Revista de História da Arte
Cidades Portuguesas Património da Humanidade
Edições Colibri
• Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa
Agradecemos a todas as individualidades e institutições que nos cederam os direitos de uso de imagens, nomeadamente Gonçalo Byrne, José Pessôa,Theodor Hauschild Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora Arquivo Distrital de Évora da Câmara Municipal de Évora Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo Instituto Geográfico Português Museu Nacional de Arte Antiga
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ÍNDICE Editorial ...............................................................................................................................................
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Portugal, Cidade e Arquitectura Alexandre Alves Costa ..............................................................................................................
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Entrevista ao Professor Theodor Hauschild conduzida por M. Justino Maciel .......................................................................................... 24 Do Topos Clássico à Paisagem Cultural: Sintra e a sua envolvência na Antiguidade M. Justino Maciel ............................................................................................................................ 29 “O último Porto de Ulisses”: história, urbanismo e arte de Felicitas Iulia Olisipo Maria Teresa Caetano ................................................................................................................. 55 Évora Romana: O legado edificado e a memória antiga Manuel F.S. Patrocínio ................................................................................................................. 119 Uma primeira proposta de reconstituição arquitectónica do Mosteiro Cisterciense de S. João de Tarouca Luís Sebastian, Ana Sampaio e Castro .............................................................................. 143 Entrevista/Conversa com José Simões Belmont Pessoa. conduzida por Renata M. Araújo ......................................................................................... 172 Mazagão: A última praça Portuguesa no Norte de África Jorge Correia ................................................................................................................................... 185 Angra do Heroísmo no quadro das “Cidades de Paisagem” Portuguesas Medievo-renascentistas José Manuel Fernandes .............................................................................................................. 213 Cidades Brasileiras património da humanidade: a reivindicação da herança urbana do Brasil Renata Malcher de Araujo ....................................................................................................... 233 Guimarães – da fundação a património da Humanidade José Ferrão Afonso ....................................................................................................................... 247 O Passado é uma Cidade Ideal: um olhar sobre a patrimonização de Évora Paulo Simões Rodrigues ............................................................................................................ 271 Entrevista ao Arquitecto Gonçalo Byrne conduzida por Elisabeth Évora Nunes e Luísa França Luzio ............................... 297 A candidatura da Baixa Pombalina a património da humanidade Raquel Henriques Silva .............................................................................................................. 309 Recensões Críticas ........................................................................................................................ 321 Varia ...................................................................................................................................................... 333
EDITORIAL Cidades Portuguesas Património da Humanidade foi o tema do X Curso Livre de História da Arte, promovido pelo IHA em 2006 e, de acordo com a linha programática da Revista de História da Arte, constitui o cerne do seu nº4. A escolha visou, em primeiro lugar, homenagear a histórica decisão da UNESCO que, há trinta anos, iniciou a classificação como «Património da Humanidade» de monumentos, cidades, sítios e paisagens do mundo inteiro, tanto pela sua relevância artística e cultural, como pelos riscos de conservação que, infelizmente, continuam frequentemente a existir. Não é este o momento de reflectir sobre a galopante dimensão que esta linha classificatória adquiriu, utilizada como estratégia política de países e pelas indústrias do turismo de massas. Preferimos deter-nos nos reconhecidos aspectos positivos que essa classificação possui, estimulando o aprofundamento de estudos e impondo planos de conservação e valorização que, nos melhores casos, estimulam também o estudo e o debate. No caso português, o complexo imenso de questões envolvidas no conceito de cidade, ou de paisagem humanizada, constitui um dos campos mais reconhecidos e originais das nossas heranças artísticas, em que se incluem o urbanismo e a arquitectura. Justificada a escolha do tema do nosso X Curso Livre e deste número da Revista, interessa referir que considerámos, no elenco dos casos a tratar, cidades que não são portuguesas mas tiveram origem e história portuguesa, definidoras das suas particularidades mas também da sua participação num conceito amplo de «cidade portuguesa». Esta questão aliciante, que tem defensores entusiastas tanto em Portugal como no Brasil, é brilhantemente cerzida por Alexandre Alves Costa e retomada, com contextos específicos e reconhecidas marcas autorais, por Jorge Correia, em relação a Mazagão, José Manuel Fernandes, a partir de Angra do Heroísmo e Renata Araújo, que longamente tem estudado o tema das cidades brasileiras de fundação setecentista. Por impossibilidade dos autores, não pudemos dispor dos textos das conferências de Paulo Varela Gomes sobre Goa, de Manuel Vicente sobre Macau e de Walter Rossa que, na última sessão do Curso, retomou o tema de partida, sobre as particularidades de um urbanismo
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português que, possuindo indiscutíveis marcas medievais, alcançou a sua definição com os contributos eruditos da engenharia e da arquitectura militar dos séculos XVII e XVIII, confrontados e enriquecidos com a diversidade de situações concretas e sobre uma espécie de matriz empírica de relacionamento eficaz com a paisagem. Além das situações exógenas ao território continental já referidas, Sintra foi tratada, como paisagem e história, por Justino Maciel, o mesmo acontecendo com Lisboa romana (Teresa Caetano) e Évora, na dimensão da fundação romana (Manuel Patrocínio) e na vivência dos círculos históricos posteriores (Paulo S. Rodrigues); não tendo sido possível contar com o texto de Domingos Tavares sobre o Porto e sinalizando a intenção da candidatura da Baixa de Lisboa, resta referir Guimarães que continua a ser um caso de rara qualidade no património urbano-arquitectónico português, confirmando que as classificações de «património da humanidade» podem estimular as decisões e as realizações, se umas e outras tiverem âncora firme nas comunidades envolvidas e nas estratégias políticas municipais. Além dos artigos da Varia – nomeadamente o estudo, de José Custódio Vieira da Silva sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória – três entrevistas enriquecem a reflexão sobre o tema da cidade, dando a fala a Theodor Hauschild, notável impulsionador da arqueologia contemporânea em Évora; a Gonçalo Byrne, reflectindo sobre o tema da Revista, para se deter na Torre de Controle do Tráfego do Porto de Lisboa, em Algés, que já se tornou novo ícone da imagem da capital; finalmente a José Pessôa, reconhecido especialista em restauro e conservação de monumentos e sítios, sobretudo no Brasil, sua pátria, mas também em diálogo permanente com o mundo hispano-americano e, cada vez mais, com Portugal. Aos autores citados, há que acrescentar Luís Sebastian com o seu estudo sobre o Mosteiro de S. João de Tarouca; Helena Gonçalves Pinto e Jorge Mandorrinha sobre as Caldas da Rainha; Luísa Luzio e Elisabete Évora Nunes que entrevistaram G. Byrne; Ana Lemos, Hugo Xavier e Ana Duarte Rodrigues, que assinam recensões críticas e notícias. Sem a sua generosa contribuição gratuita – bem como a das instituições que nos cederam as imagens - não seria possível manter este projecto que visa afirmar o Instituto de História da Arte da FCSH e, através dele, a História da Arte Portuguesa, na sua dupla vertente de investigação e de entrosamento com a cidade. Metaforicamente, ela é o lugar de constituição da História e dos discursos sobre ela.
A Direcção do Instituto de História da Arte
Editorial
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Palavras-chave: Arquitectura portuguesa; cidades portuguesas; Arquitectura como construção; continuidade cultural; arquitectura colonial
Key words: Portuguese architecture; Portuguese cities; Architecture seen as building; cultural legacy; colonial architecture
RESUMO ABSTRACT This article is a work in progress, a matrix that is added to, corrected and changed over time. Its purpose is to identify the distinctive values of Portuguese architecture and urbanism wherever they were built. As a preliminary synthesis, it can be said that Portuguese architecture is, most of all, construction, space that supports action whose significance does not contaminate the drawing.
Este artigo é uma palestra aberta, em processo de construção – uma matriz que vai sendo acrescentada, corrigida, alterada. O seu tema é indagar os valores distintivos da nossa arquitectura e das nossas cidades, seja qual for o lugar que lhes tenha dado a terra. Mas podemos avançar, como síntese analítica, que a arquitectura portuguesa é sobretudo construção, espaço de suporte para acção, cujo significado não contamina o desenho.
PORTUGAL, CIDADE E ARQUITECTURA Alexandre Alves Costa*
Esta, é uma palestra aberta, em processo de construção – uma matriz que vai sendo acrescentada, corrigida, alterada. É um discuro interrogativo e inacabado. Contém citações referênciadas e outras não, de notáveis historiadores da arquitectura e da cidade, como Horta Correia, Rafael Moreira e Renata Malcher, entre outros. Cita, ainda, os meus ex-doutorandos Josemary Ferrare e Jorge Correia. Repete parcelas de outros textos meus. Não se trata aqui da cidade contemporânea – seria um outro registo que eu também persigo, como militante na construção do futuro. Por isso me sinto como um homem do século XIX, porque é ao passado e no passado – mas por causa do presente que, com tanta mentira caminha ao nosso lado – que, como Garrett, dirijo a interrogação: que ser é o meu se a pátria a que pertenço não está segura de possuir o seu? Como a Sofia que tem a memória longínqua de uma pátria eterna mas perdida e não sabemos se é passado ou futuro onde a perdemos. De facto, para mim, a matéria mediadora entre a consciência individual e o mundo é constituída pela situação nacional e nela e através dela, pelo sentido do ser português. A consciência da nossa fragilidade histórica, hoje como no século XIX, projecta os seus fantasmas simultaneamente para o passado e para o futuro. O drama de Garrett, que me apetece assumir, é o de Portugal como povo que só já tem ser imaginário ou mesmo fantasmático – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na história, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos, como nos disse Eduardo Lourenço. Este texto, para ser ouvido, é uma espécie de olhar, mais apaixonado do que científico, mais curioso do que rigoroso, sobretudo erótico, por manifestar um claro desejo de realização. Por isso, usarei imagens com abundância, as * Profº Doutor, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Portugal
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imagens que, mais do que provas se transformaram em objecto amoroso. Reconheço que têm sido outros, historiadores e arquitectos historiadores da arquitectura e da cidade que tem acrescentado ao meu saber, diria natural, uma enorme soma de elementos, para dizer verdade, talvez, mesmo os únicos de natureza científica. O seu discurso, por mim assimilado, faz, naturalmente, parte do meu, cuja cientificidade e espontaneidade se deve, assim, ao seu saber e ao meu olhar particular. As minhas características pessoais são, de facto, mais de um coleccionador de emoções que a arquitectura me proporciona e, na circunstância da emoção, escrevo com o nexo do momento, nunca igual ao de outro qualquer momento e, por isso, tudo no conjunto é um imenso desconjunto, impressivo, espontâneo, não académico, sem notas de pé de página, sem erudição convergente ou dirigida. Assim vou falando ou escrevendo como quem improvisa sobre o que já sabe, não buscando uma racionalidade estrita nas abordagens, nem uma coerência estilística na linguagem. Pelo contrário, misturo conscientemente e sem hierarquia, objectivo e subjectivo, memória e vivência, descrição e invenção, prosa e poesia, em narrativa comunicada em discurso verbal. Tenho é viajado por um imenso Portugal, o que fala a minha língua, e tenho tentado afirmar uma especificidade para a arquitectura portuguesa, incluindo a de fora do nosso país, recusando julgá-la em função dos modelos culturais pressupostos, normalmente, pela grande cultura europeia. Por isso, não tenho aplicado, senão por facilidade de linguagem, as divisões tradicionais da história da arquitectura pelos grandes estilos – românico, gótico, renascimento, maneirismo, etc. – que tem sido tão bloqueadores na compreensão da nossa realidade. Prefiro usar os nomes e cognomes dos nossos reis! Resumindo, tenho afirmado o que toda a gente sabe: existem valores distintivos na nossa arquitectura e nas nossas cidades, seja qual for o lugar que lhes tenha dado terra. Por outro lado, cada vez acredito menos nas grandes sínteses interpretativas ou justificativas, apenas válidas para arcos temporais ou territoriais de grande escala: a cidade ocidental, a cidade islâmica, a cidade hindu ou chinesa e, mesmo assim, com tantos cruzamentos que tudo acaba contaminado, excepto os modelos teóricos que construímos: é como a distância entre a cidade ideal do néo-platonismo renascentista e Mazagão. As aplicações ou as emanações são sempre imperfeitas e parciais.
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O que é certo é que os macedónios e os romanos transportavam modelos claros e opostos. Enquanto uns tentavam um acordo harmónico com a natureza, os outros construíam um mundo artificial e encerrado, um mundo dentro do mundo. Uns, gregos, última civilização primitiva, como lhe chama Norberg Schulz, em complementaridade com a natureza, os outros, romanos e todos nós ocidentais, durante séculos, em oposição à natureza natural que incluía os outros homens, silvestres e recém-criados, ainda cor de barro, ainda nus e deslumbrados, como escreve a Sofia. Portugal, digo eu, nasceu e desejou crescer grego, mas o destino que ele próprio para si destinou obrigou-o a ser romano. Castela, os mouros, os africanos ou os índios, tantos inimigos para além do medo de nós próprios! Há meses, nas alturas de Machu Picchu lembrei-me de Portugal. Foi a beleza e a força da paisagem escolhida para ser lugar e a necessidade de imposição da razão para que a humanidade não se perca, se defenda e continue a aprofundar o projecto do Homem. Será que os portugueses perseguiram a síntese, que o modernismo tentou, definitivamente, destruir – a síntese entre razão e sentimento? A unicidade do ser, como dizia Marcuse entre as barricadas de Maio de 68? Depois havia que cumprir o mar. E o mar foi elemento a transpor nesta aventura para a descoberta do desconhecido – a viagem ou o tempo da sua duração, sempre sentido como tempo de ausência.Transportamos na bagagem aquilo que julgámos abandonar. Mas diferente era a nova realidade descoberta, com trabalhos, dor e saudades da terra que se deseja imutável, porto seguro do regresso, eternamente igual a si própria. Por isso a viagem não trouxe inovação, trouxe desejo de paragem, reacendeu memórias de confortos caseiros, dos cheiros do fumeiro, dos gostos familiares, com mulheres dóceis fiando enquanto apascentam ovelhas na bucólica reinventada paisagem da infância. A viagem sangrou a nação para a construir fora, através dos sinais que os arquitectos inventaram para a identificar. Viajamos, mas, de facto, não aprendemos a nomear o mundo e, por isso, tentamos sempre reconstruir a cidade, a nossa, agora juntamente com os outros homens que fomos encontrando nas paisagens brumosas. E assim, entre a impossível unicidade e a profunda saudade, vou-me perguntando, com vontade afirmativa: será que Portugal, à força de misturar raças e mentalidades, de confundir dois ou três becos sem saída, acabará por
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esboçar uma síntese original, um passo, um sopro de ar fresco e por abrir caminho a outras razões? Uma coisa é certa, nascemos e crescemos hesitantes, nunca resolvidas as contradições que fomos marcando, talvez contra o que queríamos, como verdades diferentes. Portugal vai-se compondo em oposições permanentes: autoridade e permissividade, projecto e espontaneidade, centralismo e regionalismo, nacionalismo e internacionalismo, aventura radical e conservadorismo estagnante, experiencialismo e escolástica, razão e sentimento. O sim e o não, como dizia a Sandra Alvim. Mais ainda, e sem pôr de parte a existência de factores de unificação que permitem considerar o território e a história nacional como um todo, devemos ter presente que existem sistemas de relacionamento, estruturas sociais e económicas e esquemas culturais diferentes que, normalmente, se podem articular em dois grandes grupos, situados em áreas geográficas distintas – o Norte e o Sul. Podemos, assim, com José Mattoso, considerar como uma das características peculiares da nossa história a maneira como os dois territórios agiram um sobre o outro, se completaram ou opuseram, imprimindo-lhe uma dinâmica própria que se deve considerar constitutiva da especificidade nacional. Os grandes movimentos históricos confirmam as diferenças: no Sul, estabelecimento de povos mediterrânicos – maior densidade de ocupação romana, ocupação bizantina e longo domínio islâmico; no Norte e Centro, estabelecimento de povos do Norte atlântico e centro europeu – celtas, suevos e visigodos. Pode-se, portanto, perguntar, com toda a legitimidade, se um conjunto de diversidades desembocaram em intercâmbio recíproco ou até que ponto se realizaram verdadeiras sínteses que definam uma cultura nacional aproximadamente comum a todo o território. Tenho tentado responder a esta problemática para a arquitectura e defendido algumas hipóteses interpretativas que tenho comprovado, mais pela quase empírica leitura de visitas e viagens do que com profundos, rigorosos e científicos estudos, para os quais não tenho grande motivação. Fernando Pessoa escreveu: Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez. E, olhando, nesse momento, terras brasileiras exclamei: felizmente! Não faltou foi cumprir-se Portugal! Julgo que alguma coisa floresceu do que foi semeado no meio da dor e da injustiça.
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Com esta certeza nos olhos, avancei pelo mundo, desbravando terreno e fui encontrando pacificamente o Portugal não realizado, logo na arquitectura açoriana, depois na arquitectura e nas cidades coloniais que me pareceram um reflexo radical da especificidade nacional, numa selecção criteriosa dos seus elementos mais característicos. Na tentativa de desvendar a especificidade desta enigmática família, tão diferente e tão igual, da arquitectura e da cidade portuguesas encontrei-me com um facto histórico elucidativo que aproveito para contar. No “Regimento a Pêro Vaaz que vay a Alcácer fazer as obras d’Alcacer”, de 22 de Junho de 1502 escreve-se: E no cabo della se façam dous cubellos redondos que subam sobre ha altura do muro da dita coyraça quatro palmos os quaes cubellos seram vaaos e teera cada hum de vaao em larguo quimze palmos... ao pee dos ditos cubellos mandamos fazer senhos talhamares de pedraria dereitos cotra ho mar d’altura de dez palmos pouco mais ou menos... O documento aponta, ainda, a continuação do corregimento dos muros da vila caso sobrasse algum dinheiro da empreitada da couraça. Sim, é verdade que este pobre país se vai fazendo, caso sobre algum dinheiro e de acordo com a possibilidade de cumprir mais ou menos os seus projectos. E isto fundamenta hábitos de senso e adaptabilidade, diria, estrutura uma cultura que não abandona nunca a sua permanente presunção retórica, diria chapliniana. Atente-se a exclamação de D. Sebastião, nas vésperas do desastre de Alcácer Kibir, à vista de Tanger, onde padeceu o Infante Santo: Vós deveis pensar que tenho muito medo dos mouros, pois fizesteis este castelo tão forte! Assim, da nossa arquitectura, aprendida no acto de construir, souberam os nossos mestres pedreiros, de pais para filhos, copiando, inovando, respeitosamente. De facto, os critérios da arquitectura portuguesa não são tanto os da coerência mas, sobretudo, os da eficiência e, por isso, muito ligados ao imediatismo da técnica produtiva. Conferindo um crédito quase total ao senso comum, faz dele critério latente de verdade, julgado patente na leitura da tradição. A arquitectura portuguesa é sobretudo construção, espaço de suporte para acção, cujo significado não contamina o desenho. Apura-se simplificando-
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se, comunica, antes de mais pela decoração que não interfere nos valores estruturais e, mesmo quando aspira a um espaço mais emotivo e dinâmico, como no barroco, contém-se dentro de uma volumetria que não ousa romper com a simplicidade de uma geometria de volumes puros. Por necessidade de afirmação, de domínio ou marca territorial, trabalha a escala e é na dimensão e na implantação que assume, como objecto na paisagem construída ou natural, os seus mais expressivos valores formais. E assim se transforma de arquitectura em elemento de composição urbana, salientando, na racionalidade e uniformidade da arquitectura civil, a natureza do edifício singular. Da experiência de construir, conhecidos os modelos, nasce o saber, sem grande teoria de suporte que se transmite empiricamente. Afastado o modelo, procura-se, sobretudo, a eficácia, no caso a caso das circunstâncias. Dessa capacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de natureza formal ou estilística, nasce a sua variedade, a sua espontaneidade e o seu eclectismo que nunca lhe retiram um genérico carácter de família que nos permite a sua permanente identificação. Houve, evidentemente, um claro desejo de fixação no território ultramarino de formas culturais decididamente presas ao mais sólido e perene da nossa tradição, levando as suas implicações ao extremo das possibilidades expressivas. São os modelos mais depurados, elaborados em Portugal durante o século XVI, que são transpostos literalmente, não só como consequência da inexistência de arquitectos residentes com capacidade inovadora ou integradora de novas formas eruditas da arquitectura internacional, mas, sobretudo, por razões de ordem simbólica de representação do poder. O poder, e sobretudo o colonial, não pode dar de si próprio uma imagem frágil ou hesitante, o seu exercício passa pela construção de uma síntese que o represente de forma unitária. Por isso, tenho defendido a hipótese de que a arquitectura portuguesa, contraditória e ecléctica, nos sobressaltos de uma história cheia de vicissitudes e num país dividido por valores culturais dificilmente unificáveis, encontrou nos territórios coloniais uma imagem clara que não só sintetiza, como aprofunda, as suas tendências estruturais, constitutivas de uma hipotética especificidade. E a cidade, será que há uma cidade portuguesa, pelo menos até aos fenómenos de crescimento e sub urbanização pós-industrial? Em tempos escrevi:
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O urbanismo português caracteriza-se, sobretudo, pela inteligência do lugar, da escolha ao desenho, numa compatibilização única de organicidade e de racionalidade, do entendimento da paisagem e da funcionalidade urbana. Nos diversos territórios de ocupação portuguesa, encontram-se claras expressões do que, desde a Idade Média, caracteriza a morfologia das nossas cidades que se nos oferecem como organismos espontâneos, sendo, muitos deles, gestos de uma vontade forte, executados por mãos de uma grande humanidade. Parece tudo dito e de facto está. Falta saber como e porquê. Tenho procurado aproximar os processos de produção da arquitectura portuguesa dos da cidade, buscando-lhes a mesma origem e os mesmos pressupostos. Se é assim na arquitectura, porque não na cidade, feita nas mesmas condições sociais, políticas e económicas, sobretudo porque a arquitectura doméstica ou o desenho da cidade são mais facilmente encarados com o pragmatismo do serviço e da técnica tomados com neutralidade? Nesta leitura de continuidade que farei não podemos deixar de estudar a riqueza e a diversidade do urbanismo português na Idade Média e na sua saída, para podermos entender o que foi feito fora dos condicionalismos da metrópole, nas cidades ocupadas do Norte de África, nas cidades coloniais criadas ex-novo e, depois, como essa experiência se sintetiza no esplendor das criações pombalinas. Num discurso clássico sobre a cidade portuguesa, deveria lembrar, sobretudo, e vou fazê-lo mais tarde, as cidades medievais de fundação, como, entre outras,Viana do Castelo, Caminha, Monsaraz e, posteriormente,Tomar. Mas, antes de entrar na linearidade do discurso oficial, apetece-me fazer algumas considerações de ordem geral que espero venham a acentuar a complexidade do tema e a redução a que tem estado sujeito. Dizia Carlos Nelson, arquitecto e amigo brasileiro: Durante muito tempo nossos explicadores de fenómenos de urbanização acreditaram no espontaneismo, à diferença dos nossos irmãos hispano-americanos que tiveram cidades certinhas, rectilíneas das ordenações reais, as nossas surgiram e se desenvolveram ao deus-dará. Hoje muitos autores sérios duvidam disso. Os portugueses trouxeram regras claras... no que diferiam foi na escolha dos sítios... Rio e Salvador são para ninguém botar defeito em matéria de bom aproveitamento de um suporte físico completo.
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Mais recentemente, na ocasião do “honoris causa”, pela Universidade do Porto, concedido ao anterior Presidente da República do Brasil, este declarava que o caos urbanístico de S. Paulo era, ainda, um efeito longínquo da colonização. A universidade baixou os olhos envergonhada e só mesmo eu tive vontade de o insultar, irritado como estava com as leituras recentes de Buarque de Holanda. Este parêntesis para vos chamar a atenção de um complexo generalizado que existe na nossa historiografia em relação às cidades coloniais de quadrícula perfeita das américas de língua castelhana. O mais que conseguiram os nossos esforçados e patriotas historiadores foi reconhecer a existência de uma malha urbana tendencialmente regular, até ao descanso das nossas consciências que foi o Marquês de Pombal. E com isto esquecemos um facto e não aprofundamos outros. Esquecemos que na América as cidades regulares são uma minoria e que há muitas outras, de origens muito diversas, a provocar morfologias também muito diversas. E assim, preocupados com a linhagem regular das nossas, abandonamos as outras, sejam as de origem romana, os burgos medievais, os desenvolvimentos espontâneos para referirmos, apenas, as cidades projectadas, sendo evidente, no entanto, que é a partir destas e da sua racionalidade que se constroem todas as futuras cidades programadas centralmente e todos os desenvolvimentos modernos. Constituem assim modelos objectivos, mantendo-se os subjectivos no limbo do nosso subconsciente ou no purgatório da nossa ignorância. Nunca devemos esquecer que há motivos distintos para a cidade aparecer e se desenvolver e agentes que, nem sempre, são ordenanças do poder político central. Lembro, a título de exemplo, que podem aparecer núcleos urbanos a partir de uma colonização/evangelização de uma qualquer ordem religiosa e que entre jesuítas e franciscanos existem visões bem diferentes do que é ajuntar pessoas, ou até índios, para que eles salvem as almas, produzindo bens… atente-se Santa Catarina ou Madalena do Sumaúma. E que dizer de um cruzamento de caminhos onde um qualquer cidadão de visão empresarial instala uma estalagem ou uma muda de bestas? Como em Ponte do Lima onde a dignidade da muralha foi posterior e graça real a apertar um amontoado de casinhas que encontravam a sua razão, agora perdida, no desenho das vias implantadas, como deve ser, de acordo com a topografia. Reencontremos o fio da meada do discurso oficial, sabendo agora de que subgrupo de cidades se trata, para não corrermos os riscos de generalizações apressadas.
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Ainda na Idade Média, parece possível falar numa rede urbana tendencialmente regular, sem a obsessão do ângulo recto nem da geometria abstracta, mas com a necessidade prática e mesmo o gosto de abrir ruas tanto quanto possível paralelas, adaptando-se ao relevo do terreno ou à salvaguarda de algumas preexistências. Quem traçava estas vilas programáticas? Certamente mestres pedreiros, pelo sistema simples de cordeação, directamente no terreno, com a demarcação dos lotes por marcos ou postes. O avanço da expansão acompanha o da racionalidade e impõe o domínio da linha recta. A noção de regularidade progride como sinal ideológico do espírito moderno Na própria capital do reino, começa a surgir junto à muralha que a cingia a poente, no sítio de S. Roque, uma nova urbanização em que era utilizada uma malha reticular, não uniforme. Foi este espírito geométrico, combinado com um eficiente pragmatismo, que levou os portugueses a fundar ou reformular cidades como Angra do Heroísmo, onde entre dois eixos principais – Rua de Lisboa e Rua da Sé – se estrutura uma malha ortogonal. O crescimento para além da muralha de cidades como Viana ou Caminha e o estabelecimento à sua porta da nova Praça Moderna, com a Misericórdia e os Paços do Concelho significa, normalmente, que, da cidade medieval ordenada geometricamente, passamos a um espaço que ganha a forma que pode, baseado na sua anterior conformação desenhada pelo cadastro e pelo uso livre do mercado. Daqui parte a cidade moderna, assim, menos regular do que a antecedente. Em rigor, não se pode falar num urbanismo renascentista. Os processos tradicionais vão absorvendo e assimilando as novidades do Renascimento italiano. A praça, mais do que a catedral, o castelo ou a muralha é, agora, o novo e principal símbolo da vida urbana e é a sua dignificação como espaço público a aspiração principal, paralelamente à renovação urbana que se processa dentro das muralhas, com expressivo e cuidadoso tratamento das fachadas. Daí a evidência da utilização da Praça como elemento programático, estruturador da malha urbana das novas cidades. E tudo o que se faz a seguir parece na sequência natural das coisas. Apenas que, nas colónias, cidade e fortificação, são conceitos indissociáveis, por
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necessidades, óbvias, de conquista e de defesa. Por isso o papel dos engenheiros militares foi instrumental no desenho das cidades. Sabemos como a cultura portuguesa do século XVI foi profundamente marcada pela tratadística italiana e pelos estudos científicos, na conjuntura dos descobrimentos. Sabemos como a arquitectura militar passou a ter importância decisiva naquela conjuntura e como foi veículo do novo gosto e pressuposto de uma nova forma de projectar. Assim, foram principalmente as fortificações, feitorias e cidades amuralhadas que mais evidenciaram a influência da engenharia militar portuguesa e o seu cariz erudito, afirmando-se por imperativo da Conquista, da Descoberta ou da Colonização. Pela síntese de influências diversas – do pensamento urbanístico italiano à tradição manuelina – parece estabilizar-se de 1540 a 1620 um tipo clássico de cidade portuguesa ou, pelo menos, definida uma metodologia de desenho urbano, fruto da geometria do sistema abaluartado, empregue de modo pioneiro em Mazagão pelo engenheiro militar Benedetto de Ravenna em 1541 e pela primeira vez no Oriente na frente abaluartada de Diu por D. João de Castro em 1546. Sinto que não posso deixar de fora, neste discurso interrogativo, alguma aproximação mais pormenorizada para a construção daquela metodologia que permita fundamentar as leituras de continuidade de que tanto gosto, no cruzamento pacífico da tradição e do saber prático acumulado no terreno pelos nossos mestres, e a erudição abstracta que iam adquirindo nos contactos internacionais que estabeleceram ao serviço da coroa. De facto, a partir de 1415, Portugal inaugurava uma série de ocupações no Norte de África Ocidental. Tratou-se, de Ceuta a Safim, de apropriação e transformação militar complementada por uma lenta e gradual implantação urbana a partir de modelos vivenciais e, portanto, urbanísticos da metrópole. O atalho foi o principal instrumento utilizado pelos portugueses. A situação militar da região favorecia um tipo de cidade fechada, exclusivamente para nacionais. Os muçulmanos foram excluídos da composição social das nossas possessões deixando muralhas, ruas e casas, que foram gradualmente transformadas. A prática do atalho implicava corte, revendo forma e dimensão e implicava, ainda que indirectamente, um exame à disposição urbana dos tecidos e malhas ocupadas. A sua racionalidade transpunha-se para o interior do novo perímetro levando consigo uma tendência geometrizante
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nos traçados. A malha islâmica, segmentada em bairros que providenciavam controlo social e defesa interna era posta em causa numa mudança em que se buscava exactamente o contrário: o melhoramento das condições de vigilância e acessibilidade aos vários sectores da cidade. As muralhas aderiam a um plano geral em que a Rua Direita articulava a distribuição viária e as acessibilidades aos dois espaços colectivos mais importantes – o terreiro de reunião da população e a praceta de apoio ao porto e equipamentos com ele relacionados. Exceptuando Alcacer que manteve a sua configuração, todas as outras conquistas foram atalhadas, diminuindo substancialmente a sua área de implantação. Mazagão, pelo contrário, é uma criação ex-novo, a partir de um castelejo e de um pequeno aglomerado de casario desordenado. O baluarte moderno vai encerrar uma área urbana de traçado tendencialmente regular cuja lógica deverá ser buscada, não só a partir da geometria moderna daquele, como da racionalidade conquistada gradualmente no terreno a partir do senso e da cultura dos nossos mestres. De facto, os nossos engenheiros militares, que, preversamente, Benévolo chamou de agentes de terceira categoria de uma ideia nunca concretizada pelos seus criadores, são herdeiros de uma tradição que se objectiva na primazia da construção sobre a do projecto. Talvez por se colocarem em compromisso permanente com a prática nunca a ultrapassam conceptualmente, mas realizam obra sem que qualquer imposição teórica perturbe a sua experiência, aproveitando-a, sim, para a sedimentar. É neste sentido que venho questionando a utilização da cidade ideal como modelo, no seu sentido mais profundo, das nossas cidades, devendo antes dizer-se que aquele modelo formal confluiu com a nossa tradição, esvaziado do seu mais profundo significado e sem trazer alterações metodológicas de monta na forma de projectar – tal com a tratadística ordenou a composição, regrou as proporções, acarretou as ordens, numa arquitectura profundamente anticlássica nos seus fundamentos éticos e ideológicos. Se Damão e Baçaim, na Índia, foram gizadas com uma evidente aproximação às cidades ideais do Renascimento, é a regularidade excessiva da sua traça o facto que mais parece afastar-se da tradição de empirismo das nossas urbes arruadas. Por todas as razões apetece lembrar Danzilho, Boitaca, Diogo e Francisco de Arruda ou João de Castilho que por lá longe perderam anos e algumas
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batalhas, nos intervalos das obras de Santa Maria da Vitória, de Santa Cruz de Coimbra, do Convento de Cristo e dos Jerónimos. Lembrar, ainda, o mestre pedreiro Miguel de Arruda, nomeado Mestre das fortificações e muros do Reino, Lugares d’Além e Índia, em 1549. Já no ano anterior fornecera os desenhos para os baluartes ao moderno do Castelo da Mina e o plano para a capital do Brasil. Do seu atelier, junto ao Paço da Ribeira, rodeado de ajudantes e discípulos devem ter saído as traças e debuxos da maior parte dos edifícios construídos pela Coroa, religiosos, civis, militares e planos urbanos, entre os quais não havia distinção projectual ou disciplinar. Esta prática foi continuada pelo seu sucessor António Rodrigues que, em 1572 inaugura o ensino formal na Aula de Arquitectura do Paço da Ribeira, sobretudo baseado na explicação de textos de Vitrúvio, Serlio e Pietro Cataneo. Continuemos a ouvir Rafael Moreira e Horta Correia. Neste final de século, o ritmo da construção militar supera tudo, como a nova cerca abaluartada de Goa de 12 km de extensão (1590) e as duas maiores fortalezas jamais erguidas pelos portugueses, a do Monte Brasil em Angra (1590) e a da Aguada em Goa (1604) apesar das espectaculares Sé de Goa (1562), a maior catedral portuguesa e a igreja jesuítica de Macau (1602/24), sem paralelo na Europa. Não pode dizer-se que exista uma política urbana coerente. A única criação de interesse parece ser Damão, na Província do Norte, na Índia. Anonimamente se vai definindo o tipo de vila ou cidade colonial portuguesa: em Olinda, Salvador, Rio, Luanda, Chaul, Colombo ou Macau. Uma cidade que se molda às condições do relevo e procura tirar partido delas, que se defende com uma cerca abaluartada que condiciona o traçado urbano por um conjunto de regras bem sabidas. Assim, no Brasil, como dissemos, a acção foi mais espontânea ou pragmática, tendo a Coroa fixado a sua soberania, em termos de expressão urbana planificada, a partir, sobretudo, da fundação de Salvador em 1549, ficando célebre a metodologia ordenada ao Governador Tomé de Sousa e ao mestre de obras Luís Dias, determinando que o governador se conformasse com traças e amostras que levava. A intenção de regularidade é indiscutível, numa atitude de projecto e medida obedecendo a princípios e a hábitos, mais do que a modelos fixos e a
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regras legais, concretizados com grande sentido de pragmatismo pelos velhos métodos da cordeação, com uso da bússola, compasso, marcos e cordas enceradas, em vez da regra e do esquadro. Passado o triunfo dos engenheiros militares italianos e da tratadística normativa que impuseram, volta ao primeiro plano a criatividade dos práticos nacionais e a sua experiência. Deslocado para o Brasil o eixo dos acontecimentos é onde, até 1750, ocorrem os progressos essenciais. É exemplar a actuação do engenheiro militar Francisco Frias de Mesquita ao fundar de novo, em 1616, S. Luís do Maranhão, devendo salientar-se, não só a regularidade do traçado como, aqui também, a preocupação expressa no Regimento de que a cidade fique bem arruada e direita conforme a traça que lhe fica em poder. Esta escola de urbanismo português, oscilando entre os princípios teóricos e a praxis concreta da sua adaptabilidade ao terreno, pela acção dos engenheiros militares, conheceu novo alento com a criação da Aula de Fortificação em 1647, por D. João IV, que retoma institucionalmente a tradição do ensino da Arquitectura, interrompida no período filipino. Figura determinante foi, então, Luís Serrão Pimentel com o seu Método Lusitânico de Fortificar Praças Regulares e Irregulares. Pimentel, que não publica desenhos, por inúteis na aplicação ao real, sempre variado, revela uma consciência teórica nada inferior aos mestres italianos, franceses e holandeses que cita, sintetiza, segue ou abandona e supera. Como refere Horta Correia, ao contrário dos espanhóis, os portugueses vinham equipados com menor número de normas e maior número de princípios. De facto, as normas que vigoravam na corte portuguesa, transmitidas pelos decretos régios de criação de cidades, eram muito simples e muito óbvias, o que permitia, por isso mesmo, uma certa maleabilidade. Do século XVI ao século XVIII, encontra-se um formulário comum, de linguagem muito fixa, e onde se ordena que seja a Praça a primeira a demarcar, com o seu Pelourinho, Casa da Câmara e Cadeia e Igreja e, a partir dela, se delinearão as ruas em linha recta. É, ainda, preocupação comum que as casas revistam sempre a mesma figura exterior, mesmo quando a população cresça, para que se conserve a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas. É o surto de desenvolvimento do interior brasileiro que permite alinhar algumas notas tendenciais do urbanismo português dos séculos XVII e XVIII.
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Poucas vezes estaremos em face de um sistema de quadrícula perfeita como na América Espanhola. É frequente a coexistência harmónica de quarteirões quadrangulares com quarteirões rectangulares. E, se é possível reconhecer o sistema tratadístico de praças pequenas de implantação periférica em Vila Nova de Portalegre, não é inédito o alinhamento de praças sucessivas em enfiamento perspéctico, uma maior com a Igreja, outra menor com o Pelourinho, como em Vila Nova do Prado ou Macapá. Podemos, também, encontrar situações que favoreçam o aparente lugar comum do sabor medieval de muitas cidades brasileiras, quando se dá o total predomínio da prática sobre a teoria, onde se podem instalar processos mais cenográficos, muitas vezes à-posteriori, sedimentando e qualificando situações de facto. Referimo-nos a uma forma de consolidação de tecidos existentes que é, na visão contemporânea, uma forma de planificação. Será assim com a implantação isolada de uma igreja inserida no topo de conjuntos viários de sentido perspéctico, ou a sua colocação no cimo de um escadório enquadrado por fundos paisagísticos. Ouro Preto que se desenha a partir da malha de relações estabelecida entre acampamentos mineiros, é o resultado de uma racionalidade oculta. Outras vezes a racionalidade aplicada pelo colonizador reside no estabelecimento de uma estratégia de espacialização do discurso catequético. A actual Marechal Deodoro, por exemplo, nasce de um entendimento neofranciscano de relação de complementaridade com a paisagem, a partir da implantação primeira de um edifício religioso, enquadrado por correntezas de casas, inicialmente paralelas, que pode abrir-se e prolongar-se por caminhos rurais abertos a pé-posto que levavam os trabalhadores às plantações ou ao porto de pesca. Serão esses caminhos a estrutura básica da nova cidade que vai, com o tempo, tratando os espaços sobrantes como espaços públicos, dando-lhes um novo significado. Em conjunto, as nossas cidades constituem uma soma de racionalidades a que a arquitectura corrente e a monumental conferem a unidade global de uma racionalidade única. Uma racionalidade composta de racionalidade, como na vida. São, de facto, formas de vida diferentes unificadas pela unidade do desenho do edificado. Ao passarmos para o século das luzes deparamos com a herança académica de Pimentel, em Manuel de Azevedo Fortes com o seu Engenheiro
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Português ou em Manuel da Maia com as suas várias traduções ou a sua acção intensa desde os tempos de D. Pedro II até à implementação da nova Lisboa de Pombal, não se devendo esquecer os inúmeros tratados manuscritos e anónimos que muito terão ajudado os oficiais praticantes do urbanismo. Se nos reinados de D. Pedro II, D. João V e D. José, esta escola portuguesa não deixou de planificar novos centros urbanos no Novo Mundo, a grande oportunidade foi-lhe dada na própria metrópole pelo Terramoto de 1755. Então, o velho engenheiro-mór do Reino, Manuel da Maia, preside à reconstrução de Lisboa, com a naturalidade de quem cumpre simplesmente uma tarefa inerente ao seu cargo. Depois de dissertar sobre as diversas hipóteses de solução, afastada a utopia da construção de uma nova cidade em Belém, escolhe, de entre os militares da sua confiança, aqueles que poderiam concretizar, em equipa ou sozinhos, seis programas diferentes, com diferentes graus de correcção do tecido urbano da Baixa e onde estão patentes a prática, a competência e a celeridade de soluções que não se improvisam, mas onde é palpável, ao mesmo tempo, uma formação teórica e um adequado sentido programático. O estudo da operação arquitectónica e urbanística pombalina de Lisboa, cujos ecos, no Porto, assumiram o carácter de um verdadeiro movimento antibarroco, leva a integrá-la, claramente, na continuidade de uma tradição urbanística que se sedimenta a partir do século XVI. Importante e significativa é a preocupação de Manuel da Maia pela uniformização da nova cidade ao sugerir que seja o mesmo arquitecto, Eugénio dos Santos, a fornecer o desenho dos edifícios para que cada rua conserve a mesma simetria de portas janelas e alturas, preocupação e linguagem que recordam as antigas Cartas Régias e, portanto, as normativas tradicionais da nossa velha escola de urbanismo. Em dois campos, profundamente interligados, se referencía a permanência da cidade desaparecida: o da estrutura física do sistema urbano transformado e ordenado para uma nova hierarquia de relações e o da estrutura dos factos arquitectónicos, esclarecido pelas relações entre tipologia e morfologia, legível nos antigos prédios de rendimento que fornecem as referências para a economia e conveniência que tanto importam ao pensamento prático e de instrução militar dos projectistas. Por detrás da estrutura do projecto, o factor essencial foi a ligação com a realidade e o concreto.Também com a realidade pretendida.
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Sensivelmente contemporâneas são, além de Vila Real de Santo António, várias cidades ultramarinas, bafejadas pelo dinamismo que a reconstrução de Lisboa veio proporcionar à engenharia portuguesa, mas continuadora da prática colonial anterior. Sirvam de exemplo Nova Mazagão, projecto do capitão Inácio Morais Sarmento,Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso e vários projectos alternativos para Goa. Como escreve Rafael Moreira, o melhor testemunho deste momento, e que não poderemos deixar de referir, é o inédito Tratado de Ruação de José de Figueiredo Seixas, oferecido em 1763 ao Marquês de Pombal. O autor era um bom construtor da cidade do Porto, autor das igrejas do Carmo e da Lapa, tendo sido aí professor de Desenho na Aula da Náutica e Fortificação. O conteúdo do texto é extremamente vasto e denso constituindo como que a teoria do urbanismo pombalino, mas o seu objectivo central é muito claro: fundar uma disciplina nova, a Ruação, tendo por matéria o estudo científico e rigoroso da forma, desenho e crescimento das cidades. Seixas desejava emendar alguns defeitos da ruação da cidade do Porto, mas apercebeu-se que era impossível fazê-lo parcelarmente: a cidade perfeita ou a cidade regular só é viável pelo planeamento global e da totalidade do país estabelecendo leis de uma nova ciência a Arte da Ruação. A originalidade da proposta ambiciosíssima de Figueiredo Seixas é que ele vai pegar numa tradição velha de séculos e castiçamente nacional, que mistura com leituras dos tratadistas clássicos, livros de jardinagem e da arte da quadratura dos tectos. No dizer de Rafael Moreira, que descobriu o Tratado, trata-se da primeira tentativa sistemática de criar uma disciplina e erguer ao estatuto de ciência essa arte de fazer cidade que os portugueses espalharam pelo mundo. E fechamos o ciclo no coração do Portugal setecentista burguês com a referência a este surpreendente autor da teorização da peculiar escola portuguesa de urbanismo. A cidade portuguesa nasceu diversa, nas vicissitudes de um país a construir-se. Refez-se nos territórios ultramarinos, colhendo e sintetizando, da diversidade das experiências de referência, a sua complexidade. Do seu saber sedimentado nasceu com simplicidade o exemplo maior da cidade reconstruída de Lisboa que, como que em vaivém permanente, regressou aos territórios coloniais durante o século XVIII.
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Concluindo: Da experiência de construir, conhecidos os modelos, nasce o saber sem grande teoria de suporte e que se transmite empiricamente. Afastado o modelo, procura-se, sobretudo, a eficácia, no caso a caso das circunstâncias. Dessa capacidade de adaptação ao momento, sem grandes prisões de natureza formal ou estilística, nasce a variedade da arquitectura e das cidades portuguesas, a sua espontaneidade e o seu eclectismo que nunca lhe retiram um genérico carácter de família que nos permite a sua permanente identificação, da Índia ao Brasil, de Portugal a Angola, de Marrocos à China ou aos Açores. Parafraseando Fernando Pessoa que disse, a minha pátria é a minha língua, eu penso que poderemos com propriedade dizer que a nossa pátria também é a nossa arquitectura e as nossas cidades. Daí o dever de as conhecermos e de as defendermos em comum.
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ENTREVISTA ao Professor Theodor Hauschild Conduzida por M. Justino Maciel*
Professor Theodor Hauschild fotografado por Justino Maciel
Theodor Hauschild nasceu em Erfurt, capital da Turíngia, Alemanha, em 04 de Janeiro de 1929. Em 1956, formou-se em Arquitectura e História da Arquitectura na Universidade Técnica de Berlim (TU), onde chegou a leccionar, tendo-se doutorado em 1965. Em 1966 foi-lhe atribuído o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Barcelona. Iniciou o estudo de monumentos da Antiguidade na Península Ibérica em 1957, actividade que desenvolveu como membro do Instituto Arqueológico Alemão em Madrid. Foi Director da Delegação do Instituto Arqueológico Alemão em Lisboa, de 1980 a 1994. Em 1985, foi distinguido com a Medalha de Mérito da cidade de Tarragona e, em 1991, com a da cidade de Faro (ouro). Em 1995, recebeu a Cruz * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
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de Mérito “Bundesrepublik Deutschland” e em 1996 a Creu de San Jordí da Generalitat de Catalunya. Theodor Hauschild é hoje um especialista internacionalmente consagrado nos domínios da Época Clássica e da Antiguidade Tardia. As suas escavações arqueológicas em Centcelles (Catalunha), na cidade de Tarragona (Catalunha), em Munígua, (Sevilha), Marialba (Léon), Las Vegas de Pueblanueva (Toledo), Milreu (Algarve) e Évora marcaram um percurso único que o destacam como uma das maiores autoridades hoje reconhecidas internacionalmente no domínio da História da Arte, da Arquitectura e da Arqueologia da Antiguidade. Seja a nível de publicações, seja a nível de conferências ou de leccionação em cursos universitários, a personalidade e o conhecimento de Theodor Hauschild vêm marcando sucessivas gerações de investigadores, designadamente em Portugal e em Espanha. O Professor Theodor Hauschild continua hoje a honrar o nosso País, residindo em Portugal, participando em iniciativas científicas e preparando publicações várias, designadamente sobre o templo romano de Évora. Recebeu-nos gentilmente na sua casa e, generosamente, acedeu a responder a algumas perguntas sobre a sua actividade científica, sobre questões de grande interesse para os leitores da Revista de História da Arte, a única em Portugal que publica permanentemente estudos sobre a Arte da Antiguidade Clássica e Tardia. O Senhor Professor desenvolveu a sua formação inicial em Arquitectura. Foi a Arqueologia ou a Arquitectura que motivou as suas opções pela História da Arquitectura Clássica?
A minha formação universitária foi em Arquitectura com acentuação na História da Arquitectura, especialmente a Clássica. Um dos meus professores foi Walter Andrae, o famoso especialista da reconstituição da Porta dos Leões de Babilónia. Outro foi Ernst Heinrich, que escavou em Uruk-Warka, Mesopotâmia. Criou-se na Universidade Técnica de Berlim, onde estudei, um seminário sobre arquitectura antiga, uma especialização que era rara noutras universidades. Davam-se lições de escavação numa igreja medieval destruída durante a guerra. Fui, então, encarregado de ensinar levantamento gráfico de monumentos, assim como a sua descrição e restituição gráfica. Existia uma escola característica do Instituto Arqueológico Alemão? Como se processou a integração do Senhor Professor nesta Instituição e a sua vinda, primeiro para a Espanha e, depois, para Portugal?
O Instituto Arqueológico Alemão não tinha escola especializada em arquitectura antiga. Mas foram convidados arquitectos com esta especialidade
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formados em várias universidades. Foi o meu caso. Recebi do Prof. Helmut Schlunk o encargo de realizar o levantamento gráfico do monumento de Centcelles (Tarragona), da época paleocristã, tendo sido igualmente encarregado de proceder à escavação e estudo deste edifício. Participei, depois, em outras escavações: no município romano de Munígua (Sevilha), na basílica paleocristã de Marialba (Léon), no grande mausoléu octogonal de Villanueva (Toledo) e, principalmente, nos monumentos romanos da cidade de Tarragona, com certa relevância na muralha do séc. II a.C. Em Portugal, tive a oportunidade de poder estudar e escavar o monumento da uilla romana de Milreu e o templo de Évora. Nestes trabalhos, participaram estudantes de várias universidades, especialmente da Universidade Técnica de Berlim onde, através do contacto com o Prof. Heinrich, esta participação serviu como prova dos cursos de História da Arquitectura. Contei com a ajuda do Prof. Pedro Fialho, que participou nos trabalhos de campo com vários estudantes de arquitectura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Como encontrou os estudos sobre a Arqueologia e a História da Arte da Antiguidade em Portugal? Como os vê hoje?
Os estudos de Arqueologia Clássica, assim como da Arte da Antiguidade em Portugal tinham, já em épocas anteriores, um muito bom nível. Conhecemos bem as escolas de D. Fernando de Almeida, do Prof. Bairrão Oleiro e do Prof. Jorge de Alarcão. A publicação dos resultados das escavações nas ruínas de Conímbriga marcou um passo fundamental para o estudo da Antiguidade Romana. Penso que os métodos utilizados pelos actuais investigadores no campo da arquitectura da Antiguidade são muito louváveis, designadamente no aproveitamento dos meios técnicos e na investigação sobre as fontes escritas. Iniciou o seu trabalho em Portugal com um estudo inovador, hoje de referência, sobre a uilla romana de Milreu. Quer destacar a importância deste monumento para os estudos sobre a nossa Antiguidade Tardia?
A importância do monumento de Milreu ressalta, em grande parte, da possibilidade do estudo pormenorizado da estrutura do “Edifício de Culto”, que conserva toda a altura original e um significativo revestimento decorativo. O conjunto revela-se como o resultado de um extraordinário projecto arquitectónico datado da época romana tardia. Igualmente, a uilla anexa se destaca entre outras pela sua decoração artística, bem como pela única e valiosa série de bustos imperiais.
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São igualmente de referência os estudos que levou a cabo sobre o teatro romano de Lisboa. Que se lhe oferece dizer-nos sobre este monumento?
A planta do teatro romano de Olisipo, que elaborei com o contributo de estudantes de arquitectura, assim como de Cristina Leite, do Museu de História da Cidade e Lisboa, representa só a parte central do conjunto. Poderemos apreciar nesta planta determinadas normas estabelecidas por Vitrúvio. Merecem destaque colunas ainda existentes, que apresentam revestimento em estuque. Importantes elementos da parte da cena têm vindo a ser redescobertos nas novas escavações por Lídia Fernandes. O templo romano de Évora tem sido um dos seus mais fecundos campos de trabalho. Que particularidades apresenta este monumento?
O templo romano de Évora pertence ao tipo períptero sobre pódio, conhecido na Península Ibérica, actualmente, apenas em outras duas cidades: em Mérida, capital da Lusitânia, e em Barcelona.Tinha a singularidade de apresentar, em três lados, um tanque de água circundante, característica conhecida hoje apenas no templo do forum de Luni, Itália. São igualmente de destacar o criptopórtico e a praça que envolvia o templo, formando uma área separada e elevada em relação ao forum. O Senhor Professor tem significativamente contribuído, pelo seu importantíssimo curriculum de investigador e pelo seu extenso número de publicações, para um maior conhecimento da Arquitectura e, em geral, da História da Arte da Antiguidade. Como vê o futuro desta investigação em Portugal?
Os meus estudos sobre os monumentos romanos na Península Ibérica foram resumidos na publicação Hispania Antiqua, sobre a época romana, em 1993.Tenho tido a oportunidade de dar conta da minha experiência no estudo e interpretação da arquitectura antiga a jovens colegas e transmitir o que tenho aprendido e sistematizado a muitos estudantes, em vários cursos universitários. Sinto que existe actualmente em Portugal uma excelente investigação em História da Arte, bem como em História da Arquitectura e em Arqueologia da Antiguidade Clássica e Tardia. Não tenho dúvidas de que estes estudos vêm recebendo permanentes incentivos em seminários universitários, designadamente nas escolas da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Coimbra. As descobertas referentes ao nosso passado revestem-se sempre de uma importância fundamental para o nosso futuro.
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Palavras-chave: Sintra; Paisagem; Antiguidade; Património Key words: Sintra; Landscape; Antiquity; Heritage
RESUMO ABSTRACT Sintra’s classification as World Heritage, in the category of Cultural Landscape, is the result of the convergence of several factors initiated in Antiquity in which the sacred interacts with the profane in a succession of hierarchical stages of a cultural dynamics. From the cape Ofiúsa to the Monte Sagrado (Sacred Mount) where, in Roman times, official cult was paid to the sun and the moon, from Christian topography to its Renaissance Humanistic deconstruction, which transforms the locus sacer in locus amoenus, these are the set of references which define the Classical and Late Antiquity that condicioned a landscape that was transformed from natural to humanized in a edenic experience densified through the ages.
A classificação contemporânea de Sintra como Património Mundial, na categoria Paisagem Cultural, resulta da convergência de múltiplos comportamentos, iniciados na Antiguidade, em que o sagrado interage com o profano em sucessivas etapas hierarquizadas numa dinâmica de entropia cultural. Do cabo Ofiúsa ao monte Sagrado onde se cultuava oficialmente na época romana o Sol e a Lua, da topografia cristã à desmitificação humanista típica do Renascimento que transforma o locus sacer em locus amoenus, eis um conjunto de referências que definem a Antiguidade Clássica e Tardia como condicionante de uma paisagem que, de natural, se tornou humanizada, numa vivência edénica que se adensou ao longo dos tempos.
DO TOPOS CLÁSSICO À PAISAGEM CULTURAL: Sintra e a sua envolvência na Antiguidade M. Justino Maciel*
Delimitação, humanização e culto do lugar na Antiguidade A Antiguidade desde sempre associou ao lugar ou à sua designação em grego, topos, a referência do conhecimento real, com uma sistematização logo consignada na filosofia aristotélica dentro do conceito de categoria. O lugar e o tempo tornaram-se balizas epistemológicas da ciência na reflexão gnoseológica iniciada na época clássica. Os lugares de grande significado são, desde o início da aventura humana, os que marcam territórios e horizontes, como sejam os mares, os rios, os promontórios e os montes. À medida que a evolução das sociedades permitiu o desenvolvimento de cidades e demarcação clara dos seus territórios, esta paisagem, fruto da evolução e da transformação da própria natureza, vai sendo igualmente transformada pelo Homem, que não só a condiciona, como também a marca com monumentos construídos pela sua própria mão. Fez parte desta humanização da natureza, como refere Vitrúvio no seu Tratado De Architectura1, escrito na segunda metade do séc. I a. C., a criação de spectacula, nome que hoje traduzimos por Maravilhas, que na Antiguidade foram estabelecidas no número de sete, sendo elas o Colosso de Rodes, o Mausoléu de Halicarnasso, o Farol de Alexandria, os Jardins Suspensos de Babilónia, o Templo de Ártemis em Éfeso, as Pirâmides do Egipto e o Zeus de Olímpia. Eram monumentos grandiosos e belos, cujo processo de classificação era, de facto, diferente do dos actuais conjuntos monumentais considerados Património da Humanidade. Era a uox populi que, efectivamente, os elegia como obras máximas do Homem no seio da natureza. * Professor Associado, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal 1 De Architectura, 2, 8, 11: Septem spectacula. As traduções de textos clássicos aqui transcritas são da responsabilidade do autor deste trabalho. No caso dos textos vitruvianos, são retiradas de M. Justino Maciel, Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, Tradução do Latim, Introdução e Notas, Lisboa, IstPress, 2006.
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Estas Maravilhas revelavam-se como que testemunhos da capacidade humana em imitar os portentos da natureza, humanizando e aperfeiçoando, através da arte, o que a sensação estética ditava como estando ainda imperfeito. Ao contrário do que hoje a ciência nos revela, os antigos consideravam que a humanidade teve a sua origem numa Idade de Ouro e daí a mítica ideia de um Paraíso original que está sempre presente e se tenta continuamente recordar, sonhando um dia a ele voltar. Esta ideia, que encontrou no platonismo clássico a sua justificação filosófica, fundamenta comportamentos típicos da Antiguidade a nível artístico, na escultura, na pintura e na arquitectura, designadamente nos jardins e nas casas de estatuto, primeiro nas cidades e, depois e progressivamente, no campo, onde, de modo mais naturalista, a paisagem serve de pano de fundo à sugestão de paradeisos ou paraíso. Com efeito, o homem clássico tinha consciência de que, através da sua uirtus interior, a força de ânimo que lhe era própria, poderia dominar as forças adversas da natureza. Transformando esta através da técnica e da arte, aprofundava a sua experiência sensorial do mundo físico ao mesmo tempo que progredia no processo de socialização (Vitrúvio, II, 1-2). Os povoados eram primitivamente construídos, por razões estratégicas de defesa e de salubridade, em montes e em colinas. Os textos mais antigos referem a instauração dos recintos urbanos fortificados – moenia – em lugares altos ou, então, funcionalmente, junto ao mar ou junto aos rios, tendo presente o regime de ventos, a exposição solar e a salubridade das regiões. Idênticas soluções se recomendavam para edifícios específicos, como os templos e os teatros. E quando se representavam os espaços humanizados, como acontecia nos cenários dos teatros, acrescentava-se aos chamados estilos trágico e cómico, o estilo dito satírico ou paisagístico. É Vitrúvio quem melhor no-los descreve: São três os géneros de cenas: um, que se diz trágico; outro, cómico; um terceiro, satírico. As suas decorações são diferentes e díspares, porque as cenas trágicas são decoradas com colunas, frontões, estátuas e outras coisas régias. As cómicas representam edifícios privados e balcões, bem como relevos com janelas dispostos segundo as normas e a imitação dos edifícios comuns. Finalmente, as satíricas são decoradas com árvores, cavernas, montes e outras coisas campestres, seguindo o estilo paisagístico2. 2 De Architectura, 5, 6, 9: Genera autem sunt scaenarum tria: unum quod dicitur tragicum, alterum comicum, tertium satyricum. Horum autem ornatus sunt inter se dissimili disparique ratione, quod tragicae
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O estilo paisagístico consistia, pois, nomeadamente, na representação de árvores, cavernas, montes e outras coisas campestres. Era uma das formas da representação artística da realidade, juntamente com a dos edifícios, fossem eles públicos ou privados, e sua decoração arquitectónica ou escultural. Noutro passo, o autor do De Architectura, ao falar de pintura, refere as pinturas de jardins e paisagens, chamadas topia, segundo a tradição dos antigos: Nos passeios porticados, por causa dos espaços em profundidade, representaram variedades de paisagens, mostrando figurações com características de determinados locais: deste modo se pintam portos, promontórios, litorais, rios, fontes, canais, templos, bosques, montes, rebanhos, pastores, assim como, em alguns lugares, grandes quadros de figuras representando imagens dos deuses ou sequências ordenadas das fábulas, como as guerras troianas ou as andanças de Ulisses através das paisagens e outras coisas que, como estas, são produzidas pela natureza das coisas3. Este culto da natureza e da paisagem está, pois, bem documentado, numa perspectiva artística e cultural, em textos da Antiguidade (Gabba, 1991: 22-25). Nele, destacam-se os topoi dos montes e dos promontórios. Se lermos, por exemplo, a Geografia de Estrabão, escrita na passagem do séc. I a. C. para o séc. I d. C., notamos logo esta atenção dos antigos às marcas orográficas na paisagem. Mas também nos damos logo conta de que esses montes e esses cabos se associam no seu tempo à crença e ao culto de determinadas divindades, sejam elas do Panteão greco-romano, sejam simples daemonia ou até, apenas, heróis divinizados. Então, as montanhas e os promontórios, adquirem um maior dinamismo significante, porque permitem viver mais profundamente o sagrado e sentir mais próxima a fronteira com o divino. E assim, vemos a associação do monte Ida, na Ásia Menor, com Júpiter, consagrada com um templo (Estrabão, VII, 3, 1), do monte Minteu, igualmente na Ásia Menor, com Plutão, também com o respectivo santuário (Idem, VIII, 3, 14), do monte Liceu, deformantur columnis et fastigiis et signis reliquisque regalibus rebus; comicae autem aedificiorum priuatorum et maenianorum habent speciem profectusque fenestris dispositos imitatione communium aedificiorum rationibus; satyricae uero ornantur arboribus, speluncis, montibus reliquisque agrestibus rebus in topeodi speciem deformati. 3 Idem, 7, 5, 2: Ambulationibus uero propter spatia longitudinis uarietatibus topiorum ornarent ab certis locorum proprietatibus imagines exprimentes: pinguntur enim portus, promunturia, litora, flumina, fontes, euripi, fana, luci, montes, pecora, pastores, nonnullis locis item signorum megalographiae habentes deorum simulacra seu fabularum dispositas explicationes, non minus Troianas pugnas seu Vlixis errationes per topia ceteraque quae sunt eorum similibus rationibus ab rerum natura procreata.
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na Grécia, com Júpiter, com templo consagrado a esta divindade (Idem, VIII, 8, 2), do monte Hélicon, também na Grécia, com as Musas, do mesmo modo com o respectivo templo (Idem, IX, 2, 25 e X, 3, 17, assim como muitos outros exemplos. Estrabão dá um bom testemunho destas crenças e mentalidades, por exemplo quando nos fala do monte Parnaso, na Grécia, dizendo o seguinte: Uma espécie de carácter sagrado ressalta de todo o monte Parnaso, porque ali se vêem por toda a parte espaços que a veneração dos povos transformou em santuários. De todos eles, o mais célebre e, ao mesmo tempo, o mais belo é uma gruta consagrada às Ninfas (Idem, IX, 3, 1). É neste contexto que nos surge também, segundo o testemunho dos textos clássicos, a consagração da Serra da Sintra aos deuses Sol e Lua, com o respectivo templo. Na época romana, a conotação dos montes com o sagrado adensa-se com o reconhecimento das religiões indígenas, em que proliferam as divindades tópicas, ou seja, associadas a determinados lugares, como na Galécia as serras do Larouco e do Marão (Rodríguez Colmenero, 2002: 33). Não raro estas divindades se revelam como deuses da montanha ou da colina, como é o caso de Endovélico, para nos cingirmos ao Ocidente Peninsular (Toutain, 1920: 130-131). Por outro lado, a referência ao cabo de São Vicente como Sagrado e a possibilidade de o mesmo epíteto ser atribuído ao Cabo da Roca, como veremos, poderá também relacionar-se com o que poderemos classificar de mito dos confins, efabulação que acompanhou a expansão romana na orla costeira atlântica da Península Ibérica e que se manteve até à Antiguidade Tardia. Era sobretudo nas partes do Ocidente que já os Gregos localizavam as Ilhas dos Afortunados, para onde os golfinhos, animais psicopompos, transportavam as almas dos justos. Para o pôr-do-sol se encontrava o Jardim das Hespérides, as Ninfas do Poente. Aqui teriam tido lugar algumas aventuras de Hércules e para estas partes algumas tradições localizavam os Montes Hiperbóreos onde, sob o governo de Apolo, que para ali se retirava durante uma parte do ano, os grifos protegiam as minas de ouro que os Arismaspos pretendiam roubar (Maciel, Cabral e Nunes, 2002: 196-198). Foi aliás a mitologia grega que levou os romanos a hesitar na travessia do rio Lima, por o julgarem o Lethes, rio do Inferno ou do Esquecimento (Maciel, 2005: 10-11).
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Mitos clássicos relacionados com o território Olisiponense.
A Hispania segundo Agripa, in Berthelot (1934) p. 56
O território de Lisboa, em que, na época romana, se incluía Sintra e o seu monte, foi pelos escritores e geógrafos antigos integrado nesta contextualização mítica. Não apenas porque a Serra de Sintra também era conhecida por Promontório Olisiponense, mas também porque neste espaço entre o estuário do Tejo e o mar ocidental muitos acontecimentos fantásticos, próprios de uma terra de confins, no limiar entre o natural e o fantástico, ali eram referidos. O mais repetido na Antiguidade era, sem dúvida, a história da fecundação das éguas pelo vento favónio, vento oeste ou Zéfiro dos Gregos que, soprando na Primavera, propiciava a renovação da natureza. O primeiro autor clássico a
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narrar esta lenda foi Terêncio Varrão que, no seu De Re Rustica, escrito no séc. I a.C, nos diz: In fetura res incridibilis est in Hispania, sed est uera, quod in Lusitania ad oceanum in ea regione, ubi est oppidum Olisipo, monte Tagro quaedam e uento concipiunt certo tempore equae, ut hic gallinae quoque solent, quarum oua hypenemia appellant. Sed ex his equis qui nati pulli, non plus triennium uiuunt (R.R., II, 1, 7). Na fecundação acontece algo incrível na Hispânia, mas verdadeiro, porque na Lusitânia, junto ao Oceano, naquela região onde se encontra o opido de Olisipo, no monte Tagro, algumas éguas concebem do vento em determinada altura, como aqui também é comum com as galinhas, cujos ovos se chamam goros. Mas os potros que nascem destas éguas não vivem mais do que três anos. A mesma história é-nos veiculada algumas dezenas de anos mais tarde por Lúcio Júnio Moderato Columela, um agrónomo natural de Cádis, no seu De Re Rustica: Cum sit notissimum etiam in Sacro monte Hispaniae, qui procurrit in occidentem iuxta oceanum, frequenter equas sine coitu uentrem pertulisse fetumque educasse, qui tamen inutilis est, quod triennio, prius quam adolescat, morte absumitur (R.R.,VI, 27). É também conhecidíssimo na Hispânia, no monte Sagrado, que se estende para ocidente junto ao Oceano, frequentemente as éguas emprenharem sem coito e darem à luz uma cria, que todavia é inútil, porque em três anos, antes que se torne adulta, é levada pela morte. Plínio-o-Velho, por sua vez, já avançado o séc. I d. C., descreve-nos na sua Naturalis Historia: Constat in Lusitania circa Olisiponem oppidum et Tagum amnem equas fauonio flante obuersas animalem concipere spiritum, idque partum fieri et gigni pernicissimum ita, sed triennium uitae non excedere (N.H.,VIII, 166). Consta que na Lusitânia, perto do opido de Olisipo e do rio Tejo, as éguas voltadas para o vento favónio absorvem um eflúvio vivificante, e assim se origina e nasce uma cria velocíssima que, todavia, não excede os três anos de vida.
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Pensamos que estas três referências são suficientes para nos darmos conta de uma lenda que associa as regiões de Lisboa e de Sintra a uma visão mítica de um espaço geográfico. Outros autores romanos descrevem, com mais ou menos repetição dos textos já referidos, esta história do favónio e das éguas, como Solino (De mirabilibus, 24), Justino (Historiarum Philippicarum, XLIV, 3, 1), Pompónio Mela (De Chorographia, III, 5-6), Silo Itálico (Punica, III, 378-383) e Marciano Capela (De Nuptiis,VI, 629-630), localizando no território de Olisipo uma lenda que outros autores, como Virgílio (Georgicae, III, 272-277) e, já na Antiguidade Tardia, Santo Agostinho (De Ciuitate Dei, XXI, 5, 9-10), situam em outras paragens. Mas as referências míticas associadas ao território olisiponense não ficam por aqui. Para além do topos, também clássico, e certamente fundado na realidade, do Tejo como rio onde se explorava ouro (Fernández Nieto, 197071: 245-259), com as referências de Plínio-o-Velho dizendo-nos que o Tejo é famoso pelas suas areias auríferas (N.H., IV, 1154), corroboradas por Pompónio Mela quando afirma que era um rio gerador de gemas e de ouro (De Chorographia, III, 5-65), que nele se recolhia em pepitas (N.H. XXXIII, 666) e que no território olisiponense, com grande trabalho devido à argila de um solo adusto também se explorava o carbúnculo, espécie de gema ou granada (N. H., XXXVII, 977), Plínio-o-Velho conta-nos ainda, insistindo na visão fantástica e mítica: Tiberio principi nuntiauit Olisiponensium legatio ob id missa, uisum auditumque in quodam specu concha canentem Tritonem qua noscitur forma. Et Nereidum falsa non est, squamis modo hispido corpore etiam qua humanam effigiem habent. Namque haec in eodem spectata litore est, cuius morientis etiam cantum tristem accolae audiuere longe (N. H. IX, 9). Uma legação de Olisiponenses, enviada propositadamente, anunciou ao imperador Tibério ter sido visto e ouvido em certa gruta, um Tritão, de que se conhece a forma, tocando buzina. E também não é irreal a forma das Nereides, com o corpo revestido de escamas, mesmo onde apresentam uma configuração 4 Tagus auriferis harenis celebratur. 5 Tagi ostium, amnis gemmas aurumque generantis. 6 Fluminum ramentis, ut in Tago Hispaniae. 7 Et in Olisiponensi erui scripsit, mano labore ob argilam soli adusti. Exploração que tem sido localizada nas cercanias do Monte Suímo, em Belas, perto de Sintra (Choffat, 1914: 159-198 e Azevedo, 1918:158-164).
