-Henry Chombart de Lauwe (1952): trajetos efetuados durante um ano por uma estudante parisiense
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pois estes não levavam em consideração aspectos sentimentais, psicológicos ou intuitivos, e que muitas vezes caracterizam muito mais um determinado espaço do que os simples aspectos meramente físicos, formais, toporáficos ou geográficos. A ideia da deriva e do Labirinto, nos situacionistas, estava diretamente ligada a uma valorização do jogo, do jogo urbano, da cidade como espaço de jogo. Foi a partir desses conceitos-chave que, em 1959, Constant Nieuwenhuys, pintor e escultor holandês, publicou Une autre ville pour une autre vie (Outra cidade para outra vida), onde declarava o fim da cidade moderna e anunciava os princípios e o plano da cidade de New Babylon. Constant foi fundador, juntamente com Asger Jorn, Christian Dotremont e Joseph Noiret em 1948 do Grupo Cobra - o nome é um acrônimo de Copenhagen, Bruxelas e Amsterdã, cidades de origem dos fundadores do grupo. A partir de 1957, se tornou
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Constant Nieuwenhuijs (1953‑1974): Nova Babilônia
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membro ativo da Internacional Situacionista (IS), onde deu inicio ao seu projeto utópico de cidade, a “Nova Babilônia”, trabalho onde reuniu suas ideias dentro do universo da arquitetura e do urbanismo. O projeto o levou ao desentendimento com Guy Debort e seu consequente desligamento da IS, em 1960. Constant continuou a desenvolver o projeto até 1974, quando públicou o Manifesto “New Babylon”. A criação de um projeto de uma “cidade situacionista” foi motivo para o rompimento de Constant com os Situacionistas, afinal, uma tradução formal de algo imprevisível como a construção coletiva, foi considerada uma atitude contraditória. Nova Babilônia foi o resultado da tentativa de Constant de traduzir em projeto a teoria do Urbanismo Unitário. São plantas, desenhos, fotomontagens, croquis, pinturas, fotografias e maquetes mostrando uma cidade cuja característica principal seria sua transformação constante. Tudo seria temporário, inconstante e espontâneo (como um jogo) contra a racionalidade e automatização das concepções modernas. “Nova Babilônia não é um projeto de urbanismo. Também não é uma obra de arte no sentido tradicional do termo, nem um exemplo de estrutura arquitetônica. Pode-se apreendê-la na forma atual, como uma proposta, uma tentativa de materializar a teoria do Urbanismo Unitário, para se obter um jogo criativo com um ambiente imaginário, que está aí para substituir o ambiente insuficiente, pouco satisfatório, da vida atual. A cidade moderna está morta, vítima da utilidade. Nova Babilônia é um projeto de cidade onde se pode viver. E viver quer dizer criar.” (Constant, 1960. In. CARERI, 2013)
Segundo Francesco Careri, “O grande jogo do porvir”, de Constant, que buscava a “exploração da técnica e sua utilização para fins lúdicos superiores” seria um jogo do tipo detetive em busca dessas situações lúdicas já existentes nas cidades, uma busca da cidade nômade escondida dentro da cidade sedentária, (...) um
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BRINCADEIRA jogo de esconde-esconde, em que os jogadores caminhantes buscariam o próprio princípio do jogo na cidade e o descobririam principalmente nas diferentes apropriações e nos usos diversos desses “vazios plenos” urbanos feitos pelos neobabilônios. Os jogadores desse grande jogo urbano caminhatório do homo ludens, resiste e sobrevive em todos os espaços de indeterminação das nossas cidades. A proposta da Nova Babilônia era de uma cidade lúdica, uma obra coletiva edificada pela criatividade arquitetônica de uma nova sociedade errante, de uma população que constrói e reconstrói infinitamente o seu próprio labirinto numa nova paisagem artificial; uma megaestrutura que iria se desenvolver sobre as cidades existentes e que se ligaria em rede até envolver todo o planeta. Seria não um modelo de projeto, já que depende do que os moradores fariam dela, mas, segundo Constant “um modelo de reflexão e de jogo”. Entretanto, para os situacionistas, projetar uma cidade nômade pareceu ser uma contradição em termos. O caminhante, através das caminhadas, da experiência desses espaços feita pelos pés, descobre a tão sonhada Nova Babilônia, a dita cidade nômade ou cidade situacionista, inspirada pelos ciganos de Alba (Itália) - os primeiros neobabilônios - e projetada por Constant para o homo ludens de Huizinga, não só não poderia ser projetada por um arquiteto urbanista ou por qualquer planejador, como bem sabia Debord, mas que ela já existe, sempre existiu, em nossas cidades. Segundo Careri, a partir dessa tensão da coexistência e, sobretudo, dos diferentes usos que os habitantes criam nas cidades, “a Nova Babilônia sobrevive, resiste e insiste nos desvios das cidades contemporâneas”.
