Revista de História da Arte (n.º1 / 2005)

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Revista de História da Arte

Edições Colibri

• Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa


ÍNDICE

Revista de História da Arte Publicação semestralal do Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Av. de Berna, 26-C 1069-061 Lisboa iha@fcsh.unl.pt www.iharte.fcsh.unl.pt Direcção: M. Justino Maciel Raquel Henriques da Silva Comissão Científica: José Custódio Vieira da Silva Manuel Justino Pinheiro Maciel Margarida Acciaivoli de Brito Maria Adelaide Miranda Maria da Graça Briz Rafael Moreira Raquel Henriques da Silva Edição: Edições Colibri e Instituto de História da Arte Concepção Gráfica e paginação: Inês Mateus / Rita Medeiros © Foto da capa: Tomas Vicente Tosca, Compendio Matematico, tomo VI, estampa 12, p. 232. S.A. 2343P. Foto: Laura Guerreiro Impressão e acabamentos: Colibri – Artes Gráficas, Lda Tiragem: Distribuição: Sodilivros © Autores e Instituto de História da Arte Depósito legal ISSN 1646-1762

Editorial ........................................................................................................................................

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Entrevista com José-Augusto França .......................................................................... conduzida por Raquel Henriques da Silva ..............................................................

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Olhares do Historiador da Arte perante o Discurso Original do Cristianismo M. Justino Maciel ..................................................................................................................... 15 Memória e Imagem José Custódio Vieira da Silva ........................................................................................... 47 The Stone and The Cross Rafael Moreira ......................................................................................................................... 83 A Pintura Barroca e a Cultura Matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J. (1715) Magno Mello e Henrique Leitão .................................................................................. 95 Recensões Críticas ................................................................................................................ 143 Varia ...............................................................................................................................................157


da Arte que tem na referência “tempo-lugar” a sua articulação genética com a História, e no reconhecimento das “formas-símbolos” a sua imensa particularidade conceptual e metodológica.

EDITORIAL A Revista de História da Arte vem concretizar um projecto antigo do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, composto, até ao presente, pelos docentes doutorados do respectivo Departamento de História da Arte. A actividade mais constante do nosso Instituto tem sido a organização anual do Curso Livre – actualmente a decorrer, na sua IX promoção, este ano dedicada à(s) Iconografia(s) – mas a vontade de concretizar a Revista foi enunciada por todas as direcções, o que, positivamente, permitiu a lenta maturação do projecto que vem agora a público. A marca distintiva deste projecto é, com clareza, aquela que tem determinado também a estrutura dos Cursos Livres e que, na verdade, caracteriza o nosso ensino da História da Arte: abordamos, com igualdade máxima de tratamento, as diversas “idades” da História da Arte, da Antiguidade e Idade Média ao Renascimento, Barroco, Século XIX e Contemporaneidade, afirmando a riqueza propositiva do trabalho em profundidade em tão diversos campos, possibilitado pelos docentes especializados do Departamento e alargado através de colegas e discípulos. Apesar desta linha orientadora, os artigos de fundo deste nº 1 da Revista não percorrem todas as áreas enunciadas mas, como se calculará, tal acontece apenas pela gestão de possibilidades e acasos. Por isso, repetimos: a Revista de História da Arte tem como objecto essencial divulgar estudos e investigações em todas as áreas cronológico-estilísticas, o que, estamos convencidos, definirá um dos traços marcantes do seu perfil científico, abrindo-a a interesses múltiplos, relacionados com especializações precisas, mas também com o entendimento disciplinar da História

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Os autores dos artigos principais do nº1 da Revista de História da Arte são, com uma única excepção, professores do nosso Departamento e membros do Instituto. Este facto manifesta o empenho conjunto neste projecto, exigente e aventuroso, e sublinha as opções editoriais acima referidas, visto que Justino Maciel, José Custódio Vieira da Silva e Rafael Moreira são reconhecidos historiadores da arte, especialistas, respectivamente, na Arte Romana (e romanizada) da Península Ibérica, na Arte Gótica e na Arte do Renascimento. Para lá das qualidades específicas dos artigos que assinam, vale a pena sublinhar que algumas coisas têm em comum, entre elas o gosto de articular a Arte com a História, numa escala territorial de progressiva amplitude, feita de miscigenações de grande fundura que, da Europa, se estenderão a uma geografia mundializada. É neste contexto metodológico que se insere, com expressividade, o artigo de Magno Mello, que apresentou as suas provas de doutoramento na nossa Faculdade, sob orientação de Rafael Moreira, e de Henrique Leitão que integra o Centro de História das Ciências da Universidade de Lisboa.. Enunciamos assim a vontade de abrir a Revista do Instituto de História da Arte a colaborações externas criteriosas, reafirmando a necessidade de a sustentar em parcerias, interesses e desafios comuns. O que também permitirá reforçar elos e sinergias entre os historiadores da arte portugueses ou interessados em Portugal, bem como especialistas e cientistas de outras áreas, mais próximas ou mais longínquas, que compreendem a expressão artística, a sua teorização e historicidade, como domínios da maior relevância nas sociedades humanas, em todas as épocas e todos os tempos. A Revista é, essencialmente, composta por artigos inéditos, configurando novas investigações, como é natural tendo em conta a sua origem académica. Dentro do perfil assim delineado, cabem também as rubricas “Recensões críticas” e “Varia”, abertas a colaborações externas, como aqui acontece com o texto assinado por Luís U. Afonso da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Pretendemos finalmente que ela possa ser atractiva para públicos mais amplos. Daí a presença de rubricas como “Entrevista” que, neste nº1, dedicamos a José-Augusto França, o mais importante dos historiadores da arte portugueses, fundador do primeiro Mestrado em História da Arte em Portugal

Editorial

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(exactamente nesta Faculdade e dando nascimento ao respectivo Departamento) e professor dos actuais membros do nosso Instituto. Não se trata de uma entrevista exaustiva mas o relembrar de alguns dos factos acabados de citar, e o desvendar dos interesses actuais do Mestre que, da História da Arte, se voltaram para a literatura. O que, para lá da sua marcação particular e não generalizável, não deixa de reafirmar os campos abertos com que se confronta o ofício de historiador da arte... Refira-se, para terminar, que quisemos que graficamente a Revista fosse não apenas correcta mas visualmente apetecível. Admitindo que este aspecto poderá ainda melhorar (aliás, como todos os outros), a sua qualidade muito deve à coordenação editorial de Cristina Cruz e às Edições Colibri – na pessoa de Fernando Mão de Ferro e das designers gráficas Inês Mateus e Rita Medeiros – que, desde o primeiro momento, revelaram disponibilidade e vontade para se associar a este projecto. Agradecemos particularmente à Fundação Calouste Gulbenkian que nos concedeu um pequeno subsídio, no momento em que apenas tínhamos um projecto para enunciar e não a Revista para o confirmar. A partir de agora, ela será uma realidade regular, susceptível de indispensáveis aperfeiçoamentos que, modestamente, ajudem a consolidar o lugar incontornável da História da Arte na vida académica e cultural portuguesa.

A Direcção do Instituto de História da Arte

ENTREVISTA com José-Augusto França conduzida por Raquel Henriques da Silva*

José-Augusto França, nascido em Tomar em 1922, é uma das personalidades mais relevantes da cultura portuguesa contemporânea. Este indiscutível destaque advém, em primeiro lugar, da sua obra de historiador da arte que iniciou, em 1949, com Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal, manifestando o seu lugar de origem: não a academia mas a participação apaixonada na vida artística lisboeta do pós-guerra, dividida entre neo-realistas e os grupos surrealistas. Entretanto, escrevia crítica de arte no Horizonte e na Seara Nova, organizando, ao mesmo tempo, as Terças-feiras Clássicas do cinema Tivoli. Logo no início de 1950, dirigiu a revista Unicórnio, foi um dos responsáveis pela Galeria de Março e, em 1956, publicava o seu primeiro estudo sobre Amadeo de Souza Cardoso e também a peça de teatro Azazel. Este percurso de juventude adquiriu lastro definitivo em 1959, quando se tornou bolseiro do Governo francês para estudar, em Paris, com Pierre Francastel, na École Pratique des Hautes Études. A consequência foi o doutoramento em História com a tese Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal, publicada em 1965, que muitos consideram a sua obra maior, pelo modo como valoriza a modernidade do projecto de reconstrução da cidade, mas também por inaugurar uma área disciplinar, até então inexistente, a História do urbanismo português. Não sendo possível referir a longuíssima obra de França (cuja bibliografia então exaustiva foi publicada em 1992, no catálogo da Exposição da doação de arquivos e documentais sobre arte contemporânea e obras publicadas em volumes, periódicos e catálogos por José-Augusto França), destacarei A Arte em Portugal no século XIX e A Arte em Portugal no século XX, escritas e publicadas entre 1963 e 1974. Trata-se, como todos os especialistas e interessados unanimemente reconhecem, dos livros incontornáveis para quem estuda a arte contemporânea portuguesa, propondo uma teoria e um método que organiza os factos e sobre eles reflecte, com exaustividade, tolerância cultural e rigor avaliativo. Estas obras gerais foram aprofundadas em algumas situações autorais, gerando * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

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Entrevista com José-Augusto França

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monografias sobre Rafael Bordalo Pinheiro, Almada, Amadeo ou António Carneiro e Joaquim Rodrigo. A extraordinária exaustividade com que França investiga, bem como a determinação com que realiza objectivos que a si próprio fixa, explicam ainda obras extensivas como O Romantismo em Portugal: Estudo de Factos Socio-Culturais (1.ª ed. 1974, nova tese de doutoramento em Paris, em Letras e Ciências Humanas) História da Arte Ocidental, 1780-1980 (1987) ou Os Anos Vinte em Portugal (1992). Este imenso trabalhador solitário é também um estimulante coordenador de projectos de que destacarei três exposições memoráveis, tanto pela inteligência dos seus conceitos, como pelos catálogos que as acompanharam: Os Anos 40 na Arte Portuguesa na Fundação Calouste Gulbenkian, 1982; a retrospectiva de Malhoa na Sociedade Nacional de Belas-Artes, 1983; Soleil et Ombres: l’Art Portugais du XIXème no Musée du Petit Palais, Paris, 1987, reapresentada no ano seguinte na Galeria Dom Luís do Palácio da Ajuda em Lisboa. Mas como esquecer a sua direcção da revista Colóquio-Artes, as largas dezenas de artigos para o Dicionário da Pintura Universal, as rubricas regulares em jornais e revistas, a qualidade do desempenho de cargos como os de Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Centro Cultural Português de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, da Academia Nacional de Belas-Artes e da Association Internationale des Critiques d’Art – AICA.Tudo isto e muitas mais coisas foram levadas a cabo, desde 1974, em comum com as funções docentes na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa de que então se tornou Professor Catedrático. É este aspecto do curriculum de José-Augusto França que justifica a decisão de o entrevistarmos para o nº1 da Revista de História da Arte. A primeira razão é evidente: trata-se de uma singela homenagem que o Conselho Editorial da Revista presta àquele que foi mestre de todos nós. Mas há uma segunda razão que é de âmbito nacional. Como o próprio a seguir recorda, foi dele a iniciativa de criar, no Portugal do 25 de Abril, o ensino especializado de História da Arte na Universidade Nova de Lisboa que, funcionando regularmente desde 1976, se tornaria, em 1982, primeiro mestrado titularizado da universidade portuguesa. Houve claro conjunturas favoráveis, entusiasmos partilhados e boas colaborações mas, inquestionavelmente, o rigor do desenvolvimento e ampliação do projecto (com licenciatura especializada em 1980 e licenciatura autónoma em 1996) tudo deve ao génio determinado de França. Por outro lado, reforçando heranças diversas nas outras universidades,

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o sucesso do “mestrado da Nova” contribuiu também para vivificar o ensino da História da Arte em todas elas, utilizando, frequentemente, os recursos humanos entretanto formados. Sob responsabilidade directa do nosso entrevistado, o número de dissertações de mestrado e de doutoramento realizadas é impressionante, verdadeiramente inaugural de um ciclo novo de História. Os seus alunos recordam a permanente disponibilidade, a clareza da orientação, o rigor das aulas dadas, a generosidade dos convites para participação em projectos geradores de uma profissão. Jubilado em 1992, José-Augusto França não abandonou a História da Arte mas, progressivamente, deu mais espaço ao seu gosto pela escrita ficcional em que se estreara também em 1949, com o romance Natureza Morta. Jorge de Sena logo o saudou, considerando que a sua qualidade “obriga o autor a ter coragem de escrever outros romances”. Cinquenta anos passados, foi isso que ele decidiu fazer, com os romances Buridan e Regra de Três, e outros que vão seguir-se, e os volumes de Cenas, Quadros e Contos já publicados e a publicar. Assim renova ele o inventário da sociedade portuguesa novecentista a que dedicou toda a vida, estudando-lhe o corpo artístico como quem lhe abre a hipótese da imortalidade. Em 1974, depois do 25 de Abril, o Professor tomou em mãos a criação do ensino especializado em História da Arte. Gostaria que evocasse o contexto, as razões de ser, os procedimentos dessa intenção/realização. A razão de ser foi a necessidade evidente de um ensino especializado que, com cadeiras “anexas” ou acompanhantes nas licenciaturas de História, não podia definir-se nem vocacionar os licenciandos a dissertações nessa disciplina para a obtenção do diploma – e ainda menos quando a dissertação foi abolida. Só houve possibilidade de mudança de situação no quadro inovante da Universidade Nova, estabelecida depois do 25 de Abril – e em termos iniciais de pós-graduação. Tratou-se então de programar um curriculum de dois anos com dissertação seguinte, em mais dois anos, para já licenciados em História ou diplomados nas Belas-Artes mas que o Ministério desejou que fosse extensivo a todas as licenciaturas que houvesse. Era tolice mas o melhor foi aceitar, sabendo que a ilusória abertura por si própria se fechava, em função das formações de base de cada qual. Inicialmente as coisas foram possíveis quando, convidado para o quadro da Universidade Nova (o que não seria possível antes daquela data), num

Entrevista com José-Augusto França

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encontro com o Prof. Fraústo da Silva, então seu reitor, lhe apresentei a proposta sobre a qual já reflectira, obtive a sua imediata concordância, trabalhada logo no verão seguinte que passámos juntos no Algarve. E o acordo continuou com o reitor seguinte, o Prof. Manuel Laranjeira, com o qual abordámos o Secretário de Estado A. Brotas que logo autorizou a programação da pós-graduação. Começámos a docência em 1976, após cursos vários na Universidade Nova em que participei, de preparação de assistentes, e instalados então na sede do Centro Nacional de Cultura, ao Chiado, à falta de lugar apropriado só mais tarde havido. Reuni a equipa possível, principalmente os Profs. Bairrão Oleiro e A. N. de Gusmão, obtive o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para formar uma biblioteca especializada, que ia comprando em Paris (e em Lisboa), e, em 1980, quando foi criado o grau de “mestre”, os alunos da pós-graduação automaticamente o obtiveram, porque o programa não só continuou identicamente, como o esquema que definíramos serviu de esquema nacional para todos os cursos de mestrado. Outras universidades inauguraram depois mestrados em História da Arte, disseminando o ensino da disciplina. Eles são o que são e a Universidade Nova já produziu quatro catedráticos, outros tantos directores de museus e vários docentes e conservadores do Património. Quer evocar outras estórias que não devam ser esquecidas nessa história fundadora do ensino universitário de História da Arte em Portugal? Estórias destas diligências estão contadas com pormenores suficientes no livro Memórias para o ano 2000 que publiquei. Entre elas, encontram-se algumas relativas a um Encontro de docentes da disciplina que a Universidade Nova organizou na de Coimbra, em 1979, em que se discutiram propósitos, se separou o ensino da Arqueologia, como disciplina outra, e se definiu uma “História da Arte em Portugal” em três e num só volume (que teria como modelo a História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes), procurando, com três autorias responsáveis, cobrir a cronologia da criação artística nacional. Infelizmente os autores indiciados, e que aceitaram o projecto, não chegaram a trabalhar nele. E só agora, 2004, com fórmula semelhante (mas com outros autores actuais: C. A. Ferreira de Almeida, Vítor Serrão e J. A. França) a Editorial Presença publicou tal ou semelhante obra, depois de outros projectos editoriais de múltiplos autores, com os inconvenientes metodológicos que isso fatalmente acarreta.

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Mais de vinte anos passados, a História da Arte existe, como área científica, num número considerável de universidades, públicas e privadas, umas vezes (raras) como licenciatura autónoma, outras (predominantemente) enquanto especialização de áreas mais vastas, da História e do Património, por exemplo. Gostaria de saber a sua opinião sobre este preciso assunto: a História da Arte deve ser área científica autónoma ou deve existir agregada, como especialização, a outras licenciaturas? Licenciatura autónoma, é óbvio, pelo que acima ficou respondido. Se a História da Literatura (românica, germânica ou clássica) as têm, porque não havia (ou houve) de ter a História das Artes, mesmo que obviamente mais reduzida de espaço geográfico? Tudo depende dos programas definidos e de quem os ensine e aprenda, como sempre. Em Dezembro de 1992, ao jubilar-me, apresentei uma proposta de programa de licenciatura, aprovada por maioria do Conselho Científico da FCSH da UNL. Para que constasse, resolvi publicá-lo na revista Ler História (nº 25, 1994). Pretendia-se, com pormenores que ali podem ser conhecidos, fazer correr paralelamente disciplinas de História política, social e cultural, de História da Arte Ocidental, de História da Arte em Portugal, de História das Artes não ocidentais, com reserva para zonas de contacto português, de Metodologias de pesquisa e expressão (três anos), de Técnicas de instrumentação de pesquisa (um ano), e, em três anos sucessivos, de Noções de Psicologia, de Estética e Teorias da Arte e de Sociologia da Arte – sendo as outras disciplinas de quatro anos cronologicamente sucessivos, para cumprimento de vinte horas semanais. Previam-se opções na História da Arte não ocidental para benefício de cursos de Ciências da Museologia, de Património e de Comunicação. Lembrando-se que, na primeira ideia dos cursos, em 1976, deviam caber articulações para estas especializações, ao nível da pós-graduação/mestrado, que nunca puderam ser contempladas. Ao longo da sua carreira, o Prof. participou em dezenas de júris de provas de dissertação de Mestrado e Doutoramento em História da Arte, muitas delas por si orientadas. A partir dessa experiência, qual foi sendo o estado da disciplina? Impossível avaliar do exterior, tudo dependendo, como sempre, da qualidade intelectual e cultural dos participantes, docentes e discentes. E autores publicados e editados, quando o forem ou vão sendo – por obrigação profissional que exige pesquisa, reflexão e transmissão de conhecimentos, para além da burocracia docente.

Entrevista com José-Augusto França

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Gostaria que elegesse uma obra de arte que faça parte da sua vida. E também uma obra (a mesma?) sobre a qual tenha especialmente gostado de trabalhar. Finalmente, sobre livros da disciplina: tem uma obra da sua vida? …Se fosse possível eleger uma obra de arte, eu diria A Flagelação de Piero della Francesca, do Palazzo Ducale de Urbino. Há muito que já o escrevi, tendo até dito, por outra e pecaminosa perspectiva, que significa o que significa metaforicamente, que seria a obra que eu roubaria para trazer para casa. Foi roubada há anos, não sei se restituída… Mas, fora da disciplina de que saí para outras, de ficção – porque não Ana Karenina ou Lucien Lewin, Tolstoi e Stendhal? Ou Proust e Musil. E o Eça e o Almada que me diverti a por em romances a saírem em breve… Mas outra obra, de tempos “mui antigos”, eu acrescentaria, e seriam os Painéis de S.Vicente de Fora, em seu entendimento histórico-mitológico, que bom será estudar, perspectivando as cem hipóteses existentes. Em termos ainda actuais, eu elegeria a Guernica de Picasso pela emoção total que tive, ao vê-la em Nova York, e em revê-la em Paris e em Madrid. É a nossa história de sangue, suor e lágrimas. Da escultura, gostaria de pôr, frente a frente, para necessário entendimento das coisas e das culturas, as peças contemporâneas do Penseur de Rodin e do Desterrado de Soares dos Reis. Da arquitectura, naturalmente, como quem respira no espaço, eu elegeria as naves de Chartres e de Alcobaça, e o claustro de Tomar. Ou a sala acrescentada por Mies van der Rohe ao museu de Huston-Texas, e a Casa de Chá do Siza, na Boa Nova. Não pude escrever o livro que gostaria de fazer sobre Piero (mas como, a partir de Lisboa, editorialmente?...), mas devo citar também, por práticas de leitura, conferências e escritas, O Grupo do Leão de Columbano – deixando-me de Manets, embora… E o quadro de Noronha da Costa, grande, negro e sem título, que levei para uma parede do museu de Tomar, e muita falta me faz em casa. Finalmente, pela pergunta, por prática de vida de historiador, Peinture et Société de Francastel, que me levou a trabalhar e travar amizade com o autor, “maître à penser” dos anos 50 e 60. Não me foi leitura de revelação mas, mais do que isso, de confirmação de ideias que eu ia tendo e exprimindo e ali se apresentavam como eu, inocente lisboeta, não era capaz de fazer. Está lá o princípio fundamental da História da Arte como história globalizante da “pensée visuelle” e do “facto artístico” que tanto procurei definir e estabelecer.

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José Augusto França fotografado por Pedro Soares

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OLHARES DO HISTORIADOR DA ARTE perante o discurso original do Cristianismo1 M. Justino Maciel*

INTRODUÇÃO

Jerusalém Celeste. Mosaico dos princípios do séc. V da abside da Basílica de Santa Pudenziana. Foto do autor.

RESUMO Para o conhecimento da Arte da Antiguidade Greco-Romana contribuem significativamente as informações que nos vêm de textos contemporâneos da sua produção, mesmo aqueles que não foram escritos na perspectiva da Arte ou da sua História. Os livros neotestamentários, in genere datados da segunda metade do século I d.C., tiveram como objectivo essencial o anúncio do kerigma evangélico.Todavia, dão-nos conta de situações histórico-sociais, vivências e propostas inseridas num quotidiano dinamizado pelo fenómeno da aculturação do judaísmo e do cristianismo com a cultura greco-romana e o seu urbanismo, a sua arquitectura e a sua arte em geral, permitindo um outro tipo de olhar, o do Historiador da Arte.

O Homem e o Humanismo surgem-nos como referentes no dinamismo teológico dos textos neotestamentários. A Humanidade de Cristo e a circunstância da vivência quotidiana das propostas evangélicas também poderão ser vistas sob o ponto da vista da História da Arte, numa consciência da totalidade dessa vivência, em que se ouve não só o citaredo2, o músico3, o tocador de flauta e de trombeta4, o ruído da mó5, a voz do esposo e da esposa6 e se vê a luz da lâmpada7, mas onde também se encontra o artista de qualquer arte8. Podemos assim constatar a dimensão estética da revelação cristã e sentir a historicidade dos relatos transmitidos pelos textos, na relação entre os espaços naturais e os espaços construídos – urbanismo, arquitectura, artes decorativas – nas referências ao corpo, ao vestuário e seus adereços, aos objectos e instrumentos, meios de transporte, paraísos animal e vegetal, mobiliário e artes ditas menores, assim desenvolvendo como que uma História da Arte claramente de contexto romano entre as épocas julio-cláudia e adriânica. O nascimento e primeiros vagidos de um Menino chamado Jesus Cristo acompanham o impacto histórico, político e social do Edicto de Octávio César * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 1 Percurso seguido sobre os textos grego e latino do Novo Testamento na seguinte edição: Novum Testamentum Graece et Latine, Editio vicesima secunda, utrumque textum cum apparatu critico imprimendum curavit Heberhard Nestle, London, United Bible Societies, 1969. 2 Ap. 14,2: Sicut citharoedorum citharizantium in citharis suis. Ap. 18,22: Et vox citharoedorum… 3 Ap. 18,22: Musicorum. 4 Mt. 9,23: Et vidisset tibicines et turbam tumultuantem. Ap. 18,22 : Et tibia canentium et tuba… 5 Ap. 18, 22: Et vox molae… 6 Ap. 18,23 : Et vox sponsi, et sponsae… 7 Ap. 18, 23: Et lux lucernae… 8 Ap.18,22: Et omnis artifex omnis artis…

Olhares do Historiador da Arte perante o discurso original do Cristianismo

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Augusto promovendo o censo do Império, em plena Pax romana9. Este recenseamento foi aplicado na Província da Síria, que então tutelava a Palestina, pelo Praeses Cyrinus10. Cumprindo a ordem do Imperador, um casal da Galileia vai à cidade de origem, Belém, para se recensear e, completando-se os meses de gestação, aí nasce uma criança que mudaria os destinos do Império romano e da História. Império este que, como na época dizia Vitrúvio, também se preocupava com a egrégia autoridade dos edifícios públicos11, para que fossem entregues à memória dos vindouros como testemunho dos feitos notáveis12, e surge nos textos neotestamentários representado na pessoa dos Césares, normalmente citados apenas pelos títulos do seu desempenho: Caesar13, Augustus14, Princeps15, Dominus16, podendo nós, sob estes atributos oficiais, que pressupõem o conhecimento do culto que então lhes era prestado, identificar Octávio Augusto17,Tibério Nero18,Tibério Cláudio Druso19 e Nero Cláudio César20. O Império romano surge também representado na pessoa de governadores e de procônsules das províncias, como o já citado Quirino, da Síria, no tempo de Augusto; Pôncio Pilatos, praeses na Judeia no tempo de Tibério21; Galião, procônsul da Acaia22 e Sérgio Paulo, procônsul residente em Chipre23, ambos na época de Cláudio; Cláudio Félix24, liberto do Imperador que lhe deu o nome

e também, segundo Suetónio, lhe ofereceu “coortes, esquadrões e o governo da Judeia”25, que deixou no ano 60; e ainda Pórcio Festo, nomeado para o lugar do anterior por Nero26. Por outro lado, a cadeia hierárquica e administrativa, em que tudo se organizava segundo os modelos da Vrbs e das classes romanae, donde o adjectivo clássico, transparece claramente na referência neotestamentária a funções secundárias mas essenciais à unidade do Império: tribunos27, centuriões28, chefes locais29, magistrados30, lictores31, meirinhos32, publicanos33 e chefes de publicanos34, guardas35 e soldados36, estes agrupados em legiões37, coortes38, duas delas identificadas, a Coorte Augusta39 e a Coorte Itálica40, seja como infantes41, lanceiros 42ou cavaleiros43. Definido o tipo de relação politico-administrativo-social, imposto pela romanização da Palestina, visto também objectivamente como fenómeno social total, outros aspectos se inserem nesta cadeia subordinada ao poder central romano, na aculturação de modelos económicos, sociais, culturais e artísticos. O Império é visto a partir dos textos do Novo Testamento como dividido em províncias – distribuídas por três continentes – e em cidades com os respectivos 25 Claudius, 27: Nec minus Felicem, quem cohortibus et alis provinciaeque Iudaeae praeposuit... 26 Ac.24,27: Biennio autem expleto, accepit successorem Felix Portium Festum.

9 Lc. 2,1: Factum est autem in diebus illis, exiit edictum a Caesare Augusto ut describeretur universus orbis. 10 Lc.2,2: Haec descriptio prima, facta est a praeside Syriae Cyrino. 11 De Architectura, I, Pr. 2: Ut maiestas imperii publicorum aedificiorum egregias haberet auctoritates.

27 Tribunus, Jo.18,12: Cohors ergo, et tribunus. Ac. 21,31: Nunciatum est tribuno cohortis. E Ac. 22,27: Accedens autem tribunus. 28 Mt. 8,5: Accessit ad eum Enturio. Mt. 27,54: Centurio autem, et qui cum eo erant. Mc. 15,44: Et accersito centurione, interrogavit eum. Ac. 10,1: Cornelius, Centurio cohortis, quae dicitur Italica.

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Idem, Pr. 3: Pro amplitudine rerum gestarum ut posteris memoriae traderentur.

29 Jo. 4,46: Et erat quidam regulus.

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Lc. 20,24: Respondentes dixerunt ei: Caesaris. Ac. 26,32: Si non appelasset Caesarem.

30 Ac. 16,35: Miserunt magistratus.

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Lc. 2,1: Exiit edictum a Caesare Augusto. Ac. 25,21: Ut servaretur ad Augusti cognitionem. Ac. 25,25: Hoc appellante ad Augustum.

31 Ibidem : Lictores.

15 Lc. 12,58: Cum autem vadis cum adversario tuo ad principem. 16 Ac. 25,26: De quo quid certum scribam domino, non habeo. 17 Lc.2,1: Edictum a Caesare Augusto. 18 Mt. 22,21: Dicunt ei: Caesaris. Tunc ait illis: Reddite ergo quae sunt Caesaris, Caesari. 19 Com o seu nome citado em Ac. 11,28: Quae facta est sub Claudio. E em 18,2: Eo quod praecepisset Claudius discedere omnes Iudaeos a Roma.. 20 Ac.25,21: Iussi servare eum, donec mittam eum ad Caesarem. E em Ac. 26,32: Dimitti poterat homo hic, si non appellasset Caesarem.. 21 Mt.27,11: Stetit ante praesidem, et interrogavit eum praeses.Lc. 20,20 : Ut traderent illum principatui, et potestati praesidis.

32 Lc. 12,58: Et iudex tradat te exactori, et exactor mittat te in carcerem. 33 Lc. 18,13: Et publicanus a longe stans. 34 Lc. 19,2: Et hic princeps erat publicanorum. 35 Mt. 28,4: Exterriti sunt custodes. 36 Mt. 8,9: Habens sub me milites. Mc. 15,16: Milites autem duxerunt eum. Ac. 21,32: Assumptis militibus, et centurionibus. 37 Mt.26,53: Plusquam duodecim legiones. Lc. 8,30: At ille dixit : Legio. 38 Mc. 15,16 : Et convocant totam cohortem. Ac. 21,31: Nuntiatum est tribuno cohortis. 39 Ac. 27,1: Centurioni nomine Iulio cohortis Augustae. 40 Ac. 10,1: Cohortis, quae dicitur Italica.

22 Ac. 18,12: Gallione autem proconsule Achaiae.

41 Milites, Ac. 23,23: Parate milites ducentos ut eant usque Caesaream.

23 Ac. 13,7: Qui erat cum Proconsule Sergio Paulo viro prudente.

42 Ibidem: Et lancearios ducentos.

24 Ac.23,26: Claudius Lysias optimo Praesidi, Felici salutem.

43 Ibidem: Et equites septuaginta.

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territórios, como poderemos constatar numa carta geográfica reportada a esse tempo. Naturalmente, dada a génese e primeiro desenvolvimento do Cristianismo, o continente mais referenciado é a Ásia, com referência explícita às Províncias ou sub-regiões administrativas da Judeia44, Samaria45, Galileia46, Síria47, Fenícia48, Mesopotâmia49, Capadócia50, Frígia51, Galácia52, Mísia53, Ponto54, Bitínia55, Panfília56, Cilícia57, Lícia58, Licaónia59 e Pisídia60. Surge depois a Europa, com a referência concreta às Províncias da Acaia/Grécia61, Macedónia62, Itália63 e Hispânia64. E a África, com as referências ao Egipto65, à Cirenaica66, à Líbia67 e à Etiópia68. É este Império que assim se nos revela vasto e conhecido que servirá de referência à organização territorial do Cristianismo nascente. Um Império que se estende em torno de um mare nostrum, o Mediterrâneo, de que

se referem também as ilhas de Cós69, Rodes70, Lesbos (Mitilene)71, Samotrácia72, Creta73, Cauda74, Chipre75, Quio76, Malta77, Patmos78, Samos79 e Sicília (Siracusa)80. A gestão e ordenamento deste vasto território dominado pela Roma dos Césares perpassa claramente nos textos escritos pelos Apóstolos e Evangelistas, seja na referência à cidade e a amplos aspectos do seu urbanismo, seja na vivência do seu território, com citação de edifícios e espaços públicos e privados, na cidade ou no campo. Damo-nos também conta dos eixos viários, como os de Jerusalém a Jericó81, da Judeia à Galileia82, de Jerusalém a Damasco83, de Jerusalém a Cesareia via Antipátride84 ou de Putéolos a Roma85, e a portos86 e percursos marítimos87.

44 Ac. 2,9 : Iudaeam. 45 Ac. 9,31 : Et Samariam. 46 Jo. 4, 3 : Et abbit iterum in Galilaeam.

69 Ac. 21,1: Recto cursu venimus Coum.

47 Ac. 15,41 : Perambulabat autem Syriam.

70 Ibidem: Et sequenti die Rhodum.

48 Ac.11,19 : Perambulaverunt usque Phoenicen.

71 Ac. 20,14: Venimus Mitylenen.

49 Ac. 2,9 : Et qui habitant Mesopotamiam.

72 Ac. 16,11: Recto cursu venimus Samothraciam.

50 Ibidem : Et Cappadociam.

73 Ac. 27,7: Adnavigavimus Cretae iuxta Salmonem e Tt. 1,5: Reliqui te Cretae.

51 Ac. 2,10 : Phrygiam.

74 Ac. 27,16: In insulam autem quandam decurrentes, quae vocatur Cauda.

52 Ac. 16,6 : Et Galatiam regionem.

75 Ac. 15,39: Navigaret Cyprum.

53 Ac. 16,7: Cum venissent autem in Mysiam e 16,8: Cum autem pertransissent Mysiam.

76 Ac. 20,15: Sequenti die venimus contra Chium.

54 Ac. 2,9: Pontum.

77 Ac. 28,1: Tum cognovimus quia Melita insula vocabatur.

55 Ac. 16,7: Tentabant ire in Bithyniam.

78 Ap.1,9: Fui in insula, quae appellatur Patmos.

56 Ac. 2,10 : Pamphyliam. e 27,5: Et Pamphiliae navigantes..

79 Ac. 20,15: Et alia applicuimus Samum.

57 Ac. 27,5: Et pelagus Ciliciae e 15,41: Et Ciliciam.

80 Ac. 28,12: Et cum venissimus Syracusam.

58 Ac. 27,5: Venimus Lystram, quae est Lyciae.

81 Lc. 10,30: Ab Ierusalem in Iericho.

59 Ac. 14,6: Confugerunt ad civitates Lycaoniae Lystram, et Derben.

82 Jo. 4,3-7: Reliquit Iudaeam, et abbit iterum in Galilaeam. Oportebat autem eum transire per Samariam... fatigatus ex itinere..

60 Ac. 14,24: Transeuntesque Pisidiam. 61 Ac. 18,12: Achaiae. e 20,2: Venit ad Graeciam. 62 Ac. 18,5: Cum venissent autem de Macedonia. 63 Ac. 18,2: Qui nuper venerat ab Italia. E Ac. 27,1: Ut autem iudicatum est navigare eum in Italiam. 64 Rom. 15,24: Cum in Hispaniam proficisci coepero. 65 Ac. 2,10: Aegyptum. 66 Ibidem: Quae est circa Cyrenen. 67 Ibidem: Et partes Libyae. 68 Ac. 8,27: Potens Candacis Reginae Aethiopum.

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83 Ac. 9,3. Et cum iter faceret, contigit ut appropinquaret Damasco. 84 Ac. 23,31-33 : Duxerunt per noctem in Antipatridem…Qui cum venissent Caesaream… 85 Ac. 28,15: Et sic venimus Romam. Et inde cum audissent frates, occurrerunt nobis usque ad Apii forum, ac tres Tabernas. 86 Ac. 27,12: Porto de Fenice (Creta). Ac. 27,8: Boniportus (Creta). São também referidos, embora de forma indirecta, os portos de Tiro (Ac. 21, 3-7), de Sídon (Ac. 27,3), de Tróade (Ac. 16,11), de Filipos (Ac. 20,6), de Pátara (Ac. 21,1), de Siracusa (Ac. 28,12), de Régio de Calábria (Ac. 28, 13) e de Putéolos (Ac. 28,13). 87 Como o entre Adramítio e as costas da Ásia Menor (Ac. 27,2) e entre Alexandria e Roma, com a referência a dois barcos alexandrinos (Ac. 27,6 e 28,11).

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Teatro de Éfeso, referido em Ac. 19, 29-40. Foto de J. C. Vieira da Silva

O URBANISMO O urbanismo no sentido estrito é uma conquista do mundo clássico, na medida em que exige um fundamentado planeamento prévio da implantação da cidade no local mais estratégico, funcional e saudável de um determinado território, tendo presente, logo de início, as vitruvianas regionum constitutiones, ou seja, a questão da orientação solar e da exposição ao sistema local de ventos88. Toda a cidade clássica é amuralhada, seja porque já o era como opido pré-romano, seja porque, romanizada ou construída ex nouo com a garantia da Pax romana, precisava das muralhas como linha delimitadora do pomério89 e como realce do estatuto urbano, ou seja, honorificamente, sem todavia jamais perder a perspectiva da defesa no caso de alteração da paz. Esta perspectiva ressalta também no Evangelho de São Lucas onde, sem se referirem objectiva88 Vitrúvio, De Architectura, IV,V, 2. 89 Espaço envolvente da cidade clássica onde não se podia enterrar ou cremar os cadáveres, nem tão pouco supliciar os condenados. Também por isso Jesus Cristo foi crucificado fora de portas: extra portam passus est (Hb. 13,12).

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mente as muralhas, se profetiza a abertura de uma trincheira em torno de Jerusalém90. As muralhas surgem-nos explicitamente referidas na cidade de Damasco91, deduzindo-se da narrativa que eram altas e fortes. Mas surgem-nos também supostas sempre que se fala das portas ou de outras estruturas ligadas às fortificações. Em Jerusalém citam-se os castra92, zona sobreelevada com degraus93, funcionando como fortaleza ou praesidium militar com a guarnição de uma coorte sob o comando de um tribuno.Toda a cidade tem as suas portas como ponto de referência fundamental e integradas na fortificação. É o caso das cidades de Naim94, de Listra95, de Filipos96e de Damasco97. Em Jerusalém haveria uma Porta chamada das Ovelhas98. É, todavia, no Apocalipse que a cidade ideal clássica nos aparece em paralelo com a imagem da cidade ideal cristã, com a sua muralha alta e grande, tendo doze portas99 distribuídas em grupos de três em cada um dos lados, uma vez que se encontra in quadro posita100. A sua planta é, pois, quadrangular, sendo cada um dos lados voltado, respectivamente, para Norte, Sul, Este e Oeste101. Esta cidade ideal do Apocalipse não é mais do que a cidade de traçado hipodâmico reforçada pelo tipo de orientação trazido pela cidade-castrum etrusco-itálica, bem conhecida pelo apóstolo João nas suas andanças pela Ásia helenístico-romana. A cidade romana, em aperfeiçoamento da hipodâmica, acusa uma ortogonalidade orientada pela chamada linha decumana, definida pelo nascer do sol no momento da sua instauração. É ela que serve de refe90 Vallum, Lc. 19,43. 91 Murum, Ac. 9,25. 92 Ac. 21,34: Iussit duci eum in castra. 93 Ac. 21,35: Et cum venisset ad gradus... 94 Portae civitatis, Lc. 7,12. 95 Ante Ianuas, Ac. 14,13. 96 Foras portam, Ac. 16,13. 97 Portae, Ac. 9,24. 98 Probatica (porta) Jo. 5,2. 99 Ap. 21,12: Et habebat murum magnum, et altum, habentem portas duodecim. 100 Ap. 21,16: Et civitas in quadro posita est. Aqui acentue-se a divergência com a cidade vitruviana, cuja planta não deveria ser quadrada nem com ângulos salientes mas em circuito, para que, numa perspectiva de defesa, o inimigo pudesse, ao aproximar-se, ser visto de vários lados (Vitrúvio, De Architectura, I,V, 2). 101 Ap. 21, 13: Ab Oriente portae tres: et ab Aquilone portae tres: et ab Austro portae tres: et ab Occasu portae tres.

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rente a João no seu sonho na Ilha de Patmos, pois a cidade que descreve não precisa de sol nem de lua, pois Deus é quem a ilumina102. Os aglomerados urbanos encontram-se continuamente presentes nos textos neotestametários103 como aglutinadores e dinamizadores da vida económica, social e religiosa do tempo em que foram escritos. Os Apóstolos deslocam-se “de cidade em cidade”104.Tiago refere o acto de ir a uma cidade comerciar105 e os Apóstolos começam por estabelecer presbíteros, ou seja, igrejas organizadas, nas cidades106. A cidade surge também com o seu território, onde se identificam e distinguem Castella107,Vici108 e, como veremos à frente,Villae109. A marcação das ruas enquadra-se também no quotidiano da cidade. Encontramos indicação dos seus extremos ou encruzilhadas110. Em outros locais referem-se praças111, também existentes na cidade ideal do Apocalipse112. São Mateus refere uma praça como forum113, se bem que, como nas restantes terminologias, tenhamos de ver aqui o crivo linguístico e cultural de São Jerónimo. Em Damasco, segundo os Actos dos Apóstolos, existia uma rua chamada Direita114. O macellum115, espaço exclusivamente de comércio dentro da cidade, normalmente em complemento do forum, assim como os carceres, tribunalia e respectivos auditoria, de que falaremos à frente, são também objecto de citação.

102 Ap. 21, 23: Et civitas non eget sole, neque luna ut luceant in ea, nam claritas Dei illuminavit eam. 103 Mt. 4,13, 5,14 e 8,33, Mc. 6,56, Lc. 4,29 e 8,1, Ac. 12,10. 104 De civitate in ciuitatem, Mt. 23,34. Per omnes civitates, Ac. 20,23. 105 Crastino ibimus in illam civitatem...et mercabimur,Tg. 4,13.

Na perspectiva romana, a exposição dos edifícios da cidade deveria ter em conta as linhas do cardo e do decumanus, definidas logo ao nascer do sol, e o alinhamento das ruas deveria ter em conta a incidência dos ventos em cada lugar. As referências ao sol116, à lua117, às estrelas118, assim como aos astros errantes119 ou à estrela da manhã120 testemunham também nos textos que vimos a analisar esta atenção dos antigos à constitutio regionum121 e à astronomia. Por outro lado, a referência aos quatro ventos tem presente a ideia da orientação pelos quatro pontos cardeais. Os principais ventos, referidos in genere na Carta de São Judas122, aparecem identificados nos Actos dos Apóstolos (Áfrico, vento de poente de inverno ou sudoeste, Coro, vento noroeste, Austro, vento sul e Euroaquilão, vento de levante, aqui resultante da junção do Euro, vento sudeste, com o Aquilão, vento nordeste)123 e no Evangelho de São Lucas (Austro)124. Lembremos que Vitrúvio ligava o sistema da rosa dos ventos à traça da malha ortogonal das ruas da cidade romana125.

ARQUITECTURA PÚBLICA RELIGIOSA No contexto predominantemente urbano em que, desde o início, se move o avanço do Cristianismo dentro do Império romano, destaca-se nos textos que vimos seguindo sobretudo a arquitectura religiosa, a arquitectura civil e a arquitectura doméstica, com monumentos nas várias cidades romanizadas em continuação e aculturação com a arquitectura e urbanismo grego e helenístico. O sistema de medidas transparece na sua dimensão antropomórfica

106 Et constituas per civitates presbyteros,Tit. 1,5. 107 Pequenas aldeias ou povoações fortificadas. Mt. 10,11 e 14,15, Lc. 9,12. Betânia, por exemplo, onde moravam Lázaro, Marta e Maria, era um castellum (Lc. 10,38).

116 Mt. 5,45 e 24,29, Lc. 23,45 e Ac. 27,20.

108 Pequenos lugares habitados com várias casas. Mc. 6,56 e Lc. 8,1. Por vezes, como noutros textos da Antiguidade, surge no sentido de rua com casas (Ac. 9,11 e 12,10).

118 Mt. 2,9-11 e 24,29, Ac. 27,20.

109 No sentido com que nos aparecem aqui, são unidades de produção agrícola tendo como infraestrutura uma construção rural (Mc. 6,36 e 6,56), ou de apoio à produção pecuária (Lc. 15,15). 110 Ite ergo ad exitus viarum, Mt. 22,9. 111 Plateae, Mt. 6,2, 6,5, 11,6, 20,3 e Mc. 6,56 e 7,4, Lc. 7,32 e 10,10. É evidente que, sendo a Vulgata da Antiguidade Tardia, o sentido vitruviano de platea nos apareça aqui já transformado. 112 Ap. 22,1: In medio plateae eius. 113 Mt. 20,3: Vidit alios stantes in foro otiosos.

117 Mt. 24,29 e Ap. 21,23. 119 Sidera errantia, Jd. 1,13. 120 Lucifer, II Ped. 1,19, Stella matutina, Ap. 2,28 e Stella splendida, et matutina, Ap. 22, 16. 121 Maciel, M.J., Vitruve et l’architecture paleochrétienne. Le cas paradigmatique des regionum constitutiones, International Meeting «Vitruvio in ancient, medieval and modern age architectural culture», Genova, 2003, pp. 268-273. 122 Jd. 1,12: Quae a ventis circunferuntur. 123 Respicientem ad Africum, et ad Corum (Ac.27,12). Aspirante autem Austro (Ac. 27,13). Qui vocatur Euroaquilo (Ac. 27,14).