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humana. Pois no mesmo litoral foi observada uma delas, da qual, morrendo, os habitantes ouviram também ao longe um canto triste. Da importância desta história e revelando-nos o tipo de mentalidade que levava a oficializar e a cristalizar mitos, testemunha o envio de uma embaixada levando a notícia ao próprio Imperador. Por outro lado, o referente para esta narrativa é, muito provavelmente, a costa marítima associada à Serra de Sintra, onde há grutas e recortes em falésias. Plínio refere sem qualquer dúvida que a gruta de que fala é no litoral.
As referências clássicas ao Cabo da Roca e à Serra de Sintra A Serra de Sintra tem o seu prolongamento natural no Cabo da Roca. O nome mais antigo com este relacionado é o epíteto de Ofiúsa, segundo um périplo originalmente datado dos séc. VI-V a.C., intitulado Ora Maritima, que chegou até nós numa versão do séc. IV d. C., da autoria de um romano chamado Rufus Festus Auienus, que nos diz, narrando a viagem de Norte para Sul: … Prominens surgit dehinc Ophiussae in auras, abque Arui(i) iugo in haec locorum bidui cursus patet. at qui dehiscit inde prolixe sinus, non totus uno facile nauigabilis uento recedit. namque medium ac(cess)eris zephiro vehente, reliqua deposcunt notum. etrusus inde si petat quisquam pede Tartessiorum litus, exuperat uiam uix luce quarta (O. M., 171-180). Surge então nos ares, saliente, o cabo de Ofiúsa, E do cabo Arvio a estas paragens o percurso é de dois dias. O golfo que aí nasce recua a partir desse lugar. Não de todo facilmente navegável com um só vento, Percorrê-lo-ás até meio levado pelo Zéfiro E o restante com o Noto.
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E se alguém vai a pé desde ali até ao litoral dos Tartéssios, Com dificuldade completará o caminho ao quarto dia. O Cabo Ofiúsa surge, nos meados do séc. I d. C., já referido com outros nomes, destacando-se entre eles o de Olisiponense, o que permite a sua identificação indubitável com o Cabo da Roca, pois está directamente ligado ao nome de Olisipo e, portanto, no seu território. Esta designação, atribuída pelo sábio autor da Naturalis Historia, vem acompanhada de outras, Ártabro e Magno. Diz-nos ele: Excurrit deinde in altum uasto cornu promunturium, quod aliqui Artabrum appellauere, alii Magnum, multi Olisiponense ab oppido, terras, maria, caelum discriminans. Illo finitur Hispaniae latus et a circuitu eius incipit frons (N. H., IV, 113). Estende-se depois um promontório para o mar alto, com uma desmesurada saliência, que alguns chamaram Ártabro, outros Magno, muitos, devido ao opido, Olisiponense, dividindo as terras, os mares, o céu. Com ele finda um lado da Hispânia e uma vez contornado começa o seu lado frontal. Como vemos, Plínio associa o Cabo da Roca ao mito dos confins, pois, como afirma, ele separava as terras, os mares e os céus, porque dividia a zona lateral da Península na sua parte frontal, ou seja, o Norte, identificando o mar envolvente como Oceano Gálico, e o Poente, que tinha do seu lado o Oceano Atlântico. Este cabo como que dividia o mundo conhecido do mundo desconhecido, era como que o fim das paisagens mediterrânicas com que Gregos e Romanos se encontravam familiarizados. Mas os nomes dados na Antiguidade ao cabo da Roca não ficam por aqui. Como dissemos, temos a certeza de que ele é referido e associado por Plínio ao território de Olisipo porque lhe chama Olisiponense. Todavia, não sabemos se o refere por conhecimento próprio ou por informação alheia. De facto, Plínio–o-Velho prestou serviço na Tarraconense, mas não há notícias de que tenha viajado por estas paragens da Lusitânia. Assim como, ao veicular outras informações respeitantes a esta região, se baseia em testemunhos que recolheu e não num conhecimento directo, também aqui nos afirma que os diferentes nomes dados ao Cabo da Roca no seu tempo eram atribuídos por alguns, por outros ou por muitos. Contudo, deixa-nos claro que os que no seu
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tempo apelidavam o cabo de Olisiponense não eram apenas alguns, eram muitos. O nome de Magnum surge, por sua vez, poucos anos antes de Plínio, na Corografia de Pompónio Mela, escrita no tempo do imperador Cláudio, onde se escreve: No (território do cabo) Magnum, Ebora8. A designação de Magnum poderá ter a ver não só com a sua associação à Serra de Sintra, bem visível do mar, mas também ao facto de marcar na paisagem a inflexão da costa marítima para Norte. Já o nome de Artabrum aplicado ao cabo da Roca é de exclusiva atribuição pliniana, podendo ele ter confundido este promontório, dada a falta de conhecimento directo, com o cabo Nerium ou Celticum, na Corunha, onde para nós, hoje, mais claramente se dividiria o Mar Gálico do Oceano Atlântico. Tradicionalmente, tem-se pensado que Estrabão não se refere ao cabo da Roca. Todavia, a partir da edição de Schulten (1959: 103), considerando as distâncias enunciadas na Antiguidade, designadamente tendo presente a informação atribuída por aquele geógrafo (Estrabão, 3, 2, 11) a Eratóstenes de que a viagem marítima entre Cádis e o cabo Sagrado (Sacrum) durava cinco dias, tem-se levantado a hipótese de que o cabo da Roca poderia também ter sido conhecido como Sacrum, pelo menos até à era cristã (Alarcão, 2005: 264267).A designação de Sagrado atribuída ao cabo Olisiponense não parece totalmente descabida na Antiguidade, face às características mítico-religiosas em que se enquadrava então o território olisiponense, como estamos constatando e se continuará a sublinhar. Todavia, esta questão é insolúvel, pelo menos hoje, dados os problemas levantados com a transmissão dos textos e com a impossibilidade de verificar referências a autores cujas obras se perderam. Voltando, porém, ainda ao termo Sacrum, possivelmente atribuído pelos antigos ao cabo da Roca, e considerando este promontório como fazendo parte da Serra de Sintra, já vimos atrás que Columela, no início do séc. I d. C., refere no território Olisiponense um Mons Sacer, ou seja, um Monte Sagrado que, segundo ele, se encontrava direccionado para Ocidente junto ao Oceano, monte onde as éguas emprenhavam sem contacto com macho. A relação de Promontorium Sacrum com Mons Sacer ressalta aqui com clareza, no nosso entender, pese embora alguns autores se inclinarem para considerar este Mons Sacer como o actual Monsanto (Vasconcelos, 1905: 103 e Fernandes, 1983-84: 54). Monsanto, todavia, não se encontra junto ao mar nem voltado ao Oci8 De Chorographia, III, 1, 7: In Magno Ebora. Encontrando-se Ebora bastante afastada deste cabo, talvez Mela tenha aqui pretendido referir Eburobritium, recentemente descoberta junto a Óbidos.
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dente, para além de que não se pode comparar em impacto geográfico com a próxima, e bem visível do mar, Serra de Sintra. E apesar de o topónimo Monsanto se aproximar no sentido com aquela designação latina, a evolução linguística revela etimologias diferentes. Mons Sacer nunca daria Monsanto em português, mas qualquer coisa como Monsagre ou Monsagro. Por outro lado, julgamos que os topónimos Tagus (Tejo) e Mons Tagrus (Monte Tagro), já referidos atrás como associados também ao território olisiponense, poderão ter igualmente interagido com os de Sacer ou Sacrum e criado alguma confusão entre os autores clássicos. Mas ressalta que a alusão de Columela às éguas fecundadas pelo vento no Monte Sagrado faz convergir na Serra de Sintra o sagrado com o fantástico, tendo presente a mentalidade do tempo em que ele escreveu o seu texto. Seja como for, adensam-se progressivamente, no correr dos séculos da ocupação romana da zona oeste do território olisiponense, as conotações desta região com o mítico e o maravilhoso, emergindo cada vez mais claramente a Serra de Sintra como topos singular desta relação do real com o imaginário. O ponto culminante destes comportamentos foi atingido nos finais do séc. II – princípios do séc. III d. C., com a erecção de um santuário dedicado ao Sol e à Lua nas faldas desta Serra, para o Poente, junto ao Mar Oceano, como veremos. A íntima relação do cabo da Roca com a Serra de Sintra é vista também, já na Antiguidade, como indubitável, sendo praticamente considerada como a mesma realidade, como verificamos num texto do geógrafo Cláudio Ptolemeu (Geographia, II, 5, 3), do séc. II d. C., que refere este conjunto geográfico como Selhvnhs ovros, avkron Monte da Lua, Promontório. Chegamos, assim, ao culminar das informações clássicas sobre a Serra de Sintra: a sua conotação com a Lua, que na Antiguidade pressupunha a consideração deste astro como divindade e a existência de um culto. Com efeito, a Lua era objecto de culto já na Roma antiga, normalmente em associação com o Sol, associação aprofundada com a influência da mitologia grega. Segundo esta, estes dois astros surgem como Hélio e Selene, irmãos, ambos filhos de Hipérion e de Tia e netos de Urano e de Geia, ou seja, da geração anterior a Apolo e ao próprio Zeus. Se Hélio percorria os céus num carro de fogo puxado por
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quatro cavalos, iniciando a sua viagem na Índia e completando-a a mergulhar no Oceano Ocidental, marcando a duração dos dias, assim Selene pontuava as noites, no seu carro de prata tirado por dois cavalos.Com a expansão e desenvolvimento da religião mitraica pelo Império, incrementa-se ainda mais o culto do Sol e da Lua, bem documentado também, bem próximo do território olisiponense, com um baixo-relevo em Tróia de Setúbal, onde vemos Mitra num banquete com Hélios e a Lua assistindo ao ritual iniciático do mitraísmo, o taurobólio ou sacrifício de um touro. Na hierarquia mitraica, a cada um dos graus correspondia a tutela de uma divindade celeste: ao Corvo, primeiro grau, Mercúrio; ao Noivo (Nymphus), Vénus; ao Soldado (Miles), Marte; ao Leão, Júpiter; ao Persa, a Lua; ao Andarilho do Sol (Heliodromus), o Sol; e ao Pai (Pater), Saturno. Verificando-se uma grande procura pela iniciação mitraica nas zonas de fronteira do Império Romano (Maciel, 1996: 128-131), o culto do Sol e da Lua na Serra de Sintra poderá ter a ver com esse novo dinamismo, até porque é no início do séc. II d. C. que inscrições romanas documentam neste local rituais e sacrifícios a estas divindades pela saúde do imperador Septímio Severo, actos de culto estes que são presididos oficialmente por altas individualidades associadas ao governo da Província da Lusitânia Romana (Idem: 33) .
Baixo-relevo de Tróia de Setúbal, testemunhando o culto do Sol, da Lua e de Mitra. © Fotografia do autor.
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O nome de Monte da Lua/Selenes Oros atribuídopor Ptolemeu à Serra de Sintra, referindo com esta afirmação, indirectamente, o culto tópico da Lua, indicia também o do Sol, dada a associação tradicional comum das duas divindades. Tal associação é confirmada pelas já referidas inscrições romanas. Mas que inscrições são essas?
Pervivência das marcas da Antiguidade em Sintra através dos tempos No séc. XVI, o pintor português Francisco de Holanda diz-nos, na sua obra intitulada Da Fábrica que falece à Cidade de Lisboa, dedicada no ano de 1571 ao rei D. Sebastião (Segurado, 1970: 218), o seguinte: Eu vi, quâdo me o Ifante Dõ Luís vosso tio q. Deos tê: levou a mostrar a Serra de Syntra, mãdandome pa isso, chamar a Lysboa quãdo vim de Itália. E vimos ê a foz do Ryo de Colares Prezada ê outro tempo dos Romãos, sobre hu piqueno outeiro junto do Mar Oçeano: Hu circulo ao Redor cheo de Çipos e Memorias dos Eperadores de Roma q vierão aquele Lugar. E cada hu Punha hu çipo cõ seu Letreiro ao SOL. ETERNO E A LUA a que aquele Promõtorio foi dos Gentios dedicado. Sabemos da formação clássica de Francisco de Holanda, que refere ter identificado este local nas faldas da Serra de Sintra como tendo cipos e inscrições romanas, depois de ter vindo de Itália, ou seja, depois de, nomeadamente em Roma, ter visto muitas marcas arqueológicaa que lhe davam experiência e autoridade para reconhecer outros testemunhos idênticos noutros lugares. A notícia da existência deste monumento vinha já de 1505 (CIL II, 30*), através de dois textos de Valentim Fernandes (Anselmo, 1984: 781-818) e é veiculada também por André de Rezende9, que nos diz: nas faldas do monte, no próprio cimo da falésia, que se precipita no Oceano,existiu antigamente um templo consagrado ao Sol e à Lua. Dele só restam escombros nas areias litorâneas e alguns cipos indiciadores de antiga superstição. Francisco de Holanda deixou-nos, porém, um desenho deste monumento, que hoje necessita de uma leitura arqueológica ainda não processada no local. A descrição de Holanda, associada à imagem em que nos surge uma
9 L. André de Rezende, 1593:fl. 38: Ad radices montis in ipso promontorij cacumine, quo in oceanum praecipitatur, templum olim fuit Soli, & Lunae sacrum. Cuius modo inter littoraleis arenas ruinae tantum extant, & cippi aliquot inscripti superstitionis antiquae indices.
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Texto de Francisco de Holanda sobre o Templo ao Sol e à Lua na Serra de Sintra, in Segurado (1970) p. 114.
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plataforma com o mar e o Sol poente tendo à sua direita a Lua, assim como o desenho da foz do Rio de Colares ou das Maçãs, com a representação dos seus meandros e do lugar onde este curso de água entra no mar. A única inscrição que nos é mostrada no texto, porém, embora iniciada pela expressão SOLI . AETERNO, direcciona a dedicatória para Jesus Cristo e para a Virgem Maria, dado o contexto típico dos meados do séc. XVI em que não podiam restar dúvidas da cristianização de todos os santuários pagãos. Todavia, apesar desta ressalva apresentada por Francisco de Holanda, torna-se evidente que se quer cristianizar um testemunho do antigo culto ao Sol e à Lua neste local, testemunho esse que consiste na existência, confirmada por vários humanistas e epigrafistas até aos nossos dias, de inscrições que dão conta de ali se sacrificar a estas divindades, na época romana, por altas individualidades do estado romano, pela saúde dos imperadores e pela Eternidade do Império10.
1ª inscrição: SOLI. ET LVNAE CEST. ACIDIVS PERENNIS LEG. AUG. PR. PR. PRO VINCIAE LVSITA NIAE
(Comparar com CIL II 258)
AO SOL E À LUA DEDICA CÉSTIO ACÍDIO PERENE, LEGADO AUGUSTAL, PROPRETOR DA PROVÍNCIA DA LUSITÂNIA
10 Dados os problemas de interpretação destas inscrições, optamos por apresentar o seu texto tal qual foi transcrito e interpretado no séc. XVI por Resende, com facsimile e sua tradução por R.M.R.Fernandes, 1996, fl. 39 e p. 99, respectivamente.
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2ª inscrição11: SOLI AETERNO LVNAE PRO AE TERNITATE IMPERII. ET SALVTE IMPE. CAE… SEPTIMI SEVERI. AV G. PII.ET IMP. CAES. …M. AVRELI. ANTONINI AVG. PII …CAES. ET IVLIAE AVG. MATRIS. CAES. DRVSVS.VALER.COELIANVS VI ATIVSI… AVGVSTORUM CVMV … SVALE … NI … SVA ET Q. IVLIVS. SATVR. QVAL … ET ANTO NIVS …
(Comparar com CIL II, 259) AO SOL ETERNO E À LUA PELA ETERNIDADE DO IMPÉRIO E PELA BOA SAÚDE DO IMPERADOR GAIO SEPTÍMIO SEVERO, AUGUSTO E PIO, E DO IMPERADOR CÉSAR MARCO AURÉLIO ANTONINO, AUGUSTO, PIO…CÉSAR, E DE JÚLIA AUGUSTA, MÃE DE CÉSAR, DEDICAM DRUSO,VALERIANO CELIANO … E QUINTO JÚLIO SATURNINO E ANTÓNIO…
11 Uma terceira inscrição, hoje no Museu de Odrinhas, apresentando a primeira linha praticamente toda destruída, guarda ainda nela as letras ERN (?), onde se tem procurado ler o indício de AETERNO, o que incluiria esta inscrição no mesmo grupo das já referidas. Assim, esta inscrição, que nos dispensamos de aqui transcrever em latim, devido às dificuldades de leitura de um texto já muito danificado, diria o seguinte, segundo o esforço interpretativo do saudoso Professor Scarlat Lambrino: Caio Júlio Celso, filho de Caio, da tribo Quirina…inscrito na distinta classe senatorial pelo mesmo (imperador) … enviado …na Dácia (?) Superior (?) … encarregado das reclamações e do registo de pessoas e bens, administrador da Província da Lusitânia … administrador … administrador de Neápolis, e do Mausoléu em Alexandria, administrador da vigésima parte das heranças nas Províncias Narbonense e Aquitânia, curador das estradas Emília e Triunfal, consagrou este monumento (S. Lambrino, Les inscriptions de São Miguel d’Odrinhas, in Bulletin des Études Portugaises et de l’Institut Français au Portugal, Nouvelle Série (Coimbra) 16 (1952) 142-150). A tradução apresentada é a proposta por J. Fontes e F. Almeida, Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas, Catálogo, 4ª ed., Sintra, 1979, p. 37. Veja-se tamém, a este respeito, M. J. Maciel, A Antiguidade Tardia no Ager Olisiponense, O Mausoléu de Odrinhas, Porto, 1999, pp. 31-35.
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É possível, pelos dados que transmite, datar esta segunda inscrição entre os anos de 201 e 210 d.C., pois nela se referem Imperadores da dinastia dos Severos, como Septímio Severo, Caracala e a Imperatriz Júlia Domna. Vários autores de referiram posteriormente a este monumento, sobretudo ao citarem as inscrições que nele foram encontradas. Atentos nomeadamente à colecção epigráfica que, desde o séc. XVI, se vem documentando junto à Capela de São Miguel de Odrinhas (Sintra), onde André de Rezende localizou hum templo velho, do que ainda sta huma aboboda12, historiadores portugueses e estrangeiros referem continuamente estas inscrições como testemunho do culto romano local ao Sol e à Lua. James Murphy (1797: 279), viajante inglês que visitou Portugal em 1789 e 1790 ainda pôde constatar no terreno marcas deste santuário, segundo escreveu: A cerca de seis milhas a sudoeste da Vila de Sintra, patenteiam-se vestígios de um edifício que se supõe ter sido um templo consagrado ao Sol e à Lua. Duarte Nunes de Leão, que publicou uma descrição abreviada de Portugal, diz que aí se encontraram fragmentadas as seguintes duas inscrições (que transcreve). Pouco ou nada sabemos do fundo cultural indígena do território olisiponense e do seu paralelismo com a conotação da Serra de Sintra com o sagrado. Para além de povoados pré-romanos na Serra, de que destacamos o de Santa Eufémia (Pereira, 1975: 9-12) há a registar a recente descoberta de um ex-voto em bronze representando um carneiro (Ponte, 1982-83: 89-9413) descoberto no Arraçário, perto da Vila Velha, testemunho descontextualizado de possível culto local. Em 1956 foi encontrada na Madre de Deus, também nas faldas da Serra de Sintra, uma árula votiva, hoje no Museu de Odrinhas, dedicada a MANDICEVS, divindade indiscutivelmente ibérica, segundo o comentário de Mário Cardozo (1958: 376). Mas nada sabemos dos seus atributos (Encarnação, 1975: 233) ou da sua eventual conotação com a sacralidade da Serra de Sintra. Porque aqui foi encontrada, num contexto de romanização, esta pequena ara não pode deixar de ser referida como testemunhando a interacção e a aculturação entre a religião romana e as religiões indígenas em Sintra: CASSIA MATER MANDICEO V(otum) S(oluit) L(ibens)
Cássia, Mãe, cumpriu de boa vontade o seu voto a Mandiceu 12 Codex Valentianus, fl. 46v, hoje desaparecido, citado em CIL II, p. XIV, nº. 28 e p. 34, nº. 312. 13 Referência bibliográfica que agradeço à Dra.Teresa Caetano.
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Templo ao Sol e à Lua na Serra de Sintra, segundo Francisco de Holanda, in Segurado (1970) p. 115
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A helenização também surge com evidência neste espaço geográfico, com múltiplos testemunhos materiais e escritos. Se aos Focenses deram o nome de Ofiúsa ou Ofiússa ao Cabo da Roca, tal implica uma associação, se não de todo religiosa, pelo menos cultural, à mítica Serpente, entre os Gregos irmã das Górgonas, filha de Ceto e de Fórcis, por sua vez filhos de Geia, a Terra, e de Ponto, o Mar (Grimal, 1992, p. 388). Outros nomes, como Ofíon, gigante transformado em monte (Grimal, 1992, p. 336), poderão estar na base deste nome de origem mítica. Os romanos adensam e complexificam a sacralidade do lugar, sacralidade essa que se estende a um território envolvente, já não só o Promontório, mas também toda a Serra, o rio Tejo e o Mar Oceano. Com a cristianização surge uma nova topografia que, em certos comportamentos, define continuidades. A sacralização cristã, na linha do que o judaísmo fez com o Moriah, o Sinai ou o Carmelo, também elegeu os montes como lugares de teofania, onde Deus se manifesta como Cristo o fez no Monte Tabor. A Serra de Sintra e seus arrabaldes, com a cristianização, pontuou-se de igrejas, capelas e mosteiros, identificáveis sobretudo a partir da Reconquista, mas muitas destas construções revelando, pelas características do culto nelas prestado e pelos lugares onde surgem, uma implantação pré-islâmica. É o caso das Capelas de São Saturnino, Santa Eufémia, São Romão e mesmo da já afastada da Serra Ermida de São Miguel de Odrinhas, consideradas na época da Reconquista como heremitagia, pequenos mosteiros no sentido estrito do termo, ou seja, ermitérios que, juntamente com as igrejas paroquiais de São Pedro, São Martinho, Santa Maria e São Miguel, definiam a topografia cristã de Sintra logo após a tomada desta Vila aos Mouros (Costa, 1980: 103-108). Se a capela de Santa Eufémia da Serra cristianiza um castro, a de São Miguel de Odrinhas dá continuidade a um mausoléu de Villa romana tardia em contexto cristão (Maciel, 1999). Quanto aos mosteiros, sabemos que na Lusitânia do séc. IV já se procuravam os montes como lugares de ascese, como o revelam designadamente cânones de Concílios hispânicos (Maciel, 1996: 46-49). A sua existência na Antiguidade Tardia e na época moçárabe explicará o facto de eles já serem referidos na época da Reconquista. Com o Renascimento, quando se redescobrem os textos clássicos e se desenvolve o espírito humanista, o fantástico transforma-se literariamente em maravilhoso. Camões dá-nos a melhor visão, em Os Lusíadas, deste locus amoenus em que, na realidade, no seu tempo, se transforma a Serra de Sintra:
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E nas serras da Lua conhecidas Sojuga a fria Sintra o duro braço, Sintra, onde as Náiades escondidas Nas fontes vão fugindo ao doce laço Onde Amor as enreda brandamente Nas agoas acendendo fogo ardente. Lus. III, 56. As estadas da corte e da nobreza em Sintra dão-nos conta deste novo culto da Serra no séc. XVI. Um dos melhores exemplos é o de D. João de Castro, vice-rei das Índias, que escolhe a Penha Verde para as suas horas de lazer e pontua a sua paisagem com a já chamada topografia cristã, onde se destaca a ermida de Nossa Senhora do Monte, por ele mandada fazer para nela vir a ser sepultado, e outras quatro, erigidas pelo seu neto D. Francisco de Castro, respectivamente, a São Brás, São Pedro, São João e Santa Catarina do Monte Sinai (Memórias Paroquiais, 11, 2257-6714). Sabemos também que o Convento dos Capuchos, no alto da Serra, foi construído em 1560 também por disposição testamentária de D. João de Castro (Brandão, 1924: 531). É igualmente de referir a decisão desta personagem, respeitada pelos seus descendentes, de transformar o espaço da Penha Verde em floresta, substituindo as árvores de fruto por outras silvestres, tudo confluindo para que se mantivesse perene a visão mítica da Serra e da sua envolvência, lugar de encontro de humanistas portugueses que aqui se dirigiam no séc. XVI, como que levados por um inconsciente colectivo potenciando contínuas recordações. As Memórias Paroquiais de 1758 dizem-nos que no séc. XVIII ainda subsistiam na Penha Verde referenciais clássicos: Antes de se entrar na ermida (de Nossa Senhora do Monte), que toda está rodeada de muros para a parte esquerda, se divisa hum Minotauro, o qual tem menos a cabeça. E mais para diante está uma loba de pedra criando três meninos… (Azevedo, 1982: 161). E mais adiante referem ali um antigo jardim tendo no meyo huma Estatua de Neptuno, feita de jaspe, que lança água por varias partes (Idem: 162). E ainda:
14 Transcritas por Azevedo, 1982: 161-165.
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Tem três fontes que a enobrecem. A primeira he huma gruta primorosamente lavrada, assim de brutesco, e como de embrexado; nella se vê huma figura de Vénus nua, deitada em hua cama, tudo feito de jaspe, e de obra delicadíssima. Por junto della corre huma bica de água (Idem : 163). Rematam assim estas informações sobre a Quinta da Penha Verde, que se devem ao então Prior de São Martinho de Sintra, Padre Sebastião Nunes Borges: Além das fontes tem a dita quinta hum jardim de buxo com vários lavores, e nichos aonde estão os retratos de alguns Emperadores Romanos de pedra mármore de meio corpo, munto polidos, e bem sinzelados, que não só ornão o jardim, mas também o fazem magestozo (Ibidem). A mesma atenção aos ecos clássicos da Serra de Sintra manifestaram os Párocos de Santa Maria e de São Pedro de Penaferrim, testemunhando que então permanecia bem viva na cultura local a importância deste espaço na Antiguidade: A esta Serra, chamada vulgarmente Serra de Sintra, os mareantes lhe chamam Cabo da Rocha (sic) e os antiguos, Promontório, ou Monte da Lua (Padre Francisco Antunes Monteiro, Idem:176). He a Serra de Cintra tão particular q. creio ser das mais raras, q. há no mundo. Faz lado oposto ao pormontorio da Lua, servindo de guia aos que navegáo no mar occeano (Padre António de Souza Sexas, Idem: 168-169). Algo que não pode ser também esquecido é um estela indiana que ainda hoje se pode ver na Penha Verde, dedicada ao Sol e à Lua, que se pensa ter sido trazida do Oriente pelo próprio D. João de Castro, como que voltando a reunir testemunhos do passado comum indo-europeu num lugar que os humanistas bem sabiam estar intimamente ligado àquele antigo culto astral. Noutros locais de Sintra podemos referir, até à época romântica, este pontuar dos espaços humanizados com bustos à romana, seres míticos marinhos em escultura ou em pintura, figuras alegóricas ou até arquitectura a imitar o clássico, exemplos que poderemos ainda hoje ver no Palácio de Seteais, na Quinta Mazziotti, no Palácio da Pena, na Quinta da Regaleira, etc. Mas o romantismo busca também em Sintra esta carga cultural de continuidades, que leva Garrett a afirmar: Cintra, amena estancia, Throno da vecejante primavera, Quem te não ama? Quem em teu recinto
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Uma hora de vida lhe ha corrido, Essa hora esquecerá? Camões,V Poderíamos entrar aqui em referências que hoje já são lugares comuns, como a do Glorious Eden de Byron (Child Harold, XVIII), ou a de este novo paraíso, do Visconde de Juromenha (1838, 7) e por aí fora.
Do lugar sagrado ao locus amoenus e deste à paisagem cultural A classificação contemporânea de Sintra como Património Mundial, dentro da categoria Paisagem Cultural, atribuída pelo Comité do Património Mundial da UNESCO, reunido em Berlim em 06 de Dezembro de 1995, resulta da convergência de múltiplos comportamentos culturais que se foram sobrepondo em entropia através das diferentes épocas históricas. A contemplação da paisagem, o seu reconhecimento e a sua humanização permitiram que uma era transmitisse a outra as suas vivências culturais, aprofundando e enriquecendo progressivamente a memória histórica na conjugação interactiva das categorias de espaço e de tempo. Se, em determinado momento, o locus sacer, o lugar sagrado, se revela como locus amoenus, ou seja, como espaço de paz, de descanso e de fruição estética, naturalmente o sagrado ligado à natureza é substituído pelo culto da paisagem, transformando-se o dinamismo subjacente em entropia cultural. Esta passagem do sagrado ao cenográfico, diríamos assim, lembrando o estilo paisagístico da cena teatral greco-romana, relevando a dimensão estética da paisagem, não surge como um deus ex machina, repentinamente, mas como o resultado de um processo lento e por input, sistema de funcionamento em que o actual conceito de feed-back se poderá aplicar razoavelmente. Com efeito, a carga cultural que herdamos do passado resulta não só horizontalmente da vivência paratáctica de quotidianos, mas também verticalmente de hierarquizações temporais de continuidades. Pensamos que o título que propusemos para esta reflexão – Do topos clássico à paisagem cultural: Sintra e a sua envolvência na Antiguidade – poderá,
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em conclusão, ser explicitado também como um resumo da nossa exposição: se hoje integramos Sintra no conceito de Paisagem Cultural, uma leitura atenta e fundamentada revela-nos que essa classificação resulta da convergência de múltiplos comportamentos, iniciados no dealbar dos tempos, em que o sagrado interage com o profano em sucessivas etapas. Do cabo Ofiúsa ao monte Sagrado onde se cultuava oficialmente na época romana o Sol e a Lua, da topografia cristã à desmitificação humanista típica do Renascimento que transforma o lugar sagrado em lugar ameno, eis um exemplo de referências que, juntamente com outras, definem a Antiguidade como um tempo determinante no condicionamento de uma paisagem que, de natural, se tornou humanizada, numa vivência edénica que se adensou ao longo dos tempos.
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Palavras-chave: Criptopórtico; Foro;Teatro; Circo; Mosaico Key words: Cryptoportic; Forum;Theatre; Circus; Mosaic
RESUMO
ABSTRACT This article surveys the myth of the foundation of Lisbon by Ulysses and its repercussions on Portuguese fifteenthcentury Humanism. It also maps the urban evolution of Olisipo’s opidum, identifying the various moments of its history, with particular attention to protoRoman urbanism, of which some Punic pieces of evidence have become known. This article focuses, however, in Roman times especially after the Augustan reform, when the city was given municipal status and became known as Felicitas Iulia Olisipo. I will analyze its evolution, highlighting the main architectural and artistic remainders, as well as its development and the historical accidents that shaped it and imprinted upon it a peculiar configuration, especially during the early empire.
Com este artigo pretende-se – para além de se abordar de um modo genérico o mito ulisseio fundador do topos olisiponense e as suas repercussões no contexto do humanismo quinhentista de génese nacional – construir um discurso acerca da evolução urbanística do ópido de Olisipo, abordando os diversos momentos da sua história, com particular enfoque no urbanismo proto-romano, do qual se vão conhecendo já alguns testemunhos púnicos. O cerne deste trabalho, todavia, centra-se na época romana e a partir da reforma augustana, provavelmente encetada como consequência da atribuição do estatuto municipal a esta cidade que tomou a designação de Felicitas Iulia Olisipo e a sua evolução ao longo do tempo, realçando-se a análise dos principais vestígios arquitectónicos e/ou artísticos subsistentes, bem como o seu desenvolvimento e as vicissitudes históricas que lhe foram modelando o fácies e impuseram um distinto prospecto, sobretudo na época baixo-imperial.
«O ÚLTIMO PORTO DE ULISSES»: história, urbanismo e arte de Felicitas Iulia Olisipo Maria Teresa Caetano*
Por que motivo um arquitecto pode definir belo um certo edifício, uma vez que tenha feito corresponder o aspecto exterior à sua ideia interior? Porque, prescindindo das pedras com que foi construído, o edifício externo não é mais do que aquela ideia interna distribuída na dimensão perceptível da matéria. Unidade indivisa, a forma interna manifesta-se como multiplicidade. (Plotino, 1.6.3., in Lombardo 2003, 210) Não se ambiciona com este trabalho operar novas teses acerca do urbanismo ou da arte de Felicitas Iulia Olisipo, mas, antes pelo contrário, pretende-se, tão-somente, intentar uma sistematização, recorrendo-se amiúde à História, no sentido de melhor se enquadrar os escassos elementos artísticos e/ou arquitecturais que subsistem, derivando alguns deles do conhecimento acumulado ao longo dos séculos e que nos foram legados pelas fontes histórico-literárias. Até porque, cidade de muitas cidades, mercê das vicissitudes dos homens, dos tempos e, até mesmo, de impiedosos fenómenos da natureza a nossa visão do ópido de Olisipo até à Felicitas Iulia romana, desde a reforma augustana até à antiguidade tardia, resume-se a uma série de imagens reduzidas que apenas nos permitem obter uma visão muito incompleta e sincopada no que respeita à sua arte, à tipologia da sua arquitectura e sequente integração espacial no acidentado tecido urbano da cidade, o que dificulta sobremaneira o papel do historiador da arte. Por seu turno, a evolução das ciências históricas e a sua implementação mais ou menos sistematizada no terreno (desde, sobretudo, o trabalho do antiquariato dos séculos XVI, XVII e XVIII, passando pelo labor dos olisipógrafos * Doutoranda em História da Arte da Antiguidade na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
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oitocentistas e da primeira metade da centúria seguinte e com o recurso à arqueologia aplicada nas últimas décadas) têm contribuído, de modo inequívoco, para que, hoje, se desfrute de Olisipo uma panorâmica mais consistente, ainda que bastante generalista e incompleta.Talvez por isso, começa este estudo com uma abordagem ao mito subjacente à criação do topos olisiponense, desde a sua pseudo fundação pelo lendário Ulisses, o herói grego que, não só venceu os troianos, mas venceu, igualmente, o medo do Oceano desconhecido e, navegando para além das colunas de Hércules, abrigou-se na foz do Tejo onde erigiu o seu ópido que foi também fenício e púnico, mas foi sobretudo romano. Felicitas Iulia Olisipo, assim a baptizou Augusto, o primeiro imperador de Roma e, no seguimento de uma política de Estado, reformou o velho povoado que foi crescendo até ao advento de um mundo novo. As crises do século III e as invasões germânicas modificaram-lhe o prospecto, mas conservaram-lhe a alma reacomodada às novas realidades, pelo que, quando nos começos do século VIII os árabes a tomaram e, em 1147, quando os cruzados aqui chegaram, todos eles se espantaram com o colorido e a fortuna desta cidade.
1. De Ulisses a Olisipo: o itinerário mitómino de um oppidum na finisterra ocidental «O astuto capitão Vlysses, inda que na casta Penelope não tinha que temer semelhantes erros, nem porque deixar suas Ilhas, o mar lhe foy tão contrario, que dando com elle em varias partes, o fez chegar ao estreito de Gibraltar, & saindo ao mar Occeano, foy dobrando as prayas de Lusytania, té entrar pella corrente do Tejo, tão namorado de suas agoas, que esquecido da propria terra, quis fazer natural a em que apportara, que nenhua há por estranha que seja, que o varão prudente não ache accommodada com sua natureza (…) aportou nella Vlysses com alguas embarcações, que as ondas do mar lhe deixarão ysentas da tempestade, e subindo, como dissemos, pellas claras ondas do Tejo, sayo em terra conuidado (como se pode julgar) do quieto porto, em que tinha as nãos seguras, & da fertilidade, que na terra via, pera refazer os corpos cansados, por tão largas nauegações. Aqui esteue o prudente Capitão descansando muitos dias, no fim dos quais querendo leuantar as uellas para se tornar a Ithaca, achou as uontades de seus companheiros tão alheas neste particular da sua, que uendosse com pouco remedio, pêra se tornar só a Grecia, escolheo por menos mal escolher o
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parecer, & desejo dos mais, começandolhe a fundar hua formosa cidade, junto do proprio Tejo (…). Acabada por Vlysses a grande machina do tempo, pos as mãos na obra da cidade, fortificando-a com os melhores, & mais fortes muros, que naquelle tempo se costumauão, repartindo a obra por varias companhias da gente, pera com a interpollação do trabalho, o não sentissem tanto, deste modo concluiu Vlysses breuemente a sua pouoação, dandolhe (como quer Solino) seu proprio nome, do qual se chamou Vlysseia, ou como lhe chama Plinio Olysippo (…). Foy tão grande o contentamento que Vlysses teue desta pouoação, que esquecida a fellicidade, & quietação de seu Reyno, punha todas as suas forças em prosperar, e engrandecer o que de nouo fundaua: & refazendo as embarcações destroçadas, se occupauão em pescar no Tejo, a variedade de grandes & sabrosos peixes, que em si cria, de modo, que quanto mais estauão na terra, tanto menos causas se achauão pêra se lembrar da sua» (Brito 1973, 65v-66).
Os mitos assumiram, ao longo dos tempos, características mágico-simbólicas que, para além de agirem como catalisadores sociais e religiosos, foram evoluindo conforme as necessidades próprias das comunidades, quer acrescentando novos episódios, quer omitindo partes das diegeses, quer, ainda, criando narrativas complementares, tudo isto de forma a melhor se contextualizar igualmente o momento histórico vivenciado pelos seus actores, perpetuando-se, assim, na memória colectiva e idiossincrática. Muitas delas, no entanto, foram compostas, ou acabaram, em determinado momento, fixadas, por uma elite letrada que encontrou, também no topos olisiponense, abençoado por uma farta natureza, inesgotável fonte de inspiração, cuja phantasia depressa se sobrepôs à objectividade da razão, metamorfoseando-a em corpóreas certezas. Todavia, ao contrário dos gregos, cuja cosmogonia era bastante complexa e, por vezes, belicosa, os romanos – talvez pela sua origem rústica – apresentavam durante aqueles tempos remotos um universo divino simples e descomplexado, bastamente arreigado à vida campestre e ao ciclo das estações, tendo por isso encontrado o seu grande mito na fundação de Roma, a criação do seu topos. Contudo, após terem estabelecido contactos próximos com o mundo helénico foram-se abeberando da mitologia grega e, ainda que não se modelassem completamente a este fenómeno, pois tornaram-se prolíficos na lenda histórica que usaram como um subterfúgio eficiente: «Partindo de acontecimentos, por vezes até mesmo da topografia, sugerida por um acidente geográfico, como um lago ou rochedo, ou por um monumento, como uma estátua, o espírito romano integrou narrativas na
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sua História oficial e transformou-as em acontecimentos de referência que se tornaram modelos de comportamento relativamente à pátria. Assim, elencavam uma série de acontecimentos tidos como históricos mas ao mesmo tempo imbuídos de carácter lendário, preenchendo a lacuna mitológica que se faz sentir na cultura romana. Se não aconteceram, poderiam muito bem ter acontecido, para não dizer, deveriam ter acontecido. Na verdade, é mesmo de pragmatismo e de paradigma que se trata.Tudo deve ter como objectivo um modelo de acção que deve inspirar todo o bom cidadão romano» (Rodrigues 2005, 14-15).
Foi já desde a antiguidade clássica que se teceram peculiares narrativas, acerca de um oppidum que, localizado muito para além das Colunas de Hércules, agiu como um caminho para a periferia do mundo conhecido. Mas então assentando-se orgulhoso, nos limites extremos da ocidentalidade, vivia-se a finisterra e olhava-se a imensidão de um oceano ainda por descobrir. Este facto, contudo, carreou, devido à excelência da sua geografia, da imponência do seu porto, da abundância de gado e da fertilidade dos seus campos, uma efabulação que encontrou no historiador romano Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.) digno intérprete, quando afirmou, como inquestionável verdade histórica, que, num monte próximo do ópido de Olisipo, as éguas, fecundadas pelo favónio davam à luz os potros mais velozes que se conheciam, porém, aqueles não viviam mais do que alguns anos (Almeida 1985, 3)1. Para Mendes de Almeida, esta descrição de Olisipo, mais do que se enredar numa lenda, procurou demonstrar a «fama» daquela cidade, ou, como se alonga Aires Nascimento, o «epónimo é-lhe atribuído em percurso de evocação e apropriação e não por razões de fundação; no entanto, por mais objecções que se coloquem relativamente a uma dependência do nome de Lisboa relativamente ao de Ulisses, não é menos certo que, em tempos marcados, a comunidade humana (…) se reclamou desse nome para se prevalecer de títulos de glória» (Nascimento 2006, 1). Outros autores antigos retiveram também este fenómeno, como, por exemplo, Plínio-o-Velho (23/24-79 d.C.), que na sua Naturalis Historia, escreveu: «Constat in Lusitania circa Olisiponem oppidum et Tagum amnen equas fauonio
1 Este autor identifica o Monte Tagro com Monsanto, de Monte Santo, nas imediações da cidade de Lisboa, ao contrário de outros estudiosos, que fazem coincidir aquela montanha com a Serra de Sintra, e com os quais estamos de acordo.
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flante obuersas animalem concipere spiritum, idque partum fieri et gigni pernicicissimum ita, sed triennium uitae non execedere» (8, 166, in Guerra 1994, 36). Virgílio, no canto XVI, da Ilíada (versos 148-151), mencionou «os velozes cavalos Xanto e Balio, conduzidos por Automedonte, foram concebidos do vento Zéfiro, que os apascentava num prado junto do curso do Oceano»; mais tarde, já no século IV, o cristão Lactâncio, ao justificar o milagroso nascimento de Jesus, afirmou, como verdade irrefutável, «se todos sabem que não é raro alguns animais conceberem do vento ou das brisas, causará admiração se dissermos que a Virgem concebeu do espírito de Deus, a quem tudo é permitido?» (A Verdadeira Sabedoria, Livro III, in Almeida 1985, 4). Avieno, na sua Ora Marítima, redigida por volta de 350 com base num périplo massiliota do século VI a.C., menciona o Cabo da Roca e a entrada da imensa baía em que desagua o Tejo nos seguintes termos: «Depois emerge o promontório de Ofiússa. Do cabo Aruio até estes locais dista uma viagem de dois dias». Numa passagem anterior da sua descrição, referiu o «Oceano povoado de monstros» (Avieno 1992, 20) e, aqui aportados, recordamos, uma vez mais, Plínio-o-Velho quando aludiu ao envio de uma embaixada de olisiponenses ao imperador Tibério, com a notícia de que, numa gruta daquela costa, se avistara um tritão e, mais ao longe, se tinha visto e escutado o canto agonizante e triste de uma Nereida (Plínio-o-Velho, 9,9 in Guerra 1995, 39). Retornando à questão primordial sobre os textos que atribuem a fundação da cidade de Lisboa a Ulisses, sobressaem algumas outras referências, como, a de Gaio Júlio Solino que, no século III, referiu na sua Collectanea rerum memorabilium o «ópido de Olisipo, fundado por Ulisses» e, de épocas mais tardias, designadamente da primeira metade do século V, ficou o testemunho de um erudito africano, Marciano Capela. Nas suas Etimologias, Santo Isidoro de Sevilha (séculos VI-VII) afirma que «Olisipo deve a Ulisses fundação e nome» (in Almeida 1985, 10). Para além de algumas outras evocações medievais (cfr., v.g., Nascimento 2006), destacamos, em 1147, e em contexto da Reconquista cristã da Ulixbona islâmica, a passagem da Carta de Arnulfo a Milão bispo dos Morinos, onde o cruzado afirmou, «conforme contam as histórias dos sarracenos, foi edificada por Ulisses depois da destruição de Tróia e, construída sobre um monte, é pela estructura admirável das suas muralhas e das suas torres, inexpugnável por forças humanas» (in Oliveira 1936, 114), pois Arnulfo, ao atribuir tal narrativa aos sarracenos, poderá, de algum modo, indiciar que este mito odisseico, de remotas origens, como vimos, aliás, perpassou a Antiguidade,
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sobreviveu aos controversos tempos que lhe seguiram e encontrou também o seu próprio espaço na cultura tardo-romana e medieval, pois, na verdade, o tal falso acontecimento, já há muito, se havia, transmudado em incontestado facto pelos próprios romanos. Será, igualmente neste contexto que o cruzado Osberno, na epístola que comummente lhe tem sido atribuída, ainda que mais recentemente se venha a identificar como seu autor Arnulfo de Glandeville, referiu «Quo ab Ulixe opidum Ulyxibona conditum creditur», e «In cujus pascuis equae lasciviunt mura fecunditate nam aspiratae favoniis, vento concipiunt es postmodum sitientes cum maribus coeunt» (in Oliveira 1936, 59-60). Mas, por outro lado, se ambos os cristãos assumiram estes mitos como verdadeiros, o pseudo-Osberno referiu-se ainda – ao narrar uma prevalência histórica – que, em Sintra, existia «uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que é um estranho» (in Oliveira 1936, 59). Na verdade, num cume do antigo mons sacer, subsistem vestígios, junto a uma fonte de águas de boa temperança, de um castro proto-histórico de influências púnicas, que, mais tarde, os romanos perpetuaram tendo eventualmente erigindo no local um templo devotado ao culto das águas – do qual se conhecem, hoje, dois grandes fustes de coluna de mármore (Ribeiro 1983, 350)2 – e que, depois, os cristãos renovaram sacrali2 A água é fonte da vida, regeneradora, purificadora, ou, tão-somente, a água que sacia a sede e transmuda frágeis caules em troncos vigorosos que tem, desde imemoriais tempos, alimentado imaginários colectivos e adquirido virtudes supra-naturais, ou mesmo divinas. Por isso, a «água assumiu desde sempre um papel de grande importância para todas as civilizações, sendo que algumas desenvolveram mitos e pensamentos filosóficos que a concebiam como origem do Mundo. No antigo Egipto afirmou-se a cosmogonia heliopolitana e na Grécia a filosofia pré-socrática de Tales de Mileto. A primeira concebia a formação do mundo a partir das ‘águas primordiais – o Noun, de onde emergiu Atoum. O demiurgo ‘Pai dos deuses’ da eneade; a segunda concebia a água como origem de tudo, substância primordial do Universo imutável no fluxo de tudo o que existe, «animada por uma força activa, vivifivadora e transformadora’» (Mourão, no prelo). Água que no Antigo Testamento é igualmente fonte da vida, mas também da morte quando devasta e quando ganha poderes maléficos. As águas da morte castigam os pecadores, como sucedeu com a Primeira Praga do Egipto: «Moisés e Aarão cumpriram a ordem do Senhor. Sob os olhos do Faraó e sob os olhos dos seus servidores,Aarão, levantando a vara, feriu as águas do rio, e todas as águas do rio se transformaram em sangue. Os peixes do rio morreram, as águas do rio ficaram infectadas e os egípcios não as podiam beber. E, em vez de água, só havia sangue por todo o Egipto» (Êxodo 7, 20-21). Na Bíblia patenteiam-se ainda outras passagens relativas a esta temática: «Salvai-me ó Deus, porque as águas quase me submergem. Estou-me afundando no abismo profundo, onde não há ponto de apoio; entrei no abismo de águas profundas e já as vagas mar cobrem» (Salmos, 69, 2-3); e «Mas os ímpios são como um mar encapelado, que não se podem acalmar, cujas ondas revolvem lodo e lama» [Isaías, 57, 20 (Bíblia Sagrada — Nova Edição Papal, C. D. Stampley Ent., Inc., ed. 1974)].
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zando o local, ao erguer ali pequena ermida devotada à mártir Eufémia, junto à própria pegada da santa, «onde rebentou uma fonte cuja água é muito milagrosa» (Jordam 1874, 14)3. Enquanto noutro cume extremo serrano, sobre agreste e fragoso cume aberto ao mar, uma outra ermida, esta associada às passadas da burrinha de Nossa Senhora, assumiu na tradição de toada oral o reconhecimento da existência de «água benta» que se poderá ter consumado na erecção, em 1739, de uma fonte dedicada à Virgem da Peninha, feita pelos romeiros vindos de Lisboa (Caetano 1999, 36). O humanismo luso recuperou magistralmente o mito odisseico, sobretudo no contexto da expansão ultramarina, e com base no suposto epónimo com o mítico viajante grego – de quem terão herdado a uirtus –, pois os portugueses foram os únicos capazes de transpor finalmente o «abismo sem fim» referido no périplo massaliota, dando novos mundos ao mundo. Por conseguinte, a hipotipose não se resume aos «muros Vlisseos» da épica camoniana (Camões 1572, c. III, 47v.), mas, ipso facto, surge objectivamente no próprio contexto do antiquariato. Assim, e a mero título exemplificativo, refiram-se os primordiais escritos de André de Resende inspirados na Geografia de Estrabão, e por isso, legitimados, que contemplou em «Ibi oppidum Olisipo ab Ulysse conditum» (Resende 1790, L. I, 14); de Damião de Góis, in Urbis Olisiponis Descriptio, com primeira edição em 1554, onde se interroga quem terá sido o primeiro fundador de Lisboa e, prudentemente, contorna a questão, sem todavia a enjeitar, porquanto se lhe reporta nos seguintes termos: «Os escritores mais antigos incluem-na, porém, entre as mais antigas cidades de Hispânia. Varrão chama-lhe Olisiponem; Ptolomeu, Oliosiponem; Estrabão dá-lhe o nome de Ulisseam e parece atestar, baseado nas palavras de Asclepíades Mirliano, que foi fundada por Ulisses (…). Diz até que em Lisboa se encontravam então pendurados no templo de Minerva determinados objectos, tais como escudos, festões e esporões de navios, alusivos às viagens de Ulisses» (Góis 1988, 34) ou como, mais tarde, irá repetir frei Bernardo de Brito; e o tratadista Francisco de Holanda, logo no primeiro capítulo Da Fabrica que falece ha Cidade De Lysboa 3 Acerca deste assunto vide também (Ribeiro 1983, 350), reportando-se ainda acerca da antiguidade da actual fonte de Santa Eufémia que «Castro (1842 359, 2.ª col.) refere que o bispo D. Luís Coutinho, personagem falecido em meados do século XV, se retirou a dada altura para a villa de Cintra, a fim de buscar allivio ao seu mal de lepra [já muito adiantado] no uso dos banhos, que há na serra, denominados hoje de St.ª Eufémia; porém, como era seu (mau) hábito, omite Castro a fonte onde recolheu (?) tal informação, a qual resulta assim quase totalmente destituída de real valor documental...».
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(1571), escreveu: «Ulisses, vindo da guerra de Tróia, edificou Lisboa, que foi quase no tempo de Abido rei de Espanha», e acrescenta «quer a fundasse Ulisses, quer Hércules Grego, quer outro capitão grego ou cartaginês (por que o certo não se sabe certo)» (Holanda 1571, 4r.-4v.). Foi, todavia, frei Bernardo de Brito (1569-1617) quem – em contexto de domínio filipino – usou o mito de Ulisses como arma política de génese nacionalista, servindo, também, mais tarde, os interesses do Portugal Restaurado, reforçando-se deste modo a identidade nacional (cfr. Alves 1996, 569-574). Por conseguinte, na sua Monarquia Lusitana, dada à estampa em 1597, este autor embrenhou-se numa intrincada teia descritiva, para a qual procurou ainda inspiração noutras narrativas de génese antiga. Assim, para além da menção à edificação do templo dedicado a Minerva por Ulisses, a sua deusa protectora, encontrou igualmente inspiração no mito latino do rapto das Sabinas (Pereira 1984, 22-32; Montanelli 2006, 14-15), quando afirmou que o rei local, depois de persuadido das suas boas intenções, ofereceu mulheres aos marinheiros gregos, para que a cidade fundada por Ulisses frutificasse no tempo (Brito 1973, 66v.). Importa ainda, nesta breve resenha, referir que esta relação entre o lendário herói da Odisseia, cuja falsa mimese onomástica entre aquele que combateu e venceu as guerras troianas e o ribeirinho oppidum de Olisipo, na Lusitania ocidental, se entranhou profundamente neste período tardo-quinhentista numa linguagem alegórica de cariz erudito, provando-se assim a sobranceria lusitana sobre o invasor espanhol. Este fenómeno ulisseo poderá, de igual forma, ser confirmado através do esforço do capitão Marinho de Azevedo, em obra publicada já em 1652, não só em provar a origem do topónimo desta cidade e as «causas que houve para se corromperem os nomes antigos de Lisboa, e ter o que hoje conserua, e outras etymologias delles» (Azevedo 1652, 155), mas sobretudo demonstrar que a cidade traçada por Ulisses na borda do Tejo foi, de facto, a única erguida pela personagem homérica na Ibéria, contrariando as teses espanholas, que viam em Málaga uma segunda Ulisseia, argumentando que «as tempestades arrojarão Vlisses ao Oceano, & declara o poeta que foi em noue dias do mar de Sicilia ao Atlantico, sem tomar outro porto, senão o nosso: pelo q nesta occasião, não podia elle fazer fundação na costa de Andaluzia, nem tomar porto junto a Malaga, donde dizem, que fez a Vlisseia por ser do mar Mediterraneo» (Azevedo 1652, 160-161). O capitão, todavia, não nega que Ulisses tenha deixado o Tejo e efectuado outras incursões atlânticas, tendo nas suas aventuras
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atingido a costa francesa, a Flandres e a Caledónia e que, inclusive, ultrapassou a linha equinocial e que nesses locais dedicou algumas aras a Minerva e a outras divindades «pelo bom sucesso destes descobrimentos os quaes deixaria de proseguir temendo os baixos, bancos & restingas daquelles mares» (Azevedo 1652, 158), retornado, por isso, ao porto da sua cidade. Para estes humanistas, bem como para alguns outros autores coevos, que omitimos por razões óbvias, a atribuição do primeiro traçado de Lisboa a Ulisses adquiriu inestimável valor simbólico, inequivocamente associado, em sentido lato, à alegórica predestinação lusitana, pois, só aos descendentes do semi-deus a História permitiria, um dia, a proeza de unir o Tejo, o Indo e o Ganges num único e imenso rio, como constaria na pseudo-epígrafe que o nosso frade afirma ter-se descoberto no termo de Sintra, no tempo do rei D. Manuel: VOLVENTVR SAXA LITERIS ET ORDINE RECTIS, CVM VIDEAS OCCIDENS ORIENTIS OPES, GANGES, INDVS,TAGVS, ERIT MIRABILE VISV, MERCES COMMVTABIT SVAS VTERQVE SIBI Ou seja, na tradução do próprio Bernardo de Brito: «quando os Reynos Occidentais virem em si as riquezas do Oriente, se descubrirá esta pedra, & ficarão as letras della direitas, será cousa maravilhosa, ver o rio Ganges, o Indo, & o Tejo, comunicar entre si as riquezas, que cada hum cria» (Brito 1973, 67v.).
2. Do oppidum Olisiponensium a Felicitas Iulia Olisipo Deixando, por agora, o mito de Ulisses fundador e a sua importância, como vimos, ainda que sumariamente, no contexto da identidade do Portugal Moderno – tal como, noutro sentido e, por aqueles mesmos tempos, se foi contextualizando uma simbólica sebastianina – e atentando à etimologia de Olisipo encontramos, hoje, um largo consenso e ainda desconhecendo-se o real significado do radical Olis-, que poderá ser «cidade fortificada» ou «colina fortificada» (Ribeiro 1989-90). Mas, no que concerne à terminação em -ipo, esta aponta-nos para uma possível origem ibérica não indo-europeia, talvez túrdula (Silva 1944, 40-41; Maia 1982-83, 97; Alarcão 1983, 68; Id. 1988, 124; Mantas 1990ª, 160; Id. 1996, 349), uma vez que integra um grupo de topónimos, o qual, segundo vários especialistas, será próprio do universo orientalizante, com
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numerosos casos observados sobretudo no sul da Península Ibérica (Maia 1982-83, 99; Ribeiro 1989-90; Fabião 1993, 145-146). E Torres Ortiz vai ainda mais longe, ao afirmar que examinados os «datos de tipo linguístico, se pode afirmar que en la desembocadura de los rios Tajo y Sado existen una serie de toponimos em -ipo que devem ser forzosmente relacionados com las poblaciones tartessicas delle valle del Guadalquivir» (2005, 205). Apesar destas menções, e de serem escassos os vestígios materiais associados ao ópido que se assentava, então, no morro do Castelo de São Jorge, muito possivelmente o seu (proto) urbanismo – ao contrário do das citânias nortenhas – ordenava-se em sucessivos alinhamentos de casas rectangulares (Alarcão 1986, 76).Todavia, o nosso conhecimento actual do primitivo povoado é bastante fragmentário e não se afigura ainda totalmente clarificada a ligação entre os vestígios materiais da I Idade do Ferro que, já naquelas remotas eras se encaminham para um vínculo mediterrânico (Fabião 1992, 143), com os materiais dos séculos VIII-VI a.C. provenientes de Santarém, de Almada e de Lisboa (conforme os indicadores disponíveis recolhidos sobretudo nas encostas sul e sudoeste do morro do castelo e imediações da Sé), e a sua interacção com os movimentos coloniais fenícios, presentes na zona, pelo menos desde o século IX a.C, ou mesmo anteriores. Naturalmente, tem-se acreditado que a instalação de entrepostos – ou melhor – de colónias fenícias ao longo da fachada ocidental da Península, bem como noutros territórios, decorreu de forma pacífica ainda que recentemente Wagner – com quem, aliás, estamos de acordo – tenha colocado algumas reservas em relação ao acolhimento pacífico dos indígenas à chegada dos fenícios. Na verdade, Wagner ainda que não refute definitivamente esta hipótese, acredita, tal como tem sucedido ao longo da História, que qualquer acto colonizador é, por definição, violento. É violento porque, mesmo que a ocupação território não tenha sido ganha à ponta da espada, subsistem outras manifestações de força por parte do colonizador, que passam, para além do exercício da autoridade, pela imiscuição num quotidiano sócio-cultural e económico pré-estabelecido e regulado, quer seja através da eliminação dos opositores ou da sua simples redução à escravatura, quer seja através da destruição das paisagens e apropriação dos recursos locais, quer seja ainda através alteração das relações sociais, inclusive afectando os modelos e hábitos de trabalho (Wagner 2005, 177-192). E aqui aportados lembramos que os fenícios haviam instalado diversos entrepostos ao longo do «mar interior» e que, junto
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ao estreito de Gibraltar, está atestada a sua presença em Gadir (Cádis), no sudoeste da Península Ibérica, já desde os séculos IX-VIII a.C., de onde, entre outros produtos, se procederia à redistribuição, designadamente das cerâmicas gregas, ao longo dos principais rios da fachada atlântica, até porque as rotas terrestres eram mais morosas e inseguras (Blot 2002, 75). Consequentemente, não se poderá estranhar que, sendo os semitas excelentes marinheiros, depressa tenham arriscado a enfrentar as turbulentas águas oceânicas e perscrutado, na sua navegação de cabotagem, a costa ocidental da Península, datando possivelmente dessa época o incremento de um longo processo de mediterranização do estuário do Tejo e do Sado (Mantas 1996, 345-346)4. Tal fenómeno poderá ter tido expressão no âmbito da comercialização de minérios – incluindo o ouro extraído das areias do Tejo que Pompónio Mela haveria de referir, já no século I d.C. (Almeida 1985, 8) – e que, de um modo indirecto, uma vez que as fontes coevas são omissas, nos revele a importância deste flúmen e povoados associados como meios privilegiados de comunicação, mormente, com as terras do interior, ricas em proveitos variados. E, na verdade, tanto a excelência do sítio, como o facto de as marés se sentirem vários quilómetros rio acima, contribuíram para que, desde cedo, este grande curso de água se transformasse numa importante via de acesso, conforme o testemunhará, entre outros, os vestígios púnicos encontrados em Santarém e, mais para o interior, na bacia do Mondego (Arruda 1994, 54-55). O inequívoco desenvolvimento da actividade marítima destes portos (dentre os quais se inclui o da antiga Salacia), mercê também do seu interesse para a economia mediterrânica, contraria, em parte, as teses que defendem estar-se perante um território periférico de simples matriz atlântica, pois, o ocidente peninsular foi plenamente integrado «a partir do exterior, na área dos grandes interesses económicos mediterrânicos, bem representados através das chamadas colonizações fenícia, grega e púnica» (Mantas 1996, 344), os quais não se limitaram ao estabelecimento de meras relações comerciais, mas assumiram-se, sobretudo, como veículos de miscigenação entre olisiponenses,
4 Para este autor, «Gadir, a que os Romanos chamarão Gades, revelou-se como centro dominante da actividade marítima a ocidente do Estreito de Gibraltar, local de convergência das rotas mediterrânicas e atlânticas, as últimas das quais firmemente controladas pelos gaditanos. Na verdade, a rota africana meridional e a rota para norte ao longo da costa ocidental da Península constituíam extensões da área directamente integrada na esfera de influência de Gadir, a qual se repartia pelas margens europeia e africana do Golfo de Cádis».
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fenícios e púnicos. E, nessa mesma continuidade, Luís de Matos lembra que as primeiras feitorias fenícias e púnicas «propiciaram uma continuidade que resultou na implantação da malha das mais importantes cidades portuguesas no eixo costeiro» (Matos 1996, 331) e, adiante, considera ter existido uma certa oposição entre as comunidades do interior, que subsistiam num esquema de autarcia fundamentada nos territórios adstritos às suas tribos ou clãs, e as comunidades marítimas ou fluviais, já estruturadas numa lógica de “economia de mercado” e de prestação de serviços, cujos primórdios radicaram numa civilização de marinheiros que, no actual território português, teve início pelo menos no século VIII a.C. Todavia, e apesar do tom lacónico e, por vezes, maçudo que perpassa o roteiro, o facto de referir pormenorizadamente qual a melhor forma de vencer a entrada da barra do Tejo – «A baía, que então se abre amplamente, retrocede e não é de fácil navegação com um só vento: até meio chega-se impelido pelo vento oeste, a parte restante exige o vento sul» (Avieno 1992, 22) –, permite-nos, por si só, supor que, já naquela época, os fenícios detinham informações pormenorizadas acerca da navegação nesta difícil embocadura, o que, na conjuntura então vigente, só seria possível ganhar-se após longa e aturada experimentação5. E esta civilização odisseica, de cariz marítimo e mercantil, determinaria, de certo modo, a organização territorial, 5 A propósito das difíceis condições da embocadura do Tejo recorde-se, a título de curiosidade um trecho do texto do pseudo Osberno: «e adiante acha-se um bosque, que na linguagem deles se chama Alcobaça e em volta do qual se estende um vasto ermo que vem até ao castelo de Sintra, distante de Lisboa oito milhas. Como tivéssemos passado a noite na referida ilha, ao outro dia de manhã, muito cedo, fizemo-nos à vela, navegando prosperamente, até que, quase junto à foz do rio Tejo, o vento que soprava dos montes de Sintra açoutou os navios com tão grande tempestade, que afundou uma parte dos batéis com a sua tripulação. O temporal durou até à entrada do porto do rio Tejo. Mas eis que, ao entrarmos aí, observámos no céu um prodigioso sinal. Foi o caso de vermos umas grandes nuvens brancas, das bandas da Gália, e que nos tinham acompanhado, irem ao encontro de outras grandes nuvens negras que vinham do continente e, como exércitos em linha de batalha, depois que juntaram as suas alas esquerdas, lutarem entre si com fogosa impetuosidade. Umas, à maneira de infantaria ligeira, à direita e à esquerda, davam a impressão de provocar o combate; outras a de envolverem as restantes, como se procurassem a entrada; algumas penetravam nas outras, e, uma vez entradas, esvaneciam-nas como fumo; umas eram levadas para cima, outras para baixo, ora parecendo tocar as águas, ora perdendo-se de vista nas alturas. Quando finalmente, depois de varrer toda a impureza do ar, deixando atrás de si um azul puríssimo, e de ter repelido as que tinham vindo do continente, a grande nuvem ficou só como vencedora levando diante de si a presa, vimo-la retirar-se para junto da cidade, já desvanecidas todas as mais, ou reduzidas a pequenos farrapos as poucas que ficaram. Então entramos de clamar. “Venceu a nossa nuvem! Foi dispersado o poder dos inimigos e estão confundidos, porque o Senhor os dissipará”. E assim acabou o abalo do temporal. Pouco tempo depois, cerca da hora décima do dia, chegámos então à cidade, não muito distante da foz do Tejo» (in Oliveira 1936, 57-58).
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porquanto a natureza pré-urbana destes entrepostos agiu como embrião das cidades futuras, cujos contactos – e eventual domínio das terras do interior – terá promovido a construção, ainda que incipiente, de uma rede de estradas que estaria «já bastante avançada quando Amílcar e Aníbal Barca se propuseram unificar, a partir de 238 a.C., os domínios de Cartago na Península» (Matos 1996, 334). Pode-se, igualmente, considerar que nestes embarcadoiros, pelo menos desde o I milénio a.C., se desenvolvia profícua actividade comercial e social eventualmente administrada pelos líderes indígenas e, apesar de desconhecermos os métodos adoptados, era, decerto, bem mais eficaz do que o longo, penoso e arriscado caminho terrestre. Neste contexto, e conjugando as informações literárias com os elementos entretanto exumados pela arqueologia, teremos de considerar que as influências orientalizantes terão arribado ao nosso litoral em época mais recuada do que normalmente se supunha. De facto, as intervenções arqueológicas, levadas a cabo nos finais do século passado, em pleno tecido urbano da capital permitiram obter uma percepção mais clara do fenómeno que temos vindo a descrever, porquanto no claustro da Sé se pôs a descoberto uma lixeira onde, entre materiais diversificados, abundavam os fenícios, cuja datação se pode circunscrever aos séculos VIII-VII a.C. Neste mesmo sentido, se encaminham as conclusões extraídas da escavação efectuada na sede do Millenium bcp, em plena Baixa Pombalina, porquanto os vestígios descobertos se integram no mesmo aro cronológico, o que poderá reflectir, talvez, a partir dessa época, uma intensificação dos contactos comerciais6. Mais tarde, Cartago (colónia fenícia fundada em 814 a.C.) terá passado a controlar o comércio marítimo, sobretudo na pars occidentalis do mar interior, incluindo o sudoeste e a fachada ocidental da Península Ibérica, ainda que estes territórios estivessem vinculados a Gadir. Por outro lado, a queda de Tiro, no século V a.C., ocasionou o «declínio de uma rota comercial vinda dos confins do Mediterrâneo» (Blot 2002, 80), e, consequentemente, Cartago alargou, de modo continuado e assaz eficiente, a sua influência a todo o Mediterrâneo, transaccionando, inclusive, cerâmicas áticas, cuja presença, entre outros, de fragmentos cerâmicos púnicos e orientais, 6 Por esta altura, na fachada atlântica e a par de Olisipo, Alcácer do Sal seria também um importante povoado com vestígios fenícios, tendo-se, inclusive, detectado no castelo, restos de construção de adobe assentes em alicerces de pedra e «num nível do século IV a.C. restos de casas de paredes caiadas e fragmentos de cerâmica ática» (Mantas 1996, 346). Sobre os povoados romanos onde se recolheram igualmente vestígios fenícios e púnicos veja-se, grosso modo, Matos (1996, 331-338).