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A CIDADE COMO ESPAÇO DE JOGO A deriva e o labirinto situacionistas estavam diretamente ligados a uma ideia da cidade como espaço de jogo. O jogo tem, por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento é possível a “vida quotidiana” reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior ou devido a uma quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do jogo, a uma desilusão, um desencanto. Ele situa-se fora da sensatez da vida prática, nada tem a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade. Os situacionistas se especializaram no na exploração do jogo e do lazer propunham que todo elemento estático e inalterável deveria ser evitado, e que o caráter variável ou móvel dos elementos arquitetônicos seria condição para um diálogo flexível com os acontecimentos que neles serão vividos. “Conscientes de que os lazeres futuros e as novas situaço~es que começamos a construir devem mudar profundamente a ideia de função que está na base de um estudo urbanista, podemos desde já ampliar nosso conhecimento do problema da experimentação de certos fenômenos ligados à ambiência urbana: a animação de uma rua, o efeito psicológico de várias superfícies e construço~es, a mudança rápida do aspecto de um espaço por meio de elementos efêmeros, a rapidez com que a ambiência dos lugares muda, e as variaço~es possíveis na ambiência geral de vários bairros. (CONSTANT, 1959 . In JACQUES, 2003)
A proposta de um Urbanismo Unitário vai contra a fixação das pessoas na cidade. Ele é a base de uma civilização 61
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BRINCADEIRA dos lazeres e do jogo. Os situacionistas advertiam que no sistema econômico capitalista, a técnica era utilizada para multiplicar os “pseudojogos da passividade, ao passo que as novas formas de participação lúdica que também se tornaram possíveis passaram a ser regulamentadas na cidade. O lazer seria o tempo livre para o prazer, poderia tornar-se ativo e criativo através da participação popular. “O UU vê o meio urbano como terreno de jogo do qual se participa. O urbanismo unitário não está idealmente separado do atual terreno das cidades. É formado a partir da experiência deste terreno e a partir das construço~es existentes. Deve tanto explorar os cenários atuais, pela afirmação de um espaço urbano lúdico tal como a deriva o reconhece, quanto construir outros, totalmente inéditos. Essa interpretação (uso da cidade atual, construção da cidade futura) implica o manejo do desvio arquitetônico. O urbanismo unitário não aceita fixação das cidades no tempo.” (IS no 3, 1950. In: JACQUES, 2003)
Os situacionistas sempre disseram que “o Urbanismo Unitário não é uma doutrina do urbanismo mas uma crítica ao urbanismo” (IS nº3, 1959) Raoul Vaneigem, em seu texto “Comentários contra o Urbanismo” (IS nº 6, 1961) faz críticas severas ao urbanismo moderno: “Se o planejador não pode conhecer as motivaço~es comportamentais daqueles a quem vai proporcionar moradia nas melhores condiço~es de equilíbrio nervoso (...) o urbanismo basta para manter a ordem estabelecida sem recorrer à indelicadeza das metralhadoras.” (IS no 6, 1961)
Segundo ele, o urbanismo planejado, como planejamento da felicidade, seria o supra-sumo do espetáculo. Ainda sobre essa ideia de prospecção do planejamento urbano, 63
“Superfícies máximas e normais de trabalho no plano horizontal”
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BRINCADEIRA afirma: “Relações- públicas, o urbanismo ideal é a projeção, no espaço, da hierarquia social sem conflitos. Estradas, gramados, flores naturais e florestas artificiais lubrificam as engrenagens da sujeição e a tornam amável.” Logo, para Vaneigem, os cemitérios seriam, dentro da cidade, as zonas verdes mais naturais que existem, as únicas que se integram harmoniosamente no âmbito das cidades futuras.
Segundo ele, o urbanismo planejado, como planejamento da felicidade, seria o supra-sumo do espetáculo. Ainda sobre essa ideia de prospecção do planejamento urbano, afirma: “Relações- públicas, o urbanismo ideal é a projeção, no espaço, da hierarquia social sem conflitos. Estradas, gramados, flores naturais e florestas artificiais lubrificam as engrenagens da sujeição e a tornam amável.” Logo, para Vaneigem, os cemitérios seriam, dentro da cidade, as zonas verdes mais naturais que existem, as únicas que se integram harmoniosamente no âmbito das cidades futuras. 65
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BRINCADEIRA “A palavra construir vai a pique, na frota em que as outras palavras possíveis flutuam. (...) A anarquia da construção individual foi consagrada oficialmente e assumida pelos organismos competentes do poder, de tal modo que o instinto de construção foi extirpado como um vício e sobrevive apenas nas crianças, nos primitivos (irresponsáveis, segundo a terminologia administrativa). E em todos os que, já que não podem mudar de vida, passam o tempo a demolir e a reconstruir seu barraco.” (VANEIGEM, 1961. In: JACQUES, 2013)
Para os situacionistas, construir a vida e construir a cidade se confundem no único plano da verdade que existe: na prática. Os urbanistas do século XX, diziam eles, “terão de construir aventuras.” (IS nº 3, 1959) Desta forma, ainda hoje, os procedimentos e práticas urbanas situacionistas podem e devem ser consideradas como um pensamento singular e inovador, que poderia inspirar novas experiências de apreensão e apropriação do espaço urbano.
NO CAMPO DO URBANISMO Nosso conceito de urbanismo não se limita à construção e suas funções, mas também ao uso que delas se faz ou se imagina fazer. É claro que esse uso terá de mudar com as condições sociais que o permitem; por isso nossa concepção de urbanismo é sobretudo dinâmica. (CONSTANT, 1959. In JACQUES, 2003) A crítica urbana situacionista ocorreu no mesmo momento em que uma crítica ao excesso de funcionalismo do urbanismo começava a ser esboçado dentro dos próprios CIAM (Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna) 67
O Team X foi um grupo de arquitetos, reunidos a partir 1953, durante o CIAM IX (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), desafiando a abordagem doutrinรกria do urbanismo moderno. Sobre os Congressos Internacionais e o Team X, ver caderno LABIRINTO, desta pesquisa. 5
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BRINCADEIRA por uma nova geração de arquitetos que ficou conhecida como Team X5. Esses dois grupos, entretanto, mantiveram uma diferença de postura fundamental: enquanto os situacionistas não faziam parte de nenhuma instituição e nem do campo “oficial” da arquitetura e do urbanismo, o Team X fazia parte do próprio CIAM, estava dentro da organização moderna por excelência, e os seus membros faziam projetos e construíam obras. Enquanto os situacionistas defendiam uma revolução, os arquitetos do Team X buscavam, em princípio, uma reforma, de dentro do próprio CIAM, o que resultou numa ruptura interna e levou à dissolução da organização em 1959. Dentro dos seus campos, cada qual à sua maneira, os dois grupos propunham ideias semelhantes: a ideia de colagem, a busca de identidades e individualidades e da diversidade, sobretudo das pessoas comuns e reais das ruas da cidade existentes. Propunham uma volta à pequena escala, à escala humana, e a participação dos habitantes. Existiram de fato contatos e trocas entre os situacionistas e o Team X. Os arquitetos Alison e Peter Smithson, por exemplo, fazia parte do grupo londrino, The Independent Group, grupo de debates na origem do Pop Art inglês, que tinha ligações diretas com o ICA, Institute of Contemporary Arts. A própria IS esteve ligada ao ICA durante a 4ª conferência da IS em Londres, em 1960. Aldo van Eyck, também membro do Team X, era amigo pessoal de Constant e fez parte do Grupo Cobra. Van Eyck e Constant chegaram a redigir juntos um manifesto em 1952: Voor een spatiaal colorisme (Por um colorismo espacial), apelo para uma revolução conjunta da arquitetura e da pintura. É clara, também, a influência da proposta da Nova Babilônia 69
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Aldo Van Eyck e o Grupo Cobra
Van Eyck estava intimamente associado ao Grupo Cobra, um grupo internacional que surgia na Europa, alguns anos após o término da Segunda Grande Guerra e que se inspirou em desenhos de crianças e na ideia de jogo como uma força criativa e cultural. O projeto brincalhão de Van Eyck para a instalação da primeira exposição do grupo, realizada em Amsterdam, em 1949, rompeu com técnicas de exibição convencional ao usar a perspectiva de criança na exibição de desenhos e gravuras em blocos retangulares baixos. A revista do CoBrA - Frie Kunstnere - também contou com muitas obras de arte, tanto inspirados quanto produzidos por crianças.