114 Vade in vicum, qui vocatur rectus, Ac. 9,11.

124 Cum austrum flantem, Lc. 12,55.

115 Omne, quod in macello vaenit, manducate, 1 Cor. 10,25.

125 De Architectura, I,VI, 4-6.

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Construções romanas em Putéolos, junto ao porto referido em Ac. 28, 13-14. Foto do autor.

na relação com o corpo humano, também aqui se nos revelando o Homem como medida de todas as coisas. Destacam-se as claras referências ao pé126, ao passo127 e ao côvado128. Não se regista ainda uma arquitectura cristã, até porque os textos negam por princípio a possibilidade de um tal tipo de arquitectura, logo quando Cristo disse à Samaritana que não era nem em Jerusalém nem no Monte da Samaria que se deveria rezar mas em espírito e em verdade129, ou seja, sem a obrigatória associação a um espaço construído ou humanizado. Nos Actos se afirma que Deus não habita em santuários construídos pela mão dos homens130. Do mesmo modo, no Apocalipse, João não viu qualquer templo na Jerusalém Celeste, porque Deus era o seu templo131. Há referência, porém, a

três tipos de arquitectura religiosa: a do Templo de Jerusalém, a dos locais de reunião e de oração judaica (sinagoga e “proseuca”) e a dos deuses do panteão greco-romano. O Templo de Jerusalém, ornado de belas pedras e ofertas132, aparecenos citado muitas vezes, seja com o seu pinnaculum133, seja com as suas construções em pedra134, o seu altare para holocaustos, hóstias e oblações135, o seu altar de incenso136, o seu santuário137 e o seu véu138. Tinha um espaço anexo onde se juntavam cambistas e vendedores de pombas139 e mesmo até de ovelhas e de bois140 para os sacrifícios. Damo-nos conta do seu interior e exterior141, das suas portas142, de uma chamada Porta Speciosa143, e de um Pórtico, dito de Salomão144. Por seu lado, a sinagoga revela-se-nos através destes textos como o lugar por excelência onde Cristo e os Apóstolos se dirigem quando chegam a uma cidade. Se desde o início se manifestou imperativo o anúncio da Boa Nova de cidade em cidade – foi essa a resposta de Jesus aos habitantes de Cafarnaum quando estes o queriam, por assim dizer, só para eles145 – a sinagoga foi normalmente o lugar do primeiro anúncio. Os Evangelistas afirmam que Cristo espalhou a sua mensagem pelas sinagogas da Galileia146, sendo a primeira a da sua terra natal, Nazaré147, e da Judeia148. Mas também fora da Palestina os 132 Bonis lapidibus et donis ornatum, Lc. 21,5. 133 Mt. 4,5 e Lc. 4,9. 134 Aedificationes, Mt. 24,1, Mc. 13,1 e Lc. 21,5. 135 Heb. 10,8. 136 Lc. 1,11: Stans a dextris altaris incensi. 137 Sancta, Heb. 13,11. 138 Velum templi, Mt. 27,51, Mc. 15,38 e Lc. 23,45. 139 Mt. 21,12 e Mc. 11, 15. 140 Jo. 2,14. 141 Lc. 1,9-10 e Ac. 21,29-30. 142 Ianuae, Ac. 21,30. 143 Ac. 3,2: Ad portam templi, quae dicitur Speciosa. Ac. 3,10: Sedebat ad Speciosam portam templi.

126 Pes, Ac. 7,5. 127 Passus, Mt. 5,41.

144 Jo. 10,23: In templo, in porticu Salomonis. Ac. 3,11: Ad porticum , quae appellatur Salomonis. Ac. 5,12: Omnes in porticu Salomonis.

128 Cubitum, Mt. 6,27 e Ap. 21,17.

145 Lc. 4,43: Quia et aliis civitatibus oportet me evangelizare regnum Dei.

129 Jo, 4,21: Neque in monte hoc, neque in Ierosolymis.

146 Lc. 4,14-15: In Galilaeam...in synagogis eorum.

130 Non in manufactis templis habitat, Ac. 17,24.

147 Lc. 4,16.

131 Et templum non vidi in ea. Dominus enim Deus omnipotens templum illius est, et Agnus. Ap. 21,22.

148 Lc. 4,44.

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Apóstolos se dirigem em primeiro lugar às sinagogas, sendo referidas designadamente as de Salamina149, em Chipre, de Icónio150, de Antioquia da Pisídia151, de Atenas152, de Corinto153, de Tessalónica154, de Bereia155, de Tróade156, de Éfeso157 e de Damasco158. Pouco ou quase nada nos é dito sobre a arquitectura exterior e interior destes edifícios, numa fase em que predominaria mais a funcionalidade do que uma forma ou planta específica. Mesmo assim, há referências à reunião nesses edifícios de homens e mulheres159 e à existência de assentos para o orador e para os ouvintes160, assim como do rolo da Lei161, o que pressupõe mobiliário de suporte. A sinagoga de Cafarnaum foi edificada e oferecida por um centurião romano162, o que demonstra que a região sofreu um processo normal de romanização, quer pelo natural respeito dos romanos pelas religiões indígenas, neste caso o Judaísmo, quer pela prática do evergetismo. Em Filipos, a reunião dos judeus fazia-se numa proseucha ou lugar de oração junto ao rio, onde se juntavam as mulheres163. Esta palavra parece ter um sentido mais alargado do que sinagoga, embora em grego as palavras sejam praticamente sinónimas. Mas, como acontecerá com a palavra ecclesia, a palavra sinagoga também significa de início o acto de reunião e não o edifício ou lugar onde tal verifica. O mesmo acontece com a palavra proseucha, presente no texto original grego, que São Jerónimo traduz por oratio, e que tanto podia significar o acto da oração como o lugar ou construção onde ela se verificava. 149 Ac. 13,5. 150 Ac. 14,1. 151 Ac. 13,14.

Não conseguimos, todavia, ver nos textos o contexto urbano da sinagoga, para além de nos ser dito que, em Corinto, Paulo entrou numa casa contígua a um destes edifícios164. Finalmente, algumas indicações sobre a arquitectura religiosa grecoromana e sobre os deuses nela venerados, ou seja, sobre o culto tradicional e oficial do Império, bem documentado na passagem dos Actos sobre o então conhecidíssimo templo de Ártemis em Éfeso165, de que se faziam pequenos templetes em prata166, que eram comercializados por um ourives chamado Demétrio e seus artifices167. A ideia de sacrifício, tanto no mundo grecoromano, referido nos textos como entre as Gentes168, como no contexto judaico, era sempre associada a um templum, altare ou espaço sagrado. O culto aos deuses dos chamados gentios é suposto sempre que se nos reportam as carnes sacrificadas aos ídolos, referidas como idolothyta169, provenientes do que chamam mesas dos demónios170, designação que jogava entre a concepção hebraica dos anjos caídos e a seriação greco-romana dos deuses menores. Mas a sua melhor expressão manifesta-se quando, em Listra, um sacerdote de Júpiter se prepara para conduzir touros com grinaldas (coronae) para um sacrifício em honra de Júpiter e de Mercúrio, que julgava encarnados, respectivamente, em Barnabé e Paulo171. Paulo foi conotado com Hermes/Mercúrio porque era ele que tomava a palavra172. Outros deuses aparecem citados in genere. Castor e Pólux, os Dióscoros, surgem como insígnia de um barco que fazia a travessia do Mediterrâneo173. Outros aparecem supostos, como Apolo, quando se fala de uma mulher que possuía um espírito de Píton174. Imagens dos deuses do panteão greco-romano são observadas pelo

152 Ac. 18,18. 153 Ac. 18,4. 154 Ac. 17,1. 155 Ac. 17,10. 156 Ac. 16,11. 157 Ac. 19,1. 158 Ac. 9,20. 159 Lc. 13,11. 160 Lc. 4, 20: Et cum plicuisset librum, reddidit ministro, et sedit. Ac. 13,14 : Et ingressi synagogam die sabbatorum, sederunt.

164 Ac. 18,7: Cuius domus erat coniuncta synagogae. 165 Dianae templum, Ac. 19,27. 166 Aedes argenteae Dianae, Ac. 19,24. 167 Demetrius... argentarius...prestabat artificibus non modicum quaestum, Ac. 19,24. 168 Ac. 28,28 e I Cor. 10,20. 169 Ap. 2,20. 170 Mensae daemoniorum, I Cor. 10,21.

161 Ibidem.

171 Ac. 14,13.

162 Lc. 7,5 : Et synagogam ipse aedificavit nobis.

172 Quoniam ipse erat dux verbi, Ac. 14,12.

163 Ac. 16,13 : Foras portam iuxta flumen, ubi videbatur oratio (gr. proseuchên) esse : et sedentes loquebamur mulieribus, quae convenerunt.

173 In navi Alexandrina...cui erat insigne Castorum, Ac. 28,11.

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174 Ac. 16,16: Puelam quandam habentem spiritum pythonem obviare nobis.

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Apóstolo Paulo em Atenas, que ele classificará de estátuas mudas175. A constatação destes simulachra e respectivas aras permitirá ao Apóstolo fazer a ponte entre a religião politeísta e o Cristianismo quando localiza uma ara dedicada a um Ignotus Deus176, por ele identificado como o Deus dos cristãos. Falando de Jesus Cristo e da Ressurreição, os ouvintes, entre os quais se encontravam filósofos epicuristas e estóicos177, consideravam que Paulo lhes propunha a crença em deuses novos, noua daemonia178. Constatamos que o Novo Testamento refere a existência de altares, seja na religião greco-romana179, seja no judaísmo180, seja no cristianismo181. Mas neste último caso, referido na Carta aos Hebreus, o termo surge num sentido figurado, pois sabemos que, no início, e em todo o paleocristianismo, o altar cristão será sobretudo uma mesa, em contexto de triclinium, com os participantes reclinados em leito, pois é esse o sentido dos verbos discumbo, na narrativa da Última Ceia182, recumbo, no episódio de Emaús183, e até conuenio, numa reunião de Paulo e Lucas com os cristãos de Tróade, associados ao acto da fracção do pão184. Esta última referência é também importante porque, pela primeira vez, se afirma explicitamente que a reunião para a fracção do pão decorria no primeiro dia da semana, futuramente conhecido por Dia do Senhor, Dominicus Dies, ou Domingo185. Os três tipos de arquitectura referidos enquadram-se numa gestão de espaços e de liturgias garantidas por funcionários religiosos ou administrativos, cujo registo também pode aqui ser feito, dada a sua ligação activa com estes contextos edificados. No Templo de Jerusalém, os pontífices186, sacerdotes187, magistrados do Templo188, levitas189 e juristas190. Nas sinagogas, o arquissina175 Simulachra muta, I Cor. 12,2. 176 Inveni et aram, in qua scriptum erat : IGNOTO DEO. Ac. 17,23. 177 Epicurei, et Stoici philosophi disserebant cum eo, Ac. 17,18. 178 Ibidem. 179 Ara, Ac. 17,23. 180 Altare, Mt. 23,18 e Lc. 1,11. 181 Habemus altare, Heb. 13,10. 182 Discubuit... et accepit calice gratias, egit, et fregit … in mensa, Lc. 22,14-21. 183 Dum recumberet cum eis, accepit panem...ac fregit, Lc. 24,30. 184 Cum convenissemus ad frangendum panem, Ac. 20,7. 185 Una autem Sabbati, o dia a seguir ao Sábado, Ibidem. 186 Pontifices, Jo. 18,35 e Heb. 5,1. 187 Sacerdotes, Mt. 27,1 e Lc. 10,31.

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Forum de Roma, cidade referida em Ac. 28, 16-31. Foto do autor.

gogo191, o ministro192 e o chefe da sinagoga193. No contexto dos templos greco-romanos, um sacerdote de Júpiter, já citado194. E no âmbito da nova atitude religiosa, embora ainda sem uma arquitectura específica, se bem que já se fale de um altare cristão, que era a mensa de refeição em contexto doméstico195, temos já a alusão a bispos196, presbíteros197 e diáconos198.

188 Magistratus Templi, Lc. 22,52. 189 Levita, Lc. 10,32. 190 Legisperitus, Lc. 10,25. 191 Archisynagogus, Ac. 18,8. 192 Ministrum, Lc. 4,20. 193 Princeps synagogae, Ac. 18,17. 194 Sacerdos, Ac. 14,13. 195 Mensa Domini, I Cor, 10,21. 196 Episcopi, Tit. 1,7 e I Tim. 3,2. 197 Presbyteri, Ac. 14,23 e Tit. 1,5. 198 Diaconi, I Tim. 3,8.

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ARQUITECTURA PÚBLICA CIVIL O forum, praça cívica, religiosa, comercial e jurídica do mundo romano, aparece mais de uma vez citado, dando conta de que, sendo ele o ponto de encontro dos cidadãos do Império, tinha um cariz fundamentalmente urbano. Em cada cidade é também o lugar onde se dirigem os primeiros pregadores cristãos, seja para anunciar o seu kerigma e fazerem prosélitos, seja por aí serem levados perante a justiça do Império. Um dos fora referenciados é o de Filipos, na Macedónia199. A importância desta praça seria muito grande, dado o estatuto assumido pela cidade com a romanização. Além de ser a principal cidade da Macedónia, possuía também a categoria administrativa de colónia romana200. É ao seu forum que Paulo e Silas são levados coercivamente perante as autoridades201. É no contexto deste forum que eles são açoitados e depois metidos no cárcere202, onde ficam sob a vigilância de um guarda203 que lhes põe os pés no cepo204 e cadeias205. Este cárcere era um edifício autónomo, pois são referidos os seus alicerces, entradas e portas206. Outro cárcere também em parte descrito é o de Jerusalém, mas este dependente de Herodes e não da autoridade romana. O rei mandou prender Pedro com cadeias207 no cárcere208, de que se refere a cela ou habitaculum209, primeira e segunda guarda210, bem como a porta ferrea211 que dava para uma rua da cidade212. Outro forum citado é o de Atenas, também importante porque continuando as funções da antiga ágora, que é aliás o termo usado no texto gre199 Perduxerunt in forum ad principes, Ac. 16,19. 200 Philippos, quae est prima partis Macedoniae civitas, colonia, Ac. 16,12.

go213. A narração diz-nos que Paulo ali se dirigia todos os dias, discutindo com os filósofos epicuristas e estóicos, que o levaram com eles ao próprio Areópago214, o tribunal tradicional de Atenas. O edifício público que mais se cita, embora nem sempre seja clara a sua normal relação com o forum, é o tribunal, o que tem a ver, sem dúvida, com os problemas sociais, religiosos e jurídicos que o cristianismo levantou. Surge, de facto, seja no contexto judaico, onde aparece sob a designação de concilium215, seja no contexto romano, que generalizou a palavra hoje em uso. Em Jerusalém, o tribunal romano é associado à residência do governador ou praeses. Os evangelistas ora lhe chamam tribunal, ora praetorium, dada a conotação com a função judicial tradicional dos pretores romanos216. Segundo Marcos, o pretório tinha um átrio217 e, segundo João, Pilatos saiu “para fora e sentou-se em tribunal, no lugar chamado lithostrotos”218, ou seja num pátio revestido a mosaico ou a opus sectile219, lugar de onde podia ao mesmo tempo falar aos Judeus, os quais, por ser a Festa da Preparação da Páscoa, não podiam entrar dentro do Pretório, para não se contaminarem220. O governador é, assim, obrigado a entrar e a sair do pretório mais de uma vez, o mesmo acontecendo com Jesus, seja para este ter uma conversa privada com o praeses, seja para ser açoitado no interior. Há, assim, neste tribunal romano, que aqui surge mais constituído ad hoc do que funcionando num edifício específico, e que a existir surgiria normalmente integrado num contexto de basílica civil, uma interacção de cinco movimentos entre interior e exterior, entre dentro e fora221. Mas S. Mateus distingue tribunal de praetorium222. Segundo ele, Jesus é julgado no tribunal e açoitado no pretório. Em Cesareia, por sua vez, Paulo é mantido preso no praetorium chamado de Herodes223. Daqui é chamado pelo praeses Félix e depois pelo seu sucessor

201 Principes, Ac. 16,19; Magistratus, Ac. 16, 20 e 22. 202 Carcer, Ac. 16,23.

213 Ac. 17,17: En tê agorã.

203 Custos, Ibidem.

214 Ac. 17,19: Et apprehensum eum ad Areopagum duxerunt.

204 Lignum, Ac. 16,24.

215 Mt. 10,17, Ac. 22,30 e 23,20.

205 Vincula, Ac. 16,26.

216 Mt. 27,19 e Jo. 18,28.

206 Fundamenta... ostia ... ianuae, Ac. 16,26-27.

217 Duxerunt eum in atrium praetorii, Mc. 15,16.

207 Catenae, Ac. 12,6.

218 Adduxit foras Iesum: et sedit pro tribunali, in loco, quiu dicitur Lithostrotos, Jo. 19,13.

208 Misit in carcerem, Ac. 12,4.

219 Tipologia de revestimento de pavimentos ou paredes com recortes de placas (crustae) marmóreas.

209 Lumen refulsit in habitaculo, Ac. 12,7.

220 Jo. 18,28.

210 Transeuntes autem primam et secundam custodiam, Ac. 12,10.

221 Jo. 18,29 – 18,33 – 19,4 – 19,9 – 19,13.

211 Venerunt ad portam ferream, quae ducit ad civitatem, ibidem.

222 Mt. 27,27.

212 Et exeuntes processerunt vicum unum, ibidem.

223 Ac. 23,35: Iussitque in praetorio Herodis custodiri eum.

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Pórcio Festo ao tribunal224, que o Apóstolo considera, como cidadão romano que era, um tribunal de César225. Este edifício continha ou estava situado num auditorium, no qual se descreve uma audiência presidida pelo governador romano e assistida por Herodes e pela rainha Berenice, assim como pelos tribunos e pelos homens principais da cidade226. Outro tribunal citado, pela importância de quem a ele presidiu, o procônsul da Acaia, Galião, é o de Corinto.Também aqui uma queixa de Judeus em relação a Paulo levou a que fosse aberta audiência. Todavia, o procônsul disse recusar-se a ser juiz em questões que tinham a ver com a lei moisaica, mandando sair toda a gente. Em consequência, verificou-se um tumulto no exterior do tribunal227. Será de interesse sublinhar aqui que a palavra que no texto grego surge para designar tribunal é Bêma, que significa plataforma, estrado, tribuna, o que nos ajuda a imaginar a configuração interior do espaço onde funcionavam estas audiências forenses. À medida que a romanização avançava também na arquitectura dos edifícios públicos urbanos, o tribunal foise integrando no edifício da basílica civil, no forum, sendo a este respeito claras as normas vitruvianas e os testemunhos arqueológicos.Todavia, reportando-se os textos neotestamentários à segunda metade do séc. I d. C., a localização dos tribunalia citados não estaria ainda necessariamente integrada em contextos tão claros, como aliás poderá acontecer com os cárceres, também tantas vezes citados228 e que, segundo as recomendações vitruvianas, deveriam estar na zona do forum229.

A DOMUS

expressão esta que nos surge duas vezes230. Será na maior parte das situações a simples casa mediterrânica e, na maior parte dos ambientes urbanos, o termo reportar-se-á simplesmente à insula de dois a três andares. Existe uma alusão a um edifício de residência que será uma insula, na cidade de Tróade. No seu terceiro andar havia um coenaculum231 onde, após a celebração da eucaristia, o Apóstolo Paulo fez um discurso até à meia-noite, para o que essa sala dispunha de muitas lâmpadas232. O texto dos Actos fala-nos de uma janela (fenestra) nessa sala233, de onde caiu, desse terceiro andar234, um rapaz que ali se encostara e adormecera. A circunstância em que aqui nos aparece a palavra coenaculum corresponde à tradição romana que aponta este espaço como existente no(s) andar(es) superior(es) das casas, normalmente disponível pelo sistema de aluguer para reuniões, festas, banquetes, etc. A alusão ao terceiro andar identifica uma insula. Outras indicações dizem apenas respeito ao “andar de cima”, podendo essa ideia surgir tanto no contexto de uma domus como de uma insula, como é o caso do salão ou oecus onde Cristo, em Jerusalém, celebrou a Última Ceia com os seus discípulos. O aluguer ou empréstimo deste coenaculum foi contratado directamente com o dono da casa235, para que ali Jesus comemorasse a Páscoa. Os evangelistas dizem que este salão era grande e estava já preparado para a refeição236, supondo-se que o segundo adjectivo utilizado, stratum, indique a disposição dos leitos e das mesas. Nos Actos, verificamos que os Apóstolos, depois da Ascensão de Cristo, regressam a este coenaculum237, onde mais tarde também recebem o Espírito Santo238.Também aqui nos é dado um pormenor importante, que é o verbo ascendo239, utilizado para significar o acesso a este cenáculo que, como era normal, se encontrava sempre a um nível superior ao rés-do-chão. Por outro lado, na mesma passagem dos Actos nos é dito que, naqueles dias, chegaram a juntar-se nesse espaço

Dado o contexto urbano em que o cristianismo prioritariamente se expande, é a domus que se destaca nas referências à arquitectura doméstica. A casa, porém, não é necessariamente a grande casa de estatuto ou domus regis,

230 Mt. 11,8 e Lc. 7,25.

224 Ac. 25,6 e 25,17.

233 Sedens... super fenestram, Ac. 20,9.

225 Ac. 25,10: Ad tribunal Caesaris sto, ibi me oportet iudicari.

234 Cecidit de tertio coenaculo deorsum, ibidem.

226 Ac. 25,23.

235 Dominus domus, Mc. 14,14; Paterfamilias domus, Lc. 22,11.

231 In coenaculo, ubi eramus congregati, Ac. 20,8. 232 Erant autem lampades copiosae, ibidem.

227 Ac. 18,17: Percutiebant eum ante tribunal.

236 Coenaculum grande, stratum, Mc. 14,15; Coenaculum magnum stratum, Lc. 22,12.

228 Mt. 5,25 e 11,2, Lc. 3,20: Et inclusit Ioannem in carcere e 21,12, Ac. 5,18: Et posuerunt eos in custodia publica e II Tim. 2,8.

237 Et cum introissent in coenaculum, Ac. 1,13.

229 De Architectura,V, II, 1.

239 Ascenderunt ubi manebunt, Ac. 1,13.

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238 In eodem loco, Ac. 2,1.

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cerca de cento e vinte pessoas240, o que está de acordo com a indicação de que o salão era grande e amplo. Por outro lado, quando Jesus envia Pedro e João241 a tratar dos preparativos da Páscoa e manda perguntar ao dono da domus qual o coenaculum que lhe serviria de lugar para celebrar a festa, a palavra utilizada para exprimir a utilidade que ia dar a esse local é de refectio242 (aposento, repouso) e de diversorium243 (hospedaria, estalagem, retiro). São Jerónimo traduz por estas diferentes palavras, em Marcos e Lucas, o termo grego comum aos textos dos dois, que é katályma, ou seja, hospedaria, albergue. O que significa que Jesus, chegado à cidade de Jerusalém, precisava de instalações amplas para se aboletar na cidade com os seus discípulos mais chegados, a fim de ali comemorar a Páscoa. E a prova é que foi ali que os Apóstolos permaneceram até à Festa do Pentecostes, funcionando assim o grande cenáculo não só como salão de refeições mas também como hospedaria. Também a casa de Caifás teria um cenáculo, local onde se reuniu o tribunal do Sinédrio para julgar Cristo. Com efeito, enquanto tal acontecia, o texto diz que Pedro se encontrava em baixo, no átrio244. Os cenáculos também poderiam servir para a exposição dos corpos dos defuntos antes dos funerais, como se verificou no caso em que Pedro ressuscitou uma mulher chamada Dorcas, em Jope245. As referências à arquitectura doméstica são, porém, mais vastas. Dispensamo-nos aqui de fazer um levantamento exaustivo, citando apenas as passagens que permitem perceber melhor, seja as partes da casa, seja a relação desta com outras informações de interesse para o nosso escopo. É-nos afirmado que a domus deve ser edificada sobre a rocha e não sobre a areia246. Possui alicerces247 e uma porta ou entrada248.Tem um tecto249, telhas250, janelas251, quartos252

e respectivas portas253. Em casas de estatuto vislumbram-se triclínios ou salas de refeição que, embora nunca sejam referidas pelo seu nome, são documentadas pela alusão à mensa254 e pela utilização do verbo discumbo (reclinar-se) após a entrada em casa255. Na casa do publicano Mateus reforça-se a ideia da domus romana com triclinium256. Do mesmo modo, regista-se a presença do atrium, seja genericamente numa casa de estatuto257, seja no caso concreto e já citado do átrio da casa de Caifás258, obviamente também uma casa de uma pessoa importante.A casa neotestamentária pode ter também um hortum ou jardim (uiridarium), sendo referida in genere a primeira acepção259. A referência explícita a casas de centuriões e outras autoridades romanas reforça a ideia da interacção da casa itálica e grega com a arquitectura doméstica tradicional palestinense.

240 Ac. 1,15: Erat autem turba hominum simul, fere centum viginti.

253 Ostia, Mt. 6,6.

A VILLA No que respeita à Villa, habitação independente rural ou suburbana, de exploração agrícola, pecuária ou simplesmente de otium, também os textos nos dão conta de importantes informações. As referências aos territórios das cidades260 e ao campo, onde os servos lavravam ou apascentavam gado261, assim como aos proprietários rurais262, surgem-nos com evidente clareza. O território é descrito como sendo composto pela cidade e pelas Villae263. 250 Tegulae, Lc. 5,19. 251 Fenestra, Ac. 20,9. 252 Cubicula, Mt. 6,6, Lc. 12,3; Cubilia, Lc. 11,7.

241 Lc. 22,8.

254 Apposuit eis mensam, Ac. 16,34.

242 Mc. 14,14.

255 Discumbente eo in domo, Mt. 9,10.

243 Lc. 22,11: Et dicetis patrifamilias domus: dicit magister: ubi est diversorium, ubi pascha cum discipulis meis manducem?

257 Cum fortis armatus custodit atrium suum, Lc. 11,21.

244 Cum esset Petrus in atrio deorsum, Mc. 14,66.

258 Mt. 26,58, Mc.14,54, Lc. 22,55 e Jo. 18,15.

256 Discumbebant cum Iesu, ibidem.

245 Quam cum lavissent, posuerunt eam in coenaculo, Ac. 9,37.

259 Homo misit in hortum suum, Lc. 13,19.

246 Mt. 7,24: Aedificavit domum suam super petram.

260 Fines, Mt. 8,34.

247 Fundamenta, Lc. 6,48.

261 Servum arantem aut pascentem, qui regresso de agro..., Lc. 17,7.

248 Ianua, Mt. 26,71 e Ac. 10,17; Ostium, Lc. 11,7 e Jo. 18,16; Ostium ianuae, Ac. 12,13.

262 Possessores agrorum, Ac. 4,34.

249 Tectum, Mt. 8,8, 10,27 e 24,17., Mc. 13,15.

263 Nuntiaverunt in civitatem, et in villas, Lc. 8,34.

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Nem sempre, porém, a Villa nos é mostrada explicitamente como construção doméstica ou fructuaria, podendo em certos casos ser confundida com uma possessio, praedium, fundus ou até, simplesmente, hortum. Mas sabemos que todos estes termos tinham associados a si a ideia de um terreno mais ou menos vasto com uma construção para apoio à exploração agrícola ou pecuária. São Lucas, nos Actos, refere os praedia de um homem principal da ilha de Malta264, chamado Publius, onde foram bem recebidos Paulo e seus companheiros após um naufrágio. O Apóstolo visitou aí o pai do proprietário, que estava doente na cama, tendo-o curado. Embora não afirmado de forma explícita, vislumbra-se aqui uma Villa. Também na parábola do filho pródigo se afirma que este acaba por ir trabalhar para uma Villa265 de um certo cidadão266, sendo a sua função guardar porcos267. Muitos desses praedia rurais apostavam na produção de vinho, pelo que são simplesmente referidos nos textos evangélicos como vinhas, o que não impedia que tivessem outro tipo de produção como, por exemplo, de figueiras268, já então devidamente cavadas em volta e estrumadas269. É neste contexto que vemos o paterfamilias contratar operarii ou mandar os filhos trabalhar na sua vinha270. Estas duas últimas citações são de parábolas, mas estas imagens tinham, de facto, um referente nos fundi ou possessiones rurais conhecidos dos ouvintes de Cristo: eram circundadas por sebes ou cercas271, a ponto de se citarem apenas pelo nome de cercados272, tendo nelas edificadas torres273 para residência ou defesa e instalados lagares274 com os seus tanques275. Há também referência a celeiros276 e a armazéns de trigo277, assim como a eiras278 e a fornos

de cozer pão279. Estes prédios ou Villae eram muitas vezes arrendados pelo proprietário ou paterfamilias a agricultores280, colonos 281ou simples cultivadores282. Ainda na linguagem das parábolas, vemos um convidado que não aceita ir a um banquete porque preferiu ir para a sua Villa283 ou outro que também havia comprado uma e tinha necessidade de se ausentar para a ir ver284. Estas Villae existiam, de facto, na apropriação, gestão e exploração dos espaços rurais do território palestinense, seja nas zonas suburbanas, como a propriedade suburbana de Getsémani, a que Marcos chama praedium285 e Mateus Villa286, um dos lugares predilectos de Jesus, seja nas mais afastadas zonas rurais, em cujas Villae as multidões, que durante vários dias seguiam Cristo, poderiam comprar mantimentos, como também muito objectivamente nos é afirmado por São Marcos287.

OUTRAS TIPOLOGIAS DE ARQUITECTURA Há ainda outros tipos de arquitectura referidos nos textos neotestamentários. Desde uma schola em Éfeso288, onde Paulo discursou durante dois anos, até às estalagens nas cidades ou nos eixos viários. No ambiente das cidades, vemos a alusão à estalagem, chamada diversorium289, de Belém, e à casa de aluguer (conductum)290 ou hospedaria (hospitium)291 onde Paulo se instalou 277 Horrea, Mt. 3,12; 6,26; 13,30. Lc. 3,17; 12,18 e 12,24. 278 Areae, Mt. 3,12 e Lc. 3,17.

264 Princeps insulae, Ac. 28,7.

279 Clibani, Mt. 6,30 e Lc. 12,28.

265 Misit illum in villam suam, Lc. 15,15.

280 Agricolae, Mc. 12,1.

266 Uni civium regionis illius, ibidem.

281 Coloni, Mc. 12,9.

267 Ut pasceret porcos, ibidem.

282 Cultores, Lc. 13,7.

268 Arborem fici habeat quidam plantatam in vinea sua, Lc. 13,6.

283 Mt. 22,5: Et abierunt, alius in villam suam.

269 Usque dum fodiam circa illam, et mittam stercora, Lc. 13,8.

284 Lc. 14,18: Villam emi, et necesse habeo exire et videre illam.

270 Conducere operarios in vineam suam, Mt. 20,2; Fili, vade hodie, operare in vinea mea, 21,28.

285 Mc. 14,32: Et veniunt in praedium, qui nomen Gethsemani.

271 Homo erat paterfamilias, qui plantavit vineam, et sepem circumdedit ei, Mt. 21,33 e Mc.12,1.

286 Mt. 26,36: Tunc venit Iesus cum illis in villam, quae dicitur Gethsemani.

272 Exi in vias, et sepes, Lc. 14,23. Esta expressão dá conta de uma rede de vias ou caminhos ligando estas explorações rurais.

287 Mc. 6,36: Ut euntes in proximas villas, et vicos, emant sibi cibos.

273 Et aedificavit turrim, Mt. 21,33 e Mc. 12,1. 274 Et fodit in ea torcular, Mt. 21,33..

289 Lc. 2,7: Et reclinavit eum in praesepio: quia non erat eius locus in diversorio. A referência ao praesepium (mangedoura) poderá referir a parte baixa da estalagem, onde se guardavam os animais.

275 Et fodit lacum, Mc. 12,1; Et misit in lacum, Ap. 14,19.

290 Ac. 28,30: Mansit autem biennio toto in suo conducto.

276 Cellaria, Lc. 12,24.

291 Ac. 28,23: Venerunt ad eum in hospitium plurimi.

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288 Ac. 19,9: Quotidie disputans in schola tyranni cuiusdem.

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Entrada do Cárcere junto ao Forum de Roma, conhecido por Prisão Mamertina, do séc. I d.C. Foto do autor.

em Roma sob a vigilância de um soldado292. Como apoio aos viajantes nas estradas, cita-se uma estação de muda, dita stabulum293, na estrada que ia de Jerusalém a Jericó e que, segundo São Lucas, tinha um funcionário chamado stabularius294. Citam-se também duas eventuais stationes na via Puteoli-Roma, com os nomes de Tres Tabernae e Apii Forum295. A arquitectura portuária também é referida quando se diz que o portus de Fenice, em Creta, se encontrava bem localizado em relação aos ventos aí dominantes, o Áfrico e o Coro296. No mesmo contexto, poderíamos fazer um levantamento interessante de termos concernentes à arquitectura naval, sobretudo na roteiro da viagem marítima com naufrágio, descrita em pormenor por São Lucas no seu itinerário de Cesareia para Roma297, acompanhando São Paulo. Encontram-se também presentes os mirabilia aquarum, seja na alusão a piscinas, como a que São João chama de probatica piscina, com cinco pórti-

cos298, a poços299, fontes300, bicas de água301 e mobiliário ou objectos associados, como talhas de pedra302, ânforas303, cântaros304, jarros305, bacias306 e vasos de barro307 ou de metal308 e copos309. A arquitectura industrial transparece aqui e ali, designadamente num sentido alegórico mas com base em construções então existentes, como os fornos de fundir metais (caminus)310 e fornalhas (fornax)311. Finalmente, a arquitectura do espectáculo, que nos é trazida como imagem do quotidiano dos jogos do Império romano para o combate travado pelos primeiros cristãos, ou como referência a um edifício concreto. No primeiro caso, regista-se o estádio (stadium)312 e o agon313, lugar onde se realizavam os jogos públicos, mas que poderá ser identificado com a arena do amphitheatrum, edifício de solução romana que nessa altura ensaiava os primeiros passos de instauração através do Império. No segundo caso, temos uma referência ao Theatrum de Éfeso, construção grega que sofreu as alterações típicas do teatro romano e que ainda hoje podemos visitar. Os Actos dizem-nos que, com receio de que diminuisse o negócio que faziam com os ex-votos em honra da deusa Ártemis/Diana, cujo templo na cidade era considerado uma das sete maravilhas do mundo, os artistas locais provocaram um tumulto na cidade contra Paulo, ao som do grito: Grande é a Ártemis dos Efésios314. Contam os 298 Jo. 5,2: Est autem Ierosolymis Probatica piscine, quae cognominatur Hebraice Bethsaida, quinque porticus habens. 299 Lc. 14,5: In puteum cadet. Jo. 4,12: Qui dedit nobis puteum. 300 Jo. 4,6: Sedebat sic supra fontem.Tg. 3,11: Numquid fons de eodem foramine emanat dulcem. 301 Foramina,Tg. 3,11. 302 Lapideae hydriae, Jo. 2,6. 303 Amphorae, Lc. 22,10. 304 Hydria, Jo, 4,28. 305 Urcei, Mc. 7,8. 306 Pelvis, Jo. 7,8. 307 Vas figuli, Ap. 2, 27. 308 Aeramenta, Mc. 7,4.

292 Ac. 28,16.

309 Calices, Mt. 23,25 e Mc. 7,8. Mt. 10,42: Calix aquae frigidae.

293 Lc. 10,34: Duxit in stabulum, et curam eius egit.

310 Ap. 1,15: Sicut in camino ardenti.

294 Lc. 10,35: Et altera die protulit duos denarios, et dedit stabulario.

311 Ap. 9,2: Sicut fumus fornacis magnae.

295 Ac. 28,25: Occurrerunt nobis usque ad Apii forum, ac tres Tabernae.

312 I Cor. 9,24: Qui in stadio currunt.

296 Ac. 27,12: Respicientem ad Africum, et ad Corum.

313 I Cor. 9,25: Qui in agone contendit.

297 Ac.,caps. 27 e 28.

314 Ac. 19, 29-32: Et impetum fecerunt uno animo theatrum… eum rogantes ne se daret in theatrum…

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Actos dos Apóstolos: E encheu-se a cidade de desordem e, todos à uma, se precipitaram para o Teatro, arrebatando com eles Gaio e Aristarco, macedónios, companheiros de Paulo. E querendo este apresentar-se ao povo, tal não lhe foi permitido pelos discípulos. Mesmo alguns dos principais da Ásia, seus amigos, lhe mandaram pedir que não entrasse no Teatro. Gritavam uns de um lado e outros de outro, ignorando a maior parte do ajuntamento, confundido, o motivo daquela reunião315. O tumulto chegou ao rubro com a multidão a gritar durante cerca de duas horas o grito atrás referido.Tudo terminou com o scriba316, um magistrado da cidade, a apelar à calma e a dizer que aquela assembleia era ilegal, tendo de haver conuentus forenses, ou seja, convocatórias para uma reunião oficial, deduzindo acusação perante os procônsules317. O Theatrum de Éfeso revela-se-nos assim como um dos lugares mais importantes da cidade, como aliás poderá ainda ser constatado nos nossos dias pela sua localização topográfica, e como contraponto entre o templo de Ártemis e o forum. É interessante a informação de que o povo procurou o teatro como local de ajuntamento e não o forum.Tal se deveria à grande dimensão da cávea e, possivelmente, por a essa hora haver espectadores no teatro. Não nos é aduzida qualquer palavra identificativa das partes constitutivas deste edifício, mas o desenrolar da acção permite-nos imaginar a multidão espalhada por parte da cávea enchendo a orchestra, enquanto os magistrados e principais da cidade tentavam fazer-se ouvir no pulpitum ou sobre o muro do proscénio.

ARTÍFICES E MATERIAIS EDILÍCIOS As diferentes técnicas e materiais, assim como os artistas que permitiram o grande desenvolvimento e estatuto da arquitectura romana também estão presentes nos quotidianos narrados nos textos do Novo Testamento. As profissões de técnicos especializados em construção ou com ela directa ou indirectamente relacionados são citadas genericamente como fazendo parte da sociedade urbana terrestre, representada pela cidade de Babilónia, quando se afirma que não se encontraria mais nela artista algum de qualquer arte318. Os 315 Ac. 19, 32-40. 316 Ibidem. 317 Ibidem. 318 Ap. 18,22: Et omnis artifex omnis artis non invenietur.

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edifícios, sejam eles de ordem material, sejam de ordem espiritual, que é a perspectiva preferencial dos textos, têm os seus construtores319 e a cidade espiritual possui também o seu artífice e fundador320. Qualquer edifício espiritual deverá ter os seus fundamento lançados por sábio arquitecto321. Encontramo-nos, assim, perante imagens retiradas do quotidiano. Mas são também citados artistas actuando sobre a arquitectura real e concreta, como os fundidores322, os carpinteiros323, bem como, de modo mais indirecto, oleiros324, artífices argentários325, da arte das tendas e cenários326, assim como há referência à arte da escultura em ouro, prata ou pedra327. Os materiais utilizados que podemos elencar são, na realidade, sobretudo a pedra, como acontece em relação às construções do Templo de Jerusalém328, onde se supõe o típico traço isódomo greco-helenístico correspondente ao opus quadratum romano, igualmente presente no tropo da pedra angular329. Mas também se referem, no contexto das mercadorias negociadas pelos comerciantes de Babilónia, imagem da cidade terrestre, a madeira odorífera330, o bronze331, o ferro332 e o mármore333, materiais que, sem dúvida, têm a ver com a ornamentação das cidades e edifícios do Império romano, como o demonstra o não esquecimento do material que permitia a chamada marmorização em curso nas cidades romanas durante o séc. I da nossa Era, bem documentada na frase que Suetónio disse do Imperador Augusto: gloriou-se de deixar em mármore uma cidade que recebeu em tijolo334. 319 Mt. 21,42 e Mc. 12,10: Lapidem, quem reprobaverunt aedificantes. 320 Heb. 11, 10: Cuius artifex, et conditor Deus. 321 I Cor. 3,10: Ut sapiens architectus fundamentum posui. 322 Aerarius: II Tm. 4,14. 323 Fabri: Mt. 13,55 324 Figuli: Mt. 27,7. 325 Argentarii: Ac. 19,24. 326 Ac. 18,3: Erant autem scenofactoriae artis. 327 Ac. 17, 29: Auro, aut argento, aut lapidi, sculpturae artis. 328 Mc. 13,1: Quales lapides, et quales structurae. Lc. 21,5 : Bonis lapidibus, et donis ornatum esset. 329 I Pd. 2,7: Lapis...hic factus est in caput anguli. 330 Lignym thyinum, Ap. 18,12. 331 Aeramentum, Ibidem. 332 Ferrum, Ibidem. 333 Marmor, Ibidem. 334 Divus Augustus, 29: Ut iure sit gloriatus marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset tutam vero.

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Mas a riqueza dos textos, na sua tensão para a metáfora escatológica do edifício e da cidade, ressalta sobretudo pela quase preferência por outro tipo de materiais que, pela sua riqueza, raridade ou até pobreza, subvertem a realidade mas dão sentido e reforçam a mensagem. Assim acontece com o edifício espiritual citado por São Paulo, que poderia ser construído com ouro, prata, pedras preciosas, madeiras, feno ou palha335, ou com a Cidade Santa de Jerusalém, descrita no Apocalipse como sendo de ouro puro, semelhante ao cristal igualmente puro336. Tinha esta, segundo este Livro, a extensão de doze mil estádios e a sua muralha cento e quarenta e quatro côvados, toda ela de jaspe337, e nos seus fundamentos viam-se a safira338, a calcedónia339, a esmeralda340, a sardónica341, a cornalina342, o crisólito343, o berilo344, o topázio345, o crisópraso346, o jacinto347 e a ametista348. Ficamos aqui sem qualquer dúvida da evidente intenção do autor do Apocalipse em recolher da natureza os materiais mais preciosos, que de facto poderiam ser usados como ornamento na arquitectura régia ou imperial – recordemos a Domus Aurea do Imperador Nero, de que todos, incluindo os Apóstolos e Evangelistas de certeza ouviram falar na segunda metade do séc. I d.C. – para significar a cidade ideal prometida e esperada pelo cristianismo nascente. Este lapidarium enumerado por São João poderá bem ser enquadrado na curiositas clássica dos levantamentos mineralógicos que conhecemos desde Teofrasto349, com destaque para os 335 I Cor. 3, 12-14: Si quis autem superaedificat fundamentum hoc, aurum, argentum, lapides pretiosos, ligna, foenum, stipulam… 336 Ap. 21, 18: Ipsa vero civitas aurum mundu simile vitro mundo. 337 Ex lapide iaspide, Ap. 21,18. 338 Sapphirus, Ap. 21,19. 339 Calcedonius, Ibidem. 340 Smaragdus, Ibidem. 341 Sardonyx, Ibidem. 342 Sardius, Ap. 21,20. 343 Chrysolithus, Ibidem. 344 Beryllus, Ibidem. 345 Topazius, Ibidem. 346 Chrysoprasus, Ibidem. 347 Hyacinthus, Ibidem. 348 Amesthystus, Ibidem. 349 D.E. Eichholz, Teophrastus, De Lapidibus, Introduction, translation and Commentary, Oxford, 1965. E. R. Caley and J.F.C. Richards, Theophrastus, On Stones,. Introduction, text, translation and commentary, Colombus, Ohio State University, 1956.

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elencos, praticamente contemporâneos do Livro do Apocalipse, de Plínio-o-Velho350, dos meados do séc. I d. C. e do chamado Lapidário Órfico351, dos princípios do séc. II.

CONCLUSÃO Temos de observar que, embora tenhamos tido sempre presente o texto grego, a que por vezes recorremos, foi sobre o texto latino que aqui se fez o levantamento dos termos e referências directas ou indirectas à arquitectura nos livros neotestamentários. Foi o estudo do léxico latino que permitiu, com efeito, o seu enquadramento na arte e cultura romanas, presentes na ocupação e administração da parte oriental do Império, onde decorre a maior parte da acção narrada nesses textos.Verificamos na tradução da Vulgata que o próprio São Jerónimo teve dificuldade em relacionar a tradição grega e helenística com a consuetudo italica, esta já mais que consagrada no seu tempo. De facto, os autores do Novo Testamento são oriundos da parte oriental do Império, tendo escrito originariamente logo em grego, à excepção de São Mateus, manifestando, por isso, uma visão das coisas a partir de um contexto judaico, com progressiva abertura aos mundos helenístico e romano, mas usando sempre o léxico grego. No que respeita à descrição dos contextos arquitecturais, São Jerónimo empresta uma clara interpretatio romana, característica dos finais do Império, a esta adaptação dos escritores Apóstolos e Evangelistas à tradição greco-helenística. Para além de forçar, digamos assim, essa interpretatio em relação a textos que foram escritos mais de três séculos antes, São Jerónimo, que viveu em Belém parte significativa da sua vida, faz a sua tradução perante o constatar da evolução da arquitectura e da paisagem humanizada na Palestina e no Próximo Oriente em geral entre o séc. I e os princípios do séc. V. Estamos, pois, em grande parte, perante uma visão da Antiguidade Tardia sobre o Império Romano no Oriente, sobreposta à dos tempos que vão de Augusto a Trajano, sobreposição cuja décalage seria interes350 E. De Saint Denis, Pline, Histoire Naturelle, Livre XXXVII, Texte établi, traduit et commenté, Paris, Les Belles Lettres, 1972. J.André, R. Bloch et A. Rouveret, Pline, Histoire Naturelle, Livre XXXVI,Texte établi, traduit et commenté, Paris, Les Belles Lettres, 1981. 351 Lapidario órfico, Madrid, E.Gredos, 1990, pp. 343-409.