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está atestada, não só no litoral da Península Ibérica, mas também no seu hinterland, onde se recolheram objectos do chamado período orientalizante (Maia 1982-83, 98; Blot 2002, 80). Enquanto isso, no território olisiponense e nos seus limites mais próximos encontraram-se vestígios, alguns deles datados do século IV a.C.7. E poderá ter sido, igualmente neste evo, que os púnicos – provavelmente através da sua autonomizada colónia de Gadir – terão também reforçando a sua presença nos entrepostos atlânticos. Por conseguinte, edificaram nas areias ribeirinhas do Oppidum Olisiponensium, um núcleo urbano ibero-púnico, possivelmente destinado à fixação de uma colónia permanente, cujas estruturas descobertas no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, datáveis entre o século V e III a.C., incluem os primeiros vestígios de edificações daquela época, designadamente um forno para cozedura de cerâmica e, de planta rectangular, conserva-se importante testemunho da arquitectura pré-romana. Trata-se do soco de pedra ligado por argila de uma habitação, sobre o qual assentariam os caniços rebocados com barro endurecido pela acção do fogo e a cobertura, eventualmente seria de colmo; no interior, com pavimento de terra, destaca-se uma lareira central, formada por seixos rolados (Amaro 1995, 11-14); estas habitações deveriam dispor-se em banda, tal como a hipótese sugerida por Alarcão relativamente ao oppidum sobranceiro. Foi igualmente neste núcleo arqueológico da Baixa pombalina que se recolheram abundantes cerâmicas coevas, usadas no fabrico e transporte do garum, que os semitas apreciavam como iguaria, destacando-se, na face interior fragmento cerâmico, de engobe branco e bandas polidas ao torno, a gravação de um desenho ingénuo de um barco de proa e popa elevadas e mastro central, assim como, num suporte para apoio de ânfora de cerâmica, similar à já descrita, a dupla marca de oleiro aplicada através de “carimbo”, representando um equídeo, tirado de perfil, muito estilizado (Amaro 1995, 11). Na verdade, os traçados proto-urbanos destes povoados, sobretudo no litoral, entre os finais do século II e inícios do I a.C, revelam implantações estratégicas, no sentido de melhor explorar os recursos marítimos e fluviais, 7 Na Quinta do Almaraz (Almada), em Pedrada e Cacilhas, no Moinho da Atalaia (Amadora), em Outorela, Oeiras (Ribeiro 1989-90), um jarro de bronze de Torres Vedras e, em Santa Eufémia da Serra (Sintra), recolheu-se, num nível arqueológico intacto, uma conta de vidro, datável do século IV a.C., com toda a probabilidade, proveniente do Mediterrâneo oriental (Marques 1982-83, 84; Fabião 1992, 144; Ribeiro 1989-90).
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incluindo o comércio e a navegação por cabotagem ou fluvial. Por conseguinte, terá sido a partir destes ambientes indígenas, que caracterizaram, aliás, a última fase da Proto-História em Portugal, que os romanos, após a expulsão dos púnicos, tenham aproveitado e remodelado, os espaços pré-existentes potenciando o seu desenvolvimento económico, como parece ter sucedido em Ossonoba, Myrtilis, Salacia e Olisipo (Blot 2002, 83-84). Com o início da II Guerra Púnica, em 218 a.C., a situação político-estratégica da Península Ibérica, de certo modo favorável aos romanos, franqueou-lhes parte do sudoeste peninsular aos seus exércitos. Todavia, e apesar de a ameaça romana se encontrar no extremo oposto da Península Ibérica, os cartagineses consideravam o Oppidum Olisiponensium e território adjacente suficientemente importante (Mantas 1990ª, 160) para ali manterem estacionado, em 210 a.C., o exército de Asdrúbal, filho de Giscão, conforme relata Políbio quando se refere à conquista de Cartagena por Públio Cornélio Cipião (Maia 1982-83, 100 e Matos 1996, 335). Neste contexto, os cartagineses terão assumido que, ao proteger militarmente a desembocadura do Tejo, estariam a salvaguardar o interior de eventuais incursões romanas, fluviais ou terrestres. Todavia, após a conquista de Cádis, os púnicos foram definitivamente expulsos da Península Ibérica pelos romanos, em 206 a.C., deixando espaço para a efectiva ocupação territorial protagonizada por longas, sangrentas e, muitas vezes, dramáticas batalhas pela posse da Hispania. Mas, neste contexto deverão, de algum modo, excluir-se as comunidades já mediterranizadas, como sejam as de génese cultural túrdula, que habitavam, então, a faixa litoral entre o Tejo e o Douro (Matos 1996, 355)8, as quais, talvez por via de antigas ligações comerciais com Roma, terão aceite com alguma complacência – e provavelmente segundo o modelo teórico proposto por Wagner (cfr., v.g., 2005) – o domínio romano, ainda que Luís de Matos defenda que Olisipo apenas se integrou plenamente na História Romana, depois da conquista e domínio itálico do Alentejo (ou seja, desde 202 a.C.), facto que contraria o nosso próprio entendimento, uma vez que cremos que o processo de romanização se terá iniciado antes da 8 Para Maia (1982-83, 100), «a região de Olisippo e toda a faixa litoral que daqui se estendia até ao Douro, pertenceria a uma cultura túrdula ocidental; porém, ao interpretarmos o texto de Políbio, considerámos que o autor segue ali um princípio similar ao que, mais tarde, irá presidir à generalização do topónimo Lusitania a toda a província augustea, ou seja, o facto de os Lusitanos serem, sob a óptica romana, o povo mais importante que habitava a região cistagana. Em Políbio, Lusitania significará pois a margem norte do Tejo, território onde o povo mais poderoso, sob o ponto de vista militar, era efectivamente o lusitano».
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ocupação efectiva do território, mercê, sobretudo, do estabelecimento de contactos comerciais (Caetano 2007, 54; no seguimento, aliás, do que afirmaram Sousa 1996, 50 e Blot 2002, 80). Todavia, a primeira referência explícita sobre a Olisipo “romana” consiste num pequeno trecho de Estrabão e a este respeito, vários investigadores atribuem, no âmbito das guerras contra os lusitanos9, o amuralhamento deste ópido em 138 a.C., a Decimus Iunius Brutus (cfr., v.g., Alarcão 1988, 22; Maia 1982-83, 102; Matos 1996, 335; e Mantas 1990ª, 160). Todavia, Justino Maciel (1994, 33-34) propõe uma nova leitura do texto do geógrafo grego que nos parece mais consentânea com o facto relatado: «Se aqui a palavra potamovs, sem qualquer dúvida se refere ao rio Tejo, a palavra rjei`qron também significa corrente de água, ribeiro ou até leito do rio. Se a tradução nas margens, na ribeira ou junto do rio nos parece correcta, tendo em conta a palavra grega utilizada, uma interpretação mais acurada leva a apresentar a hipótese de Strabo se referir mesmo às margens dos esteiros do Tejo junto de Olisipo. Esta ideia é corroborada pelo verbo que exprime a acção do conquistador galaico neste local.Trata-se do verbo ejpiteicivzw, que significa levantar uma fortificação ou campo amuralhado contra ou diante de qualquer coisa. Se o autor quisesse expressar a ideia de rodear de muralhas ou fortificar, teria utilizado o verbo simples teicivzw, e não com o reforço da preposição com acusativo, caso em que nos aparece o termo Olisipo (th;n * jOlsipw`na). Ou seja, uma interpretação objectiva do texto leva-nos a concluir que Iunius Brutus não fortificou Lisboa, mas, antes, levantou um castrum frente ao oppidum já existente na colina, sendo assim para ele mais fácil o controlo do porto e o acesso ao rio, objectivo fundamental na acção de conquista da Lusitania».
Este terá sido, na realidade, o primeiro «acto de romanização» in situ, subjacente ao proto-urbanismo do oppidum, ou melhor, nas suas imediações, junto à margem dos esteiros do rio, muito provavelmente perto das actuais igrejas de Santo António e da Madalena pois, para este estudioso, a Geographia
9 Para Mantas (1996, 154), «a Lusitânia não correspondia a um território homogéneo à data da chegada dos romanos, ao contrário de territórios como o do Egipto com fronteiras perfeitamente definidas. No início do século II a.C. o termo Lusitânia, mais que referir uma área geográfica bem definida e ocupada por um único povo, correspondia a um conceito geoestratégico, em grande parte determinado pela importância da resistência lusitana à conquista romana, como Estrabão claramente referiu. Os Lusitanos constituíram um grupo de populi, sendo o nome utilizado como um colectivo pelos Romanos».
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não se reportará à fortificação do ópido, e não nos esqueçamos que as menções a Olisipo aludem quase sempre ao oppidum, indiciando estar-se já perante um espaço fortificado, ainda que de acordo com os cânones militares da época e, está claro, que o objectivo de Bruto seria o de controlar o porto e a navegação no Tejo, levando também provisões e reforços até Moron – hoje identificada com Chãos de Alpompé – onde permaneceria estacionada a frente do seu exército (Maciel 1995, 79). Seja como for, existem suficientes exemplos de acampamentos militares romanos, os castra, que com o decorrer do tempo e sequente perda de valor estratégico, se transformaram em centros urbanos, mantendo as muralhas num contexto honorífico e contribuindo decisivamente para a introdução de um urbanismo de cariz helenístico e etrusco-romano. Para Luís de Matos, no entanto esta hipótese – que se subjaz na perspectiva de um oppidum já plenamente pacificado e para cujos habitantes os romanos não eram, stricto sensu, tidos como o povo invasor – aponta algumas questões em sentido diverso: primeiro, porque a área considerada não apresenta a amplitude necessária; segundo, porque a arqueologia tem posto a descoberto vestígios da ocupação fabril (desde o século IV a.C. até à Idade Média). Assim, a considerar-se esta hipótese, o castrum de Décimo Júnio Bruto assentaria entre o alto de São Francisco e o actual Chiado, zona formada por um esporão com defesas naturais, designadamente as escarpas sobre o esteiro e sobre o rio, quer pelo fundo do vale que sobe desde o Cais do Sodré, onde se forma uma elevação que domina o porto e o acesso ao mar, dotando-o de grandes facilidades no que respeita à defesa, tendo sido este, no século XIV, o conceito militar que prevaleceu aquando do levantamento da Muralha Fernandina (Matos 1996, 338). Muitos dos outros povos que constituíam a multifacetada trama populacional da Ibéria, sobretudo a de feição rústica e agro-pastoril que habitava nas montanhas e digladiava as legiões em investidas militares não convencionais, eram de génese tribal e foram ferozes opositores à invasão dos itálicos, dificultando, sobremaneira, o progresso dos exércitos romanos, tendo perdurado, até hoje, na memória colectiva – como figura histórica, mas também como mito fundacional de Portugal – a resistência de Viriato, um chefe lusitano que congregou em seu redor vários clãs e infligiu numerosas derrotas aos romanos. Mais de um século depois de Roma ter iniciado a conquista da Península Ibérica – e depois dos conturbados tempos da guerra civil, entre 44 e 31 a.C., que findou com as vitórias de Octaviano em Actium e depois em Alexandria –, o Império encontrava-se debilitado e internamente instável. E apesar de se
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terem celebrado em Roma cinco vitórias sobre a Hispania (Martin 1999, 21), neste território parcialmente pacificado viçavam, afinal, rebeliões e os romanos não dominavam ainda todo o território. Relembre-se que o noroeste era habitado pelos cântabros, pelos asturianos e pelos galegos, todos eles populi guerreiros ciosos da sua independência que se resguardavam nas montanhas impenetráveis e, além de alarmarem as legiões romanas, lançavam-se, frequentemente, em pilhagens junto dos vaceus, dos autrígones e outras gentes, causando grande insegurança, com a qual Octaviano, herdeiro de Júlio César e membro da sua gens, não podia pactuar. Até porque de acordo com os seus princípios universais, e para além da reorganização do Império, pretendia também «apresentar-se como o novo fundador de Roma, isto é, como aquele que volta a colocar o mundo romano em limites precisos e invioláveis, porque sagrados, nos limites do orbis terrarum, de ‘todo o universo’, como especifica o capítulo 3 do seu Res Gestae» (Martin 1999, 19). Terá sido, pois, neste contexto regenerador que Caesar diui filius, Augusto desde 27 a.C., soube propagandear, não só através de uma política niveladora de matriz romana, mas aplicando também – numa perspectiva religiosa – o princípio da figura do imperador divinizado (ainda que, em vida, tenha recusado tal estatuto), prontamente aclamada pelos seus legionários, pois o imperador era o chefe supremo do exército e desempenhava igualmente o cargo de Pontifex Maximus, «assumindo-se como cabeça do paganismo greco-romano» (Mantas, 2002, 111). Será, portanto, igualmente nesta óptica que se terá de considerar o empenho pessoal de Augusto na conquista do noroeste peninsular, quando em 27 a.C. se estabeleceu em Tarraco, entregando o comando das legiões a Antístio Veto e a Públio Carísio, os quais, depois de dois anos de batalhas, derrotaram após o cerco seguido de assalto a Mons Medullius, os Ástures, pondo um ponto final na conquista da Península Ibérica (cfr., v.g., Alarcão 1988). Finda a guerra, e entre a atribuição de benesses, privilégios e concessão de estatutos de direito latino a diversas comunidades que constituíam o cobrejão retalhado de um imenso domínio, de cuja auctoritas foi o único detentor, Augusto tratou – prosseguindo um ideário político muito bem definido – não só da reorganização territorial, mas também da promoção de um programa de reformas urbanas, dando assim continuidade a um processo de romanização, de forma a se atingir uma romanidade plena, a qual, como vimos noutro lugar, não passou, também ela, de um mito (Caetano 2007, 55), como aliás se pode igualmente depreender das palavras de Vasco Gil Mantas:
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«Noutros aspectos, mesmo ideológicos, as semelhanças entre os padrões indígenas e certos conceitos romanos típicos de sociedades da Idade do Ferro, facilitaram um processo de aculturação que, sem eliminar o predomínio incontestável do modelo civilizacional dominante, permitiram o desenvolvimento de intercâmbios relevantes e facilitaram um processo de integração pragmático, desenvolvido ao longo de vários séculos. É a esse processo que devemos chamar romanização. Quando dizemos integração não estamos a defender que as realidades indígenas desapareceram, não foi assim, nem a política romana foi nesse sentido. Aliás não podemos esquecer que a sociedade romana também se modificou e as realidades do Baixo Império são distintas das que caracterizaram o Alto Império, não deixando aquelas de contribuir para acelerar um processo de fusão cultural que nos primeiros tempos do Império dificilmente poderiam desenvolver» (Mantas 1990, 158).
Será, pois, neste contexto que teremos que enquadrar o caso do oppidum Olisiponensium o qual, segundo parece, durante as guerras civis, terá aderido ao partido de César (Mantas 1990, 161)10. Nesta perspectiva, Olisipo terá, segundo diversos autores, recebido, em época ainda não determinada, a condição de oppidum ciuium romanorum (Alarcão 1994, 58; Mantas 1994, 71; e Ribeiro 1994, 76-77), apesar de António Marques Faria não encontrar consistência nesta tese, ao considerar que aquela expressão «empregue amiúde por Plínio sem grande rigor jurídico, corresponde, noutro tipo de documentação, designadamente nas emissões monetárias, ao termo técnico ‘municipium’» (Faria 2002, 175). Ainda assim é comummente aceite – e documentalmente comprovado – que a este oppidum foi atribuído o estatuto municipal, adoptando, então, os cognomenta Felicitas Iulia. A data deste facto, no entanto, não se encontra completamente esclarecida, oscilando, segundo certos posicionamentos tradicionais, entre uma doação cesariana, ou, de acordo com opiniões mais recentes e críticas, que se 10 Outros autores, designadamente Luís de Matos, interpretam o tratamento de excepção dado a Olisipo como benesse pela aceitação do domínio romano até porque não consta que o ópido «tenha oferecido resistência, tudo indicando, antes pelo contrário, que colaborou com o invasor, possivelmente uma das razões do tratamento de excepção que lhe vai ser conferido posteriormente» (Matos 1994, 36). Aqui aportados, e tendo já considerado, noutro lugar, que o processo de romanização terá precedido o domínio físico do território como justificação para a aceitação pacífica da presença romana, a nossa opinião não é, de todo, consentânea com a de Matos, até porque nos parece excessivo o hiato, de cerca de um século, que medeia a chegada de Décimo Júnio Bruto e a outorga do estatuto municipal pelo que, nesta perspectiva, parece-nos, pois, mais credível a teoria apontada por Vasco Gil Mantas.
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trata, afinal, de uma promoção de Augusto11, alicerçando-se também esta última hipótese no facto de, em termos peninsulares, a inscrição na tribo Galeria ter funcionado como uma característica dos municípios augustanos (Mantas 1994, n. 11)12. Mas, seja como for, a concessão do estatuto de Município de Direito Romano, permitiu a Olisipo manter determinada autonomia administrativa face à sede conventual – com a qual terá chegado, inclusive, a partilhar a administração do território13 –, tendo os seus cidadãos adquirido direitos similares aos dos habitantes da própria cidade de Roma.
3. A reforma augustana de Felicitas Iulia Olisipo No exercício da política estruturante por si delineada, tendente à consolidação romana nos territórios – ou seja, a romanização –, Augusto interveio igualmente na organização das províncias, processo que não se concretizou sem algumas hesitações, que se reflectem na incorporação de regiões distintas numa unidade artificial (Mantas 1990ª, 154). Apesar disso, a Lusitânia (cujos limites territoriais foram definidos entre 16 e 13 a.C. ou entre 13 e 7 a.C.) foi considerada, juntamente com a Tarraconense, como província imperial, mas esta sofreria, ao longo dos tempos, adaptações, quer derivadas da reorganização dos seus limites, quer ocasionada pela criação ou extinção de outras
11 De entre os autores que atribuem a elevação de Olisipo a município por César, veja-se, v.g., Vasconcellos 1913, 144-145; Lambrino 1953, 32 e 44; Ribeiro 1982-83, 161; e, até certo ponto – uma vez que balança entre César e Octaviano –, Alarcão 1983, 68; Id. 1988, 48; Id., 1994, 58. E, acreditando numa promoção augustana, cite-se, v.g., Fabião 1993, 235; Mantas 1994, 74; e, de novo, Ribeiro 1994, 77, que se inclina, agora, para a hipótese já sugerida por Fabião, loc. et. op. cit. 12 Refira-se, ainda no âmbito desta problemática, que o nome Iulia não deverá ser encarado com estranheza, uma vez que foi apenas quando assumiu o título imperial que Octaviano adoptou o cognome de Augusto, contudo, as suas realizações anteriores poderiam conservar tal epíteto. No entanto, a política administrativa de Augusto, como recorda Carlos Fabião (1993, 235) terá prolongado, para além de 27 a.C., a sua manutenção, pelo que, neste contexto, é manifestamente difícil destrinçar os actos administrativos – idealizados e/ou concretizados – por Júlio César, daqueles que o primeiro imperador promoveu. 13 Sobre esta matéria, cfr. v.g., Alarcão 1988a, 125, que afirma: «Não sendo capital de “conventus” (esta ficava em Scallabis), “Olisipo” foi certamente cidade mais próspera. A epigrafia, recolhida por Vieira da Silva, é abundante; a par de numerosas inscrições funerárias, devemos salientar as honoríficas a imperadores. Estas não seriam talvez em tão grande número numa cidade que não fosse sede de alguns serviços administrativos».
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Sileno do Teatro Romano de Lisboa. Museu Nacional de Arqueologia. © Fotografia de J. Maciel.
províncias (Martin 1999, 96-97). Mas, se a problemática subjacente à administração territorial – decerto motivada pelo maior ou menor grau de penetração romana na Ibéria ao longo do tempo – se nos afigura hoje, por vezes, algo confusa, não temos, por outro lado, quaisquer dúvidas de que Augusto aplicou, nas mais diversas áreas, uma política sustentada e coerente, visando, também em grande parte, um claro objectivo ideológico, o de expurgar o Império do modelo helénico que caracterizara a República (Dias 2002, 93), porquanto: «institui-se o que o princeps pretende que seja uma Pax Augusta. Aí promove-se a erudição, através de homens como Polião e Mecenas, e florescem nomes como Vitrúvio, Tito Lívio, o grego Dionísio de Halicarnasso, Horácio, Ovídio e Virgílio, a quem ficará a dever a maior obra de propaganda do seu principado e que justificará o epíteto de ‘segundo nascimento de Roma’: a Eneida. Aí surgem temas como a Idade de Ouro, a missão civilizadora dos Romanos, o direito à hegemonia, tudo sob o comando do grande Augusto» (Rodrigues 2005, 326). No que concerne ao processo de reurbanização, não só em Itália, mas em particular nas províncias, não poderemos, por conseguinte, esquecer Vitrúvio – que redigiu e dedicou ao imperador um pormenorizado tratado de
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arquitectura –, poderá ter sido o teórico modelar dos fundamentos básicos caracterizadores da planificação das novas cidades14, algumas delineadas ex nouo, como Bracara Augusta e Emerita Augusta; outras, como Pax Iulia, derivaram de acampamentos romanos, obedecendo igualmente ao modelo ortogonal (Martin 1999, 187 e, v.g., Lopes 2003); e outro exemplo, ainda, o da ciuitas de Conimbriga, que sofreu igualmente no âmbito do grandioso plano de romanização, profunda renovação urbanística, apesar de só ter recebido o estatuto municipal na época dos flávios (Alarcão 1988, 46). Também por isso não nos repugna a ideia de que, em Olisipo, uma cidade, desde há muito, sob influências mediterrânicas e sob o domínio romano, se tivesse já delineado um urbanismo de matriz itálica, como, aliás, o parece comprovar o achamento de algumas estruturas tardo-republicanas, ou mesmo anteriores. Designadamente, a notícia, datada de 1922, de na Rua das Canastras se ter localizado uma rampa de cais normal, eventualmente de construção romana, ainda que Jacinta Bugalhão (2001, 58-59), considere difícil tal classificação e coloque a hipótese de se tratar de um ponto de acostagem para embarcações de pequeno e médio calado, que eventualmente teriam condições para navegar ao longo do esteiro, servindo a indústria conserveira, mormente descarregando peixe, sal e ânforas e carregando os produtos já transformados e devidamente acondicionados15. Estava-se, pois, perante uma zona rica em águas, algumas delas com características medicinais, o que, de certo modo, terá evidenciado a fundação, ainda no período tardo-republicano, das chamadas Termas dos
14 «Os romanos, ainda que não tivessem desenvolvido qualquer teoria que contemplasse a água como princípio da existência, embora o poeta Virgílio se tivesse referido ao Oceano como “pai de tudo que há”, consideravam-na um dos pilares da sua civilização. Com efeito, à semelhança do que acontecia com as cidades gregas, nenhuma cidade romana foi erigida em terrenos desprovidos de água. Para além da sobrevivência humana, animal e agrícola, a água garantia a higiene e assumia um triplo papel terapêutico, relaxante e lúdico, fazendo parte integrante da vida quotidiana e de certos rituais romanos (...). Com base nestes aspectos desenvolveu-se uma verdadeira tecnologia hidráulica que beneficiou algumas das estruturas arquitectónicas mais características da cidade romana e às quais Frontino e Vitrúvio dedicaram importantes tratados: os aquedutos, as barragens, as cisternas, reservatórios e tanques, as fontes, as pontes, os balnea, os impluuia, as infraestruturas dos teatros destinadas às naumáquias, condutas subterrâneas, cloacas, esgotos, canalizações, torneiras» (Mourão, no prelo). 15 Na sondagem efectuada no Largo de São Rafael e na Rua da Judiaria detectaram-se alguns afloramentos rochosos os quais indiciam que ali terá existido um curso de água – junto de um troço de muralha romana (e depois mulçumana) –, cuja memória se manteve fossilizada no urbanismo medieval, ao designar-se Rua da Regueira (Pimenta e al. 2005, 317).
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Cássios, assim baptizados por ali se ter descoberto na inscrição pintada em tijolo, entretanto desaparecida, mas que atribuia a sua fundação aos irmãos Quinto Cássio Longino e Lúcio Cássio, por volta de 49 a.C. (Silva 1944, 29, 48-50 e 114-115, n.º 22). Este estabelecimento de banhos foi redescoberto em 1771, quando se procedia à abertura de caboucos para a construção do Palácio Penafiel ou do Correio-Mor. Destacando-se, por outro lado, a descoberta coeva de robustos alicerces de um edifício público, no Largo de Santo António à Sé. Na verdade, os exemplos referidos integraram-se e mantiveram-se – mesmo após a renovação urbana de Augusto – em pleno perímetro da cidade romana. Será, pois, neste contexto, e sem olvidar o novo estatuto político-administrativo de Felicitas Iulia Olisipo que se lhe exigia um prospecto condicente, pelo que o primeiro imperador terá encetado uma intensa renovação urbanística desta cidade portuária. Saliente-se, ainda, que a remodelação de finais do século I a.C.-inícios do seguinte terá, numa fase primeva, infundido na parte baixa da urbe, no local onde, cerca de cem antes antes, Décimo Júnio Bruto erigira o seu castrum. O projecto delineado, apesar de se integrar nos princípios comuns do urbanismo latino de matriz militar etrusca achou-se condicionado, não só pela própria orografia do local, mas igualmente pela pré-existência do anciano ópido. Este facto, de per si, não terá conflituado com a amplitude da reforma, ainda que tenha, decerto, regulado a sua implementação, porquanto os resquícios viários conhecidos apontam para a efectivação do clássico sistema ortogonal, assente – como se sabe – no cardo e no decumanus. Porém, estas duas vias perpendiculares, em cujo ponto de intercepção se costumava definir a restante estrutura espacial da cidade, terão encontrado, pelas razões citadas, alguns condicionalismos, em particular na abertura dos traçados secundários. Logicamente, nas areias junto ao rio e ao longo do seu afluente e já no perímetro da cidade, localizava-se a zona industrial (cfr., v.g., Morel 1991, 179-202), especialmente vocacionada para o fabrico do garum – uma especialidade piscícola muito apreciada desde os tempos fenícios – e que se havia tornado numa das maiores riquezas deste lugar. E partindo do pressuposto de que se notava já a consolidação precoce do urbanismo de feição romana, este ter-se-ia desenvolvido primeiro na zona baixa, estendendo-se, depois, pela colina reconfigurando ou interagindo com o urbanismo pré-existente, de um modo similar ao sucedido noutros locais, tal-qualmente os casos de Scallabis, Conimbriga e Eburobrittium.
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O forum, pólo agremiado da vida urbana, era formado por uma grande praça, impondo-se, no eixo maior (2/3, segundo as regras de Vitrúvio), o principal templo da cidade onde decorriam os ritos oficiais e religiosos. Era igualmente ali que se localizava a basílica16, onde se exercia a justiça e se tratavam os negócios – ainda que este arquétipo fosse, mais tarde, adaptado, com funcionalidade distinta, pelo Cristianismo – e, neste grandiloquente espaço, poderiam ainda ter existido outros templos, monumentos erigidos a divindades, imperadores, a dignitários provinciais ou locais e estabelecimentos comerciais. O foro era, enfim, o coração da cidade mediterrânica.17. Apesar de no território actualmente português se conhecerem já diversos fora, como, a título meramente exemplificativo, os de Aeminium, de Sellium e de Ebora, o caso olisiponense apresenta-se complexo, pois, até hoje, não se detectaram quaisquer provas irrefutáveis da sua localização e, se há muito se abandonou a ideia de que o criptopórtico da Rua da Prata poderia consistir no sustentáculo do forum de Felicitas Iulia Olisipo, Jorge Alarcão propôs, com base nos indicadores disponíveis, que aquela estrutura fundamental para o ordenamento vivencial do opido se localizasse no Largo da Madalena. E de facto, neste local puseram-se a descoberto em finais de setecentos, vestígios jónicos de majestosa fábrica, e duas inscrições, uma devotada a Mercúrio e outra, pressupondo a existência de um templo dedicado a Cíbele, esta última com paralelo, em Mértola, numa estátua de Tique-Cíbele (Alarcão 1988, 124; Id. 1994, 58), bem como ali se descobriu, a base epigrafada de uma estátua do imperador Commodus (CIL II 187 = Ep. Olis. 23) levantada, entre 178 e 180, pelos duúnviros Q. Coelius Cassianus e M. Fuluus Tuscus, (Azevedo 1753, 97-98; Hübner 1869, 26; Castilho 16 Mais tarde, concretamente no período flaviano, caracterizado também por ter sido uma época de reforma geral, não deixou de ser forçosa a existência de basílica, como se constata, aliás, no foro flaviano de Conímbriga, construído numa época de renovação e aquando da atribuição do estatuto municipal a esta ciuitas que se sobrepôs ao primevo espaço erigido na época de Augusto; esta mudança, no entanto, não foi uniforme e poderá o caso conimbricence constituir apenas uma excepção ou, acaso, poderá revelar um lento processo de mudança em curso, até porque Eburobrittium – que teve igualmente a sua promoção nesta época, inscrevendo-se os seus cidadãos na tribo Quirina e adoptando a designação de Municipium Flauium Eburobritium – viu o seu renovado fórum integrar uma basílica (cfr., v.g., Moreira 2002). 17 E, ao contrário do sucedido em muitos outros portos, nos quais os indivíduos de cognomina gregos detinham o poder, a magistratura municipal olisiponense apresentava uma antroponímia perfeitamente latina, o que será revelador de que a administração municipal fora açambarcada por uma poderosa elite de matriz itálica. Ainda que, por outro lado, os indicadores históricos apontem, lá para os finais do século I a.C., na direcção da heterogeneidade da sua população, pois, deveriam ali concentrar-se gentes das mais variegadas proveniências (Mantas 1994, 71).
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Inscrição à Mãe dos Deuses, Cíbele, junto à Igreja da Madalena, Lisboa. © Fotografia de J. Maciel
1884, 122; Silva 1944, 51 e 116-118; e Alarcão 1988, 124). E, na igreja da Madalena, estava uma inscrição dedicada à deusa Concórdia (Alarcão 1988, 124), embora muitas das epígrafes votivas de que temos notícia, algumas delas de autenticidade duvidosa, não nos permitam obter uma panorâmica exacta sobre os edifícios religiosos que eventualmente terão existido junto ao foro, ou mesmo dispersos pela cidade. Uma outra hipótese a considerar relativamente
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à localização do foro, reporta-se às galerias subterrâneas que, nos começos do século XX, foram descobertas por Augusto Fuschini durante os trabalhos de restauro do portal norte da Sé, e que aquele autor assegurou, em obra dada à estampa em 1904, que os corredores se prolongavam para setentrião e para sul (in Fernandes 2002, 58). Decerto que Felicitas Iulia Olisipo foi ainda, nestes tempos de reforma, dotada de edifícios públicos, e administrativos, tendo-se também possivelmente erigido o aqueduto que a abastecia de boa água, captada perto de Belas, nos limites do actual concelho de Sintra, pois, conforme refere Justino Maciel (1995, 82), «os mirabilia aquarum eram um tema caro aos romanos, sobretudo no contexto da cidade» e, nessa medida, seria impensável imaginar-se, sequer, a planificação de uma cidade, onde a água não jorrasse abundantemente». Neste contexto – assim como Alarcão (1994, 161) –, não cremos na cronologia circunscrita ao século III que tem sido atribuída ao aqueduto olisiponense (Quintela et al. 1986, 120-125), ainda que possamos considerar que esta datação corresponda a um melhoramento baixo-imperial realizado no paredão que ainda ali se ergue18. Entretanto, no decorrer dos trabalhos arqueológicos efectuados no claustro da medieva Sé de Lisboa, foi descoberto um dos principais troços viários da cidade, sob o qual corre uma grande cloaca. Este ia entroncar no troço viário ribeirinho perpendicular ao Tejo, onde predominava a zona industrial e prolongar-se-ia, encosta acima, onde se detectaram vetustos testemunhos de insulae, datáveis, pela sua estrutura construtiva, da época augustana, ostentando, inclusive, algumas delas vestígios de tabernae. Aparentemente, esta via iria desembocar junto do teatro, igualmente erigido naquele tempo e descoberto em 1798, na sequência de trabalhos de reurbanização daquela área após o clamoroso sismo de 1755 (Hauschild 1994, 65-66). Augusto, na certeza de que a reunião do populus não só legitimava a autocracia com que inaugurara a linhagem Julio-Cláudia, tanto em Roma como nas províncias, onde se consolidava também o processo de romanização e contextualizando o valor do teatro na multiplicidade social, política e cultural daquela época, patrocinou a edificação destes edifícios monumentais. Estes 18 Refira-se ainda, a título de curiosidade, que séculos mais tarde o Aqueduto das Águas Livres encontrou a sua principal fonte de captação naquele mesmo local e o seu traçado terá seguido, grosso modo, o da conduta romana, porquanto se encontraram inclusive em vários troços vestígios de uma caleira rectangular revestida a opus Signinum.
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volveram-se em privilegiados veículos condutores de um «dos principais símbolos da romanidade, constituindo-se, por um lado, como elementos estruturantes do novo urbanismo e, por outro, como instrumentos de propaganda da nova ordem» (Fernandes 2005, 30).
Teatro Romano de Lisboa, zona do Hiposcénio. © Fotografia de J. Maciel.
No que concerne à arquitectura do theatrum olisiponense, refira-se, apesar do seu estado de ruína, que deverá ter sido um edifício monumental, atendendo não só só à sua dimensão, mas também à sua qualidade plástica. Compunha-se, como era hábito, pela cauea – o escadeado em anfiteatro semicircular onde se sentavam os espectadores –, a qual, calcula-se teria um diâmetro de 60m; ao fundo, a orchestra, com 7m de raio, revestida a opus sectile em tons de cinzento e rosa; depois, o proscaenium, cuja fachada recortada articulava três exedrae semi-circulares, e outras seis, rectangulares. Ao fundo do palco erguer-se-ía a scaenae frons, hoje totalmente desaparecida, mas cujos elementos decorativos subsistentes, como as colunas estriadas capitéis jónicos, outrora revestidos por estuque ou opus albarium, indiciam certo requinte decorativo. No entanto, e, ao contrário do modo latino, o monumental edifício lisboeta integra-se, pela sua disposição, aninhada na encosta, e com a cauea
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aberta ao Tejo, no modelo arquitectural grego e, talvez não lhe seja alheio – atendendo ao número de gregos que aqui aportaram nos começos do Império –, uma maior dependência deste teatro aos modelos helénicos (os edifícios de transição apelidados de greco-romanos), o que, porventura, revelará «uma maior antiguidade de implantação do que se tem pensado até ao momento» (Maciel 2005, 16; sobre o teatro romano de Lisboa veja-se, também, entre outros, Moita 1970; Alarcão 1982, Id. 1986; e Hauschild, 1994). Situação aparentemente corroborada pelo achamento, em 1966-1967, de um fragmento de mármore branco, no qual se pode ler parte de uma inscrição em caracteres gregos: MELPO[…], ou seja, Melpó(mene), a musa da tragédia. Para este fragmento relevado, onde se evidencia parte de um antebraço e do braço dobrado, propõe Hélder Coutinho, na sua reconstituição hipotética, que a filha de Júpiter e Mnemósine segurasse na mão desaparecida uma máscara (Coutinho 1996, 134-135, figs. 7 e 10). Apesar das suas reduzidas dimensões, supõe-se ter pertencido a um relevo com representação iconográfica numenal. Todavia, a localização primitiva do referido friso ornamental não tem sido consensual, pois, enquanto Irisalva Moita (1970, 16, est. XIII, n.º 27) o coloca na scaena, Jorge de Alarcão (1982, 290, lám. 8) aponta para as exedrae do proscaenium, considerando que aquela cercadura seria descontinuada atendendo também à existência de um rebaixamento de 65mm e de dois entalhes, passíveis de receberem uma placa decorativa do género do pedaço encontrado (Coutinho 1996, 135). No que respeita à cronologia, os autores citados apontam para o século I d.C., e, desta mesma época, foi também recolhida por Fernando de Almeida parte de um busto feminino com diadema, cuja face desapareceu já, subsistindo o penteado, encaracolado na parte superior e descaindo em madeixas sobre a nuca (Moita 1970, 16; Almeida 1973, 37; Alarcão 1982, 290, lám. 8; e Souza 1990, que omite esta escultura no seu inventário). Mas as peças de arte mais significativas que aqui se encontraram, provavelmente esculpidas em mármore de Estremoz, reportam-se ao obeso par de silenos ébrios deitados sobre pele de animais e segurando, cada um deles, um odre de onde saía água perfumada. Estes poderão constituir também um indicador de que a arquitectura, juntamente com o baixo-relevo com inscrição grega e considerando ainda a sua implantação no terreno com a cauea aberta ao Tejo, que na origem do teatro de Olisipo tenha subjazido um programa helenístico, pois, na verdade, a figura do Sileno e a sua ligação ao drama satírico ateniense encontra-se já testemunhada desde o século IV a.C. (Coutinho 1996, 130).
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Cortes do monumento romano da Rua da Prata, segundo A. Vieira de Silva, Dispersos II, Lisboa, p.313
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Primeira planta das conservas de água da Rua da Prata, levantada em 2 de Junho de 1773. (Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, Plantas Arquitectónicas, Assuntos Portugueses, Pasta I, Planta nº 4) © AN/TT, Lisboa
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4. Uma cidade em crescimento A par dos silenos, de um fragmento de um eventual retrato e um outro de um baixo-relevo representando a musa Melpómene, todos eles descobertos no teatro e já referidos, apenas se conhece uma outra escultura de vulto detectada no aro olisiponense.Trata-se, pois, de um sátiro que, durante muitos anos, integrou um fontanário no Convento de São Domingos de Benfica – e que se encontra actualmente no Museu da Cidade –, tendo sido descrito, no século XVII, por Frei Luís de Sousa, nos seguintes termos: «Passado o claustro, quem busca a horta do Convento dá a poucos passos em huma praça empedrada (…) tem a mesma praça de huma parte huma graciosa fonte, e da outra hum espaçoso tanque (…) a fonte se faz em hum arco, que formado de brutescos varios, e vistosos, arremeda huma gruta natural. Dentro parece assentado hum grande e bem proporcionado Satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia. Em toda a sua figura mostra um rosto rizonho, e alegre huma simplicidade montanhesa, com que esta convidando a beber de huma concha natural, que tem apertada com o braço, e mão esquerda, da qual sahe hum fermoso torno de agoa: e justamente com a direita acode como arrependido a cobril-a; e faz geito de a querer retirar, dando com huma e negando com outra» (Sousa 1977, 821)19.
Para além desta peça, há notícia de uma outra estátua de mármore, representando Hércules deitado sobre a pele de Leão (Campos 1907, 107)20. Finalmente, nas termas dos Cássios terá sido encontrada uma estatueta, também de mármore, representando – de acordo com Tomás Caetano de Bem (segundo transcrição de uma carta do Padre, in Castilho 1884, 153-154)21 – uma figura envergando rico trajo militar, mas com ornato segundo o hábito 19 Apesar de se conhecerem abundantes referências ao Sátiro – que acreditamos ter pertencido a alguma uilla suburbana ou que tenha sido levado da cidade para o Convento por algum erudito – nenhum dos autores compilados arrisca uma datação para esta peça, hoje, bastante mutilada (Andrade 1859, 145; Pereira 1889, 99; Barbosa 1863, 90;Vasconcellos 1895, 63; Id. 1913, 243-244; Silva 1944, 91-93; Matos 1966, 48-49; e Souza 1990, que não refere esta peça no seu inventário). 20 Subsistindo, todavia, dúvidas acerca da cronologia desta peça escultórica adquirida como sendo romana pelo actual Museu Nacional de Arqueologia, mas cujo paradeiro é hoje desconhecido. 21 Esta epístola foi integrada na 2.ª edição da obra de Christovam Rodrigues, Summario em que Brevemente se Contem Algumas Cousas Assim Ecclesiasticas, como Seculares que ha na Cidade de Lisboa in Figueiredo 1889, 153-154, Bastos, 104; Silva 1944, 90-91 e Matos 1966, 29-30, mencionam igualmente esta estatueta.
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imperial. Outras esculturas que, decerto, decoravam os principais espaços públicos e religiosos de Felicitas Iulia Olisipo são, hoje, apenas intuídas através da epigrafia que o tempo nos legou. Assim, num prismóide de mármore permanece uma inscrição dedicada a Diuus Augustus (CIL II 182 = Ep. Olis. 74) que provavelmente sustinha uma estátua do imperador divinizado e que foi, segundo a mesma epígrafe, mandada erigir pelos augustales C. Arrius Optatus e C. Iulius Euthicus (inscrição que, nos inícios do século XVI, se encontrava na Igreja de São Tiago, ou próximo dela: Brito 1690, 544; Hübner 1869, 25; Vasconcellos 1913, 325; e Silva 1944, 182-183). E, apesar de – como vimos – Augusto ter recusado em vida tal titularidade, ainda que tivesse consentindo a sua veneração, a guarda hispânica do princeps – constituída essencialmente por vascões de Calahorra – e outros veteranos, em muito contribuíram para a eclosão espontânea do culto imperial na Hispânia, pois tinham o costume de reverenciar os seus chefes, quando estes revelavam um carácter heróico e eram militarmente aguerridos. Tibério também adoptou e oficializou esta devoção, apesar de, tal como o seu antecessor, ter recusado a sua divinização em vida, a qual, segundo Robert Étienne, foi, ao longo do tempo adquirindo foros de culto estatal e o imperador transformou-se, ele próprio, não «le fils d’un personnage divinisé, mais il est le fils du divin, c’est-à-dire d’un dieu (…). Le fils de divin à divin» (Étienne 1974, 389). Depois da morte de Augusto, em 14 d.C., abundam as epígrafes que a partir de então foram dedicadas ao culto imperial, a par de outras que se integram no panteão clássico, como sejam as de Iuppiter, de Appolo e Mercurius, pressupondo a existência de templos onde se integrariam. As mais recentes interpretações relegam a modéstia de um altar ou de um simples templo subjacente ao cerimonial dedicado ao aludido culto imperial, e consideram que estaria inteirado em complexos arquitectónicos com pórticos por onde seguiam efusivos cortejos processionais (Étienne 2002, 101-102), atribuindo-lhe, deste modo, uma maior espectacularidade. Nesta perspectiva, convém não esquecer que para os romanos, independentemente das épocas, dos locais ou dos deuses cultuados, a religião foi sempre assumida como um modelo político (Dias 2002, 95). Refira-se, por outro lado, que um certo burguesismo indígena encontrou também no flaminato municipal (opondo-se inclusivamente ao culto provincial) uma forma de integrar a classe dirigente, porquanto o seu exercício oferecia-lhe a possibilidade de elevar-se à carreira equestre. Ou seja, esta burguesia romanizada serviu-se também do sacerdócio como meio de ascensão
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social, pelo que progressivamente o culto imperial se foi alargando, primeiro à imperatriz, cujas flaminicae eram sacerdotisas de pleno direito até que, finalmente, abarcou a veneração de toda a domus augusta, ou seja a própria família imperial22, não deixando de se associar intimamente ao culto de dea Roma: «Le trinôme Rome, les Augustes et les divi est une parfaite Trinité» (Étienne 1974, 236). Durante o seu reinado, Tibério – talvez na continuidade do programa delineado por Augusto – realizou também ele uma série de benefícios urbanos, os quais, mercê da proximidade cronológica e tipológica é difícil de destrinçar em relação à obra do seu antecessor. Por conseguinte, o facto de se ter achado no criptopórtico da Rua da Prata – estrutura artificial criando uma plataforma nivelada, mas suficientemente robusta para suster um edifício ou um conjunto edificado – uma lápide datável do seu império, esta não, constituirá, si só, elemento inabalável para atribuir a fundação da referida estrutura a este imperador. De facto, este embasamento, ainda deficientemente conhecido devido às difíceis condições de acesso23, é, na área já cartografada, constituído por uma rede ortogonal de galerias e espaços abobadados, sobre o qual subsistem vestígios aparentes de um pátio outrora forrado com lajes, bem como um tanque revestido com opus Signinum com escoamento para o interior de uma das galerias e foram igualmente recolhidos no local fragmentos de mármore que indiciam uma rica ornamentação do edifício. No seu interior, subsiste uma nascente de águas medicinais, e o achamento da referida inscriptio dedicada a Esculápio contribuiu para que, numa primeira análise, se considerasse estar-se perante um edifício termal. Entretanto, Jorge de Alarcão (1994, 60), hesitando igualmente na sua classificação tipológica, vai perfilhando, com alguma prudência, as teses tradicionais; enquanto que Francisco Alves (1994, 128) alvitra que esta construção abobadada tratar-se-á de um horreum, edifício para armazenamento que era comum existir em muitas zonas portuárias; mas, por outro lado, Cardim Ribeiro (1994, 194) propõe para esta
22 Alarcão (1994, 61) refere que em Lisboa foram encontradas catorze inscrições que nomeiam sacerdotes do culto imperial, quer sejam augustais, quer sejam flâmines e flamínias. A propósito de outras devoções, menciona diversas referências às divindades do panteão clássico e recorda, com toda a naturalidade, que as evocações aos deuses indígenas não estarão presentes no aro urbano de Olisipo, ainda que se conheçam vários exemplares atestados no seu ager. 23 Descoberto em 1770, permanece soterrado e os níveis freáticos mantêm-no constantemente inundado, pelo que a sua acessibilidade está condicionada ao seu esvaziamento e constante bombagem da água.
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grandiosa estrutura, atendendo à relevância de Felicitas Iulia Olisipo como cidade portuária, a hipótese de tratar-se de vestígio de um forum corporativo. Todavia, se hoje não subsistirão já dúvidas de que o edifício em causa se tratará, afinal, de um criptopórtico, Fabião (1994, 69) afirma que com os elementos disponíveis é difícil proceder à sua classificação. Este estudioso considera válida a hipótese de se estar perante antigo edifício termal, mas inclina-se sobretudo para a hipótese de se tratar de um forum, argumentando a favor desta tese com os paralelos descobertos em Ebora Augusta, em cujo fórum se encontrou um espelho de água, e os embasamentos que sustêm os fora de Conimbriga e de Aeminium. Finalmente, Justino Maciel que, para além de considerar que a análise do edifício lhe interessa sobretudo «como documento da arquitectura romana», adianta «que nenhuma das hipóteses defendidas poderá ser rejeitada in limine» (Maciel 1994, 40). Este autor, entre outras suposições colocadas, considera, baseando-se em Vitrúvio, tratar-se de uma estrutura no contexto de um emporium: «Efectivamente, os portos prestarão naturalmente melhores serviços se estiverem bem situados e possuírem espigões ou promontórios salientes, a partir dos quais, para o seu interior e segundo a natureza do lugar, sejam formados ângulos ou curvaturas. Em volta deverão construir-se pórticos ou arsenais, bem como acesso dos pórticos para os empórios. De um e do outro lado dos portos deverão ser erguidas torres, a partir das quais, por meio de máquinas, se possam passar correntes de ferro de um lado ao outro» (Vitrúvio 2006, V, XII, 1). Esta sugestão de se estar perante uma praça de comércio marítimo, aproxima-se, de algum modo, da teoria já explanada por Cardim Ribeiro (1994, 194).Todavia, no que concerne ao interior deste cryptoporticus, constata-se que muitas das galerias ostentam aparelhamento em opus quadratum almofadado – indício de que na sua fase primeva terá integrado uma importante construção – e, ainda que não apresente qualquer aproximação cronológica, Maciel considera que terá havido uma reformulação e descentramento de abóbadas e de rebocos, obra que acredita ter sido executada em virtude de o edifício ter recebido uma outra funcionalidade, designadamente transformando-se numa cisterna, para armazenamento de grandes quantidades de água (Maciel 1993-94, 148, Id. 1994, 40), indispensáveis, aliás, ao fabrico intenso de conservas de peixe que bordejava o esteiro fluvial. Podemos supor, no contexto enunciado, que a adaptação do criptopórtico a cisterna tenha ocorrido numa época de escassez e que a água levada pela conduta se tivesse tornado insuficiente para abastecer a cidade e,
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em simultâneo, sustentar a grande produção de conservas de peixe. De facto, esta adaptação poderá ter tido a ver com a reestruturação das fábricas, na segunda metade do século III, e o substantivo aumento de produção e exportação observado na centúria seguinte (Amaro 1994ª, 73). Com efeito, uma grande parte da riqueza de Olisipo adveio dos abundantes recursos piscícolas e do sal que o Tejo lhe oferecia, todavia, os testemunhos da indústria conserveira iam muito para além do próprio centro urbano designadamente na actual zona de Belém, onde, em 2006, se pôs a descoberto, na antiga casa do governador da Torre, um outro importante conjunto de cetárias, atingindo algumas delas – segundo António Varela – os 7 m de comprimento por 5 m de largura (Henriques 2006, 48), continuando para os agri a poente e a sul do Tejo, onde se fabricavam também ânforas destinadas ao envasamento e transporte dos produtos24. Nesse sentido, esta cidade romana continuou e dinamizou numa perspectiva industrial em grande escala (que abrangia o fornecimento das legiões, incluindo as que defendiam o limes) – que era aliás apanágio da estrutura económica em que assentava o Império – aquela já antiga actividade económica, conforme nos revelam os abundantes testemunhos de fábricas de conserva datáveis, praticamente todos eles, dos séculos I e II d.C., tendo sido ampla a sua dispersão geográfica, não só ao que concerne à Lusitânia, mas, também, à Bética e à Mauritânia, ainda que neste último caso apresente uma cronologia mais recuada (Bugalhão 2001, 38). Esta zona industrial, como era hábito nas cidades romanas integrava-se no próprio tecido urbano e, nesse sentido, poder-se-á ter como válida a hipótese de que o eixo da via que indo da Casa dos Bicos até ao polémico criptopórtico e, prolongando-se para noroeste, inteirava as unidade fabris hoje conhecidas, no sistema ortogonal que a reforma de Augusto impusera ao velho povoado. Detectaram-se vestígios de cetariae destinadas ao fabrico de preparados piscícolas, sobretudo de garum, ao longo da Baixa Pombalina: na própria Casa dos Bicos, na Rua Augusta, no antigo Mandarim Chinês, na Rua dos Correeiros, na Rua dos Douradores, na Rua dos Fanqueiros e na Rua dos Correeiros 24 Foram também detectados indícios de tanques junto da velha porta do castelo de Cascais (Amaro 1994, 77) e na uilla cascaense de Casais Velhos (Alarcão 1994, 62) e abrangendo, igualmente, a margem esquerda do estuário deste grande rio, com possíveis fábricas em Cacilhas e em Porto Brandão. No entanto, se em relação a estas unidades subsistem algumas dúvidas, está claro que em Muge, Garrocheira, Porto dos Cacos e Quinta do Rouxinol se situavam os centros de olaria que produziam os contentores para transporte do garum (Bugalhão 2001, 50), todos eles integrando possivelmente uillae dispersas pela faixa ribeirinha (Amaro 1985, p. 18).
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(Bugalhão 2003, 127), e no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (Millenium bcp), onde, até agora se pôs a descoberto um impressionante complexo industrial, cuja área atinge os 409 m2 e detinha uma capacidade de produção de 288 m3, ou seja, o nível de produtividade desta unidade fabril era apenas ultrapassado pelas cetariae de Tróia (Bugalhão 2001, 81). Durante as escavações da fábrica da Baixa Pombalina foi intervencionada parte de uma necrópole republicana, com enterramento mistos, tendo-se descoberto oito inumações infantis, algumas delas em posição fetal, bem como uma urna de incineração e áreas destinadas à cremação dos corpos. O espólio funerário ali recolhido é comum neste género de sepulcrários, designadamente ungentários de vidro, cerâmicas de paredes finas, sigillatas itálicas e campanienses (Bugalhão 2001, 31). No espaço escavado recolheu-se também uma cabeça de uma estatueta de bronze, fabricada segundo a técnica da cera perdida, representando um jovem imberbe, mas cujos traços da face e volume do cabelo reflectem um trabalho oficinal pouco aprimorado. No que concerne aos testemunhos ainda reportáveis ao século I d.C., temos que contar com os melhoramentos que Caius Heius Primus ofereceu ao teatro olisiponense, num claro gesto de auto-promoção e evergetismo, tão frequente, aliás, na época romana, que visava não só evidenciar o estatuto social, mas, também, o poder económico do benfeitor. Assim, este flâmine augustal terá providenciado a marmorização dos principais espaços do teatro, designadamente o pavimento da orchestra e o proscaenium (Matos 1994, 109; e Maciel 1995ª, 87), onde corre monumental inscrição que C. Heius Primo Cato, augustal perpétuo, dedicou, em 57 d.C., ao imperador Nero (CIL II 183 = Ep. Olis. 70): NERONI. CLAVDIO DIVI. CLAVDI. F. GER… AVG… GERMANICO PONT.MAX.TRIB.POT.III IMP.III.COS.II DESIGNATO III PROSCAENIVMET ORCHESTRAM CVM ORNAMENTIS. AVGVSTALIS PERPETVVS C. HEIVS PRIMVS…
Pressupondo igualmente a erecção coeva de estátua do César (Azevedo 1815, 12; Hübner 1869, 25 e 811; Id. 1871, 10; Castilho 1884, 113 e 118; Azevedo 1898, 319; Vasconcellos 1913, 325; Id. 1959, 173, Silva 1944, 59-60 e 172-175; e Matos 1966, 30). Nas ruínas deste imponente edifício foi também encontrada a base epigrafada (CIL II 196 = Ep. Olis. 71), suposta base de uma escultura do próprio ofertante (Azevedo 1815, 13, fig. IV e 60, fig. X; Hübner 1869, p. 27; Id. 1871, 11; Castilho 1884, 161; Vasconcellos 1913, 325; Id. 1959, 173; e Silva 1944, 177-178). Caius Heius Primus, augustalis perpetuus, vê registado
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na epígrafe que lhe é dedicada o nome de dois dos seus libertos, assim como o dos seus quatro filhos. Refira-se, a propósito, que Heius é um gentilício itálico que, apesar de se encontrar pouco difundido, a sua presença é notória sobretudo nos importantes centros portuários, como era, aliás, o caso de Felicitas Iulia Olisipo. Na verdade, os Heii eram uma antiga e rica família que – para além de alguns dos seus membros terem exercido diversas magistraturas locais no tempo de Augusto –, se dedicava, certamente, à indústria (com testemunhos epigráficos no norte de Itália e no Norte de África, no que concerne ao fabrico de lucernas) e ao comércio marítimo, pois encontramo-los sobretudo fora de Itália (Fernandes 2005, 34). Subsistem, ainda, ao longo dos séculos I e II, outros exemplos epigráficos, os quais, pela sua compleição, indiciam que nesta cidade eram abundantes as consagrações, não só aos imperadores, mas, também, à domus augusta e a membros da administração provincial, passíveis de considerar como bases de estátuas ou de bustos. Assim temos: uma notícia de uma saudação imperial a Vespasiano (CIL II 185, Suplemento, 109 = Ep. Olis. 80), descoberta nos alicerces de São Vicente de Fora, em finais do século XVI, e datado do ano de 79 d.C. (Azevedo 1753, 86-87; Hübner 1869, 26; Castilho 1884, 118-119; Silva 1939, 8; Id. 1944 190-192); o monumento erigido a Hadrianus (CIL II 186 = Ep. Olis. 91), ostentando cargos e títulos inerentes ao imperador que, no segundo quartel do século XVI, estava em frente ao convento de Xabregas, ao tempo termo de Lisboa (Hübner 1869, 26; e Silva 1944, 203-204), cuja inscrição é semelhante à da imperatriz Sabina Augusta (CIL II 4992), mandada insculpir pelos duúnviros M. Gellius Rutilanus e L. Iulius Auitus, estando datada de 121. Ou, no que concerne à administração provincial, refira-se a memória levantada em honra de L. Caecilius Celer Recto, Questor Provinciae Beticae, tribuno do povo e pretor, que Hübner (1869, 26; Id. 1871, 9), ainda que vagamente seguido por Silva (1944, 126-127), datou de 108 d.C., mas que autores mais recentes – como Alföldy (1969, 188-189, 280 e 282) e Ribeiro (1982-83, 345 e 449, n. 84) –, contrapõem com uma proposta cronológica mais avançada, abrangendo os finais do século II ou já mesmo a centúria seguinte. Data também do século II o mosaico bicromático que se descobriu numa sondagem realizada na Rua dos Correeiros (sondagem 34), junto à zona industrial de preparados piscícolas. Porém, pelo facto deste reduzido e fragmentado conjunto ter sido recolhido juntamente com entulho variado é, de todo, impossível atribuir-lhe uma proveniência segura. Mas pela sua morfologia que
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revela alguma qualidade técnica e, sobretudo pelos diamantes, ou quadrados escalonados representados, ao longo do que parece ser uma moldura interior ou de separação de eventual esquema de quadrados justapostos, poder-se-á atribuir-lhe, com alguma segurança, influência italiana, não só porque este esquema surgiu naquele território – com primeiros exemplos em Teramo e na Via Ardeatina –, mas também porque o diamante terá tido origem e ampla difusão na referida centúria (Caetano 2001, 65-82; Id. 2006, 23-34). No interior da grande cloaca – com 1,60m de altura por 0,70m de largura, que, em época não determinada, terá sido propositadamente entulhada, que corre sob o troço da via de acesso ao Teatro posta a descoberto no claustro da Sé –, recolheram-se, também sem contexto definido, alguns fragmentos de mosaico bicromático, cuja reconstituição possível revelou uma banda exterior com diamantes não contíguos e campo revestido por um esquema ortogonal de quadrilóbulos tangentes com círculos inscritos formando polígonos côncavos, revelando tal-qualmente influência itálica, com paralelos próximos em dois mosaicos ostienses do século II; no mesmo dreno encontrou-se diminuto pedaço de opus tessellatum polícromo, cujas dimensões não permitem que sobre ele se proceda a qualquer estudo analítico, ainda que pareça tratar-se do que resta de um mosaico já do século III (Caetano 2006, 23-34).
5. A crise do século III ou o advento de um mundo novo? As crises que no século III abalaram o mundo romano, num movimento abrupto proporcionado quer por pressões exógenas, quer pela sua própria implosão. A «época dos Severos (192-235) marca no Império a entrada decisiva num sistema de transformações profundas em que, à crise interna das instituições romanas, se acrescentam factores que imprimem uma maior aceleração do processo de dialéctica político-social que leva à mudança e ao aparecimento de uma nova situação que historicamente se designa por Antiguidade Tardia» (Maciel 1996, 25). Factos que, inequivocamente, contribuíram para redireccionar o percurso de um vasto universo que até então ambicionava e vivia em função de uma certa praxis romana25. E se, por um lado, a instabilidade que se come25 Este fenómeno de instabilidade contribuiu para que se trouxessem igualmente à superfície ancianos substratos, cuja força renovada concorreu também para o advento de novos signos, designadamente, e a mero título exemplificativo, refira-se que a inumação se foi tornando preferencial ao antigo uso
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çou a verificar na época do africano Septimius Seuerus – casado com Iulia Domna26, uma síria filha de um sacerdote do culto de Baal – contribuiu para que a piedade à domus augusta, que agira séculos antes como um mecanismo regulador e, até mesmo, englobante de uma sociedade que apesar de plural se queria una, por outro lado também foi esmorecendo a fé no imperador divino27, cedendo definitivamente lugar a ressurgimentos de antigas devoções indígenas e a outros mistérios, estes de proveniência oriental – atendendo a que alguns deles que se vinham dispersando ao longo do vasto Império já desde o século II, operando a mudança dos contextos filosófico-existênciais e a integração progressiva de novas atitudes perante a religião –, tais como, a veneração de Ísis e de Serápis, de Cíbele, os mistérios dionisíacos, o Mitraísmo – sobretudo entre os militares –, o Judaísmo e o Cristianismo. Foi, igualmente, nesta altura em que desabrocharam diferentes modelos económicos, sócioculturais, artísticos e religiosos que o Cristianismo se impôs, até porque, de romano da cremação. Mas neste tempo de mudança conviveram, por muitos séculos ainda, dois modos de estar pelo que, no âmbito dos ritos fúnebres, de que constituirão exemplo a tampa do denominado sarcófago das Musas e de um outro de Vila Franca de Xira (mas provindo, talvez, de Castanheira do Ribatejo), ambos importados de Roma na segunda metade do século III. O primeiro, procederá, talvez, de uma possível uilla, em Chelas, e, em termos decorativos ostenta, ao centro, os poetas sentados e nas extremidades as musas Melpómene e Talia que seguram, respectivamente, as máscaras trágica e cómica e, no ângulo oposto, Polímnia e uma outra musa não identificável pela ausência de atributos (Souza 1990, 72, fig. 139; e Alarcão 1994, 63). O segundo sepulcro carreia imponente simbólica dinisíaca, no seu formato oval e na sua decoração profusa com vides e putti colhendo e encestando frondosos cachos de uva, blasonando o centro um medalhão revelado com o busto de uma menina (Souza 1990, 72, fig. 140). O achamento destes túmulos ricamente trabalhados, acaso revelarão que a inumação era já uma prática corrente e cuidada, ao nível das classes abastadas daquela época. Facto que, deveras contrasta, com as classes mais pobres que inumavam os seus corpos em modestas caixas de pedras mal talhadas, postas ao alto e cobertas por lajes, num modelo que perdurou durante séculos, como seja o caso, na margem esquerda do Tejo, designadamente no grande centro oleiro do Porto dos Cacos, onde a inumação se encontra bem presente, com 37 enterramentos detectados até ao momento, no período compreendido entre os séculos III e inícios do V (Sabrosa 1996, 287). 26 Na uilla de Santo André de Almoçageme (concelho de Sintra) foi recolhida a cabeça de uma estatueta em terracota, com 57mm, que foi identificada como uma representação, provavelmente de cariz votivo, desta imperatriz (Sousa 1988); em Eburobrittium descobriu-se também uma pequena cabeça feminina em terracota que, apesar de não se encontrar identificada nem datada (Moreira 2002, 102, fig. 91), aparenta algumas similitudes com a de Santo André de Almoçageme. E, ainda que mais destruída, detectou-se outra cabeça feminina similar às já referidas na uilla de Freiria (Cascais), igualmente datada do século III (Cravinho 1993-94, 346, figs. 6-9). 27 Será, pois, neste contexto que se poderá entender que dos diversos monumenta imperiais assinalados em Lisboa nos séculos anteriores, apenas se conheça um único exemplo desta época.Trata-se da base epigrafada de uma estátua erigida a Philippus (CIL II 188 = Ep. Olis. 93) pela cidade de Felicitas Iulia Olisipo, em 248, que, nos início do século XVI, se encontrava «na torre do chafariz d’El Rey mor» (Azevedo 1753, 282; Hübner 1869, 26; Castilho, 1884, 123; Silva 1939, 8 e 154-155; Id. 1944, 206-207).
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algum modo, terá sido a própria moral augustaica que «acabou por deixar marcas na concepção romana da vida que facilitarão o advento do Cristianismo; as virtudes do trabalho (…) sempre assistido pelos deuses, e de uma infinita piedade para com eles, expressa no sacrifício e na prece, não foram alheias à religião romana e serviram, na ordem prática, para a realização individual e familiar» (Dias 2002, 95). Entretanto, no âmbito desta paz aparente, em Felicitas Iulia Olisipo procedeu-se à a reconstrução das chamadas termas dos Cássios, em 336, patrocinadas por Numério Albano, praesis da província da Lusitânia, conforme epígrafe descoberta no local (Silva 1944, 48-50 e 114-115, n.º 22; Maciel 1994, 35). Estas, redescobertas após o terramoto de 1755, foram minuciosamente descritas pelo insigne antiquário Padre Tomás Caetano de Bem, que efectuou também um modesto desenho do edifício, que, na sequência das obras, viria de novo a ser entulhado28. Foi, contudo, apenas há alguns anos e por motivo de obras de beneficiação do Palácio Penafiel que ali se pôde encetar uma metódica e continuada intervenção arqueológica. Durante a escavação foram localizadas e definidas várias paredes do edifício termal, algumas delas com reduzidos vestígios de frescos in situ, bem como a zona dos banhos quentes e o vestiário. Todavia, o esforço de contenção dos povos invasores expendido pelo Império contribuiu, sobremaneira, para a fragmentação da sua estrutura, da sua política, da sua economia e dos seus exércitos, ao ponto de estes acontecimentos terem originado, ao longo do século III29, um movimento migratório das elites abastadas para as suas uillae rurais, onde escapavam igualmente aos 28
«Um grande banho, ou piscina, do feitio de metade de um cylindro; servia-lhe de cupola o segmento de uma ellipse; isto é, a forma que apresentava era a de um nicho, de quarenta e cinco palmos de altura, vinte e dois e meio de largura, e doze de base ou grossura. Aos pés do nicho abria-se um tanque, cuja figura era um segmento de circulo. O seu lado curvo era a parede do nicho; e da parte de fóra fechava-o uma parede em linha recta, de dez palmos de altura. Dentro do tanque descobriram-se junto ao nicho os vestigios de um assento, e ao pé delles os signaes de um cano de agua. O material todo era excellente, escusado é dizel-o. Duas escadas, de cinco degraus cada uma, aos dois lados da parede exterior, conduziam ao interior do banho; comprimento dos degraus, dois palmos; altura, três quartos de palmo. Pelo que se vê tudo foi concienciosamente medido e esquadrinhado. Dentro do nicho grande da piscina abria-se a meia altura outro nicho pequeno, onde foi encontrada uma estatueta. Era em marmore branco; representava um guerreiro romano, a modo um general; elmo; pescoço nu; armadura; sobre o peito esculpido um sol; sobre o ventre duas esphinges aladas. Na mão esquerda um escudo, onde se divisava em relevo a loba a amamentar Romulo e Remo. Na cabeça, n’um braço, e n’uma perna, alguns destroços, causados do tempo, ou de circumstancia fortuita» (in Castilho 1884, 95-96, n. 16).
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impostos e às suas obrigações para com o populus da cidade. E se assumimos hoje que, de certo modo, existiu uma urbanização do universo rural, porquanto se transpuseram então muitas vivências urbanas para o campo (cfr., v.g., Gorges 1974), poderemos, igualmente, supor que tenha ocorrido um processo inverso, ou seja, que se tenha verificado uma ruralização da cidade – ainda que, num primeiro momento, consideremos a hipótese de ter tratado essencialmente de um fenómeno mental –, até porque, com o afastamento da aristocracia, que tinha obrigação de patrocinar os ludi teatrais, ali se mantiveram, para além de uma burguesia enriquecida e com bastas pretensões sociais (muitos deles antigos libertos aos quais Caracala concedera, em 212, a cidadania), sobretudo os operários e os artífices, de baixa condição económica, social e cultural, para os quais os modelos clássicos eram absolutamente despiciendos. Deste modo se justificará, talvez, que no teatro olisiponense se tenham encontrado vestígios de eventuais adaptações, eventualmente patrocinadas por esta nova elite urbana, para espectáculos com água que – nesta nova era – se tornaram frequentes, uma vez que subsistem marcas de passagem de água da referida orchestra, através do proscaenium, para a colymbetra (Maciel 1994, 39; Id. 1995, 87). Quando a necrópole da Praça da Figueira foi abandonada no século III (Alarcão 1988a, 125)30, construiu-se, nas suas imediações (na área hoje corres29 Na verdade, no limes, as pressões bárbaras haviam-se igualmente começado a sentir desde finais do século II, onde os exércitos romanos tentavam travar a entrada dos povos germânicos para o interior do Império, ou controlando os movimentos dos que entretanto já ali se haviam instalado; e, nos começos do século III, durante o reinado de Caracala, registaram-se revoltas na Gália e a confoederatio barbarica ia penetrando, cada vez mais, o território romano, ora como bandos de salteadores, ora como tribos que se fixavam em terras que lhes eram oferecidas; processo que, de certa forma, culminou em 235, quando em campanha contra os Persas, Severo Alexandre foi assassinado por soldados das suas próprias legiões amotinadas. 30 Já há alguns anos, na sequência das obras de construção da rede do metropolitano pôs-se a descoberto, na Praça da Figueira, uma necrópole, cujas primeiras sepulturas datam da primeira metade do século I d.C. (Alarcão 1988, 125), facto que, de per si, é indicador que, naquela época, esta zona, actualmente em pleno centro de Lisboa, integrava já o arrabalde da cidade, para além do pomerium, isto é, fora da zona amuralhada que deveria circundar a cidade. Refira-se, por outro lado, e a título de curiosidade, que no espaço que precedia o pomério – decerto por razões de salubridade – não se podia proceder à cremação ou enterro de cadáveres, nem supliciar os condenados, quer porque tivesse sido essa a sua origem, quer fosse por razões honoríficas, quer, ainda, porque não se deveria «jamais perder a perspectiva de defesa no caso de alteração da paz» (Maciel 2005, 20). Existia uma outra necrópole na área do Campo de Santana e, eventualmente, uma terceira necrópole na zona meridional da cidade (Alarcão 1994, 60). Neste sentido, talvez a chamada Porta de Ferro, estrutura de cronologia e função não identificáveis, pudesse integrar a muralha do ópido. Alarcão (1994, 60): afirma que a Porta de Ferro não se trata, afinal, de vetusto vestígio de um arco do triunfo, mas que possivelmente integraria alguma construção monumental, sem, no entanto, lhe outorgar um posicionamento concreto.