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BRINCADEIRA de Constant, principalmente do ponto de vista formal, nos vários grupos irônicos e utópicos do campo do urbanismo dos anos 1960, e todos aqueles que passaram a propor novas megaestruturas (base da arquitetura High Tech) e arquiteturas móveis nesse período, como o GEAM (Group d’Études d’Architecture Mobile, de Yona Fridman), o grupo inglês Archigram e Cédric Price (que também participaram do The Independent Group), o grupo francês Utopie e vários outros grupos - Metabolistas japoneses, Archizoom e Superstudio italinaos, etc. Depois do desaparecimento dos últimos grupos utópicos, a questão formal de Nova Babilônia foi a única que continuou mais fortemente presente para as novas gerações de arquitetos e urbanistas, em detrimento do próprio pensamento urbano situacionista, que constitui a sua base teórica.
HÉLIO OITICICA: “ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO” No brasil, artistas modernistas e tropicalistas também tiveram ligações e ideias semelhantes aos experimentos da Internacional Situacionista, em experiências no espaço urbano. Nesse contexto, apareceu na cena dos tropicalistas, da década de 1960, a figura do carioca Hélio Oiticica e o seu Delirium Ambulatórium. A partir de 1964, ano em que Oiticica descobriu a favela da Mangueira, no Rio de Janeiro, e iniciou seus estudos para o que, mais tarde, chamou de Parangolés - capas, tendas e estandartes, mas sobretudo capas - que, segundo Paola Berenstein Jacques (2001), incorporam literalmente as três influências da favela que Oiticica acabava de descobrir. 73
Hélio Oiticica (1965): Parangolés
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BRINCADEIRA A primeira, a idéia do corpo e do samba, uma vez que os Parangolés eram para ser vestidos, usados e, de preferência, o participante devia dançar com eles. Segunda, a influência da idéia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da Mangueira: com os Parangolés, os espectadores passavam a ser participantes da obra – e, diga-se – a idéia de participação do espectador (a mesma idéia desenvolvida pelos situacionistas como antídoto ao espetáculo) encontrou aí toda sua força. E a terceira, a influência da arquitetura das favelas, que pode ser resumida na própria idéia de abrigar, uma vez que os Parangolés abrigam efetivamente e, ao mesmo tempo, de forma mínima (como os barracos das favelas), os que com eles estão vestidos. Dessa forma, é possível entender os Parangolés de Oiticica como uma emancipação do corpo, um embate direto e imediato com o mundo, distanciado dos modelos de objetos e fazeres criados ou propostos por artistas. As experiências de Hélio Oiticica e seu envolvimento com o samba, a ginga, resulta em uma estética da existência e não do objeto/arte, o corpo não é mais um suporte da obra. Para ele, “o objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”. “Não se trata mais de impor um acervo de idéias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da “arte”, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial; dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado.” (OITICICA, 1986)
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BRINCADEIRA Os Parangolés foram mostrados ao público pela primeira vez em 1965, na exposição coletiva “Opinião 65” no MAM do Rio. Na ocasião, Oiticica,vestido com um de seus Parangolés, e acompanhado por um cortejo de amigos da escola de samba da Mangueira, também vestidos com as capas, tocando bateria, cantando e sambando, foram expulsos da galeria e proibidos de entrar no museu. A marginalidade da ginga expressada e exposta nos Parangolés estava, então, confirmada. A estética fragmentária daquelas peças não cabiam em uma sala de museu. “O inacabado se impo~e, a ordem é incompleta e mutável. É um movimento em potencial em direção à completude ou algo como a incerteza do futuro e a sugestão de inúmeras possibilidades de prolongamento. O inacabado incita à exploração, à descoberta.” (JACQUES, 2003)
Toda a obra posterior de Oiticica, que cada vez mais se confundiu com sua própria vida, seguiu buscando novas experiências corporais, mas também urbanas. Tropicália, de 1967, instalação cujos “ambientes” – espaços estruturados para a participação –, o artista (agora, “motivador”) se ofereceria à invenção livre do espectador (agora, “participador”), concedendo à arte um caráter novo, de trocas e instabilidades, em que o ato de criar não se distingue da proposição de uma atitude criadora, mas sim dotadas de significados pessoais. Em nenhuma outra obra/proposta de Hélio Oiticica, ele esteve mais diretamente informado por sua vivência nos morros do Rio de Janeiro – e, em particular, na favela da Mangueira – do que em Tropicália, estabelecendo essa imersão como norte do processo de reinvenção do seu ato criativo.