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sante fazer noutro tipo de abordagem, seja sob o ponto de vista da interacção dos textos grego e latino, seja sob o ponto de vista da História da Arte. Independentemente, porém, destas ressalvas, podemos concluir que os textos neotestamentários nos patenteiam uma perspectiva sobre a cidade helenística que, como a imaginava Dinócrates, o arquitecto de Alexandre Magno, teria a sua posição ideal no cimo de um monte352, pois aí, como diria São Mateus, não se poderia ocultar353. Todavia, encontra-se já presente a indelével marca do urbanismo romano, ponto de encontro de todos os que vêm do Oriente, do Ocidente, do Norte ou do Sul354. Chega-nos clara a informação de que a cidade é indissociável do campo, ou seja, do seu território, como bem o demonstra a frase de São Lucas ao dizer que uma notícia correu pela cidade e pelas Villae355. A cidade é instaurada no sítio mais estratégico de um determinado território (fines) e nesse local se instaura o urbanismo clássico, com três tipos de arquitectura: a militar, que diz respeito à defensio, a religiosa, que pertence à religio, e a de utilidade pública, no âmbito da opportunitas356. Damo-nos, assim, conta da progressiva aculturação do mundo semita com o mundo indo-europeu, através da proposta que este faz da ideologia das três funções357. É, efectivamente, a cidade, na convergência dos seus traçados e funções, seja ela hipodâmica, etrusco-itálica ou vitruviana, com o seu território e a sua integração nos eixos viários, marítimos ou terrestres, a realidade que mais transparece nestes textos dentro da categoria do espaço e de acordo com a sensibilidade do Historiador da Arte. Mas porque o objectivo dos seus autores se enquadra numa perspectiva escatológica, tudo neles assume uma dimensão conotativa, como imagem da eternidade. Assim o exprime o simples acto de construir – recordemos a sempre presente imagem bíblica da pedra angular358 – e a descrição da Nova Jerusalém359.

Na perspectiva neotestamentária, com efeito, a verdadeira cidade, a que possui sólidos fundamentos, é aquela que tem por artifex e por conditor, ou seja, por artífice e fundador, o próprio Deus360.

352 Vitrúvio, De Architectura, II, Pr. 2. 353 Mt. 5,14: Non potest civitas abscondi supra montem posita. 354 Lc. 13, 29: Et venient ab Oriente, et Occidente, et Aquilone, et Austro. 355 Lc. 8,34: Et nuntiaverunt in civitatem, et in villas.

Edifício da Cúria no Forum de Roma, cidade referida em Ac. 28, 16-39. Foto do autor.

356 Vitrúvio, De Architectura, I, III, 1: Publicorum autem distributiones sunt tres, e quibus est una defensionis, altera religionis, tertia opportunitatis. 357 G. Dumézil, Idées romaines, Paris, 1969. G. Dumézil, La religion romaine archaïque, Paris, 1974. 358 Sl. 118,22. 359 Ap. 21, 10-23.

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360 Heb. 11,10: Expectabat enim fundamenta habentem civitatem: cuius artifex, et conditor Deus.

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MEMÓRIA E IMAGEM Reflexões sobre Escultura Tumular Portuguesa (Séculos XIII e XIV) José Custódio Vieira da Silva*

Túmulo de Fernão-Sanches. Calcário, 90 x 220 x 65 cm. Museu do Carmo, Lisboa. Foto do autor.

RESUMO A reflexão sobre a novidade que a invenção do jacente representa, em termos artísticos e mentais, constitui o ponto de partida para a análise da evolução dos espaços funerários na arquitectura europeia ao longo da Idade Média e das funções e objectivos da representação escultórica tumular: de memória individual – o monumento, e de memória social – a imagem de si. Neste contexto, procede-se de seguida à inventariação e entendimento dos temas, das representações dos principais centros de produção artística, para se concluir com alguns casos particulares: um contrato de encomenda de um túmulo e as arcas tumulares de D. Pedro I e de D. Inês de Castro.

O objectivo mais imediato que precipitou estas reflexões sobre a escultura tumular portuguesa dos séculos XIII e XIV foi o de torná-las lição de síntese requerida pelas provas académicas de Agregação.Tal desiderato cumpriu-se, nos termos da lei, nos dias 30 e 31 de Outubro de 2003, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Era, no entanto, desejo bem mais antigo olhar com demora essas representações verdadeiramente monumentais (tanto na definição etimológica quanto na realização artística) e reflectir com a circunspecção possível não apenas sobre os seus valores plásticos e estéticos mas também (ou ainda mais) sobre os sentidos profundos, as dinâmicas envolvidas, as questões mentais, as afirmações de poder(es) que nelas ressaltam com evidente clareza. Beneficiando de um trabalho de vários investigadores (com destaque para a acção intensa e consistente de Virgílio Correia) que, ao longo do século XX, foram levantando e estudando, sob o ponto de vista tanto arqueológico quanto histórico e artístico, os diversos monumentos funerários erguidos em solo português, pôde-se, mercê desses contributos e a partir deles, avançar – com a consciente e necessária prudência – para outras reflexões. O mundo da representação social e mental expressa nesses corpos deitados (mas de olhos abertos) e revestidos com o aparato dos símbolos definidores das suas funções sociais exalava um sortilégio que reclamava por uma decifração e entendimento alargados. Mais do que de morte, era de vida (e vida vibrante) o apelo pressentido nessas personagens, agora sérias, agora de leve sorriso apenas aflorado – mas sempre serenas. Para além do mais, se o cotejo com representações similares de outras zonas europeias, particularmente de Espanha, França e Itália, permitiu confirmar, por um lado, a existência de coincidências cronológicas e analogias iconográficas (mesmo que por vezes o ritmo e a intensidade da produção nem sempre se revelem coincidentes na totalidade), também permitiu, por outro lado, destacar * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

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especificidades de representação que fazem da escultura tumular portuguesa dos séculos XIII e XIV uma das áreas porventura dotadas de maior originalidade da criação plástica medieval no nosso país. Mesmo tendo sempre presente, para a validação e fundamentação de quaisquer juízos de análise, a quantidade considerável desses testemunhos artísticos que, por razões as mais diversas, desapareceram sem deixar qualquer rasto, o número e a qualidade dos sobreviventes permitem, de qualquer modo, tanto ajuizar com segurança sobre essa originalidade quanto confirmar a importância excepcional que, para o entendimento mais profundo das representações sociais e mentais, esses homens e mulheres – jacentes na imobilidade da pedra-tampa das suas arcas – testemunham de forma redundante. O fio condutor destas reflexões é precisamente a presença desse jacente, pela sua relevância como fenómeno plástico e mental de grande alcance. Não se trata, por consequência, de uma análise dos problemas mais vastos da morte e dos vários rituais a ela associados (entre os quais, e dos mais importantes, está sem dúvida o da tumulação), mas apenas das arcas funerárias que a partir do século XIII, em Portugal, se monumentalizam (em sentido literal e em sentido figurado) com as representações de estátuas/jacentes de progressiva afirmação artística e ideológica. É essa, por consequência, a razão fundamental por que deixamos de lado não só a análise mas também uma qualquer referência, ainda que simples, à arca funerária atribuída ao rei D. Fernando (no Museu do Carmo, em Lisboa): a inexistência de jacente coloca-a de fora da evolução até aí seguida pela escultura tumular portuguesa, pelo que não faria sentido incluí-la nestas reflexões. A incomodidade suscitada por essa ausência, de certo modo suspeita, agrava-se com a exposição nas duas faces maiores, como elemento decorativo de grande consistência compositiva e visual, da heráldica dos Manuéis, linhagem a que a mãe do monarca pertencia.Talvez a arca tumular tivesse sido realizada exactamente para D. Constança Manuel e, por via de todos os problemas políticos e sociais que se seguiram à morte de D. Fernando, aproveitada para nela se depositar, como solução de recurso, o corpo do rei. Assim se percebe que o brasão régio apenas apareça exposto na tampa do sarcófago, único lugar disponível para receber essa identificação, de realização mais expedita do que o esculpir de uma estátua. Para além disso, não se afigura muito crível, em termos das mentalidades medievais, um monarca colocar, como decoração exemplar no seu túmulo e de forma tão ostensiva quando a desta arca atribuída a D. Fernando, a heráldica da linhagem materna.

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É uma questão que, como muitas outras, permanece em aberto, à espera de novos contributos e decifrações. Confirmação, afinal, da grande riqueza e complexidade de problemas suscitados por esta criação medieva de grande significado, qual é a do jacente.

A NOVIDADE DO JACENTE: A INVENÇÃO E A IMPORTÂNCIA DO TEMA. A estátua-coluna e o jacente medievais provêm ambos dum mesmo espírito inventivo de que não é fácil encontrar antecedentes, pelo que, a partir da evidência e aceitação deste pressuposto, se pode desde logo afirmar que quer uma quer outro são não apenas uma das grandes criações surgidas na arte medieval mas também, sem qualquer dúvida, uma das que maior originalidade apresenta. Aliás, e em reforço comprovativo de tal evidência, não será difícil demonstrar como estas duas manifestações artísticas conseguem, desde o início, delimitar um lugar muito específico na afirmação da arte gótica1, como se de duas faces de uma mesma moeda se tratasse. Sendo, pois, verdade que tanto a estátua-coluna quanto o jacente relevam duma mesma e única invenção que é simultâneamente técnica (a recuperação, a partir dos séculos XI-XII, da escultura monumental) e estética (o caminhar progressivo para a representação naturalista do homem e da natureza), importa assinalar desde logo a forma como o jacente, de modo muito particular, se faz eco também de um outro significado que corporiza em grau superlativo uma das dimensões mais inovadoras das formas de representação mental do mundo gótico, ou seja, o seu insuspeito pendor humanista.Tal dimensão revela-se, concretamente, na atenção dada à representação autónoma do ser humano na sua irredutível individualidade. Esta novidade iconográfica do jacente, de que se desconhecem verdadeiramente os seus reais antecedentes (até porque não existe, com estes contornos, em qualquer outra civilização) é, primeiro que tudo, a expressão de uma sociedade cristã que mantém com o defunto uma relação (também ela ignorada, nestes termos, em qualquer outra cultura) de grande proximidade e

1 Cfr., de A. Erlande-Brandenburg, De pierre, d’or et de feu. La création artistique au Moyen Âge, Paris, Fayard,1999, p. 201 e também «O Jacente», in G. Duby e M. Laclotte (dir.), História Artística da Europa, vol. II, Lisboa, Quetzal, 1998, p. 295.

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familiaridade, dado que não o afasta do seu universo, antes o associa às suas orações e o mantém na sua lembrança. Pode dizer-se que, ao longo de toda a Idade Média, o jacente é sinal concreto de uma memória viva estreitamente associada às orações dos fiéis2. Neste contexto, importa desde já enfatizar a circunstância de a emergência progressiva do indivíduo, de que acima falávamos, se encontrar associada indelevelmente a este fenómeno novo dos jacentes os quais manifestam, à sua maneira, os traços dessa evolução, não apenas na sua formulação e representação materiais mas também através do lugar que vão ocupando nos templos cristãos3. Parecerá quase óbvio afirmar que eram as igrejas a atrair o homem medieval como espaço de eleição para o último repouso do seu corpo: entregá-lo, ou melhor, abandoná-lo aos cuidados da Igreja, sobretudo das comunidades monásticas, através de doações generosas (associadas à criação de capelas) como penhor e garantia de cumprimento das disposições testamentárias, revelava-se uma forma acertada não só de assegurar a salvação eterna4, mas também de lograr a fuga ao esquecimento. A esse efeito se destinavam todas as orações e demais rituais consignados na liturgia dos defuntos e que periodicamente se realizavam quer perante o locus de sepultamento quer, por maioria de razão, perante o monumento fúnebre, ou seja, a arca com o respectivo jacente. Neste último caso, o individualismo da representação caminha a par duma consciência mais assumida da linhagem e da consequente necessidade de a comemorar5, de que parece ser exemplo e testemunho o duplo túmulo de Egas Moniz em Paço de Sousa, resultante de o original ter sido refeito e substituído por outro, nos fins do século XIII6, com o objectivo expresso de, através

da exaltação da sua memória (mesmo que por intermédio das histórias inventadas por João Soares Coelho7), melhor se exaltar também a ascensão social da própria linhagem. Em consequência desta atitude que se vai generalizando, assiste-se à construção cada vez mais frequente de panteões familiares, erigidos em local sagrado ao lado de igreja catedralícia ou de templo monástico8.

2 A. Erlande-Brandeburg, «O Jacente», ob. cit., p. 298. 3 Michel Vovelle, La mort en Occident de 1300 à nos jours, Paris, Gallimard, 1983, p. 165. Sobre a emergência dos sinais de individualidade, consulte-se também Francisco Pato de Macedo, «O descanso eterno. A tumulária», História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), vol. 1, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 435 e seguintes. 4 José Custódio Vieira da Silva, «Da galilé à capela-mor. O percurso do espaço funerário na arquitectura gótica portuguesa», O Fascínio do Fim, Lisboa, Livros Horizonte, 1997, pp. 45-46.

Túmulo do Conde D. Pedro. Granito, 125 x 330 x 100 cm. Igreja de São João Baptista, Tarouca. Foto do autor

5 Leontina Ventura, «Testamentária Nobiliárquica», Revista de História das Ideias, Coimbra, 19, 1998, p. 153. 6 José Mattoso, «Cluny, Crúzios e Cistercienses na Formação de Portugal», e «A literatura genealógica e a cultura da nobreza em Portugal (s. XIII-XIV)», Portugal Medieval. Novas Interpretações, Lisboa, INCM, 1985, p. 108 e p. 321, respectivamente.

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7 José Mattoso, «Perspectivas actuais sobre a nobreza medieval portuguesa», Revista de História das Ideias, Coimbra, 19, 1998, p. 19. 8 C. A. Ferreira de Almeida, «O Românico», História da Arte em Portugal, vol. 3, Lisboa, Alfa, p. 161.

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O ESPAÇO ARQUITECTÓNICO DA TUMULAÇÃO E A LOCALIZAÇÃO DA ARCA FUNERÁRIA. Durante os primeiros séculos da sua existência, a Igreja conseguiu impor a proibição de quaisquer enterramentos no interior dos edifícios religiosos; a única excepção – utilizando-se criptas construídas para esse efeito sob o altar-mor – ficava reservada às relíquias dos mártires e outros santos sob cuja invocação as basílicas se erguiam. No entanto, a pressão continuamente exercida pelos leigos (mas também pelos membros do clero) culminou com a autorização, finalmente conseguida, de entrada no interior dos templos. Esta procura do espaço sagrado que começa, pelo século XII, com o hábito de colocar a sepultura à porta das igrejas e, logo depois, no seu interior, apresenta-se uma vez mais (e convém de novo sublinhá-lo) em relação muito directa com o aparecimento e progressivo aumento, em número, das arcas tumulares esculpidas9. São três as situações verificáveis na utilização de espaços tumulares localizados no exterior dos templos: a primeira diz respeito aos arcossólios, abertos praticamente em todas as superfícies murais disponíveis, ou seja, nas absides e demais capelas da cabeceira, nas paredes laterais e até nos pórticos de entrada10. A segunda, tem a ver com as capelas funerárias, adossadas, em geral, no lado esquerdo do templo, como é o caso do panteão dos Resendes, em Santa Maria de Cárquere11, da capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital ou da Capela octogonal dos Mestres, em Alcácer do Sal12. A escolha do lado norte para a construção destas capelas terá a ver, mesmo no caso das igrejas monásticas (onde o lado sul era deixado geralmente para a inserção do claustro com todas as demais dependências), com a simbologia inerente a este ponto cardeal: é o lado do frio, da ausência da luz, da morte. Por isso, e a exemplo das catedrais góticas que deslocam para a porta virada ao Norte a representação do Juízo Final, assim também esse parece ser (até ao século XV, pelo menos) o lado mais vezes escolhido, porque simbolicamente mais adequado, para a implantação de capelas funerárias ligadas a templos pré-existentes.

A terceira situação, finalmente, diz respeito às galilés, pórticos colocados à entrada das igrejas monásticas (particularmente as da reforma beneditina de Cluny) e que, desde cedo, assumem claramente uma vocação funerária, como o demonstra a própria denominação de galilé atribuída, na Península Ibérica, a esse espaço13. As mais importantes foram, sem dúvida, a do Mosteiro de Pombeiro, panteão dos Sousas e de outras linhagens do Entre-Douro-e-Minho, e a do Mosteiro de Alcobaça, panteão de três reis da primeira dinastia14, uma e outra infelizmente desaparecidas. A tumulação no interior dos templos – objectivo confessado nesta aproximação constante ao sagrado – acontece inevitavelmente como corolário de todo este processo. É verdade que os membros do clero, particularmente os bispos, se haviam permitido usufruir mais cedo desse privilégio. A nobreza, no entanto, e os reis, de modo particular, só nos inícios do século XIV (e estamos a referir-nos exclusivamente ao caso português que, em relação a vários países europeus, aparenta ser mais tardio) lograram impor à Igreja essa situação. D. Dinis (fal. 1325), no templo do Mosteiro de Odivelas, e a rainha Santa Isabel (fal. 1336), no do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, são os primeiros monarcas a fazê-lo, escolhendo para tal a zona do cruzeiro, frente à capela-mor. Testemunho de transformação de mentalidades, tal fenómeno é-o também do novo posicionamento que a autoridade régia consegue perante o poder da Igreja. O momento preciso desta mudança ficou consagrado, de forma excepcional, na carta de instituição, em 1316, do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, por parte de D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis. Como que a demarcar-se ostensivamente da atitude do seu progenitor e assumindo, por contraste, uma atitude de grande humildade, afirma explicitamente «porque a sepultura de dentro das Jgreias nos semelha que nom era senom pera homens santos ou muy chegados a deus E por nom serem os nossos moymentos a par dos altares nem tam altos como elles nom nos qujsemos mandar deitar dentro na Jgreia nem poer hi nossos moymentos mais mandamos llos poer hi fora a par da igreia em hua galilee...»15. Destas disposições lavradas por D. Afonso Sanches depre-

9 Id., ibidem.

13 José Custódio Vieira da Silva, «Da galilé à capela-mor...», ob. cit., p. 46 e O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 2003, pp. 15-17.

10 Virgílio Correia, Três Túmulos, Lisboa, Portugália Editora, 1924, pp. 19-21.

14 José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, ob. cit., pp. 15-20.

11 Virgílio Correia, Monumentos e Esculturas (sécs. XIII-XIV), Lisboa, 1919, p. 54.

15 Carta de confirmação dada por D. Duarte em 10 de Agosto de 1437 à instituição do Mosteiro de Vila do Conde por D. Afonso Sanches em 7 de Maio de 1316. Publ. in Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, Vol. I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos-Univ. Nova de Lisboa, 1998, p. 139, doc.

12 José Custódio Vieira da Silva, «A Capela dos Mestres em Alcácer do Sal». Estudos de Arte e História. Homenagem a Artur Nobre de Gusmão, Lisboa, Ed.Veja, 1995, pp. 234-238.

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ende-se que tal mudança de atitude, estando então em curso em Portugal, não seria totalmente pacífica, atendendo aos escrúpulos que ele manifesta perante a hipótese de o seu corpo ser deposto no interior do templo, lugar que entendia reservado apenas a homens santos ou muy chegados a deus. D. Afonso Sanches não ousa sequer acomodar-se às recomendações transcritas na Primeira Partida de Afonso X de Castela: compiladas na segunda metade do século XIII, já então nelas se aceitava que um nobre, desde que fundador de mosteiro, pudesse ser sepultado no interior da respectiva igreja monástica. No seu caso concreto, D. Afonso Sanches prefere antes, abdicando da sua condição de fundador e patrono de um convento, sentir-se como um qualquer incógnito e simples leigo, aos quais na já referida Primeira Partida se inibia o enterramento dentro dos templos, excepção feita para os que (a par dos referidos instituidores de um mosteiro) o merecessem por santidade de vida e de boas obras16. Esta última situação é a que, curiosamente, parece adequar-se com bastante rigor à compreensão dos problemas, quer mentais quer estéticos, levantados por um dos primeiros jacentes conservados em Portugal. Referimo-nos ao túmulo de D. Rodrigo Sanches, falecido em 1245 e cuja arca, mandada executar em Coimbra por sua irmã, D. Constança Sanches, foi colocada no mosteiro de Grijó. O local escolhido, a crer em testemunhos idóneos de mais do que um cronista, terá sido a capela-mor do templo agostinho17. Haverá que dar crédito a esta afirmação, tanto mais que a decoração da face principal da arca de calcário brando – o tema bem românico do Pantocrator (Cristo sentado em Majestade, envolto na mandorla e rodeado pelo Tetramorfo) com os Doze Apóstolos sob arcadas – assemelha-se, na forma e no conteúdo, a vários frontais de altar hispânicos da mesma época18. Filho bastardo de D. Sancho I e de Maria Pais Ribeiro, D. Rodrigo Sanches, partidário do Conde de Bolonha, morreu num recontro ocorrido perto 838. Veja-se também D. António Caetano de Sousa, Provas de História Genealógica,Tomo I, Livros I e II, Coimbra, Atlântida Editora, 1946, pp. 163-164. 16 Afonso X o Sábio, Primera Partida, Valladolid, 1975, pp. 306-307 e José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, ob. cit., p. 30. 17 Fr. Nicolau de Santa Maria, Cronica da Ordem dos Conegos Regrantes do Patriarcha S.Agostinho, p 285; Fr. António Brandão, Monarquia Lusitana, parte 4ª, Lisboa, 1633, pp. 153-153v; José P. S. Ventura, «Mosteiro de S. Salvador de Grijó», Ilustração Portuguesa, II vol., 3 Dez 1906, p. 557. 18 A representação mais antiga, na escultura funerária portuguesa, do tema de Cristo em Majestade, rodeado pelo Tetramorfo, surge na tampa da arca funerária de S. Martinho de Dume, dos fins do século XI.

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de Grijó com Martim Gil de Soverosa, afecto ao partido de D. Sancho II. Parece, desta forma, ter havido por parte de sua irmã a intenção nítida de glorificar-lhe a memória (como se de um mártir se tratasse) e, de alguma forma, também a própria linhagem. Para além do programa iconográfico da arca, outros pormenores da mesma dimensão, que adiante trataremos, parecem concorrer para este entendimento. A concretizar-se esta hipótese, estaríamos perante um caso excepcional de um leigo cuja santidade de vida e boas obras foi entendida (ao menos por sua irmã) como merecedora de lhe ser dada sepultura não apenas no interior da igreja, a par dos altares e tão alto como eles, mas inclusivamente na capela-mor, lugar ainda mais restritivo e a que, em Portugal, só os bispos tinham acesso nessa época.

FUNÇÕES E OBJECTIVOS DA REPRESENTAÇÃO: a memória individual/o monumento; a memória social/a imagem de si. Nesta sequência de ideias e antes de passarmos à análise da escultura tumular propriamente dita, vem a propósito reflectir (ainda que brevemente) sobre as funções e objectivos quer da utilização das grandes arcas funerárias quer da mais particular inovação que é a do aparecimento dos jacentes. Durante a Idade Média, o nome que comummente se utiliza para designar as arcas tumulares é monumento ou mais correntemente, na sua variação medieval, moimento. Consultando as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, a raiz etimológica desta palavra tem a ver expressamente com tudo o que traz à memória uma recordação e em especial a recordação de um falecido. Por tal razão chama-se ao sepulcro monumento porque obriga a que essa recordação do defunto sobreviva na lembrança dos vivos. Desta maneira, conclui Santo Isidoro, monumento é a recordação que serve de advertência à memória19. O objectivo fundamental da realização das grandes arcas funerárias medievais é, portanto, o de estimular de forma continuada a memória dos vivos, de modo a que nunca se desvaneça a presença daqueles que foram entretanto desaparecendo. Monumento, vocábulo cuja fortuna histórica foi ganhando, até

19 «Monumentum ideo nuncupatur eo quod mentem moneat ad defuncti memoriam.(...) Monumenta itaque et memoriae pro mentis admonitione dictae». Sto Isidoro de Sevilha, Etimologias, XV, 11, 1-2, Madrid, vol. II, 1983.

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aos nossos dias, contornos sempre mais alargados, radica, afinal, nesta realidade bem precisa que é a perpetuação da lembrança das pessoas através das respectivas arcas tumulares. Quanto à função primordial desta representação, ela evidencia-se com grande clareza através da referência, inclusa no Livro das Kalendas, à capela de Santa Clara que o bispo de Coimbra D. Egas Fafes de Lanhoso (falecido em 1268) mandou construir na sua catedral, para aí se sepultar: «(...) iacet honorifice intus in capella sancte Clare quam construi fecit in proprio monumento sculpto immagine episcopali»20 – esculpido/representado segundo a imagem de um bispo (sculpto immagine episcopali), ou seja, de acordo com a função social desempenhada, tal como é reconhecível pelos correspondentes atributos que são, no caso destes membros do clero, a par dos respectivos hábitos episcopais, a mitra, o báculo, o anel. Não se trata, portanto, de um retrato no sentido moderno do termo, na medida em que a representação destes jacentes respondia a expectativas muito mais amplas e complexas. Na sociedade medieval, era a função ou o estatuto social que definia uma personagem aos olhos dos outros; quando, por conseguinte, se encomendava um jacente a um artista, era a personagem pública correspondente, era essa máscara que lhe era pedida e que ele se obrigava a retratar. Citando (e fazendo minhas) as reflexões de um autor – Michael Camille – que analisa com agudeza esta problemática, pode dizer-se que estas máscaras são reveladoras duma distinção social, até porque, estranhamente, a representação individualista mais acentuada aplica-se sempre não aos poderosos mas às camadas populares, aos humildes. Na arte como na poesia gótica, as personagens são estereotipadas: o nobre será sempre grande e elegante, o camponês feio e grosseiro21. Ou, como se exprime também um outro autor – Roland Recht –, vestuário e insígnias servem para distinguir as personagens cujos traços físicos não possuem ainda individualidade própria; como tal, encarnam as virtudes do defunto22. Assim entendida, a figuração dos jacentes é realizada não através de um retrato (no sentido moderno do termo) mais ou menos conseguido, mas por 20 LK, I, 138, p. 204, cit. in Leontina Ventura, ob. cit., Coimbra, 19, 1998, p.151, nota 46. Cfr. também Pedro Dias, «O Gótico», História da Arte em Portugal, vol. 4, Lisboa, Alfa, 1986, p. 115.

meio de uma imagem que procura fornecer a idealização que cada uma dessas personagens entende ser, perante os olhos da sociedade, a mais adequada a si própria e ao grupo a que pertence. O exemplo porventura mais elucidativo desta realidade e da sua importância surpreende-se na opção tomada pelo rei S. Luís de França de mandar executar, de uma só vez, na abadia de S. Dinis, entre 1263-1264, dezasseis jacentes – todos semelhantes – destinados a dignificar e reavivar a memória da totalidade dos reis de França seus antepassados, desde os merovíngios e carolíngios até aos capetos23. Um programa ideológico de grande alcance, destinado, como afirma Paul Williamson, a enviar sinais políticos a quem os pudesse interpretar24, e que manifesta a vontade programática de, através do monumento dotado agora com o jacente respectivo, afirmar visualmente a continuidade dinástica entre os reis carolíngios e os capetos25. Memória individual e imagem social – eis, pois, as directrizes de maior importância que, no nosso ponto de vista, permitem talvez melhor entender, entre os muitos e complexos problemas que a escultura tumular em si contém, a essência, em termos ideológicos, da sua mais profunda significação. É, por conseguinte, dentro destes conceitos operatórios que iremos tentar analisar algumas das questões postas pela arte funerária portuguesa dos séculos XIII e XIV, no sentido de ampliar ou renovar o seu entendimento.

OS TEMAS E AS REPRESENTAÇÕES: bispos, reis e cavaleiros; rainhas e damas. O sagrado e o profano. As representações de jacentes masculinos reportam-se a bispos, reis e cavaleiros, embora pudéssemos eventualmente agrupá-las apenas em duas situações: membros do clero (bispos, na sua maior parte, um ou outro abade), e leigos (reis e cavaleiros). 23 Paul Williamson, Escultura Gótica. 1140-1330, Madrid, Ed. Cátedra, 1997, pp. 92 e 234 e Virgílio Correia, Três Túmulos, ob. cit., p.14. Em Portugal, será o rei D. Manuel, nos primeiros anos do século XVI, a tomar idêntica opção, mas apenas para os dois primeiros reis de Portugal – D. Afonso Henriques e D. Sancho I – ordenando a execução de duas sumptuosas sepulturas com jacente na capela-mor de S.ta Cruz de Coimbra.

21 Michael Camille, Le monde gothique, Paris, Flammarion, 1996, pp.164-165.

24 Paul Williamson, ob. cit., p. 93.

22 Roland Recht, Le croire et le voir. L’art des cathédrales (XII-XVe siècle), Paris, Gallimard, 1999, p. 346.

25 Serge Santos, Saint-Denis, dernière demeure des rois de France, Éd. Zodiaque, 1999, p.11.

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Túmulo de João Gordo: última ceia. Calcário, 100 x 240 x 72 cm. Capela de São João Envangelista, Sé do Porto. Foto do autor.

Destacam-se desde logo, pelo número e pela cronologia precoce, as figurações de bispos, particularmente na cidade de Coimbra, circunstância que é não só afirmação segura da maior consciência individual e social destes membros do clero mas também testemunho preciso de uma cidade que emergia então como importante centro político e cultural e também artístico.Tudo leva a crer, aliás, que terá partido de Coimbra este modelo iconográfico, atendendo a que os jacentes mais antigos que até agora se conhecem são exactamente os que estão depositados no interior da Sé Velha de Coimbra. Do bispo D.Tibúrcio, falecido em 1246 (embora, de acordo com Pedro Dias, a arca funerária tenha sido realizada seguramente após 1250)26, passando por D. Egas Fafes de Lanhoso (falecido, como já se disse, em 1268) e D. Pedro Martins (falecido em 1301) até D. Estêvão Anes Brochado (falecido em 1318 ou 1319), é possível percepcionar quer a evolução estética que, da rigidez inicial da representação (seja dos rostos como das vestes), caminha para um progressivo naturalismo27, quer a formulação do modelo da imagem episcopal, assente 26 Pedro Dias, ob. cit., p. 115. 27 Visível de modo mais intenso (como de resto seria de esperar) no jacente do último bispo, D. Estêvão Anes Brochado. Cfr. Pedro Dias, ob. cit., p. 115 e A. N. Gonçalves, Estudos de História da Arte Medieval, Coimbra, Epartur, 1980, p. 93.

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na ostentação dos seus atributos definidores que, como já afirmámos, constam, para além das vestes pontificais de aparato, da mitra, do báculo (seguro sob o braço esquerdo) e do anel prelatício. A única variação conhecida, em termos da fixação deste modelo ao longo dos séculos XIII e XIV, diz respeito à disposição das mãos, cuja representação mais normal é a de ficarem cruzadas sobre o peito. A esta norma opõem-se, pelo menos, quatro excepções: duas em Évora – o jacente de D. Fernando Martins (bispo entre 1299 e 1311) e o de D. Pedro (falecido em 1340) – em que as mãos se separam, uma em cima do peito, a outra sobre o ventre28; uma terceira em Lisboa, em que o desconhecido prelado29 segura o báculo com a sua mão esquerda enquanto a direita se ergue em gesto de bênção e, finalmente, como quarta excepção, a do bispo do Porto D. Afonso Pires (falecido em 1362 e sepultado na igreja de S. Pedro de Balsemão), que repete os gestos do prelado lisboeta. Se tivermos em consideração que o próprio jacente do bispo de Braga D. Gonçalo Pereira, executado em 1334 e justamente considerado um dos momentos-chave da escultura tumular, segue fielmente o modelo imposto pelos prelados de Coimbra, maior relevo adquirem as representações quer do desconhecido bispo lisboeta quer do seu congénere portuense, cujas atitudes dinâmicas, revelando-os no exercício das suas funções episcopais, se opõem à atitude estática e hierática que define o modelo atrás referido. Estátuas jacentes de monarcas da 1ª dinastia só chegaram até nós as de D. Dinis e de D. Pedro. Tal escassez prende-se com duas razões essenciais: a primeira assenta no facto de só muito tardiamente, ao contrário dos bispos, os reis portugueses terem erigido verdadeiros moimentos com jacentes, tendo sido D. Dinis exactamente o primeiro a fazê-lo; a segunda razão tem a ver com 28 Não deixa de ser curioso verificar que estas representações são exactamente opostas, ou seja, enquanto D. Fernando Martins tem a mão esquerda sobre o peito e a direita (com o báculo desse mesmo lado) mais abaixo, D. Pedro coloca a mão direita sobre o peito e a esquerda, com o báculo sob esse braço, mais abaixo. Dir-se-á que a primeira representação será, eventualmente, a menos correcta, atendendo a que é a mão da benção e, como tal, tem de ficar livre, o que não sucede com a mão e braço esquerdos, que seguram, por norma, o báculo. Estas variações, mais do que a um eventual lapso de representação, poderão ter a ver com o local de deposição das arcas funerárias. 29 Sobre uma possível identificação deste bispo – D. Mateus? – consulte-se Carla Varela Fernandes, Memórias de Pedra. Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa, Lisboa, IPPAR, 2001, pp. 94-95. Pela nossa parte pensamos que a escultura deste bispo será de meados ou mesmo da 2ª metade do século XIV, atendendo (para além de outros pormenores) à semelhança da sua representação com a do bispo do Porto D. Afonso Pires, cuja data de falecimento (1362) permite, pelo menos por comparação, enquadrar cronologicamente esta evolução iconográfica do modelo episcopal.

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o terramoto de Lisboa de 1755 que, ao destruir a capela-mor da catedral, arrastou consigo, fazendo-os desaparecer por completo, os túmulos do rei D. Afonso IV e da sua mulher a rainha D. Beatriz30, que aí se encontravam depositados; finalmente, a arca do último rei, D. Fernando, embora sendo uma obra de grande impacto estético, não recebeu a representação do seu jacente.Vem a propósito dizer que o citado terramoto de 1755, se não destruiu totalmente o monumento de D. Dinis, deixou-o em estado muito deplorável, situação que foi agravada com os desajeitados restauros que lhe fizeram31. De qualquer modo, o que ainda resta permite (com as necessárias cautelas) entender o essencial da sua proposta iconográfica. A primeira referência à arca funerária deste monarca surge em 1318, sete anos antes do seu falecimento32 e muito anterior, por consequência, ao monumento de sua esposa, a rainha Santa Isabel, que datará previsivelmente de 1330. Por se tratar do primeiro rei a encomendar uma arca monumental com jacente, poderemos perceber a influência que terá exercido em monumentos posteriores. O modelo, tanto quanto os restauros permitem afirmar, terá sido importado directamente de França, tal é a similitude com a arte francesa dessa época, perceptível, de modo particular, na composição geral do corpo do monarca e sobretudo na posição das mãos (uma segurando o ceptro(?), a outra o manto) e ainda na modelação das figuras de monges e monjas que, aos pares33, preenchem as edículas das faces maiores da arca, segundo um esquema programático que é também ele inovador em Portugal34. O único atributo conservado que identifica este jacente como uma personagem régia é a coroa sobre a cabeça. De resto, os vestígios evidentes de policromia permitem enten-

der o grau maior de verismo e monumentalidade que a arca, por tal motivo, deveria apresentar. O outro jacente conservado de um monarca da 1ª dinastia é, como já se disse, o do rei D. Pedro I, realizado entre 1361-1367. Como sucede com o de D. Dinis, o único atributo que o afirma como rei é a coroa que lhe cinge a cabeça. Neste caso, porém (e ao contrário do de D. Dinis em que as destruições não permitem ajuizar da existência de outros atributos), trata-se efectivamente do único elemento que, social e simbolicamente, o diferencia das representações de todo um conjunto de outros jacentes de membros da classe nobre. É precisamente este facto que está na base da opção que havíamos proposto de reduzir apenas a dois os modelos iconográficos de jacentes masculinos dos séculos XIII e XIV, ou seja, o dos clérigos (englobando bispos e abades) e o dos leigos (reis e nobres). Na verdade, quer o vestuário exibido pelo rei D. Pedro – a túnica e o largo manto – quer a espada e as esporas, quer o grande cão (ou cães) sentado que serve quase sempre de suporte aos pés, constituem a representação uniforme de todas as personagens masculinas cujos jacentes chegaram aos nossos dias. Desde os de dois cavaleiros que se conservam no interior da igreja de Pombeiro35, dos fins do século XIII ou inícios do século XIV, passando pelos de Fernão Rodrigues Redondo (fal. c. de 1324), em Santarém36, e de Fernão Sanches (fal. 1335?) ou Lopo Fernandes Pacheco (fal. 1349), em Lisboa, da primeira metade do século XIV, até, já na segunda metade ou mesmo fins deste mesmo século, pelos de Fernão Mendes Cogominho (fal. 1364), em Évora, de Gomes Martins, em Monsaraz e de Vasco

30 De acordo com testemunhos credíveis, sabe-se que tanto a arca de D. Afonso IV como a de D. Beatriz eram, além de decoradas nas suas faces, ornadas com os respectivos jacentes. Consulte-se, a este propósito, Carla Varela Fernandes, ob. cit., pp. 31 e 75.

33 Consulte-se, a este propósito, Francisco Teixeira, «A imagem da monja cisterciense no túmulo de D. Dinis em Odivelas», Sepª. de Cistercivm, 217 (10-12), 1999, pp. 1161-1174.

35 Divergem as opiniões sobre a identidade destas duas personagens. Segundo o Marquês de Abrantes, o mais idoso trata-se de um membro da família da Ribeira, enquanto que Manuel Luís Real o identifica como um senhor de Lima ou da Nóbrega e José A. Pizarro como Gonçalo Mendes de Sousa (fal. antes de 1286), que usava armas dos de Lima por parte da mãe. Quanto ao jacente mais jovem, será João Gil de Soverosa (fal. na 2ª metade do século XIII), de acordo com o Marquês de Abrantes ou João Afonso de Albuquerque (fal. c. 1304), segundo Manuel Luís Real. (Veja-se Marquês de Abrantes, «Apontamentos de Armaria Medieval Portuguesa. II. De novo o selo de D. Constança Gil», Armas e Troféus, vol. 2, 1980; José Mattoso, «Panorâmica da história beneditina portuguesa durante a Idade Média», Portugal Medieval. Novas Interpretações, Lisboa, INCM, 1985, pp. 259-272 e José Augusto P. de Sotto Mayor Pizarro, Os Patronos do Mosteiro de Grijó (Evolução e Estrutura da Família Nobre. Século XI a XIV), Ponte de Lima, Ed. Carvalhos de Basto, 1995, p. 202).

34 Já Virgílio Correia emitira em 1953 esta opinião (cfr. «A Escultura em Portugal no século XIV», Obras, Vol. III, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953, p. 40). O uso de personagens sob arcada na decoração da arca funerária terá aparecido pela primeira vez no túmulo de Filipe de França (fal. 1235), irmão do rei S. Luís.

36 Este túmulo conserva-se na ermida de S. Pedro, hoje anexa à igreja paroquial de S. Nicolau. Fernão Rodrigues Redondo era privado do rei D. Dinis, de quem chegou a ser meirinho-mor. A ermida de S. Pedro, onde se fez sepultar, é encomenda sua e de sua mulher, Marinha Afonso, expressa em dotação testamentária que o rei D. Afonso IV mandou executar.

31 J. M. Cordeiro de Sousa, «Malfeitorias no túmulo do Rei D. Dinis», Sepª da Revista de Guimarães, vol. LXXVI, 1966, pp. 3-7. 32 Hermínia V. Alves Vilar e Maria João V. B. M. Silva, «A fundação do Mosteiro de Odivelas», Actas do Congreso Internacional sobre San Bernardo e o Cister en Galicia e Portugal,Vol. I, Ourense, 1992, p. 592. Consulte-se também Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, Porto, Livraria Civilização, 1945, pp. 150 e 152.

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Esteves de Gatuz (fal. 1363 ou 138437), em Estremoz, todos eles têm em comum estes elementos identificadores – vestem túnica e manto, têm os pés cingidos por esporas e seguram, com as duas ou apenas uma das mãos, a espada embainhada (ou, quando muito, levemente saída da bainha), disposta ao centro do corpo ou lateralmente. Quer isto dizer que a imagem da nobreza explicitada nos jacentes dos séculos XIII e XIV se expressa através de dois objectos fundamentais, ambos correspondentes às funções sociais que afinal a definem como classe e, por tal, assumindo-se como verdadeiras insígnias: o nobre (desde logo identificado pelas vestes que enverga) segura a espada que simboliza o poder de julgar, de fazer justiça, de cobrar impostos e usa as esporas que o designam como cavaleiro. Este modelo iconográfico ou, se quisermos, esta explicitação imagética tão clara encontra uma tradução notável na definição inspirada e feliz de José Mattoso: «Porque nobreza significa, antes de mais, exercício efectivo das prerrogativas senhoriais, ou pelo menos direito a exercêlas. Quer dizer, portanto, desempenho das funções que nas sociedades modernas pertencem apenas, por direito, às autoridades públicas: julgar, exigir o serviço militar e lançar taxas ou impostos»38. Compreender-se-á, por conseguinte, que dois burgueses que lograram atingir o estatuto da nobreza – Domingos Joanes (fal. 1324), em Lisboa, João Gordo (fal. 1333), no Porto – se tenham apressado a fazer-se representar com os exactos atributos que socialmente identificavam o seu novo nível social, isto é, para além da túnica e do manto, a espada e as esporas39. Olhe-se, ainda, para uma das representações mais conseguidas desta imagem que a nobreza nos apresenta de si própria no século XIV: a de D. Pedro, conde de Barcelos (fal. 1354), cujo jacente terá sido realizado por volta de 1350. Impõem-se desde logo as dimensões gigantes da sua figura (mais de 3 metros), correspondendo não propriamente ao tamanho físico, como ainda 37 Acerca da disparidade destas datas, consulte-se Mário Alberto Nunes Costa, Vasco Esteves de Gatuz e o seu túmulo trecentista em Estremoz, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1993, pp. 35-38. 38

José Mattoso, A Nobreza Medieval Portuguesa. A Família e o Poder, Lisboa, Ed. Estampa, 1981, p. 19.

39 Não deixa de ser deveras interessante este curioso e simétrico procedimento entre Lisboa e Porto: quase em simultâneo, dois bons burgueses – Bartolomeu Joanes (que se intitula mesmo, na inscrição tumular, «cidadão de Lisboa») e João Gordo – mandam erguer cada um a sua rica capela funerária adossada à catedral da respectiva cidade, e dentro delas lavrar arcas funerárias que se contam entre as de maior qualidade plástica e riqueza iconográfica de todo o século XIV: sinal, porventura, da necessidade de, através da manifestação do seu poder económico, ambos serem aceites como pares entre os membros da nobreza a que haviam ascendido.

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no princípio do século XX Braamcamp Freire aceitava40, mas antes à enorme importância social e política deste filho bastardo de D. Dinis: a túnica longa recobrindo os pés (um pormenor raro na imagética masculina coeva), o manto (visível apenas sobre os ombros), com a mão direita a segurar, em gesto cortês, o comprido cordão que, prendendo o manto, desce a direito, ornado com nós espaçados e uma desenvolvida borla no final; a espada, por fim (apesar de muito destruída), discretamente empunhada pela mão esquerda e colocada lateralmente. O rosto é o de um ancião, de barba, bigode e cabelos fartos, testa alta, uma expressão de grande serenidade e maior dignidade que (esta, sim) agiganta notavelmente a figura do conde de Barcelos. Entre esta figuração e a do rei D. Pedro interpõe-se apenas a coroa, único atributo que, como dissemos, diferencia o modelo iconográfico masculino destes jacentes, fazendo de um cavaleiro um rei. As representações femininas, embora se tenham conservado em menor número do que as masculinas, avantajam-se-lhes, desde logo, por entre elas se contarem três rainhas: D. Beatriz, esposa de D. Afonso III (fal.1304), Santa Isabel (fal.1336), esposa de D. Dinis e D. Inês de Castro (fal. 1355). Ao contrário, porém, das representações masculinas congéneres, em que a diferença em relação aos demais cavaleiros reside apenas, como acabámos de ver, na coroa que identificava o rei, os jacentes das três rainhas são todos distintos não só entre si mas também entre os demais jacentes de damas. O primeiro, conservado no panteão régio de Alcobaça, é o de D. Beatriz. Embora a rainha tenha falecido em 1304, nada impede que a realização da sua arca funerária não tivesse sido decidida e efectivada muito antes de morrer, como sucedeu, aliás, com a do seu filho D. Dinis e a de sua nora, a rainha Santa Isabel. A rainha, apenas identificada por uma coroa de feitura muito simplista, tem as mãos cruzadas sobre o peito e veste largo manto, que lhe cobre os ombros, e túnica cingida por um cinto cuja correia se prolonga ao centro, em longa vertical41.

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40 A. Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, vol. I, Lisboa, IN-CM, 1996, pp. 270-271, citando Fr. Francisco Brandão, Monarchia Lusitana, vol.V, fl. 180. 41 A identificação desta personagem como sendo a rainha D. Urraca (fal. 1220), esposa de D. Afonso II, foi feita por Manuel Luís Real (cfr. «Alcobaça», Portugal Roman, vol. I, Zodiaque, 1986, pp. 80-82) e adoptada em seguida por outros historiadores. Apesar dos argumentos que têm uma coerência interna muito grande, continuamos a pensar que se trata da rainha D. Beatriz (cfr. José Custódio Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, ob. cit., pp. 57-64).