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pondente à Praça D. Pedro IV) e pelos meados do mesmo ou nos inícios do evo seguinte um circo (Sepúlveda et al. 2002, 259), do qual subsiste parte de uma estrutura identificada com a barreira. Sabe-se, hoje, que as corridas de cavalos eram uma antiga tradição que os romanos apreciavam e, neste contexto, saliente-se a melhoria do Circo Máximo, em Roma, promovida por Júlio César em celebração do seu triunfo de 46 a.C., modificação que incluiu também a construção de uma estrutura de protecção dos espectadores durante as uenationes, espectáculos de caça, nos quais intervinham caçadores, a cavalo ou apeados, que combatiam animais ferozes, ou, até mesmo, lutas entre predadores. Foi contudo, no período de transição da República para o Império que as corridas de cavalos se tornaram bastante populares, pelo que, desde Trajano, que as barreiras contínuas se tornaram permanentes. Os circos tiveram grande expressão no mundo antigo – e recorde-se aqui, a título meramente ilustrativo que Nero se apresentou nos Jogos Olímpicos num carro puxado por dez cavalos (Suetónio, VI, XXIV) – mas, em Olisipo, a sua implementação ou reimplantação monumental, parece coincidir com a alvorada deste mundo novo que a História apelidou de antiguidade tardia. Com efeito, do circo lisbonense puseram-se a descoberto uma parte da arena e do euripus (Duarte e Santos 2003, 179-180), sendo a face exterior da barreira forrada com materiais nobres, como o parece comprovar, para além de pedras aparelhadas, uma placa de mármore rosado ali recolhida. Segundo Ana Duarte e Victor Santos, que procederam ao estudo deste circo, tal edificação monumental – que muito provavelmente terá substituído anterior estrutura, talvez construída noutro lugar e com materiais perecíveis – em época já tardia ter-se-á devido não só ao gosto por este género de espectáculo, mas também a outros factores, estes indissociáveis da própria economia do território. Grande parte da riqueza desta cidade assentava, como se viu, na exportação de garum e de cavalos (Mantas 1990ª, 173), cujas particularidades já vinham sendo louvadas, pelo menos desde Terêncio Varrão (lembrando os célebres potros da Lusitânia), encontrando-se atestada a sua criação, quer para fornecimento do exército, quer para o circo, desde o século I, mas com particular incidência no século IV, existindo ainda referência à oferta de um cavalo pelo César Juliano ao Imperador Constâncio II, em 360, e também a menção epistolar do Cônsul Quinto Aurélio Símaco de que, na Península, procurava os melhores cavalos para os jogos que o seu filho iria patrocinar em 401 (Duarte e Santos 2003, 178-179).
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De facto, apesar de então se viver uma época de alguma instabilidade em Felicitas Iulia Olisipo, que já então encontraria coarctada parte da sua vivência, observou-se, na segunda metade do século III-inícios do IV, um curto período de recrudescimento económico-social que terá coincidido, como vimos, com as adaptações realizadas no teatro, com a construção de um (novo) circo monumental e, ainda, com melhoramentos realizados nos balnea anexos à grande fábrica de garum detectada sob o Millenium bcp, supondo-se que esta estrutura integrasse – num contexto de mudança de gestão destes complexos produtivos – a residência do seu proprietário ou administrador (Bugalhão 2001, 62). Consequentemente, junto ao respectivo frigidarium, um tanque quadrangular revestido a opus Signinum, encontraram-se também vestígios de um mosaico, na sua quase totalidade destruído pelos alicerces de um forno de tratamento do ferro, coevo do edifício pombalino e que terá sido desactivado na segunda metade do século XIX. E um outro pavimento, parcialmente conservado – ainda que se encontre nalgumas zonas danificado pela ulterior abertura de dois silos muçulmanos31, policromo, ostentando singular e complexo fácies organizado em quatro painéis justapostos com ornamentação alternada. Assim temos, ultrapassada a faixa de ligação, as molduras exteriores constituídas por filete e banda de diamantes não contíguos que se prolonga apenas entre dois painéis, onde domina uma banda com meandro de grega interrompida e uma trança de múltiplos cabos que envolve toda a composição central, bem como um entrançado de duas pontas; junto aos degraus de acesso ao frigidarium, subsiste uma larga banda com meandro de suásticas, formado a partir de trança de dois cabos. A estrutura decorativa do campo dispõe-se do seguinte modo: painel A – composição ortogonal de quadrilóbulos de peltas, em redor de quadrados direitos com nós de Salomão inscritos e fusos em aspa tangentes e intervalos preenchidos com diamantes –; painel B – o campo está preenchido por uma composição ortogonal de linhas de meandros de suásticas com volta simples com pequenos quadrados, apresentando inscritos quadrados menores sobre a ponta –; painel C – a sua composição é similar à do quadro A, mas, infelizmente, está muito destruído –; e painel D – completamente destruído, mas a sua composição seria idêntica à do B. Refira-se, ainda a propósito do presente tesselado que em toda a bibliografia compulsada apenas 31 Este fenómeno de destruição não é inédito encontrando-se patente noutros locais onde se verificou uma continuidade na ocupação e/ou readaptação do espaço, de que constitui um bom exemplo a uilla romana de Frielas (Loures).
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lográmos encontrar um único pavimento no qual se articulem os modelos decorativos que revestem o campo deste pavimento.Trata-se, pois, de um mosaico do “Tiempo a planta di tipo semitico”, em Tharros (Sardenha), igualmente datado da segunda metade do século III (Amaro e Caetano 1993-94, 283-294; Caetano 2001, 65-82; Id. 2006, 23-34). Refira-se ainda a propósito que muitas destas obras de construção ou de beneficiação, realizadas aquando do afastamento das elites dominantes para o campo, poderão ter sido patrocinadas – com excepção das termas dos Cássios, cuja inscrição atribui a obra ao governador da Lusitânia – por uma certa burguesia de carácter urbano que, talvez aproveitando o vazio gerado pela ausência da aristocracia, tenha assumido o estatuto social que, há muito, ambicionava.Todavia, o gosto e os valores tradicionais do paganismo que caracterizaram os séculos anteriores não eram já os mesmos que então vigoravam, pois haviam sido temperados pela pluralidade dos fenómenos e pelo próprio tempo. Um tempo de insegurança e de incerteza, mas igualmente de mudança que, juntamente com os novos valores que vicejavam – de entre os quais se destaca a difusão irreversível do Cristianismo –, outros eram recuperados dos confins da História.
6. A contracção de uma cidade A recessão de Felicitas Iulia Olisipo – enquanto espaço urbano – era já, neste período baixo-imperial uma evidência (comum, aliás, ao que sucedeu um pouco por toda a Península Ibérica) que se acentuou, primeiro, por meados do século III com as invasões dos francos e alamanos (Maciel, 1996, 27). Tempos depois, nos finais daquele evo ou inícios do seguinte, a destabilização generalizou-se a todo o Ocidente, à qual obviamente a Península Ibérica não ficou imune e conduziu à construção apressada de uma muralha de protecção contra as investidas dos populi germânicos e que – ao exemplo de Conimbriga – deixou extra-muros uma parte importante da cidade. Coincidiu, pois, este fenómeno com o período de florescimento das uillae e a sua imposição na organização territorial, com os inegáveis benefícios que trouxe para a economia do município, quer com os melhoramentos então efectuados nos espaços domésticos, rústicos e frutuários, quer substituindo-se, de certo modo à cidade, enquanto entidade produtiva. Apesar de não se conhecerem ainda hoje os
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precisos limites da cerca então levantada, subsistem alguns indicadores importantes que nos permitem ir cartografando alguns pontos fundamentais. Assim, na sequência das escavações levadas a efeito no claustro da Sé, constatou-se que por esta época se procedeu à interrupção da grande via de acesso ao teatro em três locais por muros e, no «espaço interior entre estas paredes tardias, bem como nas áreas circundantes, apareceram níveis arqueológicos com materiais pertencentes a épocas tardo-romanas imperiais e pós-imperiais, compreendendo “sigillatas” (sic) tardias e outros artefactos datados dos séculos IV a VII da nossa era, e, até mesmo, cerâmicas e outros materiais islâmicos de época califal e dos taifas (séculos VIII a X)» (Matos 1994a, 33). Este facto poderá ter conduzido ou resultado do abandono do teatro – tal como sucedeu com as termas dos Cássios que funcionaram até meados do século IV –, pois, segundo Hauschild (1994, 65) a edificação, sob os uomitoria, de uma habitação, datável do século IV ou V, indiciará, porventura, que o teatro já se encontraria desactivado. Igualmente, a unidade fabril da Casa dos Bicos, onde se assinalou um conjunto de cinco cetárias, uma delas escavada no próprio solo, dois compartimentos secundários e um pequeno troço de esgoto, parece que laborou em pleno até ao seu encerramento e aterro nos finais daquela centúria, ou inícios do século IV, como resultado da necessidade de se construir, neste período de convulsões, uma muralha (Amaro 1983, 4; Id. 1994, 78)32. Apesar de a cidade ter sido urbanisticamente truncada com a construção da muralha baixo-imperial, da qual são visíveis alguns troços de silhares almofadados em Alfama (Maciel 1996, 30), enquanto que no Largo de Santo António à Sé, se pôs a descoberto parte do embasamento de um edifício público do período republicano, cujo abandono terá sido coincidente com a construção do referido muramento33. Este – tal como sucedeu, a título de exemplo, em Évora e em Viseu – terá visado sobretudo a defesa do burgo das
32 Ainda durante a intervenção arqueológica levada a cabo nas salas A e B, no 1.º piso, foram localizados e exumados, entre outros materiais, alguns pequenos fragmentos de mosaico e algumas dezenas de tesselas avulsas, ostentando vestígios da argamassa do assentamento, que se encontram expostas na Sala Romana do Museu da Cidade, onde se indica uma cronologia circunscrita ao século III (Caetano 2006, 26). 33 Durante aqueles trabalhos arqueológicos constatou-se igualmente que, mais tarde, se sobrepôs à muralha romana, ainda que de modo não totalmente concordante, a Cerca Moura, observando-se, pois, uma clara opção pelas «soluções de continuidade mas condicionadas pela existência de estruturas anteriores com orientação diferenciada e características construtivas de igual modo distintas» (Vale e Fernandes 1994, 109).
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invasões de 273-275, mas se num primeiro momento foi eficaz na sua função, acabou por condicionar o espaço urbano que, espartilhado, iniciou um lento processo de desagregação da sua matriz de feição clássica. E esse fenómeno iniciou-se após a construção da aludida estrutura, pois a necessidade premente em obter-se pedra terá levado ao desmantelamento, parcial ou total, de alguns dos mais emblemáticos edifícios públicos da cidade alto-imperial. Neste espaço ora amputado, e logo nos começos do século IV, a ecclesia – e recordemos aqui que, no seu início, o Cristianismo foi um fenómeno eminentemente urbano – estaria já verdadeiramente institucionalizada em Olisipo, pois, aquando da grande perseguição de Diocletianus, em 303-305, «Temos nesta cidade como testemunho o sangue derramado pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano por parte de mártires como Máxima, Veríssimo e a virgem Júlia»34, que se tornaram nos mais importantes mártires olisiponenses vítimas daquela purga e cujo culto – segundo Maciel (1994, 36) – é bastante provável que fosse comum na época visigótica, porquanto se encontram citados entre os padecedores mais venerados da Hispania. Na verdade, esta perseguição, talvez das mais cruéis, foi tida como o último grande esforço do paganismo para sobreviver num meio que se lhe tornara hostil, até porque as mudanças operadas nos dois últimos séculos haviam conduzido a uma mentalidade que não se revia, de modo algum, na religião oficial do Estado. Neste sentido sabe-se, apesar das especulações que a escassez documental proporciona, que Potâmio, um letrado que nos deixou alguns escritos, foi o primeiro bispo olisiponense35, por volta de 343-360, e que depois de convertido ao Arianismo terá retornado à ortodoxia cristã, talvez por altura do concílio de Rimini, em 359 (Alarcão 1994, 63), tendo morrido, no ano seguinte, a caminho da sua uilla, «como que documentando a progressiva abertura de Olisipo ao campo» (Maciel 1994, 37) e à sequente expansão do cristianismo pelos agri, como acaso testemunhará, bastante mais tarde, o epitáfio cristão, ao qual, aproveitando a lápide sepulcral de Átila Máxima, filha de Marco, se acrescentou, uma inscrição bastante rude: «Em nome de Nosso Senhor Jesus 34 Discurso do Arcebispo de Braga, D. João Peculiar, proferido aquando do cerco de Lisboa, a 30 de Junho de 1147 (in www.arqnet.pt). 35 Potâmio, convocado pelo Imperador Constâncio II, participou no Concílio de Sirmium de 357 e trocou correspondência com Santo Atanásio (cfr. Coelho 1994, 75), tudo factos reveladores de que este isolamento da finisterra ocidental foi apenas aparente, porquanto os caminhos do Oriente continuavam activos.
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Muralha Romana Tardia de Lisboa, sobre Alfama. © Fotografia de J. Maciel.
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Cristo, eu vosso bispo Ildefonso…» (Fontes 1960, 34). E, quando Teodósio, neste mesmo século, impôs o Cristianismo como a religião oficial do Império, através do édito De Fide Catholica, em 392, constata-se que se tratou de um mero acto político, pelo que, nessa medida, este também não foi um comportamento novo (Dias 2002, 95)36.Todavia, esta vitória sobre os demais contextos religiosos, permitiu, em pleno século IV, uma mudança na própria arte, ainda, por vezes, bastante arreigada aos cânones clássicos e apesar de utilizar a mesma plasticidade, os conteúdos subjacentes diferenciavam-se pela mensagem a transmitir (Maciel 1994, 105), assumindo a arte, já pelo menos desde Constantino, uma função heurística que, além de colocar o princeps num nível superior ao do cidadão comum, encontrava nele o lado visível do divino que o investira da auctoritas imperial (Glay 2002, 480). E, nos tempos subsequentes, foi nesse sentido que a arte, fundindo-se com as suas origens clássicas, evolucionou37. Apesar dos condicionamentos continuamente impostos à matriz urbana de Olisipo, porque, relembre-se que o teatro do século I foi parcialmente demolido e nos finais do século IV ou inícios do V, tal como terá sucedido também com as termas dos Cássios – desconhecendo-se até hoje qualquer referência ou vestígio atribuível a um eventual anfiteatro que uma cidade, com esta importância, deverá ter possuído –, ainda se aproveitava a pedra das ruínas para a construção de pequenas habitações, algumas delas parcialmente edificadas nas estruturas subsistentes (Diogo e Trindade 1999, 87). Refira-se, por outro lado, apesar das múltiplas contrariedades e inseguranças então vividas, não terá existido uma ruptura completa da actividade produtiva, quer na cidade, quer no seu ager. Até porque, conforme têm vindo a revelar os achados arqueológicos, a produção de ânforas olisiponenses não cessou com a desagregação da pars
36 Aqui aportados importa referir que, nos agri, são frequentes as conciliações entre monumentos pagãos e a simbologia cristã, acrescendo-lhes muitas vezes atributos cristãos, por conseguinte, refira-se, a mero título exemplificativo, que, tal como se observa noutros locais, se guardam no Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas vários monumentos “cristianizados”que foram recolhidos no ager olisiponense (Fontes 1960, 11). 37 Dentre os vários exemplos que poderíamos citar a este propósito, lembramos Virgílio, a quem o próprio Santo Agostinho, séculos depois, chamou o nosso poeta, porque este, de certo modo, antecipara na sua obra os princípios cristãos, não só na inconstância de Eneias que ansiava, a todo o custo, o céu, mas também, numa écloga onde «utilizaba un lenguage mesiánico, inspirado nos modos de Israel, para vaticinar el advenimiento de una edad de oro; una nueva época que llegaría al mundo de la mano de un recién nacido “que tendría la vida de los dioses”. Hoy sabemos que la composición estaba dedicada al hijo recién nacido de Polión, un alto funcionario imperial a quien Virgílio queria homenajear» (Vidal Guzmán 2007, 126).
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Occidentalis do Império, porquanto restos e naufrágios de navios desta época revelam que as suas cargas – ao contrário do que sucedera em épocas anteriores – eram diversas, e provavelmente carregadas em diferentes portos, factos, por si só, reveladores da diminuição da produção, mas não da extinção das rotas comerciais, apesar de não se saber se mantiveram ou não os antigos circuitos de distribuição (Fabião 1996, 333-334). Neste contexto, recorde-se, como oportunamente lembrou Blázquez (1993, 106), que por «el Estrecho de Bonifacio o por el sur de Cerdeña pasaban las naves hispanas que llevaban a Roma los minerales, el garum, el vino tarraconense y el aceite hispano, y las que volvían a Hispania con cargas de retorno, como sarcófagos, por lo que las relaciones entre Hispania y Cerdeña debían ser intensas. Esta ruta está confirmada por los hallazgos submarinos». E, na verdade, em plena tardo-antiguidade, Olisipo era uma cidade produtora e exportadora, ainda que a níveis muitíssimo inferiores aos de outrora, pelo que sequentemente conservava alguma influência administrativa, e, a crer-se nesta hipótese, poder-se-á, talvez, encontrar aqui uma justificação para que esta cidade integrasse, juntamente com Ebora e Ossonoba, as mais antigas dioceses do território hoje português (Mantas 1990ª, 173)38. Nesta medida, e apesar da naturalidade então observada ao nível dos contextos mais diversos do quotidiano e suas manifestações artísticas, a cidade foi um pólo fundamental para a instalação da autoridade eclesiástica, assim como foi um privilegiado centro difusor e ordenador do próprio modelo cristão, fenómeno que se acentuou depois da Fé de Cristo se ter tornado a religião oficial do Império.
7. Entre o fim e o recomeço Entretanto, entre o final do século IV e os meados do seguinte, o complexo industrial do Millenium bcp – assim como as outras unidades de preparados piscícolas – deixou de laborar, tendo ficado ao abandono. Ainda em época não determinada, o tanque n.º 15 foi reutilizado para uma inumação tardo-romana (Bugalhão 2001, 48 e 161), facto que, aliás não é inédito, porquanto 38 Depois do bispo Potâmio, que governou a ecclesia de Olisipo ainda em tempos pagãos, o 2.º bispo conhecido, data já dos finais do século VI, chamava-se Paulo e participou em 589 no 3.º concílio de Toledo. Três epitáfios, de Alenquer, em 532, de Cheleiros, em 537, e de Chelas, em 571, mostram que no século VI o Cristianismo se tinha generalizado no território olisiponense (Alarcão 1994, 63).
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este tipo de fenómeno se observou noutros pontos da cidade, designadamente na área intra-muros, tendo-se detectado em entulhos, nas escavações do Palácio Penafiel, parte de uma tampa de sepultura, igualmente tardia, com um ramo de oliveira ladeado por duas pombas afrontadas inscritas e um pequeno fragmento de mosaico com parte de uma legenda, [REQ]VEV[VIT], que supomos ter pertencido a um sepulcro cristão com cronologia – atribuída através de do estabelecimento de paralelo com exemplar análogo de Frende – circunscrita ao século V (Caetano 2006, 27). Estes achados, ainda que dispersos, não clarificando as profundas alterações operadas no espaço urbano de Felicitas Iulia Olisipo, cujo modelo clássico sucumbiu aos males do tempo o que, de certo modo, nos indicia que o ópido se tornou, como consequência da sua própria retracção39, num espaço rústicizado. E, aqui aportados, mencionese que uma colecção de lucernas de fabrico grosseiro proveniente do teatro, estudada por Dias Diogo e Eurico de Sepúlveda (2000, 155), sugere não só uma relação com escombros subsequentes ao abandono do teatro, mas atribui-lhe um significado mais amplo fazendo-o depender directamente do aproveitamento das ruínas do teatro por uma ocupação paleocristã, cujo aro cronológico alcança os finais do século VI. Cada vez mais encerrada no seu próprio espaço e temerosa dos acontecimentos que desde 407 abalaram violentamente a sua estrutura secular, a produção e – sobretudo – a exportação dos produtos transformados foi decaindo, conduzindo ao completo e definitivo abandono de muitas uillae e de unidades industriais, transformando Felicitas, cidade outrora próspera e afamada pelos seus produtos, num recanto praticamente isolado à beira do fim do mundo. Segundo Ward-Perkins, «a força militar do exército do Ocidente entrou em certo declínio. Na minha opinião, o caos da primeira década do século V teria causado uma queda súbita e dramática dos proventos dos impostos imperiais e assim nos gastos e capacidade militares. Alguns dos territórios perdidos foram temporariamente recuperados na segunda década do século» (2006, 64). Na Hispânia para além das investidas dos povos germânicos – designadamente dos Suevos que, a partir de 429, avassalavam a Galécia, a Lusitânia e a Bética (Rémondon 1984, 134) – e para além das suas ques39 Fenómeno igualmente observado em algumas uillae olisiponenses, designadamente, em Santo André de Almoçageme, Sintra, e na Quinta da Bolacha, Amadora (cfr. Encarnação 2003, 107-116), onde, em espaços edificados, entretanto abandonados, se descobriram enterramentos infantis, sepultados em telhas.
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tiúnculas também religiosas entre arianos e cristãos (descritas, aliás, na Crónica de Idácio, Bispo da Galécia, coevo dos acontecimentos), contribuíram igualmente para esse fim: a guerra civil – com Máximo a entronizar-se, na Península, como Imperador do Império do Ocidente, enquanto noutros territórios se iam repetindo as usurpações do poder (Ward-Perkins 2006, 65) –; o surgimento da peste, em 442; e a agitação social com o fenómeno dos Bagaudas que também esteve presente na Hispania, designadamente, nos anos de 435, 436 e 449 (Lot, 1985, 253). Idácio (308.ª olimpíada) referiu ainda que, em 454, os godos esmagaram os Bagaudas da Tarraconense. Consequentemente, neste quadro de caos e violência que sintetizámos e, sobretudo, após os exércitos romanos terem sido batidos, em 439, pelos Suevos, os quais, após a conquista de Emerita Augusta, passaram a dominar a Lusitania e a Baetica. Em 469, «Lisboa é ocupada pelos Suevos porque (da cidade) fez entrega Lusídio, um dos seus cidadãos que era seu governador. Conhecida esta novidade, os Godos, que, (neste comenos) tinham chegado (aos arrabaldes de Lisboa), invadem (a região) e fazem pilhagens entre os Suevos, do mesmo modo que entre os Romanos que estavam sob o domínio suévico nas regiões da Lusitânia» (Idácio, 312.ª olimpíada). De facto, do texto do clérigo flaviense sobressai a dificuldade em penetrar as muralhas olisiponenses, porquanto foi apenas com a cumplicidade do seu praeses que se tomou aquele bastião, depreendendo-se, ainda, que os visigodos ocuparam e saquearam o ager.Todavia, a imagem apocalíptica – e não nos podemos esquecer de que ao longo da sua crónica o bispo, provavelmente numa perspectiva escatológica do fim dos tempos, foi intercalando uma série de singulares fenómenos celestes então observados – será exagerada, porquanto, logo que regressou a acalmia dos tempos, grande parte da estrutura económica, social, política e cultural do Império reemergiu, ainda que envergando um outro prospecto (Ward-Perkins 2006, 91), pois «continuavam abertos os caminhos do Mediterrâneo» (Maciel 1996, 61), como o comprovará o envio pelos Suevos, de Lusidius como embaixador, à corte do Imperador do Oriente Anthemius. O rápido desmantelamento do poder de Roma, face ao cenário que temos vindo a evidenciar, permitiu aos Visigodos, durante o reinado de Vália, estabelecer uma aliança com o general romano Constâncio, e, depois de acantonarem os Suevos no noroeste peninsular, não mais abandonassem a Hispânia, ainda que a sua chegada em hordas maciças tenha ocorrido apenas entre 453 e 466. E se, num primeiro momento, a autoridade foi partilhada, pelo menos na
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capital da Lusitânia, entre Visigodos e Hispano-Romanos (Martin 1999, 32), na verdade, em 585, os Visigodos dominavam toda a Península e Roma perdeu, definitivamente, todo este vasto e rico território. Contudo, «a absorção de suevos e visigodos pelos hispano-romanos só se consumará progressivamente após a conversão do sucessor de Leovigildo, o rei visigótico Recáredo, que abandona o arianismo, após o solene concílio de Toledo de 589» (Coelho 1994, 78). Desde os fins do século VI e começos do seguinte assistiu-se a um novo período de prosperidade, quer ao nível da produtividade do ager, quer da própria cidade de Olisipo que, libertando-se do seu casco urbano, reencontrou antigas rotas comerciais com o Oriente, de onde retornavam igualmente novos modelos que, miscigenando-se com os antigos valores romanos e indígenas, manifestaram-se também, de algum modo, na arte paleocristã. Deste período pensa-se que em Santos-o-Velho terá existido uma igreja dedicada aos mártires lisbonenses (Alarcão 1994, 63) e, provavelmente no lugar onde se implantara a basílica romana, ter-se-á erigido uma outra igreja que se tornou na mesquita-aljama e, depois de 1147, terá cedido lugar à Sé Catedral: «Os espaços sagrados mudam de sinal mas perduram» (Coelho 1994, 75). Todavia, têm-se trazido à colacção outras teses, designadamente a que defende «o facto, também presumível, de o espaço onde séculos mais tarde se implantou a Catedral românica não ser o centro da cidade pós-romana, uma vez que existem indícios de a primitiva basílica paleocristã ter sido instalada num outro ponto da malha urbana, designadamente na Igreja de Santa Cruz do Castelo e não no sítio da Sé» (Fernandes 2002, 60 e n. 11). Incrustada na parede norte da Sé permaneceu, longos séculos, um fragmento de um friso com baixo-relevo, uma Placa do Paraíso, datável do século VI ou VII e ostentando três arcos em ferradura envoltos numa cercadura vegetalista e no vão central representam-se duas aves afrontadas, enquanto que nos laterais quadrúpedes tirados de perfil, encontrando-se em deles muito desgastado, de nítida influência bizantina; do mesmo local provém um ábaco com decoração vegetalista e idêntica datação40. Das manifestações artísticas tardias desta cidade, destacam-se, ainda, parte de um friso de pilastra finamente lavrado com motivos geométricos e florais (Coelho 1994, 75-77), cuja cronologia tradicional lhe atribui um fabrico de contexto visigótico (Rua dos Bacalhoeiros) e com proveniência do antigo convento de 40 Mais recentemente, estas cronologias têm sido revistas e vários autores, inclusive, consideram-mas obras moçarábicas do século X (Fernandes 2002, 67-68).
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São Félix (Chelas) e, igualmente amaciada pela influência bizantina, um fragmento de pilastra, ostentando nos quatro lados a repetição da ornamentação: grifos envoltos em círculos formados por festões e folhagem; dali provém também um silhar com leões esculpidos em baixo-relevo, apontando-se para estas duas distintas peças uma cronologia circunscrita aos séculos V a VII (Hauschild 1986, 167 e 169)41. Este período de florescimento foi abruptamente cerceado com a invasão islâmica, e a cidade tombou em 714. Durante este período de ocupação, a Olisipo romana e paleocristã transmudou-se na Aluxbona moura: «Lisboa está a ocidente de Beja. É uma cidade antiga edificada à beira-mar cujas vagas se vêm quebrar contra as suas muralhas. O seu antigo nome é Cudia. As muralhas são admiráveis e de boa construção. A porta ocidental, a maior da cidade, é encimada por arcos sobrepostos que assentam em colunas de mármore, por sua vez apoiadas em envasamentos de mármore. Lisboa possui uma outra porta que se abre a Ocidente: chamam-lhe Porta de Alfofa. Domina um vasto plaino atravessado por duas ribeiras que vão lançar-se no mar. Ao Sul encontra-se outra porta, a Porta do Mar, na qual penetram as ondas na maré-cheia, e vêm, numa altura de três braças, bater contra a muralha contígua. A Leste, uma porta, dita Porta de Alfama, que fica próxima da fonte termal situada junto ao mar. São termas abobadadas nas quais brota água quente e água fria e que a maré-cheia cobre. Finalmente, uma porta a leste, a Porta do Cemitério. A cidade de Lisboa é, por sua própria natureza, bela…» (Almunime Alhimiari, in Coelho 1989, I, 59-60). Cultos e tolerantes com as gentes tardo-romanas, os islâmicos permitiram-lhes conservar a sua fé em troca de determinado pecúlio – com templos moçárabes atestados em Milides (a antiga Cella de Colares) e, no topos serrano sobre o Cabo da Roca, a ermida de São Saturnino – e, apesar das investidas normandas dos séculos IX e X (cfr., v.g., Coelho 1989) e das convulsões dos reinos islamitas na Península Ibérica, ora entre si, ora empur-
41 Ou, no contexto que também evidenciamos na nota supra, uma datação igualmente moçarábica. Paulo Almeida Fernandes afirma no aludido estudo que considera também que foi na Península Ibérica «que a arte paleocristã mais se prolongou no tempo, através das comunidades hispano-romanas – maioritárias perante a elite dirigente visigótica» e adiante refere que «esta influência paleocristã é também importante não apenas de um ponto de vista estilístico. Ela ajuda a compreender as múltiplas vias de criação iconográfica do grupo moçárabe de Lisboa» (2002, 81). Aqui aportados, e perante uma aparente contradição quer cronológica, quer estilística ou autoral, acreditamos vivamente na necessidade de se proceder a uma revisão mais aprofundada destas novas cronologias apontadas.
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rados pela reconquista asturiana, mantiveram o brilho que o correr dos tempos lhes fora ditando: É um cavalo negro que pertence à família dos garanhões Aluají e Lahíque. A noite serve-lhe de veste e a aurora pôs malhas brancas nos seus cascos. (Ibne Asside, in Coelho 1989, I, 256) Por isso, quando os cruzados – vindos do norte feudal – amararam defronte das muralhas, em 1147, espantaram-se porque se viram perante «o mais opulento centro comercial de toda a África e duma grande parte da Europa (…). Os seus terrenos, bem como os campos adjacentes, podem comparar-se aos melhores, e a nenhum são inferiores, pela abundância do solo fértil, quer se atenda à produtividade das árvores, quer à das vinhas. É abundante de todas as mercadorias, ou sejam de elevado preço ou de uso corrente; tem ouro e prata. Não faltam ferreiros. Prospera ali a oliveira. Nada há nela inculto ou estéril; antes os seus campos são bons para toda a cultura. Não fabricam o sal: escavam-no. É de tal modo abundante de figos, que nós a custo pudemos consumir uma parte deles. Até nas praças vicejam os pastos. É notável por muitos géneros de caça: não tem lebres, mas tem aves de várias espécies» (pseudo-Osberno, in Oliveira 1936, 59).
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Palavras-chave: Monumentalidade; Urbanismo; Antiguidade; Fontes; Paisagem Key words: Monumentality; Urbanism; Antiquity; Sources; Landscape
RESUMO
ABSTRACT The Roman foundation was a preview of the actual urban contour of Évora, even if the old traceable remains are reduced to few but significant examples, as is the Temple, parts of the Wall system, the Roman house of the 1st. Century and the Baths, in addition to a number of sculptural works recently recovered. Still, the main legacy is aesthetical and can be seen in the street outline and in the dynamics of urban expansion, which came to define the peculiar shape of the historical outcome of the city’s development, notably reflected in the way that the 17th. Century wall reproduced the circular design of the first known fortification. Thus, the monumental legacy of Roman Évora, being a valuable testimony of the past, is also a sign of memory, as what concerns the fundamental first creative motion which defined an enduring physical intervention in the surrounding space.
A fundação romana determinou o perfil urbano de Évora, ainda que, do conjunto de vestígios antigos assinaláveis, os mesmos se reportem a exemplos dispersos pelo núcleo urbano, destacando-se o Templo, os restos do sistema de muralhas, uma domus do séc. I e as Termas, além de algumas peças escultóricas recolhidas recentemente. No entanto, a principal herança antiga é de carácter estético e visual, subsistindo na própria configuração das ruas, bem como na distribuição de zonas e linhas dinâmicas de expansão, que vieram particularizar o aspecto físico do crescimento histórico da cidade, reflectindo-se, até, no modo como as muralhas do séc. XVII, prolongaram e reproduziram o desenho circundante da primeira fortificação conhecida de Évora. É neste sentido que os vestígios monumentais, testemunho do passado, se tornam igualmente sinal de memória, quanto a um gesto criativo inicial que moldou a intervenção no espaço.
ÉVORA ROMANA: O legado edificado e a memória antiga Manuel F.S. Patrocínio*
Ainda que em contraste com o modo como determinadas estruturas não conseguiram conservar a sua integridade, os vestígios romanos são, para já, abundantes na circunscrição territorial que, na Antiguidade, teve o seu centro no lugar onde cresceu Évora. Ebora Liberalitas Iulia, tal como a vizinha Pax Iulia (Beja), em cujo conuentus estava, de resto, integrada, ou a não muito distante Olisipo Felicitas Iulia (Lisboa), foi capital de uma das regiões administrativas da Lusitânia, que, então, tomavam o nome de ciuitas, desde logo assegurando assim a sua distinção particular. Enquanto algumas urbes possuíam estatuto de coloniae, como Pax Iulia, por ser a sede de conuentus, a outras reservava-se a qualidade de municipia: caso de Olisipo, que estava no conuentus escalabitano, e, também, de Ebora, ou, ainda, Ossonoba. Ebora, como Olisipo, conservaria na toponímia o eventual testemunho das suas origens pré-romanas; para Ebora, tal persistência interpretou-se como vestígio de primeira fundação celticizante, ao passo que Olisipo (bem como Ossonoba) parecem antes perpetuar a evocação da presença oriental. Por outro lado, assegurou-se, com os epítetos de Liberalitas e, sobretudo, como Ebora Iulia, a própria recordação das campanhas de Júlio César, tal como teria sido a homenagem consagrada em tempo de Augusto1. Na Antiguidade romana, a cidade correspondia a uma importante realidade social e cultural, reflectindo também, na proporcional medida em que era importante a sua implementação física, valores enraizados no âmbito consolidado do Classicismo. O nome, aqui referindo-se obviamente à homenagem * Professor Auxiliar, Departamento de História e Centro de História da Arte e Investigação Artística, Universidade de Évora, Portugal. mfsp@uevora.pt 1 Cf. Alarcão 1986, 78-79; Maciel 1995, 79-80. A respeito das antigas cidades da Lusitânia romana, cf. ainda outras descrições sucintas in: Alarcão 1988, 143-144 (para Ebora) e pps. 188-189 (para Ossonoba). Cf. igualmente, Alarcão 2005, 7-9; e Lopes 2005, 11-19. Ver também, quanto à resenha da descrição em fontes clássicas: Patrocínio 2006a, 6-ss.
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prestada a Júlio César, evocava um recente momento de conquista que era, afinal, a entrada do sul no mundo romano. A própria cidade adquiria estatuto de monumentum: manifestação de importante gesto, que se testemunharia igualmente nas formas de edificação. Aproximamo-nos, portanto, do conceito de cidade enquanto espaço universal de memórias e de que a architectura fornece expressividade2. Em finais do séc. XVIII, vem a Évora o eclesiástico espanhol D. Francisco Pérez Bayer y Bénicassim (1711-1794), interessado pelos temas do Classicismo e Orientalismo, além de ter sido Bibliotecário real e Perceptor dos Infantes de Espanha. A sua viagem decorre em Novembro de 1782, e, recém-saído de Beja onde encontrou o seu amigo, então ainda Bispo, D. Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), dedica-se, em Évora, a olhar e a registar as «antiguidades»: epígrafes latinas, o templo ainda imerso na torre gótica do Açougue, mas apontando haver à vista «algunas colunas com sus capiteles corintios mui suntuosas», e o célebre friso de bucrânios, actualmente no Museu de Évora3. Crê-se ter sido este friso parte de uma edificação original, que, em ciclo talvez dórico, precedeu a estrutura de templo que ainda subsiste no presente; correspondeu o friso a uma das primeiras descobertas arqueológicas monumentais que, durante o Renascimento, e por via do célebre protagonismo no resgate de antiguidades que coube a André de Resende, vieram a assinalar a recuperação da memória romana eborense. Em finais de Setecentos, o friso ainda se poderia contemplar na fonte da Praça do Giraldo4. D. Pérez Bayer, embora mais interessado na epígrafe que encimava a fonte, descreve a obra, porém, no seu diário. Dizia que era, então, um «friso antiguo en que hai bucranios y platos de relieve en la forma que solia usarse en la arquitectura de los Romanos»; acrescenta, «no seria fuera de razón pensar que hubiese este friso sido del antiguo Templo»5. 2 Para o conceito clássico de monumentum e suas sequências, ver: Choay 1999, 14-15. O sentido de monumentalidade da cidade está, de resto, implícito nos propósitos que Vitrúvio apresenta, quando, no seu tratado De architectura, trata da necessidade de fundação e embelezamento construtivo das urbes (Livro I, cap. IV-ss), dos seus templos (Livros III-IV) ou restantes estruturas públicas (Livro V). 3 Vasconcelos 1920, 119-127 e 130-133. O diário de Pérez Bayer, transcrito e editado por José Leite de Vasconcelos, constituiu um dos primeiros registos modernos, na senda que levou depois, no séc. XIX, determinados estudiosos a encetar o estudo do património antigo de Évora. Cf. também: Patrocínio 2000, 265-ss. 4 Vasconcelos 1920, 133. Cf. igualmente, para o friso: Alarcão 1986, 90; Nogales Basarrate e Gonçalves 2005, 34-35; ou a notícia de catálogo, in Aavv 2005, 60-61. 5 Vasconcelos 1920, 139.
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Tem sido trabalhoso, desde então, o resgate como a interpretação de vestígios propriamente datáveis de época imperial no perímetro do designado centro histórico eborense. O templo, associado à imagética local, foi resgatado e recuperado, em finais do séc. XIX, à sua condição de ruína parcialmente oculta sob edificação gótica. Sinal, enfim, das transformações que contribuíram para uma contínua modificação nas edificações do centro histórico, em forte ímpeto e dinâmicas de ocupação. Por recentes campanhas, no entanto, perspectivou-se o delineamento da própria matriz de ocupação antiga. Desde logo, perspectivam-se as origens pré-romanas. Para Ebora Liberalitas, ainda que os níveis de ocupação pré-romana se mantenham ignorados, pela extrapolação de conclusões aferíveis do que se sabe de outros lugares, é de presumível a sua evidência. Caso de Pax Iulia, que, por muito tempo, se julgou ter sido uma criação nova romana, mas onde se identificaram recentemente materiais de fase anterior. Com efeito, o ponto alto de Évora é um cume de monte, talvez originalmente um esporão natural no lado virado a nascente, dotado das potencialidades que caracterizavam os antigos modos de ocupação castreja. Situa-se aí o castelejo, ou o Castelo Velho, depois ocupado pelo velho Convento de S. João Evangelista (actual Pousada dos Lóios e ainda descrito por D. Pérez Bayer), e pelos palácios tardo-góticos dos Duques de Cadaval e Paço de S. Miguel, de cujas galerias se observa uma panorâmica imponente sobre o horizonte6. Vitrúvio, no seu tratado De architectura, o qual, de resto, serve como documento referencial para as grandes realizações que, no período de Augusto, se transformam no próprio decoro do Império num código visual e monumental comum, não deixava de indicar, quanto à topografia, que as próprias cidades romanas deveriam continuar a ocupar lugares «altos», e, além do mais, livres da incidência de geada ou neblinas. Quanto à fundação das fortificações, elemento necessário, para defesa como para a imponência da urbe, uma vez encontrado o «chão firme», deveria definir-se o seu alinhamento por uma adequação ao declive proporcionado pelas escarpas (VITRÚVIO, I,V). Enquanto manifestação da necessária sensibilidade perante o espaço, é fundamental este aspecto de uma cidade que se equilibra em relação ao mundo físico que a rodeia, em que há a atender aos princípios da natureza, e 6 Para a recapitulação das origens pré-romanas de Ebora, ver Alarcão 1986, 76. Para a área do Castelo Velho, sendo que a mesma área terá sido derrubada em finais do séc. XIV para a edificação dos citados palácios, cf. Balesteros e Mira 1994, 10, 16-17.
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em que a sua respectiva implantação, quase centrífuga, faz com que um oppidum que se protege atrás de uma linha de muralhas não seja necessariamente um lugar que se oculte ou isole contra a sua respectiva envolvência. É na perspectiva de equilíbrio com a paisagem e na interligação com o território, que melhor se percebe a implementação da cidade romana de Ebora Liberalitas7. Recapitulando-se os preceitos vitruvianos para a fundação das urbes, dividem-se, para já, as cidades estabelecidas junto ao mar das que se estabeleceriam em regiões interiores; caso de Ebora. Comum, era a necessidade de escolher um lugar que fosse salubre, distante de sapais e pântanos, resguardado dos piores ventos, e onde se evitasse o efeito de demasiado calor, nefasto aos organismos; porém que fosse sempre um sítio próximo a rios e fontes de abastecimento de boas águas. Depois, haveria a fincar os alicerces das edificações em «chão firme» para a respectiva solidez das fortificações (cf.VITRÚVIO, I, IV). Desde logo, está no ponto geográfico de confluência das três principais áreas hidrográficas do sul: Tejo, Sado e o Guadiana. Do que se restituiu igualmente das antigas e secularmente duradouras estradas romanas, é, não menos, ponto de cruzamento entre vias que atravessavam a província, e tornando comunicantes entre si as várias capitais de ciuitates, assinalando-se, por vezes em notável sobreposição com lugares com vestígios materiais pré-históricos, a presença, junto às mesmas estradas, de uillae. As áreas envolventes, o ager, de vocação agrária, ou, então, dedicadas à extracção de matérias-primas (como em pedreiras antigas), e, não menos importante, onde se realiza a gestão dos recursos de água, são caracterizadas pela ocupação em uillae. Regista-se o particular relevo da uilla de Nª. Sra. da Tourega, a dez quilómetros para oeste, junto à antiga via que seguia para Salácia (Alcácer-do-Sal), dotada, precisamente, de um complexo termal. Através de vestígios epigráficos resgatados, sabe-se que alguns elementos da família proprietária desta uilla detiveram, a dada altura, cargos governativos na própria cidade8. No centro histórico de Évora, também reconstituídos seja pela orientação que ainda mantém o actual traçado de ruas, seja por testemunho arqueológico, e correspondendo às vias estruturantes de cardo e de decumanus, os eixos são igualmente vias de saída, tanto uma entrada para a
7 Cf. Kwinter 2001. 8 Esta epigrafia foi mais recentemente estudada por José Carlos Caetano (1957-2006), in Caetano 2005, 41-ss.
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Templo romano Face poente. Perspectiva do pódio, estilóbata e alinhamento da colunata no ângulo nordeste. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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urbe, como modos de comunicação entre o oppidum e o seu ager. Envolve a urbe uma fortificação. Quanto a esta, no que respeitava às torres, seria de preceito que teriam de ser «salientes para o lado exterior» e deviam estar separadas pela distância nunca maior que a do alcance de um dardo; a segurança da sua implantação resultaria tanto mais eficaz quanto as estruturas se viessem a levantar com o apoio em terraplenos (VITRÚVIO, I,V, 2-5). Apesar de tais indicações vitruvianas se aplicarem ao que se pode descrever das muralhas romanas de Ebora Liberalitas, ou Cerca Velha, encostadas ao que é o final de declive que vem do Paço de S. Miguel e da zona de plataforma onde estão tanto o templo romano como a Sé gótica, e, ainda, em certos pontos de facto sendo visíveis pontos de terrapleno, sabe-se que as mesmas não pertencem decididamente ao tempo de Augusto, enquadrandose, obviamente, no conjunto de realizações do género que caracterizaram a passagem para a Antiguidade Tardia. Os paralelismos cronológicos aferíveis para a comparação entre fases de intervenção edificatória romana em várias urbes, estão, pois, nas cercas amuralhadas que, nos sécs. III-IV, ocasião de considerável agitação social e de conflituosidade que adveio das invasões por parte de povos estrangeiros ao Império, se vieram a edificar em torno às urbes. Mais uma vez, a situação é a mesma para outras cidades, da Lusitânia, como em todo o Ocidente9. Ainda que a designada Cerca Velha subsista em vigorosos troços e demarcação de ruas, mais uma vez o conhecimento do que poderá ter sido a realidade monumental também se perspectiva essencialmente por extrapolação e confronto, sendo que é sabido o modo como, noutros lugares, a implantação de tais amuralhamentos cortou uma certa margem da ocupação urbana anterior, e obrigando, em momentos subsequentes, a uma maior densidade e compactação habitacional nas partes intra-muros. Mas a questão coloca-se no sentido de se saber até onde se estenderia, então, a cidade romana em períodos prévios ao séc. III, sendo que o traçado ainda presente da chamada Cerca Velha não deixa de assinalar, na verdade, o início das cotas de elevação que conduzem ao cume eborense. Emblemático, é o trecho de muralha, virado a norte, que suporta a plataforma, supostamente artificial, mas onde não se efectuaram ainda pros9 Ver, para a descrição do traçado da Cerca Velha, seus aspectos particulares e presumível cronologia: Alarcão 1988, 159-160; Balesteros e Mira 1994, 6-16.
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Templo romano Face poente. Detalhe da organização edificada do pódio, nos níveis de embasamento com rebordo avançado; aparelho de preenchimento central e estilóbata, com assento de bases. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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pecções, onde assenta o templo romano. Trata-se de um lanço contínuo com cerca de três metros e meio de altura e quinze de comprimento, de notável aparelho em opus quadratum. A sua articulação fazia-se com a próxima Torre das Cinco Quinas, parte do actual Palácio Cadaval, a nascente, e, na direcção poente, prolongar-se-ia até ao Arco de Dona Isabel, também identificado como trabalho da concepção romana, sendo de amplitude circular, composta de blocos e aduelas, no intradorso do referido arco, que asseguram um largo acesso na via de cardo maximus; daí prosseguiria a muralha, para ocidente, ligando-se à Torre conhecida como do Salvador, tendo aí estado o Convento com o mesmo nome. Toda esta parte foi, no entanto, derrubada e reocupada com outros edifícios, tendo-se rasgado igualmente ruas, mantendo-se, todavia, o contorno exterior no desenho de actuais vias de circulação10. Inflectindo depois para sul, a Cerca Velha carece de vestígio exacto ao longo da Praça do Sertório, ressurgindo de novo à designada Torre de Sisebuto, baptizada com o nome de um soberano visigótico, e prossegue pela Rua da Alcárcova de Cima, a meio da qual se situam as traseiras da Casa de Burgos, outro palácio de fundação medieval, que integrou assim alguma extensão de muralha. É nesse ponto que, não apenas, vemos a reutilização de materiais, caso de fustes marmóreos de colunas antigas em firme contraste com o opus quadratum, como, também, encontramos os restos de casas urbanas romanas a servirem de alicerce à muralha, com pinturas murais decorativas. O espaço de recesso entre torres e torreões foi também ocupado por prédios recentes11. Se bem que, em determinados pontos da muralha, se reconheça claramente a engenharia romana, do afeiçoamento dos blocos às marcas de gancho e ao ritmo regular com que, ao longo da disposição dos paramentos, se vieram a erguer as torres de vigia em pontuais avanços pronunciados sobre o alinhamento da fortificação, o certo é que, tal como sucedeu com quarteirões e casas do centro histórico de Évora no interior da Cerca Velha, também aqui houve claras intervenções posteriores, de fases visigóticas e islamo-árabes a tempos já medievais, em que, de resto, se fundaria também, no séc. XIV, a chamada Cerca Nova, que ampliou consideravelmente o espaço urbano, sendo a reconstrução portanto deveras recorrente. 10 Ver, para a consideração da parte de muralha, contígua à actual Rua do Menino Jesus, entre a plataforma adjacente à base do Templo e a Torre de Salvador: Alarcão 1988, 159; Balesteros e Mira 1994, 8-9. 11 Cf. Balesteros e Mira 1994, 12.
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Torre «das Cinco Quinas» (Cruzamento da Rua Augusto Filipe Simões com a Rua do Menino Jesus). Aspecto do perfil esquinado, de traço poligonal. Atrás, está o Paço dos Duques de Cadaval e a zona do chamado «Castelo Velho». © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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Pano da antiga muralha (Rua do Menino Jesus). Aspecto do aparelho regular (opus quadratum), em alinhamento com a «Torre das Cinco Quinas», estruturante da plataforma de alicerce do Templo romano eborense e sobre o possível limite do forum. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
Porta romana, de duplo arco (Rua de D. Isabel, outrora Largo). Perspectiva desde o lado anterior, com vestígios construtivos diversos mas mantendo o possível desenho de origem, e indicando a via de cardo na direcção norte. Contíguo ao antigo Convento do Salvador. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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Torre de Sisebuto (Rua Nova, esquina com a Rua da Alcárcova de Cima) Outra das emblemáticas torres ligadas à cintura da Cerca Velha eborense, diante da Caixa de Água do séc. XVI. Tratar-se-á a Torre, no entanto, de uma reconstrução já posterior, dado o tipo de aparelho de pedra identificável no seu sentido superior. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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Embasamento da Torre de Sisebuto (Rua Nova, esquina com a Rua da Alcárcova de Cima). Surge aqui um tipo de emparelhamento de fase antiga, porém diferenciando-se do modelo de blocos do tradicional opus quadratum romano, que se tem interpretado no sentido de aproximação a técnicas helenísticas e bizantinas. Adiante, na mesma rua, mantém-se o vestígio visível de um torreão, a delimitar a parede do actual Palácio de Burgos, onde se resgatou igualmente o espaço de domus. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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A par, assim, de alguns panos de amuralhamento, várias dessas torres continuam de pé, embora integradas em edificações posteriores. Reconhece-se o trabalho romano, da base até a meia-altura, nas partes em que são bem visíveis os sinais do tipo de aparelho de pedra aplicado, aqui o granítico (em saxum quadratum, o mesmo que opus quadratum), sendo que era o evidente recurso material mais abundante no território eborense, como pelo Alentejo, também usado nos fustes das colunas do templo. De igual forma, os embasamentos, dos pontos onde a Cerca Velha ainda se pode observar em modos de arranque, caracterizam-se pelo avanço em relação à linha do pano de muralha que aí se apoia; e quanto aos «fundamentos», indicava Vitrúvio, «com uma espessura mais larga do que a das paredes que ficarão acima da terra», devia-se enchê-los de concreto, para uma boa consistência (VITRÚVIO, I,V, 1). Assinala-se uma diferença. Nos inícios do Império, e conforme o afirma explicitamente o tratado vitruviano, as torres deveriam ser redondas ou poligonais. Em Évora, a Cerca Velha exibe, ao invés, sucessivamente, torres de base quadrada, o que, no entanto, não deixa de ser um aspecto da arte das fortificações da Antiguidade Tardia – e, em sequência, da arte das fortificações medievais –, muito embora haja duas torres, a já citada Torre das Cinco Quinas e a Torre sul da Rua Cinco de Outubro, que conservam perfil esquinado. Em termos gerais, sendo pela adequação aos relevos, seja pela própria veneração quanto aos elementos, a arte e a técnica dos Romanos prestavam-se ao culto da Natureza, bem como tomavam como norma o que vinha do conhecimento do universo. Daí, para já, a adequação das ruas e das construções à incidência da luz natural e da distribuição dos ventos. A natureza também irrompia noutros vestígios. O templo eborense estava, precisamente, rodeado por um tanque de água, identificado já no séc. XIX, mas melhor conhecido somente em recentes campanhas arqueológicas, dirigidas por Theodor Hauschild; o tanque envolvia três lados do pódio, com uma largura de cinco metros, ficando somente livre a sul a zona de acesso, por escadaria, à plataforma do temenos12. A fundação do fórum eborense terá decorrido na época de Augusto, à semelhança, de resto, do que se conhece para restantes ciuitates do território
12 Além de diversos trabalhos de Theodor Hauschild, que apresentaram dados do estudo e intervenção no Templo desde a década de 1980, destaque-se, como recapitulação mais recente: Hauschild 2005, 21-22.
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lusitânico. O exemplo mais referente será o fórum de Conímbriga, para o qual se identificaram duas fases principais de edificação: a inicial em torno ao séc. I; a seguinte para o séc. II d.C., em que houve um rearranjo monumental.Também as cronologias apuradas para a intervenção no fórum de Pax Iulia (Beja) vêm coincidir nestas mesmas duas grandes fases, em torno ao séc. I e, a outra, em torno ao séc. II d.C., tendo o sítio do seu templo sido identificado por Abel Viana, em trabalhos da década de 1940, mas mais não restando senão o vestígio residual de uma plataforma13. No momento de fundação augústea de Conímbriga, o seu fórum comportava, em incontornável domínio do espaço, um templo, a norte, na orientação convencional, o qual, na sua reconstituição segundo Jorge de Alarcão e Robert Etienne, teria o, também convencional, esquema de peripteron, santuário urbano rodeado de colunata, sobre pódio; aqui era um edifício tetrástilo, com um total de vinte colunas que, embora também de classe coríntia, acabariam por ser em inferior número ao do templo de Ebora, este peripteron hexástilo, conservando catorze colunas in situ e vestígio de mais doze bases. O templo eborense constitui-se, na verdade, como ressalva no quadro de vestígios da edificação romana, sendo, não apenas localmente como por toda a antiga província, dos únicos casos em que foi possível encontrar um templo romano que se manteve ainda presente no seu respectivo sistema de apoio e lançamento14. Tradicionalmente descrito como dedicado a Diana, desde autores portugueses dos sécs. XVI-XVII, não se comprovaria porém tal consagração, antes reservando-se a interpretação como sendo a de um santuário para culto imperial, o que a presença do tanque corroborará, pelo seu simbolismo de omnipresença, tanto quanto evocava a disseminação de vários cultos aquáticos na Lusitânia. Nas duas fases do fórum de Conímbriga, não menos em diferença com o que se sugere para Ebora, o espaço de esplanada diante do templo estava ladeado das seguintes estruturas: basílica, na primeira fase; um duplo pórtico aberto, para o séc. II. É provável, no entanto, que no fórum eborense também estivessem edificações similares: diversos achados escultóricos do lugar, em
13 Cf. Lopes 2005, 12-13; e, também, Alarcão 1986, 80-81. 14 Alarcão 1986, 89-90; Hauschild 2005, 21-22; Maciel 1995, 82-83.
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estado, contudo, fragmentário, reflectem sentidos de decoração pública, tal como era usual colocar-se em zonas porticadas15. Num caso como outro, a transformação decorrente deste arranjo, coincidente com o período Flávio, indicou, conforme se fez já notar em estudos interpretativos, consagrou o fórum como um temenos urbano, ou seja, em substituição de anteriores funções civis, um santuário aberto em pleno fórum, na solenidade central que se exigia naquele austeramente majestoso lugar16. O tanque, resguardando um espelho de água, ofereceria ao divino a dádiva da homenagem ao belo da criação maravilhosa da natureza, que era perfeição e ordem, ou kosmos. Assim se tornava a água intrinsecamente parte da própria vida urbana, elemento que unia o humano ao natural e ao sagrado, da mesma forma que o Imperador estava entre o humano e o divino; a água simbolizaria essa relação suprema. O limite do fórum, diante do qual o templo se expunha em solenidade, vinha determinar o lançamento do cardo e do decumanus maximus. Ruas abaixo, a seguir à Sé, para sul, à Rua de S. Manços e próximo, na verdade, à saída para as Portas de Moura, onde está outra das torres da Cerca Velha, conservou-se um quarteirão de perímetro redondo, o qual se crê ser a linha do antigo teatro. A referida rua guardou o sentido redondo que é, na verdade, o de uma cavea, ou parede exterior, e o alinhamento deste presumível vestígio de antigo edifício, com sentido do limite oeste do fórum, parece enfim confirmar esta plausibilidade. O edifício, do mesmo modo, estaria também orientado com o cardo maximus, que, da saída das Portas de Moura, se prolongava na via para Pax Iulia17. Descendo o centro histórico para poente, e tentando-se aferir o sentido da distribuição de antigas ruas, encontrar-se-á, na Rua da Alcárcova de Cima, a domus do séc. I, que foi cortada pela extensão ainda intacta de amuralhamento, também já descrita, de períodos posteriores. Teria um átrio com peristilo, e 15 Á colecção reunida por D. Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, na sequência de explorações na diocese de Beja entre os anos de 1770-1780, e com que se fundou igualmente o Museu de Évora, adicionaram-se recentes achados, mostrados entretanto em Exposição própria, co-organizada com o Museu Nacional de Arte Romano de Mérida. Cf. Nogales Basarrate e Gonçalves 2005, 33-ss; Caetano, Joaquim Oliveira: Os Restos da Humanidade. Cenáculo e a arqueologia, in Aavv 2005, 4956; Patrocínio 2006b, 17-36. 16 Para uma síntese sobre esta segunda fase do forum de Conímbriga, ver: Alarcão 1986, 80-81 e 8486; Maciel 1995, 81. 17 Alarcão 1986, 95.
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Pano de muralha (Rua da Alcárcova de Cima, interior do Restaurante «O Grémio»). Exemplo de opus quadratum, com integração em construções posteriores, num troço da Cerca Velha que, apesar da reocupação, também conhece outros vestígios ao longo da Rua da Alcárcova de Cima e Rua de Burgos, paralelas, na subsistência de antiga via urbana. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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Torre sul, ou «Torre do Anjo» (Rua Cinco de Outubro, nas esquinas com a Rua da Alcárcova de Cima e Rua da Alcárcova de Baixo). De duas torres originais, restou apenas a torre sul, de que se observa o respectivo arranque, em mescla de técnicas de aparelho construtivo. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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Remate da Torre sul, ou «Torre do Anjo» (Rua Cinco de Outubro, na esquina com a Rua da Alcárcova de Baixo). De novo, a sugestiva forma poligonal a sobressair entre os prédios envolventes mas mostrando igualmente um tipo de aparelho de pedra que dificilmente se pode considerar ainda antigo. © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
recuperaram-se vestígios de decoração pictórica, em painéis de moldura regular quadrada sobre áreas de exedrae e de cubicula. A muralha assenta sobre as suas paredes derrubadas, tendo-se confirmado recentemente que a domus estava contígua a uma via de cardo, entretanto, debaixo do actual Palácio da Rua de Burgos. Perto, surgiram igualmente as termas da cidade, em prédio igualmente contíguo a outro troço, paralelo, de cardo, que sai pela porta do Arco de Dona Isabel, ou seja configurando a porta norte da Cerca Velha. A orientação das termas é de norte-sul e conhecem-se cerca de duzentos e cinquenta metros quadrados de área, sob a qual acabou por se rasgar a Praça de Sertório, além de dois conventos desaparecidos, o Convento do Salvador e o de S. Paulo. Estão identificadas as áreas do laconicum circular, um tanque com cinco metros de diâmetro e rodeado de quatro apsides; de hypocaustum, bem como de praefurnium e de natatio. Identificaram-se também
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Perfil da Rua da Alcárcova de Baixo. Desaparecendo aqui os vestígios descobertos da Cerca Velha, os limites da mesma, porém, restituem-se no próprio traçado visível das ruas circundantes ao núcleo de fundação romana. Neste ponto da cidade, a topografia configura um declive acentuado com reflexos na edificação posterior, e ao qual se encostam, em anteparo, os prédios desta rua, que termina, a sul, onde teria estado outra torre (diante à parede da Igreja de S. Vicente, ao fundo). © Fotografia do autor e de Cecílio Mendonça
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alguns elementos materiais e técnicos, com destaque para característicos opera de consolidação e revestimento de superfícies (opus incertum e alvenaria na parede do tanque do laconicum; opus signinum em sucessivos pavimentos), e para a cloaca de pedra que assegurava o escoamento do mesmo tanque. Escavou-se e musealizou-se o laconicum, sendo que o desenho do tanque acabou por definir, ao correr do tempo, uma sala de paredes com perfil octogonal, presente na planta do Palácio, também medieval, dos Condes de Sortelha. Parcialmente derrubado no séc. XIX para se edificarem os actuais Paços do Concelho segundo um esquema de época, que, entre o gosto pelo eclectismo das formas exteriores como nos elementos da arquitectura do ferro a interior, acabaram por manter a referida sala18. Tanto a indicada domus, como o que constituiriam as termas públicas da cidade eborense estão, desta forma, junto a duas ruas paralelas quanto ao sentido do cardo maximus; todos estes vestígios foram resgatados em edifícios em que, presentemente, estão instalados serviços públicos. E, na verdade, estes momentos de uma edificação antiga romana são, não apenas, o que melhor resta de uma primeira fundação de Ebora Liberalitas Iulia, como sinais de uma extensão de centro urbano que, na Antiguidade Tardia, e com a implantação das muralhas, veio a ficar reduzido. Com efeito, o templo, como o presumível teatro da Rua de S. Manços, a domus do séc. I e as termas públicas, vieram a situar-se, ou a escassos metros da cerca, ou junto da mesma. A questão coloca-se em saber qual a área da urbe que adveio da fundação augústea; ou, não menos, em saber-se se teria existido uma primeira cerca romana antes – e que primeiro perímetro teria então conhecido Ebora Liberalitas19. Descreve Vitrúvio que, para se conceber as cidades, se deveria escolher um ponto central do recinto, para, desde esse sítio, a partir de um círculo que se desenhava em redor, e a uma determinada hora, se medir quer a incidência da luz e da sombra, quer a direcção dos ventos; assim mesmo se prefiguraria o desenho das ruas, na sua distribuição linear entre sentidos de cardo e de decumanus (VITRÚVIO, I,VI, 6-8).
18 Ver Sarantopoulos 2005, 26-28. 19 Era tradição que tenha havido uma eventual fortificação ainda em período do desavindo General Sertório, sem que, porém, se viesse ressalvar qualquer fundamentação arqueológica de tal facto. Cf. Balesteros e Mira 1994, 8.
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A principal herança da fundação augústea está, de facto, na própria configuração que se lançou desde este esquecido gesto inicial que algum arquitecto executou, algures no tempo. Dos vários percursos possíveis, sobrepostos, todos a este ponto inicial, talvez assinalado pela centralidade do templo, que determina a orientação das ruas e das próprias vias rumo à envolvência da cidade. A urbe era como o coração de um território, sendo tal assinalado pelo seu amuralhamento, pois a fortaleza da cidade era simultaneamente física e espiritual, funcionando a cidade funcionava como um corpo, concebendo-se como um corpo. A edificação, segundo os pressupostos clássicos, tinha de se propor materialmente em harmonia, com todas as suas partes, tal como sucedia com as partes do corpo humano – base da teoria das proporções, que trazia em si o equilíbrio. Desta forma, as cidades, enquanto espaços de posteridade assinalada pela monumentalidade, eram um cenário programático dotado de uma linguagem erudita e simbólica, na expressão exímia do que mais elevado era assim capaz o trabalho do Homem, no sentido de arquitectura como momento, ou na qualidade de evento.
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Palavras-chave: Mosteiro de S. João de Tarouca; Reconstituição arquitectónica; Arquitectura cisterciense
Key words: Monastery of S. João de Tarouca; Arquitectonic reconstitution; Cistercian architecture ABSTRACT The archaeological intervention in the monastery of São João de Tarouca began in April 1998 and involved a large rehabilitation project for this building (declared National Heritage) sponsored by the Instituto Português do Património Arquitectónico. The work already done, which should be completed in about two years, allows for a preliminary reconstruction of the original medieval monastic complex. The exact date of the installation of the Cistercian order in Portugal remains under debate. But the beginning of the construction of this monastery in 1154 makes it undoubtedly the earliest Cistercian building in the then young Iberian nation. New findings concerning design and building techniques reinforce this idea and indicate that the construction process progressed at a good pace. If the importance of this monastery for the understanding of Portuguese Cistercian architecture is clear, the archaeological work recently developed allows for its inscription in a larger, European context.
RESUMO Tendo-se iniciado a intervenção arqueológica no Mosteiro de S. João de Tarouca em Abril de 1998, integrado num amplo projecto de reabilitação deste Monumento Nacional por parte do Instituto Português do Património Arquitectónico, a evolução dos trabalhos permite já, a pouco menos de dois anos da sua finalização, uma primeira proposta de reconstituição arquitectónica do complexo monástica medieval original. À parte a polémica que rodeia ainda o momento da entrada da Ordem de Cister em território nacional, o início da edificação do cenóbio tarouquense, em 1154, torna-o quase indiscutivelmente a primeira construção cisterciense no então jovem reino ibérico. Este primado ganha renovada força à luz dos novos dados resultantes da intervenção em curso, onde a conformidade do traçado e técnicas construtivas, apontam para um rápido processo construtivo.
UMA PRIMEIRA PROPOSTA DE RECONSTITUIÇÃO ARQUITECTÓNICA DO MOSTEIRO CISTERCIENSE DE S. JOÃO DE TAROUCA Luís Sebastian* Ana Sampaio e Castro**
1. Introdução Tendo-se iniciado a intervenção arqueológica no Mosteiro de S. João de Tarouca em Abril de 1998, integrado num amplo projecto de reabilitação deste imóvel Monumento Nacional por parte do Instituto Português do Património Arquitectónico (Castro e Sebastian 2002; 2004; 2006), a evolução dos trabalhos permite já, a pouco menos de dois anos da sua finalização, uma primeira proposta de reconstituição arquitectónica do complexo monástica medieval original. À parte a polémica que rodeia ainda o momento da entrada da Ordem de Cister em território nacional, dividindo-se a comunidade científica entre a questão da precedência temporal dos mosteiros de S. João de Tarouca e de S. Pedro de Lafões (Marques 1998, 32-47), o início da edificação do cenóbio tarouquense, datado de 1154 segundo inscrição no tímpano da porta dos monges (Barroca 2000, 254-258), torna-o quase indiscutivelmente a primeira construção cisterciense no então jovem reino ibérico. Este primado ganha agora renovada força à luz dos novos dados resultantes da intervenção em curso, onde a conformidade do traçado e técnicas construtivas, entre as quais se salienta a análise das marcas de canteiro (a Castro e Sebastian 2005, 399422.), apontam para um rápido processo construtivo. Apontando-se em média um período de vinte anos entre a fundação da nova comunidade monástica e a reunião das condições necessárias ao início da construção dos edifícios definitivos1, o curto período decorrido entre o reco* Arqueólogo, IPPAR – Serviço Dependente do Mosteiro de S. João de Tarouca. sebastiancastro@oninet.pt ** Arqueóloga 1 O ritmo das obras de construção estava por regra sujeito ao fluxo financeiro da comunidade monástica, baseado sobretudo em doações e, a médio e longo prazo, na exploração agrícola dos terrenos doados e adquiridos por compra e escambo. A par de inúmeras e pequenas doações, o
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nhecimento régio da comunidade tarouquense, em 1140, e o início dos trabalhos de construção em 1154 apontam para um processo anomalamente célere (Vasconcelos 1933, 63-64; Marques 1998, 33-41;Torre Rodriguez 1999, 86-97). Com certeza suportado por um surpreendente fluxo de doações consertado com uma eficaz política de compras e escambos de propriedades, a gestão optimizada de recursos por parte da ordem francesa de Cister é hoje já uma redundância histórica, podendo-se constituir o mosteiro em causa como o primeiro exemplo deste fenómeno em território nacional, posteriormente secundarizado pelo sucesso do Mosteiro de S.ta Maria de Alcobaça. Novamente datada por inscrição, junto à ombreira Sul da porta principal da fachada, a sagração da igreja em 1169 é novamente indicadora do elevado ritmo imprimido ao andamento das obras de construção (Barroca 2000, 333-369). Ainda que geralmente aceite a prática de sagrar o templo antes da sua finalização, contrapondo-se a urgente necessidade de culto à morosidade do processo construtivo, a localização desta inscrição aos pés da igreja pode ser teoricamente discordante, ainda que não de forma peremptória, com a tendência de iniciar a construção pela cabeceira, sagrada e aberta ao culto mesmo antes da conclusão do corpo. Menos indicativo e mais determinante, a observação do abundante número de marcas de canteiro indica igualmente uma ordem construtiva horizontalmente uniforme a toda a planta da igreja, evoluindo verticalmente. Se bem que ainda em curso, o estudo petrológico da silharia presente parece apontar já neste mesmo sentido. Este inicialmente desconcertante exercício construtivo, para além de aparentemente pouco habitual, à luz do intermitente conhecimento actual nesta matéria, acarreta algumas interessantes implicações: A montante pode-se então depreender que a este arrojo construtivo terá, por lógica material, correspondido a garantia do financiamento necessário, reforçando a especulação em torno do verdadeiro papel desta casa monástica com a ascensão e afirmação do reino da dinastia afonsina, mantida pela perca da quase totalidade do seu cartório no incêndio de 1841 do Seminário de Viseu, onde foi armazenado após a extinção das ordens monásticas em 1834. principal impulso viria por regra de grandes doações da aristocracia local, regional e da coroa, sendo que a atribuição por parte desta de uma área de couto ao mosteiro representaria a primeira garantia de sustento e financiamento da comunidade monástica, beneficiando aí de jurisdição e cobrança fiscal. Deste princípio de financiamento resultava usualmente o arrastamento das obras, inclusive com longos períodos de suspensão dos trabalhos, e mesmo com sucessivas alterações das soluções estruturais e estilísticas empregues (Leroux-Dhuys 1999, 38).