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Hélio Oiticica (1967): Tropicália
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A experiência de andar pelas “quebradas” de favelas, entre barracos e becos, articulada por meio de elementos da natureza (areia e brita, folhagens e araras vivas) e da cultura locais, integravam agora um ambiente capaz de oferecer, àqueles que o percorressem descalços, a sensação de estar “pisando a terra”, partilhando o que, segundo o depoimento de Hélio Oiticica, ele mesmo sentia ao caminhar por entre as vielas dos morros e entendia como imagem das favelas cariocas. Anos depois, Helio Oiticia identificou nesses procedimentos condensados em Tropicália, um processo de “mitificação” consciente do cotidiano do favelado. Mitificação que não se confundia, entretanto, com mera celebração do primitivo ou do precário, expondo, por meio da construção de uma imagem fragmentada de brasilidade, atritos e incoerências da vida do país. 81
Para saber mais sobre a experiĂŞncia de apreensĂŁo entre a favela e os bairros de seu entorno, ver caderno BRINQUEDO desta pesquisa. 6
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3 BORDAS, BORRO~ES E OUTRA POSSIBILIDADES CRIATIVAS A brincadeira, tomada aqui como movimento espontâneo (e subversivo) da criança na cidade, é o transbordar desse processo. Não é um fim, é a possibilidade de romper com as barreiras da cidade e do próprio campo do urbanismo, e porque não, transpor regras, subvertê-las e agir criativamente. Entendendo esta pesquisa enquanto processual, este foi, de fato, a sua etapa mais divertida. Mas como tensionar essa cidade espacialmente segregada (entre ricos e pobres, entre favela e bairro, entre formal e informal), que não nos proporciona espaços para o movimento criativo? Como fugir do novo termo da “moda”, o Urbanismo Tático - ou “Tactical Urbanism” - atrelado à empresas de design e planejamento urbano com a “missão” de tratar os problemas nas cidades contemporâneas de maneira rápida, eficaz e de execução simples, aportado e embasado em conceitos filosóficos, principalmente sobre os pensamentos de Michel de Certeau? Uma das possíveis respostas está no ato de brincar, assim como a própria ação se propõe: sem regras, sem grandes definições, apenas ir e fazer. Instigar adultos e crianças a brincarem juntos e de pés no chão, na rua. E, nesse tipo de prática, aprender com as crianças que pequenos gestos podem ser de grande potência. A partir da experiência de apreensão narrada no caderno BRINQUEDO, na qual se observou a divisão clara entre a favela do Calabar e o bairro do Jardim Apipema, diferença não tão desigal, na comparação entre o Calabar e a favela do Alto das Pombas, por exemplo, propus três dias de brincadeiras na Rua Ranulfo Oliveira6. O lugar foi escolhido como ponto estratégico de ação, escolha que se deu pelo entendimento de que aquele foi o lugar de maiores diferenças e conflitos.
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Mapa conceito da ação: o movimento da favela em direção ao bairro
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Projeto espalha cadeiras nas ruas para estimular o antigo hábito de conversar na calçada
Se você mora ou viaja frequentemente para cidades pequenas, deve conhecer o hábito que muitas pessoas têm de levar uma cadeira para a calçada e se sentar ao lado de vizinhos, para jogar conversa fora! Esse costume está diminuindo, especialmente em cidades um pouco maiores. Ruas vazias e pessoas solitárias não parece a fórmula mágica da paz, né? A marca de biscoitos Zezé – tradicional especialmente no Rio Grande do Sul – também tem suas ressalvas, por isso patrocinou a produção de um vídeo que tem por objetivo estimular a volta das cadeiras para as calçadas! Ao colocar duas cadeiras, lado a lado, em frente à divisa entre duas casas, a campanha convida os vizinhos a se sentarem e a interagirem. Transformar as calçadas, novamente, em um espaço de convivência.
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Aรงo~es do Urbanismo Tรกtico
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BRINCADEIRA É preciso destacar, sobretudo, que a proposta desse transbordar vai no sentido de tensionar esses conflitos e diferenças, nunca no de suavizá-los ou eliminá-los. De tal forma, a brincadeira, o contato direto com a criança, que dificilmente havia se dado anteriormente na etapa de apreensão, toma forma, se lança como uma projeção de uma outra possibilidade de dinâmica na cidade. Um movimento que é o existente, mas nas brechas, becos, quebradas e desvios e que deve, sim, ser estimulado estas áreas de bordas entre bairro-favela como problematização das questões urbanas.
URBANISMO TÁTICO Usado, pela primeira vez durante debates sobre a pedestrização da Times Square (NY), em 2010, o termo Urbanismo Tático (Tactical Urbanism) surge atrelado à empresas de design e planejamento urbano norte-americanas e com a “missão” de tratar os problemas nas cidades contemporâneas de maneira rápida, eficaz e de execução simples. Aportado e embasado em conceitos filosóficos, principalmente sobre os pensamentos de De Certeau sobre táticas e estratégias, onde “a tática, à diferença da estratégia, é fragmentária e oportunista, é parcial e deslocalizada” (De CERTEAU, 1994); “A tática se explica por sua diferença em relação à estratégia; na estratégia há cálculo em um contexto de relações de forças, o indivíduo se circunscreve em um lugar de poder, se situa em um lugar próprio que lhe serve como base para o manejo de suas relações com uma exterioridade distinta” (De CERTEAU, 1994), o movimento, inicialmente ligado à empresa The Street Plans Collaborative, de Miami e NY, lançou em 2011 seu primeiro manual virtual, Tactical Urbanism: Short-Term Action/Long-Term Change (Ação de Curta Duração/ Mudança de Longo Prazo), um guia de projetos táticos. O urbanista Mike Lydon, sócio da Street Plans, afirma que “a questão crucial do urbanismo tático é tratar os problemas nas cidades com ações rápidas e facilmente executáveis, que mostram
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Basurama (2015): balanços de pneus no Viaduto do Chá, durante o evento “Mês da Cultura Independente” da Prefeitura de São Paulo
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a possibilidade de mudança de longo prazo”. Nesse sentido, o primeiro Manual, Tactical Urbanism, acima das particularidades desse movimento em cada país, se amplia, gerando o Volume 2, com casos e ações novas; um terceiro manual, voltado para experiências na América Latina; e um quarto catálogo, sobre a Austrália e Nova Zelândia. Todos com termos em inglês, como “Pop-Up Urbanism”, “City Repair”, “Guerrilla Urbanism”, “D.I.Y. Urbanism”, etc., gráficos, análises e textos críticos sobre o de-
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BRINCADEIRA senvolvimento e desempenho do movimento Urbanismo Tático dentro do campo do Urbanismo e suas repercussões. No Brasil, o movimento aparece associado a Coletivos Artísticos e Arquitetônicos e, rapidamente, ganha espaços e se multiplica á medida em que seus discursos se fortalecem nos campos das Artes e da Arquitetura e Urbanismo. “Com a precariedade urbanística e todo tipo de carência social, o Brasil é um sítio privilegiado para ações diretas”, diz Luciana Norbiato, em um artigo para a revista Select - Arte e Cultura Contemporânea, de Abril de 2015. No mesmo artigo, Norbiato ressalta os Coletivos Muda, grupo carioca de designers que, desde 2011, criam murais com estética modernista, em espaços públicos, com a intenção de resgatar memórias; e o Bijari, “velho de guerra na cena tática”, que produz cartografias de resistências, mapeamentos das táticas. Outro desdobramento dos ideáis do movimento Urbanismo Tático no Brasil, foi a criação do Livro de Receitas das Ocupações do Espaço Público, do Coletivo Basurama e outros colaboradores. Um guia com recursos e dicas, de livre acesso, para que esses conhecimentos e recursos cheguem à qualquer comunidade que queira participar da “transformação” da sua cidade. Um “guia com estratégias e casos para reconhecer, ocupar e manter vivo o espaço público do mundo inteiro com recursos de baixo custo e tecnologias abertas.” (BASURAMA, 2012)
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Projeto Rua de Lazer altera trânsito aos domingos no Dique
Jornal A Tarde 22/01/2015 O tráfego de veículos será interditado na Av. Presidente Costa e Silva, via que margeia o Dique do Tororó, e na Rua da Telebahia, aos domingos, das 8h às 13h, até o mês de junho. Segundo a Superintendência de Trânsito e Transporte de Salvador (Transalvador), a interdição será para viabilizar a realização do projeto “Rua de Lazer no Dique”, da Prefeitura Municipal. Ônibus e demais veículos que circulam pelo trecho interditado, provenientes da Av. Presidente Castelo Branco, Vale de Nazaré, e Ladeira da Fonte das Pedras, com destino à Estação da Lapa, Politeama, Av. Centenário, terão como opção de tráfego seguir pelo retorno em frente à Fonte Nova, Av. Vasco da Gama, Acesso ao Bonocô, Av. Mário Leal Ferreira (Av. Bonocô), Av. Gal Graça Lessa (Vale do Ogunjá), Av. Vasco da Gama, Rótula dos Barris.