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Mais significativa, porque mais rica de atributos, é a representação jacente da rainha Santa Isabel. Na verdade, ao invés de se apresentar com as roupagens que a sua elevada dignidade faria supor, preferiu vestir o hábito modesto das clarissas, completado com o bordão e a bolsa dos peregrinos de Santiago. Apenas a coroa na cabeça a identifica como rainha. Pela primeira vez, porém, surge a representação de um Livro de Horas fechado que Santa Isabel segura com a mão direita, objecto que reaparecerá em figurações de alguns jacentes femininos posteriores. Novidade é igualmente a colocação de um dossel sobre a cabeça da estátua e que, usado pela primeira vez provavelmente na arca da neta de Santa Isabel (mandada fazer pela própria rainha em 1327 ou mesmo antes42), constituirá de igual forma um atributo de alguns outros jacentes femininos43; finalmente, é ainda novidade nestes dois túmulos de avó e neta, o aparecimento de figuras miniaturais de anjos, incensando ou simplesmente amparando os corpos das tumuladas. A terceira figuração de uma rainha, porque representada com uma coroa, é a de D. Inês de Castro. No entanto, os particularismos históricos muito específicos que levaram o rei D. Pedro a mandá-la representar com esse atributo diferenciador fazem com que deixemos para o final a sua análise. Para além destas rainhas, os poucos jacentes de damas conservados não facilitam, pela variedade dos gestos e diversidade de atributos que ostentam, o ensaiar de uma sistematização e a identificação de um modelo. Na verdade, essas representações tanto oferecem as damas com as mãos erguidas em oração (como é o caso dos jacentes da já referida infanta D. Isabel, na igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra e de D. Vataça (de 1337), na Sé Velha desta mesma cidade, e ainda do de D. Sancha (fal. 1343), no que resta do claustro de

42 O segundo testamento da rainha Santa Isabel, redigido em 1327, refere-se ao túmulo da neta em termos que permitem colocar a hipótese de estar já realizado nessa altura («...mandome em tanto deitar em o coro da outra Igreja velha acima da Infanta Dona Isabel minha neta de guisa que fique antre mim e a grade, e assi he minha vontade...»).Virgílio Correia não tem quaisquer dúvidas a esse respeito: «...o sarcófago da infanta Isabel, neta da Rainha Santa, já construído à data do testamento desta...» (V. Correia, Três Túmulos, ob. cit., p. 36). Seja como for, seria à volta de 1330 que quer este quer o próprio túmulo da rainha teriam sido realizados e, pode dizer-se quase inquestionavelmente, pelas mesmas mãos. 43 Não deixa de ser interessante constatar que o uso de dosséis em jacentes femininos, para além dos dois de Coimbra (a infanta D. Isabel e a rainha sua avó) e, mais tarde, o de D. Inês de Castro, em Alcobaça, apenas se verifica em dois túmulos da sé de Lisboa: o primeiro, de D. Maria Vilalobos, numa capela do deambulatório e o segundo, de uma dama anónima, na capela de Sto. Aleixo, no claustro.

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S. Domingos de Lisboa) ou cruzadas sobre o ventre (é o caso de Domingas Sabachais (de 1341?), na igreja matriz de Oliveira do Hospital), como, finalmente, segurando entre as mãos um Livro de Horas aberto: encontram-se, nesta última situação, os três jacentes femininos guardados na sé de Lisboa – o de D. Maria de Vilalobos (esculpido por meados do século XIV44), o de uma jovem desconhecida45, saído da mesma oficina do anterior e o de D. Margarida Albernaz (da 2ª. metade do século XIV46). Se as mãos erguidas em prece47 traduzem a imagem de virtude que era suposto constituir atributo de nobres damas, já a ostentação de um Livro de Horas, embora reflectindo também a piedade devota que era apanágio dessas mesmas senhoras, afirma-se como um sinal inequívoco de riqueza e, de modo ainda mais particular, de instrução e cultura. Aliás, não será por acaso que apenas se fazem representar com Livros de Horas a rainha Santa Isabel, a desconhecida infanta lisboeta, D. Maria Vilalobos e D. Margarida Albernaz – todas coincidentemente damas da mais elevada condição social. Quanto ao mais, a riqueza da indumentária e das jóias (e nesse aspecto de novo se destacam os jacentes guardados na sé de Lisboa), bem como a presença frequente, aos pés, de pequenos cães de companhia, são, como seria de esperar, sinal ineludível de nobreza e da mais alta distinção social.

44 D. Maria de Vilalobos, mulher de Lopo Fernandes Pacheco, terá mandado fazer o túmulo do marido após a morte deste, ocorrida em 1349. Pela mesma altura deverá ter encomendado também o seu. Um e outro guardam-se na capela dos Santos Cosme e Damião, no deambulatório da Sé de Lisboa. 45 De acordo com D. E. Filgueiras Soares («Notas para a solução dum problema de História da Arte», Boletim da Academia Portuguesa de Ex-Libris, 20, Lisboa, 1962, pp. 29-33) e com Luís Gonzaga de Lancastre e Távora («A heráldica medieval na sé de Lisboa», Sepª. do Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa,Tomo I, Lisboa, 1982) tratar-se-á de D. Constança, filha do infante D. Afonso e de D.Violante Manuel, falecida em 1296 ou 1297. Mesmo que esta identificação se revele correcta, a arca e o respectivo jacente são indubitavelmente não só da mesma oficina dos túmulos de Lopo Pacheco e D. Maria de Vilalobos como também cronologicamente muito aproximados e, por isso, de feitura muito posterior ao falecimento daquela jovem. 46 Na esteira de J. M. Cordeiro de Sousa («Os ‘jacentes’ da sé de Lisboa e a sua indumentária», Sepª. Revista Municipal, 48, Lisboa, 1951), Luís Gonzaga de Lancastre e Távora confirmou, baseado na leitura das representações heráldicas, tratar-se da segunda mulher de Nuno Fernandes Cogominho, almirante-mor de D. Dinis, almotacé-mor de D. Afonso IV e chanceler-mor de D. Pedro I (cfr. também, a este propósito, Carla Varela Fernandes, ob. cit., p. 82). Neste contexto, a arca de D. Margarida Albernaz é já da 2ª. metade do século XIV, como a análise estílistica também parece confirmar. 47 Esta posição das mãos não é exclusiva das representações femininas: apesar de ser o único conhecido, o jacente de Bartolomeu Joanes, em Lisboa, mostra-o em idêntica atitude.

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Analisados, em linhas gerais, os jacentes dos séculos XIII e XIV, importa agora reflectir sobre um outro conjunto de elementos que, dispostos sobre a tampa ou alinhados nos lados das respectivas arcas, se assumem como sinais complementares para a percepção mais global das múltiplas significações desta arte funerária medieva. Assumindo desde logo uma dicotomia (talvez mais aparente que real) entre sagrado e profano, as iconografias de diferente valor simbólico plasmadas em cada um desses monumentos completam, em definitivo, a memória e a imagem que cada personalidade assim retratada quis deixar de si. Entre as representações concretas de uma inequívoca mundividência sagrada estão os anjos. Os primeiros surgem na tampa da arca de D. Rodrigo Sanches (em Grijó), colocados dois à cabeceira e um aos pés. O do lado direito da cabeceira parece estar em oração, enquanto o do lado esquerdo transporta num sudário a alma de Rodrigo Sanches, representada sob a forma de uma pequena figura nua. Se associarmos estas representações angélicas (que não voltarão a repetir-se desta forma em nenhum outro jacente) à imagética que recobre a única face visível da sua arca – Cristo em Majestade, rodeado pelo Tetramorfo e acompanhado pelos 12 Apóstolos – maior força parece ter a leitura que acima avançámos de que esta representação é a da imagem assumida de um santo. Ousada por sua irmã, trata-se afinal de legitimar, equiparando-a a uma virtude cristã, a lealdade que sempre devia presidir aos vínculos senhoriais que ligavam o vassalo ao seu suzerano. A memória de Rodrigo Sanches, que pelo conde de Bolonha, futuro D. Afonso III, dera a vida, é aqui perpetuada na imagem beatífica do cavaleiro cristão cuja alma, levada pelos anjos, ascende directamente ao Paraíso, como se de um mártir se tratasse. Idêntica representação da alma transportada por um anjo surge no túmulo da rainha Santa Isabel, no exterior do baldaquino, testemunho similar de afirmação da santidade da esposa de D. Dinis e ainda no fragmentado jacente de um desconhecido cavaleiro no Museu do Carmo (Lisboa). No entanto, a figuração mais comum destes seres angélicos é a que os coloca, em número diversificado, junto à cabeceira de damas e cavaleiros, amparando-os ou incensando-os48. Em todas as situações em que eles surgem, desde o túmulo da neta da rainha Santa Isabel até aos de D. Inês de Castro e

48 Sobre as funções exercidas pelos anjos na tumulária consulte-se Emídio M. Ferreira, A Arte Tumular Medieval Portuguesa, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Diss. de Mestrado (polic.), 1986, p. 60.

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D. Pedro, os anjos, a par dos baldaquinos ou dosséis49, são um dos sinais mais fortes da sacralização destes monumentos.Vale a pena também notar que, sob o ponto de vista plástico, algumas destas figuras angélicas contam-se entre as mais conseguidas, pela delicadeza dos gestos e pela fluidez e movimento das vestes, de toda a escultura desta época em análise. É na decoração das arcas, porém, que esta iconografia religiosa mais se pode expandir quer na diversidade de propostas, indicativas tanto das devoções privadas quanto dos valores devocionais da própria sociedade, quer na qualidade estética de muitas destas composições. Cristo em Majestade, com o Tetramorfo e rodeado pelos Apóstolos, sendo um tema que a arte românica glosou com frequência (e nesse momento artístico se poderá incluir ainda o túmulo de Grijó e eventualmente, com muitas reticências, o da rainha D. Beatriz), mantém-se em túmulos do século XIV, concretamente no da rainha Santa Isabel, nos dos bispos D. Gonçalo Pereira, em Braga, e D. Pedro, em Évora, no de Rui Garcia do Casal, em Santarém, embora em todos eles com uma feição já assumidamente gótica. Este tema apocalíptico cede, porém, o seu lugar a outras representações, definidoras das novas formas de devoção do mundo gótico. Com efeito, uma outra corte celestial, que não de Apóstolos (apesar de estes ainda serem, isolados sob o respectivo gablete, a opção tardia no túmulo de Fernão Gonçalves Cogominho, em Évora), mas antes de virgens, mártires, santas – como sucede primeiramente no túmulo da infanta D. Isabel, em Coimbra –, acompanha o jacente na sua última morada, prefigurando a companhia de que disporá no Paraíso. Ou então, em contraponto a esta corte celeste, agrupam-se aos pares monges e monjas cistercienses, no túmulo de D. Dinis e na arca conhecida como de D. Constança (no Museu do Carmo, em Lisboa) e num fragmento de outro (no Museu do Alporão, em Santarém), e frades franciscanos e freiras clarissas no de D. Leonor Afonso (na igreja de Santa Clara, em Santarém), todos em sacrae conversationes que remetem para a importância das ordens religiosas como as intercessoras por excelência, com as suas orações, junto de Deus. 49 Os baldaquinos ou dosséis aparecem, como já se afirmou, nos jacentes femininos da infanta D. Isabel e da rainha Santa Isabel, de D. Maria Vilalobos e de uma dama anónima (na capela de S.to Aleixo no claustro da sé de Lisboa) e ainda no de D. Inês de Castro. Em jacentes masculinos, há apenas dois casos: o de D. Fernão Sanches, no Museu do Carmo (Lisboa) e o de Gomes Martins, na igreja matriz de Monsaraz.

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Neste contexto de representação de grupos, o mais original de todos (até porque não foi repetido em nenhum outro monumento) é o que o bispo de Braga D. Gonçalo Pereira encomendou e que, colocado numa das faces da sua arca tumular, em posição simétrica ao Apostolado, mostra bem uma das suas preocupações: trata-se do coro de capelães e moços adstritos à sua capela50, em pleno canto das horas canónicas, com os respectivos membros retratados com um grande sentido de naturalismo a que a qualidade plástica dos cinzéis de Mestre Pero e Telo Garcia acrescenta o valor final. Um tema isolado (ao contrário do que sucede em grande parte da escultura funerária europeia) é o do cortejo fúnebre. Referenciado apenas no túmulo de Gomes Martins (na igreja matriz de Monsaraz), completa-se com uma cena de lamentação – iconografia também poucas vezes utilizada51 – em que os figurantes são exclusivamente personagens masculinas. Trata-se, sem dúvida, de um momento de grande originalidade, característica que, de alguma forma, se estende à restante iconografia desta arca, atendendo à figuração de uma caçada que ocupa a face dos pés e que, assim representada nesse lugar, é também única. As restantes propostas iconográficas acomodam-se, na sua maior parte, nas faces menores das arcas e dizem respeito a temas devocionais que, na sua formulação, correspondem a inovações do mundo gótico e dizem respeito à Virgem e a Cristo. Estão, entre eles, a representação da Virgem com o Menino, rodeada de anjos ceriferários (nos túmulos da neta da rainha Santa Isabel, do bispo D. Gonçalo Pereira e de Rui Garcia do Casal); a Anunciação (no túmulo de D. Leonor Afonso e de Fernão Sanches); a Coroação da Virgem e a Última

50 A capela foi instituída em 27 de Abril de 1334, três meses antes do contrato celebrado com os mestres Pero e Telo Garcia para a realização da sua arca funerária, a colocar precisamente nessa capela. Entre os diversos itens do longo documento, avulta a atenção dada ao canto que os seis capelães e três moços todos os dias deveriam executar na dita capela: «...devaguar e homrradamente em voz não muito alta nem muito baixa diguão na dicta capela ho oficio das matinas e asi diguão nella as outras horas canonicas de todo dia aas horas e tempos devidos asi como os dizem na dyta egreja de Bragaa e quero e ordeno que acabado na dita capella o ofiçio das matinas os ditos capelães diguão ho oficio da prima...» (publ. in Maria Helena da Cruz Coelho, «O Arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira: um querer, um agir», Actas do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, vol. II/I, Braga, Univ. Católica Portuguesa/Fac.Teologia-Braga, 1990, pp. 445-461). 51 A propósito das cenas de lamentação presentes nas arcas funerárias dos séculos XIII e XIV consulte-se M. Barroca, «Cenas de Passamento e de Lamentação na Escultura Funerária Medieval Portuguesa (séc. XIII a XV)», Sepª. da Revista da Faculdade de Letras, II série, vol. XIV, Porto, 1997, pp. 657-686.

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Ceia (nas arcas de João Gordo e de D. Afonso Pires); o Calvário (nos túmulos da rainha Santa Isabel, de D. Gonçalo Pereira, de Fernão Sanches, de João Gordo e do bispo de Évora D. Pedro) e, como representação única (que só reaparecerá no túmulo do rei D. Fernando), o Recebimento dos Estigmas por S. Francisco (na arca de D. Leonor Afonso).Vale a pena referir que o quadro da Última Ceia, ocupando a face maior do túmulo de João Gordo, pode ser considerado como um dos grandes momentos de toda a escultura gótica portuguesa, quer pela inovação temática e compositiva52 quer pela qualidade plástica: saído das oficinas coimbrãs, provavelmente das mãos de mestre Pero (ou da dupla Mestre Pero/Telo Garcia), testemunha bem o alto nível que a escultura portuguesa conseguia, nesse preciso momento, alcançar. A contrapor a toda esta imagética da esfera do sagrado, a opção pelo profano fica resumida quase só a um tema: o da caçada. O primeiro a utilizá-lo é Fernão Sanches, logo seguido de seu irmão, o conde de Barcelos D. Pedro, acompanhado pela arca, desprovida de tampa, de uma desconhecida personagem que se conserva no Museu de Lamego53, para continuar nos túmulos de Gomes Martins (acima referido) e Vasco Esteves de Gatuz. Mesmo que eventualmente este tema seja vaga recorrência ou aproximação difusa às caçadas eternas que, no universo pagão, eram a merecida recompensa para os aristocratas no mundo do Além, pensamos que, neste caso concreto, a caçada, um privilégio da nobreza medieval, identifica com precisão algumas das virtudes fundamentais que definem o cavaleiro: a coragem e a decisão – sinónimos de heroicidade – e ainda a astúcia perante o perigo. Esta iconografia tão específica e tão rara, possui uma outra mais valia: parece ser uma criação portuguesa, inexistente fora do nosso território, a não ser na Galiza. Mas, mesmo neste

52 Em Portugal, o tema da Última Ceia foi apenas repetido no túmulo do bispo do Porto D. Afonso Pires (em Balsemão). De qualquer modo, é clara a influência directa exercida pelo modelo escolhido por João Gordo, com a agravante de a composição da arca episcopal ser plasticamente muito menos conseguida. Em termos europeus, estamos em crer que esta temática, se foi utilizada no âmbito da escultura funerária, tê-lo-á sido muito raramente. 53 O facto de este túmulo ser decorado, em ambos os lados maiores da arca, com cenas de caçada, seria, desde logo, motivo mais que suficiente para não se poder dar crédito a opiniões correntes que o querem atribuir a D. Branca de Sousa, mulher do conde de Barcelos D. Pedro (no seu testamento, ele próprio afirma que sua mulher estava sepultada em S. Domingos de Santarém) ou a Teresa Anes, concubina do mesmo conde. A temática em análise é, disso não temos dúvidas, de uso exclusivamente masculino. Como tal, continua desconhecida a personagem a quem esta arca foi destinada: os brasões nas faces menores, não sendo lavrados, perderam seguramente a pintura original que permitiria identificar os esmaltes heráldicos e a respectiva linhagem.

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caso. o seu uso em alguns túmulos de nobres galegos deve-se reconhecidamente a influência portuguesa54. Para lá destes temas, um outro merece ser destacado: a heráldica. Movendo-se fora das iconografias respeitantes ao universo contrastante do sagrado e do profano, a aposição do brasão pessoal nas arcas tumulares é uma das afirmações mais poderosas da solidariedade da linhagem e, ao mesmo tempo, da identificação que, permitindo a fuga ao esquecimento, adquire uma força muito própria de memória individual e familiar. Se, em muitas situações, a heráldica se intromete mais ou menos discretamente entre a restante iconografia (na tampa, como é o caso pioneiro dos túmulos da infanta D. Isabel e da rainha Santa Isabel, ou no rebordo dela ou ainda, como sucede na maior parte dos casos conhecidos, nas faces das arcas), noutros constitui o único tema escolhido para decorar a respectiva arca: assim é com as de D. Tibúrcio e D. Vataça, em Coimbra, talvez as primeiras a fazê-lo; assim acontece também no núcleo da sé de Lisboa (a começar no de Bartolomeu Joanes e a continuar nos de Lopo Pacheco e de D. Maria de Vilalobos, no da infanta e no de D. Margarida Albernaz) onde a força expressiva da decoração heráldica ganha, para além dos seus valores simbólicos e significantes, um sentido estético de grande impacto.

A PRODUÇÃO ARTÍSTICA: os centros – Coimbra e Lisboa; as periferias – Évora, Porto. Por entre as reflexões que têm vindo a ser feitas terá já ressaltado, de alguma forma, a importância que dois centros artísticos assumem em todo o processo de realização da escultura tumular ao longo dos séculos XIII e XIV: referimo-nos a Coimbra e Lisboa. Desde os túmulos de D. Rodrigo Sanches e da rainha D. Beatriz (e com toda a probabilidade também de todos os outros que se guardam no panteão régio de Alcobaça), passando pelos dos prelados da catedral conimbricense, da rainha Santa Isabel e da sua neta até ao de D. Vataça, a afirmação precoce da cidade de Coimbra como centro artístico em geral e no domínio da escultura 54 O caso mais exemplar é o túmulo de Fernão Peres de Andrade, executado entre 1387 e 1397 e conservado na igreja de S. Francisco de Betanzos. A sua relação com modelos portugueses foi convincentemente proposta por Jesús Maria Caamaño (veja-se, a este propósito, José Carlos Valle Pérez, «O Gótico Tardio Galego e Portugal. Algumas considerações», Do Tardogótico ó Manierismo. Galicia e Portugal, Fund. Pedro Barrié de la Maza/Fund. Calouste Gulbenkian,1995, pp. 53-54).

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Túmulo de Gomes Martins: cena de lamentação. Igreja Matriz de Monsaraz. Foto do autor.

tumular em particular, só tem paralelo na evolução constante que as obras daqui saídas ganham no contexto de toda a escultura gótica. O momento culminante tem a ver com o aparecimento em cena de Mestre Pero: apesar de só haver certezas documentais em relação à sua intervenção no monumento de D.Vataça e, em parceria com Telo Garcia, no do bispo de Braga D. Gonçalo Pereira, a verdade é que se terá de aceitar, como desde há muito todos os historiadores da arte vêm afirmando, a sua mais que provável interferência (directa ou indirecta) nos túmulos da rainha Santa Isabel e sua neta, em Coimbra, e em todos os que, modelados no belo calcário de Ançã, repetem os mesmos modelos e as mesmas técnicas, como o de João Gordo, no Porto, e os do casal Domingos Joanes e Domingas Sabachais, em Oliveira do Hospital, ou ainda os restos do de Rui Garcia do Casal (?), conservados em Santarém55. Estão estes trabalhos entre os de maior qualidade que a arte gótica portuguesa logrou atingir no domínio da estatuária.

55 A propósito desta temática, consulte-se, entre outros, Pedro Dias, «A pedra de Ançã, a escultura de Coimbra e a sua difusão na Galiza», Do Tardo-Gótico ao Maneirismo. Galiza e Portugal, Fund. Pedro Barrié de la Maza/Fund. Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 11-12.

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A par de Coimbra, Lisboa torna-se, pelo menos desde a encomenda de D. Dinis, o outro grande centro de escultura tumular. Aliás, a parceria de Mestre Telo Garcia, morador em Lisboa, com Mestre Pero, morador em Coimbra, lograda (se é que não existia já de per si) por D. Gonçalo Pereira para a execução do seu túmulo, bem pode ser entendida como paradigmática do alto nível atingido por estes dois centros artísticos. O túmulo de D. Dinis (na igreja de Odivelas), juntamente com o de sua mãe, a rainha D. Beatriz (no Mosteiro de Alcobaça), marca o aparecimento das arcas que, pelo tamanho e pela qualidade da decoração esculpida em todas as suas faces, adquirem dimensões verdadeiramente monumentais. Mas enquanto as propostas iconográficas e estéticas do da rainha representam um ponto de chegada (apenas o túmulo de Rodrigo Sanches, na igreja de Grijó e a arca de um infante, no Mosteiro de Alcobaça, o acompanham de perto), o túmulo de D. Dinis inaugura verdadeiramente um modelo que terá continuidade imediata na arca que ficou conhecida como tendo pertencido a D. Constança, mãe do rei D. Fernando (transferida, como a deste último monarca, de Santarém para o Museu do Carmo, em Lisboa, onde se encontra). Saída, sem dúvida, da mesma oficina, é tal a identidade dos conteúdos iconográficos e da fórmula do respectivo enquadramento arquitectónico que só muito dificilmente poderia, por estas razões, ter alguma vez sido executada para guardar o corpo da referida D. Constança, falecida a 13 de Novembro de 1345. Além desta arca tumular, também a de D. Leonor Afonso, conservada na igreja de Santa Clara de Santarém, e os fragmentos de uma outra (pertencente a uma personagem da família dos Manueis) depositada igualmente em Santarém, no Museu do Alporão, ou ainda, mais tardia, a de Fernão Gonçalves Cogominho (fal. 1364), no Museu de Évora, seguem de perto a proposta do túmulo dionisino, sobretudo no desenho arquitectónico das edículas onde se albergam as personagens. A projecção maior deste modelo far-se-á sentir, porém, nas arcas monumentais encomendadas por D. Pedro para si e para D. Inês de Castro, as quais, no essencial do seu programa, se inserem precisamente na formulação primeiro concretizada na do rei D. Dinis. Para além destes dois centros, é possível identificar outras áreas de cariz mais regional: é o caso de Évora, com os jacentes de dois bispos da 2ª. metade do século XIII – um dos quais identificado como D. Durando (fal. 1283) – e de outros dois prelados da primeira metade do século XIV – D. Fernando Martins (fal. 1311?) e D. Pedro (fal 1340) –, até aos já referidos Fernão Gonçalves

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Cogominho, Gomes Martins,Vasco Esteves de Gatuz, todos da 2ª metade deste mesmo século. Desde logo identificáveis pelo uso do mármore, todas estas composições, mesmo quando dotadas de apreciável qualidade estética (como é o caso dos dois prelados da primeira metade do século XIV), revelam, por norma, quer uma realização plasticamente menos conseguida quer algum arcaísmo na iconografia adoptada56. Uma outra área regional (que apenas por comodidade identificamos com o Porto) coincide com o uso do granito como material de eleição. Desde os jacentes conservados no Museu de Soares dos Reis, provenientes da igreja de Paderne, até aos da igreja de Pombeiro, passando pelos da igreja de S. João Baptista de Tarouca e do Museu de Lamego ou das igrejas de Balsemão e de Vila Boa do Bispo, as suas características apontam para oficinas bem regionais, dada a dificuldade de modelação que muitos desses trabalhos revelam e que resultam, por esse motivo, quase sempre muito frustes. Basta comparar, a este nível, o resultado conseguido na representação da Última Ceia esculpida na arca do bispo D. Afonso Pires, em Balsemão, com o seu modelo directo, ou seja, aquele que Mestre Pero havia disposto no túmulo de João Gordo, no Porto; ou então verificar como é ainda o jacente deste último que serve de referência para a representação muito similar, executada cerca de vinte anos mais tarde, do Conde de Barcelos D. Pedro, em S. João de Tarouca. Estes regionalismos não impedem, no entanto, a existência de algumas situações muito originais, como acontece com os dois jacentes de Pombeiro. Quer um quer outro estão deitados sobre um lençol de bem desenhadas dobras e com os pés de lado; mas enquanto o cavaleiro mais velho se representa numa posição hierática tradicional, o mais jovem expressa-se numa atitude inédita e de algum modo inesperada, ao segurar a cabeça com a mão esquerda enquanto a direita, lançada por sobre o corpo, vai buscar a espada colocada no lado oposto. Originais são ainda as representações, em rectângulos diminutos, de cavaleiros de lança em riste e com os cavalos ajaezados como numa justa, gravadas nas faces laterais de ambos os túmulos. Estamos perante um exemplo claro de como a importância iconográfica pode, pelo seu ineditismo, sobrelevar a relativa inconsequência do valor estético alcançado. 56 A excepção deste conjunto escultórico da região de Évora, em termos da iconografia adoptada para a arca, tem a ver, como acima já se referiu, com o túmulo de Gomes Martins, na igreja matriz de Monsaraz, uma vez que o cortejo fúnebre que aí se representa é, como convém de novo sublinhar, o único entre todas as arcas tumulares conservadas.

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UM CASO EXEMPLAR: o contrato de D. Gonçalo Pereira com os mestres Pero e Telo Garcia. Neste contexto, seria de grande importância conhecer alguns dos muitos artistas responsáveis pela realização da escultura tumular ducentista e trecentista. Infelizmente, apenas dois nomes emergem, com segurança, no anonimato geral que cobre toda esta grande e importante área de produção artística: são eles, como já deixámos dito, mestre Pero, morador em Coimbra e Telo Garcia, morador em Lisboa. A 11 de Junho de 1334, o bispo de Braga D. Gonçalo Pereira celebrava em Lisboa um contrato com estes dois mestres das imagens para a realização do seu túmulo57. Para além dos importantes aspectos, que neste documento ressaltam com grande evidência, relacionados com os custos e as formas de pagamento, o tempo de realização, a responsabilidade na aquisição das pedras necessárias e, de modo particular, na escolha da iconografia a esculpir (uma imposição exclusiva do encomendante), importa de novo sublinhar que esta dupla de escultores personifica, de algum modo, o alto nível que a escultura tumular, sobretudo nos dois centros de Coimbra e Lisboa, atinge ao longo do século XIV. Mestre Pero, morador em Coimbra, tornou-se mais conhecido que Telo Garcia por, a partir do túmulo do bispo de Braga e do de D.Vataça, se lhe atribuir também o túmulo da rainha Santa Isabel e toda uma produção, quer de outra escultura tumular quer de estatuária avulsa, identificável pelo tratamento plástico muito semelhante. No entanto, será legítimo pensar que Telo Garcia não lhe deveria ficar atrás no merecimento profissional. Eventualmente, e desde que se continue a fazer a necessária pesquisa, poder-se-á um dia descortinar a responsabilidade individual de cada um deles, de modo particular (porque mais desconhecida) a de Telo Garcia58.

57 A descoberta deste importante e exemplar contrato, devida a Alberto Feio, foi dada a conhecer em 1925, na sessão do Congresso para o Progresso das Ciências realizada em Coimbra (cfr.Virgílio Correia, «A escultura em Portugal no século XIV», Obras, vol. III, Coimbra, Impr. da Universidade, 1953, pp. 54-55); para a consulta do referido contrato, consultem-se Manuel Monteiro, Dispersos, Braga, Assembleia Distrital de Braga/ASPA, 1980, p. 304 e Carla Varela Fernandes, Imaginária Coimbrã dos Anos do Gótico, Lisboa, Faculdade de Letras (diss. de mestrado polic.), 1997, doc. 1). 58 A pedra utilizada para esculpir o jacente da neta da rainha Santa Isabel (guardado na igreja de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra), parece ser o calcário lioz da região de Lisboa, enquanto a arca utiliza o calcário mais brando de Ançã. A confirmar-se este facto, pode ser um indício da (com)participação de Telo Garcia (?) na execução desta bela arca tumular.

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A nacionalidade destes dois mestres tem sido commumente aceite, desde Virgílio Correia, como sendo espanhola ou, no caso particular de Mestre Pero e como mais recentemente sustenta Pedro Dias59, especificamente aragonesa ou mesmo catalã. Esta hipótese afigura-se, sem dúvida, consistente. No entanto, os modelos mais inovadores, mesmo que vindos através dessa via levantina, são essencialmente de origem francesa, como o comprovam, de modo particular, quer o jacente quer a organização da arca de D. Dinis ou, de forma ainda mais explícita, o jacente de Bartolomeu Joanes. O belo rosto desta última personagem atinge, inclusivamente, um nível de realização plástica que não tem paralelo em nenhum outro caso conhecido da escultura tumular trecentista portuguesa. De qualquer modo, se a qualidade de estrangeiros desses (e de outros) escultores a trabalhar em Portugal parece ser uma matéria de aceitação relativamente pacífica, também não é menos verdade que terá havido da parte deles uma adaptação à sensibilidade e cultura portuguesas. Em última instância, a isso seriam constrangidos pela imposição dos programas iconográficos feita pelo encomendante, como, no caso português, o único contrato conhecido (e a que já fizemos referência) deixa muito claramente entender60.

59 Cfr.Virgílio Correia, «A escultura em Portugal no século XIV», ob. cit., p. 55 e Pedro Dias, «A pedra de Ançã, a escultura de Coimbra e a sua difusão na Galiza», ob. cit., pp. 11-12. Consulte-se ainda Carla Varela Fernandes, «Maestro Pero y su conexión con el arte de la Corona de Aragón (la renovación de la escultura portuguesa en el siglo XIV)», Boletín del Museo e Instituto «Camón Aznar», LXXXI (243-272), 2000. 60 A imposição de programas por parte dos encomendantes era, por toda a Europa, a regra mais geral. É o caso de Filipe III de França que enviou artistas a Cosenza para realizarem o monumento fúnebre de sua mulher, Isabel de Aragão (fal. 1271), segundo um desenho fornecido pela corte e que foi escrupulosamente respeitado (cfr. Alain Erlande-Brandenburg, De pierre, d’or et de feu. La création artistique au Moyen Âge, ob. cit., p. 296). Consulte-se também o contrato realizado em 1386 para o túmulo dos Queralt, (publicado por Francesca Español y Beltrán, «Estéban de Burgos y el sepulcro de los Queralt en Santa Coloma (Tarragona)», D’Art, (10) 5, Barcelona, Univ. de Barcelona, 1984, pp. 169-170). Sobre o mesmo assunto, veja-se ainda Ricardo del Arco, Sepulcros de la Casa Real de Aragón, Madrid, 1945, pp. 37-38.

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OS TÚMULOS DE D. PEDRO E DE D. INÊS DE CASTRO: a excepcionalidade e riqueza iconográficas. A influência que estes mestres previsivelmente estrangeiros tiveram na evolução da escultura funerária portuguesa ao longo do século XIV conhece o seu desfecho no trabalho verdadeiramente excepcional das arcas funerárias de D. Inês de Castro e D. Pedro. É verdade que falta um elo importante nessa evolução que, a ser conhecido, permitiria lançar luz sobre os dois túmulos alcobacenses: trata-se dos monumentos do rei D. Afonso IV e da rainha D. Beatriz, desaparecidos na sequência do terramoto de 1755 que destruiu a capela-mor da sé de Lisboa onde jaziam61. De qualquer modo, e apesar desta falha, poder-se-á pelo menos adiantar que, a exemplo da arca do bispo de Braga D. Gonçalo Pereira, também nos monumentos de D. Pedro e D. Inês de Castro devem ter laborado pelo menos dois mestres, atentas as desigualdades de trabalho entre os jacentes e a escultura que preenche as arcas. Esse ou esses mestres poderiam ser portugueses, tendo em conta, além do mais, que os próprios historiadores estrangeiros que se referiram a este problema são unânimes em afirmar que, apesar de uma ou outra influência francesa, o trabalho, no seu conjunto, não pode ser de artista francês ou de qualquer outro reino da Península. De facto, apesar da admirável riqueza compositiva e da variedade temática das arcas alcobacenses, a verdade é que se inserem na evolução que a escultura em Portugal vinha nessa altura sofrendo, pelo que não seria de estranhar que pudessem ter sido portugueses os artistas que as executaram. O empenho colocado por D. Pedro na feitura destes monumentos revela-se não só na urgência com que ordenou a sua execução, três anos após a sua subida ao trono, mas também na excelência e originalidade dos seus

Túmulo de Inês de Castro. Calcário, 122 x 325 x 120 cm. Igreja do Mosteiro de Alcobaça. Foto do autor.

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61 Algumas informações dispersas permitem entender que os túmulos de D. Afonso IV e sua mulher a rainha D. Beatriz seguiam os programas ensaiados por D. Dinis e Santa Isabel: dispunham de jacentes, com anjos a incensar (pelo menos o rei) e, nas paredes das arcas, vária figuras. Entre elas representavam-se, a acreditar numa informação veiculada por Júlio de Castilho, os martírios de S. Vicente, padroeiro de Lisboa (cfr. Carla Varela Fernandes, Memórias de Pedra, ob. cit., p. 31). Esta última circunstância, a verificar-se, não só confirma a importância que estes túmulos teriam para a compreensão da originalidade dos monumentos alcobacenses, dada a também insuspeita originalidade da aposição da iconografia vicentina num túmulo, como inclusivamente (mesmo que à distância) para a confirmação da temática do mesmo S. Vicente nos painéis ditos de Nuno Gonçalves.

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extensos programas iconográficos62. Com efeito, escolheu para a arca de D. Inês a representação do Novo Testamento: nas faces maiores, em seis quadros de cada lado, o tempo da Infância de Cristo (da Anunciação à Apresentação no Templo), e o da Paixão (da Última Ceia ao Caminho para o Calvário). A completar estas sequências iconográficas, os lados menores da arca adquirem uma dimensão excepcional ao proporem na cabeceira, e como remate da Vida e da Paixão de Cristo, a grande composição do Calvário, de uma força plástica verdadeiramente notável, e, aos pés, o dramático epílogo da História da Salvação, ou seja, o Juízo Final. Este tema escatológico é, entre nós, totalmente inédito, já que em nenhum tímpano de igreja românica ou gótica se ousou plasmar esta representação tão recorrente no resto da Europa. Para o seu próprio monumento, embora socorrendo-se de um esquema compositivo semelhante ao da arca de D. Inês, D. Pedro optou pela representação da vida de S. Bartolomeu, o seu santo protector, em doze cenas (seis de cada lado) que se desdobram também desde o nascimento até à morte deste Apóstolo. Quanto às faces menores, na dos pés o monarca escolheu representar-se (eventualmente) a si próprio nos dois momentos da Boa Morte cristã, em exemplar atitude perante os seus súbditos; na face da cabeceira mandou dispor, em contraponto com o Calvário da arca de D. Inês de Castro, o tema da Roda da Fortuna. É este um dos momentos de mais assumida originalidade da escultura tumular quatrocentista não só portuguesa mas também europeia, uma vez que não existe em toda a Europa nenhum outro exemplo deste tema assim tratado em monumento funerário. A contemplação filosófica dos altos e baixos da vida humana, a decidida afirmação da precariedade do bem-estar e da fragilidade da existência, que culmina na dramática representação do jacente amortalhado, é não só uma representação plástica de muito elevada qualidade estética mas também definitivamente inédita. Este ineditismo não lhe advém apenas do facto de, como já se afirmou, ser caso único em termos europeus; é também por D. Pedro ter escolhido, como cenas e para figurantes dessa grande dramatização da existência humana, a sua própria história de amor – um amor apaixonado vivido com D. Inês para além dos limites e das conveniências e a

que só um remate trágico poderia dar a transcendente dimensão final63. Além do mais, esta proposta autobiográfica (que se completa na cena do Juízo Final com a representação dos dois amantes na janela de uma das torres da Jerusalém Celeste) é também uma das afirmações mais convincentes dessa extraordinária originalidade. É ainda neste contexto que se deve também entender a liberdade criativa com que foram compostos os quadros narrativos, feitos de cenas com-

62 Para um entendimento mais alargado dos vários problemas que as arcas de D. Pedro e D. Inês de Castro suscitam, veja-se, de José Custódio Vieira da Silva, «Os túmulos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro», Sepª Cister, Espaços, Territórios e Paisagens, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 367-374 e também O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça, ob. cit., pp. 67-93.

63 É esta razão que leva Carlos Alberto Ferreira de Almeida a, com muita oportunidade, designar de Roda da Fortuna/Roda da Vida esta composição do túmulo de D. Pedro, dada a duplicidade de sentidos que a mesma encerra «A Roda da Fortuna/Roda da Vida do túmulo de D. Pedro, em Alcobaça», Revista da Faculdade de Letras – História, vol. II, Porto, 1991, pp. 255-263.

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Túmulo de Inês de Castro: Calvário.

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plexas e não de personagens isoladas como até aí, salvo alguma rara excepção, sempre sucedera. Aliás, ao contrário do quadro narrativo medieval que muitas vezes reunia numa única representação tempos e espaços diferenciados da mesma história, nos túmulos de Alcobaça respeita-se, por norma, a unidade de tempo e de espaço. Apenas na cena do Beijo de Judas a acção se reparte por três tempos distintos, mesmo que cronologicamente sequentes: enquanto à esquerda o traidor beija a face de Cristo e Malco, o criado do pontífice, leva a mão à orelha que Pedro lhe acabou de cortar, no lado direito Judas surge suspenso da árvore em que, arrependido da traição praticada, se enforcou e com o diabo (em representação verdadeiramente excepcional) a retirar a sua alma, sob a forma de uma criança, do ventre aberto. É também de assinalar o esboço de profundidade tentado explicitamente em alguns quadros, com as personagens, sobrepostas e de volume progressivamente mais diminuto, a sugerir planos diferenciados ou, ainda, o minucioso e riquíssimo enquadramento arquitectónico das cenas historiadas: a variedade das rosáceas de desenho caprichoso, a veracidade dos gabletes, pináculos e coruchéus, a utilização de cogulhos e de outra folhagem nervosa e de contrastes acentuados de luz e sombra, fazem destes túmulos não só um caderno de temas e soluções arquitectónicas à disposição de um qualquer arquitecto mas também os verdadeiros introdutores da linguagem do tardogótico em Portugal. O emprego destas refinadas micro-arquitecturas quase legitima a afirmação de que os memoriais de D. Pedro e D. Inês de Castro se convertem, afinal, na grande catedral gótica do Norte da Europa cujo modelo em solo português jamais se ousou erguer. Mas, apesar de todas estas enormes valias artísticas, talvez o facto mais saliente dos túmulos alcobacenses, ao nível dos seus valores simbólicos e mentais, tenha a ver com a representação de D. Inês de Castro: sob um baldaquino de minucioso desenho arquitectónico, com a cabeça assente sobre duas almofadas, rodeada por anjos que a amparam e incensam, acaricia, em gesto elegante da mão direita, o longo e precioso colar que lhe desce do pescoço, enquanto a mão esquerda, enluvada, segura em gesto delicado e cortês a outra luva. É uma situação totalmente inédita em Portugal e também rara na Europa64: em lugar da tradição mais comum de representar as rainhas e outras

nobres damas com as mãos postas ou lendo o seu Livro de Horas, D. Inês de Castro é representada numa postura ambígua de etiqueta cortês. Essa aparente ambiguidade desfaz-se quando olhamos para o símbolo que lhe está posto na cabeça e cuja intenção e significado, Fernão Lopes, com a sua penetrante visão, não se esquece de anotar: tem «coroa na cabeça, como se fora Rainha». Reside aqui, afinal, a mais importante mensagem que, através desta imposição, o rei D. Pedro quis deixar para a posteridade, conhecida a teimosa insistência em declarar pública e oficialmente o seu casamento com D. Inês de Castro: a memória da mulher amada, perpetuada na sumptuosidade do monumento que lhe mandou fazer, é a de uma rainha, como a imagem do seu jacente repete até à saciedade. Ao caminhar para o fim o século XIV, aqui, na arca tumular e no jacente de D. Inês de Castro, se cumpre também, com esta formulação retórica de tão grande impacto estético e sobretudo mental, a compreensão mais profunda das motivações e significados que deram origem e consistência ao aparecimento dos monumentos funerários medievais, particularmente dos jacentes: eles são a mais expressiva memória pessoal e afirmação simultânea da respectiva linhagem; eles transmitem, pelas insígnias que transportam, a imagem social que, melhor que quaisquer palavras, cada personagem entende deixar de si. Para sempre.

64 Na catedral de León guarda-se a arca da condessa D. Sancha cujo jacente a representa com as mãos cruzadas segurando as luvas. Esta figuração, de acordo com o estudo de Margarita Quiñones

de Leon e Fernando Galvan Freire («La Condesa Doña Sancha. Una nueva aproximación a su figura», Sepª. de Medievalismo, 5, Madrid, 1995, pp. 24-29), deve ser datada do século XIV ou mesmo

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THE STONE AND THE CROSS Indo-Portuguese Jesuit Architecture in Ethiopia. 1603-33 Rafael Moreira*

Interior da nave, Igreja de Maryam Gemb, c. 1930. Foto: Center for Ethiopian Studies, Univ. de Addis-Abeba

RESUMO A Pedra e a Cruz. Arquitectura Jesuíta Indo-Portuguesa na Etiópia, 1603-33 A fundação de uma missão jesuita no Norte da Etiópia em 1603, na província do Tigré, pelo enérgico Pe. Pero Pais, S. J. teólogo, construtor e historiador vindo de Goa, tomou um forte impulso com a aliança pretendida com os Portugueses pelo imperador Susénios (1619-20) para o apoio militar contra os muçulmanos; e, sobretudo, após a sua conversão oficial à Igreja Católica Romana, em 1626. Uma dúzia de inovadores edifícios foram então construídos pelos Jesuítas na região paradisíaca em torno do Lago Tana: basílicas, igrejas, palácios e jardins, complexos palatinos e eclesiásticos, colégios, etc. A tipologia em cruz latina e ornatos incisos é deliberadamente diferente das igrejas ortodoxas etíopes, circulares e em madeira. A técnica de construção em pedra e cal, ignorada na Etiópia, significou uma revolução. No presente texto procura-se determinar a quem deve ser atribuído este inédito surto construtivo, deixando de lado as teorias tradicionais de pedreiros vindos de Portugal ou de construtores locais. Com base na evidência estilística e em referências de textos da época, atribui-se a inovação a padres e “irmãos” jesuitas com experiência de arquitectos na Índia portuguesa e a construtores de Goa e de Diu, definindo a arte portuguesa na Etiópia como uma província da arquitectura indo-portuguesa na Índia, prosseguida após a expulsão dos Jesuítas (1633) com os “castelos portugueses”, ou paços acastelados da nova capital, Gondar.