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A jusante, a comprovação deste facto reforça o papel do complexo monástico tarouquense como modelo arquitectónico por excelência do ideal cisterciense. Designado por diversos investigadores como “plano cisterciense” ou “bernardino”, a uniformização arquitectónica dos cenóbios cistercienses contrasta pela sua inflexibilidade em relação à prática usual na regra beneditina inicial e posteriores reformas, sendo a de Cluny dominante ao momento da cisão de Cister. Estando este facto inicialmente relacionado com o forte e centralizado controlo dos Capítulos Gerais de Cister, este era sequencialmente materializado a cada nova fundação pela implicação desta se fazer sobre a orientação de uma casa-mãe, gerando uma rede de inter-dependências e subordinações assaz uniformizadora de todos os aspectos da vida monástica. A esta orgânica base, o período de acção de S. Bernardo definiria incontornavelmente os moldes da sua futura afirmação. Sendo responsável por uma prodigiosa expansão monástica num curto espaço de tempo, este mesmo sucesso ditaria ao futuro santo padroeiro da ordem a necessidade de criar processos de controlo, revendo-se na uniformização de formas e conteúdos o mais intuitivo de todos na manutenção da vital coesão da ordem. De entre a forma, a arquitectura é naturalmente o mais expressivo dos factores, sobretudo se considerarmos o papel representado pelo espaço no contexto de clausura, elevando-se o edifício acima do puramente funcional e assumindo-se ao nível espiritual como a representação física do ideal cenobita. Tendo-se S. Bernardo pronunciado sobre quase todos os aspectos da vida monástica, a arquitectura recebeu de si sobretudo imposições de ordem estética, nas quais o despojamento é o tom dominante, sobretudo celebrado nas suas cartas denominadas “Apologia a Guilherme”, de 1123-1125, na questão que o opôs à ostentação da Ordem de Cluny. À parte da preponderância do ideário ascético no seu discurso arquitectónico, sabe-se que se terá mesmo envolvido directamente na condução de obras no seu mosteiro de Claraval e em algumas das suas casas-filhas (Leroux-Dhuys 1999, 40). Não deixa pois de ser significativo que o momento do início da construção do Mosteiro de S. João de Tarouca se dê apenas um ano após a morte de S. Bernardo, quando a influência das suas ideias se encontra ainda no auge, com a sua canonização em 1174, sendo que a casa-mãe responsável pela fundação tarouquense na década anterior é, exactamente, Clairvaux, tendo por abade o próprio santo cisterciense. Se a isto juntar-mos a mais que natural suposição de que o plano a executar dataria dos primeiros anos da década de
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quarenta, com a filiação na nova ordem monástica e a chegada do núcleo inicial de monges de Claraval, compreender-se-á a tão intima relação do traço empregue no Mosteiro de S. João de Tarouca com o movimento arquitectónico bernardino. Às genéricas imposições ascéticas bernardinas no respeitante à forma e organização dos complexos monásticos cistercienses (b Castro e Sebastian 2005), impõe-se uma insistente uniformização de particularidades que se tornam difíceis de explicar apenas pelo respeito às imposições versadas pelo santo. O princípio de a cada nova fundação corresponder o envio de um grupo de doze monges da casa-mãe, portadores do conhecimento e prática da regula Cisterciense, abarca a quase certeza de com estes ser trazido o plano da nova construção, que com normais adaptações às contingências locais, expressaria a vontade da casa-mãe (Leroux-Dhuys 1999, 37). Assim, às linhas gerais impostas centralmente de cariz funcional, formal e decorativo, dever-se-iam juntar indicações de pormenor da responsabilidade da casa-mãe, às quais devemos ainda somar a própria vivência dos doze monges por esta enviada, que na tradição oral da transmissão do conhecimento na área da arquitectura medieval, seria apenas natural que impusessem a recriação de soluções já observadas em cenóbios anteriores (Leroux-Dhuys 1999, 39). No entanto, a esta recriação de base vivencial que podemos apenas pressentir, impor-se-ia certamente, pela sua forma mais estruturada, o conjunto de disposições comunicadas pela casa-mãe. Estas deveriam corresponder ao entendimento dominante, no momento e dentro da ordem, do conceito de plano ideal, podendo-se mesmo por isso afastar da forma pré-existente da casa-mãe. Deste princípio resulta o aspecto, aparentemente contraditório, de Cister e as subsequentes quatro fundações primogénitas criadas entre 11131115, La Férte, Pontigny, Morimond e Clairvaux, não representarem, na posterior fase de apogeu e expansão bernardinos, modelos ideais do designado plano cisterciense. Se a vastidão do território de expansão cisterciense veio, ainda assim, a gerar regionalismos arquitectónicos, dentro dos quais o italiano e o inglês serão talvez os mais expressivos, pode-se reconhecer para o período de maior influência bernardina um conjunto de imóveis de destacada uniformização, quer entre si, quer em relação àquele que viria a ser considerado como o modelo cisterciense, de natural cunho francês, e para o qual o mosteiro de Fontenay se
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viria a tornar o símbolo máximo, com envolvimento pessoal de S. Bernardo na sua concepção (Leroux-Dhuys 1999, 52). A este último, fundado em 1119 por Claraval e tendo a sua igreja construída entre 1139-1147, podemos assim juntar os mosteiros franceses de Silvanés, fundado em 1136 e com a sua igreja construída entre 1150-1250; de Le Thoronet, fundado entre 1136-1176 e com a sua igreja construída entre 1160-1190; de Silvacane, fundado em 1144 e com a sua igreja construída entre 1175-1230; de Fontfroide, fundado em 1146 e com a sua igreja construída entre 1157-1210; de Sénanque, fundado em 1148; de Fontmorigny, fundado em 1149 e com a sua igreja construída entre 1160-1225; e de Flaran, fundado em 1151 e com a sua a igreja construída entre 1180-1210. Numa leitura transversal a este conjunto de imóveis, aos quais se poderia ainda juntar outros disseminados pela Europa ocidental, vários têm sido os autores a avançar com propostas de aproximação àquela que seria a planta ideal cisterciense, ou se quisermos, bernardina. De usual referência, a proposta de Wolfgang Braunfels (Braunfels 1975, 119-162) diferencia-se pouco da mais recente proposta de Jean-François Leroux-Dhuys (Leroux-Dhuys 1999, 52), sendo talvez sintomático o facto dos ainda mais recentes dados fornecidos pelas escavações arqueológicas no Mosteiro de S. João de Tarouca se aproximarem mais desta última. Se é facilmente aceite o argumento da importância do Mosteiro de S. João de Tarouca para o conhecimento da arquitectura cisterciense em Portugal, pela sua primazia cronológica, a constatação da sua perfeita integração na concepção arquitectónica bernardina estende esta importância à compreensão do fenómeno cisterciense, assumindo assim uma dimensão europeia. A esta argumentação devemos ainda juntar o facto de do conjunto de mosteiros românicos inicialmente existentes em território nacional, vários terem desaparecido fisicamente e, sobretudo, a maioria ter sido profundamente alterada nos períodos maneirista e barroco. De facto, dificilmente se pode observar uma fachada cisterciense medieval em Portugal, ou, não menos alvo de remodelações posteriores, possuímos qualquer claustro românico conservado. Pela timidez das alterações feitas à igreja original do Mosteiro de S. João de Tarouca, nos séculos XVII e XVIII, esta permite-se ser, se sujeita a um trabalho de análise cuidada, decomposta nas suas diversas fases construtivas, após a eliminação das quais podemos isolar a construção original e observar, pela primeira vez, a mais plena construção bernardina em território português (Fig.1).
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Fig. 1 – Registo gráfico do alçado exterior Oeste da igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca, com leitura cronológica de paramentos. © Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian
Ironicamente, o facto de as dependências monásticas terem sido vendidas em hasta pública após a extinção das ordens monásticas em Portugal, tendo sido desmanteladas para reaproveitamento da pedra, permite hoje, através do processo de escavação arqueológica, uma leitura impossível em edifícios conservados, permitindo decompor, em certos aspectos mais facilmente, as diversas fases construtivas. À análise facilitada das técnicas construtivas empregues, desta condicionante resultou mesmo identificarem-se situações de outra forma apenas suspeitadas, como a recolha de um anel de oração no interior da parede Sul da sala do capítulo, relacionado com o ritual de sagração e esconjuro do espaço em construção, constituindo-se como o primeiro caso comprovado arqueologicamente (Barroca et al., no prelo) (Figs. 2 e 3).
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Fig. 2 – Reconstituição da planta do Mosteiro de S. João de Tarouca nos séculos XII-XIII. © Ilustração de Luís Sebastian
Fig. 3 – Reconstituição em perspectiva do Mosteiro de S. João de Tarouca nos séculos XII-XIII. © Ilustração de Luís Sebastian
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2. O plano tipo cisterciense aplicado ao Mosteiro de S. João de Tarouca Encontrando-se a comunidade monástica cisterciense dividida entre monges e conversos, cabendo aos últimos libertar parcialmente os primeiros dos afazeres quotidianos, de forma a cumprir a totalidade dos ritos religiosos diários e, não menos importante, a obrigação de clausura, a planta do mosteiro cisterciense encontra-se organizada em duas metades opostas.
2.1. A ala dos monges No seguimento do transepto da igreja desenvolve-se a ala dos monges, compreendendo a sacristia; o armarium para armazenamento dos livros litúrgicos, resultante do espaço sob as escadas de acesso da igreja ao dormitório no piso superior (a usar após o último rito do dia); a sala do capítulo, para a realização das reuniões capitulares onde a condução dos destinos da comunidade era decidida; a escada de acesso do claustro ao dormitório no piso superior (a usar no período diurno); um corredor de acesso do claustro ao exterior; o scriptorium, ou sala dos monges, para prática da leitura e da actividade copista; o noviciado, com funções paralelas às da sala dos monges; e as latrinas, com acesso apenas pelo dormitório no piso superior (Fig. 4).
Fig. 4 – Proposta de reconstituição da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca. © Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian
2.1.1. A sala do capítulo Impondo-se como um dos espaços mais importantes do complexo monástico, a sala do capítulo abre-se ao claustro através de uma ampla porta ladeada por janelas, comummente geminadas, destacando-se da sobriedade
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geral das dependências monásticas por uma arquitectura excepcionalmente mais elaborada. No caso do Mosteiro de S. João de Tarouca, a profunda destruição deste espaço impossibilita-nos uma reconstituição plausível do seu todo, com excepção da fachada, felizmente registada nos princípios do século XX por vários fotógrafos2. Partindo então destes registos fotográficos, aos quais se juntou o único elemento arquitectónico recolhido em contexto de escavação arqueológica, correspondente a uma aduela de um dos arcos das janelas geminadas, transpôs-se com relativa facilidade as medidas verticais pela sua relação com o braço do transepto da igreja, ainda conservado. De forma a vencer as medidas horizontais, procurou-se compreender o sistema aritmológico que esteve na base do traçado original. Partindo da análise aritmológica já realizada por Virgolino Jorge ao edifício da igreja, em que foi possível identificar o sistema dimensional empregue como tendo sido o Pé de rei (Cunha 2003, 24-28), aplicado em módulos de oito pés (Jorge 1997, 431456), procurou-se aplicar à fachada da sala do capítulo este mesmo sistema francês, confirmando-se a aplicação do Pé de rei como medida padrão base, subdividindo-se, nos emolduramentos, nas correspondentes medidas inferiores segundo o sistema designado por Rui Maneira Cunha como Quina dos Mestres de Obra (Cunha 2003, 34) (Fig. 5).
2.1.2. O auditorium dos monges Entre as escadas de acesso do claustro ao dormitório e o corredor de acesso ao exterior, também designado por Wolfgang Braunfels como auditorium, impõe-se a solução alternativa de um terceiro volume, que a existir permite o acesso e consequente aproveitamento como armarium do espaço inferior às escadas de acesso ao dormitório. Aproximando-se a proposta de Wolfgang Braunfels da solução que encontramos em Fontenay, a proposta de Jean2 Até ao momento podemos já identificar registos fotográficos do início do século XX da responsabilidade do Visconde de Briteande (Vasconcelos, 1933, p. 215, 353, 353), Ramalho Ortigão (Vasconcelos, 1933, p. 63, 136, 214), Padre Vasco Moreira (Vasconcelos, 1933, p. 132-135, 181, 200, 216, 217; Moreira, 1924, p. 53, 59, 63, 65, 67, 73), Aarão Lacerda (Lacerda, 1914, p. 149; Peres, 1929, Vol. II, p. 650), Marques Abreu (Moreira, 1911, p. 14,15; Dionísio, 1988, p. 739, 741;Vasconcelos, 1992, p. 63-64; Revista Arte, Archivo de Obras d’Arte, n.º 73, pág. 6-7, n.º 74, pág. 14), Alberto Marçal Brandão (Arquivo da Família Marçal Brandão, propriedade de Maria Luísa Salgado Ferreira) e Domingues Alvão (Centro Português de Fotografia). De realçar que os três primeiros nomes deverão ser entendidos como os proprietários e/ou encomendadores dos registos feitos, desconhecendo-se a identificação dos fotógrafos responsáveis pelos mesmos.
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Fig. 5 – Proposta de reconstituição da fachada da sala do capítulo do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotação aritmológica de pormenor e geral segundo sistema ad quadratum. © Ilustração de Luís Sebastian
François Leroux-Dhuys encaixa perfeitamente na planta agora exumada do Mosteiro de S. João de Tarouca. Insistindo na designação de auditorium que Wolfgang Braunfels atribui ao corredor de acesso ao exterior, a função deste relaciona-se com o papel do Prior, monge nomeado pelo abade como responsável pelos assuntos administrativos da comunidade, que desenvolvendo aqui a sua actividade recorria ao armarium sob as escadas de acesso diurno ao dormitório como espaço de armazenamento de documentação. Por ser permitido falar neste espaço de modo ao Prior tratar dos assuntos correntes com os restantes membros da comunidade, em oposição à geral obrigação de manter o silêncio nos espaços claustrais, ao termo auditorium, de ouvir, podia-se igualmente aplicar o termo Locutorium, de falar. Aproximamo-nos pois mais da interpretação apresentada por Jean-François Leroux-Dhuys, aparentando a solução de Fontenay não possuir a individualização deste espaço associado à actividade do Prior, que, garantidamente, teve também aí lugar (Leroux-Dhuys 1999, 66-67).
2.1.3. O noviciado Peremptório no caso do Mosteiro de S. João de Tarouca é a ausência de um espaço individualizado para os noviços, à semelhança do observado para o caso de Fontenay.
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2.1.4. As latrinas dos monges Contrariamente, as latrinas exumadas durante os trabalhos arqueológicos divergem da solução corrente pelo facto de serem duplas3. O princípio geral de funcionamento passa pelo desvio de um braço de água a montante do ribeiro que, por regra, sobranceia o extremo da ala dos monges. Este é induzido a atravessar o corpo do edifício através de dois vãos opostos, resultando no fluxo constante de água sob o espaço de latrina situado no piso superior, com ligação ao dormitório. Contudo, no caso em análise, esta solução passa pela subdivisão do canal de passagem das águas, permitindo acrescentar umas segundas latrinas no piso inferior, com ligação ao scriptorium (Fig. 6).
Fig. 6 – Proposta de reconstituição das latrinas da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca segundo corte axial Norte-Sul. © Ilustração de Luís Sebastian
3 Veja-se, a título de exemplo, a reconstituição das latrinas do mosteiro de São Cristóvão de Lafões (Dias e Jorge 1996, 227-240).
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2.2. O calefactorium Colado à ala dos monges, o calefactorium correspondia à única sala com aquecimento no complexo. Com relação directa com o scriptorium, desta resultava a presença de uma porta de ligação directa entre os dois espaços ou, como nos casos de Fontenay e de S. João de Tarouca, a descentralização da sua porta de ligação ao claustro, tendendo a aproximar-se da porta do scriptorium. Pelo facto de possuir, por regra, uma ampla lareira, era excepcionalmente admitido aos monges recorrerem ao calefactorium para o exercício do seu labor copista nos períodos mais frios de ano. A este carácter de excepção juntavam-se ainda os enfermos, podendo por consequência resultar aí na criação de pequenos espaços de enfermaria. Se no caso de Fontenay a enfermaria se encontra mesmo estruturada dentro do volume do calefactorium, no caso em análise este apresenta-se como um espaço amplo e desconcertantemente reduzido para o emprego como enfermaria. A ter representado esse papel, tê-lo-á feito de forma apenas remediada e sem capacidade para mais de meia dezena de enfermos em simultâneo.
2.3. O refeitório dos monges Seguindo-se ao calefactorium, o refeitório dos monges posiciona-se perpendicularmente em relação ao meio do claustro, estrategicamente colocado defronte ao lavabo e com comunicação com a cozinha, por sua vez próxima à ala dos conversos por motivos funcionais. A comunicação com a cozinha far-seia por meio de uma roda, que podia consistir apenas numa janela de comunicação sem implicar propriamente um dispositivo giratório, como no conceito mais estreito do termo, ou, em sua substituição, por uma porta. Apesar de os vestígios exumados arqueologicamente não incluírem as ombreiras ou mesmo a soleira desta porta no Mosteiro de S. João de Tarouca, a sua existência fica provada pela sua marca de posição, consistindo esta numa seta bidireccional gravada na silharia sobre a qual foi certamente aberta. Igualmente patente nos dados recolhidos, a elevação de um tão amplo volume orientado no sentido descendente do terreno, determinado pela presença da ribeira a Norte do complexo, implicou o desnivelamento do seu piso, com rebaixamento da sua metade Setentrional e consequente presença de um degrau transversal. Esta contingência não é, contudo, uma situação invulgar, bastando relembrar a forte inclinação do piso do refeitório de S.ta Maria de
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Alcobaça ou, de forma ainda mais assumida, nos pisos escalonados do claustro de Le Thoronet ou mesmo da igreja de Silvacane. Esta contingência será responsável pela primeira campanha de obras após a edificação original detectada pelos trabalhos arqueológicos, consistindo no alteamento da metade Norte do refeitório e nivelamento do piso pela cota da metade Sul, mais elevada, eliminando assim a incómoda presença deste degrau. Infelizmente, os poucos dados recolhidos sobre esta primeira remodelação do refeitório, decorrida no século XIV, não permitiram perceber toda a sua extensão, sendo garantida contudo a reestruturação da cobertura, com o acrescento de dois pilares centrais, no alicerce de um dos quais se recolheu uma nervura, sugerindo que a cobertura original se faria por uma abóbada de cruzaria.
2.4. A cozinha Obrigatoriamente anexa ao refeitório, a cozinha poderia contar, ou não, com um espaço de despensa no seu extremo oposto à entrada. Obrigatória seria a presença nesse extremo de um vão para escoamento de lixos, que pela natural pendente do terreno, tenderiam a escorrer para a linha de água que aí faria o percurso entre a ala dos monges e a ala dos conversos. De entre as duas soluções, foi a mais simples a adoptada pelo cenóbio tarouquense. Quanto ao interior da cozinha, este espaço revelou-se dos mais complexos e, pelo elevado nível de destruição geral das dependências monásticas, dos menos inteligíveis arqueologicamente. Identificou-se contudo a lareira onde se daria a confecção dos alimentos, subdividida em duas áreas de trabalho e localizada no canto Sudeste. Impossível de confirmar foi a presença, ou não, de uma porta de ligação ao auditorium dos conversos.
2.5. A ala dos conversos Entrando na ala dos conversos, importa salientar de imediato a discordância de orientação deste volume em relação ao restante complexo monástico. Não sendo arqueologicamente possível confirmar as razões que terão levado a esta deturpação do plano inicial, presume-se que tal se tenha ficado a dever à necessidade de encontrar uma área de afloramento rochoso propício ao assentamento do edifício. Se tal alicerçamento passou, na ala dos monges, pela construção de um possante alicerce com recurso a grandes elementos
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graníticos rolados recolhidos no leito dos ribeiros próximos, na ala dos conversos aparenta ter-se assumido uma solução mais prática e menos dispendiosa, com sacrifício da harmonia arquitectónica. Este facto dificilmente se poderá explicar de forma cabal, no entanto será interessante considerar a função menos nobre deste espaço, normalmente relegado para último na ordem de prioridades construtivas. Se a análise das marcas de canteiro aponta para a quase simultaneidade dos trabalhos de construção entre o edifício da igreja e a ala dos monges, as dissemelhanças entre as marcas observadas na ala dos conversos e as das restantes dependências monásticas parecem indicar um momento de construção mais tardio, reforçado pela recolha no seu alicerce de duas moedas de Afonso II, de emissão entre 1211-1223. É curioso constatar que os vestígios da ala dos conversos de Fontenay, hoje desaparecida, sugiram igualmente um ligeiro desvio à orientação geral do complexo, ao qual podemos ainda acrescentar o acentuado desvio da ala dos conversos do mosteiro alemão de Santa Maria de Eberbach (Romanini 1991, 418). Acreditamos contudo que, dada a volumetria e disposição dos edifícios, esta divergência de orientação da ala dos conversos passasse em muito despercebida.
2.5.1. O auditorium e o corredor dos conversos Indisfarçável seria a assimetria dos espaços correspondentes ao auditorium e ao corredor dos conversos. Encontrando-se os trabalhos de escavação arqueológica por concluir nesta área, impõe-se já a incapacidade de se identificar claramente os limites do espaço correspondente ao auditorium, estando a habitual configuração do corredor dos conversos comprometida, sem que se entenda para já qual a solução alternativa adoptada. Talvez como consequência deste facto, à solução mais corrente de se situar a porta dos conversos de acesso à igreja no enfiamento deste corredor, impôs-se a sua abertura lateral na fachada da mesma. Se bem que não predominante, vemos esta opção ser tomada em diversos outros mosteiros cistercienses, de entre os quais destacamos os de Silvacane e de Fontenay.
2.5.2. Os dormitórios e as latrinas dos conversos À semelhança da ala dos monges, o piso superior da ala dos conversos terá correspondido aos dormitórios, por regra providos de latrinas à
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semelhança do observado para a ala dos monges. Contudo, no caso do Mosteiro de S. João de Tarouca, é-nos impossível apurar a sua existência no extremo Norte da ala, uma vez que com a reformulação seiscentista dessa metade da ala, o piso foi alteado e os tramos das paredes laterais, que poderiam permitir a identificação dos negativos da presença de uma parede divisória, foram refeitos. Com atenção aos objectivos de musealização supostos no projecto de reabilitação do mosteiro, o respeito pela conservação dos últimos pisos tem sido predominante, com excepcionais sondagens em profundidade. Esta interrogação, que por agora se mantém, seria pois justificativa da realização de uma futura sondagem na área em dúvida.
2.5.3. A tulha e o refeitório dos conversos Associada a esta dúvida, está a atribuição da função de refeitório dos conversos a esta metade Norte da ala, de acordo com o indicado por Wolfgang Braunfels e Jean-François Leroux-Dhuys, reservando-se a metade próxima à igreja como espaço de tulha.Temos por certa a função de tulha para os séculos XVII-XVIII, o que nos leva a colocar a hipótese de essa ter sido igualmente a solução original, apresentando-se esta disposição dos espaços de refeitório e tulha como uma solução divergente do comummente aplicado noutros mosteiros da ordem. Contudo, a manutenção da porta de acesso a este espaço como ligação para o auditorium mantém-se de acordo com o plano tipo, enquanto que à função de tulha estaria associada uma porta de grandes dimensões virada para o exterior, por óbvios motivos funcionais. Encontrando-se em fase de finalização a escavação da metade da ala dos conversos próxima à igreja, esperamos obter mais dados que nos permitam confirmar a distribuição de funções original, sendo que se encontra já confirmado o corredor de acesso ao exterior convencionado no plano tipo e, contraditoriamente, a presença inesperada de uma estreita porta posteriormente emparedada na metade Norte.
2. 6. O claustro No centro de toda a organização do complexo monástico, encontramos o claustro, responsável pela distribuição de acessos. Ao centro poderia possuir uma fonte, sendo obrigatório o lavabo virado ao refeitório.
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2.6.1. A fonte No caso do Mosteiro de S. João de Tarouca, os trabalhos de escavação arqueológica estenderam-se ao centro do pátio do claustro, sem que se tenham detectado quaisquer vestígios de fonte, o que se torna desconcertante tendo em conta, pelo menos, a referência documental à edificação de uma fonte no claustro por Frei Prudêncio, abade trienal entre 1594-1597 (Vasconcelos 1933, 392; BNL, Códice 1494, fl. 14).
2.6.2. O lavabo Quanto ao lavabo, continuam ausentes quaisquer vestígios da sua existência, mas dado o desmantelamento completo do claustro original durante a sua substituição por um novo claustro maneirista por Frei Manuel de Macedo, abade trienal entre 1615 e 1618 (Vasconcelos 1933, 392), põe-se a hipótese da sua eliminação com a consequente sobreposição das terras do pátio, provavelmente ajardinado. Como tal, a identificação do lavabo original que acreditamos ter existido, passará obrigatoriamente pela abertura de uma nova sondagem arqueológica, rompendo o nível de circulação do pátio seiscentista.
2.6.3. As arcadas Mais consensual é a solução da cobertura das arcadas do claustro, obrigatoriamente simples, de telha sobre estrutura de madeira, como fica patente pelo negativo da imposta de suporte da mesma, visível no alçado Norte da igreja. Apesar de desmanteladas as arcadas do claustro original, vários elementos arquitectónicos foram reaproveitados no alicerce do claustro maneirista, aos quais se juntam outros tantos recolhidos nos mais diversos contextos, entre os quais se destaca o reaproveitamento pela população local na construção das casas do burgo ou meramente como elementos decorativos. Assim, podemos registar trinta e cinco elementos arquitectónicos atribuíveis às arcadas do claustro, sendo que doze são aduelas, quatro capitéis, nove fustes, três impostas e sete bases. A partir destes elementos foi então possível reconstituir todo o módulo correspondente aos arcos interiores, com um elevado grau de certeza. Não se possuindo os mesmos elementos para os arcos exteriores e correspondentes pilares, optou-se pela importação dos dados em falta por comparação com o claustro de Fontenay, encorajados pela similitude entre este e os elementos arquitectónicos recolhidos.
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De forma a permitir a transposição destes dados comparativos com os já possuídos, e à semelhança do conseguido para a fachada da sala do capítulo, procurou-se compreender o sistema aritmológico que esteve na base do traçado original, com aplicação sobretudo ao nível da reconstituição dos pilares e, consequentemente, da planta. Dada a relação do ritmo de construção monástica com o fluxo de doações, levando ao usual arrastamento das obras e mesmo longos períodos de interregno, verifica-se em muitos claustros uma clara falta de uniformidade decorativa. Ainda que o sistema modular se mantenha, uma vez definido no plano inicial, a sua execução sujeitava-se às naturais contingências impostas pela descontinuidade do processo, com alteração dos mestres canteiros e, talvez sobretudo, pelo constante ajuste da execução aos recursos financeiros disponíveis. Deste resultava amiúde a drástica redução da complexidade decorativa inicial, sendo o claustro de Fontenay um exemplo desta prática, apresentando para os pilares três soluções: a mais complexa, com adossamento de duas colunas, uma intermédia com a substituição destas colunas pela sua sugestão esculpida nos silhares do pilar e, a mais simples, reduzindo-se o pilar ao seu volume modular. A informação que possuímos para o claustro do Mosteiro de S. João de Tarouca é insuficiente para podermos afirmar se a mesma heterogeneidade terá aí existido, o que constituiria um factor essencial na determinação do ritmo construtivo desta estrutura. Assim, optou-se por se proceder ao cruzamento dos elementos arquitectónicos recolhidos com as três soluções observáveis em Fontenay, sendo impossível de determinar a variação da sua aplicação ou, em caso de uniformidade, qual a solução adoptada. Contudo, a solução simples da cobertura de telha sobre madeirame, em substituição de uma abóbada de pedra, sugere a tendência para a simplificação das soluções empregues (Fig. 7). Infelizmente, à insuficiência dos dados arqueológicos, junta-se a já referida escassez de documentação coeva, tendo como excepção para o claustro o documento publicado por Almeida Fernandes, em que se regista a doação feita por D. Martim Fernandes ao mosteiro “para a obra do claustro”, na forma de três casais na Vila de Várzea e duzentos maravedis (Fernandes 1991, 147, Doc. 168). Infelizmente este documento não apresenta data, podendo-se apenas indicar que a sua integração num cartulário datado de 1141-1266 o situa nesta baliza cronológica.
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Fig. 7 – Proposta de reconstituição do claustro medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotações aritmológicas, de acordo com a solução mais simplificada presente no mosteiro de Fontenay. © Ilustração de Luís Sebastian
2.6.4. O mandatum Igualmente substituído durante a reforma maneirista, o mandatum, correspondendo a um banco corrido adossado ao alçado da igreja virado ao claustro, seria um elemento certo na solução original. A remoção do mandatum seiscentista no segundo tramo do corpo da igreja, resultado da construção anexa de uma habitação durante as primeiras três décadas de século XX,
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permite, hoje e após a sua demolição pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais em cerca de 1937, a observação da silharia medieval, onde o adossamento do mandatum original se faria. A ausência de quaisquer marcas relacionáveis com a sua presença leva a crer que seria constituído por uma estrutura leve, possivelmente de madeira.
2.6.4. A porta dos monges Apesar de igualmente desactivada aquando da colocação do mandatum maneirista, a porta dos monges, de acesso directo do claustro ao interior da igreja, contaria obrigatoriamente com o necessário conjunto de degraus para vencer a diferença de cota entre estes dois espaços. Apesar de a sua remoção não ter deixado qualquer negativo da sua configuração, podemos calcular o seu número de degraus em cinco, bastando para tal encontrar um número divisor cujo resultado se ajustasse à altura conveniente para cada degrau. Sendo que tal resultado coincide com dois Palmos menores, altura observada para os dois degraus originais conservados na porta da sacristia, podemos com elevado grau de certeza assumir esta suposição. Já referida, a inscrição que data o início dos trabalhos de construção em 1154 encontrava-se originalmente no tímpano da porta dos monges, contudo, com a construção do claustro maneirista, a sobreposição do piso superior ao arco quebrado desta porta levou a que a inscrição fosse substituída por um tímpano simples, sendo a inscrição então removida para local inserto, encontrando-se hoje no interior da igreja.
2.7. A igreja Centro do complexo monástico, a igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca destaca-se pelo facto de, contrariamente ao observado para a grande maioria dos templos, ter mantido em grande medida o seu cunho medieval, apesar das muitas alterações sofridas durante as reformas maneirista e barroca.
2.7.1. A fachada Avançando para a actual fachada da igreja, de imediato se destacam as cinco principais acções de que se constituiu a sua remodelação maneirista, da responsabilidade de Frei Baptista de Menezes, abade trienal entre 1642 e 1645 (Vasconcelos 1933, 392; BNL, Códice 1494, fl. 15):
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Fig. 8 – Fachada do mosteiro de Fontenay. © Fotografia de Catarina Madureira Villamariz
A primeira consistiu no encobrimento da porta original de arco quebrado, de solução simples sem qualquer emolduramento, por uma frontaria apenas justaposta. Por permitir a observação do arranque do arco medieval, a sua reconstituição revela-se óbvia. A segunda acção passou pelo emparedamento da já referida porta dos conversos. Ainda que o emparedamento actual seja da responsabilidade da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, cremos que este se tenha dado desde esta fase. No entanto, por respeitar a configuração da porta original, em nada alterou a correcta leitura da porta medieval. A terceira acção implicou a abertura de dois janelões ladeando a frontaria. Sem que possamos ter certezas em relação a estes vãos terem vindo substituir duas janelas pré-existentes na fachada original, esta parece ser a hipótese mais credível, de acordo com a solução mais recorrente nos paralelos observados (Fig. 8). A quarta acção, e talvez a mais descaracterizadora, passou pela elevação das meias águas laterais, mais baixas na solução original, passando o telhado a apenas duas águas. Culminada com o acrescento de quatro pináculos e uma cruz central, esta alteração permitiu ainda assim a conservação do negativo das
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Fig. 9 – Proposta de reconstituição da fachada da igreja medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotação aritmológica do sistema ad quadratum. © Ilustração de Hugo Pereira e Luís Sebastian
Fig. 10 – Proposta de reconstituição da fachada da igreja medieval do Mosteiro de S. João de Tarouca, com anotação aritmológica de pormenor. © Ilustração de Hugo Pereira e Luís Sebastian
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duas meias águas laterais medievais, que em articulação com a leitura da silharia dos alçados laterais Norte e Sul, permite a reconstituição das volumetrias do telhado original com elevado grau de certeza. A quinta e última acção que salientamos refere-se à eliminação do nartex. Consistindo este numa cobertura alpendrada, cobrindo o nível inferior da fachada em toda a sua extensão lateral, os raros exemplares sobreviventes em igrejas cistercienses e a sua diversidade formal tornam difícil a sua reconstituição. Contudo, é possível determinar que, à semelhança da cobertura do claustro, a do nartex se faria igualmente por uma simples cobertura de telha sobre madeirame, como sugerido pelo negativo da sua imposta de suporte na fachada. Assim, sugere-se-nos que a solução adoptada seria das mais simples, recorrendo a pilares em detrimento de arcadas, normalmente associadas a coberturas abobadadas (Fig. 9 e 10). Ainda que não incluída na reforma maneirista da fachada, a elevação da cota de circulação do átrio da igreja, decorrida na viragem do século XIX para o século XX, veio eliminar a escadaria da porta central e diminuir em altura a porta dos conversos e, obviamente, toda a fachada. A abertura de uma sondagem entre ambas as portas permitiu contudo confirmar a cota original de circulação, a permanência do alicerce das escadas da porta central, que cruzado com a análise aritmológica nos indica cinco degraus e, para a porta dos conversos, a presença da soleira ao nível do exterior, o que nos leva a pôr a hipótese de os degraus necessários a vencer a diferença de cota entre o interior da igreja e o nartex se estenderem interiormente.
2.7.2. O piso interior Entrando na igreja, a relação do seu piso com as portas, e sobretudo com a análise aritmológica do corpo do edifício, apontam para que a sua cota actual não se diferencie muito da cota original. Sendo o lajeado actual da responsabilidade da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, admitimos que o seu assentamento possa se ter desviado apenas ligeiramente do piso que pretendia substituir. A altura dos pilares dos arcos dos tramos das naves laterais, pelo seu enquadramento aritmológico, seria de esperar que apresentassem a altura de oito Pés de rei, registando-se contudo variações de seis a dez centímetros a menos. Pondo-se então a hipótese de a cota original poder-se encontrar, no máximo, até dez centímetros abaixo da cota actual, consoante as naturais irregularidades do lajeado, ressalta o facto de a soleira da
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porta para as escadas de acesso aos dormitórios dos monges se encontrar, de facto, ligeiramente abaixo do lajeado, assumindo a sua posição correcta com tal rebaixamento do piso.
2.7.3. O transepto Situando-nos no centro do transepto da igreja, chama-nos de imediato a atenção a forte luminosidade provinda do janelão barroco aberto no braço Sul. A sua contraposição com o braço Norte do transepto deixa adivinhar facilmente que este é um vão que veio alargar uma exígua janela medieval, cujo contraponto se conserva ainda do lado Norte, contribuindo em conjunto para que a atmosfera do transepto fosse, originalmente, mais recatada. Ainda em relação à abertura deste janelão barroco no braço Sul do transepto, é curioso notar que a sua função passava igualmente por fornecer alguma iluminação, ainda que reduzida, às escadas para os dormitórios dos monges, tendo-se para tal rasgado uma janela quadrangular na metade Oeste do extremo do braço Norte do transepto4. Apesar de actualmente este vão se encontrar emparedado pelas obras da Direcção geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, a sua abertura alerta-nos para a então provável reduzida iluminação das escadas dos dormitórios, na solução medieval garantida apenas por uma abertura no alçado Oeste da ala dos monges, que de acordo com os paralelos observados, corresponderia simplesmente a um vão similar às janelas das celas dos dormitórios, ainda que alteada dentro dos limites impostos pelas coberturas dos dormitórios e do claustro. A juntar às duas janelas dos braços do transepto, contaríamos ainda com uma janela similar aberta ao nível superior, perfurando a abóbada e virada a Este. Dado o actual reboco da cobertura abobadada, este vão não é visível pelo interior, devendo ter sido eliminado aquando da construção do volume correspondente à nova sacristia, no século XVIII, sendo por isso apenas observável a partir do telhado desta. Curiosamente, a análise da mesma área no braço contrário do transepto, a Sul, não denuncia ter existido alguma vez uma janela correspondente, pelo que, mesmo perante a ideia de assimetria que este factor representaria, somos forçados a avançar com a hipótese de este vão ser único, 4 A abertura desta janela no século XVIII, dada a sua posição excêntrica em relação ao alçado do braço Norte do transepto, levou a que na busca pela simetria fosse acrescentada uma segunda janela idêntica na metade Este da parede, ainda que falsa, dada a sua face exterior se encontrar virada para o interior dos dormitórios.
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talvez explicado pela necessidade de iluminar a área defronte às portas para a sacristia original e para as escadas de acesso aos dormitórios dos monges.
2.7.4. A porta da sacristia Concentrando-nos exactamente nessa área, são várias as alterações levadas a cabo no período barroco. À parte a abertura de nova porta para a sacristia barroca que veio em substituição da original, feita no extremo da parede Este do braço Norte do transepto, a porta para a sacristia substituída foi totalmente encoberta por um painel de azulejos figurativos (Castro e Sebastian 2003), sendo observável apenas pelo exterior, onde é evidente o emprego de cinco degraus de dois Palmos menores para vencer a diferença de cota entre a igreja e a exígua sacristia.
2.7.5. A porta para os dormitórios dos monges A porta para os dormitórios foi naturalmente mantida, sendo a sua moldura apenas disfarçada interiormente pela justaposição de uma nova, ao gosto barroco. Pelo exterior, observa-se que o seu tímpano foi removido e que a ombreira oriental foi recuada, alargando este vão, originalmente de quatro Pés de rei e meio de largura.
2.7.6. A porta dos mortos Voltando-nos para o braço Sul do transepto, o acrescento de um retábulo de talha dourada barroco veio cobrir a porta dos mortos, de acesso ao espaço cemiterial localizado na área a Sul da igreja. Sendo por isso apenas observável pelo exterior, esta porta dos mortos apresenta a largura de três Pés de rei e meio. A sua altura exige contudo alguma reflexão: apresentando actualmente aproximadamente seis Pés de rei de altura, esta não deve corresponder à sua altura original, dado a cota exterior actual do terreno ter sido ligeiramente alteada pela colocação de um empedrado pela Direcção geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, posteriormente mantida aquando da sua substituição por paralelos, já pelo Instituto Português do Património Arquitectónico em 1998. Se considerarmos a cota de circulação interna da igreja, sobretudo retirando os aproximadamente dez centímetros provavelmente acrescentados na colocação do actual lajeado, sugere-se-nos que a altura original desta porta dos mortos se faria pelos sete Pés de rei. Por sua vez, a proximidade deste valor ao
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módulo de oito Pés de rei que esteve por base na concepção da igreja, obriganos ainda a colocar a hipótese de que esta medida padrão poderia ser naturalmente a procurada, obrigando no entanto neste caso ao rebaixamento da soleira da porta em relação à cota interior da igreja!
2.7.7. O cemitério Sendo o espaço cemiterial a Sul da igreja de uso exclusivo da comunidade monástica, o privilégio de muitos doadores se fazerem enterrar no mosteiro far-se-ia em áreas como as galerias do claustro e o nartex. Dada a acentuada pendente do terreno no sentido do cruzamento das linhas de água sobranceiras ao mosteiro, o enterramento dos monges nesta área submeterse-ia à contingência de se adaptar a esta desconfortável situação, pelo que talvez por isso viemos a detectar, numa sondagem realizada no interior da sacristia barroca, um segundo espaço de enterramentos medieval a Norte da capela-mor. À parte esta possível explicação para uma segunda área de enterramentos, fugindo à organização bernardina, a detecção destes enterramentos, estendendo-se mesmo para trás da capela-mor, coloca-nos a interessante questão de tal prática vir contra o preceito geral de se fazer enterrar o corpo de pés para oriente e em área frontal ao altar. Sem que possamos avançar com uma explicação fundamentada, sugere-se-nos a hipótese de estarmos perante um acto simbólico de abnegação por parte dos religiosos que aqui se fizeram enterrar (?).
2.7.8. A capela-mor Ainda que a capela-mor se estenda para além desta área de enterramento, o seu cumprimento actual deve-se ao acrescento que sofreu pela mesma altura da construção da sacristia barroca. Sem que as escavações arqueológicas nos tenham fornecido novos dados, a leitura de paramentos é suficiente para se concluir esta remodelação, incompatível com o modelo medieval. A configuração quadrangular da capela-mor original é-nos imposta pela obrigatória consonância com as capelas laterais, de planta recta (Macedo 2000, 309-342). Já a sua profundidade é-nos apenas sugerida aritmológicamente, com uns muito prováveis três módulos de oito Pés de rei a partir do transepto (Jorge 1997, 455), resultando em aproximadamente metade do comprimento actual.
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Já descrito o sistema de iluminação do transepto, avançamos para a iluminação da capela-mor sabendo que a solução encontrada em vários mosteiros cistercienses, como Fontenay, de abrir várias janelas no pano resultante da diferença de altura entre a abóbada do corpo da igreja e a da capela-mor, não se aplicou no Mosteiro de S. João de Tarouca, dado essa diferença ser aí reduzida. Dada a total eliminação do alçado Este da capela-mor no século XVIII, não possuímos hoje quaisquer dados concretos sobre os vãos que, certamente, se abririam a iluminar o altar. Procurando a solução nos paralelos existentes, não fugiríamos muito à proposta já avançada por Virgolino Jorge (Jorge 1997, 444), ainda que tenhamos que ter em conta a multiplicidade de soluções conhecidas.
2.7.9. As capelas laterais Virando a nossa atenção para as capelas laterais, é possível constatar nos registos gráficos da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, prévios à sua intervenção nestes dois volumes, que no século XVIII, com a construção da nova sacristia, a capela lateral Norte foi reduzida em profundidade, permanecendo apenas a área suficiente para a justaposição de um altar com retábulo de talha dourada dedicado a S. Bento. Por motivos de simetria exterior, a mesma redução foi imposta à capela lateral Sul, recebendo por sua vez um altar com retábulo de talha dourada dedicado a S. Bernardo. Seguindo o princípio de reposição da configuração medieval, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais reconstruiu a capela lateral Sul e recuperou parcialmente a profundidade da capela lateral Norte, limitada pela presença do edifício da sacristia barroca. Se por isso nesta não foi possível repor a janela que certamente possuía na sua forma original, na capela lateral Sul esta janela foi reconstituída, servindo-lhe de modelo as janelas laterais do corpo da igreja. Sem possuirmos outros dados, não encontramos razões para suspeitar que esta opção se encontre longe da verdade (Fig. 11).
Agradecimentos Gostaríamos de agradecer ao Dr. Rui Maneira Cunha o precioso apoio prestado na área da análise aritmológica. À Dra. Catarina Madureira Villamariz agradece-se a disponibilização dos registos fotográficos do mosteiro de Fontenay, a Maria Luísa Salgado Ferreira o acesso ao acervo fotográfico de Marçal
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Brandão, e a Joaquim Cabral, da casa de fotografia Kimagem, a reprodução de parte dos registos fotográficos do princípio de século XX, sem os quais o trabalho realizado não teria sido possível.
Fig. 11 – Proposta de reconstituição da ala dos monges do Mosteiro de S. João de Tarouca. © Ilustração de Hugo Pereira, Cristina Guimarães e Luís Sebastian
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ENTREVISTA/ CONVERSA com José Simões Belmont Pessôa Conduzida por Renata Molder Araujo*
Arquitecto José Simões Belmont Pessôa
O arquitecto José Simões de Belmont Pessôa é especialista em restauração e conservação de monumentos e sítios, pela Universidade Federal da Bahia/Unesco, e Doutor em Planeamento Urbano e Regional, pelo Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza. Trabalhou no Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional do Brasil de 1980 a 2002, nomeadamente na área de estudos para classificação dos monumentos brasileiros. Participou da equipe que elaborou o dossier de Diamantina para a Unesco e a candidatura * Professora Auxiliar, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, Portugal
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do Rio de Janeiro. Foi também Superintendente Regional do IPHAN no Rio de Janeiro e Espírito Santo, 1998/2001. Desde 2002 é professor na Escola de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. A questão em causa, e sobre a qual vamos conversar, são as cidades brasileiras património da Humanidade. Antes de começar: O que pensas do conceito de “património da Humanidade”? Em que medida ele é eficiente? A sua identificação com sítios urbanos será mais ou menos interessante que com monumentos isolados? Será uma nova lista das maravilhas do mundo?
Imagino que a idéia surgida na década de 1970 tivesse como objectivo apoiar a luta pela preservação dos diversos patrimónios nacionais ameaçados. Se olharmos para os primeiros eleitos nesta categoria encontraremos uma maioria de países do terceiro mundo, provavelmente com grandes problemas de legitimação interna na conservação do próprio património. O curioso disto tudo para mim é a coincidência com a globalização. Não é gratuita a associação que fazes com a lista das maravilhas do mundo, que por sinal terão o seu resultado sabido nos próximos dias em Portugal.Tudo acaba funcionando de modo meio mediático. E no final de contas a lista do Património da Humanidade vira mais um instrumento da espetacularização das nossas cidades. A eficiência dele é muito relativa, na medida em que no fundo é um título meramente simbólico. É sabido que os bens Património da Humanidade no Afeganistão e no Iraque foram depredados do mesmo modo. Por outro lado a visibilidade que o título oferece serve um pouco como inibidor das ações de depredação deste património em situações normais. Afinal a única sanção que a Unesco pode concretizar, isto é, a perda do título, acaba se afigurando como uma enorme vergonha que penso nenhum país quer sofrer. Quanto a identificação com os sítios urbanos acho que houve uma coincidência temporal entre o surgimento da ideia de Património da Humanidade e a valorização do Património Urbano como objecto em si de preservação. Isto, mais que uma escolha, foi o reconhecimento da demanda pela preservação de sítios urbanos que se difundiu um pouco em todos os cantos, pelo menos na perspectiva de quem trabalhava na área. Isto acabou por confluir numa grande quantidade de cidades, ou centros históricos, candidatos a Património da Humanidade. No Brasil, e tendo em conta os sítios urbanos, as escolhas da UNESCO recaem, maioritariamente, sobre exemplos fundados no período colonial (salvo Brasília, o que é interessante e já chegaremos).
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Para uma nação tão recente parece óbvio que se reivindique a categoria de “património” para o que ela tem de mais antigo, o que a identifica com o seu passado e com a sua herança, logo o seu património. Mas é interessante que, aparentemente, tenha ficado elidido na discussão e classificação internacional o facto de estes núcleos urbanos poderem ser legitimamente lidos como cidades de origem portuguesa, que o foram até a independência do Brasil. O que eu coloco não é a afirmação de qualquer identidade em si (portuguesa ou brasileira) que a priori devesse ser feita para os núcleos em causa (essa é uma outra questão), mas o facto de se classificar no fundo a obra da colonização, sem a referir sequer. Ou seja, é como se a UNESCO caucionasse o discurso identitário brasileiro que “deglute” (ou melhor que canibaliza) o período colonial, transformando em Brasil o que antecede o próprio Brasil. Mas a questão é: estariam os membros da UNESCO inocentes ou ainda mais “mal intencionados” (salvo seja)? Caucionava-se o Brasil e o seu passado, ou se caucionava efectivamente a obra europeia de colonização dos trópicos e a grande expansão do ocidente? O que é lido como “Património da Humanidade”, a síntese operada no novo mundo ou a projecção do velho?
As politicas de preservação no Brasil foram executadas até aos anos 1970 com a ideia de que os testemunhos da identidade brasileira seriam o passado colonial e o presente moderno, isto implicou de imediato no desinteresse pela conservação da arquitectura de final do século XIX e inícios do XX. Os bens brasileiros Património da Humanidade acabam por reflectir esta visão inicial. Entretanto, parece-me complicado tentar fazer leituras do que a Unesco gostaria ou não de caucionar. No caso é necessário vermos como estas candidaturas são encaminhadas. O que de facto foi aprovado, é o que foi encaminhado em cada caso. Nesse sentido é bem interessante fazermos uma breve análise das Cidades Brasileiras Património da Humanidade. O Brasil cedo empenha-se no encaminhamento de candidaturas. As primeiras nomeações de Bens Património da Humanidade vão ocorrer em 1978, cabe chamar atenção para a presença de centros históricos nesta lista inicial (Quito no Equador, Cracóvia na Polónia, ). Dois anos depois já teremos a primeira cidade de fundação portuguesa, Ouro Preto. É sempre a Ouro Preto símbolo da identidade brasileira, que o modernismo exaltava desde a década de 1920. Ouro Preto como principal cidade da região setecentista do ouro nas Minas Gerais foi o centro da chamada Inconfidência Mineira, a revolta contra o fisco real, que será lida a partir do século XIX como o momento do nascimento da brasilidade e do sentimento de independência. Em paralelo ao reconhecimento destes movimentos sociais do setecentismo mineiro, a arquitectura produzida na região das Minas, e em especial em Ouro Preto, era vista pelos
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estudiosos brasileiros como a materialização de uma autonomia plástica em relação a arquitectura reinol, como também àquela produzida no litoral brasileiro. Então toda a candidatura de Ouro Preto foi construída em torno da ideia de excepcionalidade daquele conjunto urbano, e da autonomia artística que resultou da referida síntese operada no Novo Mundo. Nas outras cidades o discurso incorpora a obra da colonização. Na candidatura de Olinda (1982) é exigida a vinculação a outros testemunhos das expansões portuguesas e espanholas. Salvador (1985) traz o discurso da síntese cultural (ameríndios, africanos e europeus) associada ao tema da descoberta do universo no renascimento. São Luís (1997), Diamantina (1999) e Goiás (2001) são propostas como adaptações de modelos europeus ao continente americano e portanto obras singulares. Brasília (1987), e não a toa, é o único exemplo que repete a ideia de Ouro Preto, uma candidatura como obra prima do génio criativo humano. A distinção entre as duas candidaturas, Ouro Preto e Brasília, também é curiosa. Ambas se candidatam em 2 quesitos, o primeiro já referido, e o segundo – no caso de Ouro Preto ser testemunho de uma civilização não mais existente, no caso de Brasília ser testemunho de um determinado estágio da história. A ideia dos modernistas brasileiros do passado barroco como algo que não pertence mais ao nosso quotidiano continuou viva nas candidaturas para a UNESCO. Curioso é que o critério de ser um testemunho de uma civilização não mais existente, deve ter sido criado para abranger as obras da antiguidade (egípcios, caldeus, romanos), ou da América Pré-Colombiana (maias, incas), entre outros. Que os brasileiros proponham isto para o seu passado colonial, e que assim seja aceito pela UNESCO, me deixa muito intrigado. A pergunta anterior pode ser uma polémica meio estéril. Acho que o que me preocupa mais é no fundo a questão identitária em si. Com o que o Brasil se identifica, quer do ponto de vista externo, quer interno. Como o “mundo” vê o Brasil (e neste sentido a classificação da UNESCO é uma visão do mundo) e como o Brasil se vê a si próprio. A pergunta então é: O Brasil é reconhecido e se reconhece nestas “Cidades Património da Humanidade”?
Acredito que sim, pelo menos no que diz respeito a segunda parte. Inegavelmente as Cidades Património da Humanidade são um sucesso de marketing. Os primeiros reconhecimentos geraram uma febre nos centros históricos brasileiros que passaram a querer pleitear candidaturas próprias. Penso que o processo de ocupação do território brasileiro e as cidades que
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identificariam este processo, não estão inteiramente representados na actual lista. Estamos ainda na velha ideia de uma identidade construída entre o modernismo e a arte colonial. De outra parte porém a actual lista não é também tão canónica do que eu disse. Temos Goiás, um centro histórico que só foi reconhecido como tal pelo IPHAN muito tardiamente, e que se caracteriza pela absoluta simplicidade do seu conjunto edificado. Apesar disto e por isso mesmo, reconhecido como Património da Humanidade. Quanto ao reconhecimento interno destas cidades creio que temos muito que falar. Como vês o papel incontestavelmente pioneiro do IPHAN neste processo? Como e quando as cidades surgem no discurso do IPHAN? Como é a sua actuação? É justa a acusação de que o IPHAN preocupou-se sempre muito mais com os monumentos isolados do que com os conjuntos urbanos?
Entendo que o IPHAN teve um papel pioneiro e bastante vanguardista na preservação de sítios urbanos. Desde o início da sua acção na década de 1930, foram classificados sítios urbanos – Ouro Preto e outras seis cidades mineiras. Portanto as cidades surgem no início da actuação do IPHAN. Existe uma tendência hoje, no Brasil, de analisar esta primeira acção de classificação de sítios urbanos como consequência da vontade de garantir a preservação do contexto das edificações monumentais (igrejas, casas de câmara e cadeia, residências nobres). A cidade não teria sido preservada por um valor intrínseco a ela e sim por reunir um grande número de edificações monumentais. Discordo dessa posição. Primeiro por que mesmo que fosse verdade, ela em si já trazia uma total novidade, isto é, de considerar a arquitectura menor como elemento fundamental para a ambiência dos monumentos. Algo ainda impensado naquele momento (década de 1930), ou pensado por muito poucos, como Giovanonni na Itália. Segundo por que toda a actuação de conservação nos centros históricos classificados sempre incluiu as edificações mais populares, tratadas como um valor em si e não meramente como ambiente para um monumento próximo. Quanto a última questão acho que ela deve ser repensado dentro do contexto histórico. Antes da década de 1960, o mundo inteiro só pensava na preservação dos monumentos isolados, neste sentido o IPHAN foi bastante pioneiro tendo já no início daqueles anos, 13 cidades classificadas.Talvez tenha sido muito pouco para o acervo urbano do Brasil, certamente foi muito para a época.
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O processo brasileiro é efectivamente ímpar e comporta uma série de dialécticas muito significativas. A primeira dialéctica é o grande dilema da contemporaneidade entre a renovação e a preservação que o Brasil vive com grande intensidade. E é a geração que prega o moderno que quer salvaguardar o “antigo”. Este aspecto é fundamental. Mas como este dilema se resolveu na prática? Como crês que a cultura urbana brasileira absorveu o discurso do património? Estará interiorizada a ideia de preservação de conjuntos, ou no fundo apenas se pensa em salvar o inevitável (as igrejas, os fortes, os grandes edifícios) e o resto pensa-se geralmente que se pode (e deve) transformar a bem das exigências actuais?
A tua pergunta me suscita duas questões. A primeira é de como a geração que propunha a revolução modernista resolveu salvaguardar o antigo. Um parêntesis necessário é o de explicar que no Brasil os funcionários do IPHAN eram todos membros das vanguardas arquitectónicas e literárias. Os modernistas brasileiros tomaram de assalto a preservação do passado para construir o álibi do próprio projecto de futuro da nação. Neste sentido a classificação de sítios urbanos será sempre, nos primeiros tempos, daquelas pequenas cidades que estavam fora dos grandes eixos de desenvolvimento do País. Exemplar disto é Salvador, um dos centros históricos mais expressivos do País, e que só será classificado como conjunto urbano em 1959, isto é, 22 anos depois da criação do IPHAN. O problema de Salvador não era o reconhecimento de valor do seu conjunto urbano e sim, que, por se tratar de uma capital, era vista como lugar do desenvolvimento, da construção Brasil moderno, e portanto não cabia a preservação extensiva do seu conjunto urbano, só a preservação de monumentos isolados. A partir da década de 1960, o IPHAN muda a posição inicial e passa gradativamente a contemplar a classificação de áreas urbanas em grandes centros (Salvador, Belém, São Luís, Recife) e incluir também como objecto de preservação alguns sítios urbanos representativos do final do século XIX e início do XX (Petrópolis, Rio de Janeiro). A segunda questão que considero importantíssima é como a cultura urbana brasileira absorveu o discurso da preservação. Penso, e não quero fazer apologia do melhor dos mundos, que hoje a ideia de preservação está difundida na cultura urbana brasileira, ou pelo menos em uma parte muito actuante dela. Porém quem hoje está na vanguarda da preservação no Brasil são os diversos Patrimónios Municipais. De facto, a cultura urbana brasileira, ou parte dela, absorveu o discurso do património e temos assistido a um multiplicar-se de acções de preservação nos grandes e nos médios centros (inclusive em alguns casos em pequenos centros também). Nunca se preservou tanto como
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nos últimos anos. E o mais interessante é que o discurso vai além do possível valor artístico dos conjuntos urbanos. A questão agora é do ambiente construído. Um exemplo disto são as áreas de protecção do ambiente cultural do Rio de Janeiro (APACs). O que está em jogo nesta acção municipal não é o valor arquitectónico dos edifícios e sim o valor deles para garantir uma determinada qualidade de vida. Estas acções assumem, no meu entender, a preservação no seu real papel, isto é, como um instrumento de planeamento urbanístico. Uma parte dos planeadores cariocas criticam as APACs por serem acções da área de património e não do planeamento. Ora, o que eles teimam em não querer entender é que a acção do património é uma acção de gestão urbanística. Outra dialéctica de base é esse pensamento moderno da 1º geração do IPHAN versus a circunstância politica da ditadura ou como se manteve razoavelmente “independente” em meio aos discursos nacionalistas do Estado Novo, assim o grande equilibrismo não terá sido tanto em relação a visão da herança colonial mas à idealização do presente que então se vivia. Mas a pergunta era: Achas que O IPHAN tinha alguma visão ideologizada do Brasil? Ou o IPHAN, como queriam Mário e Rodrigo, foi descobrindo o Brasil?
Acho que o IPHAN foi descobrindo o Brasil, a partir de uma hipótese de uma identidade única, aquela que unia o modernismo ao passado colonial. Se considerarmos que isto é verdade foi uma grande descoberta, caso contrário, serviu para deixar em segunda plano a diversidade cultural do país. Outra dialéctica directamente relacionada com a questão urbana é a eventual não ideologização, mas talvez “idealização” das vilas do interior versus o efectivo “desleixo” em termos de identificação do património urbano das cidades do litoral. Concordas com a visão que apresento no texto? Terão os modernos saudosamente (ou ingenuamente, ou espertamente) “romantizado” um passado rural para se contrapor ao frenesim urbano da sua própria cultura? Se é assim é interessante que tenham eleito “as vilas do interior” que é rural mas é o “urbano do rural”, se assim se pode dizer. Como se fossem a infância, milagrosamente preservada, das cidades modernas e em constante mutação em que eles viviam e em que nós continuamos a viver. E ao olhar para estas “vilas do passado”, o que se via? Projectava-se um imaginário colonial para um cenário do império (a arquitectura de quase todos os casos classificados é, na sua maioria, do século XIX). Terá sido assim ou estou exagerando?
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Não acho que a classificação de Ouro Preto e das outras cidades significasse tão somente a preservação de um passado rural. O texto, genial de Sérgio Buarque de Holanda sobre as cidades brasileiras não era considerado um consenso. Haja visto as posições em contrário de Paulo Santos (conselheiro do IPHAN, dos anos 1940 aos 1970) nos seus diversos textos. Acho que o passado foi sempre visto como um álibi para o futuro modernista – a “verdade” da arquitectura colonial a justificar a arquitectura modernista em contraponto a “falsidade” do ecletismo. É curioso que boa parte daquilo que se preservava como colonial, no caso dos sítios urbanos, era arquitectura do século XIX, mas que de todos modos tinha uma imagem muito próxima da arquitectura colonial. Penso que não havia uma negação do império brasileiro, que inclusive fazia parte desta identidade projectada pelos modernistas. O que se queria negar era a arquitectura eclética. Essa foi em grande parte banida dos centros históricos “coloniais”, através de operações de “restauração” que deram aos prédios aspecto colonial. Retomando o elo com o urbanismo português. O que tu achas que foi mudando entre a geração que via “desleixo” e “desordem” na urbanização do Brasil colonial e a de hoje? O que mudou? Queremos de facto saber mais? E já sabemos?
Não sei se sabemos mais. O importante hoje é que nos permitimos a dúvida com relação a estes esquemas pré-estabelecidos. Acho que nos últimos anos se avançou nos estudos relativos a compreender a diversidade de situações do urbanismo dos séculos XVII e XVIII. Por outro lado o século XIX continua uma incógnita. Penso que a questão do desleixo e da desordem está superada e o discurso de um urbanismo regulado contrapõem-se hoje, à ideia de desleixo. Acho que temos muito mais a saber e a descobrir. Muito foi feito em torno das comemorações dos descobrimentos, mas os estudos sobre o urbanismo dos primeiros séculos no Brasil ainda estão nos seus primeiros passos. No fundo ainda persiste nos meios académicos brasileiros a ideia de considerar o início do planeamento urbano no Brasil no final do século XIX com a construção de Belo Horizonte. Este, séculos XIX e XX, acaba sendo o período de maior interesse dos estudiosos do assunto, e o objecto da maioria das teses. O panorama porém, começa lentamente a mudar. Na época do meu doutoramento na Itália organizei junto com o meu orientador, um Atlas de Centros Históricos Brasileiros, envolvendo pesquisadores de todos os cantos
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do Brasil, na maioria ligados à actividade de preservação, e que finalmente será publicado este ano. Espero que contribua para despertar o interesse de novos pesquisadores, e principalmente ajudar a associar o conhecimento histórico à acção de preservação. O pouco conhecimento da história dos nossos sítios urbanos e da lógica geradora daqueles espaços tem levado via de regra a uma intervenção de preservação excessivamente cenográfica. Meu interesse pela história urbana é exactamente derivado da minha actuação na preservação de sítios urbanos. Sempre me pareceu que a resposta para muitas dúvidas na classificação e na gestão de conservação dos sítios urbanos poderia ser achada através de um conhecimento mais aprofundado da história. Conhecimentos que começam a ser desenvolvidos como a caracterização dos padrões de lotes urbanos coloniais, estudos rigorosos da evolução da forma urbana tem vindo a modificar a actuação conservativa nos nossos centros históricos, direccionando para uma perspectiva mais urbanística. Um dos grandes problemas na classificação de áreas urbanas no Brasil era o da sua delimitação. As cidades mineiras inicialmente classificadas, não haviam sido delimitadas quando da sua classificação. Isto somado ao carácter aberto e bastante disperso da ocupação da cidade americana, principalmente dos centros menores, gerou uma série de impasses na definição da área sob tutela do IPHAN, principalmente naqueles centros que voltaram a viver surtos de desenvolvimento e portanto de expansão de suas áreas urbanas. Os estudos de história urbana tem sido um instrumento importante na solução destes problemas. Com esta viagem, aqui em Portugal, o que vês tu, em relação ao urbanismo realizado no Brasil? Mais identidades, ou menos?
Na realidade o intuito da viagem foi o de reconhecer a experiência portuguesa na conservação dos centros históricos. Pensando em um património comum, isto é, o universo urbanístico português, e como este é tratado nos dois lados da Atlântico. No Brasil o IPHAN tem um longo percurso de actuação na cidade histórica. A experiência portuguesa foi mais concentrada no monumento. A legislação portuguesa também permite situações, como declarar non-aedificanti trechos de áreas envoltórias dos monumentos, que não ocorrem no Brasil. Pela nossa legislação só podemos vincular como nonaedificanti os terrenos privados, se estes forem desapropriados pelo Estado. A sensação de comparar as duas situações é de que no Brasil o Estado é mais
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questionado em suas acções de preservação. O que estranhamente acaba por ter um aspecto positivo, na medida que exige dos técnicos uma fundamentação maior e uma selecção mais rigorosa do que deve ser classificado, e dos limites das áreas envoltórias dos monumentos. Um aspecto que me chamou a atenção é a ideia difusa em Portugal de se privilegiar a requalificação do espaço urbano como alavanca da reabilitação dos centros históricos. As áreas públicas dos centros históricos portugueses são via de regra muito desenhadas pelos arquitectos. No Brasil inversamente pouca atenção se dá ao projecto do espaço público dos centros históricos. São Luís e Salvador são cidades em que este aspecto foi muito levado em consideração nas estratégias de reabilitação, mas em ambos com resultados bastante modestos. Nos centros menores,Tiradentes, em Minas Gerais, é o único caso que conheço, tendo sido uma experiência muito bem sucedida mas infelizmente isolada. Um problema que precisa ser reconsiderado é a tendência a negar a arborização oitocentista e novecentista dos centros históricos. Isto é muito forte em Portugal, e também tem sido uma tendência no Brasil (principalmente nos grandes centros). Quanto às identidades, este é um problema que me fascina. As semelhanças são enormes, mas há porém uma singularidade que me remete sempre a viagem que Lúcio Costa fez a Portugal em 1948, comissionado pelo IPHAN para identificar as matrizes da arquitectura e do urbanismo colonial brasileiros. As matrizes não foram identificadas diante da constatação, presente num relatório que está publicado no livro autobiográfico de Lúcio Costa, de que tratam-se de artes independentes, isto é, manifestações distintas, do universo cultural português dos séculos XVI a XIX. Da tua experiência no IPHAN como é, na prática, a vivência da preservação dos centros históricos no Brasil? Em especial nas grandes cidades? Quais são os grandes problemas?
O quotidiano da preservação nos centros históricos brasileiros enfrenta dois grandes inimigos. O primeiro é o individualismo muito arraigado na sociedade brasileira que se opõe a acção de preservação, esta fortemente socializante. A maioria da população dos centros históricos coloniais classificados reconhece hoje essa classificação como um valor, inclusive económico. Estes porém mudam de opinião quando se trata dos seus próprios imóveis. Para eles é muito impor-
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tante a cidade ser património nacional ou mundial, mas as próprias casas não tem valor nenhum podendo ser modificadas à vontade. Participei na época em que era funcionário do IPHAN de duas reuniões em centros históricos classificados (Tiradentes em Minas Gerais e Cachoeira na Bahia) com as respectivas populações para discutir a acção de conservação. Em ambas fizeram-se enormes criticas à gestão de conservação, que impedia as transformações desejadas pelos moradores. Curiosamente quando levantávamos a hipótese de acabar com a classificação para que todos pudessem fazer o que quisessem com as próprias moradias, os mesmos imediatamente diziam que não, que não era isso que queriam, que sentiam muito orgulho das suas cidades serem centros históricos tutelados. O segundo diz respeito a um problema geral do planeamento urbanístico brasileiro. Como gerir a preservação num contexto social de diferenças absurdas? Como falar em preservação da arquitectura para populações que tem dificuldade de garantir a sua sobrevivência quotidiana? Como garantir a ambiência de monumentos onde impera a construção informal? Nos grandes centros há de um lado a pressão do capital imobiliário pela renovação das áreas antigas e em contrapartida uma difusa demanda pela preservação. Desde o final dos anos 1970 que as populações dos grandes centros urbanos tem se movimentado pela preservação dos mais variados testemunhos arquitectónicos. As associações de moradores tem tido um papel fundamental neste processo, cobrando do Estado um maior empenho na preservação das áreas urbanas antigas. Recentemente no Rio de Janeiro, foi o movimento dos moradores que impediu a descaracterização do classificado Parque do Flamengo, por conta da implantação de equipamentos destinados a abrigar actividades dos Jogos Pan-Americanos. Voltando ao tema inicial: em que medida o “selo” da UNESCO ajuda a preservação, ou traz mais problemas (turismo, por exemplo)? O que achas dos vários pedidos de classificação que continuam a ser feitos?