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BRINCAR NA RUA (DE PÉS DESCALÇOS) A tática só pode existir a partir da delimitação exterior, funciona dentro das fronteiras desenhadas para o “outro” e não tem maneira de se sustentar a si mesma. É, portanto, um movimento no interior do campo de visão do inimigo. Só pode existir no espaço controlado por ele e se realiza golpe a golpe, na batalha do corpo a corpo. Ao se aproveitar da ocasião, faz “partidas”, mas não tem como acumular seus benefícios, não guarda, não acumula. Assim como a estratégia se organiza a mando do poder, a tática é determinada pela ausência de poder. São ações que elaboram lugares teóricos aptos a articular e repartir as forças. Dentro da cidade, as possíveis apropriações e interferências, consistem em táticas indispensáveis à sobrevivência cotidiana, e criam, a todo tempo, inovações. Este é o meio urbano, visto enfim como paradoxo: máquina automática de produção de modernidade, mas sobretudo, suporte de desvios e subversões. Utilizando-se deste discurso, a proposta do Urbanismo Tático, muitas vezes aliadas ao próprio poder hegemônico - instituições, prefeituras, Estado - promove ações de caráter pacificador, quando na verdade, a característica essencial do espaços públicos urbanos, está no conflito e dissenso, resultado das relações espontâneas de quem faz uso dele. É dentro desse campo de brincadeira, que é o meio urbano, que pretendia esta pesquisa, provocar os habitantes da cidade. Criar uma situação, como propunham os situacionistas, uma ação fundada no desejo e balizada pela participação do usuário. Procurar no cotidiano os movimentos das crianças e “adultos brincantes”, para então provocá-los, reativá-los a memória e tensioná-los com aqueles impostos pela cultura dominante. Propunha brincar na cidade, mas de pés descalços. A proposta consistia em algumas intervenções discretas, pouco visíveis, sem
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Reimaginando de forma lúdica a esfera urbana de Madri
Com que frequência aço~es espontâneas, primitivas ou radicais são implementadas nos grandes centros urbanos? Siempre Fiesta (Sempre Festa) de Andrés Carretero e Carolina Klocker foi recentemente escolhido pela WeTraderscomo sua proposta favorita da competição Open Call Madrid, em 2014. Enxergando a cidade através dos olhos de uma criança - onde a ordem do dia é, essencialmente, brincar ou inventar algo - e usando o conceito do “movimento livre de nossos corpos no espaço” como um aspecto fundamental, Carretero e Klocker desenvolveram um esquema lúdico que propo~e preencher com areia um vazio da malha urbana de Madri - um modo de moldar o ambiente para criar “espaços confortáveis”.
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As duas primeiras brincadeiras foram divulgadas, através de um grupo restrito no Facebook. Apenas que foi “convidado” sabiam do dia e horário da ação. 7
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BRINCADEIRA construir verdadeiras “obras arquitetônicas”, sem colocar a “assinatura” formal de arquiteto urbanista. Uma “pequena obra” coletiva para incitar outras situações criativas. Um espaço inacabado e por isso a brincadeira, não o brinquedo -, que tornasse possível diversas experiências, de acordo com a disponibilidade criativa das pessoas que entram na brincadeira, numa sugestão de usos possíveis em espaços criados para outras funções específicas. Esta ação dá-se, ainda, na tentativa de algumas fugas: na não-periodicidade desses acontecimentos, como ocorre nos eventos do Urbanismo Tático, com datas e horários (para começar e terminar) muito bem definidos e pré-estabelecidos; na realização de poucas ações, pouco divulgadas7, evitando um reconhecimento para além da rua. No caminho inverso ao da transformação da favela em bairro, no sentido de “levar o urbanismo” par o Calabar, a proposta constitui-se do contrario: levar o movimento das ações que já acontecem dentro da favela, para o outro lado, o bairro. Uma provocação da necessidade de preservação do próprio movimento da favela, por meio de quase não intervenções, ou seja, de intervenções mínimas que seguissem os fluxos naturais e espontâneos da rua. “Só se pode conservar o movimento se deixarmos que ele se movimente” (JACQUES, 2001). Não se trata apenas de uma preservação, mas sobretudo uma provocação de movimento da favela para fora, para além dos seus limites, não somente o do seu próprio território. É nesse “tabuleiro urbano”, como disse Ana Clara Torres Ribeiro (In: JACQUES, 2001), que se propõe essa brincadeira, que não está pronta, não é um brinquedo do adulto para a criança, mas da própria criança para ela mesma e para a cidade. Sem regras preestabelecidas, mas criadas no caminho e no contexto, nos percursos e na interação, numa fuga ao aprisionamento dos modelos, mas que não visa, como é comum, a descoberta do “real” ou de uma “verdade”.