The recent reflourishing of Ethiopian studies in Europe has led to a refreshed vision of old problems, seen in a wider historical context and based on a close scrutiny of sources, written, material and oral alike.These questions still form a complex process of world interactions concerning the phenomenon of “civilizational missions” from the West – such as the one opened precisely 400 years ago in the Tigray by energetic Father Pero Pais, S. J. (1564-1622), master in Theology, natural scientist, builder, historian and a writer as well. Never in the time-span of one generation did the number of Jesuits simultaneously present in the ground surpass that of only seven or eight, always travelling from place to place to supervise the works of construction, which must have begun around the year 1620. But they left behind them, when forced to leave in 1633 by the anti-Latin decree of emperor Fasilides, an impressive amount of residences, churches, gardens and religious houses, with 13 – the symbolic number representing Christ and the Apostles – residences and palace-basilicas.These were days of glory for the order, with the official proclamation in the Vatican in 1622 of the first two jesuit saints: Ignatius of Loyola, the founder, and Francis Xavier, the “Apostle of the Orient”. The new face of Latinization of orthodox Ethiopia, the Jesuits’ aim, was a different geographical space (around Lake Tana) and a different built landscape. A new Church obeying to Rome meant the imposition of new rules and another territory, a “hard” culture both in principles as in stone, opposed to the “soft” methods of inculturation (via soave) that many defended in Goa. We can easily imagine the problems it posed to these few missionaries more used to work with the voice than with the hands: lack of architectural instruction; shortage of specialised workmanship; terrible difficulties in the communications inside Ethiopia; total dependence on the Emperor and nobles for the grounds, license to build and financial means to carry-on constructions; crucial decisions on site, types, scale and decoration, to be taken on the spot. In * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

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a dozen months or so, this community isolated from Lisbon or Rome had to improvise and create a style, to “invent an art”... But based on what? The visual criteria of divine Truth were visibility and a need for the monumental, the most convincing proofs of a superior faith and civilisation. It was an option taken somewhere in Goa around 1620 – if Gorgora (1619) and Ganata lesus (1621) were, in fact, Lake Tana’s first permanent royal sites. Old churches and residences, built in wood and straw, had to be replaced by imposing, attractive, well-lighted, solid, rational “modern” structures.We can only compare them in majesty and theological sophistication to the great jesuit colleges of India (or their extension to Macao, started around 1602-1620) and one century later the celebrated misiones of Paraguay and Brazil. In an incredibly short term of five to ten years, they erected 13 houses which included not only religious residences and churches for the priests as also palatial “compounds” with lakes and gardens: the gigantic challenge of a new system of architectural principles.This building policy adopted in Goa could only have been the fruit of an enormous self-confidence and an overoptimistic sense of time: world history and God favoured their deeds. The amount of work it involved, the logistical problems to face, the versatile solutions, the effort of these men, are a prodigy perhaps unmatched in early modern days, albeit now crumbling in ruins. It is not our intention here to discuss dates, places or names, geopolitical strategies, building programs or ideological issues. We simply want to marvel at this simultaneous capacity of mass-production in a period of alIedged decay of the Portuguese empire alI over India, and to ask some simple questions from the point of view of architectural history. How was it possible? Where did such talented master-masons and workers come from? What were their techniques and the “models” or places of reference? It is my belief that both architectural form and the concept of ornament, the proportions and technological sources, do not point to an erudite migration of a “Jesuit style” as practiced in Europe – from Portugal to Italy – but indeed to the Portuguese Estado da Índia. Here, European most cultivated forms had taken deep roots since the beginnings of 16th century. More precisely: to the peculiar ways of cross-cultural or hybrid forms had developed, as the capital moved in 1530 from southern Cochim to Goa, around the political centers and main religious settlements where a situation of social and cultural symbiosis, a complicity of interests, had created that wonderful language

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of shapes, colours and iconography calIed since 18811 the “Indo-Portuguese style”. Goa was a cosmopolitan metropolis of over 2 hundred thousand people. Her schools imparted the best education in Asia – as Jesuits’ St-Paul’s ColIege, which had more than 600 students after the mid-century: local princes, nobles from Persia, the Caucasus, Malaysia, Japan. In the shops of Rua Direita anyone could buy the most precious luxuries from Venice to Arabia, jewels of Ceylon, stones from Burma and Brazil, bengali or siamese tissues, Chinese porcelain. Any craft could be learnt in the streets of this New York of Asia. SmalI wonders that some Ethiopians found their way to these workshops as clients, pupils and practicioners. For some reason, the arts of drawing and colouring – probably, the secrets of Western perspective and anatomy – had a special attraction for them: a clear paralel with Japan, where an Academy of painting and engraving had been founded in 1612 by an Italian jesuit. As early as 1526, so tells us Father Francisco Álvares2 , the ambassador Saga Zaab brought four slaves to Goa as apprentices of painting and trumpet, which the captain took at his charge,“e mandou que os ensinassem “. A curious document from July 1532, the “Book of Receipts of The Three Blind Kings Abexins [Abyssinian]“3 , informs that these three poor royals (if they were the same) received from the Goan treasurer a monthly grant, Pero abyxi to study as a painter and Antônio and Mateus as trumpet-players – at least for the whole year of 15334. It is a good sign of how Goa appeared to Ethiopians these days: a land where anything was possible, even a blind painter. Religious orders used to concentrate around their convents or in their properties a sufficient number of good local artisans in order to furnish or repair them: stonecutters, carpenters, kilns for brick and pottery, wall-painting, furniture, woodcarving for altarpieces and images, embroideries, oil and miniature works, etc. Jesuits, for sure, were superlative in these matters of labor organization and instruction for the needs of the house. ln 1630 they had officially 1 The term was created for an exhibition on ornamental arts at the South Kensington Museum (now Victoria and Albert) by its director, M. C. Robinson, and currently accepted by F. de Sousa Viterbo, Ramalho Ortigão and other Portuguese scholars. 2 Padre Francisco Álvares, Verdadeira Informação das Terras do Preste João [1540], 2ª ed., Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1943, Parte Ill, cap. 3, p. 390. 3 Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Corpo cronológico, lI, 176, 122. 4 Ibid.. lI, 178. 34.

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in the State of lndia 18 residences and colleges with 40 churches controlling a huge mass of workmanship and materiaIs of alI kinds, coming from their own lands5. The missionary machine had attained the leveI of an industry and was ready to start moving... For more specialised labor they managed to get into their ranks as not ordained priests, or “lay brothers” (irmãos), the most talented artists in town: architects, designers, engineers, map-makers, painters, etc., who received the best formal education in mathematics, literature and iconography. That is the reason why jesuit masterpieces were normalIy done alI by themselves, in stone-cutting as in interior decoration: good examples are the Bom Jesus basilica in Goa (where Saint Francis Xavier is buried) attributed to Domingos Fernandes, S. J. (1594-1605); the College of Rachol, attributed to a Gaspar Soares, S. J. (1606-20); and St. Paul’s church in Macao, by Carlo Spínola, S. J. (1602). In fact, the number of cultivated jesuit builders active in India at the turn of the century is not known; but they controlled a large bunch of master-masons and huge number of less specialised workers – an army which they could recruit in a matter of days. We can simply ask who else could have undertaken Operation Ethiopia so quickly and so well. Of course, these conditions are potential possibilities, and possibilities are not facts. We must look directly at the available data in order to obtain a global and more convincing view of how things did happen in the realm of emperor Susenios (1605-32) around the key-date of 1620, the supposed year of his conversion to Catholicism. A closer look into what seems to have been the first catholic church founded personally by Susenios, that of Ganata lasus (Jesus’ Paradise) on the brink of Lake Tana, started at November 1621 and finished two years later under the direction of “Padri Pay” (undoubtedly Father Pero Pais, S. J.)6 – a study beeing done now by the archaeologist lan Campbell – shows signs of a rectangular “enclosure” measuring at least 150 X 40 meters built in stone and mud, with round towers and posts with flags alI made of copper or gilded brass. Inside, the church was 16 metres long in the proportion 1:3 and had a foreign-

5 António Bocarro. O Livro das Plantas de Todas as Fortalezas. Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, 3 vols., trascr. de Isabel Cid, Lisboa, IN/CM, .1992, voI. 2.

Friso e caixotão da abóbada da capela-mor. Maryam Gemb. Foto: Ian Campbell, 1960.

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6 F. M. Esteves Pereira, Chrónica de Susenyos, Rei de Ethiópia, texto e trad., 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional, 1892-1900, p. 282.

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-Iooking (i. e., Catholic) portal of 12 Doric colums, arches, a terrace and a parapret, in carved stone brought from abroad. Next to it, king Susenios’ monumental palace occupied the hilltop, surrounded by gardens. It was quite an exotic complex adapted to Etiopian traditions and liturgy, like a large tank in the slopes facing the lake with a pavilion in the middle, alI “built for him by workmen from India”7. Some façade details - such as the Doric fluted columns, entablatures with jars and roses alIusive to a triumphant Virgin or the escorialesque motif of pyramids and balIs high above – should look like a Catholic dress over a local design. If it was used as an imperial pantheon by Susenios himself, as the chronicle states, it seems more the sign of a weakness in front of his clergy than of a strong desire of change, as little there points to a typological dynastic mausoleum in the Renaissance sense. On his masterpiece, Pero Pais said he was trying to emmulate the fabulous palace of the mythic king Gundafor of India, built – according to the medieval Legenda Aurea – by St. Thomas, Christ’s first apostle-architect, as a token of the Indian king’s conversion to Roman Christianity. One millenium later, the situations repeated – as the paintings of the Virgin and Child (the “Madonna deI Popolo”) allegedly painted by St. Luke, whose copies were installed in every mission house for common’s salute. Technological innovations there were the “invention” of Manuel Magro, a mason brought from Goa in 1624 by the patriarch Afonso Mendes: but it was simply the making of chunambo, the lime mortar usual in India by burning oyster shelIs or calcarious stone. To Ethiopians it meant a revolution in building, with quicker builds and the possibility of several construction yards working under one master at the same time, new daring building types, classical coffered barrel vaults and so on. Despite the mannerisms of ornament they were new architectural values in the country that amazed everyone. The range of possibilities opened by these structures alla romana and the kind of classicist decoration they involved is best seen in later buildings, such as the religious-palatine complexes of Gorgora and Mertule Maryam, both built in 1626 by the jesuit lay brother João Martins. Gorgora was the first church made “without any trees”, as marvels the Chronicle of Susenios. It had a well-proportioned inner court two or three storeys high, roofed by a vault which 7 Pe. Jerónimo Lobo, The Itinerário of Jerónimo Lobo, ed. Hak1uyt Soclety, Londres, p. 248: cfr. Ian Campbell, “The Royal Fortress of Azazo” in New Trends in Ethiopian Studies, I, 1994.

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Mertule Maryam, interior da capela-mor. Foto do autor.

Mertule Maryam, arco cruzeiro. Foto do autor.

Mertule Maryam, decoração do portal da sacristia. Foto do autor.

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must have been painted, creating with the stone-carved Doric frieze of the church an effect of rare solemnity which recalls Santa Mónica’s cloister in Goa (1606-7), so praised by its magnificence and symbolism. Unfortunately, the last decorated fragment of Maryam Gemb totally collapsed in 1995 and is now a mound of ruins. That concern with christologic and marianic simbologies endured in “hard” materiaIs was more explicited to the end of the period – probably as an answer to the growing criticisms of local clergy – as in Susenios camp at Danqaz, where he lived his last ten years and died, in 1632. Little after 1625 he asked the Franks (i. e., the Indo-Portuguese master-masons just arrived with Afonso Mendes, or Manuel Magro himself) to build him a palace “in lime and stones”, to which a church was added in 1628 with the title of Cathedral. Nowhere are architectural symbols more visible, both as legitimation and an announcement of the king’s religious and political intentions. The church, built on the spot where he gave to Afonso Mendes his allegiance to the Pope of Rome (1626), has a Latin-cross plan, with a coffered apse no longer used in Early Baroque Rome but still common in Goa. Curiously enough, many of these building practices survived the Jesuits. When emperor Fasilides replaced his father in 1632, abjured his conversion and founded at the city of Gondar the first permanent capital in Ethiopia, its palaces – the famous “Portuguese castles” – followed the same inspiration. The architectural models chosen by the priests were a response to the local uses as eclectic as the complex situation they encountered. Priority went to the most suitable and previous experienced forms, not to the learned sources, such as the Italian treatises of Sebastiano Serlio: less to aesthetics than to haste. An idea of déJà vu emerges from each case still recognizable. Some fragments of decoration which remain visible in Mertule Maryam, as stone lintels, coffers of the vaults, doors or windows, repeat the same motifs (roses, jars, lilly flowers, acanthic scrolIs, the jesuit anagram IHS) that we may find at Danqaz or Azazo (Ganata Jesus), and in many other places, treated in a way which is almost unidentifiable from one another. The idea it gives is that they were worked separately, in an almost industrial way, and only then applied to the built structures. But who were these master-masons, who in less than twenty years redesigned the map of a millenarian civilization just as the missionaries tried to overturn its old form of Christian religion by making real the myth of the

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Mertule Maryam, portal da sacristia. Foto do autor.

Mertule Maryam, pormenor do friso oriental da nave. Foto do autor.

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Prester John? What I want to suggest here is that the answer is to be found in the buildings themselves, the “language” they speak, their technical devices, stone-carved themes and decorative choices. And they alI point to Portuguese India: Goa, naturalIy; but also some important jesuit clusters near the ports of the Highlands of Ethiopia – the so-calIed Northern Province (Diu in the Gujarat, as also Bassein near Bombay) in special, where Jesuits were a major force. The province’s capital Bassein was the ancestor of Mumbai and an active building-yard of quality, its noble population favouring jesuit enterprises as their own (they were so many that the city was nicknamed “Dom Baçaim”...) Given by the Gujerati sultan in 1534 as a strip of inhospitable coastal land, it quickly rised to more than 4 thousand residents and was then being totalIy rebuilt after its destruction by a hurricane in 1618. The Jesuits had the largest college, 5 churches, 6 rural residences and controlled the Misericórdia, the most select house-of-mercy in town. Manpower and skilled artists were not a problem within its 200 miles long territory. To the North, Daman (conquered in 1559 as a rich port with the Red Sea) was a small Renaissance city but it had 3 jesuit houses, the first from 1603. The most northward Portuguese colony, the fortress of Diu, at the tip of the peninsula of Cambay, was the closest, geographically and artistically, to Ethiopia. It was a huge fortification with a garrison and a few traders, but it commanded a muslim-hindu town 2 yards inside the island, famous for the high standards of its stone-masons of the “baneane” caste and century-old tradition. They can still be seen at work today at the Gulf emirates or in Lisbon. Strong links ,of dependance (they are in majority catholics even now) were established with Portugal and the Jesuits, who had there their most “indianised” church, called the Cathedral, built in the territory in-between, expressing its cultural double-bind. If the plan attributed to Gaspar Soares, S. J. is common at its date of 1601, a Latin cross without towers, deep presbitery and round niches in the nave altars – a feature rare in India but which appears in Gorgora – the façade is a delirium of Asian motifs in classical frame. Sometimes we have the impression that the hands that carved the Hindu roses in the coffers and panels at Diu were the same that made them in Ethiopian vaults and windows. And perhaps they were. Writen documents never pay attention to the multitude of workers: presumably they were locaIs engaged for small labor and unskilled tasks. But every evidence points to the fact that there were indo-portuguese from Diu,

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as Father Jerónimo Lobo states, as regards to special techniques, measurements, statics, stereotomy of the stones and sculpting the ornaments. Architecture is essentially a mental activity. If we pick from the texts, some names appear as the very plausible authors. João Martins, arrived in 1625 with two master-masons, is credited with Gorgora and Mertule Maryam. Manuel Magro came “from the lands of Cambay”, that is Diu. Gaspar Pais, S. J., was active in Ligenegus (1626) and Danqaz (1628). As early as 1618 we hear of a muslim mason from Diu bringing stone to Gorgora on orders of Pero Pais.8 Father Pais celebrity as a builder was probably made at the cost of this team of experienced and learned men, calIed from Goa and Diu, he had helped to establish and start drawing in Ethiopia. He did not create a style, but an extension of jesuit tradition in the Portuguese towns of India. By alI means Ethiopia was a province of “indo-portuguese” art, adapted to the specific conditions and needs of the recent mission. And its main result, when the end came, besides some picturesque ruins, was the basis on which evolved the Gondarine style, one of Ethiopia’s most original voices.

Este texto foi no colóquio internacional “Pero Páez: in the Early XVIIth century Ethiopia” (Addis-Abeba, Dezembro 2003) organizado pelas Embaixadas de Portugal e Espanha. Agradeço ao Senhor Embaixador e demais representantes portugueses as atenções recebidas, e ao Prof. Doutor Manuel João Ramos (ISCTE) o precioso apoio bibliográfico.

8 Cfr. Hervé Pennec, Des Jésuites au Royaume du Prêtre Jean, Paris,2003, pp.175-9 e 212-4.

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A PINTURA BARROCA E A CULTURA MATEMÁTICA DOS JESUÍTAS: o Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S. J. (1715)1 Magno Mello* e Henrique Leitão**

Milliet Dechales, Cursus Mundus Mathematicus, tomo III, tratado XXI, proposio VIII, 1690. BN. S.A. 654A. Foto: Laura Guerreiro.

RESUMO Os principais responsáveis pelo ensino em Portugal na chamada Aula da Esfera no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, dedicaram-se à investigação das teorias da perspectiva, reunindo os seus estudos em pequenos tratados e manuais. O ensino da Companhia de Jesus associava a arte com a religião e a ciência, procurando levar até aos fiéis uma composição ordenada do universo, num amplo movimento onde a perspectiva se torna num método valioso para alcançar e difundir a manifestação de imagens e de pensamentos. Lente de Matemática, o Padre Inácio Vieira deixou influentes estudos sobre esta disciplina, sendo O Tractado de Prospectiva o manuscrito mais importante, primeiro tratado português onde se define e reconhece toda a importância do estudo e entendimento da perspectiva. É a arquitectura de uma ordem cristã do universo conseguida graças a uma origem geométrica e sistematizada do infinito. Este jesuíta preocupou-se não apenas com a argumentação teórica, bem fundamentada nos melhores autores do seu tempo, como ainda na aplicação prática da perspectiva à pintura e cenografia. O seu papel como docente em Santo Antão, desde 1701, influenciando uma geração de pintores e cenógrafos, vai transformá-lo assim numa figura de grande relevo da cultura portuguesa setecentista..

O objectivo deste trabalho é fornecer alguns elementos que reputamos muito significativos para a história do espaço pictórico em Portugal. Para além de uma análise de contexto, a nossa investigação está centrada na apresentação de nova documentação de grande valor para todos os interessados em prosseguir estas questões. Falar em perspectiva é conceber a representação ilusória da forma e da configuração de um espaço por meio de projecções, linhas e pontos. Resumidamente, seria a síntese geométrica do mundo visível. Antes de analisarmos os textos escritos em Portugal sobre a representação perspectivada do espaço, procederemos a um breve exame do conjunto de tratados não portugueses sobre este tema. Estes textos são a estrutura de base para a teoria e a prática perspéctica, desde Leon Battista Alberti até Bernard Lamy e/ou os Bibiena. A difusão destes tratados ocorreu não só pelo conhecimento do seu conteúdo teórico, isto é, pela mudança de mentalidade com o novo conceito de espaço, mas também pela circulação de gravuras a partir das imagens destes mesmos tratados, que, espalhando-se por toda a Europa, provocaram um impacto semelhante ao da fotografia. Na impossibilidade de obtenção dos próprios textos, era possível adquirir tais gravuras soltas, que, além de permitirem o estudo e a cópia de imagens, eram responsáveis pela proliferação de uma nova iconografia e até pela difusão de novos métodos de reprodução artística. Em Portugal, este tema não tem sido objecto de atenção por parte dos investigadores de história da arte e, portanto, não está satisfatoriamente examinado. O seu estudo tem conhecido avanços apenas no que diz respeito à análise da tratadística da arquitectura, e também nas pesquisas específicas sobre * Centro de História da Arte da Universidade de Évora; Universidade Federal de Minas Gerais. ** Centro de História das Ciências, Universidade de Lisboa. 1 Os autores agradecem à Dra. Maria João Vilhena a transcrição do Tratado de Inácio Vieira, e à Dra. Lígia de Azevedo Martins (Biblioteca Nacional de Lisboa) as facilidades concedidas durante a investigação que permitiu a realização deste estudo. M. Mello agradece ainda ao Prof. Rafael Moreira as inúmeras conversas e sugestões sobre assuntos relacionados com os que aqui se tratam.

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pintura, desenho e escultura.2 Todo o assunto, portanto, no que diz respeito ao nosso país, é um campo essencialmente novo e que necessita de ser devidamente descortinado. Para compreender a questão da representação perspectivada, primeiro sob um ponto de vista teórico e depois prático, afigura-se importante realizar um estudo de conjunto não só relativo a textos impressos, mas também a manuscritos que abundam nas muitas bibliotecas portuguesas. Nestas instituições encontram-se ainda desenhos e gravuras que, num exame de conjunto, podem complementar e ampliar toda esta informação, desbravando este universo ainda pouco conhecido.

A TRATADÍSTICA EUROPEIA Os escritos sobre perspectiva aparecem inicialmente como capítulos separados, dentro de tratados sobre a arquitectura. Não obstante esta afirmação ser correcta em geral, conhecem-se excepções, como, por exemplo, o famoso tratado de Piero della Francesca (ca. 1412-1492), De Perspectiva Pingendi, dedicado especificamente à perspectiva, escrito ainda no decorrer do século XV. No entanto, na Itália, a maior difusão deste tema só aconteceria no fim do século XVI com o Le Due Regole della Prospettiva de Jacopo Barozzi, denominado Vignola (1507-1573).3 Este autor iniciou os seus estudos em 2 Para a arquitectura, ver Rafael Moreira, “Tratados de arquitectura”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 492-494; do mesmo autor, e sobre arquitectura militar, ver “Engenharia militar”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, 155-159. Para a pintura, ver Nuno Saldanha, “A literatura artística setecentista”, in Artistas, Imagens e Ideias na Pintura do Século XVIII, Lisboa, Livros Horizonte, 1995, pp. 203-213; Pictura Poesis (tese de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa, 1993);“Tratados de pintura”, in Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 496-499. Sobre escultura, ver José Fernandes Pereira,“Tratados de escultura”, in Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 498-496. Sobre o desenho, ver Margarida Calado, “Desenho”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 146-148; Joaquim Oliveira Caetano e Miguel Soromenho, A Ciência do Desenho, Lisboa, BNL, 2001. 3 Jacopo Barozzi da Vignola, Le Due Regole della Prospettiva Pratica di M. Iacomo Barozzi da Vignola con i commentarj del R. P. M. Egnatio Danti, Roma, 1583. A bibliografia sobre este arquitecto-pintor é muito vasta e diversificada; citaremos aqui os textos onde é possível encontrar uma ampla referência sobre seu trabalho: Luigi Vagnetti, De Naturali et Artificiali Perspectiva, n.º 9/10, Firenze, Libreria Editrice Fiorentina, 1979; Dora Wiebenson, Los Tratados de Arquitectura de Alberti a Ledoux, Madrid, Hermann Blume, 1988 e Pietro Roccasecca, “Le due regole della prospettiva”, in Jacopo Barozzi da Vignola, a cura di Richard J. Tuttle, Bruno Adorni, Chistoph L. Frommel, Chistof Thones, Electa, s/d, pp. 91-99.

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meados do século XVI, mas o seu texto só seria publicado em 1583, já em data posterior à sua morte. O texto de Vignola é considerado como a exposição mais completa até então feita sobre os métodos perspécticos, apresentando duas construções: a costruzione legittima e a costruzione per punti di distanza. A primeira regra ocupa oito capítulos e a segunda vinte e um, sendo que todo o texto está dedicado especialmente ao pintor-desenhador. O seu grande sucesso deve-se em grande medida aos desenhos que ali se encontram, pois permitem seguir naturalmente todo o texto.Todo o tratado é constituído por uma parte sucinta escrita por Vignola, e outra que consiste nos comentários de Egnazio Danti (1536-1586), que após a morte do arquitecto se propôs a ajudar o financiamento da publicação do texto.4 Fora da Itália deve apontar-se a publicação do tratado De Artificiali Perspectiva em 1505, pelo cônego francês Jean Pèlerin, designado Viator (1435-1524),5 considerado o primeiro tratado a identificar a linha do horizonte. Pèlerin aconselha a perspectivação da planta do objecto situado sobre um plano horizontal, com o propósito de ler com maior exactidão as intersecções construídas. Propõe ainda o desenvolvimento do sistema perspéctico com três pontos de fuga, isto é, dois laterais (à direita e à esquerda) e um central: “que a distância do tiers point ao ponto central é igual à distancia do observador ao quadro, ainda que tenha consciência de que um maior afastamento desses pontos ao ponto central corresponde a uma maior distância de visionamento”.6 Como é bem sabido, para condicionar a realidade visível, a arquitectura utiliza a geometria como um sistema gráfico, que irá constituir-se assim numa ferramenta essencial para comunicar informações de modo sistemático e preciso. Por isso, nos tratados de arquitectura era corrente dedicar-se alguma parte do texto aos princípios básicos da geometria. A sua utilidade estava também implicada na determinação das proporções referentes à figura humana e às ordens arquitectónicas. Os textos relativos a esta representação gráfica centravam a sua atenção na construção perspectivada de modo racional a partir de

4 A obra diferencia claramente o que deve a Vignola e o que se deve a Danti: são utilizados dois tipos de letras e diferentes processos de representação das gravuras. 5 Luigi Vagnetti, De Naturali et Artificiali Perspectiva, n.º 9/10, Firenze, Libreria Editrice Fiorentina, 1979, pp. 311-312; Andrés de Mesa, “Entre la práctica artesanal y la teoria de la visión. El concepto de pirâmide visual en el tratado de perspectiva de Jean Pèlerin Viator”, in D’Art: perspectiva i Espai Figuratiu, vol. 20, Barcelona, 1994, pp. 59-113. 6 João P. Xavier, Perspectiva, Perspectiva Acelerada e Contraperspectiva, Porto, FAUP, 1997, p. 52.

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um ponto de vista específico. Neste contexto, deve ser sempre lembrado que a perspectiva linear é apresentada como um sistema único e não como um conjunto de sistemas. De facto, se se identificar perspectiva com a óptica, existem tantas perspectivas quantas as condições da visão (o acto de ver: ciência da visão).7 No entanto, se considerarmos a perspectiva como uma representação racional do real, essa pluralidade deixa de ser possível. A perspectiva cria um espaço arquitectónico virtual, e, estando estreitamente relacionada com a pintura, tal espaço pode ser ampliado ou completado. Embora os livros sobre as ordens arquitectónicas utilizassem sobretudo uma exposição de tipo literário, discursiva, desde cedo a perspectiva implicou o recurso aos métodos de observação e apreciação científica. Como é bem sabido, a origem da perspectiva está na óptica medieval e nos desenvolvimentos ocorridos entre os artistas e artesãos, numa pseudo perspectiva bifocal.8 A descoberta de um ponto de fuga, único e central, foi fulcral para o desenvolvimento da representação espacial perspectivada; todavia, seria só por volta de 1415 ou 1416 que um arquitecto, Filippo Brunelleschi (1377-1446), demonstraria a importância de um método para a construção de um espaço representando pictoricamente um edifício, que ficou conhecido como costruzione legittima.9 Um pouco mais tarde, Leon Battista Alberti (1404-1472) que havia estudado direito, óptica e matemática, aproxima-se claramente de literatos e artistas, reivindicando para este último grupo um papel intelectual. O seu De Pictura,

7 Uma espécie de ciência mista, isto é, que convivia com os princípios da filosofia natural, mas também estudada mediante o recurso da linguagem matemática. 8 A posição de ângulo pode também ser denominada bifocal: escolhendo dois pólos nas franjas do quadro, os quadrados do reticulado aparecerão em forma de losangos estreitos e todo o pavimento aparecerá íngreme, e não horizontal como no esquema frontal. Como bons resumos dos aspectos mais técnicos, usem-se: David C. Lindberg, Theories of Vision from Alkindi to Kepler, Chicago, University of Chicago Press, 1976; J. V. Field, The Invention of Infinity. Mathematics and Art in the Renaissance, Oxford, Oxford University Press, 1997. 9 Alguns autores defendem que Brunelleschi realizou os seus dois painéis, a perspectiva do Baptistério e da Piazza della Signoria, só depois de 1420. Deve ainda recordar-se que, desde 1977, ficou demonstrado que este termo não fora usado nem inventado no século XV, mas cunhado em 1882 por Heinrich Ludwig nos seus estudos sobre o Trattato della Pittura de Leonardo da Vinci. Segundo os estudos de James Elkins é possível dizer que não existe um só exemplo de pintura executada com a costruzione legittima. Veja para esta questões os estudos de Pietro Roccasecca, “La finestra albertiana”, in Nel Segno di Masaccio – L’invenzione della prospettiva, Firenze, Giunti, 2001, pp. 65-78; «Il modo optimo» di Leon battista Alberti” in Studi dell’Storia dell’Arte, Todi, (PG), 1993, Ediart, s/d, pp. 245-262

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escrito em latim, em 1435, e em italiano, em 1436, divide-se em três partes e expõe as noções básicas para o exercício da pintura.10 Continuando a inspeccionar a tratadística sobre perspectiva cumpre observar que Sebastiano Serlio (1475-1554), no Secondo Libro do seu Trattato de Architectura, publicado em 1545, estuda a perspectiva com um e com dois pontos de fuga. Até 1568, ano da publicação do manual de Daniel Barbaro (1513-1570), La Pratica della Prospettiva (...), já se tinha explorado todo o seu potencial. Em 1596, era publicada La Pratica di Prospettiva del Cavaliere, de Lorenzo Sirigatti (? -1597)11, e o Artis Perspectivae plurium generum (...), de Hans Vredman de Vries (1527-1604),12 demonstrando um total amadurecimento e domínio desta matéria. No século XVII, a teoria sobre a perspectiva avançou de modo impressionante beneficiando para isso das descobertas promovidas por matemáticos. A primeira referência a este aspecto pode ser encontrada na obra Perspectivae Libri Sex, de Guidobaldo del Monte13 (1545-1607), publicada em 1600. É nesta obra que, pela primeira vez, se estabelece o conceito de “ponto de fuga”, denominado pelo autor como costruzione con punti di concorso, definido como resultado da convergência da imagem perspectivada por feixes de rectas paralelas no infinito. Recorde-se que o sistema idealizado por Vignola é diferente do método proposto ou teorizado por Alberti. Contudo, é significativo lembrar que o método do ponto de distância alcançava os mesmos propósitos do modo ottimo de Alberti.14 Concretamente,Vignola apresentava dois métodos no seu tratado, 10 Para outros estudos sobre Alberti ver: Leon Battista, De Pictura, 1540: Javier Navarro de Zuvillaga, Mirando a través – La Perspectiva en las Artes, Madrid, Siruela, p. 54 e 58.; João Pedro Xavier, op. cit., pp. 17-93: neste estudo faz-se uma evolução do sistema “brunelesquiano” até ao sistema das duas regras de Vignola. Ainda sobre Alberti, ver a abordagem de Joaquim Garriga, “La intersegazione de Leon Battista Alberti I”, in D’Art, Revista del Departament d’Història de L’Art Universitat de Barcelona, n.º 20, 1994, pp. 11-57. 11 Dora Wieberson, op. cit,. 1979, p. 212. 12 Sobre de Vries, artista plenamente inserido na atmosfera do maneirismo da altura, ver: Martin J. Kemp, The Science of Art: Optical Themes in Western Art from Brunelleschi to Seurat, New Haven,Yale University Press, 1990. Citamos a partir da tradução italiana: Martin J. Kemp, La Scienza dell’Arte, Prospettiva e percezione visiva da Brunelleschi a Seurat, Firenze, Giunti, 1994, p. 128; ver as figuras 210212; Luigi Vagnetti, “Il processo di maturazione di una scienza dell’arte: la teoria prospettica nel cinquecento”, La Prospettiva Rinascimentale Codificazioni e Trasgressioni, Firenze, 1980, pp. 463-464; Harry Robin, The Scientific Image, New York, Freeman, 1992, p. 203. 13 Martim Kemp, op. cit., p. 103. 14 No resumo que acabamos de apresentar apontamos a existência de quatro tipos de construções perspécticas, isto é, a costruzione legittima de Brunelleschi, em 1415; o modo ottimo de Alberti, em

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dos quais apenas um era original. Na verdade, o método de Vignola veio a simplificar a construção de um espaço em perspectiva e instituir definitivamente os “pontos de distância” entre a cena representada e o olho do espectador, que, mesmo intuída em métodos anteriores, nunca tinha sido caracterizada ou identificada como tal. Um outro matemático, Girard Désargues (1591-1661),15 expôs o Méthode universale de metre en perspective les objects donnés réellement ou en devis, avec leurs proportions (...), na sua obra publicada em Paris, em 1630.Tratava-se de um método baseado na geometria cartesiana (geometria analítica, isto é, método de representar qualquer objecto por meio de cálculos matemáticos e sem o recurso ao desenho) e com precisão matemática para a projecção de objectos tridimensionais sobre uma superfície planimétrica. Désargues foi uma personalidade de grande mérito, professor na Academia de Pintura francesa, mas que, devido a violentos ataques por parte de outros autores em relação ao seu método, resolveu distanciar-se dos meios académicos, indicando o seu melhor aluno para o substituir. Assim, Abraham Bosse (1602-1676),16 o fiel aluno e eterno defensor, assumiu o ensino de “Perspectiva” na Academia de Belas-Artes dirigida por Charles Lebrun. O afastamento de Désargues vem inserido numa polémica17 após a publicação do tratado do jesuíta Jean

1435; a costruzione con punti di distanza de Vignola, em 1583, e a costruzione con i punti di concorso, acima citado, de Guidobaldo del Monte, em 1600. Cumpre ter presente, como bem assinalou João Pedro Xavier, que “qualquer uma das construções conduz aos mesmos resultados, pelo que, a partir do momento em que Filippo Brunelleschi apresenta a sua “costruzione legittima”, fica resolvido o problema fundamental da determinação da intersecção dos raios visuais, que unem o observador ao objecto, com o plano do quadro. Na solução deste problema está a perspectiva rigorosa (perspectiva artificialis) do objecto.” João Pedro Xavier, op. cit., p. 107. 15 L.Vagnetti, De Naturali et Artificiali Perspectiva, n.º 9-10, Firenze, 1979, pp. 389-390; D.Wieberson, op. cit., pp. 217-218. 16 Dora Wieberson, op. cit., pp. 31, 221-222 (indicação para as suas duas obras: Maniére Universelle de Mr. Desargues (...) e Réprésentations géométrales de plusieures (...); Javier Navarro de Zuvillaga, Imágenes de la Perspectiva, Madrid, Siruela, 2000. 17 A publicação do livro de Dubreuil suscitou ataques por parte de Désargues e Abraham Bosse, que após assumir as aulas na Academia, continuou a defender o seu antigo professor e a acusar Dubreuil de plágio. O atrito entre estes teóricos continuaria por algum tempo, causando certo malestar no meio académico, culminando num desentendimento entre Bosse e Charles Lebrun, mais precisamente entre outros membros da Academia, desgastando a imagem do lionês Bosse, que foi mesmo convidado a demitir-se do cargo de professor, em 1661. Toda esta controvérsia não se ocupava exclusivamente do método ou técnica que deveria ser escolhida, mas envolvia profundamente as relações entre prescrições teóricas, juízo visual, procedimentos práticos e finalidade artística. Sobre as complexidades desta controvérsia, Martin Kemp, op. cit., pp. 137-144.

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Dubreuil18 (1602-1670) em 1642, uma obra que conheceu muitas reedições ao longo dos séculos XVII e XVIII. Em linhas gerais, a obra de Dubreuil inseriu-se numa grande disputa entre os autores tradicionalistas, contra as inovações pretendidas nos teoremas de Désargues. Estes estudos de Désargues acabariam por alcançar um sentido pleno no âmbito da geometria projectiva, construindo as bases para o futuro trabalho de Gaspard Monge (1746-1818), no século XVIII.19 Assim, a sua afirmação acabou por se repercutir positivamente, com a criação de um sistema analítico para a projecção de qualquer objecto no espaço: “non vi è alcuna differenza tra la maniera di figurare, ridure o rappresentare qualunche cosa in prospettiva, e la maniera de figurare, ridure o rappresentare in geometrico, perché geometrico e prospettiva non sono che due specie del medesimo genere, che possono essere enunciate e dimostrate insieme, con le stesse parole”.20 Tais declarações irritaram profundamente os operadores empíricos da perspectiva, atraídos mais pela fantasia figurativa das imagens do que pela força dos conceitos a ela submetidos. Devido à sua riqueza iconográfica, o texto de Dubreuil preencheu uma lacuna significativa na época, transformando-se num espécie de manual facilmente compreensível e pragmático. A obra de Dubreuil foi traduzida para o inglês, sendo designada e conhecida como perspectiva jesuíta.21 Esta expressão reaparecerá nos estudos do grande pintor William Turner (1775-1851) com o nome de “perspectiva com o método jesuíta”.22 Provavelmente, esta expressão então divulgada não será a mais correcta, como também não o é “estilo jesuíta”,23

18 Jean le Dubreuil, La Perspective pratique, necessaire à tous peintres, graveurs, sculpteurs, architects, orfevres, brodeurs, tapissiers, et à autres se servans du Dessein. Par un Parisien, Religieux de la Compagnie de Jesus, Paris, 1642. Sobre a polémica deste tratadista com Abraham Bosse, ver Luigi Vagnetti, op. cit., pp. 394-396; Dora Wieberson, op. cit,. pp. 219-220; Martim Kemp, op. cit., p. 103. 19 Sua obra é intitulada Geometrie Descriptive. Leçons données aux Ecoles Normales l’an III de la Republique, Paris, 1798. Com este texto Monge passa a ser considerado o fundador da geometria descritiva. 20 Citação retirada de Luigi Vagnetti, op. cit., p. 393. Ainda sobre Désargues, ver J.V. Field and J. J. Gray, The Geometrical work of Girard Desargues, New York, Springer, 1987; J. Dhombres et J. Sakarovitch (eds.), Desargues et son temps, Paris, Blanchard, 1994. 21 Dora Wieberson, op. cit., p. 217. 22 Martin Kemp, op. cit., p. 178. 23 O assunto foi já tratado por muitos. Como resumo genérico, veja-se Rudolf Wittkower e Irma B. Jaffe, Baroque Art: The Jesuit Contribution, New York, 1972. Para a literatura mais recente, usem-se: Gauvin Alexander Bailey, Art on the Jesuit Missions in Asia and Latin America, 1542-1773, Toronto, University of Toronto Press, 1999; John Bury, Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, São Paulo, Nobel, 1991, pp. 192-204.

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pois a arte e a arquitectura desta fase não se caracterizam por aspectos específicos presentes apenas no seio desta ordem, mas numa dinâmica vista utilizada em toda a cultura barroca. Sabe-se que, no período da Contra-Reforma e especialmente entre os Jesuítas, a cenografia instituída no interior de quaquer templo irá reflectir o esforço de levar o mais perto dos devotos a mensagem do Evangelho, assim induzidos a comunicar com as personagens ali representadas e em perfeita sintonia com as ideias de Inácio de Loyola expressas no “Princípio e Fundamento” dos seus Exercícios Espirituais: “pois o homem foi criado para falar, fazer reverência e servir a Deus nosso senhor, e mediante isso, salvar a sua alma; e as coisas sobre a face da Terra foram criadas para o homem, e para ajudá-lo no prosseguimento do fim para o qual fora criado. De modo que, usará delas tanto quanto para alcançar o seu fim e tanto quanto se libertará delas se isso impedir a concretização do mesmo”.24 A terceira parte do tratado de Jean Dubreuil, publicada só em 1649, indicava como construir une perspective sur un autel en place du tableau. Esta construção perspéctica, além do efeito ilusório que causava, permitia a possibilidade de se adaptar a diferentes altares e em função das diversas festividades da liturgia cristã. Nesta mesma parte, Dubreuil exemplificava a representação do Santíssimo Sacramento em forma de aparato cenográfico sobre o fundo de um altar.25 De modo genérico pode dizer-se que, para os Jesuítas, a construção perspéctica do espaço foi considerada como uma forma de construção racional de toda a visão divina, na intenção de estabelecer uma espécie de ordem simbólica do universo. A essa representação vem ainda aliado um poderoso sentido devocional e sedutor. As pinturas que representam falsas arquitecturas não podem ser reduzidas à função de criar uma mera aparência das coisas ou de preenchimento dos espaços vazios. No caso das representações religiosas, tinham acima de tudo um duplo objectivo: por um lado caquético, isto é, de instrução nas verdades da fé e nos relatos biblícos; e, por outro lado, um propósito devocional, induzindo o observador a elevar-se das coisas terrenas para as coisas do espírito. O contexto divino deveria assim tornar-se mais próximo e sensível, mobilizando o intelecto e a imaginação humana. Com tal ânimo, com24 Santiago Arzubialde S. J., Ejercicios Espirituais de S. Ignacio. Historia y Analisis, Bilbao, Mensajero Sal Terrae, 1991, pp. 71-73. 25 Jean Le Dubreuil, La Perspective pratique, necessaire à tous peintres, graveurs, sculpteurs, architects, orfevres, brodeurs, tapissiers, et à autres se servans du Dessein. Par un Parisien, Religieux de la Compagnie de Jesus, (tratado IV), segunda ed., Paris, 1679, p. 101.

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preende-se bem como a Igreja foi ao encontro da “forma barroca” sem qualquer reserva.26 Sabe-se que, na relação Barroco/Contra-Reforma, a representação perspectivada ganha uma importância redobrada, passando a ser uma ferramenta de base científica à disposição da vigorosa Igreja Pós-tridentina, tal como estava implicitamente anunciado no “Princípio e Fundamento” dos jesuítas: usar-se-á das coisas tanto quanto para alcançar o seu fim, tanto quanto se libertará delas se isso impedir a concretização do mesmo. Não se pode esquecer, para além da forte relação entre a arte barroca e a Contra-Reforma, como a Companhia de Jesus proporcionou o ambiente e os meios necessários para uma associação entre a arte, a religião e a ciência.27 O que importa neste momento é reparar que muitos Jesuítas se interessaram por estas questões matemáticas e geométricas da projecção espacial num plano e que instrumentalizaram este processo para uma melhor actuação da sua mensagem à massa de fiéis num melhor desempenho dos apostolados em que estavam envolvidos e, em particular, dos Exercícios Espirituais. É o veículo efectivo da comunicação e da representação visual. Se este método de Vignola se tornou um sistema perspéctico emblemático dos Jesuítas, não cabe a nós neste momento definir a razão, nem tão-pouco o seu autor esperava tal seguimento. O que importa é a constante procura da Companhia em levar até aos fiéis uma composição ordenada e sistemática do universo, segundo os seus próprios ideais de conduta e valores, com o objectivo de educar na fé e mover à piedade. A configuração de um espaço que imitava a realidade era uma forma rápida, objectiva e sedutora de dar a mensagem pretendida. Estudar e aplicar as leis da construção espacial tornava-se um meio apostólico fundamental de devoção e, também, de persuasão.Acresce ainda que, na espiritualidade inaciana, é dada uma importância especial à “composição do lugar”, um processo que 26 “Senso, immaginazione e fantasia popolari possono trovare nel nuovo stile un appagamento e un impulso di forza eccezionale. Lo splendore dei tempi, la liberta delle fantasie, l’inesauribile creatività delle forme più ardite, i marmi, i bronzi, gli stucchi, le luci, i colori, tutto vale a sedure l’occhio incantato e a sollevare gli animi in un’atmosfera gioiosa. La chiesa della controriforma há trovato il suo stile e non esita a farlo proprio com la piu sincera convinzione.” Ugo Spirito, “Barocco e Controriforma”, in Retorica e Barocco, Atti del III Congresso Internazionale di Studi Umanistici, Roma, 1954, p. 214. 27 Ver, por exemplo, John O’Malley, Gauvin Alexander Bailey, Steven J. Harris,T. Frank Kennedy (eds.), The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts, 1540-1773, Toronto, University of Toronto Press, 1999. Com particular interesse para o assunto que aqui tratamos, veja-se a monografia de Arthur H. Chen, Macao:Transporting the Idea of Linear Perspective, Macau, 1998.

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evoca toda a tradição da “arte da memória”, e que implica, nem que seja de modo vago, uma construção mental de pontos, distâncias, lugares, e cenas, na obtenção da uma certa “visibilidade” na memória e na imaginação. Ver o lugar numa espécie de cenário ou representação teatral, pois “o desenvolvimento do teatro jesuíta coincide com o interesse dos tratadistas da Companhia de Jesus pela teoria do drama, pela arquitectura teatral e pelas invenções da “scenografia” e da “scenotecnica”.28 Os Jesuítas irão substituir o olho do espectador no método perspéctico pelo olhar atento e seduzido do fiel. Nesse sentido, e como já dissemos, os Jesuítas serão conduzidos a juntar arte, ciência e cristandade, num amplo movimento onde a perspectiva se torna num método valioso para alcançar e difundir a manifestação de imagens e de pensamentos. O culto da fé e da revelação transforma-se no conhecimento do absoluto através dos sentidos na percepção tridimensional do espaço. É a arquitectura de uma ordem cristã do universo conseguida graças a uma origem geométrica e sistematizada do infinito – o triunfo da retórica visual do ut pictura sermones. Ora, se o sermão se encontra vivamente na Contra-Reforma, a valorização da imagem não pode ser transcurada: o que não é conhecível torna-se imediatamente claro. A ciência tinha agora a função de difundir métodos que justificassem a veracidade do mundo espiritual para uma completa persuasão. A perspectiva artificialis tornava-se assim no único modo de explicar ou de expor a configuração infinita do universo, de modo finito e perceptível aos olhos do fruidor. Desde que a perspectiva e a história segundo o conceito albertiano se tornaram inseparáveis, o tempo e o espaço foram simbolizados na essência da perspectiva. Esta passou a ser um olhar para o espaço, e a história um olhar para o tempo, como bem explicou Argan.29 O espaço é representado perspecticamente e a história é o suceder de momentos associados à hierarquia divina e dispostos numa nova iconografia com a vida dos santos sistematicamente representada. É o multiplicar de dimensões acentuando o sentido de imensidão que culmina na ideia de totalidade: arquitectura, pintura e escultura. O que adquirimos da realidade aparecerá simulado no plano pictórico repre28 Irene Maurczarz, “La trattatistica dei gesuiti e la pratica teatrale al Collegio Romano: Maciej Sorbiewski, Jean Dubreuil e Andrea Pozzo”, in Convegno di Studi I Gesuiti e i Primordi del Teatro Barocco in Europa, Roma, 1994, pp. 349, 361-364. 29 Giulio Carlo Argan e Rudolf Wittkower, Perspective et Histoire au Quattrocento, Paris, Les Editions de la Passion, 1990.