Na minha opinião, o selo ajuda a preservação. Não tanto pelo selo em si mas principalmente pelo processo da candidatura, que tem sido exigido para sua aprovação, o envolvimento dos moradores destas cidades. Isto tem permitido em alguns casos um clima muito propício de colaboração entre IPHAN e as populações afectadas pela classificação. Goiás é o melhor exemplo brasileiro
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neste sentido. Há também o factor da auto-estima a ser ponderado. Quanto ao turismo não conheço estudos que avaliem se houve uma mudança substancial desta actividade nas cidades que se tornaram património da humanidade. Naquelas em que isto sabidamente mudou, como no Centro Histórico de Salvador em que a reabilitação vocacionou a área de modo monofuncional para o turismo, não podemos relacionar isto com o facto da cidade ter-se tornado património da humanidade. O problema disto tudo é que não podemos candidatar para Unesco o inteiro património classificado brasileiro. O que é necessário é a valorização da acção federal, estadual e municipal na conservação deste património. O Brasil nunca estabeleceu uma política clara em relação ao que deveria ser encaminhado a Unesco. A maior parte dos casos foi resultado de iniciativas localizadas. Talvez isto explique um pouco a preponderância das cidades nos bens encaminhados a Unesco, são mais fáceis de atrair um maior envolvimento político nas respectivas candidaturas. Hoje são 17 bens no Brasil considerados Património da Humanidade: 9 culturais e 8 naturais. Dos nove culturais só dois não são cidades, O santuário de Congonhas do Campo e os Sete Povos das Missões. Estes na realidade são as excepções que confirmam a regra, notadamente pela forte valência urbana implícita em ambos: O santuário é um pedaço fundamental da cidade de Congonhas e as ruínas das Missões tem muito do seu valor ligado às cidades que um dia já foram. Existem candidaturas de monumentos isolados no Brasil: o Mosteiro de São Bento e o prédio do antigo Ministério da Educação e Cultura, ambos no Rio de Janeiro; os prédios desenhados por Óscar Niemeyer no Bairro da Pampulha em Belo Horizonte; e um conjunto de conventos franciscanos em várias cidades do Nordeste do País. Nelas continua a ideia da excepcionalidade do barroco (mosteiro e conventos) e do modernismo brasileiro (Ministério e prédios na Pampulha). Além destas existem duas outras candidaturas envolvendo cidades ou parte delas: Parati e a Paisagem cultural do Rio de Janeiro. Parati vive o problema de demonstrar qual o sentido que teria se classificar mais um centro histórico colonial brasileiro. O Rio de Janeiro, que tem uma paisagem sem sombra de dúvidas excepcional, vem fazendo tentando rediscutir o conceito de paisagem cultural, no âmbito do território americano.
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Palavras-chave: Mazagão; castelo; fortaleza; vila; património Key words: Mazagão; castle; fortress; village; heritage
RESUMO ABSTRACT Unesco’s declaration of Mazagan as World Heritage underscores its importance as pioneering evidence of modern fortification in the African continent.The present-day neighbourhood of Cité Portugaise in El Jadida has an architectural and urban Portuguese history, which began with the construction of the 1514 manuelin castle and that would last for over two and a half centuries. However, it was the construction of a new fortified and bastioned fortress, including a city inside, designed in 1541 by a team of architects and engineers, that would crystallize the image of Mazagan as an impenetrable stronghold and that would preserve the Portuguese layer in the Moroccan city.
A classificação da UNESCO veio reforçar a importância de Mazagão como figura pioneira da fortificação moderna no continente africano. O actual bairro da Cité Portugaise em El Jadida encerra em si uma história portuguesa, construída e urbana, que debutou com o levantamento de um castelo manuelino em 1514 e se prolongaria por mais de dois séculos e meio. Porém, foi o investimento numa nova praça fortificada e abaluartada, com desenho regulado de vila no seu interior, conduzido por uma junta de arquitectos e engenheiros em 1541, que cristalizaria a imagem de Mazagão como baluarte inexpugnável no Norte de África e preservaria o estrato formal português na actual cidade marroquina.
MAZAGÃO: A última praça Portuguesa no Norte de África Jorge Correia*
Enquadramento histórico A presença portuguesa no Norte de África perdurou durante mais de três séculos e meio, debutando com a conquista de Ceuta em 1415 e terminando com a evacuação de Mazagão na segunda metade do século XVIII. Ceuta assinala o prolongamento da Reconquista Cristã do outro lado do Estreito e o início de 354 anos de presença portuguesa no Norte de África. Nunca conseguindo implementar um verdadeiro Algarve de Além-Mar, o domínio português no Norte de África pontuaria a costa com possessões isoladas, cuja influência para o interior dependia de acordos estabelecidos com os reinos de Fez ou de Marrocos (Fig. 1). Podemos falar de dois tipos de aproximação ao território magrebino. A conquista foi, sem dúvida, o processo que maiores benefícios trouxe a Portugal, não só pelo fornecimento de um tecido urbano e comercial estabelecido, como pela duração média da soberania portuguesa alcançada nestas praças: Ceuta (1415-1640), Alcácer Ceguer (1458-1550), Tanger (1471-1661), Arzila (1471-1550)1, Azamor (1513-1541) e Safim (15081541). Apenas Anafé (actual Casablanca) resistiu aos assaltos de 1467 e 1487, sobretudo pela falta de capacidade militar de ocupação e subsistência. De Ceuta a Safim verificou-se uma redução da área intra-muros, mais vantajosa no que diz respeito à sua manutenção e abastecimento2. Através do redimensionamento dos perímetros amuralhados e subsequente reordenação do espaço urbano, estamos perante um esforço progressivo e empírico de concepção de cidade. Este aspecto veio dar origem a um dos princípios mais importantes de * Professor Auxiliar, Departamento Autónomo de Arquitectura da Universidade do Minho, Portugal. Investigador do Centro de História Além-Mar (CHAM). jorge.correia@arquitectura.uminho.pt 1 Arzila voltaria a ser portuguesa entre 1578 e 1589. 2 Com excepção de Alcácer Ceguer, onde a mancha urbana, apesar de profundamente alterada, terá permanecido aquando da passagem para domínio cristão.
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Fig. 1 – Distribuição das conquistas, das fundações e dos pontos de contacto portugueses no Norte de África © Ilustração do autor
actuação na malha islâmica herdada e nos recintos fortificados encontrados pelos portugueses – o atalho – ou seja, a redução das superfícies urbanas e dos perímetros amuralhados ocupados com vista a uma melhor gestão da sua subsistência e defesa. Por outro lado, a fundação de novos pontos fortificados em locais geograficamente relevantes ou em povoados abandonados permitiu um efeito efémero de pulverização portuguesa na costa norte-africana, à excepção do reduto inexpugnável de Mazagão (1514-1769). Das tentativas falhadas de implantação de fortalezas na Graciosa (1489) e em Mámora (1515) às cons-
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truções de castelos em Santa Cruz do Cabo de Guer (1505-1541), em Mogador ou Castelo Real (1506-1510?), em Ben Mirao (1507?-1512?) e em Aguz (1520-1524?), a hostilidade das tribos da Duquela ou do Sus repelia o assentamento mais prolongado das posições portuguesas. Sem esquecermos, todavia, a autorização de feitorias em Safim desde 1488 ou em Meça (1497) ou ainda a vassalagem de Azamor à Coroa portuguesa desde 1486, é da diferença entre o lote das grandes conquistas descritas acima e a fundação de Mazagão que resultou a experiência portuguesa de cidade no Norte de África. 1769 marca o abandono da última praça portuguesa neste território. Esta data separa os dois grandes tempos de Mazagão: um anterior, iniciado com o estabelecimento português em 1514, e um posterior, relacionado com a progressiva integração das estruturas portuguesas numa cidade marroquina que actualmente se designa por El Jadida, a nova. O reconhecimento da excepcionalidade da herança portuguesa neste ponto da costa magrebina chegou em 2004, com a inscrição da “Cidade Portuguesa de Mazagão” na lista de Património Mundial da UNESCO.Tal classificação propõe uma revisitação da história construída e urbana desta antiga praça portuguesa ao mesmo tempo que lança o debate sobre a sua preservação e valorização. Se bem que a razão para o registo da cidadela portuguesa se centre no valor da fortificação e vila modernas para o seu argumento capital, a história da presença dos portugueses neste local é anterior e está bem documentada do ponto de vista físico.
O Castelo de Mazagão Nas próximas linhas tentaremos fornecer, resumidamente, a imagem embrionária daquela que viria a constituir a possessão portuguesa de duração mais prolongada no Norte de África e, como tal, o caso fundacional de maior sucesso. Em Mazagão, a história é o negativo da maioria das praças portuguesas da costa magrebina, tomando 1541 como mote de desenvolvimento e não como irremediável ou vergonhosa capitulação, como acontecera com a meridional Santa Cruz, actual Agadir. Aqui e agora importa reter os contornos mais relevantes da história das arquitecturas da primeira fundação portuguesa, no contexto das restantes empresas fundacionais que, entre 1505 e 1519, ensaiaram uma presença costeira mais disseminada no recorte marítimo dos então territórios de Marrocos e Sus.
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A presença dos portugueses neste local, conhecido pelas potencialidades defensivas da sua baía e pela presença dos cereais da Duquela, está documentada desde o último quartel do século XV3. Para trás, as hipóteses de ocupação deste ponto da costa até aos finais do século XV são vagas, mas a teoria em torno da existência de um pequeno povoado piscatório denominado Mazghan parece concorrer para a ideia de um lugar habitado antes da chegada dos portugueses. Velho topónimo berbere, surge citado como porto pelos geógrafos árabes4, constituindo, sem dúvida, a raiz da designação portuguesa de Mazagão. Não nos alongaremos muito sobre o imaginário lendário que descreve as acções edificadoras dos portugueses sobre o promontório rochoso da baía como resultado do acaso e da iniciativa particular de Jorge de Mello…5 De igual modo, perdura na incerteza o reconhecimento de Mazagãoo-Velho, muito embora um aglomerado indígena fosse uma realidade provável. Romanticamente, fiquemos com a herança toponímica de al Boraydja, uma atalaia pertencente a uma rede de postos de vigia costeiros, ainda hoje identificada com a Torre da (Al)Boreja do castelejo português, e onde se incluía o ribat de Tite, actual Moulay Abdallah, mais para sul. Só em 1513, no seguimento da conquista da cidade vizinha de Azamor, se tomou a decisão da construção de uma fortificação, erguida por Diogo e Francisco de Arruda, no ano seguinte6: “(…) mando ter navios em Mazagam, honde he neçesario huua fortaleza mais que a vida pera este lugar, e tam grande que possam ençarrar nela dous ou três mil moyos de pãao, se conprir. Aja V. A. que he o melhor porto do mundo. (…)” escrevia o duque de Bragança na refrega da tomada de Azamor, pretendendo estabelecer em Mazagão um baluarte avançado da praça azamorense com capacidade de armazenamento no seu interior e para defesa das excelentes condições portuárias da baía7. A 3 Em 1499, o Papa Alexandre VI atribui à Diocese de Safim jurisdição sobre Mazagão, Azamor, Almedina, etc.. in Bulla de Alexandre VI, 17 de Junho de 1499 (IAN-TT, Bulas, maço 16, nº 21), in Alguns Documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo… 1892, 95. 4 Idrissi 1866, 84. 5 Para uma avaliação crítica sobre as origens de Mazagão, consultar o texto de Pierre de Cénival in Les Sources Inédites… I, 1934, 103-107. 6 Uma vez que a edificação do castelo manuelino em Mazagão aparece relativamente bem documentada e estudada, seguiremos a correspondência estabelecida com a coroa, entre 1513 e 1518. Destacamos, porém, o texto de Rafael Moreira sobre este tema em A Construção de Mazagão (Moreira 2001, 31-36). 7 Carta do Duque de Bragança a D. Manuel I, Azamor - 30 de Setembro de 1513 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 13, doc. 62) in Les Sources Inédites…, op. cit., 438-442.
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missiva do duque lançou a discussão em torno das opções de conteúdo e localização. Por um lado, opinava-se acerca da maior utilidade da construção de um castelo em Mazagão ou na barra do Oum er-Rbia, pois a cidade de Azamor situava-se umas milhas a montante do rio, enquanto outras vozes aplaudiam a criação de uma vila em Mazagão em detrimento da manutenção do centro urbano de Azamor8. D. Manuel I decidiu-se pela edificação de apenas um singelo castelo em Mazagão e de um atalho imposto à Azamor muçulmana para formar um castelo com vila. Rui Barreto, primeiro capitão de Azamor, ainda chega a questionar a vontade do monarca, defendendo que uma fortificação segura naquela vila, amparada por boa guarnição, chegaria para assegurar a primazia portuguesa sobre a costa até Safim9. Porém, a obra de Mazagão haveria de avançar assim que Azamor oferecesse condições de segurança suficientes para se bastar a si e à empreitada a iniciar-se três léguas para sul. Um magro mês bastou para que os mestres Diogo e Francisco de Arruda estabelecessem o calendário e um caderno de encargos básico para os trabalhos de Mazagão. Para o Verão, os dois irmãos solicitavam madeira, cal, tijolo, transporte de materiais desde Azamor e protecção permanente até ao término da empreitada10. O edifício era composto por uma planta quadrangular com cortinas a unir os quatro baluartes cilíndricos – Boreja, Cadeia, Rebate e Cegonha (Fig. 2). Excluindo os torreões que intersectam a quadra nos ângulos, o castelo insere-se num quadrado de sensivelmente dezoito braças de lado pelo exterior. Ainda hoje é possível extrair o castelo original das dependências que o foram preenchendo ao longo das décadas seguintes, sobretudo após a grande remodelação de 1541 (Fig. 3). Os quatro grossos muros eram ameados, tal como os torreões, e apenas perfurados pela entrada original junto à torre sudeste, voltada para Azamor, e cuja soleira se encontra hoje anormalmente situada acima da cota do chão da cisterna.Torre aquela que se destacava pelo coroamento semelhante aos dos baluartes de S. Cristóvão e do
8 Carta de Nuno Gato a D. Manuel I, Azamor - 5 de Dezembro de 1513 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 13, doc. 62), e Carta de João de Meneses a D. Manuel I, Azamor - 1-9 de Dezembro de 1513 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 14, doc. 4), in Idem, 453-456 e 459-467, respectivamente. 9 Carta de Rui Barreto a D. Manuel I, Azamor - 21 de Fevereiro de 1514 (IAN-TT, Cartas dos Governadores de África, nº 114) in Idem, 489-501. 10 Carta de Francisco e Diogo de Arruda a D. Manuel I, Azamor - 31 de Março de 1514 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 15, doc. 14) in Idem, 525-529.
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Fig. 2 – Interior do edifício do castelejo, com vestígios da Torre da Cegonha e da Torre do Rebate, actual minarete. © Fotografia do autor
1.Torre da Boreja 2.Torre da Cadeia 3.Torre do Rebate (actual minarete) 4.Torre da Cegonha
Fig. 3 – Planta dos vestígios do castelo português nas estruturas actuais. © Ilustração do autor
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Fig. 4 – Edifício do castelejo com Torre da Boreja. © Fotografia do autor
Raio, em Azamor, caracterizado pelo mesmo tipo de sacadas para tiro mergulhante. Presentemente, a sempre lendária Torre da Boreja é uma híbrida e recente estrutura de betão e tijolo, abrigando um pequeno posto policial (Fig. 4). Também comum a todos os baluartes era a sua distribuição vertical por dois pisos sob uma plataforma superior, munidos de bocas horizontais de bombardeiras para tiro radial. A matriz formal que presidiu à elaboração deste castelo pertence à família do castelo de base quadrada edificado pelos portugueses em Mogador e a edificar em Safim e Aguz. A conclusão do castelo parece ter sido bastante célere, a avaliar pelo envio de mobiliário, ornamentos, alfaias religiosas e paramentaria para a sua igreja em Agosto de 151411. Lenta foi a escavação do fosso que rodearia o castelo a uma profundidade de vinte palmos, todavia não terminado quatro anos mais tarde12. O preenchimento do interior deste quadrilátero, nos decénios 11 Alvará de D. Manuel I, Lisboa - 8-23 de Agosto de 1514 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 15, doc. 117) in Idem, 598-599. 12 Carta de António Leite a D. Manuel I, Mazagão - 22 de Julho de 1518 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 23, doc. 85) in Les Sources Inédites…, II, Première partie, 1939, 202-203.
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subsequentes, é discutível. Alguns indícios poderão apontar para um conjunto de obras, resposta às necessidades de um aglomerado espontâneo cada vez maior e que ultrapassariam as de mero reduto defensivo. Seriam estruturas de madeira que contornariam o perímetro intramuros para abrigo de cavalos e militares, numa primeira fase, mas que gradualmente foram recebendo funções relacionadas com a gestão de uma vila que começava a florescer nas imediações do castelo. Ainda o fosso não estava concluído e já algumas estacadas se levantavam como cercas de gado e vedações para pequenas hortas13. Foi o entusiasta bispo de Safim, D. João Subtil, quem primeiro adiantou a possibilidade de se fazer uma vila em Mazagão14. Corria o ano de 1520 e as condições favoráveis do hinterland de Mazagão concorriam para a fixação de habitantes à sombra do castelo. A visão estratégica do duque conquistador de Azamor colhia os seus frutos, beneficiando da generosidade da flora e fauna circundantes. Até 1537, aglomerou-se efectivamente uma vila junto do castelo, ano em que Manuel de Sande se identificava claramente como “capitão e governador d’esta vylla de Mazaguam”15. Designação que aparece reforçada pelos apelos do capitão, meses antes, a propósito da falta de provisões e recursos financeiros para a sua manutenção em bom estado de defesa - “(…) esta villa esta tam esquecyda de V. A. e faz-se tam pouco conta d’ela (…); pois também esta villa he de V. A. como Aazamor (…)” - lembrando que se contava “aqui mui pouca gemte, amtre moços e velhos e cleriguos e Judeus e todos os outros (…) que abaste para as vellas necesarrias a esta villa e fortaleza (…)”16. Conhecendo-se a fortaleza, resgatados que estão os vestígios do castelo levantado pelos irmãos Arruda em 1514, torna-se mais complicada a tarefa de reconstituição da vila portuguesa que se foi formando nos decénios seguintes. Uma análise atenta da estrutura urbana do actual mellah17 permite constatar uma maior irregularidade no traçado no sector noroeste, compre13 Idem. 14 Carta do Bispo de Safim a D. Manuel I, Santa Clara - 6 de Março de 1520 (IAN-TT, Cartas dos Governadores de África, nº 59) in Idem, 269-272. 15 Ordem de Manuel de Sande, Mazagão - Março de 1537 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 210, doc. 94) in Les Sources Inédites…, III, 1948, 88-89. 16 Carta de Manuel de Sande a D. João III, Mazagão - 21 de Setembro de 1536 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 57, doc. 107) in Idem, 59-64. 17 Após a evacuação portuguesa de 1769, Mazagão permaneceu arrasada e abandonada, tendo sido a comunidade judaica a primeira a reabitá-la, já no século XIX, daí a designação de mellah – bairro judeu – que permaneceu na tradição oral até aos nossos dias.
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endido entre o Baluarte de Santo António e o centro da Cité Portugaise, revelador de uma organicidade chocante com a ortogonalidade do restante sistema viário. Este aspecto aparece claramente documentado na cartografia setecentista, confirmando a possibilidade de uma persistência urbana nesta zona desde tempos manuelinos, caracterizada por um tecido de formação espontânea. Integrado no plano urbano de 1541, manteria as clivagens formais para uma nova concepção de fazer cidade. Nem a islamização que a partir do século XIX perverteu a regularidade da vila projectada e construída em meados de Quinhentos conseguiu mascarar este núcleo primitivo. Porém, é impossível estabelecer o perímetro da vila portuguesa de então. Foi essa vila e castelo que João de Castilho, com Duarte Coelho, foi inspeccionar em 1529, numa missão integrada de avaliação das praças portuguesas no Norte de África18. A iniciativa real desencadeou uma série de consultas às quais o Bispo de Lamego respondia, apontando a fortificação de Ceuta e Mazagão como a melhor opção para se resistir ao inimigo turco Barba Roxa, juntamente com a evacuação das restantes vilas e cidades meridionais Safim, Azamor e Santa Cruz19. Este seria o prenúncio da grande intervenção de remodelação operada em Mazagão, transformando-a numa vila-fortaleza segundo um projecto de ruptura epistemológica com a tradição arquitectónica, militar e urbana, até então trabalhadas pelos portugueses neste território. A queda de Santa Cruz em 1541 determinou o arranque da empresa que fez do fortim manuelino o epicentro de uma operação que permitiria manter Mazagão em mãos portuguesas até 1769, invertendo a sentença traçada para a maioria das possessões lusas desta costa.
A (re)fundação de Mazagão A fortaleza A ruptura formal com que, geralmente, se associa a experiência de Mazagão diz respeito à inauguração de um projecto de fortificação abaluartada, 18 Cf. Carta do Duque de Bragança a D. João III,Vila Viçosa - 12 de Fevereiro de 1529 - IAN-TT, Gaveta XVIII, maço 10, nº 10. 19 Resposta do Bispo de Lamego ao rei sobre a guerra de África, Lisboa - 7 de Outubro de 1534 (IANTT, Reforma das Gavetas, Gaveta II, maço 7, nº 4) in Les Sources Inédites…, II, Seconde Partie, 1946, 656-661.
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sendo este dispositivo – o baluarte20 – caracterizado por uma planta pentagonal ou “em cunha”. Constitui a inovação que haveria de remodelar os redutos defensivos das praças mantidas a norte, onde, respectivamente, em Ceuta e Tânger, os vestígios das frentes abaluartadas sobre o fosso marítimo ou em torno do Castelo Velho atestam uma praxis moderna das reformas nas duas décadas seguintes. A iniciativa foi gerida por uma junta de arquitectos encarregue de dotar Mazagão das novas concepções da arquitectura militar e da tratadística italiana, composta por Benedetto da Ravenna, Miguel de Arruda e Diogo de Torralva. Ao primeiro ficou-se a dever o projecto da nova praça-forte que João de Castilho, executor das obras, afirma pretender seguir fielmente, em carta enviada a D. João III a 15 de Dezembro de 154121. Se a Torralva coube o estudo do lugar22, foi Miguel de Arruda quem estabeleceu as principais pontes de diálogo na equipa, indo buscar Benedetto da Ravena a Espanha. De facto, Arruda encontrou-se com o seu congénere italiano no Porto de Santa Maria, munido das instruções e orientações reais para a missão, para daí seguirem rumo a Ceuta. Esta inspecção foi preparada para obter o máximo de eficácia possível. Assim, o pedido de D. João III ao cardeal de Toledo, ministro do Imperador Carlos V, para que conceda licença ao seu engenheiro de fortificações militares, Benedeto, no sentido de acompanhar Miguel de Arruda a África23, continha já uma intenção simultânea de dotar Mazagão de um novo sistema defensivo inexpugnável e de reavaliar o sistema defensivo de Ceuta. O saber adquirido por Arruda proporcionou o seu reenvio ao Norte de África para, sete anos mais tarde, riscar a cidadela moderna de Tânger e ajuizar da vantagem da construção do forte do Seinal, sobre Alcácer Ceguer. A fundação da praça no primeiro dia de Agosto de 1541, por Luís de Loureiro, efeméride gravada em epígrafe24, decorreu em plena laboração do esta20 Nas palavras de Rafael Moreira, “o elemento central do novo tipo de fortificação, e a única criação arquitectónica absolutamente nova desde a Antiguidade” (História das Fortificações Portuguesas no Mundo 1989, 144). 21 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 72, doc. 32) in Sousa Viterbo 1899-1922, I, 194-195: “(…) E quanto ao que V. A. espreveuo que na obra não saya dos apontam_tos de Benito de Reuena, eu asy o fiz sempre e farey (…)”. 22 Idem, III, 126. 23 Notas sobre alguns Engenheiros nas Praças de África 1922, 11. Cf. Moreira, op. cit., 112 (BNL, cód. 1758, fls. 468v-469). 24 Cf. Correia 1923, 65-66.
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Baluarte de Santo António Baluarte do S. Sebastião ou do Norte Baluarte do Anjo ou de Santiago Baluarte do Santo-Espírito Porta da Ribeira ou do Mar Portinha dos Bois Vestígios da Porta da Vila e Baluarte do Governador 8. Vestígios do fosso (doca actual) 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
9. Edifício do castelejo/cisterna 10. Igreja de N. Sra. Assunção 11. Mesquita 12. Vestígios da Igreja de N. Sra. Luz 13. Rua da Carreira 14. Rua Direita 15. Rua da Luz 16. Rue Docteur M. Rodriguez 17. Rua das Amoreiras (Abraham Zanati) 18. Rua de S. Lourenço
Fig. 5 – Planta actual à cota baixa da Cité Portugaise. © Ilustração do autor
leiro conduzido por João de Castilho e inspeccionado por João Ribeiro (Fig. 5). De facto, durante esse Verão, várias são as missivas que dão conta do andamento dos trabalhos, em particular na mais urgente frente de terra “que anda no baluarte da bamda de Tite”25, o actual Baluarte de Santo António, que já se designou por S. Jorge ou D. Diogo. O avanço da obra permitia já a execução das portas da praça26, denunciando que, mesmo faltando o levantamento total de todos os baluartes, o perímetro estava alcançado e encerrado, depois da 25 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 25 de Agosto de 1541 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 70, doc. 75) in Les Sources Inédites…, III, 1948, 502-506. 26 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 28 de Agosto de 1541 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 70, doc. 76) in Idem, 507-508.
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laboriosa contribuição de todos quantos se haviam empenhado no rasgamento da superfície rochosa natural para a abertura das cavas e caboucos. No final do mesmo ano, com quarenta palmos de altura, concluía-se o então apelidado Baluarte dos Medãos27, que retirava da localização na linha de dunas da baía o seu primeiro nome, depois chamado do Serrão e mais tarde de Santo-Espírito. ~ das fortes he fermosa cousa que a em Espanha”, O baluarte, que era “hua permitia a João de Castilho considerar “a obra esta ya de maneira que, nã diguo eu vir ho Xarife, mas o Turquo com quanto poder tem, nos nã poderá fazer mall”28. Assegurada a frente de terra, o primeiro semestre de 1542 foi dedicado ao término da banda do mar, com dois baluartes, um integralmente dentro de água, entre os quais se abrigava a calheta ou porto (Fig. 6). Ficava completo o desenho do polígono da nova fortaleza de Mazagão composto por quatro ângulos principais unidos por panos de muralha medidos em trinta palmos pelo mestre biscainho, em jeito de ponto de situação29, alturas que se preservam nas zonas menos alteradas do presente, e que se elevavam aos quarenta palmos quando contabilizados os cavaleiros dos baluartes. Um inqué-
Fig. 6 – Vista da frente de mar das muralhas, com Baluarte do Anjo em primeiro plano. © Fotografia do autor
27 Carta de João de Castilho a D. João III - Mazagão, 6 de Janeiro de 1542 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 71, doc. 52) in Les Sources Inédites…, IV, 1951, 13-14. 28 Idem. 29 Carta de João de Castilho a D. João III - Mazagão, 18 de Julho de 1542 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 72, doc. 68) in Idem, 70-74.
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rito reconstitutivo ao contorno amuralhado recolhe uma nomenclatura que, como já se percebeu, foi sendo cambiada. Num périplo desde a calheta, onde se abria a Porta do Mar ou da Ribeira sobre um ancoradouro em degraus, para norte, encontrávamos: – o Baluarte de S. Sebastião ou do Norte, apresentando orelhão para o lado de terra, sobre o fosso marítimo, agora drenado; um longo braço fortificado, descrevendo uma inflexão côncava segundo um ângulo obtuso de 160° (Fig. 7), próximo do ponto onde se abre a Porta ou Portinha dos Bois, exclusivamente aberta a posteriori para recolha do entulho da cava30; o Baluarte de Santo António, anteriormente chamado de S. Jorge ou D. Diogo, ou ainda S. Pedro, de
Fig. 7 – Vista desde Baluarte de S. Sebastião para Baluarte de Santo António, com cortina fortificada norte. © Fotografia do autor
figura praticamente simétrica com dois orelhões; a frente de vila, igualmente quebrada por inflexão de 158°, interrompida pelo Baluarte do Governador que abrigava a porta principal da vila e cuja estrutura desapareceu quase por completo; o Baluarte do Santo-Espírito, outrora designado por Serrão, Combate ou dos Medãos, separando praia e sertão; a cortina meridional de planimetria em cotovelo de 163° sobre entrada do fosso (única permanência do canal aquático), regulável por buxa ou comporta; por fim, o Baluarte do Anjo ou de Santiago fecha a cava, sobre a qual descreve um orelhão, e ajuda a definir a entrada do porto. 30 Farinha 1987, 5.
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Fig. 8 – Planta da Fortaleza de Mazagão - 1611, fl. 104 (PT-TT-CCDV-23). © Imagem cedida pelo IAN/TT
O elemento cartográfico mais antigo existente sobre Mazagão reflecte, justamente, a traça acima descrita, tendo sido desenhado em 1611 com o intuito de declarar as áreas da cava a limpar e desentulhar (Fig. 8). Da intenção da mostra se deduz o restante desenho do conjunto fortificado, composto por um fosso que circundava três frentes da fortaleza e por forte revelim em frente à Porta da Vila. O talude de reforço exterior desta estrutura e de todo o contorno do fosso interrompia-se nos pontos em que tocava a linha da preia-mar. Involuntariamente, a gravura acaba por isolar um sistema defensivo de grande inovação cuja família formal encontra parentescos nas experiências já quinhentistas de António da Sangallo, em Itália, ou raízes numa prática guerreira de Benedetto da Ravena pelo Mediterrâneo, de Rodes a Tunes31. A coincidência da urgência derivada da crise africana acontecia no seio de uma corte próxima do monarca, onde participava o infante D. Luís, também ele experimentado nas lides beligerantes ao lado de Ravena. Uma corte à qual regressava, por esta altura, Francisco de Holanda. Vinha de Itália para onde havia sido enviado por D. João III para desenhar fortalezas, como Pesaro, e, na capital portuguesa, reivindicava a solução arquitectónica para a praça portuguesa. O modelo repousava sobre o princípio fundamental da eliminação dos ângulos mortos ou cegos através do cruzamento de linhas de fogo rasantes e paralelas aos planos horizontal da água do fosso e vertical da muralha, dispa31 Moreira, op. cit., 52-53.
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radas a partir de dois níveis de canhoneiras colocadas nos orelhões dos baluartes. O sistema assumia-se como um autêntico organismo bélico através da desmultiplicação de direcções de tiro desde as plataformas superiores dos baluartes, coroados com seus cavaleiros, e ao longo dos caminhos de ronda das instâncias intermédias dos muros, como o provam as diferentes orientações das canhoneiras mazaganeneses. O pleno funcionamento do dispositivo impedia a aproximação e o assalto inimigos. O conceito havia sido experimentado em alguns arranjos de arquitectura militar em praças conquistadas e remodeladas pelos portugueses - o Baluarte da Porta de Ceuta (Alcácer Ceguer), o Baluarte da Pata de Aranha (Arzila) ou o Baluarte do Raio (Azamor) - mas os ensaios ainda não constituíam um lançamento formal do baluarte moderno.
A vila Tal como na vizinha Azamor, a fortaleza e a vila de Mazagão identificavam-se espacialmente. Em Abril de 1541, da correspondência entre o rei e Luís de Loureiro percebe-se como, quer a hipótese da manutenção do sítio, com uma renovação das fortificações, quer o espectro da evacuação se encontravam em discussão32. Da carta emanam também várias considerações sobre as tensões geradas entre castelo e vila, saindo reforçada a ideia de um conjunto urbano com alguma dimensão para o qual o reduto acastelado seria insuficiente - “(…) e querendo-lhe defemder a vila se comprise rrecolher ao castelo guastava-se-lhe mais o tempo de vos terem cerquados, porque o castelo soo, por ser pequeno, em mais breve tempo lhe podem fazer muito dano. (…)” - para além de que o abandono da vila implicaria uma operação de arrasamento e limpeza dos escombros tal como era hábito efectuar nas áreas urbanas excluídas nos processos de atalho: “(…) E comtra leixardes e vos meterdes no castelo, há também muy grandes inconvenientes, que, leixando a villa, nam na podereis tão asinha arasar tanto que não ffique muita pera as estancias dos imiguos; e se as casas todas nam ficasem de todo postas per terra, aimda que lhe derribazeys os telhados, seriam as paredes gramde ajuda pêra se cheguarem ao voso muro (…)”. Depreende-se da missiva que as hesitações do 32 Carta de D. João III a Luís de Loureiro - Lisboa, 13 de Abril de 1541 (BNL, cód. 1758, fls. 62-62v) in Les Sources Inédites…, III, 1948, 390-394.
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capitão Luís de Loureiro relativas ao alcance de uma solução satisfatória e equilibrada entre as componentes militar e urbana de Mazagão, existentes à data, bem como a urgência de fortificação face à ameaça crescente dos xerifes sádidas, impeliram as diligências que, a partir do mês seguinte, trariam a Mazagão a dita junta de arquitectos e engenheiros. O investimento passava também então pela preservação e integração do tecido construído em torno do castelo manuelino no novo projecto de vila-fortaleza. O plano tomou como centralidade o castelejo tardo-medieval, transformado em charneira administrativa da praça-forte. Os trabalhos não se resumiram à implantação das defesas exteriores – muralhas, baluartes, fosso e revelim – mas manifestaram-se igualmente na adaptação ou criação de equipamentos públicos. Os espaços entre os torreões cilíndricos do primeiro castelo foram preenchidos por armazéns e serviços da nova vila, exibindo uma estrutura em cruzaria de ogivas semelhante à utilizada na cobertura da grande cisterna semi-enterrada no interior do quadrângulo, terminada em 154733, e no reforço interno das torres. A cisterna, uma das principais responsáveis pela sustentabilidade da praça durante longos cercos, permanece como um dos marcos mais categóricos do investimento português no Norte de África (Fig. 9). Entre o recinto do castelo inicial, agora espaço dedicado ao armazenamento de água, provisões ou pólvora, às casas do hospital e da misericórdia, e as novas fortificações lançou-se uma grelha viária tendencialmente regular, ou seja, uma matriz urbana não divorciável da lógica global da intervenção. A planta de Mazagão necessita uma observação bipartida que distinga o sector noroeste da restante área ocupada (Fig. 5). Como referimos atrás, a explicação para uma menor regularidade dos arruamentos nesta zona pode residir na herança da vila espontânea, agregada ao castelo entre 1514 e 1541. No limite meridional desta porção do território urbano de Mazagão erguia-se o Palácio do Governador que ajudava a conformar o maior dos espaços públicos da vila: o Terreiro. Inscrevia-se numa figura aproximadamente rectangular também delimitada por um dos lados do primitivo castelejo, agora remodelado, pelo acesso ao Baluarte do Governador, com a respectiva Porta da Vila, e pela longa fachada lateral da igreja matriz, votada a N. Sra. da Assunção. Entretanto, a demolição da residência do governador e a sua substituição por uma mes33 Carta de Luís de Loureiro a D. João III - Mazagão, 23 de Novembro de 1547 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 79, doc. 129) in Les Sources Inédites…, IV, 1951, 243-245.
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Fig. 9 – Interior da cisterna. © Fotografia do autor
Fig. 10 – Rua da Carreira. © Fotografia do autor
quita no século XIX perverteram a leitura espacial portuguesa. O templo muçulmano, para além de apropriar a vizinha Torre do Rebate para minarete, atrofia o antigo espaço público português numa implantação refém da orientação para Meca.
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A aparente ausência de ordenação cartesiana do núcleo noroeste contrasta com os demais três quartos da vila arruada segundo linearidades perspécticas e ortogonalidades nos cunhais. O desenho favorece a rectícula disposta numa geometria de quarteirões quadrangulares alongados. A Rua da Carreira emergia como o grande eixo estruturador da malha, pois fazia comunicar a Porta da Ribeira com a Praça do Terreiro, centro administrativoreligioso de Mazagão (Fig. 10). Por outro lado, a sua localização relativamente lateral em relação a esse núcleo pode remeter a sua utilidade para funções de distribuição da cavalaria ou de peças pesadas de artilharia aos baluartes de terra, através das ruas da Mina e do Arco. Aliás, o destaque axial conferido à Rua da Carreira questiona a relegação da Rua Direita para uma posição secundária, quando a esta referência geralmente se associavam questões de acessibilidade, centralidade e actividade terciária34.Todavia, a partir da Porta da Ribeira, local de embarque/desembarque de pessoas e carga/descarga de mercadorias, a circulação distribuía-se em leque através de uma série de artérias - ruas da Praia, das Amoreiras, do Loureiro, do Martírio, das Flores e, também, a própria Rua da Carreira -. que conduziam à Rua Direita. Daí o alargamento que se verifica na secção desta via no segmento desde o encaixe da então Rua das Amoreiras, actual Rue Abraham Zanati, para norte, já registado na cartografia setecentista. A documentação cartográfica mostra um estado consolidado da malha urbana da vila, não revelando a evolução do plano gizado ainda antes da metade do século XVI (Fig. 11). Desconhece-se o calendário do preenchimento dos lotes para habitação de moradores ou mesmo se o estabelecimento de todo o traçado fora imediato ou diacrónico. No entanto, algumas pistas formais concorrem para um tempo curto no lançamento dos quarteirões que recheariam o recinto intra-muros. O que a mesma cartografia não esconde é a facilidade de reconstituição desse tempo com base no actual tecido da Cité Portugaise. No presente, uma aspiração a uma realidade urbanística mais identificável por uma população quase exclusivamente árabe e muçulmana reflecte-se em mecanismos de lenta mas quotidiana metamorfose da herança portuguesa. A reconstituição da malha de origem portuguesa permite abstrair uma geometria bastante regular assente numa grelha de ruas paralelas às duas 34 Costa e Correia 2002, 120-121.
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Fig. 11 – Planta da Praça de Mazagam – engenheiro Simão dos Santos/Guilherme Joaquim Pays – c. 1760 (cópia de original de c.1720?). © Instituto Geográfico e Português – CA 599
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direcções presentes na muralha meridional da vila, entre os baluartes do Anjo e do Santo-Espírito. Considerando excluído o sector entre o Baluarte de Santo António, a Portinha dos Bois e o edifício da cisterna, como se justificou acima, o traçado deve ser compreendido segundo aquelas orientações e, como tal, repartido em dois momentos: por um lado, o panorama a sul da Rua da Carreira; por outro, a disposição urbana para leste da Rua Direita. Ambas as situações são preenchidas por rectângulos, por vezes ligeiramente imperfeitos, que desenham quarteirões alongados. Em detalhe, podemos registar a existência de quatro unidades deste tipo, cujos topos ajudam a conformar a Rua da Carreira, para além do arranque de um quinto quarteirão, geometricamente paralelo, definido pelo lado da Rue Docteur M. Rodriguez mas desvirtuado pelo canal da Rua da Luz. Entre a Rua Direita e a muralha marítima, uma sucessão menos regular de cinco módulos semelhantes vai diminuindo em largura à medida que se aproxima do ângulo setentrional assinalado pelo Baluarte de S. Sebastião. Aqui, as quatro ruas que separam os quarteirões descrevem ângulos de noventa graus com as estremidades (Rua Direita e muralha marítima). No centro geográfico da vila, o perímetro do castelo de 1514, agora transformado e aumentado, circunscreve-se a um quadrado de arestas limadas pela curvatura das antigas torres. A implantação do castelo manuelino parece ter funcionado como geratriz organizativa de todos os cheios e vazios do espaço urbano da vila projectada a partir de 1541. Para ocidente rasgava-se a grande praça do Terreiro até à Porta da Vila, entalada entre a fachada principal do Palácio do Governador e o canal viário da Carreira, limites de um espaço que representa o negativo do quadrado ocupado do edifício da cisterna, agora semi-preenchido pelo volume da mesquita oitocentista. A única “invasão” autorizada, rompendo a regularidade da figura geométrica em planta, foi a edificação da igreja matriz, que ocupa a banda adjacente à Rua da Carreira. No restante espaço urbanizado, para norte e sul do quadrilátero central, até aos novos muros modernos, verifica-se uma distância semelhante às medidas dos lados do quadrado, que não sendo perfeito, oscila entre os cinquenta e três e os cinquenta e sete metros, ou antes, entre as vinte e quatro e vinte e seis braças, aproximadamente. As medidas indicadas correspondem aos comprimentos dos quarteirões inseridos na tipologia regular que destacávamos atrás. Estas unidades rectangulares apresentam, por sua vez, medidas nos topos que equivalem à metade dos lados maiores, revelando um tabuleiro de malha mais apertada.
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Efectivamente, a matriz pode ter residido na metade do módulo quadrado do primeiro castelo português, depois de preenchidos os interstícios entre as torres, disposta segundo as duas direcções encontradas. O modelo manifesta similitudes com a cidade portuguesa de Damão, delineada mais tarde, na segunda metade do século XVI, depois da conquista definitiva de 1559. No entanto, ao contrário da urbe indiana, onde o traçado resulta da subdivisão em quatro partes de um também fortim pré-existente35, em Mazagão a meia fracção do quadrado base foi apropriada com menos rigor e de forma mais livre. Em ambos os casos, o sistema pervertia-se no encontro com as muralhas mais irregulares do contorno. Na praça norte-africana, a situação torna-se particularmente evidente nas imediações dos cantos da vila, junto aos baluartes, onde é necessário efectuar compensações, devido aos planos oblíquos, ou criar acessibilidades ao caminho de ronda. O encadeamento lógico demonstrado sugere que o plano urbano de Mazagão seja consequência de uma base modelar emanada pela pré-existência física do castelo de 1514. Decorrente de um projecto inovador no campo da arquitectura militar, cujo recinto fortificado viria a abraçar o dito castelo e o povoado adjacente, não sabemos se na totalidade, os limites da acção urbanizadora encontravam-se desde então marcados. Desconhece-se também até que ponto Benedetto da Ravena, ou qualquer outro interveniente da junta régia, terá contribuído para o desenho de tão racional “arruação”. Requisitado pelas suas qualidades de engenheiro militar e pela sua capacidade projectual no domínio da fortificação como resposta ao surgimento da pirobalística como técnica de fogo, no currículo do mestre italiano não figuram intervenções urbanas de destaque. Por este motivo, acreditamos que Mazagão deve ser lida como corolário de uma tradição urbanística decorrente de uma experiência magrebina essencialmente centrada na primeira metade do século XVI. O que fica claro da disposição interior da vila-fortaleza é a racionalidade de uma operação de conjunto, integrando as componentes militar e urbanística. A distribuição viária complementa-se e prolonga-se através das acessibilidades ao caminho de ronda e baluartes, fomentando uma circulação funcional de fronteiros e moradores. Eram quatro as escadas/rampas que, situadas justamente a meio de cada lanço amuralhado, descreviam uma repartição alternativa à concentração de meios e pessoas sobre os baluartes: a Escada dos Bois, 35 Rossa 1995, 283.
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a norte; a subida da Calheta, sobre o porto, para oriente; a Escada do Contador, a sul; e, por fim, a escada que dava acesso à plataforma do baluarte sobre a porta principal. No interior da vila, para além da matriz dedicada a N. Sra. da Assunção (Fig. 12), sete capelas ou igrejas semeadas pelo tecido construído facultavam à população o serviço religioso – N. Sra. da Luz, N. Sra. da Piedade, N. Sra. da Nazaré, S. José, S. Sebastião ou S. Francisco, Santa Cruz e S. João. Juntavam-se duas ermidas, N. Sra. do Pilar e N. Sra. da Penha de França, respectivamente sobre os baluartes do Anjo e de Santo António. Nem sempre possuíram culto simultâneo e a sua edificação ou consagração deve ter sido espaçada no tempo36. Indiscutível é a existência de uma Misericórdia associada ao hospital, ambos instalados junto à cisterna, no edifício do castelejo transformado em centro administrativo da vila, e da igreja matriz, único templo não geminado com outras construções.
As mudanças desde 1769 O ano de 1769 fechou o ciclo de realizações portuguesas em Mazagão e, por conseguinte, no Norte de África. Data da evacuação da praça, ordenada pelo Marquês de Pombal, iria dar início a um período de cerca de meio século de abandono, em que foi apelidada de Al Mahdouma, a Destruída, devido essencialmente às explosões causadas pelas minas deixadas durante a retirada portuguesa. Depois da conquista da praça pelo sultão Sidi Mohammed Ben Abdallah, os dois mil habitantes da praça marroquina partiram em direcção a Lisboa, para depois seguirem para o Brasil, onde, no Pará, se fundou Vila Nova de Mazagão, por ordem do Marquês37. Finalmente, em 1821 e no seguimento da reconstrução conduzida por Sidi Mohammed ben Ettayeb, os judeus foram os primeiros ocupantes do ainda designado mellah. Descrições da época mostram como o desenvolvimento demográfico terá ocorrido por volta da década de 186038, quando a cidade começou a crescer para lá das muralhas portuguesas e da convivência étnica
36 Mais esclarecimentos sobre as instituições religiosas podem ser consultados em Descrição da Fortaleza de Mazagão (1916), bem como em Cunha 1864, Dornellas 1923-24 e Périale 1938. 37 Cf. Araújo 1998, 265-290. 38 Goulven 1918, 402-416.
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Fig. 12 – Fachada da Igreja de Nossa Senhora da Assunção. © Fotografia do autor
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entre judeus e árabes se fazia a massa populacional de Mazagão. O estabelecimento do protectorado francês, em 1912, veio contribuir para a caracterização cosmopolita do tecido social, suspensa depois do final da Segunda Guerra Mundial, com a partida hebraica para o então recém-criado estado de Israel, e com a retirada francesa após a independência marroquina em 1956. Presentemente, consumada a ocupação definitiva pela população árabe, a par de mellah, à antiga cidadela portuguesa atribui-se, paradoxalmente, a denominação do protectorado francês, Cité Portugaise. Agora, trata-se apenas de um pequeno bairro de El Jadida, cuja urbe prossegue a sua expansão extra-muros impulsionada pela proximidade de Jorf Lasfar, o grande porto marroquino dos fosfatos. É um conjunto vivo e em dinâmica permanente, onde as metamorfoses morfológicas se operam quase quotidianamente, muitas vezes à margem dos regulamentos ou da autoridade. Do tecido residencial construído da Mazagão portuguesa restam escassos vestígios. Como tal, torna-se difícil a detecção e identificação de tipologias de arquitectura doméstica na paisagem urbana contemporânea da Cité Portugaise. O cenário provável caracterizar-se-ia por casas térreas cobertas por açoteias, ou seja, a cada parcela corresponderia apenas uma habitação, fazendo equivaler a conta de D. Gonçalo Coutinho e a planta setecentista, separadas por uma centúria.Terá sido durante o século XVIII que algumas casas se começaram a sobradar, como nos mostram os portais encimados por varandim do número 4 da Rua do Celeiro ou da esquina da antiga Rua do Martírio com a de S. Lourenço, recentemente demolido. O confronto com a cartografia setecentista possibilita um primeiro nível de averiguação da ancestralidade duma hipotética regra encontrada. Porém, a investigação passa, sobretudo, pela avaliação da substituição das casas portuguesas por outras construções nos séculos XIX, XX e mesmo XXI, dado que a renovação se opera quotidianamente, ou da sua eliminação, com a consequente criação de espaços vazios, numa perspectiva de recuperação de uma imagem caracterizada, possivelmente, por alinhamentos de casas térreas rasgadas por sequências de porta e janela(s). As excepções afirmar-se-iam pela dimensão superior do lote, por detalhes decorativos ainda detectáveis e por sistemas internos de distribuição vertical que confirmassem a presença de um sobrado. Tão importante como inesperada, a classificação poderá terminar com esta anarquia serena e latente, e encetar uma operação de salvaguarda e
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valorização, correspondente à escala e riqueza deste perímetro fortificado, aproveitando uma realidade social autóctone e jovem. A excepcionalidade de Mazagão revela-se igualmente em dois tempos: no pioneirismo da sua experiência moderna no continente africano, de onde se destacam elementos arquitectónicos ou urbanos notáveis – as muralhas, os baluartes, a cisterna, as igrejas, as ruas; no exemplo de pluralidade étnica e tolerância religiosa que expressou intra-muros durante os séculos XIX e XX, como atesta a presença de culto simultâneo em mesquita, igreja e sinagoga. Algumas estratégias de desenvolvimento poderiam passar pelo estabelecimento de percursos que estimulassem a manutenção de alguns edifícios, abrindo-os ao público, pelo fomento da reconstrução ou melhoramento do tecido existente e das condições de salubridade para os habitantes do mellah. Impõe-se, porém, um plano que consagre a habitabilidade das famílias residentes no interior do perímetro fortificado como cláusula de salvaguarda deste património e impeça a especulação imobiliária de afastar a massa autóctone do bairro para o exterior das muralhas, como acontecera em Arzila. Da interacção positiva entre todos estes factores resultará, seguramente, mais que apenas “outra” medina turística do Reino de Marrocos. A sua situação física favorece o alheamento em relação ao restante tecido da cidade. Por conseguinte, a maisvalia para El Jadida reside no estabelecimento de pontes com o património oito e novecentista da medina extra-muros, na manutenção e reforço dos circuitos comerciais urbanos e na preservação da identidade social.
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Palavras-chave: Cidade-paisagem; Centralidade; Largo Cívico; Organicidade; Arquitectura Vernácula; Adro da Igreja
Key words: City-landscape; Centrality; Civic place; Organicity; Vernacular architecture; ChurchYard
RESUMO
ABSTRACT This article presents the urban and architectural features of the city of Angra within the wider context of the Portuguese-influenced cities in the various Transatlantic areas. It lists the cities in continental Portugal most identified as “Cities of landscape”, a concept tentatively underscored and used to analyze coastal and inland cities. Cities related to this concept in the Atlantic archipelagos, Africa, Asia and Brazil are succinctly characterized. Finally, the urban and architectural features of Angra also found in the aforementioned cities are also listed, thus characterizing this type of city
Procura-se fazer a integração da cidade de Angra do Heroísmo, com as suas características urbano-arquitectónicas, no conjunto mais amplo das cidades de expressão ou influencia portuguesa nas diversas áreas transatlânticas. Enumeram-se as urbes de Portugal Continental com maior valor e dimensão como “Cidades de Paisagem”, conceito que se pretende realçar e tornar operativo, nas cidades litorais, fluviais e interiores. Referem-se, procurando uma caracterização sucinta, várias das urbes com destacado valor, dentro daquele conceito, ao longo dos vários espaços geográficos: Ilhas, África, Ásia e Brasil. Termina-se com o apontamento das diversas características urbanoarquitectónicas de Angra do Heroísmo que se revelam também das cidades atrás listadas, procurando uma idiossincrasia deste modelo de cidade.
ANGRA DO HEROÍSMO NO QUADRO DAS “CIDADES DE PAISAGEM” PORTUGUESAS MEDIEVO-RENASCENTISTAS José Manuel Fernandes*
1. Introdução Portugal, pequena nação peninsular do sudoeste europeu, criada e sobretudo firmada a partir da Baixa Idade Média, desenvolveu no seu território de finisterra uma ocupação do espaço colectivo construído com características originais, quer no desenho ou traçado das vilas e cidades que foram erigidas, quer nas obras arquitectónicas que preencheram esses espaços urbanos e ainda outras áreas de carácter rural. Podemos falar do urbanismo luso e da arquitectura portuguesa, desde os séculos XII-XIII, como inseridos na dominante tradição e influência do ocidente europeu, caldeados pela complementar tradição oriental. Efectivamente, o processo histórico de urbanização do território luso apresenta uma riqueza e diversidade de influências assinalável: sobre uma base castreja provinda da pré-história, surgiram as litorâneas culturas Grega e Fenícia, depois apropriadas e transformadas por uma duradoura e estruturante Romanização, seguida esta pela presença germânica Suevo-Visigótica, e sequentemente pela longa permanência do Islão (este sobretudo a sul do Mondego e Tejo). Todo este processo foi determinante – aquando do retomar cristão – na definição de um espírito de lugar, na escolha dos sítios e sua sedimentação urbana, no entendimento de uma relação com a paisagem e a sua geografia, até mesmo de uma determinada escala de edificação arquitectónica e de um modo de construção dos espaços e da opção por determinadas formas, materiais e cores. Com o avançar dos séculos, e o sedimentar desta prática, pôde firmar-se em Portugal uma cultura urbana e arquitectónica sólida, base para o valor do vasto conjunto existente actualmente, do nosso Património Construído, nas * Arquitecto. Professor Agregado em História da Arquitectura e do Urbanismo na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Portugal
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nossas cidades, espaços urbanos, vilas e aldeias e no território rural. Os exemplos qualificados atravessam os tempos do Românico e do Gótico, do Manuelino, do Renascimento e do Barroco, do Chão e do Pombalino, do Romantismo, da Arquitectura do Ferro e do Moderno. Sem querer abarcar e referir todos os casos de valor e qualidade histórica/urbana, sedimentados no território português ibérico, podemos referir os exemplos concretos de cidades e de alguns espaços arquitectónicos notáveis nelas integrados, com alguns deles realçados pela classificação da UNESCO como Património da Humanidade – pois tal é o caso de Angra do Heroísmo: – cidades litorais: Lisboa, com destaque para ao seu bairro islâmico (Alfama), medievo-renascentista (Bairro Alto) e Clássico-Barroco (a Baixa Pombalina), bem como para o seu núcleo edificado quinhentista do Jerónimos e Torre de Belém (class. pela UNESCO); Porto, com todo o conjunto do seu centro medieval e barroco, da Ribeira aos Clérigos, na relação com a complementar Margem Sul (class. pela UNESCO) – numa matiz dual bem característica das urbes portuguesas costeiras; Viana do Castelo, luminosa na sua relação aberta e vasta com a barra e a longa costa dupla; Faro, com a sua Vila-a-Dentro, muralhada, bem expressiva do pendor islâmico-medievo do seu tecido urbano; – cidades fluviais: Coimbra, com um claro diálogo estabelecido entre a Baixinha e a colina da Universidade, num partido também muito característico da urbe lusa, frequentemente organizada entre a Baixa e a Alta; Santarém, tirando partido paisagístico do poderoso esporão sobre o Tejo, altaneira e orgulhosa do seu conjunto monumental gótico; – cidades interiores: Guimarães, de consistente e denso tecido urbano medievo, alternando e articulando com eficácia registos monumentais e vernáculos, medievos e barrocos (class. pela UNESCO); Braga, com um traçado onde ainda se pressente a herança geométrica romana, valorizando praças, largos e ruas; e Évora, igualmente realçando traçados, espaços, monumentos e casas (embora num modo meridional de luz e cor oposto aos das duas urbes minhotas).
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2. O conceito de “Cidade de Paisagem” no mundo lusófono urbano e arquitectónico Portugal e o Património Lusófono – um breve percurso geo-histórico por cidades, sítios e arquitecturas de influência ou expressão lusa no Mundo
A partir do percurso colonial, iniciado com a Expansão Marítima e Transatlântica portuguesa do século XV, a nossa cultura construída, arquitectónica e urbana, esta “arte de fazer cidades e casas” – sedimentada na fase fulcral da transição Medievo-Renascentista – foi transportada para muitos e diferentes lugares. Dadas as características geo-estratégicas e o fundo cultural da organização do nosso espaço da Expansão Marítima, foi naturalmente sobrelevado o tema das urbes litorais, e a sua capacidade para articular a geografia local: a baía abrigada e portuária; a definição dos tecidos urbanos inter-activos, com a Alta residencial e a Baixa comercial-marítima; a estrutura de origem medieva, modernizada mas não abandonada, do sistema de “Rua Directa” articulando largos e praças; a matriz essencialmente orgânica da fábrica urbana e sua evolução. São estas determinantes que podem ajudar a melhor definir, espacial, formal e funcionalmente, a dita “Cidade de Paisagem”, sequencialmente ensaiada e consolidada por ilhas, mares e continentes. Destaquemos algumas dessas cidades de matriz portuguesa, com as suas arquitecturas principais – sem preocupação exaustiva, mas procurando antes exemplificar com os mais interessantes casos, desenvolvidos entre os séculos XV e XX – e verifiquemos as continuidades de tipologias urbanas e arquitecturais, de formas e situações de espaço colectivo, nas diversas situações edificadas, que permitem estabelecer uma visão culturalmente coerente, de conjunto, sobre esta vasta produção, da Europa ao Extremo Oriente. Angra do Heroísmo (class. pela UNESCO), nos Açores, merece destaque pela sua ampla dimensão urbana e paisagística, bem como pelas arquitecturas monumentais: pelo interessante Palácio dos capitães-generais (que aproveitou a mole do antigo colégio e igreja jesuíta), pela sua elegante Sé Catedral, pela Praça Velha e Câmara, e sobretudo pelo monumental conjunto de fortificações, com destaque para a de São João Baptista, mas sem esquecer a mais humilde de São Sebastião. Organizada à volta de pequena baía (angra), a cidade soube, a partir de um núcleo inicial de povoamento de carácter defensivo (junto ao Castelo), expandir-se de modo organizado e racional ao longo das encostas a Sul,
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3 O conceito das “Cidades de Paisagem”, organizando os seus tecidos urbanos com ampla dimensão estética, de forma orgânica, sobre relevos acidentados, e/ou frente ao mar. 1 – Angra do Heroísmo, 2 – Lisboa, 3 – Ouro Preto/Minas Gerais. © Fotografias do autor
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fabricando um tecido regular e de belo efeito ordenador de todo o espaço. A sua “rua directa” (que não a rua de Lisboa, hoje dita Direita), sensivelmente paralela à costa, organiza todo o conjunto urbano, num eixo que vai desde a entrada por São Bento (a nascente), desce por São Francisco à Praça Velha municipal (donde se pode aceder ao porto e à Misericórdia), e sobe de seguida a suave encosta para poente, recebendo a Sé Catedral, e culminando no Alto das Covas, para São Pedro, com sua sucessão de conventos e lugares sagrados. É pois cidade exemplar deste conceito de “cidade de paisagem” que se referiu. Na ilha de São Miguel, também nos Açores, não devem esquecer-se as portentosas fachadas das igrejas jesuítas, quer em Ponta Delgada (onde a matriz inclui trabalhos em gosto manuelino tardio), quer na Ribeira Grande, na costa norte da ilha – esta talvez o exemplo mais criativo e original do chamado “barroco açórico”, em contrastantes tons de basalto negro e cal branca. No Funchal, primeira cidade atlântica, edificada ao longo de uma singela baía, podemos destacar o conjunto da Alfandega, da Sé Catedral e da Fortaleza vizinha. Mazagão (class. pela UNESCO), cidadela fortificada em Marrocos, deve referir-se tanto pelo seu elegante e coeso sistema abaluartado, como pela eficácia simples da praça central, e pela sua sólida cisterna quinhentista. É talvez o melhor exemplo (e mais duradouro, até ao século XVIII) dentre as várias praças lusas fortificadas nesta área, desde Ceuta e Tanger a Arliza e Alcácer-Ceguer. Em Cabo Verde, são as ruínas da Sé Catedral que se impõem, encimadas pelas do Forte de São Filipe, na Cidade Velha da ilha de Santiago – para além da cidade da Praia, na mesma ilha, que representa já uma criação urbana nova a partir de Setecentos. Na área africana, e até à extensa costa do Golfo da Guiné, podem destacar-se a delicada povoação de Cacheu (na actual Guiné-Bissau), ou Bissau, nascida à roda do forte de S.José de Amura. O arquipélago de São Tomé e Príncipe apresenta dois povoados de pequena escala mas graciosa presença paisagística: precisamente os núcleos de São Tomé / Ana Chaves e de S. António do Príncipe, nas respectivas ilhas. Já em Angola devem assinalar-se dois principais conjuntos urbanos: o de Luanda (infelizmente hoje muito destruído na sua área central), com a fortaleza de S. Filipe e alguns solares urbanos seis e setecentistas (3 “sobrados” da antiga praça do Infante D. Henrique, e o Palácio de D. Ana Joaquina, da transição dos séculos XVIII-XIX, criminosamente demolido há pouco); e o de Benguela, este
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iniciado já no século XVII – além das preciosas ruínas de S. Salvador do Congo, ou M’banza Congo, de origem quatrocentista. Destaquem-se igualmente as cidades angolanas de fundação e desenvolvimento oitocentista (Moçâmedes/Namibe, Sá da Bandeira/Lubango, de matriz geométrica), e mesmo as de Novecentos, costeiras ou interiores, como o Lobito e Nova Lisboa/Huambo. Em Moçambique o destaque deverá ir naturalmente para a pequena jóia que constitui a Ilha de Moçambique (class. pela UNESCO), com a poderosa fortificação de S. Sebastião, o palácio do governo, as igrejas e o conjunto residencial, hoje muito arruinado – sem esquecer porém as pequenas preciosidades que constituem a ilha do Ibo e os núcleos de Cabaceira Grande e Cabaceira Pequena – e a desaparecida fortaleza, ainda com traça mediavalizante, de Sofala, já na área do Zambeze. Também aqui devem mencionar-se algumas urbes crescidas já nos séculos XIX e XX, com matriz geométrica, como a esplêndida Lourenço Marques/Maputo, Quelimane e Beira – e outras, interiores, como Nampula,Vila Pery/Chimoio e Vila Cabral/Lichinga No longo espaço geográfico do Índico, a norte de Moçambique e a poente da península indostânica, podem mencionar-se a cidadela-fortaleza de Mombaça (Quénia), ou os diversos fortes arábicos (como Mascate, ou Soar, em Omão) e o de Ormuz, no Golfo Pérsico (Irão). É na India que muitas e notáveis edificações e núcleos urbanos deste período histórico devem ser mencionados. Percorramos a costa ocidental, de norte a sul. De Diu, em ilha costeira do Guzarate, é a famosa fortificação que sobressai, mas também a igreja de S. Paulo, do antigo colégio jesuíta, de frontaria requintadamente maneirista em tons polícromos. Damão merece referência sobretudo pelo traçado rigorosa e excepcionalmente geométrico da sua malha urbana (Damão-Praça), envolvida por muralhas abaluartadas – mas também pelo singelo e equilibrado largo da Mãe de Deus, com a pequena igrejinha homómina e a antiga igreja jesuíta, deitando para o jardim central, ao lado do edifício municipal. De Baçaim (actual Vasai), alguns quilómetros a norte de Bombaim, é igualmente a extensa ruína das muralhas e suas portas (de Terra e do Mar) que se destaca, conjuntamente com a cidadela central e a praça anexa, e a sequência das ruínas religiosas: as igrejas de S. Domingos, a de S. Francisco, a do colégio jesuíta (de grandiosa fachada), a matriz de S.José (com a original torre centrada sobre o portal de acesso).
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6 Presença arquitectónica forte das Igrejas e Conventos, com as suas torres, na frente urbana ou no coração das praças e largos centrais. 4 – Angra do Heroísmo/igreja da Misericórdia virada à baía, 5 – Olinda/Pernambuco e 6 – Tomar. © Fotografias do autor
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9 Significado e centralidade das praças e largos cívicos (com os edifícios das câmaras, a antiga “Casa de Câmara e Cadeia”) e religiosos (com as matrizes e Sés). 7 – Angra do Heroísmo/Praça Velha, 8 – Macau largo do Leal Senado, 9 – Mindelo/Cabo Verde/largo da igreja. © Fotografias do autor
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A sul de Bombaim, outra antiga povoação fortificada – Chaul, hoje Revdanda – exibe não só muralhas, portas e ruínas de igrejas (nomeadamente a de S. Francisco, com a torre fortificada junto à muralha), mas também a longa e estreita estrutura muralhada do Morro, que inclui capelas e fortificações, acompanhando a linha de cumeada da elevação fronteira à cidadela, e guardando conjuntamente a barra. Goa constitui um pequeno mas densamente edificado território costeiro (com a área aproximada da península de Setúbal), a meio caminho entre norte e sul da India – e por isso desempenhou papel de lugar central (e centralizador) no luso “Estado da India”. Das suas cidades há que destacar a antiga capital,Velha Goa (class. pela UNESCO), que ainda exibe um conjunto notável de igrejas e espaços de apoio, dentro do gosto clássico-maneirista que foi gradualmente indianizando em termos estilísticos – com destaque para a Sé Catedral (o maior edifício religioso jamais construído por portugueses), para a igreja Jesuíta do Bom Jesus (com as relíquias de S.Francisco Xavier), para a de N.S da Graça, dos Agostinhos (hoje só ruína), e para a mais tardia de S. Caetano, (só completada na 2a. metade de seiscentos), esta última com um raro zimbório, que depois influenciou as igrejinhas regionais de “falsa cúpula” do território, Nos territórios a sul de Velha Goa (Salcete), o destaque deve ir para a cidadezinha de Margão, notável pelo conjunto de residências de gosto indo-português, nomeadamente a chamada “Casa do Juíz” (ou dos 7 telhados, setecentista) e as habitações que envolvem o vasto mas gracioso largo/terreiro centrado pela igreja jesuíta. No caminho para o Extremo Oriente há que mencionar obras e cidades mais isoladas: em Galle (class. pela UNESCO), na costa do Sri Lanka, com sólidos vestígios da cidadela portuguesa; na Tailândia, as ruínas de Ayutthaya (class. pela UNESCO); a cidadela de Malaca (na Malásia, de que sobrevivem ruínas do forte e da igreja), e os espaços edificados de Timor, nomeadamente Dili (desenvolvidos sobretudo depois do século XVIII). Macau (class. pela UNESCO), cidadela no sul da China, perto de Cantão, constitui evidentemente um espaço original, pela permanência na esfera lusa até ao final do século XX – o que não sucedeu com nenhuma outra possessão ultramarina portuguesa. Devem destacar-se as estruturas edificadas que se algum modo se implantam ao longo do eixo principal histórico (a típica rua Direita com seus largos), entre as duas baías que conformam a urbe: de nascente para poente, a igreja de S. António, a monumental ruína-museu de S.Paulo (ex-libris
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da cidade), S. Francisco, a Sé, o central largo do Leal Senado (com a sede cívica, a Misericórdia e S.Domingos), S.Agostinho, o Colégio Jesuíta e S,Lourenço. Das fortalezas podem destacar-se a do Monte, imponente e cêntrica, e a da Guia, escultural e altaneira. Para finalizar esta viagem pelo Extremo Oriente, deve mencionar-se a cidade de Nagasaki, na ponta ocidental do insular Japão – uma feitoria comercialmente iniciada pelos portugueses, e de que subsiste a característica implantação paisagística (sobre uma baía, entre ilhas, montes e vales), além da ilha artificial de Deshima, no antigo centro da urbe, edificada já no século XVII. Voltando ao Atlântico, foi na terra sul-americana que se implantaram notáveis cidades, vilas e edifícios de origem luso-brasileira, sobretudo a partir da segunda metade do século XVII, quando o Brasil se tornou o centro da Expansão, em detrimento da India. De norte para sul, do Equador para o Trópico, podemos destacar aqui certas povoações e suas arquitecturas, cujas característcas uma vez mais nos remetem para os padrões urbanizadores e edificadores do Portugal ibérico. Às portas do Amazonas, implanta-se Belém do Pará, com a sua fortaleza costeira, e o interessante espaço-praça da igreja jesuíta, setecentista; ali trabalhou, já desde a segunda metade do século XVIII, o arquitecto bolonhês José Landi, que soube imprimir à cidade uma monumentalidade clássicobarroca muito bem inserida na tradição portuguesa da construção ultramarina (Palácio dos Governadores, igreja de Santana em Campina, igrejas do Carmo e das Mercês). No Maranhão é a cidade de São Luís (class. pela UNESCO) que deve mencionar-se, sobretudo pela sua notável malha urbana em retícula, como que executada a régua e esquadro sobre colinas e vales – isto para além de um recheio de arquitectura habitacional em prédios, que seguindo formulário pombalino, o enriquece com profuso revestimento azulejar (caso da rua de Lisboa), dos séculos XVIII e XIX. No nordestino Pernambuco destaca-se a dupla marca urbana de Olinda-Recife. As ruínas de Olinda (class. pela UNESCO) representam a primeira implantação edificada, consequente, em terra do Brasil, constituindo hoje um conjunto precioso; no seu relevo castiço e acidentado, profusamente arborizado, podemos destacar a jesuíta igreja da Graça, a Matriz, ou o conjunto conventual de São Francisco. Olinda fica contígua ao Recife, cuja área central histórica exibe igualmente notáveis monumentos, num espaço urbano orgâni-
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camente “aportuguesado” a partir da original implantação urbana holandesa planeada de modo erudito e clássico por Maurício de Nassau. Brilhando na sua construção de desenho barroco e hiper-decorativo, refira-se exemplarmente a igreja de Santo António, com a luminosa Capela Dourada. São Salvador da Bahia (class. pela UNESCO) foi a grande capital do Brasil do açúcar, sucessora da “Goa Dourada”. Notável no seu conjunto urbano, executado com objectivos centralizadores e administrativos, não deixa de respeitar o modelo de cidade de paisagem, feita de colinas e vales, de “alta” residencial e de “baixa” portuária-comercial, característica da urbe lusa da Expansão. Merecem destaque, entre outros espaços e obras, nesta “cidade das mil igrejas”: o largo da Câmara primeva e do Palácio do Governo; o “Terreiro da Sé”, exibindo a grandiosa igreja Jesuíta (actual Sé) – com as igrejas franciscana e da Ordem Terceira ao fundo; e o famoso largo do Pelourinho, na extremo da área central histórica. São Sebastião do Rio de Janeiro, segunda capital do Brasil, foi muito desfigurada na sua arquitectura antiga com as modernizações viárias do início do século XX, que desbastaram inclusive o próprio “monte genético” da cidade, o Castelo; porém, ainda hoje podemos visitar obras como o Palácio do Governador, fronteiro à praça central, com a baía e o antigo cais, a igreja de S.Bento, de boa “arquitectura Chã”, no extremo oposto do “Centrão”, o vasto largo encimado pela mole conventual franciscana (com o castiço Aqueduto da Carioca ao fundo), e a graciosa igreja de N.S. da Glória do Outeiro, já eivada do gosto barroco na sua planta centrada e poligonal. Pela relação e interpenetração com a paisagem luxuriante, o Rio, dizem alguns, é a cidade mais bela do mundo. Vila Rica de Ouro Preto (class. pela UNESCO), em Minas Gerais, é a capital do ouro setecentista, nascida e crescida de modo quase espontâneo e selvagem pela iniciativa dos mineradores luso-brasileiros. Muitas obras arquitectónicas haveria a destacar nesta cidade de “sobe e desce”, feita de ladeiras e morros. Limitemo-nos a mencionar a praça de Tiradentes (com a Câmara neoclássica, e a Fortaleza, fronteiras uma à outra), e as igrejas concebidas pelo genial António Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, como a igreja de S. Francisco. Ouro Preto vale também pelo seu conjunto de casario, recordando as ruas das vilas do norte português, com amplos e espectaculares pisos de avarandados e cornija, construídos integralmente em madeira, mas imitando o desenho em pedra dos exemplos minhotos…Também no interior brasileiro, refiramos ainda
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as cidades de Goiás e de Diamantina, bem como os vestígios das Missões Jesuítas (três conjuntos class. pela UNESCO) Outras cidades e arquitecturas do sul brasileiro poderiam aqui ser enumeradas. Sintetizando, refiramos ainda a hoje gigantesca São Paulo, com o o largo da igreja primeva, beneditina, ainda existente no centro; a área de Santa Catarina (capital Desterro, actual Florianópolis), colonizada já no século XVIII com forte componente de povoadores açóricos; as extremo-meridionais urbes de Porto Alegre e do Rio Grande (do Sul); e, finalmente, a isolada cidadela fortificada de Colónia de Sacramento (class. pela UNESCO), fundada em finais de Seiscentos, desafiadoramente, frente a Buenos Aires – e depois forçadamente abandonada (hoje no Uruguai).