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BRINCADEIRA#1 Sábado, 9h - Um homem bateu em minha porta E eu a bri Senhoras e senhores Pule de um pé só Senhoras e senhores... - Ué, mas não “põe a mão no chão” primeiro? - Mas a gente tá criando! - Então continua... - ... Senhoras e senhores Pule de um pé só Senhoras e senhores Dê uma rodadinha - Não, não... eu cantava: “pule de um pé só”, depois o “põe a mão no chão”. A rodadinha é no final, pra poder ir pro “olho da rua”! - Tá, começa de novo. Mas toma cuidado quando for pro “olho da rua”, não ser atropelado! A memória está coimbricada no esquecimento. Hoje foi o primeiro dia de brincadeiras na rua Ranulfo Oliveira, que faz limites entre o Calabar e Jardim Apipema. Há uma semana chamei alguns amigos para me ajudarem na construção dessa ação. Fiz alguns passeios na Avenida Sete para comprar alguns
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BRINCADEIRA objetos... Passei dias tentando lembrar do que costumava brincar com meus primos e amigos em Miguel Calmon. Mas o que não me lembrei foi de buscar as músicas que cantamos pulando corda, nem dos movimentos dançantes do ôno-um, ôno-dois, do elástico. E quando a pedra cai na linha da amarelinha, já na primeira jogada, pode ou não pode continuar? Esquecer desdobrou-se numa ferramenta de criação. Se não lembrávamos do como, podíamos criar a partir disso. Chegamos na rua às 9h do sábado. Foram algumas tentativas de escolher o melhor lugar para começar a brincar. Seu Sílvio - o dono do bar - cedeu sua laje pra posicionar a câmera, mas nos alertou que alí era muito movimentado para brincar na rua. O entregador de gás, que conversava com ele, nos sugeriu ir para o largo, “subindo aquela rua”. - Lá é mais tranquilo e passa menos carro. Aqui, pra criança, é perigoso! Já que aquele era um lugar de carro, a nossa estratégia foi simples: tiramos o nosso carro, que ficou estacionado em frente ao bar do Seu Sílvio e, com duas vagas de garagem livres, garantimos o nosso pequeno “pedaço de rua”. Os amigos foram chegando, enquanto jogávamos amarelinha e pulávamos corda. Os brinquedos e brincadeira, sendo descobertos. - Tem uma pipa. Alguém sabe amarrar pipa? - Moço, o Sr. sabe como amarra uma pipa? - Fazer a chave? É assim, ó... Alguns gestos repetidos e cheios de prática - muito mais práticos do que os da nossa tentativa de dançar no elástico - e a pipa estava pronta para subir o céu. - Nessa rua não presta soltar pipa - gritava a moça sentada em frente ao bar. Tem um redemoinho de vento, que só faz ela girar.
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BRINCADEIRA - Se alguém segurar e o outro correr, ela sobe. E subiu. Rodando, voou até o topo da ladeira, quase foi atropelada, enquanto a moça do bar continuava gritando, indignada. Agora, sua preocupação era que a menina, que corria de costas para os carros que vinham contra a sua direção, seria atropelada. Já não dava mais para ver a menina. Só a pipa, que mesmo no desviar dos fios, foi prender numa varanda onde uma outra garota assistia a tudo. Desenrolar a pipa foi sua participação possível, mas ela já parecia feliz em fazê-lo. Subia um grupinho de pequenos capoeiristas, que param para pular corda. Um menininho de mais ou menos 7 anos assistia a tudo o que acontecia na calçada da sua casa pela grade do portão, mas “não podia sair”, dizia ele. Um outro via de longe, por detrás do carro estacionado, o jogo da amarelinha. Entrou na brincadeira, mas não sabia por onde começar. Seu pai foi ajudar, brincando um pouco, explicou cada regra e pediu que ele repetisse. E ele repetiu do seu jeito. Amanda, uma menininha de 4 anos, que acabava de chegar na casa da avó, observava um tanto espantada. Entrou na brincadeira e, não querendo saber de regra alguma descumprida, tomou a amarelinha como sua. Não queria mais parar de jogar. Parou somente pra rodar os bambolês, que logo viraram tocas de coelho saltador. Muitos adultos passavam rindo e comentando. Uma moça cantava “brincadeira de criança” com a cabeça pra fora da janela do carro que descia. - Que bonito tudo isso! - Vem brincar também, moço. - Eu via muito isso quando era criança, mas essa brincadeira aí era de menina. A essa altura, a menina que soltava pipa já tinha voltado, cansada. - Eu soltava pipa, quando era criança no Nordeste de Amaralina.
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BRINCADEIRA Mas os caras não me vendiam, por eu ser menina. Se vissem que era uma entre eles, empinando pipa na laje, cortavam a minha linha no céu. Ainda mais que eu usava a linha de costura da minha mãe. Por isso é que eu fazia os meus próprios papagaios. Isso aqui, pra mim, é muito divertido e nostálgico. Foi uma primeira experiência pequena, mas potente, que conseguiu gerar interação entre as pessoas, tanto as que vivenciavam, quanto as que observavam. Um tanto estranho a ausência quase que total de crianças na rua, por pelo menos 3 horas de brincadeiras. Ausência que não é cotidiana, como já foi observado anteriormente. Talvez um estranhamento dos moradores, diante dos ocupantes estranhos. Talvez. Mas entre adultos e crianças brincantes, a potência estava alí. Enquanto um bando de adultos tentava amarrar uma corda de balanço numa árvore alta, Sofia chegava vestida de bruxinha - era dia das bruxas - e fez a mágica acontecer: - Já que você é uma bruxinha, tem q fazer uma magia. - Vai Sofia, faz uma magia! Pensou um minuto, abriu a bolsa, tirou um microfone de brinquedo e disse: - Amarra isso na ponta da corda, pra fazer um peso. Pura magia e criação! A magia está nesse tipo de prática. Temos muito o que aprender com as crianças. Os movimentos não precisam ser grandes, bastam pequenos gestos. Precisam simplesmente acontecer do tamanho que vierem a acontecer. Ver os adultos brincando, procurando memórias, contando histórias suas e a mãe que nem via que a filha chorava, porque estava preocupada em não errar a entrada na corda. Rhuan, que nunca havia brincado na rua e era o Tarzan, em pé, escalando o balanço de pneu. Estelinha, que nunca havia chupado um geladinho, levou pra casa um pedaço de barbante, para fazer o seu próprio balanço nas plantas da mãe. Não há nada a corrigir, apenas a repetir. Ao final, os carros toma-
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BRINCADEIRA ram as nossas vagas (que já haviam passado de duas para três). Restaram os cones de proteção, com placas escritas: ATENÇÃO! CRIANÇAS E ADULTOS BRINCANDO NA RUA. Mas esse detalhe é só um registro na memória. Escrevo esse relato, ainda com os pés doendo e feliz só de ter podido brincar descalço no chão de uma rua em Salvador.