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sentado através do quadro. Aqui, não se trata de uma realidade objectiva ou palpável, mas a concepção espiritual organizada por um saber perspéctico, programado e executado pela Igreja triunfante. Paralelamente a toda esta situação descrita no ambiente católico, a década de trinta do século XVII iria continuar a criar novas possibilidades. As questões sobre a perspectiva cilíndrica foram elaboradas pelo matemático I. L. Vaulezard na Perspective Cylindrique et Conique, ou Traité des Apparences (...), publicada em 1630; e pelo pintor e também matemático, Jean François Niceron (1613-1646)30 com a obra La Perspective Curieuse, ou Magie artificielle des Effets Merveilleux de l’Optique (...), publicada em Paris em 1638. Niceron estuda os efeitos especiais relacionados com a anamorfose, sinteticamente examinados por Daniel Barbaro. No final desta centúria, irão aparecer outras publicações que marcaram a extensão pictórica da construção perspectivada. Em 1672 aparece a primeira edição dos Paradossi Per Praticare la Prospettiva Senza Saperla (...) por Giulio Troili (1613-1685),31 considerado mais um manual do que propriamente um estudo ou um conjunto de reflexões conceptuais. Troili confirma a dificuldade e complexidade de execução da pintura quadraturista, pois foi discípulo de Michelangelo Colonna e ainda comenta algumas questões referentes ao escorço figurativo, até então pouco estudado se comparado com o arquitectónico. Não dá muita importância a complexos conhecimentos da perspectiva e afirma que aos artistas era apenas necessário conhecer e aprender as suas bases. A segunda edição do seu tratado foi publicada em 1683 com o título Paradossi Overo Fiori e Frutti di Prospettiva Pratica parte terza, na qual incluía uma tradução do ensaio do padre Cristóvão Scheiner (1575-1650) publicada em Roma, em 1631.32 Ainda no final do século XVII, a perspectiva contaria com uma obra de extrema importância, um clássico do género.Trata-se do texto do irmão jesuíta Andrea Pozzo (1642-1709), cujo texto influenciaria todos os tratados de perspectiva do tempo do Barroco, com uma repercussão muito

30 Javier Navarro de Zuvillaga, Imágenes de la Perspectiva, Madrid, Siruela, 2000, p. 401. 31 Luigi Vagnetti, op. cit., p. 413, afirma que Troili não só conhecia, como também usou muito o tratado de Jean Dubreuil; Ingrid Sjostrom, Quadratura. Studies in Italian Ceiling Painting, Stokholm, 1978. 32 Referimo-nos à obra do Pe. Jesuíta Christopher Scheiner (1579-1650), Pantografice, seu ars delineandi res quaslibet per parallelogrammum (…), 1631. Este texto foi traduzido para o italiano e publicado em Bolonha, em 1653. O pantógrafo permite representar com absoluta exactidão qualquer objecto em qualquer dimensão.

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mais acentuada do que tivera o tratado de Dubreuil, lido e estudado do México a Pequim.33 Só com o decorrer do século XVIII, com os estudos de Galli Bibiena e a difusão da perspectiva per angulo, as soluções se voltaram para o sistema com dois pontos de fuga. A partir deste momento, a perspectiva transforma-se apenas numa técnica de representação, proliferando os inúmeros livros sobre essa prática, transformados em manuais especializados para alunos diversos, artistas ou amadores, leigos ou religiosos.34

A SITUAÇÃO PORTUGUESA Após este rápido exame sobre a presença da perspectiva em alguns tratados europeus, a nossa atenção deve voltar-se agora para o panorama português. No que diz respeito ao contexto da história da tratadística em Portugal, a situação é bem diferente daquela anteriormente analisada. Não cabe aqui fazer o estudo de todo o universo dos tratados portugueses a partir de Quinhentos até ao final do século XVIII, pois trata-se de uma tarefa muito complexa, merecedora de um longo e minucioso estudo específico. O nosso interesse concentrar-se-á na presença da teoria e da prática da perspectiva, abordando dois aspectos: primeiro, a perspectiva inserida no processo evolutivo dos próprios tratados; e, segundo, como ferramenta de uso prático entre os artistas. Deste breve exame pode claramente verificar-se que, em Portugal, se registam profundas diferenças e que tais textos não funcionavam como manuais onde os autores tratassem da prática da pintura ou do desenho, estando ainda

33 Par o México, ver: Clara Bargellini, “Cristobal de Villalpando at the cathedral of Puebla”, in Struggle for Synthesis – A Obra de Arte Total nos séculos XVII e XVIII, Lisboa, IPPAR, 1999, pp. 129-136. Para a China: Elizabetta Corsi, “La missione cattolica in Cina trai secoli XVIII-XIX”, Atti del Colloquio Internazionale, Napoli, 11-12, 1997, pp. 103-122 e ainda “Insegnare la prospettiva lineare in Cina – Trattati europei di prospettiva nella Biblioteca Gesuita di Bei tang”, Archives Internationales d’Histoire des Sciences, 52 (2002)122-146; e síntese La Fábrica de las ilusiones - Los jesuitas y la difusión de la perspectiva lineal en China (1698-1766), México, El Colegio de México A.C., 2004. 34 Como exemplo desta situação, cite-se o tratado de Sebastien Jeaurat, Traité de Perspective a l’usage des Artistes, Paris, 1750; Laura Iamurri, “Il Traité de perspective à l’usage des artistes di EdmeSébastien Jeaurat (1750): nota di lettura”, in Perspicere 2 – Atti del Convegno Internazionale di Studi, 11-14 Settembre, 1995, pp. 249-256. Neste tratado não se discute nenhuma técnica nova ou algum método em experimentação, mas a melhor opção para os artistas aplicarem a perspectiva do modo mais expedito.

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Jean Dubreuil, Traité I, La Perspective Pratique par un Religieux de la Compagnie de Jésus, p. 30 2ª edição, 1689, BN, BA 285/286/287. Foto: Laura Guerreiro.

condicionados por questões literárias e de exaltação da pintura como arte liberal. Apesar da existência de textos portugueses que trataram da pintura desde o século XVI, eles não discorrem sobre a teoria e prática da perspectiva, nem os seus autores se preocuparam em dar a conhecer aos artistas novas técnicas de produção. Estes textos não actuavam num sentido pragmático, mas apenas se ocupavam da pintura sob um ponto de vista literário ou filosófico, não podendo ser reconhecidos como verdadeiros manuais práticos, indicadores de fórmulas a serem seguidas. Antes de nos debruçarmos directamente sobre os textos científicos que trataram da pintura e da teoria perspéctica, é indispensável olhar para a produção escrita desde o século XVI até ao século XVIII, em textos que nos permitirão conhecer um pouco daquilo que se passava realmente naquela época. É possível constatar que todo o interesse destes escritos (que aqui não

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consideramos como tratados) está no facto de neles se entender a pintura sob um ponto de vista teológico, ético ou moral, e não propriamente estético ou estilístico. Segundo Paul O. Kristeller,35 durante a segunda metade do século XVII a literatura artística manter-se-á fiel à apologia das afinidades entre a forma literária e a pictórica. Um outro aspecto já salientado que se soma a estas preocupações era o facto de ainda predominar em Portugal, nesta época, uma forte preocupação com a liberalidade da pintura. Basta lembrar que os escritos de Luís Nunes Tinoco e Félix da Costa não trataram dos fundamentos ou dos problemas essenciais da pintura, mas apenas apresentavam uma forte preocupação socioeconómica onde o problema fulcral era a defesa da pintura como “arte nobre e liberal,” aspecto este verificado em todos os textos escritos durante os séculos XVI e XVII.36 Num rápido olhar pelas obras de autores portugueses que se ocuparam da perspectiva, podemos começar com o pintor e teórico Francisco de Holanda (1517-1584) na obra Da Pintura Antiga, escrita em 1548, cujo texto demorou a ser conhecido e ficaria quase ignorado. Sobre a perspectiva, Francisco de Holanda entendeu pouco e não especificou situações pontuais, embora veja a distinção entre perspectiva linear e perspectiva aérea, reconhecendo o valor das questões sobre o escorço arquitectónico e figurativo e a unidade do ponto de vista.Apesar de reconhecer o valor da perspectiva, toda a metodologia prática que envolve o ponto de fuga e a convergência das ortogonais (linhas que caracterizam o aumento ou a diminuição de qualquer objecto) não lhe despertou interesse e nada ensinou sobre o modo de exibir a proporção das linhas transversais.37 35 Veja: Paul Oskar Kristeller, Renaissance Thought and The Arts, 2.ª ed. Princeton, 1980, p. 183. A mesma opinião é também seguida por Nuno Saldanha, “A muda poesia. As poéticas da pintura no Portugal de Seiscentos”, in Bento Coelho 1620-1708 e a Cultura do seu Tempo, Lisboa, IPPAR, 1998, pp. 85-105. 36 Na impossibilidade de fazermos aqui um estudo sobre todos os textos literários ou práticos relativos à pintura e ao desenho, use-se como resumo: Nuno Saldanha, Artistas, Imagens e Ideias na Pintura do Século XVIII, Lisboa, Livros Horizonte, 1995. 37 José Emílio Burucua, Arte Difícil y Esquiva. Uso y Significado de la perspectiva en España, Portugal y las Colónias Iberoamericanas (siglos XVI-XVIII), 1993/1994, (tese apresentada ao Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas), p. 148. O trabalho de Francisco de Holanda tem sido alvo de estudo, não no que diz respeito ao uso e ao entendimento da perspectiva, mas voltado para o pensamento crítico dentro do universo do período maneirista em Itália aproximando o teórico português às mesmas posições de Vasari. Ver: Sylvie Deswarte-Rosa, “Francisco de Holanda: Maniera e ideia”, in Cat. A Pintura Maneirista em Portugal, Arte no Tempo de Camões, Lisboa, 1995, pp. 59-88.

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A perspectiva irá reaparecer na obra de Filipe Nunes, Arte Poetica, Pintura, Simetria e Perspectiva, publicada em Lisboa em 1615, onde, todavia, se dedicam apenas dez páginas ao estudo deste tema. Todo o seu entendimento estava dependente do conceito de óptica ou da chamada perspectiva naturalis, não dando o autor mostras de reconhecer a diferença entre esta e a perspectiva artificialis. O que mais impressiona na obra de Filipe Nunes é que simplesmente não meditou sobre as conseqüências do corte da pirâmide visual com o plano do quadro, não captando o significado matemático e experimental desta nova visualidade: a designada perspectiva artificialis. Para o tratadista, as linhas visuais eram o próprio tema da perspectiva, um pouco como entendia Euclides no século IV a. C. De teor análogo, refira-se ainda a obra de Luís Nunes Tinoco (1642/43-1719), o Elogio da Pintura, escrito em 1687. Mais uma vez, estamos perante um texto que não comenta ou explica o funcionamento e as vantagens da representação perspectivada. O seu único objectivo residia em acentuar a importância da pintura, da escultura e da arquitectura no âmbito da dinâmica da vida cultural de uma nação. Limitava-se a procurar referências em Vicente Carducho e, como já foi apontado,“limitou-se a compor um exercício livresco, sem grande interesse, valha a verdade, além da sua confessada e vã intextualidade (...) Os diálogos de Carducho, citados por Tinoco desde a segunda linha do “Elogio”, são assim a fonte quase exclusiva do autor português. Neles encontrou Tinoco quase todos os seus argumentos, nomes e anedotas que na maior parte das vezes se limitou a traduzir”.38 Nem mesmo com a divulgação da obra Antiguidade da Arte da Pintura, de Félix da Costa (1639-1712), em 1696, as principais questões sobre a perspectiva e a sua praxis como ferramenta útil a todos os artistas eram alvo de um estudo sistematizado: reconhece-se o seu valor, mas não se clarificam os seus principais problemas. A sua maior preocupação foi a de salientar a filiação da pintura no binómio clássico da nobreza-antiguidade, isto é, um critério valorativo e de distinção hierárquica não só de âmbito social, mas também intelectual.39 Como Filipe Nunes, também Félix da Costa se inspirou em Vicente Carducho, e ainda em Alberti, Zuccaro e Gaspar Gutiérrez 38 Luís de Moura Sobral, Elogio da Pintura, Lisboa, IPPAR, 1991, p. 23; “Luís Nunes Tinoco e a teoria da pintura”, in Do Sentido das Imagens, Lisboa, Editorial Presença, 1996, pp. 159-172. 39 Segundo a opinião de Nuno Saldanha, op. cit,. p. 92. O mesmo autor comenta o texto seiscentista que corresponde à tradução dos livros de Simetria do Corpo Humano de Durer por Luís da Costa, pai de Félix da Costa, e que se encontra desaparecido.

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de los Rios. A sua obra, em vez de ser dirigida especialmente a pintores e a artistas, tornava-se mais útil para o historiador, pois sintetizava informações e dava notícias sobre os pintores dos séculos XVI e XVII.40 Segundo Moura Sobral, Félix da Costa “compilou um esforçado confuso tratado que defendia a criação de uma Academia de Pintura nos modelos da paradigmática instituição parisiense”.41 E sobre isso o tratadista era enfático, afirmando que os artistas estrangeiros “foram célebres por muito exercício nas Academias, por muita honra que lhe fizeram os Reis (...) Os portugueses, por sua vez, possuem «pouco estudo por falta de Academias”, não recebem o agradecimento dos Reis, antes miséria por pouco prémio, tendo de seguir seu génio sem o favor de um mecenas”.42 Apesar de expor os méritos da pintura com referências à Antiguidade Clássica, limitou-se a traduzir os Diálogos de la Pintura de Vicente Carducho. A obra deste tratadista ítalo-espanhol denuncia a nítida vivência recebida no âmbito de uma cultura humanista, de acordo com as tradições do ensino em Itália.43 Curiosamente, Félix da Costa não se interessou por absorver os ensinamentos de Carducho sobre a perspectiva, matéria que o tratadista espanhol considerava ao lado das disciplinas matemáticas, da filosofia e das ciências naturais: Quem sabe se não estaria à espera da possibilidade de esses princípios perspécticos serem ensinados e praticados na tão sonhada Academia. É pena que Félix da Costa não tenha tido sensibilidade para perceber o quanto era indispensável estudar e apreender estas questões sobre a representação perspéctica do espaço e aplicá-las à pintura, podendo assim contribuir para a prática desta matéria nas oficinas, onde eram certamente discutidos alguns tipos de procedimentos perspéticos. Mesmo sem uma academia de pintura, estas normas poderiam mudar o panorama da arte de então, pois a perspectiva era agora examinada como um dos aspectos científicos na tarefa pictórica. 40 Observações retiradas de: Luís de Moura Sobral, op. cit., p. 20. 41 Luís de Moura Sobral, “Bento Coelho e a pintura do seu tempo”, in Bento Coelho – 1620-1708 e a Cultura do seu Tempo, Lisboa, IPPAR, 1998, p. 20. 42 Luís de Moura Sobral, “Non mai abstanza: desenho, pintura e prática académica na época do Magnânimo”, in Do Sentido das Imagens, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, p. 189. 43 Os conhecimentos de Carducho sobre perspectiva foram fruto de diversas leituras, pois, “para la perspectiva pratica leí a Guido Baldo, al Viñola, Leon Bautista Alberti, al Cavalier Sirigati, a Sebastiano Serlio, y otros, que pude aver a lás manos: enterandome para la Teoria del mismo Giudo Baldo, y en su especularia al Padre Clavio. Ateniendo biem a los efectos que hazem lás cosas que se vén en nuestra vista, y como vemos debaxo de ângulos (...)”. José Emílio Burucua, op. cit., pp. 193-6.

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Naturalmente, estes autores portugueses comentavam e discutiam questões sobre perspectiva, sem, contudo, darem a conhecer as suas regras e sem difundirem o seu funcionamento prático na aplicação às artes figurativas. O espaço era representado, sem, porém, se fazer qualquer associação a questões geométricas e matemáticas, isto é, apenas como fruto de uma experiência oficinal e resultado directo da observação. Podemos pensar que estas questões ainda não tinham despertado a curiosidade por parte destes teóricos. Ou na verdade não foram capazes de compreender e, portanto, incapazes de explicar o seu funcionamento prático. É nesse sentido que em relação à perspectiva teórica e à sua aplicação prática, seja em painéis retabulares ou na pintura de tectos, não há uma preocupação com o espaço sistematizado na arte portuguesa a não ser a partir de finais do século XVII.Vale a pena relembrar que R. Longhi,44 quando analisou a pintura do tempo de Giotto, a caracterizou como pintura spaziosa no que diz respeito à construção do espaço, porém sem coincidir com o uso e a aplicação da perspectiva linear. Pensamos que esta expressão (salvo raras excepções) pode também ser utilizada para analisar grande parte da pintura portuguesa desde o século XV45 até ao início do XVII, ciclo em que não aparece a correcta aplicação da representação perspética segundo o modo difundido da tratadística coeva; onde se nota alguma estratégia para conceber a representação do espaço e pintar as formas volumétricas de modo mais ou menos convincente. Mesmo que estas observações não sirvam para todo o universo da pintura portuguesa durante estes 300 anos, esta falta de sentido espacial na prática pictórica coincide com a não inclusão da perspectiva como uma matéria específica nos tratados escritos em Portugal durante este mesmo período. Exceptuando pontuais produções no século XVI e outras surgidas na última década do século XVII, a grande maioria das pinturas portuguesas, desde o Renascimento até ao amadurecimento da forma barroca, teve grandes dificuldades na construção espacial perspectivada, segundo os cânones e preceitos explicados na tratadística da época. 44 Em português poderíamos usar o termo “espacioso”, derivado do italiano spazioso, adoptado por Roberto Longhi,“Giotto spazioso”, Paragone, n.º 31, 1952, p. 18: indicava na arte figurativa o aspecto relativo à representação do espaço, que não coincide com a representação perspectivada. 45 Dalila Rodrigues, “A pintura do período manuelino”, in História da Arte Portuguesa, (dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 199-277; “Pintura: o ciclo renascentista”, in História da Arte Portuguesa, (dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 283-301.

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No que se refere aos tectos pintados, lembrem-se as primeiras experiências com a intervenção de Francisco Venegas46 não só como decorador, mas também na execução de um conjunto de desenhos para serem aplicados a tectos, como, por exemplo, o projecto para a capela-mor da igreja do hospital de Todos-os-Santos, entre 1582 e 1583. Infelizmente, o único tecto que chegou até à actualidade, atribuído a este pintor-decorador, é a pintura do intradorso da nave da igreja de São Roque, em Lisboa, por volta de 1588. Um trabalho pioneiro neste género e que denota certo rigor no uso de espaços perspecticamente construídos, apesar de a perspectiva não estar correctamente aplicada: são visíveis algumas incorrecções, principalmente na parte central do tecto. Não encontramos neste tecto uma unidade espacial, mas apenas momentos ou fracções de perícia perspéctica, como se pode ver nas três falsas cúpulas. Por outro lado, note-se que desde a primeira metade do século XVI se confirma alguma pintura retabular onde já existe alguma preocupação na aplicação da perspectiva. Neste sentido, podemos citar os nomes de Vasco Fernandes, Cristóvão de Figueiredo, Gaspar Vaz e Gregório Lopes (Martírio de S. Sebastião, MNAA). Nas últimas décadas do mesmo século, as presenças de Fernão Gomes, Amaro do Vale e Domingos Vieira Serrão consolidam a melhor expressão pictórica desta fase final quinhentista; na primeira metade de Seiscentos os nomes de Domingos da Cunha (o Cabrinha), Domingos Vieira (o Escuro) e José Avelar Rebelo são bons representantes de uma linguagem tenebrista de grande significado para Portugal, onde em algumas pinturas é visível um certo cuidado em dispor “matematicamente” o espaço e uma prudência com as proporções e a volumetria, aspectos que em épocas passadas eram muitas vezes ignorados. Avelar Rebelo será muito elogiado por Félix da Costa:“homem de grande talento, discrição e génio, faltaram os meios para os fundamentos sólidos da arte”;47 os nomes de Marcos da Cruz e António de Oliveira Bernardes podem ser considerados os dois artistas de melhor representatividade nesta segunda metade do século XVII em Portugal.48 O primeiro utiliza um cromatismo bem 46 Magno Moraes Mello,“As primeiras experiências: período entre 1580 e 1600”, in A Pintura de Tectos em Perspectiva no Portugal de D. João V, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pp. 37-56. Pela primeira vez questiona-se o método espacial pensado pelo artista na sua invenção perspéctica. 47 Luís de Moura Sobral, “Non mai abastanza: desenho, pintura e prática académica na época do Magnânimo”, in Do Sentido das Imagens, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, p. 188. 48 Para esta fase em especial, ver Luís de Moura Sobral, “La redécouverte de Marcos da Cruz (vers. 1610-1683)”, in Revue de L’Art, n.º 133, 2001-03, pp. 71-80.

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acentuado com fortes contrastes luminosos em favor do claro-escuro; o segundo, discípulo de Marcos da Cruz, apresenta-se com formas mais definidas e um desenho que muitas vezes impõe fundos arquitectónicos. Ambos conseguem estruturar uma composição com volumes bem modelados e onde é perceptível uma evolução na construção perspectivada, porém sem uma preocupação com o modo dos tratados que na época circulavam. Será somente nas últimas décadas de Seiscentos que a pintura em Portugal inicia uma real transformação para um conceito espacial próximo das normas tratadísticas, mesmo que no texto (manuscrito) de Félix da Costa não haja sinais desta mudança; pelo contrário, percebe-se até um certo pessimismo por parte do autor. Com o evoluir do “modelo Bernardes”49 e o início em 1700 das intervenções do pintor-decorador italiano Vincenzio Bacherelli, o uso sistemático da perspectiva aplicada à pintura tem finalmente o seu início prático no nosso país. Foram diversos os factores que possibilitaram este novo desenvolvimento. Uma análise de todos eles não pode deixar de fora o surgimento de uma nova postura teórica que iniciava apenas o seu percurso. Os elementos que permitem identificar este novo fenómeno são diversos, mas fundamentamse sobretudo no aparecimento de documentação reveladora do estudo e ensino de técnicas de perspectiva por um autor português, numa instituição de grande influência na vida cultural e científica da capital.Trata-se de um conjunto de textos saídos das mãos do padre Inácio Vieira, S. J. (1678-1739), no período em que leccionou no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, isto é, nas primeiras décadas do século XVIII. O aparecimento de uma personalidade jesuíta portuguesa nesta evolução dos estudos e prática de técnicas perspéticas no nosso país obriga a que recordemos os factos mais essenciais da implantação da Companhia de Jesus entre nós. Aprovada em 1540 pelo Papa Paulo III, a Companhia de Jesus rapidamente foi conhecida em Portugal. Depois de alguma movimentação de tipo diplomático, durante a qual foi decisivo o papel desempenhado pelo célebre Diogo de Gouveia, dois dos primeiros Jesuítas – Simão Rodrigues e 49 Magno Moraes Mello, Perspectiva Pictorum – As arquitecturas ilusórias nos tectos pintados em Portugal no século XVIII, (tese de doutoramento apresentada à Universidade Nova de Lisboa), 2002, pp. 179-208. Definimos como “modelo Bernardes” o uso da tridimensionalidade da construção de quadros recolocados (aplicados em paredes e tectos) com sentido narrativo ou historiado, sem a ideia de integração total com o suporte. Este modelo foi inicialmente usado na pintura e mais tarde levado para a decoração azulejar.

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Francisco Xavier – chegaram a Portugal. Em 1542, Simão Rodrigues fundava o colégio de Jesus, lançando as bases para a criação da província portuguesa (1546), enquanto Francisco Xavier era enviado para o Oriente. Do ponto de vista educativo, os Jesuítas concentraram-se inicialmente em Coimbra, mas, a breve trecho, iniciaram o seu labor também em Lisboa. A actividade desenvolvida no colégio da capital – Colégio de Santo Antão – iniciou-se em 1553 ainda na Mouraria sendo, em 1593, inaugurada a nova sede, chamada de Santo Antão-o-Novo. A despeito da enorme importância que este colégio desempenhou na vida educativa de Portugal, a sua história está ainda por fazer; apenas no que se refere ao ensino de matérias científicas, na denominada “Aula da Esfera”, os historiadores clarificaram já a sua enorme importância, bem superior àquela do Colégio das Artes em Coimbra (confiado aos Jesuítas em 1555) ou mesmo da Universidade que a Companhia fundou em Évora, em 1559. Na capital, parece que o curso regular de Matemática se iniciou em 1590 (antes desta data há apenas notícia de aulas não regulares de matemática), coincidindo com a passagem da primeira para a segunda sede.50 Tudo leva a crer que, pelo menos até meados do século XVII, a matemática foi ensinada no colégio de Santo Antão com o objectivo principal de formar especialistas em questões relacionadas com a náutica e cosmografia, isto é, numa configuração que era sobretudo determinada pela necessidade de treinar quadros técnicos externos à Companhia e não tanto para cumprir detalhadamente as exigências pedagógicas da própria ordem. De facto, a própria origem desses cursos de matemática parece estar associada a um pedido feito pelo próprio D. Sebastião (1557-1578), e mais tarde reiterado por Filipe I de Portugal. O curso de matemática de Santo Antão, conhecido por “Aula da Esfera”, era pois frequentado por muitos alunos externos, não Jesuítas, para além, naturalmente de alunos membros da própria Companhia. O primeiro curso público desta disciplina fora iniciado por João Delgado, que já antes havia ensinado matemática em cursos privados em Coimbra desde 1586, após ter estudado com Clavius em Roma.

50 Ugo Baldini, “L’insegnamento della Matemática nel Collegio di S. Antão a Lisbona, 1590-1640”, in A Companhia de Jesus e a Missionação no Oriente, Lisboa, 2000, pp. 274-310; Luís de Albuquerque, “A «Aula da Esfera» do Colégio de Santo Antão no século XVII”, in Anais da Academia Portuguesa de História, 21, 1972, pp. 337-391; Henrique Leitão, “Jesuit mathematical practice in Portugal, 15401759”, in: Mordechai Feingold (ed.) The New Science and Jesuit Science: Seventeenth Century Perspectives, (Dordrecht: Kluwer, 2003), pp. 229-247.

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Estas aulas em Santo Antão tiveram pois como alunos muitos leigos entre os quais se contariam certamente homens técnicos ou artistas interessados em aprender e/ou aprofundar os seus conhecimentos matemáticos e científicos. Uma confirmação da importância e do peso destes alunos nãoJesuítas na composição das classes de matemática do colégio de Santo Antão pode obter-se constando que as notas dessas aulas – muitas das quais sobreviveram até aos nossos dias – estão redigidas em português, em marcado contraste com a prática habitual do ensino dos Jesuítas que era feito em latim. Este facto atesta não apenas a presença de não-Jesuítas, mas também que muitos alunos da “Aula da Esfera” teriam uma reduzida formação intelectual sendo, possivelmente, jovens com interesses, sobretudo ligados a questões práticas. Os especialistas em história da ciência – desde Luís de Albuquerque, a quem se devem os trabalhos pioneiros sobre esta instituição, até aos dos dias de hoje – estão de acordo na excepcional importância desta “Aula”, considerada como uma das mais interessantes instituições de ensino científico em toda a história do nosso país. Embora a importância da “Aula da Esfera” tenha já sido sublinhada no quadro da ciência portuguesa ainda não o foi no que diz respeito à cultura artística. Ora, a partir de 1640, com a urgente necessidade de um profundo incremento nos conhecimentos associados à arquitectura militar, em todo o país, e também em Santo Antão, o conteúdo das aulas de matemática veio a conhecer importantes alterações, num movimento que, como se verá, tem implicações para a história da arte no nosso país51.

51 Um momento importante nessa transformação foi o da fundação da Aula da Matemática e Fortificação, criada por D. João IV a pedido de Luís Serrão Pimentel (1613-1679), e que funcionou, em 1647, na Ribeira das Naus, onde ensinava matemática e arquitectura militar. Não é seguramente uma casualidade o facto de Luís Serrão Pimentel – que veio a exercer o cargo de cosmógrafo-mor do reino desde 1641, assumindo-o definitivamente em 1671 — haver sido aluno da Aula da Esfera no Colégio de Santo Antão. A sua obra mais importante foi o Método Lusitânico, publicado após a sua morte, em 1680, dedicado ao então regente D. Pedro. Podemos considerá-lo como uma figura basilar na cultura científica em Portugal nesta segunda metade do século XVII, preparando terreno ao frutuoso período que se iniciava. Todavia, a despeito do significado e importância de outras instituições, no período que vai de meados do século XVII a meados do século XVIII nenhuma viria a ser tão importante no ensino de matérias associadas à matemática como a Aula da Esfera de Santo Antão. José Fernandes Pereira, “Pimentel, Luís Serrão”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 1989, pp. 354-355; Rafael Moreira, “Tratados de arquitectura”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 492-494; e Joaquim Oliveira Caetano e Miguel Soromenho, A Ciência do Desenho, Lisboa, BNL, 2001, pp. 64-70.

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OS TEXTOS DE INÁCIO VIEIRA

Inácio Vieira, Tractado de Prospectiva, f. 374, Lisboa, 1715. BN. cod. 5170. Foto: Laura Guerreiro.

O século XVIII irá conhecer na sua primeira metade um momento propício à renovação cultural, com a abertura do país ao estrangeiro, não só na procura de uma nova estética, mas também como reflexo de novas tendências culturais e de tentativas de reforma no ensino. Sem querer reduzir aquilo que foi um complexo fenómeno histórico à mera dimensão económica, não pode, todavia, deixar de se referir que as condições financeiras, em particular com o ouro das Minas Gerais desde 1693-1698, contribuíram de modo decisivo para o arranque deste novo período. No que diz respeito ao ensino da Matemática em Santo Antão, o final do século XVII foi um momento de profunda reforma e, ao mesmo tempo, de formação de um quadro de professores alterando significativamente a situação ocorrida na primeira metade do mesmo século, período qual a maior parte dos professores haviam sido estrangeiros. Esta é razão que explica porque, a partir de inícios do século XVIII, será possível encontrar entre os Jesuítas portugueses alguns homens de elevada competência matemática, como, por exemplo, o padre Luís Gonzaga (1666-1747), que estudou em Évora e foi professor de matemática em Santo Antão entre 1700 e 1709, além de mestre de D. João V quando príncipe, ou o padre Manuel de Campos (1681-1758), que entre 1728 e 1734 foi professor no Colégio Imperial de Madrid e cosmógrafo-mor do reino de Castela, ou, ainda, o padre Inácio Monteiro (1724-1812), que deixou uma obra de grande influência52. De entre esses mestres portugueses o que nos interessa particularmente é Inácio Vieira (1678-1739)53. Nascido em Lisboa, foi aluno em Santo Antão, entrando para a Companhia de Jesus em 1692. Entre 1695 e 1699 estudou filosofia e entre 1699 e 1700 estudou matemática em Évora. Retornou 52 Sobre I. Monteiro, veja-se: Ana Isabel Rosendo, Inácio Monteiro e o Ensino da Matemática em Portugal no Século XVIII, Coimbra, Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra, 1998.

Inácio Vieira, Tractado de Prospectiva, f. 375, Lisboa, 1715. BN. cod. 5170. Foto: Laura Guerreiro.

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53 J. Pereira Gomes, “Inácio Vieira”, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol. 18, Lisboa, Verbo, p. 1094; Carlos Sommervogel, S. J., Bibliothéque de la Compagnie de Jesus, vol. 8, Paris, 1898, p. 742; Maximiano Lemos, Encyclopedia Portuguesa Illustrada Diccionario Universal, vol. XI, Porto, Lemos e Cia., p. 195, considera o ano de nascimento de Inácio Vieira em 1676; Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, tomo II, Coimbra, MDCCXLVIII (1748), pp. 551-552; F. Rodrigues, Formação Intelectual do Jesuíta, Porto, 1917, pp. 295-296 e do mesmo autor, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, IV/1.º, 10, 11, 402, 408, 409, 451; Rodolfo Guimarães, Les Mathématiques en Portugal, Coimbra, 1909, p. 34. O primeiro destes dois textos apresenta um pequeno resumo sobre a vida e as publicações de Inácio Vieira e o segundo cita apenas os dados mais importantes, não falando de todas as suas obras. São escassas as informações acerca deste jesuíta.

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a Lisboa para ensinar humanidades e retórica em Santo Antão, entre os anos de 1701 e 1704; de 1706 até 1708 esteve em Coimbra ensinando no Colégio de Jesus e em 1709 retomou as aulas em Santo Antão, até 1720. Entre 1720 e 1724 foi mestre dos noviços em Coimbra e desde 1724 até 1728 trabalhou como secretário em Roma. Foi reitor do Colégio de Santo Antão entre 1734 e 1737, morrendo na Casa professa de São Roque em 1739. Pouco existe publicado a seu respeito e as obras que lhe estão atribuídas são um Tratado de Astronomia, um Tratado da Hydrografia ou Arte de Navegar e um Tratado sobre Catóptrica e Dióptrica.54 Para além destes tratados e cumprindo a prática habitual das instituições de ensino Jesuítas, Inácio Vieira ainda se destaca como orientador de algumas teses. Assim, aparece como director das seguintes teses: Ancile Mathematicum, defendida por Diogo Soares em 1708; Marte Armado, defendida por L. Xavier Bernardo da Silva em 1712; Perspectiva Mathematica, defendida por José Sanches da Silva, em Évora em 1716; Archimedis Sphaera, em 1707 e Conclusões de Mathematica em 1719.55 Para além destas teses, existem ainda os textos escritos por alunos e que correspondem a ditados em aula. J. Pereira Gomes foi o primeiro a divulgar a existência destes textos, chamando a atenção para os tratados Matemático de Astrologia e o Matemático de Pirotécnica. Mas nem Pereira Gomes nem nenhum outro depois dele empreendeu o estudo circunstanciado da vida e produção teórica deste padre jesuíta, por nós considerado uma das figuras mais interessantes entre os mestres do Colégio de Santo Antão durante o reinado de D. João V, a ombrear com os conhecidos Manuel de Campos ou Inácio Monteiro. Os estudos de Pereira Gomes dizem-nos que “o seu nome (Inácio Vieira), juntamente com a data e o local vem sempre rasurado ao fim do texto; mas essas linhas finais encontram-se riscadas e talvez por isso Inácio Vieira nem sequer figura nos catálogos”.56 Este facto carece de alguma explicação, e talvez ele esteja na origem do quase desconhecimento de Inácio Vieira por parte dos historiadores, mas não afecta a avaliação da sua obra. Seja como for, e no âmbito do tema que estamos a tratar, a documen54 Para além destes, atribuímos também ao mesmo jesuíta o Tractado de Chiromancia, o Matemático de Castrologia, o Matemático de Pirotécnica e o Tractado da Óptica. Apesar de não estarem assinados, a mesma letra é reconhecida em todos estes manuscritos da BNL e é comparável aos textos que estão assinados. 55 J. Pereira Gomes,“Inácio Vieira”, in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 18, Lisboa,Verbo, p. 1094. 56 Pereira Gomes, op. cit., p. 1094.

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tação que sobreviveu até aos nosso dias é suficiente para garantir a sua importância: com ele, a cultura científica dos Jesuítas e sua prática pedagógica mostram uma mudança de orientação, passando do interesse quase exclusivo pela arquitectura para o da pintura, com um cunho eminentemente prático. Não se trata agora de encetar o estudo biográfico e científico da actividade deste português; as suas obras são demasiado específicas, merecendo uma atenção mais pormenorizada em estudos particulares. A nossa atenção está apenas voltada para dois dos seus tratados. O primeiro, e que não incluímos na lista anterior, diz respeito a uma obra manuscrita fundamental intitulada Tractado de Prospectiva57, acerca da qual daremos o maior desenvolvimento no que se segue; o segundo (já referido) diz respeito à Catóptrica e Dióptrica, assinado e datado de 12 de Junho de 1717. Neste, a partir do Apêndice Primeiro, entre os fólios 681 e 708, Inácio Vieira dá a Praxe número 1, Da Lanterna Mágica ou “machina”, como ele próprio designou. Tudo leva a crer que este texto possa ser considerado o primeiro estudo conhecido sobre esta matéria em Portugal. O texto está directamente associado à experiência da câmara escura, aprimorando certos efeitos para a cenografia, além de contribuir para o exercício da perspectiva. A estes dois tratados acima referidos deve juntar-se outro, como espécie de complemento teórico.Trata-se do Tratado da Óptica,58 escrito no Colégio de Santo Antão de Lisboa no ano de 1714. Em rigor, os textos de Inácio Vieira não são os únicos que neste período se redigiram sobre estes assuntos. Mas são seguramente os mais interessantes e desenvolvidos e os que, devido ao particular contexto institucional onde foram originados, maior repercussão tiveram59.

57 Inácio Vieira, Tractado de Prospectiva, ms., Lisboa, 1715. BN Cod. 5170. 58 Inácio Vieira, Tractado da Óptica, ms., Lisboa, 1714. BN Cod. 5169. 59 Conhecemos dois outros manuscritos onde se tratam assuntos análogos. O primeiro trata-se do Tratado Matemático que contém a óptica especulativa e prática ou perspectiva, ditado em 1709 na Régia Academia por Domingos Vieira e em 1744 pelo capitão José Monteiro de Carvalho; o segundo, refere-se aos Princípios da perspectiva para a pintura, texto este que trata de alguns pontos específicos “da perspectiva como cousa muito necessária para a pintura”. O Tratado Matemático que contém a Óptica especulativa e prática ou perspectiva, primeira e segunda parte que ditou na régia Academia das Fortificações desta côrte de Lisboa (Domingos Vieira em 1709 e em 1744 pelo Capitão José Monteiro de Carvalho) é um texto dividido em duas grandes partes: a Óptica Especulativa e a Óptica Prática comumente chamada de Perspectiva. Contém ainda um apêndice dedicado à Perspectiva Militar e outra à Arte de Lançar Bombas. Apresenta uma série de desenhos no final da primeira parte que podem ser seguidos ao longo de todo o texto. São esboços que explicam o funcionamento do olho humano e todas as suas partes com os respectivos nomes. Explica a

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De todos os textos escritos por Vieira o nosso interesse volta-se para o Tractado da Prospectiva, que, mesmo rasurado na última página, é possível perceber que foi escrito no ano de 1715. Este manuscrito é constituído por 366 fólios com 612 proposições repletas de informações sobre um tema até agora nunca abordado num tratado português. A estrutura deste manuscrito apresenta inicialmente uma introdução sobre a matéria; uma “digressão oportuna da arquitectura civil”, e por último algumas questões sobre perspectiva em planos inclinados, tectos, abóbadas, cenografias e instrumentos, nomeadamente o pantógrafo. O texto conta também com uma série de desenhos do autor (pouco técnicos), cuidadosamente explicados e referidos com o texto. Realçamos a singularidade deste aspecto, pois nas três traduções do tratado de Pozzo as imagens são sempre referidas, mas nunca representadas. As suas principais fontes em relação à parte da arquitectura civil são Vitrúvio, Daniele Barbaro, Scamozzi,60 Vignola, Frei Lourenço de São Nicolau,61 Sebastiano Serlio,

perspectiva de formas regulares e irregulares e a projecção de edifícios em planta e em alçado. São desenhos bem constituídos saídos da mão de um autor com grande conhecimento teórico e capacidade de representação gráfica inéditas em Portugal naquele início do século XVIII. Não temos nenhuma referência a um tratadista de nome Domingos Vieira. Não obstante, sabemos que o capitão José Monteiro de Carvalho era conhecido pela alcunha de “o bota-a-baixo”, pois após 1755 mandava derrubar os edifícios atingidos pelo Terramoto de 1755. O Tratado de Chiromancia (Astronomia prática; Exame Militar; Medidas e Medições; Perspectiva e Pintura – Cores e Vernizes) é um manuscrito anónimo e sem data.Tudo indica que tenha sido compilado na primeira metade do século XVIII. O texto tem 38 fólios, provavelmente pertencente ao Convento das Flamengas como vem assinado no último fólio. O seu título indica a importância e o uso que se faz da perspectiva na pintura explicando os princípios da perspectiva como couza muito necessária para a pintura. Os sugeito da perspectiva são as linhas visuais, e destas há duas espécies (…). Numa segunda parte estuda-se a luz, a sombra, o cromatismo e trata da pintura a óleo. Mais adiante contamos com o modo de Daniel Barbaro. Encontramos ainda uma parte dedicada ao estudo do corpo humano segundo os preceitos do teórico espanhol Juan de Arfe y Villafñe. Na parte final do texto o autor apresenta uma espécie de receituário ou glossário útil a qualquer pintor, pois neste léxico exibe-se o modo de Aparelar pano, madeyra, para pintura; Modo de Vusar o jalde a óleo; Nomes das Tintas que seruem para jlluminaçaõ; outro Modo das sombras e realços e Para fazer hum paynel com três figuras, que huma só apareça a vista. 60 Vincenzo Scamozzi (1552/57-1616), Dell’idea dell’Architettura Universale di Vincenzo Scamozzi divisa in X Libri, Venecia, 1616. O contacto de Vieira com a obra de Scamozzi deve tê-lo ajudado na sua “digressão oportuna” da arquitectura civil. 61 Refere-se ao tratadista e arquitecto espanhol Frei Lorenzo de San Nicolás (1595-1679). Arte y Uso de la Architectura, Madrid, 1633. Em 1665 este frei agostinho publicaria a Segunda Parte del Arte y Uso de la Architectura, como uma espécie de resposta às objecções feitas por Pedro de la Peña em relação a sua obra. Em linhas gerais, a obra de Frei Lorenzo apresenta um carácter eminentemente prático e por isso deve ter chamado a atenção do jesuíta português.

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Pietro Cataneo, Milliet Dechales, Palladio, Cornelio Agrippa e Johannes Zahn.62 Inácio Vieira, ao tratar da projecção dos planos horizontais e inclinados, para além das coberturas abobadas e as diversas questões da cenografia, cita quase sempre Pozzo e Dechales procurando entre os dois uma solução mais acertada. Por fim, cita o padre Cristóvão Scheiner e as inúmeras vantagens do pantógrafo não só para a pintura, mas também para outras disciplinas – cartografia, topografia, cosmografia, etc. Todo o texto, embora apresente e discuta os princípios teóricos, tem um cunho vincadamente prático. Constitui-se quase, poder-se-ia dizer, como um manual para a prática dos diversos assuntos contemplados. Quanto ao encadeamento de matérias e à sua metodologia expositiva, o tratado segue o modelo típico da Companhia de Jesus. Deixaremos de lado, daqui em diante, o que se refere à arquitectura civil e militar, para nos centrarmos nas questões sobre perspectiva. No curso geral da ciência da matemática, o conteúdo programático iniciava-se com o estudo da óptica, da perspectiva, da catóptrica e da dióptrica, sendo que a secção sobre perspectiva se subdividia em scaenographia63 e perspectiva64. O tratado de Inácio Vieira organiza-se em seis “Quadros” e estes estão subdivididos em “Linhas”. O primeiro Quadro trata das Questões fundamentais e especulativa; o segundo expõe o Método perspéctico, a icnografia dos corpos no plano horizontal e em planos inclinados; o terceiro Delineará os pontos chamados acidentais; o quarto irá tratar das Coberturas abobadadas, o quinto trata de Composições de várias tábuas, da reflexão e as sombras, e o sexto expõe um Instrumento útil e prático, o pantógrafo.

62 Johannes Zahn, (? – 1665), Oculus Artificialis Teledioptricus, 1685: descrição da Câmara Escura aperfeiçoada com a colocação de lentes adicionais e explicação do seu uso para a determinação das distâncias através da restituição das imagens. 63 A scaenografia, diferente da óptica, era a disciplina que permitia codificar leis para pintar cenografias. É a representação (ao mesmo tempo) da frente e dos lados em fuga. 64 Sendo que os tratados de Inácio Vieira estão intimamente ligados aos conteúdos das lições da Aula da Esfera em Santo Antão, a sua estruturação está definida pelo que era a prática habitual entre os jesuítas ao abordar estes temas. Como explica o próprio Inácio Vieira: “depois de darmos a notícia suficiente da Optica, e Perspectiva partes ambas que pertencem à vista, pois tratão dos rayos diretos, seguese na ordem tratarmos da Catoptrica sciencia digna de todo o cuidado; e aplicação, em cuja consideração achem os rayos reflexos: esta parte tem por nome Caoptrica derivada da palavra grega Catoptrão, que ual o mesmo que spelho, aonde refletem os rayos da lus, cuja reflexão, ou capacidade para ella he hua das principais propriedades da lus (…)”. Inácio Vieira, Tractado de Catóptrica e Dióptrica, 1717, fl. 1.