3. Algumas características urbanas e arquitectónicas de Angra do Heroísmo, patentes ou com analogias em muitos casos urbanos transatlânticos de matriz portuguesa. Traçado e tecido orgânico, herança integrada de romanização, islamização e medievalização. Alguns elementos constituintes do sistema urbano.
Procuraremos nesta breve abordagem atentar não nos temas estritamente históricos e genéticos, na relação de Angra do Heroísmo com outras cidades, mas nos aspectos da geo-morfologia e da paisagem urbana, que, comparando-a com algumas das diversas urbes citadas, permitirão de um modo mais livre o estabelecimento de analogias, de similitudes, de parecenças, – sejam visuais, de silhueta, ou de forma urbana e arquitectónica. A forma global da urbe de Angra do Heroísmo, patente como um “tecido orgânico” (no sentido de um plano geral de geometria “mole”), é genericamente reconhecível em outras cidades lusófonas além-atlântico: trata-se de uma estrutura mais “regular” do que “circular”, radicada no modelo genérico europeu coevo, ou seja, em que os valores medievos se sopesavam com alguma modernização renascentista – e amplamente aberta sobre uma linha costeira de enseada, urbanizada e portuária. Tal sucede por exemplo com as urbes de Macau, de Luanda, de Salvador, ou de Goa – mas em nenhuma delas atingindo a racionalidade geométrica de Angra, embora, como sempre insistimos – adaptada e sabiamente desenhada com a geomorfologia local, e não “contra” ela.
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12 Protagonismo do adro da igreja da Sé ou da Matriz, com o seu largo, escadório ou praça fronteira, no contexto urbano. 10 – Angra do Heroísmo/largo da Sé, 11 – São Luís do Maranhão, 12 – Ribeira Grande dos Açores.. © Fotografias do autor
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15 Monumentalidade e centralidade dos Colégios Jesuítas e suas fachadas de igrejas, na malha urbana das cidades principais. 13 – Angra do Heroísmo/Fachada da igreja do Colégio, 14 – Salvador da Bahia, antiga igreja do Colégio, 15 – Igreja Jesuíta de Velha Goa. © Fotografias do autor
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18 Organicidade funcional dos espaços públicos elementares das cidades e vilas, desde as ruas, aos terreiros e largos, em conjugação com uma arquitectura vernácula com valor de conjunto, que simplifica e integra o desenho e a tradição eruditas. 16 – Angra do Heroísmo/antiga rua Direita-de Lisboa, 17 – Terreiro de Alcântara/São Luís do Maranhão, 18 – Largo na Povoação-Ilha de Moçambique. © Fotografias do autor
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Os largos e as praças mais centrais, bem como as ruas directas que as ligam, estruturantes e aglutinadoras do conjunto urbano, são igualmente patentes em Angra do Heroísmo: a mais central, a Praça Velha, genética do tecido regular envolvente, com a sua Casa de Câmara, liga-se da forma mais clara com a praça da Sé Catedral e com a do Colégio (depois Palácio dos Capitães Generais). Este conjunto de praças cêntricas, articuladas por ruas estruturadoras, que levam necessariamente aos limites urbanos (as “portas” de passagem ao exterior) são igualmente visíveis em cidades como Salvador da Bahia (na sua sequência da praça do Governo e Município/praça da Sé/praça do Colégio/Pelourinho), ou como Baçaim (eixo Portas do Mar/Matriz/Praça da Cidadela/Colégio / Franciscanos/Portas de Terra). A graciosidade da pequena escala, organizada entre os sucessivos e concatenados largos, larguinhos e ruelas – numa delicada síntese de características medievo-modernas, é um tema sistemático da área mais central de Angra, sobretudo no tecido envolvente da malha regular, com características e desenho mais “livres” – e, dada a localização desta urbe, esses pequenos espaços estão por vezes em relação espectacular e alcandorada com a súbita paisagem atlântica. Muito deste “pequeno universo”, feito de espaços públicos e edificações com volumetria variada e irregular, imbrincados entre si, está patente analogamente nas áreas mais centrais e antigas do Funchal (Santa Maria, núcleo da rua Direita, área da antiga Alfândega), no padrão geral do tecido urbano da praça de Mazagão, ao correr da rua Direita de Macau (área do Teatro D. Pedro V), nos sectores mais densos da “Cidade Branca” da Ilha de Moçambique e até mesmo – tanto quanto podemos reconstituir pelas representações cartográficas mais antigas – no tecido quinhentista da praça de Diu, entretanto muito arruinada. O equilíbrio invulgar do castiçismo, em termos do urbanismo e da arquitectura, é feito entre em Angra do Heroísmo por meio de uma conjugação entre os vários tipos de monumentos (religiosos, civis, militares) e a envolvente da arquitectura popular ou vernácula. Este é em geral um aspecto muito corrente e caracterizador da urbe de influência portuguesa, em qualquer das cidades referidas. Por outras palavras: em regra, a igreja ou o convento não possuem em si mesmo um valor excepcional como arquitectura; e as anexas habitações e lojas, com os seus espaços complementares, igualmente não se destacam de modo individualizado; o que ressalta como um elevado valor urbano e arquitectónico é, isso sim, o conjunto do sistema monumento-envolvente, no seu todo.
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21 Sentido cívico-religioso, integrado, com plena funcionalidade e inserção urbana, na organização das funções assistenciais – com base nas “Santas Casas” da Misericórdia, organismos com plena autonomia em cada cidade ultramarina. 19 – Angra do Heroísmo/fachada da igreja da Misericórdia, 20 – Cruzeiro católico em Margão, Goa, 21 – fachada da Misericórdia em Macau. © Fotografias do autor
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4. Angra, Cidade de Paisagem e/ou Cidade Regular? Muito do que se tem valorizado em Angra do Heroísmo refere a sua famosa malha regular, a sua retícula urbana Quinhentista, que muitos consideram um valor sinalizador, de dimensão moderna, do Renascimento Europeu. Mas o valor primacial de Angra não estará quanto a nós tanto na existência desse tecido notável, mais ou menos atestado por pergaminho erudito e pela suposta influência europeia como na capacidade, essa sim notável de bem articular a sua implantação no coração da cidade com os valores mais globais e envolventes do espantoso “urbanismo de paisagem” que Angra constitui desde o início. Ou seja, o que há de mais assinalável em Angra do Heroísmo em termos históricio-urbanísticos, é a presença enquadrada e devidamente culturalizada de um tecido regular qualificado (quer se pretenda este inovador para a época, quer o entendamos resultante de uma tradição medieva actualizada), que se integra com dimensão estética nos outros valores da cidade, nomeadamente na sua forte vivência paisagística – patente na organicidade da imagem geral, no pitoresco e casticismo das silhuetas do edificado entre montes e vales, na reverberação luminosa da pequena escala dos delicados espaços públicos, vista do mar... De resto, a cantada regularidade da malha urbana central de Angra tem muito que se lhe diga: sabendo-a de Quinhentos, não pode competir em rigor, amplidão e escala, em termos de geometria euclidiana, com qualquer contemporânea retícula ou “xadrez” hipano-americano, de Havana a México, de Caracas a Buenos Aires: essas sim, urbes que ensaiavam com elevada perfeição formal um sistema de desenho urbano idealizador, platónico, logo, totalitário na sua suposta capacidade de gerar e conformar toda a cidade... (de a tornar “mono-tona”, ou seja , de um único tom). Ao contrário, a malha regular de Angra é análoga, no rigor relativo das suas ruas e quarteirões, à do Bairro Alto lisboeta – e bem menos exacta do que a das contemporâneas retículas de Damão (India) e de São Luís do Maranhão (Brasil). Tudo isto nos leva a considerar como fundamental o fundo adaptativo, pragmático e sensorial da estrutura reticulada de Angra, servindo sobretudo as necessidades locais: as portuárias, as actividades urbanas centrais e representativas, as funções defensivas e de suporte de vida colectiva trans-oceânica: ela
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serve a cidade, apenas naquela área central onde se insere, e articula-se à partida com os tecidos mais irregulares já existentes, prolongando-se de seguida por outros, de novo em desenho irregular, nas passagens ao hinterland rural. Quero com isto sobrelevar o carácter anti-idealista, anti-platónico e anti-totalitário da retícula de Angra do Heroísmo – implantada com inteligência (fruto de uma sabedoria medieva, ainda imbuída do realismo aristotélico), e deixando assim viver a fundamental dimensão contemplativa, não dominadora (no sentido de anuladora) de um ambiente colectivo global, natural e urbano a um tempo. Esse é aliás – visto agora, no dealbar do século XXI, depois de catástrofes recentes, e com a urbe mais ou menos bem refeita, recomposta e retocada – o grande interesse como património e como futuro, da malha urbana regular de Angra do Heroísmo. Esta malha representa afinal a expressão da sua real modernidade, a qual reside exactamente na sua capacidade de integração (com sentido “ecológico”) na paisagem simultaneamente natural e artificial da bela cidade atlântica, sem a destruir ou forçar, antes a embelezando e engrandecendo.
Bibliografia FERNANDES, José Manuel – Património Construído e Cultura: Portugal no Mundo, in JANUS 2006/Portugal no mundo/A nova diplomacia: Universidade Autónoma de Lisboa / Jornal Público, Lisboa, n.5, Janeiro-Dezembro de 2006, pp.122-123 FERNANDES, José Manuel – 500 anos de Cidades Portuguesas, in Expresso: Sojornal, Lisboa, 16/3/2006
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Palavras-chave: Património; Urbanismo Colonial; Modernismo; Cidades Históricas; Brasil.
Key words: Heritage; Colonial Urbanism; Modernism; Historic cities; Brasil RESUMO
ABSTRACT The goal of this paper is to consider all Brazilian cities classified by Unesco as World Heritage as a possible way of talking about Brazil’s urban heritage and to reclaim its identity. The set of Brazilian World Heritage cities comprises several types of urban foundations in the history of Brazil: cities founded by captaindonors such as Olinda, mining camps such as Ouro Preto, Diamantina and Goiás, and cities founded by the crown such as Salvador and São Luiz. In a meta-historical extension of the concept, Brasilia could also be part of this group as a city of power. The international recognition of Brazil’s “historical” cities was significant for the recognition of Brazilian urban identity. Nevertheless, their application for classification could not have been achieved without the work developed by the founding generation of IPHAN.
Objectivo da conferência, que redundou no artigo aqui publicado, era tomar o conjunto das cidades brasileiras classificadas pela UNESCO Património da Humanidade como um percurso possível para falar sobre a herança urbana do Brasil e reivindicar a sua identidade. O conjunto das cidades classificadas é uma amostragem representativa de vários tipos de fundação urbana da história do Brasil: desde as vilas dos capitãesdonatários, como é o caso de Olinda, ou os arraiais de mineração, como são Ouro Preto, Diamantina e Goiás ou as fundações da coroa, como são os exemplos de Salvador e São Luiz e onde, numa linha meta-histórica também se poderia incluir Brasília, como outra cidade do poder. Mas se é inquestionável que este reconhecimento internacional das cidades “históricas” brasileiras foi significativo para o próprio reconhecimento da identidade urbana do Brasil, a verdade é que as candidaturas não teriam sido possíveis sem o trabalho anterior desenvolvido pela geração fundadora do IPHAN.
CIDADES BRASILEIRAS PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE: a reivindicação da herança urbana do Brasil Renata Malcher de Araujo*
Entre os sítios urbanos declarados pela UNESCO “Património da Humanidade”, encontram-se, no Brasil: a cidade histórica de Ouro Preto (1980), o centro histórico de Olinda (1982), as ruínas jesuíticas-guarani de São Miguel das Missões (1983), o centro histórico de Salvador (1985), o Plano Piloto de Brasília (1987), o centro histórico de São Luís do Maranhão (1997), o centro histórico da cidade de Diamantina (1999) e o centro histórico da cidade de Goiás (2001). Constam ainda da lista da UNESCO o conjunto monumental do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (1985) e as paisagens protegidas do Parque Nacional de Iguaçu, em Foz do Iguaçu (1986); O Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (1991); Mata Atlântica – Reservas do Sudeste (1999) e Costa do Descobrimento – Reservas da Mata Atlântica (1999); o Parque Nacional do Jaú (2000); o Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal (2000); Áreas protegidas do Cerrado: Chapada dos Veadeiros e Parque Nacional das Emas (2001) e as Ilhas Atlânticas Brasileiras: Reservas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas (2001). Estes são os que foram até hoje classificados e há uma série de candidaturas1. É interessante ver a paridade entre as áreas urbanas e as reservas naturais que estão reconhecidas, e é interessante também ver que, nos últimos anos, a UNESCO tem preferido salvaguardar as paisagens no Brasil em detrimento das cidades. Não é esse o assunto que vamos tratar aqui, mas cabe como reflexão. De todos os modos, e no que diz respeito às cidades classificadas, trata-se de uma lista considerável e significativa, em vários aspectos. O Brasil aderiu à con-
* Professora Auxiliar, Universidade do Algarve, Portugal 1 Em 2000 estavam como candidatos: Parati, Petrópolis, O Mosteiro de S. Bento e o Palácio Capanema no Rio de Janeiro, o conjunto da Igreja e Convento de S. António em João Pessoa,Tiradentes e Serro, em Minas, Igarassu em Pernambuco, Alcântara no Maranhão e S. Cristóvão, em Sergipe.
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venção do Património Mundial em Setembro de 1977 e em 1980 tinha já Ouro Preto reconhecida tendo se seguido, nos dez primeiros anos, e em intervalos de cerca de dois anos, as classificações de Olinda, S. Miguel das Missões, Salvador e, significativamente, Brasília. Este primeiro grupo de cidades brasileiras classificadas tem, logo à partida, importantes dados a considerar. Note-se que o conjunto das quatro primeiras cobre literalmente o Brasil de Norte à Sul, e inclui exemplos de fundações dos séculos XVI (Olinda e Salvador), XVII (S. Miguel das Missões) e XVIII (Ouro Preto). A seguir a este conjunto de cidades que tão coerentemente apresentavam o quadro do passado urbano do Brasil obtém-se a classificação de Brasília, que tinha sido fundada cerca de 30 anos antes e que vinha a ser uma das primeiras, senão a primeira cidade contemporânea classificada como Património da Humanidade. Facto ainda mais marcante uma vez que o mesmo plano-piloto de Brasília só foi “tombado” pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional do Brasil (IPHAN) em 1990. Depois de Brasília, só dez anos depois outras “cidades históricas” brasileiras viriam a ser classificadas pela UNESCO incluindo desta vez, São Luís, fundada no século XVII, e outros dois exemplos das áreas centrais de mineração, Diamantina e Goiás, fundadas ambas no século XVIII. Os intervalos entre estes dois grupos de classificações denunciam tempos e entendimentos diferentes, quer nos interesses do Brasil relativamente às suas cidades candidatas à classificação de Património da Humanidade, quer nos critérios da UNESCO, para a aceitação das candidaturas. Essa eventual variação de critérios de ambos os lados não é o ponto central a ser tratado aqui. No entanto, importa-nos ressaltar que, em certa medida, este reconhecimento internacional das cidades “históricas” brasileiras foi, entre outros aspectos, importante não só para a consciência histórica de uma nação recente como o Brasil, assim como e, sobretudo, para o próprio reconhecimento da identidade urbana do Brasil. Ainda que se tenham que considerar seriamente os efeitos nefastos do turismo, que vem quase que inevitavelmente associados ao estatuto de cidade património mundial, a verdade é que todos os processos de candidatura e consequente classificação provocaram efectivamente uma espécie de “redescoberta” do passado urbano do Brasil, tanto fora como dentro do pais. Dois aspectos importantes devem ser tidos em conta para melhor avaliar essa conjuntura. Por um lado, há que considerar a enorme perda, concreta, de edificações antigas, que as transformações desenfreadas dos grandes centros urbanos do Brasil provocavam, cuja pior fase, ou pelo menos onde a curva de
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destruição se acentua, são precisamente os anos 70-80, sem grande desaceleração nos anos 90. Neste sentido, este reconhecimento internacional é uma espécie de reencontro de um elo perdido com o passado, que o presente teimava em destruir. Por outro lado, este processo de salvaguarda e reconhecimento das cidades “históricas”, redunda também numa revisão de velhos mitos historiográficos que pensavam um Brasil colonial de base estritamente rural onde as cidades não tinham importância. Diante das evidências, o país se vê obrigado a reencontrar, já desde o período colonial, vários dos valores da cultura urbana brasileira, desde a arquitectura e a arte até aos rituais e festas e tem de admitir que as cidades são, acima de tudo, um dos grandes patrimónios da cultura brasileira. Mas o “reconhecimento” internacional não é efectivamente o começo deste processo. Na verdade, as próprias candidaturas não teriam sido possíveis sem o trabalho anterior desenvolvido pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional. Mas mais do que isso, o processo em que o papel do IPHAN é fundamental é precisamente o da tomada de consciência e do verdadeiro “reencontro” destas cidades. E aqui é imperioso falar da geração de fundadores do IPHAN. A grande reivindicação da memória e do passado do Brasil foi feita pela mesma geração que assumiu a vanguarda da modernidade. Os três pilares do IPHAN foram Rodrigo de Melo Franco e Mário de Andrade, figuras centrais do modernismo brasileiro, e Lúcio Costa, um dos criadores de Brasília. Estes homens, absolutamente comprometidos com a contemporaneidade, foram também os que souberam entender que o futuro do Brasil passava pela consciência identitária do seu passado. Embora a situação pareça anacrónica, terá sido precisamente essa condição de modernos que lhes permitiu olhar para trás e enfrentar de maneira desassombrada a problemática questão do passado colonial. A genial formulação do manifesto antropofágico – Tupi, or not tupi that is the question – resume o paradoxo da busca identitária da jovem nação, que precisava, como sugeriam os modernistas, “deglutir” a sua história num canibalismo simbólico. Em 1922, precisamente quando se comemorava o centenário da Independência, o Brasil se recolocava com alguma acuidade a questão da sua identidade. Cem anos depois da Independência, e depois de finda a monarquia, a nova geração queria saber quem era, não só no sentido da sua identificação com o passado mas também com o presente. E a manifestação por excelência deste questionamento/afirmação foi a Semana de Arte Moderna de 1922, (11-18 de Fevereiro) que não podia ser senão em São Paulo. São Paulo era o centro econó-
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mico do Brasil e o local da elite intelectual mais progressista. Era também o centro efectivamente cosmopolita do Brasil, tendo recebido os imigrantes italianos para a cultura do café, depois o surto de industrialização, era o melting pot ainda mais amplo que o da colonização e verdadeiramente fervilhante. E 22 foi o ano da implosão/explosão, em São Paulo, da enorme receptividade e questionamento do que representavam todas as modificações que se vinham dando na cultura europeia e mundial nos primeiros anos do século XX: as vanguardas artísticas, os movimentos políticos, as correntes filosóficas, o intercâmbio efectivo, o contacto directo com a ida dos rapazes paulistas para a Europa e a vinda de artistas e poetas, como Blaise Cendras, para o Brasil, etc.. Neste turbilhão, que deliberadamente apontava para o futuro, os jovens modernistas ousam questionar a visão historiográfica que o Brasil tinha se si próprio. A base identitária de praticamente toda a historiografia brasileira do século XIX se tinha sustentado sobre uma espécie de contradição, que via o Brasil como entidade política emancipada de Portugal mas que mantinha uma relação de continuidade cultural com a ex-metrópole e em vários aspectos submetida aos mesmos padrões hierárquicos. Do ponto de vista da história da cultura, por exemplo, a visão que vigorava era que o grande marco de emancipação cultural do Brasil tinha sido a chegada da missão francesa, patrocinada por D. João VI. A transferência da corte e os artistas franceses tinham colocado o Brasil no mundo da cultura. Antes disso o Brasil era “rústico”, e rústica era toda a produção antes realizada na colónia. A visão modernista precisava romper este paradigma, precisava de outra base de análise e vai encontrá-la numa lógica social, marcando a diferença por uma nova síntese. O dado fundamental era assumir o brasileiro como diferente do português, em si como povo, e precisamente como cultura. Mas é preciso notar que o modernismo, de maneira nenhuma nega o passado colonial, ao contrário, incorpora-o à essência do Brasil, tendo a consciência de que o país resultara do processo colonial e não poderia pensar-se de outra maneira. É interessante notar que a base da identificação não foi feita sobre qualquer valor anterior à colonização, como os mexicanos ou peruanos, que podiam invocar o passado civilizacional dos astecas ou dos incas. Um dos dados essenciais da consciência moderna da identidade brasileira é ter claramente entendido que o Brasil nasce efectivamente do processo colonizador. Mas essa consciência não era certamente fácil de ser assumida em termos ideológicos. Assim que a única vingança “antropofágica” que se podia
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fazer para re-enquadrar a colonização, abolindo qualquer sentido de dependência hierárquica e cultural, era precisamente assumindo-a como um todo, ou seja, alegando que o Brasil era já Brasil, como cultura, mesmo antes de ser Brasil como entidade política, pois se a autonomia só foi alcançada com a Independência, a identidade já existia há 300 anos, começada a construir desde a chegada de Cabral. Daí que era preciso procurar o Brasil no próprio Brasil. E aqui cabe ver o importantíssimo papel de todos os intelectuais do movimento moderno e em especial o de Mário de Andrade. Mário de Andrade era um obcecado com a “brasilidade”, queria encontrar o Brasil autêntico, o que verdadeiramente identificava o pais. E assume este processo como uma genuína descoberta do Brasil, renovando deliberadamente o próprio sentido desta palavra, tão cara (e dúbia) para a nação. Todo o grupo de algum modo participa deste processo, mas ele ainda mais, porque se empenha em efectivas viagens de descobrimento. São famosos os seus passeios para o interior, fotografando tudo o que podia, recolhendo relatos de música e folclore. É famosa em especial a dita Viagem de Descoberta do Brasil, realizada em 1924 em que Mário de Andrade leva o grupo modernista para Minas Gerais. É a este movimento que cabe creditar, em boa parte, a valorização do barroco mineiro, a identificação de Aleijadinho e o reconhecimento da sua arte mestiça (com a total superação dos valores académicos franceses), assim como da tradição das músicas e festas herdadas do barroco, propondo no fundo uma visão renovada do próprio barroco brasileiro. O entusiasmo destes anos é fundamental, assim como é fundamental também a associação a uma espécie de “reserva cultural” que se projectava sobretudo para o Brasil do interior. Para o interior de São Paulo, para onde Mário Andrade viajava todos os fins de semana, para aquelas vilas de Minas Gerais que se tinham mantido isoladas, e para todo o interior do Brasil que, em contraste com o litoral onde estavam os grandes centros urbanos, surgia como um país desconhecido ao próprio país. As vilas do interior são então assumidas como centros inatos de preservação dos valores brasileiros – tanto no que dizia respeito às tradições culturais (festas, músicas, etc.) como em termos de arte popular (artesanato) e arquitectura. Assim, desde o início, o interesse na preservação destes conjuntos, não pensava apenas em preservar o sítio, mas a cidade enquanto base da cultura – e isso se fez muitos anos antes das directivas para o “património imaterial” que já estavam implícitas na visão modernista.
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A despeito da conjuntura politica mais fechada dos anos 30, foi precisamente esta intelectualidade ligada ao modernismo que esteve na base da criação, em 19372, do então Serviço, hoje Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que se fez tendo como base um anteprojecto de Mário de Andrade (1936), retrabalhado por Rodrigo de Melo Franco, que viria a ser o primeiro director do órgão, que é pioneiro na América Latina. A esta ínclita geração, o Brasil deve portanto o futuro e o passado. Do ponto de vista patrimonial, em vários aspectos a sua posição é efectivamente de vanguarda. Antes da maioria, pugnavam não pela monumentalização, mas pela amplitude da visão do património, conjugando arte erudita e arte popular, procurando entender os conjuntos e as suas relações intrínsecas. Enquanto para os estudos de folclore o papel de Mário de Andrade é crucial, para as questões ligadas à arquitectura e ao urbanismo, Rodrigo de Melo Franco e Lúcio Costa são fundamentais. É interessante ver, nos seus depoimentos, que o processo é mesmo uma espécie de redescoberta, de reencontro da matriz das cidades brasileiras. Neste, como noutros aspectos, a região das Minas Gerais surge como o manancial onde se vão buscar os dados que conectam a história do Brasil e não é à toa que Ouro Preto, Diamantina e outras cidades mineiras detenham um papel central neste questionamento. Mas ao mesmo tempo que se faz esta identificação basilar da cultura brasileira com estas “vilas do interior”, a mesma geração de intelectuais também está produzindo um outro discurso aparentemente contraditório sobre o passado urbano do Brasil. Neste contexto, há que referir a algumas obras da moderna historiografia do Brasil. Uma é um ensaio intitulado Retrato do Brasil, de 1928, de Paulo Prado (também um dos nomes fundamentais do modernismo e agitador da semana, sendo ao mesmo tempo um dos nomes da grande oligarquia paulista do café); outro o famosíssimo Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal de Gilberto Freyre, publicado em 1933, e do mesmo ano a obra de Caio Prado Jr. Evolução Política do Brasil, a que se seguiria, em 1942, o também famoso Formação do Brasil Contemporâneo e o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, intitulado Raízes do Brasil, editado em 1936. Estes títulos formam a base da moderna historiografia brasileira. Notese que, em todos, a assunção da busca da identidade é denunciada logo no 2 Lembremos que, precisamente em 1937, Getúlio Vargas dá um golpe de estado (10 de Novembro) e instala uma ditadura, intitulada “Estado Novo”, em denominação inspirada no regime português. Getúlio Vargas permanecerá no poder até 1945 (29 de Outubro) quando foi deposto.
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título com as palavras retrato, ou raízes, ou formação. Isto é, o Brasil se perguntava como era o seu retrato, a sua imagem, perguntava-se de onde vinha, quais eram as suas raízes e como se tinha formado. Referimos estes títulos, e em especial os de Giberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, porque é importante reter a imagem da cidade brasileira que ambos passam. Enquanto Freyre reforça o quadro da sociabilidade mestiça e insiste num padrão agrário para a cultura brasileira (com a base nos engenhos de cana de açúcar do Nordeste), Buarque de Holanda reforça o sentido da aventura do desbravamento e o papel dos bandeirantes paulistas. Ambos, de certo modo, negam o papel das cidades durante o período colonial. Freyre porque para ele tudo se passa entre a casa grande e a senzala, e Buarque de Holanda é o autor de um famoso parágrafo que afirmava que, ao contrário dos espanhóis, identificados com os ladrilhadores, que fundaram no novo mundo núcleos urbanos regulares e planeados, os portugueses, os semeadores, não construíram verdadeiras cidades no Brasil, apenas instalaramse desleixadamente sobre as belas paisagens tropicais, deixando-se subir e descer preguiçosamente pelas suas ladeiras3. A interpretação de Sérgio Buarque de Holanda foi responsável pela mistificação, neo-romântica talvez, das telúricas cidades brasileiras que supostamente repetiam sempre os padrões urbanos da “Lisboa medieval”, quer em Salvador, quer no Rio, ou em Ouro Preto. Por outro lado, a exaltação do Brasil rural de Gilberto Freyre também remetia os núcleos urbanos para um papel secundário, na dinâmica social e económica da colónia. Do ponto de vista da história do urbanismo colonial, esta visão foi responsável por uma espécie congelamento dos estudos específicos sobre a formação e evolução formal das cidades, uma vez que não parecia necessário estudar o que supostamente tinha sido resultado de mero acaso, obra quase que integrada na própria natureza, e que para além disso funcionava como puro cenário, uma vez que o centro social estava no campo. Não é portanto à toa que, nessa mesma conjuntura, tenha surgido na historiografia o conceito das “vilas de domingo”, ou seja, a vivência era rural, as cidades 3 “A Cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha de paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre este significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” – palavra que escritor Audrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que “não vale a pena (…)””. Este famoso parágrafo de Sérgio Buarque de Holanda está no capítulo intitulado “O Semeador e o Ladrilhador” incluído no seu livro Raízes do Brasil (1º edição, 1936).
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eram apenas uma espécie de palco onde as pessoas se reuniam para a missa4. A par disso, reforçava-se a ideia das povoações “não desenhadas”, não pensadas como cidades, mas como “arraiais”, ou como aglomerados espontâneos à volta das igrejas (daí, em parte a referência medievalizante e a assunção directa da arquitectura religiosa como o grande património do Brasil colonial). Não há dúvida de que os autores destas análises estavam bem intencionados, embora eventualmente equivocados. Não cabe aqui discutir os parâmetros que estão na base destas interpretações, embora se deva salvaguardar a enorme importância que elas tiveram. No fundo, o que estava em causa era reafirmar a importância da construção social do Brasil, colocando a ênfase na relação com a natureza e nas sínteses mestiças. Cabe ver neste sentido o elogio de Aleijadinho e sobretudo ver também a reivindicação para os “brasileiros” (em especial os bandeirantes que encarnavam a junção do branco e do índio) o mérito da construção efectiva do Brasil do interior, insistindo que a acção da metrópole se tinha concentrado demasiado na costa. Sérgio Buarque de Holanda cita a propósito disso uma outra frase que também ficou famosa, de Frei Vicente do Salvador, autor de uma história do Brasil escrita no século XVII, em que este dizia que os portugueses tinham ficado muito tempo como “caranguejos arranhando a costa”. E por aí se pode tentar explicar o aparente paradoxo desta mesma geração ter sido capaz de reivindicar a identidade e a visibilidade da matriz urbana do interior do Brasil, negando a da costa que é sua base. Ou melhor, se pode tentar entender como esta geração de intelectuais, filhos dos grandes centros urbanos do Brasil, na sua maioria cidades da costa (que para este efeito São Paulo também o é) pôde não ver as suas próprias origens urbanas. Porque de certo modo, afirmar o papel destas que foram “cidades del rei”5 implicaria ter de necessariamente reavaliar o peso que a dinâmica urbana deteve no processo de colonização e neste sentido rever os valores que se projectavam para a cultura urbana do colonizador. Mas ainda não era chegado o tempo. Assim que o processo começou por ocultar uma parte enquanto desvendava outra, o que tem também consequências importantes do ponto de 4 Cf. DEFFONTAINES, Pierre – The Origin and growth of the brazilian network of towns, in “Geographical Review”, XXVIII, Jul. 1938 (Como se constituiu no Brasil a rede de cidades in “Boletim Geográfico”, 14, Rio de Janeiro, IBGE, 1944) 5 Cf. REIS FILHO, Nestor Goulart – Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil 1500-1720. São Paulo : Pioneira/Edusp, 1968.
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vista da preservação, como veremos. Mas isso não impediu de, inexoravelmente, caminhar-se para uma redescoberta da herança urbana do Brasil que passou por várias fases. A primeira fase foi a desta busca identitária que fez conviver, no entendimento das cidades do período colonial, uma visão que era ao mesmo tempo genésica, pois as reconhecia como as bases da cultura brasileira, e exótica, na medida em que se procurava nestas bases uma originalidade, uma especificidade. Nesta fase, a escolha de salvaguarda, os primeiros reconhecimentos, recaem em exemplos passíveis desta leitura poética. Entre os primeiros “tombamentos” efectuados pelo IPHAN encontram-se os casos de São Miguel das Missões (1937), Ouro Preto (1938) e Salvador (1959), de que se pode tirar algumas ilações. As primeiras intervenções em São Miguel das Missões fizeram-se entre 1925 e 1927 pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Em 1937 declarou-se o tombamento, “constituindo-se na altura um símbolo de agregação territorial união nacional e identidade do povo gaúcho”6. Lúcio Costa foi o responsável pelo relatório de tombamento e propôs a realização de um museu das missões, no qual interveio com o projecto7. É interessante ver esta identificação primacial com S. Miguel das Missões. Em parte, os valores patrimoniais desta antiga missão jesuítica estão garantidos pela sua monumentalidade, que mesmo em ruínas é evidente. Para além disso há, naturalmente, todo o complexo significado do que as missões em si representaram no contexto da colonização da América do Sul. Não cabe entrar na controversa disputa entre os que vêem as missões como o lugar da realização da utopia, e os que as vêem como centros de aculturação forçada e violenta. Mas há que ter em conta que para a historiografia brasileira, os sete povos das missões eram sobretudo lidos como vitórias da politica territorial brasileira, que tinha garantido para o Brasil, já no século XIX, aquela área, que fora objecto de disputas entre espanhóis e portugueses na conjuntura das demarcações de limites no século XVIII, e cuja colonização inicial foi obra dos jesuítas espanhóis. Assim São Miguel foi o primeiro conjunto urbano do passado colonial a ser reivindicado pelo Brasil, não sendo obra directa da colonização “brasileira”.
6 Cf.TIRAPELI, Percival, Patrimónios da Humanidade no Brasil. São Paulo : Metalivros, 2000. 7 Cf. PESSÔA, José (org.) – Lúcio Costa: Documentos de Trabalho. Rio de Janeiro : IPHAN, 1999.
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Do ponto de vista urbanístico, Rámon Gutierrez aponta que o desenho das missões constituiu efectivamente um modelo alternativo inclusive ao dito modelo espanhol das leis das Índias8. Um dos aspectos deste carácter alternativo é dado precisamente pela razoável autonomia que os jesuítas conseguiram e que lhes permitia gerir o território das missões em separado do resto da colónia. Embora ainda se discuta a utilização, ou não, de um modelo formal padronizado por parte da Companhia de Jesus para o conjunto das suas missões, R. Gutierrez aponta para um processo pragmático (em que terão contado as próprias experiências iniciais dos jesuítas) que terá redundado na apuração de uma tipologia que, na maior parte dos casos, adoptou a forma rectangular, com a igreja numa espécie de fachada-écran ao fundo e com as habitações dos índios voltadas para ali, em ruas paralelas. O espaço da praça, que se conjuga com a igreja num todo sacralizado, é o elemento de impacto preponderante no plano e para onde tudo converge, quer em termos simbólicos, quer visuais e concretos. Não é necessário reafirmar o quanto pesavam na vivência destes espaços os valores da mundividência barroca reforçados pela acção dos missionários, com as encenações teatrais, festas e procissões. Em 1983, quando S. Miguel das Missões foi aprovado pela UNESCO como Património da Humanidade, foi-o juntamente com as ruínas de Machu Pichu, no Peru e a cidade de Babilónia, no Iraque, o que revela também uma interessante conjuntura internacional. Note-se que se aponta, num mesmo momento, para a valorização de dois aspectos contrastantes do passado indígena da América do Sul, salvaguardando, por um lado, a aldeia incaica que tinha permanecido isolada do mundo e por isso foi preservada, e por outro, um dos vestígios materiais mais eloquentes do projecto de conversão dos povos indígenas, levado a cabo pelos jesuítas. Os dois exemplos que a seguir se citam, Ouro Preto e Salvador podem ser lidos de modo dialéctico. O “tombamento” de Ouro Preto foi quase unanimemente entendido como inevitável e incontestável. Como vimos, desde os modernistas que Ouro Preto encarnava o paradigma da vila colonial. As preocupações com a preservação começaram logo a seguir à famosa viagem de Mário de Andrade e os seus confrades, em 1924. Em 1931, o prefeito da cidade proibia construções que alterassem o aspecto “colonial” do conjunto. Em 1933, 8 Cf. GUTIERREZ Ramon, Planification Alternativa en la Colonia. Tipologias Urbanas de las missiones jesuíticas, in “Urbanismo e História Urbana en le Mundo Hispanico”. Madrid : Universidade Complutense, 1985.
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a cidade foi decretada monumento nacional e, em 1938, era inscrita no livro do tombo do recém criado IPHAN. A unanimidade à volta de Ouro Preto estava garantida pela unidade que o conjunto urbano preservava. Com efeito, com a transferência da capital do estado para Belo Horizonte, fundada para tal em 1897, a antiga Vila Rica ficou de certo modo isolada e congelado o seu crescimento. Mas se a unidade do conjunto é evidente já não o será a identificação puramente “colonial”, uma vez que boa parte do conjunto arquitectónico da vila será datável do século XIX. Mas esta afirmação é puramente provocatória, posto que o seu desenho urbano data naturalmente da sua fundação, no século XVIII. O caso de Salvador é especialmente interessante. A questão do centro histórico de Salvador foi tornada urgente depois da destruição, em 1933, da antiga Sé Primacial do Brasil, que foi demolida para a construção de um retorno da linha de eléctricos. A intelectualidade brasileira revoltou-se com este acto gratuito e esse movimento foi, em boa parte, um dos motores para a própria criação do IPHAN, em 1937, e, no ano seguinte, decretou-se o tombamento de alguns monumentos isolados em Salvador. Mas será só em 1959 que se vai fazer o tombamento parcial do centro histórico, precisamente no mesmo ano em que surge o curso de Arquitectura da Universidade da Bahia, naturalmente de cunho modernista. Aqui é inevitável confrontar o terrível paradoxo de que precisamente quando se começou a valorizar mais também se começou a perder mais. O que remete para o outro paradoxo. O paradoxo da modernidade. Se a geração inicial queria conjugar o moderno com o antigo, a verdade é que o discurso do moderno em vários casos foi profundamente agressivo com o antigo. E mais ainda, o facto de se ter caucionado com o selo de “autenticidade brasileira” os núcleos menores ou do interior, deixava à descoberto os grandes centros urbanos onde a pressão da especulação imobiliária era consideravelmente maior. Assim, há como que um duplo efeito perverso. Por um lado, o paradigma da “vila colonial” corre o risco de congelar numa visão estereotipada (neste mesmo âmbito entra o terrível problema da arquitectura “neo-colonial”9), por outro, a dinâmica urbana contemporânea empurra os “centros históricos” das grandes capitais do Brasil para um processo brutal e acelerado de descaracterização. Para
9 Veja-se sobre este aspecto a reflexão feita pelo próprio Lúcio Costa. Cf. CONDURU, Roberto – Diamantina: pedra de toque da arquitectura no Brasil, in “V Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte”, Faro, Universidade do Algarve, 2002.
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o qual estavam em vários aspectos sem defesa, inclusive sem a defesa de um discurso que os valorizasse pelos seus atributos próprios. Podemos neste sentido voltar ao próprio caso do centro histórico de Salvador que, na circunstância em que foi parcialmente classificado em termos nacionais, a cidade era genericamente lida, numa visão também estereotipada e equivocada, como uma cidade de traçado urbano “irregular e medievalizante”. No entanto, quando se reivindicou, nos anos 80, a classificação como Património da Humanidade, a candidatura não só ampliava a área a ser preservada, como reconhecia Salvador como um dos mais eloquentes exemplos do planeamento urbano assumido pela coroa no século XVI. Retornando ao processo como um todo, observa-se que, ao mesmo tempo, que se foi caminhando para uma consciência cada vez mais apurada da defesa do património do Brasil, e progressivamente foi-se procurando reconhecer mais valores e incluir cada vez mais exemplos no que era necessário preservar (tanto em termos de monumentos como de sítios urbanos), foi exactamente o tempo em que também a pressão económica era cada vez mais forte, sobretudo nos centros maiores. Assim que, quando a partir dos anos 80, se tem a caução da UNESCO e se vão reconhecer as cidades brasileiras como Património da Humanidade, as escolhas foram, por maioria de razão, para aquelas que já tinham sido reconhecidas internamente, não só porque se podia de facto defender os seus casos com mais argumentos, como porque eram estas que tinham sido minimamente salvaguardadas na prática, das destruições mais acentuadas. No parecer elaborado por Michel Parent, em 1966/1967, para a classificação de Olinda pode ler-se que “Olinda é uma das jóias do Brasil onde se compõe admiravelmente a paisagem marinha e a cidade artística rica em aproximadamente vinte igrejas barrocas e de um grande número de casas antigas vivamente coloridas. É isso que impressiona em Olinda, é que, por coincidência de felizes circunstâncias, mas sem duvida provisória se não se intervir imediatamente, o sítio ainda esta intacto (…) Em Olinda a arquitectura fulgura entre os esplendores da natureza tropical. O oceano aparece ao fundo deste quadro por detrás dos campanários e palmeiras. Entre as ruelas, a vegetação luxuriante invade a colina. Esta aspecto distendido da trama urbana deve ser absolutamente preservado. Olinda não é uma cidade, é um jardim transbordante de obras de arte, e que não cessa de polarizar e de perseguir a imaginação dos artistas”10. É evidente neste texto a celebração do inevitável exotismo da conjugação da arquitectura europeia com os trópicos. Mas
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é também interessante ver-se a questão importante, e bem vista por Parent, da preservação de um ambiente mais próximo dos dados iniciais da colonização pela manutenção dos quintais, coisa que a Europa já tinha perdido de todo. O centro histórico de Olinda foi tombado pelo IPHAN em 1968 e a cidade foi decretada Monumento Nacional pelo congresso brasileiro em 1980, no mesmo ano em que Ouro Preto foi reconhecida Património da Humanidade. A candidatura de Olinda foi feita na mesma conjuntura e esta veio a ser incluída na lista da UNESCO logo em 1982. Depois seguiram-se os casos já referidos de São Miguel (1983), Salvador (1985) e Brasília (1987) e depois São Luís, Diamantina e Goiás. O que é importante para nós, e a despeito dos exotismos implícitos, é que este reconhecimento internacional veio de certo modo impulsionar e credibilizar um outro movimento paralelo, que vinha entretanto acontecendo, que era a progressiva superação da mistificação e da ideia de que não tinha havido “urbanismo” a sério no Brasil colónia. Ou seja, as próprias cidades demonstravam a evidência da sua coerência e obrigavam ao verdadeiro reconhecimento das suas características, desmistificando as ideias generalistas e romantizadas, levando a que se retomassem os elos com o passado urbano português. Neste sentido, o reconhecimento das cidades brasileiras como património mundial é tão importante para o Brasil, quanto é para Portugal.Aliás Ouro Preto, em 1980 e Olinda, em 1982, entraram na lista ainda antes dos vários monumentos portugueses classificados em 1983. Mas o processo de “descobrimento” da história do urbanismo português está em curso, e muito longe de estar acabado, há ainda muito o que estudar. Neste sentido, o conjunto das cidades brasileiras classificadas é uma amostragem representativa de vários tipos de fundação urbana da história do Brasil: desde as vilas dos capitães-donatários, como é o caso de Olinda, ou os arraiais de mineração, como são Ouro Preto, Diamantina e Goiás ou as fundações da coroa, como são os exemplos de Salvador e São Luiz e onde, numa linha meta-histórica também se poderia incluir Brasília, como outra cidade do poder. A partir deste e de outros exemplos se podem, e devem, rever os vários aspectos que as unem e reencontrar o fio condutor que, naturalmente, virá juntar-se às cidades portuguesas. 10 (dossiê IPHAN/UNESCO, arquivo Noronha Santos) citado in TIRAPELI, Percival, Patrimónios da Humanidade no Brasil. São Paulo : Metalivros, 2000.
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Palavras-chave: Guimarães; Dupla; Castelo; Colegiada: Património Key words: Guimarães; Double; Castle; Collegiate; Heritage
RESUMO ABSTRACT Guimarães was originally composed of two contiguous towns that were formally independent and separately administered, which were only united by king João I. The Vila Baixa progressed while the castle’s neighborhood slowly decayed. Towards the end of the nineteenth century, a patrimonial awareness developed centered in the medieval history of the city and very much influenced by romantic values. This awareness was responsible for the rehabilitation works undertaken in the Vila do Castelo, developed as part of the “Comemorações dos Centenários” (centennial commemorations) promoted by the government in 1940. A new division of the city was then under way. An integrated vision of heritage-related issues, however, will allow for the overcoming of this situation and the urban ensemble will be classified as World Heritage.
Guimarães seria originalmente formada por duas vilas, contíguas, mas formal e administrativamente independentes, apenas unificadas por D. João I. A Vila Baixa seguiria um caminho de progresso, enquanto que o burgo do castelo entraria num longo processo de decadência. Nos finais do século XIX emergiu em Guimarães uma cultura patrimonial, centrada na história medieval da cidade e muito marcada pelos valores românticos. Ela estará na origem das grandes acções de recuperação da Vila do Castelo, integradas nas Comemorações dos Centenários promovidas pelo Estado Novo em 1940. Esboça-se então uma nova divisão da cidade. Uma visão integrada das questões patrimoniais, contudo, ultrapassará definitivamente essa situação e o conjunto urbano será classificado como Património Cultural da Humanidade.
GUIMARÃES – da fundação a Património da Humanidade José Ferrão Afonso*
Idade Média Entre 950 e 959 a condessa Mumadona Dias fundou um mosteiro duplex junto à importante via Braga – Coimbra. Poucos anos decorridos, ergueu numa elevação próxima um castelo protector que doaria aos monges e monjas do cenóbio. Dois elementos clássicos na criação urbana dos finais da Alta Idade Média estiveram, portanto, na origem de Guimarães. A localização do mosteiro e do castelo, numa encruzilhada importante nas margens de sistemas ecológicos diferenciados, o interior montanhoso e a planície litoral, rapidamente iriam promover o comércio: Montelongo e Basto, Braga, Lanhoso, Lamego, Santo Tirso, Vila do Conde e Porto serão a constelação geográfica associada ao prosperar de Vimaranis. Uma nebulosa, a Via Láctea, que orientava os peregrinos a que o mosteiro estava obrigado a dar hospedagem também: o caminho jacobeu foi um importante contributo para a sedimentação urbana de muitos dos povoados do Norte do país. A marca original da fundação perduraria, pois o povoado organizou-se morfologicamente numa dualidade também clássica na cidade europeia medieval: o burgo monástico, junto da estrada e do mosteiro e, um pouco acima, a Vila do Castelo. Entre elas, as margens de um caminho de ligação rapidamente seriam loteadas, planeando o cobiçado acesso à via pública: nasceu assim a mais antiga rua do povoado, a de Santa Maria. A conquista de Coimbra em 1064 garantiu um desenvolvimento sólido da povoação, que em 1096 receberá o seu primeiro foral das mãos de D. Henrique. O documento, em que se expunham já preocupações comerciais, seria
* Assistente regente, Escola das Artes da Universidade Católica do Porto/Centro Regional do Porto. Bolseiro da FCT.
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confirmado por Afonso Henriques em 1128. Guimarães era já então, juntamente com o vizinho Porto, um centro urbano importante. Em ambas as localidades, a primeira de fundação recente, a segunda com uma longa história, a descolagem urbana far-se-á no âmago do sistema senhorial. Este promoveu-a, organizou-a e encorajou-a: no foral afonsino o desenvolvimento económico da vila e a atracção de populações seriam preocupações centrais. Entre os povoadores estariam os célebres francos; mercadores, monges, guerreiros, ou os três simultaneamente, proliferaram nas povoações medievais do Norte e trouxeram, senão tudo, pelo menos muito: desde a arte da guerra à reforma monástica, do românico aos esmaltes de Limoges que luziam nos tesouros das grandes igrejas. A igreja de Santiago, já existente em 1114 no campo do mesmo nome, foi construída também por francos: Amberto Gualter e Roberto Tibaldo. Se não tivesse sido demolida no século XVI – sabe-se que possuía uma torre sineira sobre a fachada principal e tinha cobertura de madeira – seria, sem dúvida, dos mais antigos templos românicos do território português. O desenvolvimento comercial da vila dupla era uma realidade já no século seguinte, sendo os dois núcleos administrativamente independentes, com órgãos concelhios próprios. Se a dualidade formal não foi excepcional no quadro urbano coevo, o mesmo não se pode dizer da independência jurisdicional, associada à duplicidade icónica: a Vila Baixa era dominada pela poderosa colegiada real de Santa Maria da Oliveira que sucedera, entre 1107 e 1110, ao mosteiro de Mumadona, e a Vila Alta pelo castelo sucessivamente tansformado por D. Henrique, D. Afonso Henriques, D. Afonso III e D. Dinis. O «Bolonhês» concederá em 1258 a primeira carta de feira de Guimarães à Vila do Castelo, ou Vila Alta. Neste, como noutros casos, será extremamente provável que esses documentos apenas atestassem situações de facto. Quando, em 1272, o mesmo monarca confirmou os foros e regalias dos seus moradores, a povoação possuía já margens geográficas precisas; elas serão a base para a construção de um circuito murado que estava concluído em 1318. Segundo as Inquirições de 1258, a vila dupla de Guimarães possuía então uma população de c. 2250 habitantes e, em 1355, D. Afonso IV instituirá uma feira franca no burgo baixo que, entretanto, também já recebera uma muralha. Iniciada no reinado de D. Dinis, estaria já concluída em 1322. Continuava na direcção SO a cerca da Vila do Castelo e, nos pontos de encontro dos dois circuitos, abriram-se duas portas; a da Garrida, a poente e a da Freiria, a nascente. A cisão preexistente entre os dois povoados, contudo, manter-se-ia; um
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pano do muro da Vila Alta separava-os, sendo a comunicação entre eles feita através de uma porta. Apesar da sua importância, Guimarães era então uma vila, ou melhor, duas, como todas as povoações que tinham funções administrativas importantes; cidades, descendentes das antigas civitates da Alta Idade Média, eram apenas as sedes episcopais, como as vizinhas Porto e Braga O progresso demográfico e económico trouxe consigo os Mendicantes, Franciscanos e Dominicanos, ainda na primeira metade de Duzentos. A sua fixação em qualquer centro urbano, sempre muito bem fundamentada e negociada, foi sinal inequívoco de crescimento e progresso. Segundo a versão tradicional, os Franciscanos, chegados à vila ainda na primeira metade do século XIII, ter-se-iam instalado em 1271 num antigo hospital, a SO da Colegiada e junto da porta da Torre Velha. A edificação do convento, contudo, só seria iniciada dez anos depois. Em 1282, a primeira pedra da igreja teria sido benzida pelo arcebispo de Braga. Os Dominicanos, arribados em 1217, instalaram-se na rua de Gatos, junto da muralha e da porta da Vila ou da Piedade onde, segundo a tradição, foram convidados pelo concelho a construir o seu convento c. 1270. A igreja só seria concluída em 1279, sendo rei D. Dinis. A proximidade dos conventos da muralha que se levantava, porém, terá obrigado à sua deslocação para as suas actuais implantações: em 1322 o dos Frades Menores, no ano seguinte o dos Pregadores. A investigação recente não confirma essa itinerância: o convento franciscano, na sua situação actual, estaria já em construção nos anos setenta do século XIII, o dos Pregadores, também na sua implantação contemporânea, dataria de 1272. De qualquer modo, o episódio terá a qualidade de salientar o quão frágil eram muitas fundações mendicantes, e as peripécias porque passaram até uma fixação definitiva. Esta ocorreria, em ambos os casos, em cinturas periféricas extremamente activas: os Franciscanos junto da área industrial de Couros e da estrada de Amarante/Lamego, os Dominicanos perto da porta principal da cidade, à margem da rua dos Gatos, início da movimentada estrada de Vila do Conde. O porto do margem direita do Ave, que como os seus émulos na orla oposta, Pindela e Azurara, teve acelerado desenvolvimento na Baixa Idade Média, seria o grande embarcadoiro de Guimarães, sobretudo depois que, no reinado de D. Afonso II, João Peres da Maia realizou obras de desobstrução na sua barra e que, em 1318, foi aí fundado o convento feminino de Santa Clara. Contemporaneamente à consolidação da entrada marítima de Vila do Conde, a cidade e os Mendicantes, que assim actuavam em duas frentes, cuidaram dos
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Fig. 1 - Guimarães c. 1300. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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seus caminhos para o interior. Os dois mais conhecidos construtores de pontes medievais portugueses, S. Gonçalo e S. Lourenço Telmo, ambos Dominicanos, estão ligados a Guimarães. Segundo a lenda, S. Gonçalo teria construído a ponte de Amarante por volta de 1250. Quanto a S. Lourenço, cujo corpo seria sepultado em S. Domingos, o poder persuasivo da sua pregação teria levado os vimaranenses a contribuir decisivamente para a edificação da ponte de Cavez sobre o Tâmega entre 1224 e 1264. Desde os finais do século XIII, porém, que se avolumarão os sinais de crise. A Peste Negra, que irrompe na vila em 1348, não fará mais do que potenciá-los. As suas várias réplicas, acompanhadas da fome e da guerra, prolongar-se-ão até nos finais do século XIV. Então, na ressaca da crise de 1383-1385, D. João I reunificará a vila, formal e administrativamente; a dualidade, porém, seria perpetuada através de procissões como a do Anjo Custódio que, ainda na Idade Moderna, se dirigiam da Colegiada ao Castelo. O novo povoado tinha intramuros uma dimensão de aproximadamente 20 ha, dos quais 2, 9 ocupados pela Vila Alta, o que era razoável para cidades portuguesas da época. Fora de muros, possuía arrabaldes extensos: o campo da Feira, a oriente do muro, na estrada de Amarante, seria o mais antigo. A rede de albergarias e gafarias que se sobrepôs à das estradas – e que os Mendicantes utilizarão nas suas fundações – também rapidamente traçará os limites urbanos que, bem para além das pedras da muralha, foram pressentidos pelos homens. A divisão paroquial acompanharia a expansão; subsequente à repartição das receitas nas grandes instituições religiosas seculares, ela coincide também com a chegada dos Mendicantes. Uma partilha territorial estabilizada, no seguimento da divisão fiscal, tornava-se, portanto, urgente. Desse modo, em 1220, a paróquia única seria ainda apenas a da Colegiada de Santa Maria de Oliveira: mas imediatamente após surge uma segunda, mais a sul, sedeada na igreja de S. Paio. Na Vila Alta só em 1258 é referida a capela românica de S. Miguel do Castelo como paroquial, ainda sufragânea de Santa Maria da Oliveira. Possivelmente foi sagrada em 1233 e o concelho da vila reunia no seu alpendre, simultaneamente cemitério. A infinita experiência dos mortos só poderia estimular as boas políticas dos vivos. Estes últimos estabeleceram-se, ao longo das vias, novas ou antigas, em unidades de carácter jurídico, morfológico e económico, os chãos, que seriam maioritariamente criados e contratados pelo maior proprietário da povoação: o cabido da Colegiada. O plano urbano, provido com rigor pelos cónegos, abriu
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praças e ruas cuja morfologia seria mais ou menos regular, conforme as condições topográficas, económicas, culturais e de pressão demográfica. Entre os seus três níveis: parcelar, viário e edificado, o primeiro será o fundamental e o mais perene. Desde cedo, portanto, se formalizariam as propriedades essenciais da paisagem urbana de Guimarães. Mas, à semelhança do que sucedeu noutras localidades próximas, a acção do Concelho será, nesse aspecto, débil, para não dizer inexistente. Unificada a vila e derrubado, por ordem de D. João I, o troço de muralha que separava os dois povoados, será junto do grande espaço de representação da Vila Baixa, o largo da Colegiada, ou de Santa Maria, que os homens-bons do Concelho vão construir o seu paço nos finais de Trezentos. A proximidade do sagrado, como a dos mortos, apenas avisará e fortalecerá as decisões de um poder ainda bem frágil. Depois da vitória de Aljubarrota, o monarca, em cumprimento de promessa efectuada a Santa Maria da Oliveira percorrerá em 1387, descalço, o trajecto desde S. Lázaro, seguindo pela rua de Gatos e com passagem pelos Dominicanos, até Santa Maria da Oliveira. O ritual cartografa os limites urbanos e marca distintamente o centro, doravante único, da vila. A promessa incluía ainda a reconstrução do antigo templo e a obra, a cargo de João Garcia de Toledo decorria ainda em 1413, apesar de a igreja ter sido benzida em 1403. Nos finais da Idade Média o espaço urbano de Guimarães coincidia em vários locais com fronteiras que, em muitos casos, apenas seriam significativamente ultrapassadas no século XIX: o castelo e os Canos a norte, a zona de Couros e S. Francisco a nascente, a albergaria de S. Roque e a rua Travessa a sul, os gafos de Santa Luzia e de São Lázaro a poente. A unificação dos dois núcleos, porém, não impediria a desertificação da Vila Alta. Ela seria acelerada pela criação de uma nova barreira, erguida no lugar da antiga muralha demolida por D. João I pelo seu filho bastardo D. Afonso, primeiro duque de Bragança. Ao iniciar, a partir dos anos 20 do século XV, a construção do seu gigantesco paço nas proximidades da linha de separação dos dois núcleos, D. Afonso resgataria definitivamente a Vila Baixa ao antigo povoado do castelo. Outra influência importante teria o Paço dos Duques na arquitectura vimaranense, já que o edifício barreira viria a ser um dos seus temas mais glosados. Esse, porém, não será o caso do novo Paço do Concelho iniciado no reinado de D. Manuel, depois de 1515, frente à Colegiada, entre os largos contíguos de Santa Maria e S. Tiago. Erguido sobre arcos, retoma a forma dos
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antigos pórticos das reuniões concelhias de homens-bons junto das igrejas. O centro é um também um local mental e, ao articular através do alpendre as duas praças, o paço concelhio unificava simbolicamente o que o paço senhorial – aliás nunca concluído – separara. À sua tipologia não serão estranhos, mais uma vez, os Mendicantes. No alpendre praça dominicano do Porto, concluído em 1320, efectuar-se-iam ao longo do século as reuniões magnas do Concelho. Nele coincidiram, numa centralidade tomista, a coalizão de interesses entre burgueses e Pregadores e a nuclearidade geográfica intramuros. O edifíco seria ainda o centro de uma teia geométrica que coordenaria o plano urbano, formatando o desenho de uma boa parte da muralha fernandina e das suas principais aberturas, e a localização da Alfândega (1325), da Judiaria (1388), dos conventos de Corpus Christi em Gaia (1345) e de Santa Clara (1415) e Santo Elói (1491) dentro de muros. A paisagem urbana dos finais da Idade Média portuense foi, desse modo, percorrida por uma forte pulsão sagrada, geométrica e abstracta.. Ela também se verificaria na Guimarães intramuros do último quartel do século XIV, mas independente da situação mendicante, nos grandes quarteirões a norte do eixo rua Sapateira/rua dos Mercadores e a ocidente dos largos de Santa Maria e Santiago. Um plano ortogonal integrará a rua Escura, habitada por dependentes dos duques de Bragança, alinhada pela porta da Torre Velha e orientada na direcção norte/sul, e a Judiaria (referida na década de 70 de 1300), perpendicular a ela no sentido nascente/ poente. No prolongamento ocidental desta última situou-se o primeiro Paço do Concelho joanino e, depois, o seu sucessor manuelino: a sua implantação junto da Colegiada contribuiria para a consolidação simultânea dos tecidos morfológico e cívico da vila. A integração dos elementos topográficos da paisagem, entre eles a Câmara e a Colegiada, e a sua associação a uma atenta geografia social, terão paralelo e complemento nos rituais urbanos, cujos objectivos de organização e coesão do corpo social serão semelhantes. Eles possuirão igualmente uma grande capacidade de gerar formas urbanas. De que outra maneira se poderá entender o pálio-baldaquino do padrão do Salado, petrificado nos finais do século XIV frente à Colegida, junto da oliveira sagrada? Ele duplicar-se-á, ainda na primeira metade de Quinhentos, em peregrinação inversa à de D. João I, em São Lázaro, no extremo ocidental do povoado. Porto sem mar, Guimarães terá então um farol sem barcos, já que o padrão de São Lázaro repete o farol de S. Miguel-o-Anjo, de Francisco de Cremona, no Porto (1528).
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Fig 2 - Guimarães c. 1500. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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Idade Moderna Uma grande continuidade, que alcançará os meados de Oitocentos, trabalhará sobre as principais linhas de força da paisagem urbana medieval. Algumas disfunções, porém, ocorreram. A mais importante talvez tenha sido a abertura de praças a partir de Seiscentos. Elas não serão mais os espaços sagrados primordiais, como o que se situou em redor de Santa Maria e de onde, debaixo da protecção dos mortos, emergiram a assembleia, a justiça e o mercado. À civilização medieval de proximidade, táctil e objectiva, sucedeu a subjectividade de uma cidade que se pretendeu organizar, formalmente, segundo os mecanismos da visão. O mais precoce e importante exemplo dessa transformação será em Guimarães o terreiro da Misericórdia, aberto a partir do primeiro quartel do século XVII. Ele obrigou à demolição de um bom trecho da povoação medieval, libertando a fachada da igreja de Manuel Luís (i.1604, e concluída, com alterações suas no registo superior, por Gonçalo Lopes) e a da casa de despacho junto dela, de João Lopes de Amorim, rematada em 1640. O hospital anexo, contudo, ainda em 1674 não estava terminado. A plasticidade estabilizada do frontispício da Misericórdia não terá continuidade no repetitivo desenho de superfície da casa de despacho. As três igrejas das Misericórdias de Braga, Porto e Guimarães foram uma série que Manuel Luís desenvolveu ao longo da segunda metade de Quinhentos e em que o nervoso e um tanto obsessivo modelo maneirista inicial se depuraria até à distensão contida da fachada vimaranense. Ele, é portanto, um dos últimos elos nortenhos da cadeia de fachadas retábulo quinhentistas. A casa de despacho, pelo contrário, é um ponto de partida. Gémea do corpo principal do hospital de D. Lopo de Almeida, na rua das Flores portuense, ela perdeu, algures na extensão e na afirmação, monótona e automática, das suas fiadas de aberturas, o sentido de desenvolvimento orgânico da fachada da igreja vizinha. No processo, assumiu o carácter dogmático dos grandes edifícios conventuais da Contra – Reforma tridentina, identificando-se, assim, com muita da arquitectura seiscentista do Norte. Mas o modelo dogmático não seria universalmente seguido pelos conventos que se erguerão em Guimarães a partir do século XVII. Quase todos femininos e de pequenas dimensões, evitarão a afirmação das longas frentes, recatando-se atrás de acidentes como os muros das portarias e as torres dos mirantes. O mais antigo entre esses conventos seiscentistas, o dos Capuchos (1644), seria o único masculino, instalado no exterior da muralha da
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Vila Alta, frente à Porta do Garrida. Do edifício original pouco resta, e a fachada da igreja em que o entalhador António da Cunha Correia Vale conseguiu trazer para o rocócó uma robustez, barroca e bem minhota, é posterior a 1763. Da história da edificação do convento ficou o registo de um furto, ainda que pouco sacro: os frades não tiveram qualquer problema em ir roubar a pedra de que necessitavam no castelo próximo. Outros dois conventos femininos instalaram-se, em Seiscentos, para além dos limites da cintura periférica semicircular definida pelos Mendicantes no século XIII. Ela tinha, entretanto, sido ocupada por «campos», adjacentes, a poente, sul nascente, às muralhas. O mais bem sucedido de entre eles era o do Toural, contíguo a S. Domingos. No campo a SE do Toural surgiria mais uma paroquial, a de São Sebastião (i.1570) e, já no século XVII um hospital, o de São Dâmaso (i.1636), frente a S. Francisco. Será a sul do campo da Feira e junto da estrada de Amarante, que se firmarão modestamente as Capuchinhas em 1683. O dormitório do convento foi contratado em 1719 e a igreja estaria provavelmente concluída em 1734. As Dominicanas, por sua vez, fundariam a sua casa de Santa Rosa de Lima, na rua Travessa, não muito longe dos seus irmãos masculinos, em 1680. O convento, contudo, só foi iniciado em 1727, estando quase concluído em 1739. Finalmente, as Carmelitas preferiram o troço superior da rua de Santa Maria, designado da Infesta, onde se instalaram em 1685. No ano de 1723 conclui-se a igreja e, em 1732, o pórtico principal. Por sua vez, no interior da muralha, um convento já antigo recebiam roupagem nova. Fundado em meados do século XVI na rua de Santa Maria, o convento de Santa Clara, será reformado nos anos trinta e quarenta de Setecentos. O século XVII assistirá também à construção das grandes casas nobres no interior de muros. Elas sucederam às torres medievais e ao despontar do valor icónico das fachadas em Quinhentos. No terreiro da Misericórdia afirmam-se a Mota-Prego, originalmente do morgado dos Carvalhos e a dos Coutos, na origem Peixoto de Miranda. A vontade de auto representação da elite vimaranense expressa-se aí de forma diferente; na primeira, inacabada, uma rigorosa demonstração serliana de distribuição de aberturas articula-se bem com o revivalismo da torre; Na segunda, a turre, transformada em mirante barroco, ocultou-se por trás da repetição infinita e monótona dos vãos. Estes, e a fachada da casa, expõem uma complicada adaptação da perspectiva, já que ondulam segundo o alinhamento da antiga rua medieval do Serralho, preexistente à abertura do terreiro. O mesmo, aliás, se verifica na margem
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fronteira, onde existira a rua das Flores. O traçado da rua medieval que vai, mesmo depois desta última ter deixado de existir, continua a assombrar a paisagem urbana portuguesa da Era Moderna. Mas a casa nobre urbana seiscentista de Guimarães, na sua vontade de conquista de espaço, será também capaz de variedade, audácia e inovação: a do Arco, do morgado dos Almeida de Eça, é uma precoce e pragmática planta em “H” na qual o corpo central se lança, balconado, sobre a rua de Santa Maria, seguindo o exemplo do não muito distante paço do concelho manuelino. Ambas as casas do Terreiro da Misericórdia, a Mota Prego e a dos Coutos, serão ocupadas pelo arcebispo de Braga D. José de Bragança que, desavindo com o seu cabido, se instalaria em Guimarães entre 1747-1749. Ele e o então proprietário da casa Mota Prego,Tadeu Luís de Albuquerque, estarão na origem de grandes celebrações barrocas que terão como palco o terreiro. O arcebispo seria ainda, antes e durante a sua permanência vimaranense, o promotor de um surto arquitectónico «joanino» que se fará sobretudo sentir na portaria do convento do Carmo e no vertiginoso pórtico do convento de Santa Rosa de Lima. Menos compreensível é o seu patrocínio à exuberante fachada do Carmo (1742), cujas aberturas se distribuem numa tensão magnética, ainda maneirista, capaz de atrair e fixar em seu redor toda uma série de elementos decorativos originários do imaginário popular. Outras casas nobres se construirão, sobretudo no século XVIII, na periferia urbana: a mais espectacular de entre elas é a de Vila Flor (c. 1750). Como o paço dos Duques, foi um projecto inacabado; será, também como ele, uma enorme barreira, aqui escoltada por uma galeria de granito, representando os reis portugueses, esculpida em torno das suas fachadas norte e nascente. Essa foi a única ala do edifício construída em Setecentos, rematando um jardim rocócó de escadarias, pináculos, estatuária, casas de fresco e luzidias japoneiras que se estende por três níveis. Mais a norte, a casa de Vila Flor terá um jardim semelhante, embora mais pequeno; ela situou-se nas traseiras do santuário do Senhor dos Passos, no extremo nascente do antigo Campo da Feira, projectado pelo bracarense André Soares em 1769. O plano de André Soares, que incluía uma berniniana ponte com estatuária sobre o rio de Couros, entretanto destruída, transformaria o antigo campo no mais importante conjunto cenográfico da cidade. A influência do rococó bracarense é notória na vila durante a segunda metade do século XVIII; para além do Senhor dos Passos, dos jardins de Vila Flor e Vila Pouca, e de uma série de casas nobres, a cidade acolherá ainda uma
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das jóias da arquitectura civil nortenha, a casa Lobo Machado (1754), na rua Sapateira, junto ao terreiro e hospital da Misericórdia. A casa, cómoda de um íntimo e luxuoso boudoir que, por acaso, se encontrou na via pública, conquista e afirma através da existência única da fachada; desse modo, ninguém pensou, ou achou necessário, prover-lhe um interior ou, sequer, uma traseira. Para além da plasticidade do frontispício, apenas o pátio mostra, no desdobrar do remate do corrimão e do patim da escadaria, uma atenção, ainda que minimalista, a um sensual tratamento do espaço.