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BRINCADEIRA#2 Quinta-feira, 16h Brincar de verdade, não tem dia, nem hora determinados. A gente vai quando a mãe deixa, quando acaba a atividade da escola, quando uma outra criança bate na sua porta aos berros do “vamos brincar!”. Marcamos a segunda investida nas brincadeiras de rua na mesma semana da primeira. Éramos os adultos que batiam à porta, na espera que alguém brincasse. Chegamos às 16h, na tentativa de experimentar outros horários. Queria também brincar à noite no meio da rua, a maior das diversões, quando criança. O balanço colocado na árvore acima do morrinho havia sido arrancado; no seu lugar, apenas um pedaço de corda balançava com o vento. Desta vez, talvez pelo horário proposto, poucas pessoas me acompanharam. Três ou quatro adultos brincavam até que chegou uma jovem, moradora do Calabar. Ela tinha nos visto no dia anterior e ficou curiosa em saber o que estava acontecendo. Entre conversas, brincou consosco até a hora em que saímos de lá. Desanimados e cansados, nos permitimos sentar na calçada e conversar, como fazem as pessoas no fim da tarde, nas cidades do interior. No fundo, era um desânimo pela ausência de crianças na rua. De repente, surgiram uns 10 meninos voltando da escola. Levantamos atordoados, na tentativa de “encenar” uma brincadeira, para chamar-lhes a atenção. E nem foi necessário. Vieram correndo de todos os lados, procuraram, cada um uma brincadeira aonde pudesse se encaixar. Num segundo, estava dividindo a corda com Isabela, e sua irmã Vitória já era quem batia a corda. Tudo já estava acontecendo em outro ritmo, um ritmo inalcançável para aquele bando de adultos cansados. Enquanto brincavam, ensinaram a musica que não lembramos no dia anterior; ensinaram também outras músicas e outras brincadeiras. Ao mesmo tempo, dois meninos brincavam
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BRINCADEIRA de gude no asfalto, sob o farol dos carros que passavam em alta velocidade. Outros acharam as pipas na sacola e pediram para amarrá-las. Fiz exatamente como o moço da outra vez havia feito. Saíram correndo pela rua, tentando achar o vento - já não havia uma moça dizendo que ali não voava pipa. A nossa dificuldade em encontrar um lugar adequado para brincar, longe dos perigos, logo foi quebrada quando vimos os muitos meninos do outro lado da rua, lugar de maior movimento de trânsito. Queriam levar os brinquedos para casa, para brincar em outro lugar. Perguntaram porque não estávamos brincando “la dentro” [do Calabar]. - La dentro seria muito melhor. -Porque não fizeram na Biblioteca? Pediram que voltássemos no outro dia, no mesmo horário; o horário do fim da aula. No meio dos meninos - desviantes do caminho de casa - que, a essa hora, começavam a ir embora, a irmã de um deles apareceu procurando a criança que não chegou em casa. - Minha mãe vai puxar a sua orelha, quando chegar em casa. Naquele dia, velhos cansados, mas de sorriso na cara, voltamos andando pela rua Ranulfo Oliveira, em direção à Ondina. O caminho foi musicado com o que havíamos aprendido naquele fim de tarde, até chegarmos ao ponto de ônibus. Adultos brincantes, reinventamos as nossas próprias brincadeiras de infância, contagiados pelo aprendizado proporcionado pelas crianças. - Sim, voltaremos amanhã!
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BRINCADEIRA#3 Sexta-feira, 17h Chegamos um pouco atrasados ao nosso compromisso. Na verdade, quase não fomos, porque faltava disposição física para aguentar novamente a maratona da noite anterior. Os pés ainda doíam, o corpo ainda reclamava. Desta vez, ficamos no ponto mais alto da rua (mais ao lado do Jardim Apipema), exatamente onde os meninos soltaram pipa no dia anterior. Mal estacionamos a nossa sacola de brinquedos e três garotos já vieram ao nosso encontro: - É verdade que vocês estão dando brinquedo? - Não. A gente brinca. Se quiser é só pegar alguma coisa. E mal nos calamos, já havia briga por todos os lados: quem ia brincar com as gudes, quem iria pular corda, quem seria o dono da bola (acordamos que seria dos três e cada semana a bola ficaria com um deles). No meio da confusão, chegaram as meninas e meninos do dia anterior. Como na tarde anterior, num instante a brincadeira havia se espalhado pelos quatro cantos. Os conflitos também. As gudes continuavam a ser disputadas, mas agora na própria brincadeira. Quem tirava uma delas do círculo desenhado com giz no chão, podia levá-la para casa. Alguns meninos - os mais espertos do grupo - descobriram uma madeira de balanço na sacola e quiseram logo saber para o que servia. Fomos ajudar a instalar o brinquedo, mas instantes depois apenas observávamos, já que a brincadeira não era mais nossa. A pequena goiabeira - que no dia anterior não nos serviu por ser muito baixo e próximo do local de passagem de carros e pedestres - havia se transformado numa árvore de meninos, vários deles pendurados para decidir qual o melhor galho, como cortar a corda, como amarrar e em que altura pendurar. Um balanço
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BRINCADEIRA ficou pronto e o resto de corda pendurado virou cipó de Tarzan. Agora meninos balançavam - dois ao mesmo tempo - para lá e para cá, quase batendo em quem passava na calçada, quase no ritmo dos carros, que passavam mais lentos observando. Meninos se chocavam no balançar muito próximo; meninos choravam com “galos” na testa. Revezar um balanço é tarefa difícil de se fazer. Lembro disso, quando criança, e assim o foi. As meninas, que não ajudaram a pendurar o balanço, não teriam o direito de balançar. Nossa mediação do conflito não foi suficiente naquela hora e Luan, enquanto resolvíamos o conflito da amarelinha na calçada, subiu na árvore, retirou o balanço e pegou um dos becos do Calabar, sem olhar para trás. Algumas crianças queriam brincar na amarelinha que havíamos pintado com spray no chão do asfalto, na noite anterior. Como estava no meio da rua, optamos por desenhar uma nova na calçada. Mas a calçada, em Salvador, também é lugar de carro. Um morador do prédio em frente tentava a todo custo estacionar na calçada, sobre a amarelinha e acelerava o carro em direção às crianças, que brincavam. Entre correrias e xingamentos, fomos conversar com o senhor, que pediu desculpas pelo que fez, alertando que não foi proposital. Nessa hora Luan já havia levado o balanço embora. Já na hora de ir embora, um taxi parou para reclamar com um dos meninos que brincavam na amarelinha, xingando e reclamando pelo seu retrovisor quebrado durante uma partida de futebol na semana anterior. Acabamos a nossa noite distribuindo os últimos brinquedos que restaram na sacola e sob pedidos de um retorno. - Nós voltaremos, Isabela, mas só no próximo mês.