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O texto de Inácio Vieira inicia-se chamando a atenção para quatro personalidades por ele consideradas fundamentais: neste nosso século foi insigne na perspectiva o irmão André Posso da Companhia de Jezu cujo nome, e obras são veneradas em Roma, e admiradas em Alemanha aonde há poucos anos morreu vivendo do imortal o seu pincel. Trata desta, sciencia Euclides Dechales no seu Tomo 3 tratado 21, e outros muitos como Taquet na sua óptica Livro 2.º.65 A menção a Euclides é tradicional nos textos de óptica e muitas vezes meramente protocolar.66 Bem mais significativa é a referência de Vieira à obra do padre jesuíta Claude François Milliet Dechales (1621-1678)67, intitulada Cursus seu Mundus Mathematicus, publicado em Paris em 1690, em quatro tomos. Para a execução dos seus tratados Inácio Vieira estudou minuciosamente toda a obra, sobretudo o Tratado XXI intitulado Perspectiva seu de Radio Directo, incluído no Tomo III. Esta monumental obra atesta a típica erudição que caracterizava o ambiente da Companhia de Jesus durante aquele período pré-iluminista. Milliet Dechales publicou ainda estudos sobre Euclides (Euclides Elementorum libri

65 Inácio Vieira, op. cit,. fol. 3. De facto, Andrea Pozzo falecera em 1709, em Viena. 66 Assim, o domínio do conteúdo por Inácio Vieira passava pelos estudos da óptica de Euclides, que estava condicionada por oito teoremas. Escrita entre o final do IV e início do V século a.C. ajudou a formar algumas conclusões sobre a “perspectiva” na Antiguidade. Este é um texto sobre a geometria da visão ou perspectiva naturalis, pois está condicionada aos estudos dos ângulos visuais. No caso da perspectiva artificialis, o centro de projecção é o ponto do olho e a projecção perspéctica consiste na intersecção da pirâmide visual com a superfície do quadro. A principal diferença entre ambas é que a naturalis se torna mais geral no seu alcance em comparação com a artificialis, pois na geometria euclidiana duas linhas paralelas são rectas situadas no mesmo plano, mas que nunca se encontram, ainda que se afastem indefinidamente. É aconselhável recordar que Euclides acreditava que os raios visuais partiam do olho para o objecto, sendo toda a sua teoria subordinada à já citada perspectiva naturalis. A base da teoria euclidiana girava em torno da magnitude visual: os objectos são grandes ou pequenos dependendo do seu ângulo de vista. Para demonstrar que um objecto é maior do que outro, Euclides prova que o ângulo visual do qual o objecto se encontra em relação ao olho é também maior. 67 Claude François Milliet Dechales, Cursus Mundus Mathematicus, 1690. Podemos dizer que Dechales situa-se na fronteira entre a perspectiva communis e a perspectiva linear. Inácio Vieira para o estudo e o entendimento da perspectiva comenta tanto Pozzo como Dechales, sendo este usado num sentido de implicar posturas teológicas mais fortes e no caso de Pozzo quando deseja usar autonomamente a perspectiva.

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octo) e ensinou nos colégios Jesuítas de Marselha e Lyon. A sua obra pode ser considerada como uma espécie de síntese dos conhecimentos matemáticos da segunda metade do século XVII e base do conhecimento matemático no ensino filosófico dos oratorianos, típico do ambiente cultural da Provença que tinha tão fortes ligações com Lisboa.68 Além das inúmeras ilustrações que acompanham a obra, o texto apresenta-se subdividido em 31 tratados de conteúdo acessível tanto para o grande conhecedor como para o leitor não especializado, apesar de estar escrito em latim. Dechales expõe no primeiro tomo do seu Cursus uma espécie de elenco dos principais matemáticos e peritos também em questões sobre perspectiva, desde a Antiguidade até a sua época, não deixando de citar Girard Desargues e Abraham Bosse, conhecendo naturalmente a obra de Jean Dubreuil e as controvérsias surgidas entre estes três teóricos, apesar de o não citar. Este majestoso conjunto de quatro volumes constituía a base estrutural de ensino praticada pelos Jesuítas nos diversos colégios em toda a Europa durante aquela época. Debruçamo-nos apenas sobre o terceiro volume e, mais precisamente, o Tratado XXI, que, por sua vez, se subdivide em seis Livros: Fundamenta perspectivae; Ichnographia projecta; Scenographia; De puctis accidentalibus e corporum quomodocumque inclinatorum apparentiis; De laquearibus e fornicibus; De compositione plurium tabellarum separatum, de reflexione, de umbris e de parallelogrammo delineatorio. Ora, esta estrutura é quase análoga à estrutura de todo o texto desenvolvido por Vieira no seu tratado sobre perspectiva. Naturalmente, o jesuíta português tomou o texto de Milliet Dechales como o ponto principal dos seus estudos. Para além do texto, a obra de Dechales apresenta inúmeras ilustrações que serviriam para melhor fundamentar e clarificar o desenvolvimento das suas ideias e de toda a teoria ali apresentada. A repercussão dos trabalhos de Milliet Dechales será vista claramente na grande obra do oratoriano Tomás Vicente Tosca. Este tratadista valenciano publicaria entre os anos de 1707 e 1715 o seu Compendio Mathematico, constituído por nove tomos. Um pouco mais tarde, em 1721, o mesmo matemático compõe a obra Compendium Philosophicum.69 68 Recentemente, foi descoberta uma parede da Sala de Aula do Colégio Jesuíta de Aix-en-Provence uma pintura em anamorfose, de 1710-1720, representando uma vista panorâmica de Lisboa: cfr. Pascal Julian, “L’ anamorphose murale du collége jésuite d’Aix-en-Provence: jusqu’à Lisbonne par la barbe de saint Pierre, in Revue de l’Art, n.º 123, 2002-04, pp. 17-26. 69 A obra de Vicente Tosca foi examinada por José Maria Lopes Piñeiro e Victor Navarro Brotons, Història de la Ciència al país Valencià, Valencia, Edicions Alfons el Magnànim, 1995, pp. 326-333.

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Vicente Tosca trata a perspectiva no seu Livro V, dedicando também espaço à decoração de tectos, uma pequena parte sobre o escorço da figura humana, pavimentos e planos oblíquos, exactamente como fez Inácio Vieira.70 Prosseguindo com o tratado de Inácio Vieira, notamos que o Perspectiva Pictorum et Architectorum do trentino Andrea Pozzo foi a sua outra fonte de consulta. Andrea Pozzo era reconhecido no texto de Vieira como irmão jesuíta e não como padre, referindo a sua viagem à Alemanha, onde há poucos anos morrera “vivendo imortal o seo pincel”,71 um belo elogio ao seu talento. Sabese que, em Portugal, o tratado pozziano conheceu três traduções manuscritas nunca publicadas. Podemos começar pela mais tardia (1768), usada por Frei José de Santo António Ferreira Vilaça (1731-1809).72 Outra, em 1732, apenas do segundo volume, por José de Figueiredo Seixas,73 sendo o primeiro tomo traduzido pelo padre João Saraiva do Porto, sem contudo fazer referência ao ano. Existe ainda outra tradução encontrada pelo Prof. Flávio Gonçalves, também sem data e anónima. Pode ter sido executada entre 1745 e 1750, reflexo da erudição vivida naquele ambiente do Colégio Jesuíta em Santarém, como atesta o desenho na última página desta tradução, referindo o método

70 Segundo o jesuíta Inácio Monteiro, o compêndio matemático de Vicente Tosca não passava de uma compilação dos quatro volumes do tratado de Milliet Dechales. De facto, encontramos os mesmos desenhos em Tosca e em Dechales e que também reaparecem no Da Prospectiva de Inácio Vieira, como acima se referiu. Um aspecto que consideramos fundamental para a relação entre estes três tratados, é que quer o tratado de Tosca quer o de Inácio Vieira usam a mesma gravura publicada por Milliet Dechales na sua Proposição VIII, intitulada De Fornicibus et Planis Irregularibum. Trata-se de um método para escorçar a figura humana num suporte curvo. O texto de Inácio Vieira, se comparado com o de Dechales, permite ver claramente uma relação quase idêntica, como se fosse uma tradução directa do texto do francês. Pode concluir-se que Inácio Vieira tinha à frente o tratado de Dechales e não o do oratoriano Vicente Tosca. Nos tratados de Tosca e de Vieira percebe-se também o mesmo esquema para a projecção da figura humana: primeiro, a quadrícula num plano horizontal, e depois, a sua projecção numa superfície circular ou elíptica usando as mesmas letras nos pontos que correspondem à delimitação da imagem. Pode comparar-se o texto do jesuíta português com o texto de Milliet Dechales referente a esta imagem e verificar a sua directa correspondência: a mesma postura e as mesmas letras indicativas da quadrícula e do suporte curvo. Ana Isabel Rosendo, op. cit., p. 54. 71 Inácio Vieira, op. cit., fol. 3. 72 Cfr. Magno Moraes Mello,“COD. 4414 Um manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa: traduzido para o português em 1768 para Fr. José de Santo António Ferreira Vilaça a partir do Perspectiva Pictorum et Architectorum de Andrea Pozzo, S.J.”, in Leituras – Revista da BNL, S. 3, n.ºs 9-10, Out. 2001-Out.2002, pp. 389-397. 73 Rafael Moreira, “Uma utopia urbanística pombalina: o Tratado de Ruação de José de Figueiredo Seixas”, in Pombal Revisitado, 1984.

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Tomas Vicente Tosca, Compendio Matemático, tomo VI, estampa 12, p. 232. S.A. 2343P. Foto: Laura Guerreiro.

usado por António Simões Ribeiro para fazer a moldura do tecto da capela-mor da igreja de São Martinho nesta mesma cidade.74 Assim, o contacto com o tratado de Andrea Pozzo, que se pensava só iniciado na década de trinta do século XVIII, em função do ano de uma das citadas traduções, é comprovado a partir do texto de Inácio Vieira que, desde a primeira década do século, este tratado já era conhecido e estudado em Portugal. O que não deixa de ser extremamente significativo, pois Lisboa projecta-se no estudo da geometria, da matemática e da perspectiva, e no conhecimento da tratadística coeva, inteiramente actualizada desde as últimas décadas do século XVII. Escreve Inácio Vieira no fim do seu tratado, o intitulado “aditamento”: […] posto que tenhamos falado das colunas espirais, e disemos as regras que os Autores trazem para dezenharem a numero 390, contudo

74 Magno Moraes Mello, Os Tectos Pintados em Santarém Durante a Fase Barroca, Santarém, Câmara Municipal, 2001, pp. 58-60. Infelizmente este tecto já não existe.

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como me chegou as maons o liuro do Jrmaõ Posso no seo primeiro tomo aonde trata destas colunas estampa 52 naõ me pareceo satisfaria a coriozidade dos meos ouuintes75 senaõ disese o que tras o dito Autor sobre esta materia // [fol. 361] e muito mais parecendo me que de todos os que falaraõ nesta materia he o que mais claro, e expedito por no seo dezenho alem de dar o modo ordinario de dezenhar, ou trasar semelhantes corpos tras tres modos expeditissimos, os quais todos quero dar por coroa deste nosso trabalho.76 Todo esse ambiente de grande erudição era discutido e irradiado nas aulas em Santo Antão, e diante da complexidade dos três tratados de Inácio Vieira não se pode pensar de outro modo. Recorde-se que a Aula da Esfera em Santo Antão era pública e, portanto, podia ser frequentada não só por futuros professores Jesuítas, mas também por arquitectos, pintores ou preparadores de cenas que procuravam nestas lições um contacto científico melhor e mais actual para as diversas aplicações no mundo da arte. Estes tratados sintetizam todo o conhecimento que circulava nos meios mais eruditos europeus, seja em Academias ou em Universidades, e que era apresentado na Aula da Esfera em Lisboa. Aqui, o padre Inácio Vieira era também muitas vezes solicitado para ensinar ou preparar uma cena perspéctica, seja para pinturas de falsas arquitecturas ou para a execução de uma cenografia, como ele próprio assinala77. Desta forma, a sua contribuição não se

75 Um testemunho claro de que esta matéria era ensinada em Santo Antão. 76 Inácio Vieira, op. cit., fol. 361: em seguida comenta todos os três modos, com ilustrações. Parece que Inácio Vieira tinha em seu poder inicialmente o tomo II e posteriormente teria conseguido o primeiro volume. A primeira citação do tomo I só aparecerá no fol. 303, quando fala como se haõ de dispor em perspectiva seis colunas em circolo, portanto a partir da metade de seu texto; o que permite deduzir que foi neste momento que tomara em seu poder o referido tomo I. 77 chama a atenção quando diz: “mandei formar hu selindro de palmo e meio, ou dois palmos de diametro cujo exo (sic) era hua uiga de 25 palmos, e formado de fasquias de taboas de pinho serrado, mandei lhe pôr quatro ordens de cruzetas, duas nas pontas, e duas nos terços, tendo cada ordem de cruzetas quatro manubrios, em que // (fol. 319) pegasem as maons: e asim armado este selindro o fis jogar no meio de baxo do pauimento do teatro em dois polos, ou subceos: as senas estauaõ postas em seos páos a plumo, os quais estauaõ emlapados em seos pês com rodas, estes estauaõ metidos em caxas de madeira bem justas, para naõ saltarem, nem faltarem na occaziaõ, e como eraõ duas ordens de senas a cada canal do teatro de cada banda, mandei trauar com cordas passadas por roldanas hua na outra e depois cada hua com corda preza ao selindro, em forma porem que ao mesmo tempo que andaua, ou dezandaua o selindro, puchada por hua das cordas das senas e remetia as outras, e como estauaõ trauadas por detras as mesmas senas que uinhaõ

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reduziu simplesmente ao conteúdo teórico, mas assumia-se também em questões práticas e de execução ao lado de pintores. A preparação de cenas ilusionistas para teatro em Portugal deve ter-se iniciado a partir das reais bodas do Sereníssimo Senhor D. João V. Para a cenografia do casamento do rei com D. Maria Ana da Áustria,Vincenzio Bacherelli iniciou os trabalhos, mas devido a questões relativas ao preço, outro cenógrafo se encarregou de concluí-la. Não se deve esquecer que em 20 de Janeiro de 1693 D. Catarina, viúva de Carlos II de Inglaterra, chegava a Portugal. Inácio Vieira encontrava-se em Évora desde 1695 até 1701 para concluir os seus estudos na Universidade e, na altura de escrever o seu tratado de perspectiva, relembra esta passagem dizendo: vi outras senas em Euora a que chamaõ de debadoira em hu dragma (sic) que se reprezentou à Senhora D. Catherina Raynha de Jnglaterra quando foi a Vila Visoza a uer e uizitar N. Senhora da Conseisaõ daquella Villa que he a padroeira do Reino. Constaõ estas de hua grade quadrangular a qual tem seo exo no meio em que se reuolue toda a fabrica, tem duas faces em que se pinta, o que se quer: e depois se podem pintar quantos panos, ou papeis auulsos quizermos, os quais se podem accomodar com suas azelhas no lugar pertendido à hora, e quando se quizer: naõ tem mais inconueniente que requerer muita uigilansia, e demais o mesmo que tras consigo a mudansa que se faz com as maons, e juntamente a incerteza de ficarem as senas ou com obliquidade, ou retitude deuida; porem obuiace esta mutualidade com terse balizas, por que se gouernem os que estaõ a cada sena para ser a mudansa fixa no seo ponto. E naõ he máo este modo para teatros pequenos.78 De acordo com esta descrição, é visível que um dos aspectos mais complexos em toda a estrutura cenográfica era a mudança de cena. O sistema descrito por Inácio Vieira assemelha-se muito ao utilizado no Colégio Romano uindo para diante puchauaõ pellas outras para tras largando lhe, ou dando lhe corda o selindro, e asim a hu tempo se mudauaõ todas as senas sem hauer falta algua, e para este effeito estauaõ oito homens ao selindro para o mouerem com mais ligeireza”. Inácio Vieira, op. cit., fol. 319. 78 Inácio Vieira, op. cit., fol. 322. Catarina de Bragança residiu em Évora em 1699 (Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal – Concelho de Évora, vol. I, Lisboa, 1966, p. 11.)

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durante os meados do século XVII, e que foi divulgado e explicado no tratado de Jean Dubreuil publicado em 1649, tratado esse que, mesmo sem ser citado uma única vez em seu texto, o jesuíta português deveria conhecer muito bem.79 Inácio Vieira surge assim como uma personalidade de grande relevo no seio da vida artística portuguesa na primeira metade do século XVIII. As suas investigações e os seus conhecimentos abrem novos caminhos à justificação teórica de que Portugal precisava desde há várias décadas. A sua actividade como aluno, ainda no fim da última década do século XVII em Évora, e a sua actuação como docente em Santo Antão desde 1701 abriu, certamente, novos rumos ainda no reinado de D. Pedro II, que mais uma vez se caracterizou como um período chave do amadurecimento cultural que se iria verificar no decorrer da era joanina. Pela primeira vez encontramos um tratado português onde se define e se reconhece toda a importância do estudo e entendimento da perspectiva, individualizando-a de modo científico e distinto dos elementos euclidianos mais rigorosos que a perspectiva naturalis. Desde a primeira página, vêmo-lo dizer que: naõ duvido, que a esta parte das Mathematicas, a Prespectiua se a tomarmos no seo rigor, pertence tudo o que cae nos olhos, e na visaõ: porem o uzo a restringuio a menos espaço, e fes, que este nome so se atribuisse aquella parte que de tal sorte dispoem no olho as imagens dos objetos, que ellas mesmas asim debuxadas formaõ nos olhos imagem muito semelhante ao seo objeto, e a mesma, que elles mesmos objetos formaraõ se se nos propuzesem a uista; donde nasce, que toda a pintura pertence à Perspectiua.

79 Numa pequena síntese sobre a origem desses problemas, o primeiro uso da cortina que separava os actos do público só apareceria na peça Polychronius, em 1585, por P. Luís da Cruz, em Évora. As chamadas “maquinas” eram já usadas nas “tragicomédias de santos”, as peças que os Jesuítas faziam para celebrar a canonização dos santos, que na verdade eram verdadeiros grupos de variedades com a presença de soldados e cavaleiros, numa pompa típica da era do Barroco, associada a uma apoteose de efeitos especiais. Em 1635 era inaugurada a peça Eustachius Venator em homenagem ao duque de Bragança com mansões pintadas em perspectiva inspiradas no tratado de Sebastiano Serlio. E desde 1727 a ópera à italiana impunha o seu espectáculo deslumbrante de cenas e fantasias. Claude-Henri Frèches, Le Théatre Néo-Latin au Portugal, 1550-1745, Lisboa, 1964, p. 503.

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Tanto quanto nos é possível estabelecer, trata-se da primeira obra em Portugal que reconhece a importância da correcta representação perspéctica do espaço, integrando-o na pintura. Naturalmente, o impacto da perspectiva fora sentido desde o século XVI, mas, como explicámos antes, mal entendido e por isso pouco valorizado. Foi necessário esperar até ao fim do século XVII para se observarem em Portugal os primeiros ensaios de mudança. Na sua obra, Inácio Vieira conduz o leitor a um pleno entendimento teórico do tema, bem justificado nas 378 imagens que acompanham as 366 páginas de texto: cada passagem vem explicada e justificada com a sua respectiva estampa. No tratado pioneiro que redige, irá referir-se, sempre que achar conveniente, a conceitos e práticas já ensinadas em aulas precedentes: deuemos supor o que dicemos a nº 292 da nossa optica80 sobre as distancias do objeto, e que a uista naõ julga bem della; e para fazer se algu juizo se ajuda dos corpos intremedios (sic), de cuja comparaçaõ nem em conhesimento da distancia que se dá: donde nasce emganarmonos (sic) muitas uezes no juizo que fazemos della. Pello que se entendermos que objeto de tal sorte cae na uista, que cada hua das suas partes se uejaõ nas mesmas linhas retas, pellos quais antes se uiaõ; e se porpagauaõ a uista, sem querer se uerá objeto da mesma sorte; isto he, cauzará a mesma vizaõ, que antes cauzauaõ.81 Após comentar questões relativas à formação das imagens nos raios visuais, isto é, elucidar o sistema de magnitude visual exposto por Euclides na sua óptica, explica: daqui se segue claramente, que a Arte pictorica comtem duas partes ex natura rei. A 1ª que he a de que principalmente tratamos vem a ser que cada hua das partes da pintura produza os seos rayos, ou especies athe os olhos pellas mesmas linhas principais a que chamamos rayos e rrefratos, porque se porpagariaõ (sic) aos olhos os mesmos objetos: donde na reticular fará a mesma imagem a pintura, que o objeto produziria. A 2ª he, que as cores da pintura 80 Inácio Vieira, Tractado Da Óptica, Lisboa, 1714. 81 Inácio Vieira, op. cit., fol. 4.

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mouaõ da mesma sorte a uista, que as cores dos objetos. Daqui uem, que colorimos, e asombramos as imagens dos objetos mais remotos com cores mais auguadas isto he menos intensas e só lhe destinguimos as partes mais principais.82 Como se pode verificar,Vieira dá-nos rapidamente as bases conceptuais da perspectiva linear e atmosférica. Logo em seguida no sexto parágrafo chama a atenção para o facto de “(…) por isso se deue asignar lograr e ponto do que se deve ver, e olhar para a taboa; e o qual ponto chamaõ comummente ponto de perspectiva”.83 Assim, foi definido que uma pintura perspectivada deve ser estruturada tomando sempre em questão o ponto do espectador, caso contrário, a imagem aparecerá deformada. O parágrafo seguinte diz, supondo em 2.º lugar que tudo o que decemos da uizaõ na óptica o foj defusamente a n.º 308 athe 375 se pode accomodar a esta parte. Porque quando disemos VG, que as couzas, ou os objectos que saõ mayores se uem por mayor angulo se pode aqui accomodar dizendo que os objectos que saõ mayores tem na sua secçõ mayor imagem e os mais remotos absolutamente falando menor: porque se as imagens de todos os objectos que cahem na comparasaõ estiuerem na mesma superficie plana, uniuersalmente falando será uerdadeiro que aquelles objectos tem mayor imagem na taboa; que saõ uistos por mayores angulos, e outras muitas couzas semelhantes, que mais seruem para a especulaõ que para a praxe, e assim as deixo por naõ tomar o tempo às couzas mais congruentes. Assim, o jesuíta define os princípios básicos da perspectiva, que ao longo do tratado se complicam quando intensifica e aprofunda os conhecimentos. Note-se que sempre que a teoria ficar muito complexa e não for absolutamente necessária ao estudante, Inácio Vieira opta por não aprofundar demasiado, parecendo-nos que a sua verdadeira intenção é dar a prática clara e objectiva para ser o melhor possível aplicada. Como quando trata especialmente de tectos planos e abobadados, advertindo que

comummente, ou para melhor dizer nunca uzamos de pintura no plano horizontal que fica debaxo dos pés, mas somente pintamos nas superfice supirior dos planos, e corpos horizontais, e a rezaõ porque naõ pintamos nos planos infiriores, ou superfices inferiores aos pés, he porque exatamente há aquella distancia para com a tal pintura enganarmos a uista, por isso só trataremos daquellas regras que nos saõ neceçarias para a deliniçaõ nos tetos supiriores das cazas, e salas, ou nos abobedas [sic], e superfices arcuadas. Se ocorrer mais algua coiza deicharei de o notar.84 No fólio 270 do tratado Vieira discute a questão do ponto principal e apresenta os seus dois pareceres: 1ª: todas as uezes (quadro 4.º) que se pinta nos planos horizontais, ou sejaõ supiriores, ou infiriores á uista como VG em algum teto plano realmente se dá ponto principal, e será, ou he aquelle ponto em que caie a perpendicular tirada da uista ao tal plano;85 a 2ª: todas as demonstraçoens que fizemos no primeiro quadro tem seo lugar, e uigor ainda respeito destes tais planos. E na uerdade o que affirma que toda a linha objectiua paralela à taboa tem apparensia asy mesmo paralela, e por isso toda a figura descripta no plano paralelo à taboa tem a sua apparensia semelhante na taboa, ainda que sempre menor. Para além destes dois conselhos, quase como as advertências que Pozzo fazia em seu tratado, Vieira junta-se outro conceito obrigatório tanto para a prática da perspectiva aplicada a planos verticais, como no caso de tectos planimétricos ou curvos. Assim, sempre que se quiser delinear qualquer corpo em algu teto, ou pauimento deuese detriminar serto ponto, e lugar donde se deue observar mayor, e gozar toda a pintura, porque he impossiuel que todo, e de qualquer lugar se ueja a mesma pintura com a mesma ualentia de arte, e com o mesmo ornato, e despoziçaõ 84 Inácio Vieira, op. cit., fol. 270.

82 Inácio Vieira, op. cit., fol. 5. Refere-se á perspectiva atmosférica estudada sistematicamente desde o século XVI por Leonardo da Vinci. 83 Inácio Vieira, op. cit., fol. 7.

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85 Imaginem que uma linha perpendicular esteja fixa no ponto de fuga e caia desde o tecto até encontrar o olho do observador. Esta linha poderá ajudar a encontrar as marcações de todos os elementos arquitectónicos que se queira representar.

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perspectiua, ou seja no meyo, ou em qualquer outro lugar o ponto da taboa que corresponder perpendicularmente ao tal ponto ou a observador, que estiuer no tal lugar será o ponto // (fol. 272) principal; porque nesse cazo a linha uertical será perpendicular ao plano horizontal. A distancia que determina muitos objectos, como vemos nas praxes superiores he a distancia da uista respeito ao ponto principal que se poderá tresladar a alguas linhas descriptas na taboa, como já notamos nas perspectivas comuas, que a tal distancia se transfere para a linha horizontal, ou uertical conforme o pediaõ as nossas praxes. Fará porem as uezes dessa qualquer linha tirada pello ponto principal o qual sempre será comua secçaõ da taboa, e do plano uertical tirado pella uista.86 Isso permite-nos concluir que, com as aulas de matemática em Santo Antão, este jesuíta se preocupava não só com a argumentação teórica em si mesma, bem fundamentada nos melhores e mais actuais autores do seu tempo, como ainda na possibilidade real da aplicação prática e aproximação com os pintores, os cenógrafos e os quadraturistas ou preparadores de cenas. É muito enriquecedor encontrar no texto de Inácio Vieira a indicação de como se pode representar a figura humana num suporte cilíndrico ou esférico. Inácio Vieira não tencionava expor toda a complexidade da representação figurativa, que na verdade não fazia parte do seu domínio, e de certeza não era capaz de resolver esta complicada situação. Todavia, é curiosa a sua preocupação com o escorço de figuras, pois em todo o tratado ele expõe apenas as questões perspécticas aplicadas às formas arquitectónicas. Deve notar-se que o aspecto da figura humana foi raramente tratado pelos teóricos da perspectiva. Andrea Pozzo não comenta ou explica em nenhum momento do seu tratado como se deve fazer para projectar uma figura em escorço.Toda a sua teoria ou a sua prática se voltam unicamente para as questões perspécticas dos elementos arquitectónicos. Não queremos com isto dizer que Inácio Vieira tencionava suprir esta lacuna no âmbito da tratadística coeva; mas, naturalmente, evidencia uma

preocupação em situar a figura próxima do escorço arquitectónico, além de demonstrar que os próprios artistas reconheciam as respectivas diferenças entre as duas representações, mesmo sem ter o cuidado de muitas vezes sujeitar o escorço figurativo às disposições do escorço arquitectónico. É fulcral observar que “os problemas do desenho de figuras na quadratura vêem quase totalmente abandonado nos tratados (no de Andrea Pozzo e outros). Não é dada nenhuma indicação prática para o escorço das figuras; mas em alguns tópicos Pozzo sublinha que as figuras devem ser coordenadas no conjunto perspéctico, em parte como palavra conclusiva na descrição da Igreja de Santo Inácio, na qual sublinha que a regra do “sotto in sù” é de igual importância para o desenho de homens e animais, como para o de colunas e de edifícios”.87 A disposição de Inácio Vieira indica-nos dois aspectos. Nota-se, uma vez mais, a forte dependência para com o texto de Dechales; uma preocupação em seguir o jesuíta francês ao longo de todo o texto, sem com isso aceitar a ideia de uma mera tradução literal, pois Vieira apresenta também outras regras, nomeadamente as de Andrea Pozzo. Em segundo lugar, reconhece a dificuldade em escorçar figuras humanas que muitas vezes fogem a uma mecanização, que no caso de um fuste ou de qualquer entablamento ocorre de modo mais evidente. Em 1715, o jesuíta português parece escrever pensando em situações concretas dos pintores e da representação visual. O escorço acentuado da figura poderá descaracterizá-la e torná-la irreconhecível aos olhos do fruidor. Assim, Inácio Vieira chama a atenção para a importância de diferenciar a postura da figura humana num plano vertical ou horizontal e a mesma figura representada num suporte curvo, pois acontece muitas uezes naõ ser a taboa plana mas constar de superfice circular, elliptica, ou de qualquer outra figura, e muitas uezes consta de muitas superfices mistas de planas, e curuas, e de tal sorte irregulares que seja muito deficultozo e muitas uezes impossiuel achar ponto principal, linha horizontal, e pontos de distancia, pello que se deue recorrer à praxe mais uniuersal.88 87 Ingrid Sjostrom, Quadratura. Studies in Italian Ceiling Painting, Estocolmo, 1978.

86 Inácio Vieira, op. cit., fol. 272: esta explicação junta-se à da nota número 100. Repare-se que o autor reconhece a importância deste ponto principal para a melhor visualização das formas representadas.

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88 E o texto continua: “Primo ou a superfície que faz uezes de taboa, isto he em que se quer pintar tem muito de uertical, ou tem muito de horizontal; isto he de tal sorte se expõem a uista que prodoce de premeio algum plano vertical, comodamente se occulta todo o dito quadro ou de tal sorte se eu

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Tal explicação é continuada no parágrafo n.º 491, pois ainda afirma que: para isto se dis por com facilidade se poderá uzar de cordel; porque se estendermos o cordel de H para J (figura 291) // (fol. 284) e de F em G se olharmos de lugar detreminado aquella parte que cada hu dos cordeis incobrir na abobeda, o que facilmente se poderá adeuertir, ou com a uista sem mais nada, ou de noite pondo algua lus no lugar, e em lugar do obseruador teremos os quadrilateros deformados que produzem na potencia uiziua a mesma imagem que na mesma uista produzem os quadrados dispostos horizontalmente. Depois os objetos pintados em cada hu dos quadrados horizontais se tresladaraõ para os seos quadrilateros correspondentes, e teremos toda a obra acabada. Porem se for mais facil obrar com o plano uertical toda a superfice irregular em que queremos deliniar algua coiza; primeiro se deue ter hua taboa uertical, na qual pellas regras asima dadas deliniaremos o que na superfice irregular se hade pintar: seja hua porçaõ da abobeda ABCD [figura 292] uista pella potencia em E de sorte que se possa cobrir toda com o plano uertical CDFG, cujo ponto principal seja H. Estas questões são mais significativas do que possa parecer e abrangem um universo cultural na prática artística de grandes dimensões.89 que só se pode uccultar por algum plano horizontal: seja pois este ultimo: Em primeiro lugar tenhace (sic) algua pintira em quadro à parte, ou seja da mesma grandeza VG com a abobeda ou dezigual e ou esteja deliniada para o plano horizontal, ou para teto plano pella praxe do n.º 488, 489, ou de qualquer outro modo; e seja o retangulo BE (figura 290). Deuidace a imagem nos quadrados geométricos que quizermos; e deuidace também a abobeda em outros tantos quadrados; ou quais quadrados seraõ deformados, e irregulares.” 89 Curiosamente, se observarmos novamente o tratado de Jean Dubreuil no seu tomo III, figura 48, iremos constatar que esta mesma figura retirada do tratado de Milliet Dechales vem referida e representada também no texto de Dubreuil: a mesma posição e disposição da quadrícula com a indicação das letras para a projecção da figura plana e depois para o seu escorçamento. Ora, o texto de Dechales foi publicado em 1690, mas o de Dubreuil já estava divulgado desde 1649. Isto significa que Dechales teria oportunidade de ver e estudar pelo tratado de Dubreuil, aproveitando alguns aspectos que considerava fundamental expor no seu Cursus seu Mundus Mathematicus. A imagem apresentada no tratado de Jean Dubreuil mostra um homem situado espacialmente e os passos necessários para projectá-lo em escorço numa superfície plana ou curva, como a própria gravura demonstra. Por sua vez, a sua estampa número 41 do mesmo tomo III clarifica como a visão mais e menos escorçada dependerá do lugar onde o artista situar o olho do espectador. Não querendo aprofundar estes aspectos, mas apenas chamar a atenção para a sua importância, é

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Vê-se, portanto, que toda esta erudição amadurecida desde meados do século XVII, reunida no cursus de Dechales no fim da centúria, era do domínio comum entre todos os mais influentes filósofos e teóricos no campo da matemática e da perspectiva e que o ensino dos Jesuítas era o canal para a sua divulgação. As fontes eram sempre as mesmas, e além de Dechales e Andrea Pozzo,Tosca demonstra conhecer as obras de Girard Désargues e de Abraham Bosse,90 não esquecendo o tratado de Jean Dubreuil, considerado na época como o grande manual, atendendo aos artistas mais carenciados em relação às complexidades teóricas que na época se faziam sentir. Como já assinalamos anteriormente, não é nosso objectivo proceder a um exame da totalidade dos textos de Inácio Vieira que chegaram até nós, uma tarefa que exigirá um estudo mais desenvolvido. Procurámos apenas chamar a atenção para a importância do Tractado de Prospectiva. Mesmo assim, na nossa análise fomos obrigados a omitir muitos outros aspectos como, por exemplo, o que se refere à deliniação perspectiva da planta geométrica de qualquer templo, como o edifício, do que queremos, e pertendemos por em perspectiva, e nos agora damos em primeiro lugar a planta geométrica da Igreja, e sacristia do Colégio de Santo Antão da Companhia de Jezu; ou seja, questões fundamentais sobre a relação espaço pintado/arquitectura real. Todos estes assuntos terão de ser inspeccionados numa ocasião posterior. possível que Dubreuil tenha visto e estudado algumas gravuras que, na época, circulavam no Codex Huygens, cujo manuscrito é da autoria de Carlo Urbino, escrito provavelmente em 1570. Para além desta cópia ainda existe outra encontrada na cidade do México e deve ser interpretada como uma segunda versão. Apesar da do México não estar assinada possui também a inscrição que explica o desenho e indica a relação com o Codex Huygens. Agradecemos estas informações cedidas pela Dr.ª Clara Bargellini, que neste momento prepara um estudo sobre a gravura do México. O nome Codex Huygens descende do seu proprietário Constantijn Huygens, secretário de Guilherme III de Orange, que, no início de 1690, o adquiriu à viúva de um pintor flamengo, Remy van Leemput.Tratase de um compêndio de receitas operativas destinado principalmente aos artistas. Carlo Urbino estuda sistematicamente o escorço figurativo e as deformações do desenho de figura humana visto a partir de posições muito próximas do espectador. O texto dá particular atenção à representação figurativa, estática ou em movimento, sobre uma superfície observada de diferentes distâncias e posições no espaço. Stefano Marconi,“La proiezione della figura umana nelle regole del disegno del Codice Huygens”, La Prospettiva. Fondamenti Teorici ed Esperienze Figurative dall’Antichità al Mondo Moderno, a cura de Rocco Sinisgalli, Florença, Edizioni Cadmo, 1998, pp. 183-189; Erwin Panofsky, The Codex Huygens and Leonardo da Vinci’s Art Theory, London, 1940, e Sergio Marinelli,“The Author of the Codex Huygens”, in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, n.º 44, 1881, pp. 214-220, e L. Wright, Tratado de Perspectiva, Barcelona, Ed. Stylos, 1985, pp. 113-114. 90 José Emílio Burucua, Arte Difícil y Esquiva. Uso y Significado de la perspectiva en España, Portugal y lás Colonias Iberoamericanas (siglos XVI-XVIII), tese apresentada ao Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, 1988-1989.

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Quanto aos outros textos de Inácio Vieira, apenas incluímos, pela sua relevância, alguns apontamentos sobre o seu tratado Da Lanterna Mágica, inserido no Tratado da Catóptrica.Trata-se de um pequeno texto de 27 páginas que aborda um conhecimento provavelmente difundido em Portugal, mas que, tanto quanto nos é possível concluir, nunca explicado em texto próprio. Qualquer um dos três tratados de Inácio Vieira (o Tratado da Óptica, da Perspectiva e da Lanterna Mágica) pode ser considerado basilar; no seu conjunto eles revelam o excepcional interesse que estas questões suscitaram ao jesuíta português, certamente em consequência da intensidade com que se tratou a pintura de falsa arquitectura em Lisboa durante o reinado de D. João V. O padre Vieira trata do tema no seu amplo tratado sobre catóptrica e dióptrica. Como ele mesmo dirá, a Lanterna Mágica ou lucerna (como era também chamada por outros autores franceses e italianos) insere-se nos conhecimentos da catóptrica, que é a parte da óptica que estuda a reflexão dos raios luminosos nos espelhos. Já a dióptrica é a parte da física que estuda os fenómenos produzidos pela luz refractada quando atravessa superfícies de densidades diferentes. Ao estudar esta machina, Inácio Vieira divulga as suas fontes, faz um pequeno comentário e explica como o seu tratado será organizado em termos de exposição e subdivisão teórica. Uma vez mais, estas fontes demonstram o quanto este jesuíta estava familiarizado com as teorias mais actuais e a par de todas as transformações que se faziam no campo da óptica e da perspectiva. De referir ainda que, para uma melhor apresentação deste objecto, Inácio Vieira procede a um breve excurso histórico, demonstrando que a lanterna mágica vem referida desde a Antiguidade até Milliet Dechales: escreueraõ desta sciencia [quer dizer, questões relativas aos espelhos e à reflexão] Ptolomeo, e Euclides mas taõ parca, e sucintamente, como copiozamente Alhaseno,91 e Vitellio;92 porem estes dois com tanta superabundansia de palauras, e com taõ intrincadas demonstrações que fazem a materia sendo em sy jucunda, e deleitauel,

91 Refere-se ao teórico árabe Alhazen Ibn Al Haitham (965-1039), que escreveu a obra Ottica. Este árabe transmite ao mundo medieval a óptica dos antigos. 92 Trata-se da obra de Vitelião (c. 1230-1300), Perspectiva Libri X, compilada entre 1262 a 1278.Texto específico sobre perspectiva naturalis.

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molesta e ingrata aos coriozos: tambem trataõ della Aquilonio93 na sua Optica, e mais geometricamente Andre Taquet94 no seo tomo de Astronomia em tres Liuros, e o Padre Dechales no seo curso mathematico tomo 3º.Trat. 22 em tres Livros destes dois tiraremos o que nos seruir melhor para a noticia desta sciencia. Diuidiremos este tratado em tres liuros; o 1º tratará da Reflecçaõ em geral, e dos espelhos planos; o 2º dos conuexos; e o 3º dos Concauos. E se o tempo, e a uida nos durar pode ser entremos pella materia da Dioptrica 3ª parte da Perspetiua. Deus nosso Senhor derija nossas intençoens a mayor honra, e gloria sua.95

Milliet Dechales, Cursus Mundus Mathematicus, tomo III, tratado XXI, propositio IV, 1690. BN S.A. 654A. Foto: Laura Guerreiro.

93 Trata-se de Franciscus Aguilonius (François d’Aguilon), que em 1613 publicava a obra Opticorum libri sex, com sete ilustrações de Rubens gravadas por Théodore Galle. 94 Padre jesuíta belga,André Tacquet (1612-1660), escreveu Opera Mathematica, publicada em Lovaina em 1668. Foi professor de matemática naquela cidade e escreveu várias obras das quais destacamos a Elementa Geomitriae Planae ac Solidae, publicada em 1651 e que conheceu muitas reedições e traduções. 95 Inácio Vieira, op. cit,. fol. 2.

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Como se vê, a fonte praticamente universal utilizada em todos os três tratados do jesuíta português foi o Cursus Mathematicus de Milliet Dechales, uma obra que conheceu uma enorme difusão em toda a rede de ensino da Companhia de Jesus. Vieira conta que o jesuíta francês entrara em contacto com esta machina em Lyon quando então teria assistido a uma demonstração, passando por essa Terra um sábio Dinamarquês que levava consigo.96 Além de Dechales, Vieira refere neste pequeno tratado outros nomes como, por exemplo Porta,97 Cardado,98 Cauto,99 Pe. Kircher100 e Manuel Magnan101 quando estuda e analisa questões da própria especificidade da Lanterna: a adaptação de lentes, o uso de espelhos e situações referentes aos raios refractos.102 96 Inácio Vieira, op. cit., fol. 684. O contacto do jesuíta francês com o matemático dinamarquês Thomas Walgestein aconteceria na cidade francesa de Lyon, onde Milliet Dechales ainda ensinava no Colégio Jesuíta desta cidade, em 1665. A curiosidade e o entusiasmo do autor foram de tal ordem que, na sua obra, Cursus Mundus Mathematicus, este instrumento foi minuciosamente descrito, estudado e representado.Walgestein circulou pela Europa com este instrumento entre os anos de 1662 e 1665, onde difundiria essa “máquina para espectáculos”, que por isso ficaria conhecida também como a “lanterna do dinamarquês”. Ver D. Pesenti Campagnoni, “História da lanterna megalográfica vulgarmente dita Lanterna mágica”, in cat. A magia da Imagem, Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1996, pp. 59-89: a lanterna mágica era também chamada lucerna mágica; lanterna do dinamarquês; lanterna megalográfica e lanterna taumatúrgica, como se pode ver na obra Ars Magna Lucis et Umbrae, de Athanasius Kircher. 97 Trata-se de Giovanni Battista della Porta, que publicou duas obras: uma em 1539 e outra em 1588, descrevendo a câmara escura e a sua aplicação prática para o desenho. 98 Refere-se a Girolamo Cardano, personagem do século XVI que, em relação à câmara escura, incluía uma lente biconvexa para obter uma imagem mais clara. 99 Refere-se a Gaspard Schott (1608-1666), De Magia Anamorphotica, sive de arcana imaginum deformatione (…), Wurtzburg, 1657-59. Esta obra ocupa-se especificamente da anamorfose. O seu autor foi um jesuíta que entrou na ordem em 1627. Estudou em Palermo e foi muito próximo de Kircher. 100 Refere-se ao jesuíta alemão Athanasio Kircher S.J. (1602-1680), Ars Magna Lucis et Umbrae in Decem Libros digesta, Roma, 1646. Um texto com 810 páginas, bem ilustrado. Em relação à perspectiva o seu texto é modesto e ocupa uma pequena parte na segunda Parte do Livro II que contém apenas 89 páginas. Um jesuíta versátil exercendo grande actividade no Colégio em Roma. Escreveu desde óptica e magnetismo até aritmética e medicina, entre outros interesses. Neste texto, Kircher trata dos instrumentos perspectográficos para a construção de imagens de corpos planos e sólidos. Outro aspecto que deve ter entusiasmado o jesuíta português deve ter sido o capítulo intitulado De Arte Scenographica com 4 parágrafos e as principais advertências sobre a scenografia. 101 Provavelmente refere-se à obra do francês Emmanuel Maignan (1601-1676), Perspectiva Honorária, sive de Horographia gnomonica tum Theoretica tum Pratica, Libri Quatnor (…), Roma, 1648. Um tratado de 705 páginas com muitas ilustrações. No seu livro III este religioso da ordem dos Mínimos, e amigo de Niceron desenvolve com amplitude a teoria geométrica da anamorfose. Neste mesmo livro faz uma análise da pintura anamórfica existente na igreja de Santa Trinità dei Monte em Roma onde deve ter passado algum tempo. 102 No seu tratado sobre a Lanterna Mágica, Inácio Vieira descreve um instrumento com tubos, que poderia aproximar-se deste de Sturm.

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Milliet Dechales, Cursus Mundus Mathematicus, tomo III, tratado XXI, proposio VIII, 1690. BN. S.A. 654A. Foto: Laura Guerreiro.

Sem entrar agora nos detalhes do desenvolvimento histórico da lanterna mágica, importa assinalar que, durante os séculos XVII e XVIII vários Jesuítas manifestaram um grande interesse pelo seu aperfeiçoamento e uso. Para além do já mencionado Dechales, também Athanasius Kircher lhe dedicou muita atenção. A lanterna mágica suscitava interesse científico, mas também seguramente, interessantes possibilidades de aplicação em aulas e mesmo como um elemento importante num apostolado que recorria ao uso de uma rica imagética. A lanterna mágica pode ser considerada uma “máquina de ver”, mas também uma máquina de desenhar. No essencial, a estrutura de base do seu funcionamento pode encontrar-se já em Ptolomeu, que considerava o espelho (lembre-se que a imagem vista através de um espelho é uma imagem virtual e não real) uma máquina de ver.103 Com os progressos no estudo da óptica e da catóptrica estas noções iniciais acabariam por ser materializadas na construção e aperfeiçoamento de um aparelho adaptado para transmutar a projecção de um objecto reflectido no espelho, num instrumento de captação e reprodução de imagens.