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É BRINCADEIRA, MAS É SÉRIO A lei da repetição comanda a totalidade do mundo dos jogos. Sabemos que para a criança ela é a alma do jogo, que nada a torna mais feliz do que o “mais uma vez”. Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. “O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. (...) A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito.” (BENJAMIN, 1928)
O entendimento de que não há rupturas entre as funções na cidade, num processo natural de superposição e atravessamentos entre elas, faz da rua um espaço de jogo e brincadeira e dos modos de utilizar a ordem restritiva do espaço. Toda racionalização estratégica visa determinar um lugar apropriado, adequado para a prática daquela vontade. Ela implica, portanto, um corte em relação ao “outro”, ao que fica de fora e se constitui em potencial ameaça àquele espaço. Brincar nas ruas de Salvador foi uma aventura. Uma ação de várias reverberações, de observações atentas, de buscas na memória, de conflitos e sobretudo, de reinvenções. Brincar não se configura numa forma de fazer urbanismo, mas de através dela, provocá-lo enquanto disciplina, desestabilizá-lo enquanto campo científico. Esta forma de atuação na cidade dita formal, principalmente nas áreas de contato (que na verdade são muros psicológicos que precisam ser derrubados) pode nos ajudar a repensar nossas próprias definições de cidade, de urbanidade, de formas contemporâneas de vidas em sociedade. A ideia de um “campo expandido do urbanismo”, no caso da brincadeira, através das artes – das propostas de ação da Internacional Situacionista ou de provocar a ideia de autoria do pro-
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BRINCADEIRA jeto e da própria imagem do artista, proposta de Hélio Oiticica são usados para tensionar a disciplina arquitetônica e urbanística, expandir seu próprio campo na direção das artes que são fundamentalmente ação e são apreciadas enquanto tais (as artes “musicais” do teatro, dança, música e poesia). Uma buscar por uma arquitetura e urbanismo baseados nas ações dos praticantes da cidade. Percursos que sustentam “a formação de um outro profissional, menos comprometido com a forma perfeita e mais aberto para a experimentação da cidade, do tempo-espaço, da vida vivida, do movimento e da ação.” (JACQUES, 2001) Em vez de criar um projeto de espaço para determinado programa de usos e funções, o urbanista, propõe o espaço, ou age sobre o espaço pré-determinado, para, em seguida, deixar que sejam descobertos os usos e funções possíveis. Este processos criativos se dão através do contato com o outro urbano, um processo “relacional” e “participativo”. Por mais que se desenhe o contrário, o espaço está - nos seus diversos graus - sempre aberto ao indeterminado. Então, o que irá valer numa proposta urbana que se diga participativa, indeterminada e aberta, será sempre a coerência interna entre as coisas que se encontram e as que se criam, entre aquelas que aconteceriam e as que se faz acontecer, a descoberta contínua de uma ordem escondida que vemos nascer com o uso, a possibilidade de construir um sentido e uma história coerente e compartilhada. Nesse caso, o projeto nasce não de um desenho, mas de um encontro, de um intercâmbio recíproco de desconfianças e de medos e, depois, de conhecimentos, desejos e criações. A concepção de que o brincar está reservado às crianças nada mais é do que a perda da naturalidade humana, uma concepção de mundo imposta pelo próprio homem. Assim, o feito do lúdico na vida da criança, que acontece de forma muito mais plena, intensa do que na vida do adulto, não deve restringir-se como especificidade limitada ao universo infantil.
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BRINCADEIRA A criança, aqui analisada enquanto ser desviante, que determina as práticas do espaço na cidade planejada, desenvolve em seguida, seus efeitos, prolifera, inunda os espaços públicos e privados, de constantes criações suas. Num mundo fabricado para a eficiência, esta parte da pesquisa veio defender este tempo da infância, numa reflexão sobre a importância do brincar e criar na cidade, trazendo à tona uma imensidão de saberes destes meninos, que estão por aí, sempre dispostos a nos ensinar. Este “pedaço” do trabalho, que parece um fim, mas pode muito bem ser um começo, não está desarticulado à ideia do labirinto e do urbanismo ou do brinquedo e da apreensão, por exemplo. A experiência de brincar na cidade continua como um outro modo de fazer cidade, um aprendizado, uma apreensão de outras experiências. Com efeito, pôr em crise as nossas poucas certezas alcançadas na academia, permite que se abra a mente ao mundo e às possibilidades antes inexploradas, convida a reinventar tudo: a ideia que se tem de cidade, a definição de arte e da arquitetura e do urbanismo, e sobretudo, o lugar que se ocupa neste mundo. Ocorre a libertação de convicções postiças e começa-se a recordar que o espaço é uma fantástica invenção com a qual se pode brincar, como (e com) as crianças.
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BRINCADEIRA BRINCADEIRA (legenda figurinhas)
Debate por proximidade Debate por oposição A A B
Pieter Bruegel (1560): Jogos Infantis na Idade Média
B C CD
Debord (1957): The Naked City
D E E F
O lúdico na cultura romana: panem et circenses Paul-Henry Chombart de Lauwe (1952): trajetos efetuados durante um ano por uma estudante parisiense Constant Nieuwenhuijs (1953‑1974): Nova Babilônia
F G G H
Hélio Oiticica (1965): Parangolés
H I IJ
Mapa conceito da ação: o movimento da favela vai até o bairro
J K K L
Açõe para transbordar: brincar na rua
Hélio Oiticica (1967):Tropicália O Urbanismo Tático
L M M N N O O
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Igor Queiroz ThaĂs de B. Portela Orientadora FAUFBA . TFG . 2015