103 Javier Navarro de Zuvillaga, Imágenes de la Perspectiva, Madrid, Siruela, 1999, pp. 67-71.

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Um dos autores já citados e bem conhecido de Inácio Vieira foi Franciscus Aguilonius (1566-1617),104 um padre jesuíta que na sua obra, Opticarum libri VI, publicada em 1613, apresentou uma síntese das fontes da ciência desde os tempos da Antiguidade até ao Renascimento. Apesar de algum tradicionalismo, o tratado apresenta interessantes e instrutivas ilustrações feitas por Rubens, o que demonstra o grande impacto não só em relação a estas questões do estudo da catóptrica e dióptrica, mas a toda estrutura matemática e geométrica da óptica. Estas gravuras ilustravam o conhecimento teórico de Aguilonius, mas também serviram para evidenciar a relação evidente entre a arte e a ciência. Inácio Vieira iria ainda examinar o tratado do jesuíta belga André Tacquet (1612-1660), autor de Opera Mathematica, publicada em 1668, que se caracteriza por uma visão generalista desta matéria.105 Em Portugal, não se conhece um instrumento construído com estas características. Todavia, a descoberta deste texto de Inácio Vieira, é um elemento muito forte em favor da noção de que, nessa altura, uma tal “caixa óptica” tenha sido construída e utilizada, pois certamente a lanterna mágica foi o “primeiro mecanismo de determinação de uma nova e moderna relação com o espectador”.106 Não estará aí o sentido máximo da arte barroca? Não será este instrumento de propaganda tão fiel e funcional como qualquer pintura perspéctica ou cenográfica? O Barroco fará uma espécie de exaltação da sensibilidade como caminho para Deus: uma convivência que se pretendia perfeita entre a metafísica, a moralidade e a sensibilidade artística. Este aparelho age directamente sobre o espectador numa componente emotiva capaz de atingir elevados graus de persuasão, pois combinando espectacularidade e mistério, induz à surpresa e à maravilha.

104 Jesuíta belga que no desenvolvimento do tema da perspectiva seguiu muito de perto a obra de Guidobaldo del Monte, fazendo inúmeras referencias ao seu Libro Quinto. O seu estudo sobre a perspectiva communis publicada em 1613, referida constantemente por inúmeros estudiosos de finais do século XVII e início do XVIII não era inovadora. Entretanto, foi considerada uma síntese dos filões da ciência clássica medieval e renascentista e por isso teve tanta influência no meio científico e foi usada freqüentemente como ponto de consulta. 105 A sua obra é considerada muito mais uma compilação do que um trabalho original. 106 Roberto Bertetto, “A magia da imagem”, in cat. A magia da Imagem, Lisboa, CCB, 1996, p. 38.

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CONCLUSÃO No estudo da prática pictórica tem especial importância a localização de documentos que comprovem o ensino e a aplicação de técnicas perspécticas no labor diário dos pintores. Não se pode, contudo, condicionar toda e qualquer produção pictórica à simples aplicação de regras, correcta ou incorrecta, retirada dos respectivos tratados, como uma espécie de transferência de conteúdos teóricos avançados para o exercício imediato da pintura. É nesse sentido que o Tractado da Prospectiva do jesuíta Inácio Vieira tem um interesse muito especial. O seu autor foi um homem profundamente conhecedor de toda a tradição teórica renascentista associada à perspectiva. No entanto, no seu manual mostra-se, sobretudo, interessado em fornecer fórmulas que, embora cuidadosamente fundamentadas em princípios teóricos, são eminentemente práticas. Mais do que regras poderíamos considerá-las como “procedimentos perspécticos operativos”, fruto não somente da leitura dos diversos textos que consultava, mas também resultado das disposições culturais vividas e que seriam formalizadas num único código de representação. Para além disso, toda a sua preocupação estava voltada para o pintor-decorador, não dando demasiada importância a questões ou modelos teóricos em abstracto. No seu texto, a perspectiva surge em estreita relação com a pintura e a cenografia. As suas inquietações são reais e inovadoras naquele Portugal habituado a um discurso que estava ainda centrado nos conceitos de liberalidade e nobreza da pintura. Inácio Vieira espelha uma outra tradição; a sua apreensão em relação às preparações perspécticas aparece focalizada em questões reais, isto é, na criação de uma estrutura operativa, que seja útil ao pintor-decorador, estrutura esta que, na época, ainda não estava formalizada em Portugal. Todo o seu processo materializa a teoria do conhecimento que se ensinava em colégios Jesuítas da época, em especial no Colégio de Santo Antão em Lisboa. Muito possivelmente é também resultado da convivência com a difusão da quadratura pelo florentino Vincenzo Bacherelli em Lisboa, desde 1701 até 1721. O Tractado da Prospectiva é uma peça importante, mas certamente não a única testemunha da tradição jesuíta de ensino de técnicas perspécticas em Portugal, como pudemos demonstrar. O impacto desta tradição na cultura figurativa portuguesa da primeira metade do século XVIII pode desde já antecipar-se, mas será ainda necessário realizar um estudo mais amplo que confirme as indicações que aqui noticiamos. Como se viu, em

A pintura barroca e a cultura matemática dos Jesuítas

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Portugal a teoria sistemática da perspectiva acontece posteriormente à prática da pintura. O texto de Inácio Vieira procurava exactamente compensar este percurso. No decorrer do seu manual notam-se constantes preocupações com o esquema de ensino, isto é, uma procura em definir meios explicativos complementares com os desenhos do próprio punho, ou através de referências às gravuras citadas directamente dos textos originais e que estavam disponíveis à consulta. No estudo da pintura de simulação arquitectónica realizada em Portugal entre os séculos XVI e XVIII, para além de todas as questões paralelas ao estudo da pintura, devemos levar em conta um ponto essencial e que não pode ser transcurado: não havia um “exercício regular” da perspectiva linear inserido no ambiente cultural vivido pelos pintores ou decoradores durante este mesmo período. A presença do quadro recolocado ou o uso excessivo do frontalismo passa a ser um recurso de linguagem específica e não uma questão essencialmente técnica ou cientifica. Devem-se compreender estas disposições como uma ferramenta operativa de preenchimento dos espaços e não considerá-los simples questões de habilidade técnica. A perspectiva não é um processo que se deve medir exclusivamente sob o ponto de vista da codificação regular, mas um processo representativo de modo que na sua actuação agem diversas forças e disposições culturais. Com os estudos de Inácio Vieira, a prática da perspectiva em Portugal ganha pela primeira vez um contexto teórico e específico, inaugurado no século XVIII. Não se trata tanto de ver se a pintura apresenta ou não um espaço construído matematicamente, mas, sobretudo, importa compreender como este processo pictórico evoluiu entre o Renascimento e a fase do Barroco. Estudar estas pinturas, descobrir os seus mais remotos segredos, significa aprender como se construía um espaço pictórico e quais as suas consequências. Por fim, o interesse deste tipo de pintura reside especificamente no uso que faz dos procedimentos espaciais, seja numa parede ou num tecto plano, abobadado ou esférico, pois desde o início que esta “forma decorativa” representa o espaço juntamente com o arrombamento do plano do suporte. Assim, a leitura destas pinturas não poderá ser realizada apenas por intuição, exigindo também um estudo sistemático das obras e dos processos de execução que giravam em seu redor e justificavam a sua criação.

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ANTIQUITÉ TARDIVE, Revue Internationale d’Histoire et d’Archéologie (IVe-VIIIe s.), 11, Turnhout (Belgique), Brepols Publishers, 2003.

A Revista Antiquité Tardive é publicada anualmente, desde 1993, pela Association pour l’Antiquité Tardive, com sede em Paris, tendo sido editado o último número em 2003 que, juntamente com o número imediatamente anterior, foi dedicado à África Vandálica e Bizantina. O número XII, de 2004, terá como tema Tecidos e Vestes na Antiguidade e o número XIII, de 2005, versará sobre a Baixela de Bronze na Antiguidade Tardia. Ressalta com evidência a importância de uma publicação anual deste tipo, abarcando uma longa época cronológica que tem permanecido numa certa obscuridade por falta de direccionamento da investigação. O impulso inicial dado pela equipa dirigida por Noël Duval, da

Universidade de Paris-Sorbonne, tem vindo a ganhar ritmo e a alargar os temas estudados, com reflexos profundos na motivação para o estudo da Antiguidade Tardia, disponibilizando dados, indicando fontes, proporcionando novas e inesperadas leituras. Para a História da Arte, o contributo é importantíssimo. O vol. I (1993), trata dos sarcófagos da Aquitânia, da Provença e da Gália Merovíngia, sua decoração figurativa e vegetalista, assim como do seu contexto histórico e arqueológico. Os volumes II e III (1994 e 1995), estudando a Tetrarquia, dão-nos conta, designadamente, dos estudos sobre o Palácio de Diocleciano em Split (Croácia) e dos edifícios de Galério em Romuliana (Sérvia), assim como da escultura imperial de tetrarcas neste mesmo local. Apresenta-nos ainda estudos sobre o retrato e sobre a pintura desta época. Aborda também as fortificações militares do tempo de Diocleciano. As questões das igrejas duplas e das “famílias” de igrejas é desenvolvida no vol. IV (1996). Procuram-se aí eventuais explicações para essas variações arquitecturais através da liturgia, com características regionais próprias, designadamente, da Gália, Itália, Ístria e Balcans, Oriente e África. Recensões

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Tema que raramente tem sido abordado numa dimensão ampla e alargada é o da baixela de prata, prataria e numismática romanas da Antiguidade Tardia, questão de que se ocupa o vol.V (1997), procurando sistematizar a produção das oficinas estatais ou privadas, sua localização geográfica e tipologias decorativas. Os vols.VI e VII (1998 e 1999) abordam a temática dos governadores de província e dos bispos, sobretudo no domínio histórico mas que estuda também a arquitectura dos seus palácios e residências. Importantíssimo é o vol. VIII (2000), sobre o De Aedificiis, de Procópio, em que se contrapõem as premissas e informações do texto deste autor da época de Justiniano (séc. VI) com os dados que actualmente a arqueologia e a história da arte nos fornecem. Tendo em conta que hoje se reconhece a ocupação do Sul do território português por tropas

bizantinas nos finais do séc. VI e princípios do séc. VII, as reflexões aqui documentadas são do maior interesse para a investigação no nosso território. Finalmente, o vol. IX (2001), ao tratar da Democratização da Cultura na Antiguidade Tardia, levanta questões epistemológicas fundamentais que têm de servir de base à análise dos comportamentos artísticos nesta época: historiografia e conceptualização; novos vectores sociais – novos destinatários; cristianização e democratização da cultura; linguagens, representações e produções artísticas. Todos os números apresentam uma Varia de artigos extra-tema, uma crónica e um boletim crítico de recensões e de notas de leitura. Pelos conteúdos expostos, revela-se extremamente útil e fecundo o conhecimento desta Revista. M. Justino Maciel

SILVA, José Custódio Vieira – O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça. Lisboa: IPPAR, 2003. Integrada na belíssima colecção «Monumentos/Monografias» publicada pelo IPPAR e enriquecida com dezenas de fotografias de autor, realizadas por Henrique Ruas, a obra em apreço constitui a primeira análise sistemática

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do processo de formação e desenvolvimento daquele que pode ser identificado como o mais sério esforço de estabelecimento de um panteão régio durante a primeira dinastia portuguesa. Retomando preocupações anteriores

relacionadas com os espaços de tumulação medievais,1 bem como uma primeira leitura de conjunto dos túmulos de Pedro e Inês,2 Vieira da Silva procura analisar a complexa relação entre o simbolismo religioso e político dos espaços funerários do mosteiro de Alcobaça e a transformação morfológica e tipológica dos monumentos funerários medievais aí existentes, aspectos que constituem, aliás, o tema do segundo e do terceiro capítulos deste livro. No capítulo um Vieira da Silva dedica uma breve introdução ao problema dos sepultamentos régios durante a primeira dinastia, sendo notórios alguns aspectos: a progressão para sul acompanhando a «Reconquista»,3 a preponderância de Alcobaça como local de sepultamento real (três monarcas), a relativa dispersão

por diferentes instituições religiosas (embora com claro ascendente cisterciense, com quatro monarcas) e, pelo menos no século XIV, uma certa insubmissão dos filhos, que não parecem respeitar o local de sepultamento programado pelos progenitores. Assim, se em Santa Cruz de Coimbra foram sepultados Afonso I e Sancho I e se em Alcobaça foram sepultados Afonso II, Afonso III e Pedro I, já nos restantes casos cada monarca escolhe um local distinto para última morada: Dinis I faz-se sepultar em Odivelas no mosteiro de monjas cistercienses, Afonso IV renova a cabeceira da catedral de Lisboa fazendo dela seu panteão e Fernando I, último desta dinastia, escolhe o convento dos franciscanos de Santarém.4 No capítulo dois é estudado o panteão régio de Alcobaça, procurando-se analisar, sobretudo, os distintos espaços funerários existentes no mosteiro (cemitério, galilé, claustro, Sala do Capítulo, igreja) destinados a diferentes grupos sociais (monges, leigos nobres, leigos não nobres, abades, família real, etc.). Do mesmo modo, o autor procura explicar o sentido da migração interna do panteão régio como micro-espaço funerário: primeiro da galilé gótica até ao transepto, depois do transepto até ao panteão neogótico (também conhecido como

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Capela dos Túmulos). De acordo com Vieira da Silva, a galilé existente na igreja de Alcobaça possuía uma simbologia soteriológica e litúrgica particularmente adaptada ao contexto funerário determinado por Afonso II, na medida em que todos os domingos a procissão monástica parava nesse local para comemorar a última aparição de Cristo aos apóstolos num monte da Galileia. Desta forma, a galilé alcobacense estabelecia uma relação analógica com «a certeza da ressurreição dos corpos dos justos no dia do Juízo Final e, a exemplo de Cristo, da sua subida, por fim, aos céus» (p. 17). Esta simbologia foi reforçada, naturalmente, pelo facto de em Alcobaça não se sepultarem leigos no interior da igreja, mesmo que fossem reis. Aliás, foi apenas com Dinis I, nos inícios do século XIV, que os monarcas passaram a ser sepultados no interior das igrejas, pelo que a galilé perde o seu sentido simbólico, preferindo-se a certeza da proximidade às relíquias depositadas nos altares e a protecção do interior dos templos para deposição do corpo dos reais defuntos. No capítulo terceiro, último desta obra, são estudados os vários monumentos funerários que formavam o panteão régio existente em Alcobaça. O destaque é dado, essencialmente, ao polémico túmulo de D.

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Beatriz e aos fascinantes túmulos de Pedro I e D. Inês de Castro, embora o autor também analise as várias arcas de feição românica que se encontram na chamada Capela dos Túmulos. Vieira da Silva estuda essas arcas de Infantes atribuindo-lhes uma cronologia relativa e acrescentando novas leituras da decoração e iconografia que apresentam. Em relação ao túmulo de D. Beatriz, Vieira da Silva distancia-se da opinião de outros autores, como Manuel Luís Real ou Mário Barroca, que identificaram este túmulo como sendo o de D. Urraca. Vieira da Silva apoia a sua proposta tanto nas descrições realizadas na época moderna por Frei Jerónimo Román e por Frei Manuel de Figueiredo, onde os dois túmulos são diferenciados com clareza – o de D. Urraca é uma arca lisa sem qualquer decoração, enquanto que o de D. Beatriz é inteiramente esculpido –, como na integração formal e serial desse túmulo na escultura fúnebre portuguesa dos século XIII e XIV, concluindo da impossibilidade dessa obra ter sido realizada em torno de 1220. Finalmente, a análise dos túmulos de Pedro e Inês é realizada, sobretudo, ao nível da iconografia que apresentam e ao nível das suas possíveis autorias, adiantando-se, por exemplo, as semelhanças existentes entre o jacente de Pedro I e o jacente do túmulo de

Lopo Pacheco (c.1349) existente na cabeceira da catedral lisboeta. Conforme nos habituou em outras obras quase sempre dedicadas à arquitectura gótica, seja ela religiosa5 ou civil,6 também aqui neste estudo sobre o panteão alcobacense encontramos a marca de água das investigações de Vieira da Silva: a primazia dada às formas; a abordagem de longa duração; a clareza da visão de conjunto; a capacidade de atender aos detalhes mais ínfimos e relevantes das obras de arte; a síntese incisiva e cristalina. Deste modo, o leitor tem ao seu dispor uma obra que analisa a génese e o desenvolvimento do panteão de Alcobaça com bastante lucidez, explicando as razões associadas à migração interna desse espaço sepulcral, ao mesmo tempo que interpreta e valoriza a linguagem plástica e iconográfica com que os vários monumentos funerários desse panteão foram lavrados. Em suma, esta é uma

obra que interessa tanto ao leitor comum como ao especialista em temas medievais. Luís U. Afonso

1 Vieira da Silva, J. C. «Da galilé à capela-mor: o percurso do espaço funerário na arquitectura gótica portuguesa», in O Fascínio do Fim, Lisboa, Livros Horizonte, 1997, pp. 4559. 2 Vieira da Silva, J. C. «Os túmulos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro em Alcobaça», in Cister. Espaços, Territórios, Paisagens. Actas do colóquio internacional, 16-20 Junho de 1998, vol. II, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 367-374. 3 A progressão para sul ficaria mais explícita se contabilizássemos ainda a Sé de Braga, local de sepultamento dos progenitores de Afonso I. 4 Sancho II, como se sabe, foi obrigado a refugiar-se em Castela na sequência do conflito que o opôs a Afonso III, seu irmão. Morrendo no exílio, foi sepultado em Toledo. 5 Vieira da Silva, J. C. O Tardo-Gótico em Portugal. A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte, 1989. 6 Vieira da Silva, J. C. Paços Medievais Portugueses, Lisboa, IPPAR, 1995.

PEREIRA, Paulo – Paisagens Arcaicas. Arquitecturas Sagradas. Idades do Ouro. In Enigmas: Lugares Mágicos de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004. Vols 1, 2, 3. Com quatro volumes publicados de um projecto de oito, poderá considerar-se prematuro reflectir sobre uma obra marcada por extrema particularidade. Arrisco, no entanto, deixando claro que o que se segue não é uma recensão crítica mas uma no-

tícia, predominantemente sintética. O autor, Paulo Pereira (Lisboa, 1957), é um dos mais activos e polifacetados historiador de arte portugueses, especialista da arte manuelina (a sua disser tação de mestrado, defendida na Faculdade de Ciências

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Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, intitulada A Obra Silvestre e a Esfera do Rei foi galardoada, em 1991, com o prémio D. João de Castro) mas com rara capacidade de desenvolver trabalho em áreas muito diversificadas. Sem pretender traçar o seu curriculum, não posso deixar de referir que ele foi o director da História da Arte Portuguesa (Círculo de Leitores, 1995, 3 volumes), coordenando uma vasta equipa de especialistas e escrevendo os capítulos referentes ao manuelino e ao neo-manuelino, e que, em 1989, organizou, com José Fernandes Pereira, o Dicionário da Arte Barroca em Portugal, editado pela Presença, onde assina também diversos artigos. Paralelamente, foi comissário de exposições memoráveis, sobretudo As tentações de Bosch e o Eterno Retorno (Museu

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Nacional de Arte Antiga, 1994), indagando uma genealogia para o surrealismo do século XX, no campo das artes plásticas. Finalmente, refira-se o seu excepcional desempenho enquanto Vice-Presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico (1995-2002), que fez dele um dos mais qualificados patrimonialistas portugueses, quer nos domínios da História e da Teoria, quer nos jurídicos e administrativos, uns e outros alimentados por muitas obras lançadas e não menos projectos propostos. Enigmas. Lugares Mágicos de Portugal inscreve-se, com coerência, no percurso que acabei de evocar, confirmando o gosto do seu autor pelas grandes sínteses e pela interdisciplinaridade criativa, ambas alicerçadas numa cultura vasta e actualizada, em termos nacionais e internacionais, que tem indiscutível ordem académica mas, simultaneamente, se abre a territórios de ruptura. Na verdade, estes “territórios de ruptura” constituem agora o cerne e a particularidade da obra como o título logo assume, com o risco de a confundir no mar mediático da literatura (quase toda sub-) sobre magia e fantástico. Confesso que foi este risco, provocatoriamente enunciado, que me fez ler os três volumes já publicados. Paulo Pereira explica, na Introdução do primeiro volume, as raízes

próximas e longínquas deste projecto. As primeiras relacionam-se com a leitura de Landscape and Memory de Simon Schama, 1995, que considera uma inovadora reflexão sobre “o lugar das paisagens (…) na tradição europeia e, até, na construção das nações e das ideologias que as foram servindo”, consubstanciando um tipo de “história nova” ou “história-ensaio”. O facto de, nesta obra, não haver qualquer referência a Portugal lançou o nosso autor numa inquietação-desejante porque os interesses ali manifestados sempre foram os seus. Atrevo-me a sintetizá-los: compreender/indagar de que modo os sítios determinam as arquitecturas e de que modo uns e outros determinam e são determinados, tanto na dimensão da História, como, mais profundamente, na da antropologia. Dito de outro modo, mais directo: é a alma dos sítios que agudiza a aura das suas arquitecturas, são estas que a vão misteriosamente construindo ou alguns lugares da Terra possuem uma carga – cósmica? – de tal modo potente que as culturas humanas os elegem porque são sítios mágicos? Estas questões, que alimentaram e continuam a alimentar, uma vasta literatura “especializada” – que o autor saborosamente evoca na Introdução que venho seguindo – são, em geral, desprezadas e perseguidas pelas

universidades, especialmente as portuguesas. No entanto, elas podem possuir capacidade propositiva quando se trata de indagar fenónemos culturais de grande complexidade, por exemplo os que se relacionam com as elaborações e reelaborações de uma cultura nacional. Paulo Pereira coloca-se neste campo – evocando o magistério de Eduardo Lourenço e José Mattoso na reflexão sobre a identidade portuguesa ou, pelo menos, os traços distintivos do seu imaginário – mas mantém portas abertas para a “Tradição Primordial que, quer queiramos quer não, fazem parte do constructo ideológico do Ocidente”. Situa-se assim, como já foi dito, num lugar metodológico muito particular que lhe permite “entender os cruzamentos entre a Tradição, o Folclore e a Arte”, sondar os símbolos e os mitos constitutivos da cultura portuguesa e defender a espessura significante do imaginário que se afirma como “uma «outra realidade», imbricada na realidade tangível, mas não menos real do que esta”. Finalmente, o autor tem ainda outro objectivo: valorizar, e, desse modo contribuir para salvaguardar, lugares e arquitecturas de grande relevância patrimonial que “iluminam a paisagem” como se delas tivessem sempre feito parte. Nos volumes até agora publicados, verifica-se, na minha opinião, a

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larga predominância da visão e do trabalho do historiador da arte. Tal acontece, em primeiro lugar, pela organização dos conteúdos em função de uma cronologia – o I vol. abrangendo a chamada “Pré-História”, o II a Idade Média e o III a Época Moderna – mas também pelo respeito metodológico pelos sucessivos períodos artísticos, nomeadamente o Românico, o Gótico, o Manuelino, o Renascimento e o Barroco, referenciados pelas suas obras maiores, há muito consagradas por gerações de historiadores. Por isso, “Os enigmas” que envolverão estes monumentos nem sempre são claros. O que pode conduzir a esta observação: afinal, Paulo Pereira fez uma História da Arquitectura portuguesa, com particular ênfase nas suas articulações produtivas (físicas e simbólicas) com a paisagem, introduzindo, em alguns casos, referências a uma “literatura esotérica” que, por razões relativamente alheias à História da Arte, também se ocupou desses lugares. Acresce que, em várias situações, por exemplo, na Baixa pombalina (III vol.), o autor se limita mesmo a citar os estudos que afirmam o seu “traçado hermético”, sem tomar partido, nem sequer em termos de reflexão. Não se pense que esta atitude de prudência controlada diminui o interesse da obra. Está bem paginada, apresenta um número considerável

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de imagens cuja qualidade média é elevada, é de fácil consulta porque se organiza por entradas temáticas caracterizadoras dos objectos, das conjunturas e das problemáticas que remetem de umas para outras. A escrita é fluente, atractiva e irreverente, as bibliografias especializadas actualizadíssimas. Trata-se assim de uma História da Arquitectura generalista, capaz de cativar e interessar públicos não especializados, o que não é pouco tendo em conta os constrangimentos da cultura portuguesa. Para os especialistas, há, nos melhores capítulos – que são vários – muitos reptos para reflexão, nomeadamente relacionados com a elaboração de iconografias arquitectónicas, ecoando e apropriando práticas oriundas de outros campos artísticos – da pintura, da escultura, do azulejo, da ourivesaria ou da talha – que valorizam as ainda mal designadas artes decorativas, facto que o autor considera fundamental no inventário das particularidades da cultura artística portuguesa. Resta esperar pelos próximos volumes que abandonarão a organização cronológica, em proveito de promissoras e heterodoxas organizações temáticas. Será então o momento de avaliar o conjunto da obra que agora quis apenas noticiar como boa nova. Raquel Henriques da Silva

SBRIGLIO, Jacques – Le Corbusier: L’Unité d’habitation de Marseille – The Unité d’Habitation in Marseilles. Paris: Fondation Le Corbusier; Basileia, Boston, Berlin: .. Birkhauser Publishers, 2004.

A propósito do recente cinquentenário da primeira e mais famosa Unité d’Habitation, construída por Le Corbusier em Marselha, a Fondation Le Corbusier e a editora Birkhauser acabam de publicar mais um volume dedicado à obra construída do arquitecto, neste caso, completando uma série dedicada especialmente às questões da habitação. Os anteriores, todos publicados entre 1996 e 2000, debruçavam-se sobre as villas La Roche Jeanneret (1923-25), o loteamento de Pessac (1925-27), a villa Savoye (1928-31) e o imóvel do nº24 da rua Nungesser et Coli (1931-34). Quer pelos muitos temas caros ao Movi-

mento Moderno e particularmente a Le Corbusier, quer pelas motivações críticas presentes na Unité d’Habitation de Marselha, esta monografia ganha um interesse maior dentro do conjunto, uma vez que, embora objecto maior da polémica dos últimos cinquenta anos, o imóvel “appartient désormais au panthéon des grandes architectures mondiales et atteste, si cela était encore nécessaire, de la volonté de Le Corbusier de placer la question du logement au centre des questions de l’architecture et inversement”. (p.6) Neste âmbito, talvez o mais empenhado e original de todos os seus colegas envolvidos na “revolução” da arquitectura moderna, o próprio arquitecto afirmava esta vontade ao escrever, pouco antes da sua morte, estas palavras: “Depuis cinquante années j’étudie le bonhomme ‘Homme’ et sa femme et ses gosses. Une préocupation m’a agité impérativement: introduire dans le foyer le sens du sacré, faire du foyer le temple de la famille.” (cit. p.7) Jacques Sbriglio organiza o volume de forma aliciante. Depois de uma breve introdução justificativa, seguem-se os dois capítulos principais, dedica-

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dos à Unité de Marselha. O primeiro, propõe um percurso de visita, extremamente minucioso ao edifício construído, desde o parque envolvente até ao aproveitamento do terraço-cobertura. Pelo meio, ficam inúmeras referências, quer históricas, quer arquitectónicas, da maior relevância. No primeiro caso está, por exemplo, o facto de que, Marselha, apesar da sua longa história, só na segunda metade do século XX ter visto construir duas das suas mais notáveis obras de urbanismo e arquitectura: a reconstrução da zona do Vieux-Port, que se deve principalmente aos arquitectos Auguste Perret e Fernand Pouillon e a Unité d’habitation de Le Corbusier. É precisamente no imediato pós segunda guerra que se encontram reunidas as condições de vontade e necessidade que permitiram levar a cabo experiências novas no âmbito do alojamento que superassem dificuldades sentidas ao longo de décadas. É neste contexto que surge a proposta de Le Corbusier, com um edifício protótipo de carácter experimental, onde o arquitecto ensaia muitas das suas teorias, forjadas ao longo de mais de vinte anos. Aqui entramos no segundo grupo de referências, de que atrás falámos, que se prendem tanto com os princípios comuns do Movimento Moderno presentes nesta obra como também,

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e sobretudo, com as ideias recorrentes do próprio arquitecto: o abandono do quarteirão tradicional pela escolha de uma implantação que esquece a lógica da rua, permitindo o agenciamento dum parque envolvente, onde encontramos a demonstração do princípio de Le Corbusier que melhor nos ajuda a compreender o seu conceito de Cité Jardin Verticale: “les matériaux de l’urbanisme sont: le soleil, le ciel, les arbres, l’acier, le ciment, dans cet ordre et cette hierarchie” (cit. p.43). Outra referência interessante é a que poderíamos chamar de glorificação do Modulor, insculpido várias vezes no exterior do edifício. Sistema métrico que combina as medidas da secção de ouro com as medidas humanas, a pesquisa do Modulor está completamente concluída precisamente em 1945, no momento em que começam os estudos da Unité de Marselha. Depois de analisar cuidadosamente a lógica do desenho das fachadas e do sistema de pilotis, que suportam o edifício, permitindo a construção de um solo artificial a mais de nove metros do terreno, Sbriglio convida-nos a uma visita ao interior do imóvel, descrevendo todos os seus elementos e chamando a nossa atenção para as inúmeras soluções originais. Destacamos apenas duas que nos parecem mais interessantes: a

aplicação do princípio de ruas interiores, ao nível dos 3º e 4º pisos do edifício e o sistema de articulação dos apar tamentos, pensado para um máximo aproveitamento do espaço (os apartamentos-tipo terão apenas 95m2), mas também para cumprir critérios de optimização na captação da luz ou na multiplicidade de pontos de vista (as loggias com os seus quebra-sóis, a utilização do mezanino, etc.). Finalmente, o aproveitamento do terraço-cobertura que, completando o conjunto de estruturas de uso comum, próprias ao conceito de Unité, traz também soluções arquitectónicas diferentes do corpo do edifício, com uma força plástica evidente, que veremos, logo depois, desenvolvidas magistralmente em Ronchamp. Com ele a Unité faz confrontar dois universos:”l’univers des formes régulières, représenté par la pureté du parallélépipède qui accueille la répétition des appartements transversants, et l’univers des formes libres, représenté par les agencements du rez-de-chaussée et plus particulièrement du toit terrasse: C’est de la complémentarité contradictoire de ces deux univers que naît toute la poesie de ce bâtiment” (p. 110). O segundo capítulo dedicado à obra de Marselha contém igualmente muitos motivos de leitura. Aqui, J.

Sbriglio traça uma história da encomenda, recenseando um considerável conjunto de documentos que, normalmente, é o mais esquecido pelos historiadores da arquitectura. No entanto, parece-nos pertinente que ele se faça para qualquer objecto e, com maioria de razões, quando se trata do edifício em questão. O contexto concreto, político, social e económico em que surge e se leva a cabo um projecto com estas características afigura-se-nos incontornável, por mais que não seja para nos permitir uma correcta perspectiva crítica. Agora ficamos a conhecer a conjuntura municipal e nacional que levou à encomenda, bem como, todas as vicissitudes, projectuais, financeiras, etc., que percorreram o processo de construção, desde a encomenda no verão de 1945 até à sua inauguração em Agosto de 1952. O terceiro capítulo, a que o autor chama “L’après ‘Marseille’, les quatre autres unités d’habitation”, completa o volume fazendo, de forma muito mais sintética, uma visita às outras quatro Unités que, em consequência do projecto de Marselha, saíram do atelier de Le Corbusier: a Unité d’habitation de Rezé (1953-55), de Berlim (1957), de Briey en Forêt (1956-63) e de Firminy (1959-67).Tal como nos dois capítulos anteriores, o texto é acompanhado por um con-

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junto de documentação gráfica de qualidade e, sobretudo, em grande parte original, já que o autor se serve do rico acervo da Fondation Le Corbusier. O que acabamos de dizer é também verdadeiro para a utilização de outro tipo de fontes, bem como para as numerosas citações do próprio arquitecto feitas de documentos menos conhecidos. O volume termina com uma conclusão em forma de balanço a que J. Sbriglio acrescenta em sub-título “La fin d’un monde”. Sem que nunca tenha deixado de aproveitar as boas ocasiões para tecer reflexões críticas, quer estéticas quer históricas, ao longo do texto, o autor faz aqui uma súmula bem conseguida, tendo em conta a crítica mais importante à obra de Le Corbusier e, especialmente, ao conceito de Unité d’habitation, mas não deixando de defender a sua

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opinião. Grande admirador do mestre suíço, prefere lembrar as qualidades inegáveis do arquitecto, a sua coragem de visionário, a sua generosidade ou a sua persistência, e resgatar da precipitação de alguma crítica uma obra fundamental para a arquitectura do século XX. A sua postura é a de um historiador, capaz de afirmar as suas preferências mas sem perder por isso a perspectiva do tempo, aceitando a justeza da crítica, compreendendo as descontinuidades e chamando a nossa atenção para as questões que, no campo da arquitectura e do urbanismo, foram levantadas por Le Corbusier e que continuam a orientar os melhores projectos actuais. E, de facto, para melhor compreendermos essas questões, as Unités são incontornáveis. Maria da Graça Briz

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Xº Colóquio Internacional da Associação Internacional para o Estudo do Mosaico Antigo De 29 de Outubro a 4 de Novembro de 2005 terá lugar em Conímbriga o Xº Colóquio Internacional da Associação Internacional para o Estudo do Mosaico Antigo (AIEMA). Pela primeira vez reunido em Portugal, este Congresso propõe-se continuar, agora entre nós, uma reflexão aprofundada sobre o que foi e o que significou a arte do mosaico em todo o mundo romano, dando lugar a notícias, leituras e projectos de investigação. Nas suas nove edições anteriores, o Colóquio da AIEMA revelou-se como autêntica escola de especialistas que, nas diferentes vertentes de uma manifestação artística tão representativa da cultura e civilização romanas, registaram e trabalharam documentalmente testemunhos da técnica e da arte do opus tessellatum em torno de toda a bacia do Mediterrâneo. Não admira, pois, que em 2005 se pretenda dar destaque ao mosaico na arte ocidental do Império, designadamente na Península Ibérica.

Espera-se uma participação significativa de investigadores portugueses, que têm esta oportunidade para também tornarem mais conhecido internacionalmente o nosso património musivo e testemunhar que, em Portugal, também se estuda no âmbito da História da Arte o mosaico romano, com especialistas capazes de desenvolver significativos projectos de investigação neste campo. Os temas a tratar neste Xº Colóquio serão os seguintes: 1. Arte, oficinas e artistas no mosaico antigo. 2. Cronologia e geografia dos temas no mosaico antigo. 3. O mosaico na pars occidentalis do Império. 4. O mosaico na pars orientalis do Império. 5. O mosaico no período tardo-antigo. 6. O mosaico antigo na Península Ibérica. M. J. Maciel

VIº Encontro Internacional de Estudos Medievais De 6 a 8 de Julho de 2005, vai decorrer na Universidade Estadual de Londrina (Paraná), em parceria com a

a Universidade Estadual de Maringá, o VI Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM), uma actividade bie-

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nal que a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), jovem associação fundada em 1996, se propôs desde início realizar. O dinamismo de seus numerosos associados, verdadeiramente notável, é visível na continuidade destes encontros, sempre em diferentes regiões do País, e na publicação de uma revista – Signum – que vai já no número 6. Os encontros internacionais, resultantes do progressivo interesse que os investigadores brasileiros têm demonstrado pela época medieval, visam a comunicação entre as diversas áreas de estudo medievais, a integra-

ção entre investigadores do Brasil e do estrangeiro e a divulgação das suas pesquisas. Os eixos temáticos do VI Encontro abrangem áreras medievais tão diversificadas como Filosofia, Educação, História, Ciência e Religião, Economia, Arte e Literatura, Filologia e Linguística, e ainda um olhar sobre leituras contemporâneas da medievalidade – cinema, literatura e arte, estando a coordenação a cargo das Professoras Doutoras Angelita Marques Visalli (DHI/UEL) e Terezinha Oliveira (DFE/PPE/UEM). José Custódio Vieira da Silva

Filipe Terzi em Miramar A recente descoberta na Hofbibliothek de Viena de um atlas aguarelado em 1634 para Filipe IV de Espanha, mostrando a voo de pássaro os litorais da Península Ibérica (incluindo Por tugal) em preciosas vistas corográficas do seu recorte costeiro com os portos, fortificações, vilas, cidades, planícies, vales, rios e montanhas, e a imediata publicação numa editorial de luxo (Felipe Pereda e Fernando Marías, eds., El Atlas del Rey Planeta, Nerea, 2002) trouxeram alguns dados novos e inesperados.

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Além disso, mais uma obra da prolífica família de cartógrafos portugueses Teixeira Albernaz, pois é da autoria de Pedro Teixeira, que foi cedo para Espanha e lá ficou (nasc. c. 1595, já em 1618 acompanhava o irmão mais velho, João, numa expedição ao estreito de Magalhães e servia na armada espanhola como desenhador), mais conhecido como o autor da célebre planta de Madrid Mantua Carpetanorum (1656), que os espanhóis insistem em designar por “Pedro Tejera”, ignorando os seus vínculos

com a escola lusitana. De facto, na Restauração preferiu continuar ao serviço dos Áustrias, sendo já o braço direito do Conde-Duque de Olivares e auferindo um bom salário. O livro agora revelado, que lhe tomou 12 anos de trabalho, consta de um álbum de 90 folhas iluminadas com as vistas cavaleiras desde Fuenterrabía até Rosas, no Rossilhão, sob o título Descripción de España y de las costas y puertos de sus reinos – de que 16 folhas cabem a Portugal e 5 ao Algarve –, acompanhado de um texto à parte: um pequeno volume in 8º que deve ter servido de preparatório à versão final (nunca feita) e que se conserva hoje na Biblioteca da Universidade de Upsala, também publicado por Marías e Pereda. É aí que se lê (fl.47), ao comentar o trecho da barra do Douro ao porto de Aveiro, que a costa é uma extensa praia de areia onde podem desembarcar lanchas e até naus com segurança. Dos léguas junto a u arroyo está una peña que dizen piedra de la Soreira adonde se yntentó azer un fuerte, y para ello mandó el catolico rey don Felipe II a Felipe Terçio, yngeniero, y por entonces no tuuo efecto, para la seguridad delas dichas plaias y surgideros que junto a esta peñas están, donde bienen munchos piratas y azen agua, dando fondo sin temor que les ofendan. [...] Adelante desta dicha

piedra se estiende una larga plaia al mediodía toda de arena, donde no se puede dezenbarcar por la mucha resaca que la mar ase en ella, por espaço de nuebe leguas asta la barra del río Vouga (fl.47vº). A pedra não aparece no desenho, mas a explicação é clara. Teixeira refere-se ao troço costeiro entre a praia de Lavadores (Gaia) e as dunas de São Jacinto, ignorando entre elas a Aguda, Espinho, Esmoriz e Ovar. Sinal de que os levantamentos hidrográficos que fez não foram tão exaustivos e cuidadosos como refere, mas sinal também de que o cartógrafo, historiador como diz que também era, escutou as populações locais e registou lembranças já com mais de quarto de século. A ameaça da pirataria moura era, de facto, o flagelo desses anos, adiante refere que em 1626 Buarcos foi saqueada pelos berberiscos brutalmente, voltando ao mar carregados de escravos (fl.48vº). A “Pedra da Soreira” é o bem conhecido penedo que se ergue na praia de Miramar (como foi baptizada no século XIX), à beira-mar, encimada pela capela de romaria do Senhor da Pedra, em Francelos (Gulpilhares). O culto, de origem pré-histórica, é talvez a razão pela qual não foi destruída para dar lugar a uma fortaleza em fins do século XVI: fica-nos, porém, a

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certeza de que Filipe Terzi foi lá enviado por Filipe II com esse intuito. Ignoramos a data, mas o mais provável é ter sido durante a longa estadia em Coimbra em 1585 para estudar o problema do assoreamento do Mondego e sua ponte; e que, para o projecto e na povoação mais próxima, a vila de Aveiro. Ora, de 1585 data um documento que Marques Gomes publicou em 1875 mas cujo original desapareceu – o que tem levado os estudiosos a duvidarem da sua veracidade – pelo qual são pagos em Aveiro a Filipe Terzi sete dias de trabalho pelo desenho que fez para a

igreja da Misericórdia dessa vila. É curioso como a sua ida à Soreira impressionou de tal modo a população da zona que meio século depois ainda era relatada ao cartógrafo Teixeira Albernaz. Assim, a referência deste em 1632 não só prova que o engenheiro-mor por lá trabalhou algum tempo no plano, não realizado, de um forte no Senhor da Pedra, como aumenta fortemente a probabilidade de ser de facto ele o autor do projecto da Misericórdia de Aveiro durante a sua permanência aí para os estudos na actual praia de Miramar. Rafael Moreira

Comemorações do centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) foi uma figura axial da cultura portuguesa de finais do século XIX. Pertencendo à geração ilustre dos artistas fundadores do naturalismo pictórico (retratados pelo seu irmão, Columbano Bordalo Pinheiro, no célebre quadro O Grupo do Leão de 1885, hoje pertencente ao Museu do Chiado), especializou-se, desde a juventude, na caricatura e na ilustração, de acordo com uma das áreas mais estimulantes da arte europeia do tempo que Daumier genialmente representou.

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De acordo com esta realidade, Rafael utilizou o desenho sobretudo como arma de arremesso contra a política e os políticos seus contemporâneos. Por isso, foi artista-jornalista, responsável por extraordinárias revistas como A Lanterna Mágica, O António Maria ou Pontos nos iis, para citarmos apenas as que mais se destacam na sua obra magna. Com a colaboração de escritores como Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida e, sobretudo, Guilherme Azevedo, elaborou uma contra-história sistemática do constitucionalismo monárquico português

que, hoje, nenhum historiador desta época pode ignorar. Mas não só da história política se ocupou Rafael: homem de tertúlias e grande amante das artes, empenhou-se na crítica teatral e musical, destacou o percurso dos principais escritores e pintores, portugueses e, às vezes, estrangeiros, nomeadamente brasileiros. Por isso, as suas revistas são uma das realizações maiores de um período excepcionalmente brilhante, consequência da liberdade de expressão que, apesar de muitos constrangimentos, existia e era orgulhosamente reivindicada. Registe-se ainda que, em 12 de Junho de 1875, nas páginas de A Lanterna Mágica, Rafael fez nascer a figura do Zé Povinho, camponês boçal, ignorante e esperto que, representando a pátria e o povo, suportava, com resignação, o peso do Estado, dos grupos dominantes e do atraso nacional. Criação contextualizada na cultura ocidental do tempo, permanentemente preocupada com a questão nacionalista, o Zé Povinho mantém, no entanto, uma actualidade perturbante, tanto mais que, nas inúmeras figurações rafaelianas, algumas vezes, ameaça erguer-se, no corpo da Revolução, e, outras vezes, parece querer aburguesar-se. Outro aspecto da herança de Rafael respeita à sua aventura de industrial cerâmico, criando e dirigindo

a sua fábrica das Caldas da Rainha. O objectivo era ambicioso, bem situado nas questões do nascente patrimonialismo oitocentista: valorizar um artesanato regional, utilizando os seus recursos e memórias, e, simultaneamentem, renová-lo como Arts and Crafts, através dos temas e das formas que se abrem ao historicismos estilísticos e à constelação múltipla da Arte Nova, assumida, no entanto, como saboroso casticismo. Os estudos sobre Rafael Bordalo Pinheiro são relativamente vastos e de qualidade desigual, todos referenciados pela obra magna de JoséAugusto França (Bertrand, 1980) cuja reedição agora se anuncia e saúda. Comemorações a destacar são também as obras que estão prestes a iniciar-se no velho e modestíssimo museu que lhe é dedicado, pertencente à Câmara Municipal de Lisboa. O objectivo é que o Museu reabra ainda em 2005, arejado, cómodo e estimulante, valorizando o seu excepcional espólio gráfico com meios museológicos actuais. No mesmo âmbito, estão a ser preparados o roteiro do museu, uma exposição itinerante e um filme sobre a obra e seu contexto internacional. Anuncia-se também um espaço de exposições temporárias, anexo ao museu, a inaugurar com uma exposição de artistas contemporâneos a que o comissário

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João Pinharanda dá o título “Contrato Social”, mimando as referências ideológicas do liberalismo oitocentista, a que Rafael foi tão fiel, e o próprio

estatuto do artista que ele entendeu como figura de provocação e inquietação. Raquel Henriques da Silva

Duzentos e cinquenta anos depois do Terramoto Um das efemeridades mais férteis deste ano de 2005 diz respeito às comemorações do Terramoto de 1755 que, como se sabe, na manhã de 1 de Novembro, destruiu grande parte de Lisboa e causou danos em muitas outras cidades e vilas, particularmente na região envolvente da capital e no Algarve. Não sendo possível, nesta breve notícia, registar a abundante bibliografia que já está a ser editada sobre o dramático evento, nem os vários congressos que irão decorrer, quase todos por iniciativa académica, prefiro destacar uma coincidência que, com optimismo, pode considerar-se promissora: por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e com o indispensável acordo da Comissão Portuguesa da UNESCO, está a ser preparada a candidatura da Baixa a Património da Humanidade.Trata-se de uma candidatura viável, considerando que a cidade, reconstruída segundo o designado Plano Pombalino (na verdade delineado por Eugénio dos Santos, sob a definição conceptual de Manuel da Maia), rompe e transfigura a imagem de

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Lisboa, adequando-se a uma excepcional modernidade técnica e urbanística, devedora da tradição urbanística portuguesa que vinha a ser exercitada em todo o Império, particularmente no Brasil. Há, no entanto, muitas questões a acautelar, relacionadas com o grave estado patrimonial dessa zona da cidade que vem sofrendo dos problemas de todos os centros históricos: desertificação, circulação excessiva durante o dia, desadequação do comércio, excesso de tercialização, envelhecimento das infraestruturas. Por isso, a Candidatura referida deve ser encarada sobretudo como oportunidade para reinventar a Baixa como lugar significante de Lisboa, mantendo a sua indispensável memória, mas, simultaneamente, abrindo-a à possibilidade de vida contemporânea.A resposta positiva a este desafio será a comemoração mais produtiva do grande terramoto, homenageando quem a delineou e edificou com a rara grandeza que hoje ainda usamos e que sempre nos comove. Raquel Henriques da Silva



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