Fig 3 - Guimarães c.1780. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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Idade Contemporânea A escadaria e a fachada da casa Lobo Machado são sistemas requintados, enganosos e manipuladores; eles são uma constante no trabalho de André Soares e concretizam uma perturbadora capacidade rocaille: a de transformar a obscena em cena. Desse modo, o percurso iniciado com a abertura do terreiro da Misericórdia, que assinalou em Guimarães o arranque da utilização dos mecanismos da visão como geradores de formas urbanas, terá aí a sua conclusão lógica. O esgotamento do modelo rocócó originará uma reorientação geográfica: à influência bracarense sobrepor-se-á a do Porto e das Obras Públicas almadinas. Desde os anos sessenta do século XVIII que se sucediam as normas de regulamentação urbana, proibindo as rótulas, tabuleiros, empanadas e sacadas: o alinhamento das ruas, a construção de «corredores de movimento» era, ainda, o seu grande objectivo O senado vimaranense, porém, pretendeu nos finais de Setecentos ultrapassar esse conjunto de apêndices do urbanismo «regulado» medieval. Em 1792 escreve à rainha, pedindo «…que ela fosse autorizada a dar o plano e risco de todos os edifícios que na vila se construíssem como se fazia no Porto para que assim a vila se aformoseasse e regularizasse…». A resposta real, recusando essas pretensões, deve ter sido decepcionante para a edilidade. Segundo a Coroa, as instituições existentes na vila e o modelo de práticas urbanas que até aí implantara seriam capazes de dar perfeitamente conta do recado. A tradição, portanto e como sempre, está no âmago do urbanismo português. Tradicional, e talvez com o intuito de aclamar os ânimos da elite local, será a planta enviada para a construção de uma frente urbana no campo do Toural, a sul da vila. Este era então o mais importante do povoado, com edifícios nobres como a casa do Toural (1721) e a igreja de S. Pedro, (i.1735); o novo projecto obrigaria à demolição da antiga muralha que, aliás, desde os anos oitenta se ia paulatinamente destruindo em vários pontos. Surge assim mais uma barreira, ou se quisermos, uma fachada para a vila, pois o Toural era o principal ponto de confluência dos caminhos que se dirigiam a Guimarães ou por ela passavam. O paralelo, na volumetria, implantação e significado deve-se procurar no dormitório dos Lóios, no Porto, actualmente conhecido como Passeio das Cardosas. A fachada portuense, contudo, tem conotações aristocráticas – nela reverberam as duplas pilastras coríntias da Chancelaria romana, contidas sob um frontão clássico – enquanto que Guimarães adoptaria a solução bem mais burguesa do prédio almadino. Ele, porém,
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será multiplicado ao infinito. Desmaterializado pela transparência das aberturas quase contínuas, voltadas a sul e ao sol, conseguirá mesmo fazer esquecer os pesos dos cunhais e cornijas ainda rocaille. Uma forte industrialização, encetada nos finais do século XVIII mas intensificada sobretudo a partir dos meados de Oitocentos, trará a melhoria substancial da rede rodoviária, o comboio, e uma demografia galopante à vila. Transportará também a expansão urbana para além dos limites parcimoniosamente mantidos durante séculos, bem para além da barreira de Vila Flor e das suas sentinelas reais. Inicia-se, portanto, o processo de fragmentação dos equilíbrios do sistema urbano criado no século X: ao sentimento de perda estarão associadas as primeiras e românticas preocupações patrimoniais. Desse modo, surge em 1850 uma «Comissão de Amigos do Castelo», patrocinada pela Câmara. Pouco depois, em 1863, a cidade – desde 1852 e da visita de D. Maria II – terá um plano, de autoria de Almeida Ribeiro. Documento pragmático, imbuído da filosofia higienista oitocentista, respira ainda a prática tradicional do urbanismo regulado medieval, como se entende pela sua designação: «Plano de Alinhamentos e Melhoramentos da Cidade de Guimarães». O documento não introduz, portanto, rupturas e, mais do que consagrar uma expansão, ratifica e enquadra a que até então se verificara.Também apresenta preocupações patrimoniais, mas dirigidas a edifícios específicos: o castelo, o paço dos duques, a igreja de S. Miguel.Vão-se, portanto, sedimentando os objectos de uma hagiologia vimaranense – e portuguesa –. Como sabia já S. Bernardino de Siena no século XV, é neles, não no espaço, que se alojam as qualidades do sagrado. Desse modo, sancionam-se as demolições quando julgadas «necessárias»; assim sucederia com as igrejas de São Tiago (1887), S. Sebastião (1892) e S. Paio (1914). Elas eram dispensáveis na hierarquia teológica criada pelo romantismo do século XIX e escritores como Alexandre Herculano, Vilhena Barbosa, Ferreira Caldas, Ramalho Ortigão e Albano Bellino. A sua origem, porém, é anterior: ela anunciava-se já nas estátuas dos reis que sacralizavam Vila Flor (c. 1750), ou em escritos como o do padre Torquato Peixoto de Azevedo, «Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães» (1692). A idade pré-patrimonial será mesmo capaz de produzir obras de conservação acidentais, como as ordenadas no castelo em 1721 por D. João V e, posteriormente, reafirmadas por D. João VI em 1802. O potencial hagiológico da cidade será pressentido, estudado e ampliado por Martins Sarmento (1833-1899), dinamizador dos Congresso Nacionais
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de Arqueologia realizados entre 1877 e 1880. Ele alargar-se-á então à arqueologia, etnografia e etnologia. Não surpreende, portanto, que Martins Sarmento seja, com o Padre Ferreira Caldas, José Pinto de Queirós Montenegro e o cónego José Aquilino Veloso Sequeira, responsável pelo primeiro restauro «científico» da igreja de S. Miguel do Castelo (1874). A sua obra será secundada e complementada pela do seu conterrâneo e contemporâneo Alberto Sampaio (1841-1909), autor das «Póvoas Marítimas», que insistiria na urgência da reconstrução nacional, através do fomento agrícola, da industrialização, do estudo aprofundado do artesanato e cultura populares. Tendo em atenção esses objectivos, Sampaio ajudará a promover em 1882 a criação da Sociedade Martins Sarmento e, em 1884, do seu órgão científico, a «Revista de Guimarães». Para a Sociedade, o arquitecto portuense Marques da Silva construirá, a partir em 1899, junto do convento de São Domingos cujo claustro será, aliás, integrado no edifício, um museu panteão simbolista cujas três absides historiadas rematam, a nascente, o corpo antigo da cidade. Com a República, Mariano Felgueiras, um dos membros da Comissão Executiva da edilidade vimaranense eleita em 1914, encomendará uma nova câmara municipal a Marques da Silva, projecto historicista apresentado em 1916. Na sua memória descritiva o arquitecto alarga o leque dos objectos sagrados: para além do castelo, da capela de S. Miguel e do paço dos duques, nomeiam-se S. Francisco e S. Domingos, a praça de Santa Maria da Oliveira e o Paço do Concelho de origem manuelina. Só em 1924, porém, arrancará a sua construção na nova praça circular, junto do Paço dos Duques, formalizada no haussmaniano plano de Luís de Pina que será apresentado em 1925. Ele ordenava, a partir da praça da câmara, a expansão radial da cidade para NE, criando uma alternativa à cidade antiga, ao mesmo tempo que interagia com a Vila Alta do Castelo. O conceito museológico de património elaborado pelo plano Ameida Ribeiro será, no programa de Luís de Pina, objecto de uma revisão importante: não se deverão preservar apenas objectos mas, em consonância com o que F. Choay denomina de «conservação devota», áreas extensas da cidade antiga, pré-industrial, e do seu ambiente urbano. Numa inversão da história, ao mundo nominalista dos objectos sagrados de Bernadino de Siena sucede uma aproximação ao conceito augustuniano da cidade como imago mundi. O plano Luís de Pina será, portanto, um passo importante na criação do conceito de centro histórico.
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Fig 4 - Guimarães c. 1925. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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Durante a República, e bem para lá dela, manter-se-á actuante em Guimarães uma ideologia patrimonial em que a recolha dos objectos sagrados móveis, maioritariamente provenientes da extinção das ordens religiosas, será complementada pela colheita dos objectos, igualmente sagrados e teoricamente imóveis, provenientes da História. Ambas, porém, coabitarão com a acção demolidora de áreas urbanas mais ou menos extensas. Para a primeira colecta criou-se em 1928, já com o Estado Novo, o Museu Alberto Sampaio, que foi acompanhado pelo restauro do claustro supostamente românico da Colegiada que, na realidade, datava em grande parte do século XVI. Com objectivos semelhantes, surgiu em 1931 o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, instalado no antigo Paço do Concelho do Largo de Santa Maria. O inventário será prosseguido em 1940, quando Alfredo Pimenta escreveu o Guia Turístico de Guimarães, trabalho pioneiro e um dos mais importantes do género, depois de, em 1936, ter defendido no primeiro Congresso Nacional de Turismo a grande qualidade e quantidade dos recursos arqueológicos, arquitectónicos, artísticos e bibliográficos vimaranenses. A recolha de Alfredo Pimenta abrangia os dois tipos de objectos hagiológicos, móveis e imóveis. Ela surge no contexto das Comemorações Centenárias de 1940, na preparação das quais o Estado Novo investira fortemente no restauro do castelo (i1932), igreja de S. Miguel (i.1936) e paço dos Duques (i. 1937, concluído apenas em 1960, a cargo de Rogério de Azevedo). Eles formalizarão o conceito de «colina sagrada» que, porém, irá muito para além da sacralização de uma Idade Média mítica pois, com a execução do parque projectado por Rogério de Azevedo, apenas concluído em 1962, objectivou-se um cenário de cosmogonia, em que a arquitectura emergia do ambiente primordial da natureza. Mas, mais uma vez confirmando Bernardino de Siena, não seria a colina que possuía um carácter sagrado, mas sim os objectos que nela se encontravam e os que lá foram colocados. Neste último caso incluiu-se a estátua de D. Afonso Henriques de Soares dos Reis, originalmente inaugurada frente a S. Francisco, depois deslocada para o Toural por Mário Felgueiras e, por fim, a tempo das Comemorações Centenárias, para junto da fachada do paço dos duques. Depois de consolidada a sacralização, o temenos da «zona protegida» será traçado em 1952 por uma primeira vez, a segunda, definitiva, ocorrerá já em 1955. Mas, mais do que proteger os objectos da colina, a delimitação destinava-se a evitar que eles se deslocassem. A desmontagem da igreja de S. Dâmaso e a sua reconstrução em 1965 no extremo norte do campo de São Mamede seriam a prova cabal dessa inquietude.
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A existência da colina sagrada fará ressuscitar a antiga dualidade medieval de Guimarães. Não só formal, mas também administrativamente, já que na Vila Baixa as preocupações patrimoniais serão assumidas em 1931 por uma Comissão de Estética, proposta pela Sociedade de Defesa e Propaganda de Guimarães; ela terá por objectivo controlar todos os projectos de alteração arquitectónica ou estrutural da cidade, tomando a seu cargo a renovação das fachadas das habitações da rua de Santa Maria (1932). A escolha dessa rua não terá sido acidental: se ela era tida como sendo a mais antiga da cidade, fora também o elo de ligação das duas vilas. Em 1949 será apresentado, na sequência do 1º Congresso Nacional de Arquitectura e das directivas de Duarte Pacheco, o ante projecto de Urbanização da Cidade de Guimarães, de Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva. Muito inspirado em De Groer e no movimento inglês da cidade jardim, será implementado a partir de 1955 e configurava uma colaboração, senão uma dependência estreita das ideias propostas pelos Monumentos Nacionais para a cidade. Continuava, portanto, a ser patrimonialmente selectivo, preconizando apenas a conservação das áreas de maior valor arqueológico ou arquitectónico e sacrificando importantes áreas da paisagem urbana histórica. Depois dos planos de Almeida Ribeiro e Luís de Pina, seria aquele que teve maiores possibilidades de execução e um dos seus maiores méritos seria a cintura de jardins criada, a poente e sobretudo a nascente, em torno das antigas muralhas, ocupando a cintura periférica medieval delineada pelos Mendicantes. Ela, porém, obrigaria à demolição de uma boa parte da cidade antiga, incluindo a igreja e hospital de São Dâmaso. A primeira seria, como dissemos, movida para o campo de S. Mamede, junto do castelo; uma habitação medieval, por sua vez, seria deslocada e reconstruída no largo de São Tiago. O ritual, agora institucionalizado nos planos, continua a ser capaz de gerar formas urbanas e a comandar a deslocação dos objectos sagrados; estes porém, trasladam-se agora, ao contrário do que sucedeu com o padrão de São Lázaro no século XVI, da periferia para um centro exangue. Com efeito, no interior dos antigos muros, a antiga Vila Baixa degradavase aceleradamente; em 1955 o Ministério das Obras Públicas e a Câmara retomam algumas das considerações da Comissão de Estética doa anos 30, ordenando que todos os projectos de arquitectura deveriam ser supervisionados. Irrompe a ideia de que Guimarães se devia «defender denodadamente». Suceder-se-ão os ritos de interdição e protecção que fortalecerão o centro e lhe conferirão o seu carácter mágico/religioso. Nesse sentido, também será
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necessário definir e identificar as ameaças que pesavam sobre ele. Esse trabalho, que terá como um dos objectivos principais a contenção da «constelação desordenada», entenda-se da suburbanidade. Ela seria produzida, sobretudo a partir dos anos sessenta, por um ritmo de industrialização em comparação com o qual se pode afirmar que aquele que ocorrera no século XIX simplesmente não tinha existido. Na sua contenção será uma etapa essencial o Plano de Urbanização de Guimarães, de 1979, do arquitecto Fernando Távora. Ao Plano de Urbanização sucedeu-se, em 1983, a criação do Gabinete do Centro Histórico pelo arquitecto Nuno Portas, que mais tarde será designado Gabinete Técnico Local. Os seus limites de actuação coincidirão inicialmente com os da antiga muralha medieval da Vila Baixa: a sacralização da cidade estava completa, as suas muralhas reerguidas, mas o perigo da dualidade também. Na recta final, será ao trabalho altamente qualificado desenvolvido pelo Gabinete Técnico Local, que, em grande parte, se deve a consagração obtida com a concessão em 2001 do título de Património Cultural da Humanidade ao centro histórico. Ele conseguiria também a reunificação, pois a área abrangida pela classificação incluiria as antigas Vila Alta e Baixa. Mas a verdadeira heroína da história, a detentora da magia foi, sem dúvida a cidade,Vimaranis.
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Fig 5 - Guimarães c. 1975. A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação de um património edificado. In AFONSO, José Ferrão; FERRÃO, Bernardo José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. I. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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Fig 6 - Área classificada em 2001. A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégias, método e algumas questões disciplinares. In AGUIAR, José, Guimarães Património Cultural da Humanidade, vol. II. Guimarães: CMG., Gabinete Técnico Local, 2002.
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Guimarães – da fundação a património da Humanidade
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Palavras-chave: Património Urbano; Monumento Histórico; Urbanismo; Cidade; História
Key words: Urban Heritage; Historic Monument; Urbanism; City; History RESUMO
ABSTRACT This article is a reflection about the classification of Évora an a heritage city. This classification is still too much based in the quantity and quality of the city historic monuments, considering ancient current architecture and urban structures only as context of those monuments. The idealized perspective of Évora’s past that dominates the majority of the discourses about the city, symbolised by its most important historic buildings, explains why ancient current architecture and urban structures don’t have yet a heritage status similar to the monuments. More permeable to the history dynamics, the current architecture and urban structures forms reflect the epochs of expansion as well as the epochs of depression. So, what we propose is another way of seeing the Évora’s value as heritage, a more enlarged one, which includes the entire city’s elements typological, stylistic and structural variability. Because all this variability is a manifestation of the complexity of Évora’s past.
Pretende-se reflectir sobre a condição patrimonial da cidade de Évora, ainda muito sujeita ao domínio dos monumentos isolados e ao entendimento da restante arquitectura e das estruturas urbanas como contexto dos primeiros. Domínio que se deve à sobrevivência, quer nos discursos sobre Évora, quer nas suas imagens, de uma perspectiva idealizada da história da cidade, concentrada nas épocas de maior prestígio cultural e político, das quais os monumentos dão um expressivo e simbólico testemunho material. A arquitectura corrente foi, pelo contrário, mais permeável às dinâmicas da história, reflectindo, na sua configuração e disposição, tanto as fases de expansão como as de depressão, mantendo-se, por isso, relegada para segundo plano enquanto valor patrimonial. Deste modo, a partir do conceito de património urbano, propõe-se outra valorização do núcleo histórico, que inclua as variabilidades tipológicas, estilísticas e estruturais do tecido construído da cidade como manifestação da complexidade do seu passado.
O PASSADO É UMA CIDADE IDEAL: um olhar sobre a patrimonização de Évora Paulo Simões Rodrigues*
“Esta cidade-museu, cujas raízes recuam até à época romana, atingiu a sua idade de ouro no século XV, quando se tornou residência dos reis portugueses. A sua originalidade radica nas casas caiadas de branco, decoradas com azulejos e balcões de ferro forjado datados do século XVI ao XVIII. Estes monumentos tiveram uma profunda influência na arquitectura portuguesa do Brasil”1 – assim se apresenta o centro histórico de Évora no sítio da UNESCO na Internet dedicado ao património mundial (World Heritage Centre), o qual consagra a imagem que a cultura nacional construiu desta cidade, fundamentada paradigmaticamente no conceito de “cidade-museu”, surgido nos finais do século XIX. Encontramo-lo mencionado por Ramalho Ortigão em O Culto da Arte em Portugal de 1896 – “Pobre cidade de Évora, um dos nossos mais vastos e mais preciosos museus de arqueologia e de arte, (…)”2 – e, já no século XX, na enunciação “necrópole-museu de grande povo” com que Fialho de Almeida classifica a urbe alentejana.3 Deu-lhes continuidade, vulgarizando o epíteto, um guia da cidade publicado pela editora Bertrand no ano de 1929, em que Évora é descrita como “Capital do reino, grande foco de cultura, rica de monumentos, com ar de grandeza, das mais típicas cidades do país, Sempre-bela e Museu de Portugal”4. * Assistente, Departamento de História e Centro de História de Arte e Investigação Artística, Universidade de Évora, Portugal 1 Tradução de “This museum-city, whose roots go back to Roman times, reached its golden age in the 15th century, when it became the residence of the Portuguese kings. Its unique quality stems from the whitewashed houses decorated with azulejos and wrought-iron balconies dating from the 16th to the 18th century. Its monuments had a profound influence on Portuguese architecture in Brazil”. http://whc.unesco.org/en/list/361 (08/03/2007). 2 Ramalho ORTIGÃO – “O Culto da Arte em Portugal”. Arte Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1943 (volume I), p. 92 e 93. 3 Fialho de ALMEIDA – Em Évora. Évora: Diário do Sul, 2002, p. 26. 4 Évora. Excursões na Cidade e Arredores. Lisboa: Bertrand, 1929, p. 3 e 4. Edição que incluía versões em Português, Inglês e Castelhano.
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No conceito de “cidade-museu” consubstanciou-se a noção de Évora como um núcleo urbano “antigo” e “pitoresco”5, “paraíso do aguarelista e do arqueólogo”6 ,“quer pela sua história, quer pelos monumentos que ainda conserva”7,“velho burgo do sul”8,“inesgotável relicário de arte e beleza”9. Esta noção tem raízes profundas no tempo, podendo ser detectada no século XVIII, subjacente à afirmação do padre António Franco (1662-1732) de que “por ser uma das mais nobres e antigas da Lusitânia, assim no profano como no sagrado, tem muitas coisas dignas de memória e história”10, ou ainda, mais remotamente, em 1552, através das palavras proferidas por André de Resende (1500? – 1573): “Esta vossa cidade, em outro tempo casa e alojamento do valoroso e muito nomeado Sertório e, em este nosso, frequente morada e habitação dos Reis e Príncipes, Nossos Senhores; cidade em sua origem e fundação antiquíssima, em a fé católica e religião cristã entre todas as de Hispânia ou mais antiga, […]”11. André de Resende dava deste modo início a um longo processo de fixação de uma imagética eborense em que esta cidade, pela antiguidade e prestígio do seu passado, era assumida como interlocutora privilegiada da história do país, cujos factos e momentos mais relevantes eram simbolicamente expostos aos olhos do presente através da arquitectura dos seus principais monumentos. Demonstra-o com particular acutilância a icono5 Le Comte A. RACZYNSKI – Les Arts en Portugal. Paris : Jules Renouard et Cie, Libraires-Éditeurs, 1846, p. 360. 6 Raul PROENÇA – Guia de Portugal. II. Estremadura, Alentejo, Algarve. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 37. Reproduz o texto integral da primeira edição publicada pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 1927. A parcela do texto do guia dedicada à arte eborense é da autoria de Reinaldo dos Santos. 7 Sociedade de Propaganda de Portugal – Évora e Seus Arredores. Indicações Geraes para Uso dos Viajantes. Lisboa: Gazeta dos Caminhos-de-ferro, 1916, p. 3. 8 Gustavo Matos SEQUEIRA, Alberto SOUSA – Évora. s.l.: Empresa Nacional de Publicidade, s.d. (193?), p. 7. 9 Frederic P. MARJAY – Évora. A Cidade Milenária e seu Distrito, suas Belezas e seus Encantos. Lisboa: Livraria Bertrand, 1958, p. 19. 10 Padre António FRANCO – Évora Ilustrada. Évora: Edições Nazareth, 1945, 5. Obra manuscrita entre 1722 e muito provavelmente 1728 e que é um resumo e uma continuação da homónima redigida pelo padre Manuel Fialho (1646-1718), começada em 1690 e interrompida pelo falecimento do autor. 11 André de RESENDE – “Fala que Mestre André de Resende fez à princesa D. Joana, Nossa Senhora, quando logo veio a estes reinos na entrada da cidade Évora”. Obras Portuguesas. Livraria Sá da Costa, 1963, 61. André de Resende foi o autor da obra seminal sobre a história desta cidade, intitulada precisamente História da Antiguidade da Cidade de Évora e publicada pela primeira vez em 1553.
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grafia da cidade que os panoramas de Évora foram fixando a partir da iluminura que ornamenta o foral manuelino da cidade de 1501 e que as gravuras e as reproduções fotográficas dos séculos XIX e XX retomaram. Atendamos a dois exemplos apenas12, e primeiramente à referida iluminura de 1501 [fig. 1].
Fig. 1 – Iluminura do Foral Novo de Évora, Duarte de Armas (?), c. 1501. © Câmara Municipal de Évora, Arquivo Distrital de Évora. 12 Sobre o assunto e demais exemplos ver Paulo Simões RODRIGUES – “A Fixação da Imagem da Cidade na Origem do Conceito de Património Urbano: o exemplo de Évora”. Arte Teoria. Revista do Mestrado em Teorias da Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2007. Lisboa, n.º 10, 2007, p.142-154.
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Atribuída a Duarte de Armas, conjugando uma visão de conjunto com um apurado sentido verista dos pormenores, a iluminura mostra Évora sob uma cartela com a inscrição Ebura Colonia Romana e representa-a seguindo a mesma lógica da evolução da cidade real. Na iluminura, Évora desenvolve-se através da massa dos volumes que referenciam a arquitectura corrente da cidade, não plenamente alinhados, mas aos quais se impôs uma certa uniformidade através da simplicidade esquemática e cromática que os configura e da compacidade do aglomerado de construções anónimas. Este aglomerado de construções anónimas é pontualmente interrompido pelas escalas amplificadas de alguns edifícios notáveis, representados realisticamente ao pormenor dos elementos arquitectónicos mais característicos. A conjugação desses dois factores, elevação e detalhe, torna os edifícios assim figurados em pólos de atracção visual, conferindo-lhes uma importância simbólica no contexto da imagem da cidade que o autor pretendeu dar a ver, que é, de resto, por todas as características atrás enunciadas, a de uma cidade ainda medieval13. Começa com o edifício da Sé no cume do morro de S. Bento que, preponderante, assinala o vértice da pirâmide em que se estrutura o panorama da cidade. À direita, sucedendo-se escalonadamente até ao limite amuralhado da área urbana, são identificáveis a forma cúbica, rematada por merlões e um campanário, do antigo templo romano, entretanto transformado em açougue14, a igreja de S. Mamede e o convento de S. Domingos15. No extremo oposto, junto à cintura da Cerca Nova, destaca-se o complexo do convento, igreja e paço de S. Francisco. Imediatamente abaixo de S. Francisco, a edificação colada ao pano da muralha e com o telhado colorido a azul poderá corresponder à ermida de Nossa Senhora da Orada. Ao centro da composição, no eixo de uma das mais importantes portas da cidade, a de 13 Alexandre PAPAGEORGIOU – Intégration Urbaine. Essai sur la réhabilitation des centres urbains historiques et leur rôle dans l’espace structuré de l’avenir. Paris:Vincent, Fréal et Cie Editeurs, 1971, p. 56. 14 O açougue da cidade, na acepção de um mercado de carne e não apenas na de um matadouro, funcionaria no antigo templo romano desde, pelo menos, o século XIV. Paulo Simões RODRIGUES – “Giuseppe Cinatti e o restauro do templo romano de Évora”. A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal, 2000 (II série, nº. 4), p. 273 -284. 15 O Convento de S. Domingos foi demolido depois da extinção das ordens religiosas, por volta de 1842, para dar lugar à praça D. Pedro IV, actual praça Joaquim António Augusto Aguiar. Deste imóvel restam hoje apenas algumas arcadas. Paulo Simões RODRIGUES – “Em Busca da Cidade Perdida. Condição e Destino dos Monumentos Históricos Eborenses (1834-1920)”. Évora Desaparecida. Fotografia e Património. 1839 … 1919 (catálogo da exposição). Évora: Câmara Municipal, CIDEHUS, CHA, 2007, p. 57.
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Alconchel, a marcar a localização da praça Grande (actual praça do Giraldo), junto a uma torre, estarão a igreja de Santo Antoninho e a Pousada Real dos Estaus. Note-se que todos os edifícios referenciados, com excepção do templo romano, apresentam as respectivas coberturas pintadas de azul16, cor que se repete noutras construções que ainda não foram completamente identificadas, mas cuja relevância conseguimos percepcionar pela sua elevação acima do casario mais vulgar. Detenhamo-nos, contudo, naqueles que foram constituídos como elementos referenciais da estrutura plástica e do significado da iluminura: a Sé, S. Francisco e o açougue. A Sé Catedral de Évora (séc. XIII), tão minuciosamente debuxada que se pode entrever os diferentes formatos das janelas rasgadas nas torres da fachada, o claustro arborizado, a peculiar torre da lanterna, a rosácea num dos braços do transepto – cuja visibilidade implicou a simultaneidade de duas perspectivas distintas, com a extremidade do transepto alinhada à fachada do templo – e as ameias que rodeiam a cobertura, com os seus altos coruchéus e a bandeira do reino destacadamente desfraldada, é o ponto mais distante do olhar do espectador, verdadeiro foco em relação ao qual foi estabelecida a escala de todos os restantes elementos do panorama. A catedral é o elemento unificador da imagem, símbolo da comunidade urbana e da sua sublimação17. Como tal, marca o centro original da cidade e, simultaneamente, a natureza religiosa da formação do reino18, a sua génese cristã enquanto efeito da reconquista da Península Ibérica aos Muçulmanos e o papel de Évora nesse processo, a primeira cidade a ser expugnada a sul do rio Tejo, em 1165, pelo aventureiro Geraldo Sem Pavor, em nome de D. Afonso Henriques. Em baixo, numa posição perpendicular à catedral, a fazer-lhe contraponto num plano mais aproximado dos olhos do espectador, aparece o conjunto arquitectónico de S. Francisco (sécs. XV e XVI), com a bandeira do rei hasteada sobre o corpo do paço (reconhecemo-la pela esfera armilar) e a 16 Teresa Botelho Serra aponta para esta possibilidade da cor dos telhados ser uma forma de agenciar as distintas importâncias das construções, recorrendo-se ao azul para marcar os edifícios nobres. Teresa Botelho SERRA – “O Foral Manuelino de Évora e as suas Iluminuras”. Foral Manuelino de Évora. s.l.: Câmara Municipal de Évora, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 74 e 75. 17 Paolo SICA – La Imagen de la Ciudad. De Esparta a Las Vegas. Barcelona: Gustavo Gili, 1977, p. 62. 18 A missão cristianizadora da monarquia portuguesa é ainda sublinhada pelas cinco chagas de Cristo evocadas pelas armas reais do estandarte do reino que a Sé ostenta. Maria Ângela BEIRANTE – “Évora no dealbar do Império”. Foral Manuelino de Évora. s.l.: Câmara Municipal de Évora, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 32.
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igreja ainda em construção, que o realismo do autor representa incompleta e introduzindo perfis minúsculos de operários e a figuração de uma grua.A solução esquemática encontrada revela a clara intenção de fixar a contemporaneidade da iluminura, de inscrever o panorama na temporalidade concreta da sua realização – o início do século XVI, reinado de D. Manuel I – e de fazer contracenar, no domínio do simbólico, “a majestade régia com a majestade da urbe”19. Deste modo, podemos deduzir que S. Francisco simbolizava a Évora do presente – está localizado, de resto, no término do núcleo urbano – e certificava o estatuto superior de uma cidade que acolhia frequentemente o rei e a sua corte – a bandeira assinala a presença do rei no paço. Por outro lado, a localização, dimensão e nível de pormenorização da igreja e do paço de S. Francisco estabelece uma interacção visual com a catedral que as vincula e, simultaneamente, sujeita o presente ao passado, ao passado da cidade e do reino. Este encadeamento deve ser entendido como uma afirmação da legitimidade do poder do rei e da dinastia de Avis, em virtude da origem da linhagem régia se dever a uma crise, a de 1383-1385, que pôs no trono um filho natural de D. Pedro I, o Mestre de Avis, D. João I20. Mas deve também ser compreendido como uma asseveração da antiguidade da cidade, factor que a prestigiava porque antecedia a própria nacionalidade, tendo em conta que Évora era já um núcleo urbano durante o período romano, facto que é peremptoriamente declarado, embora com um erro histórico, na inscrição que coroa o panorama: Ebura Colonia Romana21. A presença do templo romano, com a aparência de uma torre-fortaleza, demonstra materialmente essa antiguidade.A sua cristianização, evidente no campanário, evocaria, talvez, a conversão dos eborenses sob o império romano, justificando-se por esta via a atenção que era concedida ao conhecimento de um pretérito em que o paganismo havia sido dominante22.
19 Maria Ângela BEIRANTE, op. cit., p. 33. 20 Sílvia LEITE – A Arte do Manuelino como Percurso Simbólico. Lisboa: Caleidoscópio, 2005, p. 17 - 47. 21 A inscrição comete um erro histórico porque Évora nunca foi uma colónia romana, mas um município de direito latino. Sobre os motivos por de trás deste erro ver Rafael de Faria Domingues MOREIRA – A Arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal. A Encomenda Régia entre o Moderno e o Romano. Lisboa: tese de doutoramento em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1991 (volume 1), p. 212 e 213. 22 André de Resende alude à tradição que identifica S. Mansos como o responsável pela conversão dos habitantes de Évora ao cristianismo, referindo ainda que estes terão sido os primeiros a sê-lo em toda a Península Ibérica. André de RESENDE, op. cit., p. 32 e 33.
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No Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora encontra-se depositada a reprodução fotográfica de uma Vista Geral do Rossio de S. Brás [fig. 2], de data desconhecida, executada provavelmente entre 1899 e 1920, e atribuída ao fotógrafo José Serra23. Desta Vista Geral do Rossio de S. Brás resultou um novo panorama da cidade de Évora, agora captando a zona Sul da cidade, mas que surpreende, salvaguardadas a distância cronológica e a diferença de
Fig. 2 – Vista Geral do Rossio de S. Brás, José Serra (?), 1899 – 1920 (?). © Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora (GPE0207).
suportes, pelos paralelismos que podemos encontrar com a iluminura quinhentista. Na Vista Geral do Rossio de S. Brás, o flanco da catedral, com os seus coruchéus e as suas torres, continua ser o vértice da composição. Está no plano mais distante do ponto de vista do espectador, a marcar a cota da urbe, embora aqui de uma perspectiva trapezoidal e não de uma estrutura piramidal, resultante da intenção significativa do fotógrafo de a incluir na imagem. A partir de aqui, em diferentes níveis de distância e escala, até ao 23 Com o registo GPE0207. Cármen ALMEIDA – Évora – Objectos Melancólicos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2005, p. 144 e 145.
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limite da área urbana marcada pelo vazio do Rossio de São Brás, estão visíveis parcelas de alguns dos edifícios mais paradigmáticos da cidade, marcos da sua história e da sua arte. Imediatamente abaixo da Sé, vislumbra-se uma parcela do palácio do Vimioso (séc. XV), a cobertura da igreja da Misericórdia (séc. XVI) e o convento da Graça (séc. XVI). Do lado oposto, à direita, por de trás da copa das árvores, novamente em contraponto à catedral, embora de outra perspectiva, a igreja do convento de S. Francisco. Relativamente centrais, entre a igreja de S. Francisco e a Catedral, no termo do aglomerado urbano, estão os dois corpos do mais importante edifício da Évora Oitocentista, o chamado palácio Barahona (1856-1867), desenhado pelo arquitecto italiano Giuseppe Cinatti para José Maria Perdigão, um abastado proprietário fundiário. Na Vista Geral do Rossio de S. Brás, a atenção do espectador é centrada, mais uma vez, no momento em que a imagem foi captada, na cidade moderna, simbolizada não apenas pelo edifício projectado por Cinatti, mas também, e sobretudo, pelo próprio espaço do rossio, que ocupa todo o primeiro plano da reprodução fotográfica. O ponto de vista escolhido pelo fotógrafo foi certamente condicionado pela relevância urbana que a zona do Rossio de S. Brás adquiriu com a construção da estação do caminho-de-ferro a Sul da cidade, inaugurado em 1863. Daqui saía, pela porta do Rossio, a avenida da Estação, futura avenida Barahona. Podemo-la ver do lado direito da Vista Geral do Rossio de S. Brás, marcada por um renque de árvores que aprofunda a distância entre os dois primeiros planos da composição. Revisita-se assim a lógica esquemática da iluminura de 1501, interligando-se três momentos fulcrais da história da cidade através dos seus monumentos: a conquista cristã na Idade Média com a Sé, o apogeu fomentado pela presença frequente dos monarcas nas centúrias de XV e XVI com a igreja de São Francisco, a prosperidade das novas elites fundiárias e a perspectiva do progresso material no dealbar do século XX com o palácio Barahona e o caminho-de-ferro. O presente é novamente interpretado como o culminar de um processo histórico que o legitima e lhe confere sentido. Os edifícios assinalados, ao pontuarem a malha urbana, funcionam como chaves de acesso ao significado da imagem. São pontos de referência que dão “legibilidade” e “imaginabilidade” aos panoramas de Évora, conforme a teorização proposta por Kevin Lynch na década de 1960. A “legibilidade” está relacionada com o modo como as parcelas de uma cidade são percepcionadas e organizadas numa estrutura coerente, apresentadas de uma forma definida e
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intensa aos nossos sentidos. A “imaginabilidade” tem a ver com a capacidade de um objecto material produzir ou evocar uma imagem memorável num dado observador24. Conjugadas, “legibilidade” e “imaginabilidade” implicam uma condição integradora através da qual o significado que emana da imagem se torna inteligível25. Ao serem reconhecíveis devido ao carácter realista da sua representação e ao se inter-relacionarem pelo modo como foram integrados na estrutura das composições em análise, os monumentos referenciados configuram a imagem de Évora como uma cidade de um profundo valor histórico, de tal modo ubíquo que o passado não se limita a sê-lo, mas age sobre o presente, moldando-o ou dando sentido à mudança e até à ruptura. Estabelecendo uma relação intrínseca entre lugar, arquitectura e história, as duas imagens abordadas, a iluminura e a fotografia, consignam a cidade como locus da memória colectiva dos cidadãos, da população26. Reflectem a asserção de Maurice Halbwachs de que todas as acções e os movimentos de uma comunidade ou de um grupo são passíveis de ser traduzidos em termos espaciais, e que o lugar ocupado por essa comunidade ou esse grupo não é mais que a reunião de todos esses termos. Todas as parcelas do espaço que ocupam correspondem a tantos outros diferentes aspectos do sistema e da vida das suas sociedades27. Significa isto que entre os séculos XVI e XIX, apesar dos circunstancialismos específicos de cada época, se sedimentou uma imagética de Évora e se constituiu a tradição iconográfica de uma cidade histórica e nobre com as quais, no século XX, a população se sente totalmente identificada e às quais está intimamente ligada28 – a repetição sistemática da formalização da imagem de Évora criou um estereótipo e tornou-se num eufemismo29. Imagética e 24 Devemos salvaguardar que quando Kevin Lynch teoriza as noções de “legibilidade” e “imaginibilidade” parte da referência da cidade concreta, não da sua representação. Cremos, porém, que essas noções são aplicáveis também às representações ou reproduções de cidades. Kevin LYNCH – A Imagem da Cidade. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 20. 25 Leandro M. V. ANDRADE – “Image of the City”. Enciclopedia of the City. London. New Kork: Routledge, 2005, p. 249. 26 Aldo Rossi entende locus “como a relação singular e no entanto universal, que existe entre uma certa situação local e as construções aí localizadas. Aldo ROSSI – A Arquitectura da Cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 2001, p. 151, 154 e 192. 27 Maurice HALBWACHS – La Mémoire Collective. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, 133. 28 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 22. 29 M. Christine BOYER – The City of Collective Memory. The Historical Imagery and Architectural Entertainments. Cambridge. London:The MIT Press, 1994, p. 313.
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iconografia que conformam uma Évora pretérita ideal, circunscrita aos principais monumentos dos períodos históricos mais representativos. É essa idealização que encontramos representada no frontispício que abria a primeira página dos números do Manuelinho d’ Evora, periódico eborense publicado entre 1879 e 1904 (1ª série), composto a partir de uma panorâmica obtida mais uma vez do Rossio de S. Brás, na qual se concentram os principais edifícios históricos da cidade: Convento do Carmo, igreja da Misericórdia, Sé, convento da Graça, palácio Barahona e convento de S. Francisco (da esquerda para a direita). A enquadrá-los, o templo romano e a figura do Manuelinho de Évora30, a segurar, na mão direita, um estandarte com o escudo da cidade31 e, na mão esquerda, uma cartela semelhante à da iluminura, mas com o nome do jornal. Em primeiro plano, escudos com datas relevantes da história de Évora e da nação: 1166 (conquista da cidade aos muçulmanos), 1383 (domínio da cidade pelos partidários do Mestre de Avis, futuro D. João I), 1637 (levantamentos de Évora contra a monarquia filipina) e 1808 (ocupação e saque da cidade pelo exército napoleónico). Esta era uma versão mais próxima do referente da realidade do que a veiculada nos primeiros números deste periódico. Nestes, os monumentos acumulam-se no horizonte do espaço da representação não segundo a sua distribuição no espaço real, mas de acordo com o critério da sua capacidade evocativa, como num mostruário, formando uma alegoria mnemónica da cidade de Évora [fig. 3]. Ao centro destacava-se novamente a figura de Manuelinho de Évora empunhando a bandeira da cidade. Rodeavam-no, do extremo direito para o esquerdo da imagem, o templo romano, o Palácio Barahona, a torre da lanterna da Sé, o perfil da igreja de S. Francisco e o Aqueduto da Água da Prata. Em primeiro plano, a ladear Manuelinho de Évora, o busto de Sá de Miranda e um medalhão com a esfinge de André de Resende. Nos discursos sobre a cidade – na literatura de viagens, nos guias da cidade, em artigos de jornal e de revista, em textos de cariz mais académico
30 Tido como o tolo da cidade, ficou popularmente conhecido porque o seu nome, Manuelinho de Évora, apareceu nas ordens dos levantamentos da cidade de 1637 contra o domínio castelhano, identificando-o como seu autor, ocultando a identidade dos verdadeiros responsáveis. Seria talvez um tal Manuel Martins, irmão da Misericórdia de Évora. A efabulação à volta desta figura tornou-a protagonista de várias obras literárias. 31
Em que estão representados Geraldo Sem Pavor a cavalo e as cabeças dos dois mouros que, segundo a tradição, ele decapitou aquando da conquista da cidade.
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Fig. 3 – Cabeçalho do jornal Manuelinho d’ Evora, 1882.
ou propagandístico – é também o monumento isolado que preside aos critérios de apreciação do espaço urbano, que caracteriza e marca os momentos e os processos de transformação do território em causa32. Quando aludem ao casario é para realçar o carácter pitoresco e antigo da cidade, juízo de valor eminentemente oitocentista que se referia à ambiência sugerida pela arquitectura corrente e ainda não ao seu valor enquanto fonte do conhecimento da história de Évora33. Nessas publicações, tanto nos textos como nas respectivas ilustrações, os monumentos mais enunciados ou
32 Aldo ROSSI, op. cit., p. 128. 33 Leve-se em atenção, a título de exemplo, os guias da cidade publicados entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX, nos quais eram propostos itinerários que sintetizassem uma determinada impressão geral da cidade, aquela que se pretendia deixar nos viajantes nacionais e estrangeiros: Roteiro e Breve Notícia dos Principais Monumentos da Cidade de Évora que devem ser vistos pelo Viajante de António Francisco Barata (Évora, Imprensa do Governo Civil, 1871), Atravez a Cidade de Evora ou Apontamentos sobre a Cidade de Evora e seus Monumentos de Caetano da Câmara Manuel (Évora, Minerva Comercial, 1900), Évora e Seus Arredores. Indicações Geraes para Uso dos Viajantes da Sociedade de Propaganda de Portugal (Lisboa, Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1916), Guia de Portugal. II. Estremadura, Alentejo, Algarve, Algarve de Raul Proença (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, 1ª edição de 1927), Évora. Excursões na Cidade e Arredores (Lisboa, Bertrand, 1929) e Évora de Gustavo Matos Sequeira e Alberto Sousa (Empresa Nacional de Publicidade, s.d.).
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reproduzidos (em panorâmicas gerais ou apenas em pormenores arquitectónicos) veiculavam uma imagem de Évora enquanto lugar da memória histórica nacional, cujos edifícios marcavam a sua cartografia, simultaneamente espacial e temporal, designadamente a Sé (Idade Média, sécs. XIII-XIV), a igreja de S. Francisco (séc. XIII-XVI) e o palácio de D. Manuel ou Galeria das Damas (séc. XVI), o Aqueduto da Água da Prata (séc. XVI), os conventos dos Lóios (séc. XV), de Nossa Senhora do Carmo (séc. XVII, adaptação do paço seiscentista mandado construir em 1524 pelo 4º duque de Bragança, D. Jaime)34 e de Nossa Senhora da Graça (séc. XVI), os mosteiros de Santa Clara (séc. XV-XVI, ocuparam e adaptaram o paço dos Falcões) ou de S. Salvador (séc. XVII), a ermida de S. Brás (séc. XV), a igreja de Santo Antão (séc. XVI), o Colégio do Espírito Santo (Universidade, sécs. XVI-XVIII), a igreja do Espírito Santo (sécs. XVI-XVII), etc. Todos estes monumentos correspondem a permanências e só estas podem mostrar aquilo que a cidade foi, tudo aquilo que o seu passado difere do presente ou, por outro lado, a continuidade da comunidade. São, na perspectiva de Aldo Rossi, elementos primários, “visto que participam da evolução da cidade no tempo de modo permanente, identificando-se frequentemente com os factos constituintes da cidade”35. Não é aleatoriamente que os monumentos que se destacam nas panorâmicas, que foram aumentando com a passagem do tempo, coincidem com aqueles em que os discursos e as narrativas produzidos sobre a cidade se detêm mais minuciosamente. Representam a cidade idealizada em conformidade com a importância que a historiografia lhe foi atribuindo, a de um dos principais centros político-administrativos e culturais do país nos séculos XV e XVI. Apareciam, por isso, também associados a destacadas personalidades do passado, personagens históricas das quais os monumentos eram documentos perenes da sua existência: a Casa de Garcia de Resende ou o paço de D. Manuel. O que temos vindo a constatar permite-nos concluir que até à primeira metade do século XX, quer nas imagens, quer nos discursos, o valor histórico da cidade de Évora ancorava-se predominantemente no conjunto dos seus monumentos isolados. Dificilmente se consegue detectar uma conceptualização da entidade cidade no seu todo como objecto de arte ou de civilização. Daí o conceito de “cidade-museu”, o qual subentende que a estrutura urbana, 34 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 80. 35 Aldo ROSSI, op. cit., p. 76, 124 e 142.
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que inclui a massa da arquitectura corrente e as vias de circulação, não detém um valor histórico-artístico por si só, vale enquanto moldura e espaço de exposição, ou seja enquanto contexto dos monumentos históricos. Os monumentos históricos eram as obras de arte que a “cidade-museu” albergava. Logo, este conceito de “cidade-museu” não deve ser confundido, como nota Françoise Choay, com a noção da cidade como bem patrimonial36, embora radique nele o mais recente de património urbano. A partir da década de 1930, o conceito de “património urbano” veio reconhecer o valor histórico, estético e nacional da totalidade do tecido urbano das cidades antigas, incluindo o da arquitectura dita corrente, que constitui a essência das suas áreas construídas. O seu valor estético foi intuído pela primeira vez por John Ruskin (1819-1900), cujo interesse por cidades tão belas e antigas como Veneza advinha da decoração das habitações de menor notoriedade e dimensão, mais que da riqueza artística dos palácios37. O urbanista austríaco Camillo Sitte (1843-1903) evidenciou-o e analisou-o na obra Der StädteBau nach seinen Künstlerischen Grundsätzen (O Urbanismo Segundo os seus Fundamentos Artísticos) de 1889. O arquitecto italiano Gustavo Giovannoni (1873-1947), depois da Primeira Guerra Mundial, sublinhou o valor da cidade antiga para a História e para a História da Arte38. Apesar de se deter sobretudo nas áreas urbanas que continham grandes monumentos ou obras de maior qualidade arquitectónica, Camillo Sitte constatou que nas cidades antigas, principalmente nas da Europa do Sul, os edifícios mais emblemáticos e monumentais, nomeadamente as igrejas, não estavam localizados no centro das praças ou isolados, solução recorrente no urbanismo Oitocentista, mas embebidos na continuidade do tecido construído39. Na sua obra Vecchie città ed edilizia nuova de 1931, Gustavo Giovannoni desenvolveu a tese de Sitte afirmando a natureza urbana dos monumentos, que só encontram o seu pleno significado integrados na arquitectura
36 Françoise CHOAY – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 166. 37 John RUSKIN – Las Siete Lámparas de la Arquitectura. Barcelona: Alta Fulla, 1997, p. 211 (1ª edição inglesa de 1849). 38 Françoise CHOAY – “Patrimoine (bâti urbain et rural, paysager ou naturel)”. Dictionnaire de l’ Urbanisme et de l’ Aménagement. Pierre MERLIN, Françoise CHOAY (dir.). Paris: Presses Universitaires de France, 1988, p. 472. 39 Camillo SITTE – L’art de bâtir les villes. L’urbanisme selon ses fondements artistiques. S.l. [Paris]: Seuil, 1996, p. 29 e 30.
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“menor”, defendendo a sua conservação do contexto urbano em que estavam inseridos: “Les mêmes caracteres qui lient étraitement les grands monuments au petit tissu des édifices mineurs unissent l’architecture et la structure urbaine en une seule entité, organisée par une idée logique et cohérente. Ils constituent un élément extrinséque essentiel pour l’appréciation des monuments et son l’expression d’une conception unitaire du monument et de son contexte ou, si l’on préfère, d’une architecture collective proprement urbaine. Il est plus grave d’altérer cet ensemble que l’endommager un monument”40. O monumento, com a sua arquitectura singular, e as construções que o rodeavam compunham parte de um ambiente urbano que se devia manter41, constituíam o “património urbano”, conceito que nasceu pela mão de Giovannoni neste seu texto de 1931:“Si nous ne voulons pas que l’Italie perde son merveilleux patrimoine urbain et architectural (…)”42. O ano de 1931 revela-se verdadeiramente auspicioso, pois é também marcado pela Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos, o primeiro documento oficial de escala internacional a recomendar o respeito pelo “carácter e fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança de monumentos antigos cuja envolvente merecesse ser objecto de cuidados especiais”, devendo “mesmo ser preservados alguns conjuntos e certas perspectivas particularmente pitorescas”43. Os paralelismos com as reflexões formuladas por Gustavo Giovannoni são evidentes e devem-se, muito certamente, à participação deste arquitecto, a encabeçar a delegação italiana, na Conferência Internacional de Atenas (21 a 30 de Outubro) que deu origem à citada Carta44.
40 Gustavo GIOVANNONI – L’urbanisme face aux villes anciennes, S.l.: Seuil, 1995, p. 59. 41 Não quer dizer que não pudessem ser necessárias demolições parciais de áreas ou elementos, por motivo da sua degradação ou adulteração estilística, por razões de salubridade ou por necessidade de circulação. Mas, caso assim sucedesse, essas demolições deviam ser rigorosamente controladas. Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. Cit., p. 358 – 364. 42 Gustavo GIOVANNONI, op. ct., p. 219. 43 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA – Património Arquitectónico e Arqueológico. Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 44. 44 Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 236 – 238.
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Dois anos depois, a Carta de Atenas sobre o Urbanismo Moderno vai mais longe declarando: “A vida de uma cidade é um acontecimento contínuo que se manifesta através dos séculos por obras materiais, traçados ou construções, que lhe conferem personalidade própria e das quais emana, pouco a pouco, a sua alma. Estas obras são testemunhos preciosos do passado que serão respeitados, em primeiro lugar, pelo seu valor histórico ou sentimental, e depois porque algumas têm uma qualidade plástica na qual encarnou o mais alto grau da intensidade do génio humano. Fazem parte do património humano (…)”45. A tomada de posição da Carta de Atenas sobre o Urbanismo Moderno relativamente ao valor patrimonial das cidades, apesar de pertinente, com reflexos importantes na teoria e na prática arquitectónicas e do urbanismo dos anos posteriores – sendo hoje uma questão central dos debates à volta do tema das cidades –, não teve, contudo, repercussões a curto prazo em termos da produção de medidas oficiais e públicas concernentes à preservação de áreas urbanas antigas. Será apenas em 1976 que o consignado na Carta de Atenas se concretizará parcialmente na Recomendação sobre a Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e da sua Função na Vida Contemporânea da UNESCO (Nairobi, Quénia, 26 de Novembro). A parcialidade dessa concretização ficou a dever-se ao teor demasiado vago e generalista da Recomendação, que não se restringe às cidades, aludindo a todas as classes de construções e espaços, sejam cidades históricas, bairros antigos, aldeias ou casario, tanto em meio urbano como em meio rural, incluindo as estações arqueológicas e paleontológicas e todo o povoamento humano de reconhecido valor arqueológico, arquitectónico, pré-histórico, histórico, estético ou sócio-cultural. Não deixou de ser, no entanto, um passo decisivo na direcção da consagração do património urbano em 1987, com Carta Internacional sobre a Salvaguarda das Cidades Históricas da ICOMOS (Washington D.C., 7 a 15 de Outubro), referente “a conjuntos urbanos históricos, de maior ou menor dimensão, incluindo as cidades, as vilas e os centros ou bairros históricos com a sua envolvente natural ou construída pelo homem, os quais, para além de constituírem 45 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 51.
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documentos históricos, são a expressão dos valores próprios das civilizações urbanas tradicionais”46. Entre estes dois documentos chega a haver, inclusivamente, quem utilize a expressão “centros urbanos históricos”, definindo-os como aqueles que comportam um património imóvel importante, concentrando monumentos arquitectónicos e outros edifícios, e estruturas urbanas altamente interessantes pela qualidade da sua forma ou da sua composição e pelo testemunho que eles oferecem da continuidade do devir urbano (valor estético e histórico da composição). De acordo com esta perspectiva, o valor dos “centros urbanos históricos” reside menos na riqueza dos seus monumentos arquitectónicos que na sua identidade urbana específica, o que implica um ambiente de vida característico no seu seio47. A própria natureza da cidade e dos conjuntos urbanos tradicionais resulta dessa dialéctica entre a “arquitectura maior” e a sua envolvente48. Em suma, à cidade reconhece-se um estatuto patrimonial a par do dos monumentos históricos, em virtude de também este ser portador de valores morfológicos, estéticos e arquitectónicos de qualidade e elevado significado, podendo esses valores resultarem de uma acção não planeada, e até anónima, e do somatório de processos históricos seculares. Isto significa que “Partes inteiras da cidade apresentam sinais concretos do seu modo de viver, uma sua forma e uma sua memória”49. No que respeita a Évora, as primeiras impressões de uma historicidade que não se confinava às grandes obras de arquitectura e respectivas envolventes surgem também na década de 30 do século XX, estando bem perceptível num texto de Gustavo Matos Sequeira, com ilustrações de Alberto Sousa, intitulado precisamente Évora, em que a tónica era posta numa identidade urbana alicerçada na “hibridês estranha” de “inspiração árabe”50 da maioria das suas habitações e na irregularidade pitoresca das suas ruas:
46 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 177 e 215. 47 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 20 e 21. 48 Françoise CHOAY, op. cit., p. 172. 49 Aldo ROSSI, op. cit., p. 143. 50 “A hibridês estranha de Évora fere-nos logo aos primeiros passos. A inspiração árabe infunde-a toda. O temperamento alentejano reflecte-a nas minúcias mais ocultas (…)”. Matos SEQUEIRA, Alberto SOUZA – Évora. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, s.d., p. 21.
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“Os enfiamentos, inimigos do pitoresco, pela monotonia dos efeitos e pelo regrado das linhas, quási não existem em Évora.Tudo é esquinado, reentrante, irregular, caprichoso. As ruas como as casas, talhadas sem plano topográfico nem harmonia de volumes, oferecem, com o imprevisto, um constante interesse visual. Os ressaltos são constantes nas fachadas, não sempre rectilíneos como os da Alfama lisboeta, mas também de curvas combinadas, como as da célebre “Casa do Mocho”, na Selaria, que semelhava um perfil de azas (sic) arqueadas graciosamente. (…) Os miradouros de Évora são de variadíssimo tipo. Há-os à moirisca, de paredes cerradas como torrelas, com frestas de tejolo, arrendadas. São assim o da rua do Cenáculo e o do convento de Santa Clara. Outros são de arcarias de volta inteira ou de arcos de ferradura poisados em delicadíssimos colunelos de mármore, rematando varandas abertas, servindo de átrio torrejado a escadarias, ou isolando-se em terraços como o da rua do Colégio, (…)”.51 Apreciação que vinha de encontro ao defendido por Gustavo Giovannoni, para quem a irregularidade das ruas das cidades antigas tinha um pitoresco que se opunha à regularidade monótona do século XIX e conferia à malha urbana um valor estético: “(…) des effets architecturaux fondés sur le contraste des masses, sur les espaces étroits et clos, sur l’harmonie pittoresque des formes irréguliéres. Ces caracteres, aux antípodes de la banalité académique qui prévaut trop souvent dans le traitement des villes modernes, sont dignes d’être étudiés afin de leur trouver de nouvelles applications”52. Esta não seria, porém, a abordagem dominante, embora tenha aparecido com frequência, sobretudo em obras de divulgação ou de carácter mais genérico, como um segundo nível de discurso, lateral à análise e descrição dos monumentos mais relevantes, e raramente saiu desses limites. É o que sucede no relatório do ICOMOS (International Council on Monuments and Sites), no 51 Matos SEQUEIRA, Alberto SOUZA, op. cit., p. 22 e 23. 52 Gustavo GIOVANNONI, op. cit., p. 59.
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qual são destacados as principais fases da história da cidade através das suas edificações mais representativas, desde o chamado templo Diana para a romanização, passando pela catedral relativamente ao período medieval, até ao surto construtivo dos séculos XV e XVI, quando foram edificados os conventos dos Lóios, com a sua igreja de S. João Evangelista, do Carmo e da Graça, ou a igreja de Santo Antão, o Aqueduto, a Universidade e a igreja do Espírito Santo, o palácio dos condes de Basto, etc., às quais se somam as casas nobres como a de Garcia de Resende. São enunciados todos os imóveis que deram conteúdo ao critério IV do processo de classificação de Património Mundial pela UNESCO, um dos dois em que Évora se inscreveu e que a dá como o melhor exemplo da cidade da idade de ouro portuguesa desde a destruição de Lisboa pelo terramoto de 175553. Logo de seguida, não deixa de sublinhar que a originalidade também advém da coerência da sua arquitectura menor dos séculos XVI, XVII e XVIII, que encontra a sua melhor expressão na forma da miríade de casas baixas e caiadas de branco, com coberturas de telha ou terraços, cujos limites estreitam as ruas54. O mesmo relatório realça ainda a disposição das ruas, de configuração medieval no centro da cidade antiga e de expansão concêntrica, verificada até ao século XVII, nas restantes zonas intra-muros. Em finais da década de 1990, numa monografia realizada por Túlio Espanca, conhecido estudioso local, publicada postumamente numa colecção da Editorial Presença dedicada às cidades portuguesas, a estrutura do texto, a forma de dar a conhecer a cidade, foi organizada em função, novamente, dos monumentos eborenses considerados mais representativos para a Arte e para a História. O título de um dos capítulos, o segundo, é particularmente sintomático, “Uma urbe de tradição monumental”55. Ou seja, ainda faz corresponder a cidade histórica às suas áreas antigas e monumentais, considerando-as as mais representativas pela sua riqueza arquitectónica, para demonstrar o
53 O outro é o critério II, que refere que a paisagem urbana de Évora permite compreender hoje a influência exercida pela arquitectura portuguesa no Brasil, em sítios como Salvador da Baia (inscrito em 1985 na lista do Património Mundial). http://whc.unesco.org/en/list/361 (08/03/2007), p. 1 e 2. 54 Destaca o ferro forjado das varandas como elemento uniformizador da traça arquitectónica. 55 Túlio ESPANCA – Évora. Lisboa: Editorial Presença, 1996 (2ª ed.), p. 37. 56 Jesús M. GONZÁLEZ PÉREZ, Rubén C. LOIS GONZÁLEZ – “Historic City”. Enciclopedia of the City. Roger W. CAVES (ed.). London. New Kork: Routledge, 2005, p. 230.
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valor simbólico, artístico e económico de Évora56. Postulado que só é rompido quando Túlio Espanca se detém na cidade Oitocentista, em breves referências ao Palácio Barahona e ao Jardim Público57, ou em áreas urbanas mais paradigmáticas como a praça do Geraldo e o largo das Portas de Moura. A lógica discursiva de Espanca manteve o cânone da cidade monumental que continua a sobrepor-se a qualquer outra possibilidade de cidade histórica que porventura se pudesse encontrar em Évora. Consequentemente, protelou-se no tempo o favorecimento de um imaginário de cidade habitado apenas pelos monumentos que aglutinam em si a essência do significado histórico da urbe e que agrupados, como nas imagens seleccionadas de um guia de viagem, configuram a representação de um passado ideal. A ideia de cidade está abstraída da sua realidade histórica concreta e secundariza um dos seus aspectos mais ricos, complexos e valiosos, o carácter miscigenado, empírico e improvável da sua arquitectura e das suas artérias, que os autores Oitocentistas designaram de “pitorescas” e que Matos Sequeira descreveu do seguinte modo: “Se o plano de construção não existe fundamentalmente, resultando as casas de sucessivos acrescentamentos em que os pisos se desigualam e em que as escadas, escaninhos e passagens abundam, a cobertura, dado o indisciplinado da planta e a necessidade de apertar os aproveitamentos, gerou os terraços frequentes, suprimindo muita vez o revestimento superior da telha, terraços que são umas vezes jardins improvisados, outras mirantes, estendedores de roupa e recintos de secagem de frutos, como as varandas alpendradas do norte. O aspecto da cidade particulariza-se assim”58. Pelas circunstâncias da sua história individual, Évora integra-se no grupo de cidades históricas habitadas que se desenvolveram em vários ciclos evolutivos59, sem a interrupção das destruições e das profanações violentas que atingiram grande parte das urbes europeias, provocadas por catástrofes naturais ou conflitos bélicos. Até o sucedido durante a terceira invasão 57 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 40 – 42. 58 Matos SEQUEIRA, Alberto SOUZA, op. cit., p. 23. 59 Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 342.
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francesa (1808), no decorrer da qual Évora foi ocupada e saqueada pelo exército napoleónico, não infligiu danos graves no edificado. Évora também pouco sofreu com os efeitos das transformações rápidas e por vezes radicais que a industrialização imprimiu nos tecidos urbanos europeus. Acresce ainda que a área da cidade não teve uma expansão significativa até ao início do século XX60, fazendo com que a quase totalidade das remodelações e intervenções sucedidas até à centúria anterior tenham acontecido dentro do perímetro das muralhas, impedindo que se desenhasse uma mais clara diferenciação entre o casco antigo e as zonas modernizadas61. O que resultou numa cidade de perfis irregulares, em cujas habitações e outras edificações convivem elementos, espaços e corpos de diferentes épocas, em sucessivas apropriações e reaproveitamentos de pré-existências, assimiladas e adaptadas empírica ou eruditamente, conforme as necessidades ou as modas vigentes, onde um arco manuelino emparelha com uma janela moderna ou se confronta com um painel de azulejos barroco e se sobrepõem superfícies compostas por matérias de diferentes épocas, por vezes rasgadas por arcos de formatos variáveis – veja-se as arcadas que rodeiam a praça do Geraldo. A esta pluralidade, o branco das paredes caiadas, o ferro forjado das varandas e o limite da cota dos edifícios dá uma aparente uniformidade, como sublinhou o relatório do ICOMOS de 1986. A constância desta pluralidade é, em si, como sublinhou Giovannoni, um factor uniformizador da percepção que temos da cidade. Essas assimilações, sobreposições e reaproveitamentos procederam-se por três vias. A primeira, a que tem mais em comum com o sucedido noutras cidades históricas europeias, decorreu das campanhas de construção que se prolongaram no tempo, devido à sua dimensão e altos custos, e que, por esse motivo, acabaram por reflectir as alterações do gosto e fizeram conviver diferentes estilos no mesmo objecto arquitectónico. O mesmo sucedeu com
60 Em 1527, Évora era a terceira cidade mais habitada do reino de Portugal, ultrapassada apenas por Lisboa e Porto, com 11 252 habitantes. Cerca de três séculos depois estava já em sétimo lugar com 11 653 habitantes, atrás de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal, Coimbra e Elvas. No ano de 1911, apresentando uma população de 14 068 indivíduos estava já em 10º lugar da tabela, ali se mantendo em 1940. Na segunda metade do século XX, desce para 12º lugar com 24 144 habitantes e em 1981 para 13º com 34 851 habitantes.Teresa Barata SALGUEIRO – A Cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Lisboa: Edições Afrontamento, 1999, p. 427 – 431. 61 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., 22; Ignacio GONZÁLEZ-VARAS, op. cit., p. 344 e 345.
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as remodelações ou as reconstruções acontecidas em épocas posteriores à da construção original, as quais eram usualmente executadas segundo os princípios estéticos em vigor aquando da obra, independentemente das épocas artísticas a que pertenciam os edifícios intervencionados. Foi o que se passou com a Sé de Évora, cuja estrutura ainda românica se cruza com elementos góticos e até renascentistas, e onde se acoplou uma abside barroca (1718-1746), riscada pelo arquitecto alemão João Frederico Ludwig (ou Ludovice), por ordem de D. João V, em substituição da primitiva medieval. A segunda via tem a ver com o estatuto de um dos principais centros políticos do reino que Évora adquiriu com a dinastia de Avis, sobretudo entre a segunda metade do século XV e o século XVI, com os monarcas e a corte a residirem ali por frequentes temporadas, destacando-se D. João III como o rei que mais tempo aí permaneceu. Para esse fim, tendo o castelo da cidade ficado gravemente danificado aquando do conflito que opôs a facção do Mestre de Avis à de D. Beatriz (infanta de Portugal e rainha de Castela), no decorrer da crise de 1383-85, adaptou-se o convento de S. Francisco a paço real, realizando-se obras de remodelação e ampliação entre os reinados de D. Afonso V e D. João III (c. 1455 – c. 1556). A estadia da corte na cidade motivou muitos nobres e altos funcionários da coroa (estatutos muitas vezes coincidentes na mesma pessoa), a par das famílias tradicionais (por vezes uma nobreza rural) que possuíam os seus domínios nos arredores da cidade, a virem-se instalar em Évora, construindo o seu solar ou pousada, ou retomando antigas residências familiares. Indicador do que dissemos será o considerável aumento de casas nobres dentro das balizas cronológicas consideradas que vão ocupar, para além da área em redor do palácio real, a parte mais antiga da cidade, a zona em redor da catedral, ligada às famílias que mais cedo se instalaram em Évora. A construção de moradias nobres e a ampliação, a renovação e o melhoramento das antigas levou frequentemente à assimilação de estruturas e propriedades vizinhas, operações que podiam implicar a reutilização de elementos ou o acréscimo de novos ao edificado preexistente. Deste processo resultaram residências que, apesar do seu carácter nobilitado, ficaram embebidas no contínuo da malha urbana, destacando-se das restantes construções pela inserção de alguns elementos de maior originalidade e qualidade arquitectónicas e decorativas, como arcos, janelas, galerias, mirantes, coruchéus, merlões, etc. Veja-se o exemplo do Palácio da Torre das Cinco Quinas (ou dos Melos e posteriormente Cadaval) [fig. 4], assim com o da Casa
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Fig. 4 – Palácio dos Duques de Cadaval, Évora, 2006. © Fotografia do autor
Soure [fig. 5], que no século XVI anexaram torres da primitiva muralha62, e ainda da Casa Cordovil, com o seu mirante mudéjar (séc. XVI) [fig. 6]. A terceira via foi já brevemente enunciada e deriva da cidade ter ficado limitada à área intramuros até aos finais do século XIX, obrigando a que todas as intervenções e modernizações ali realizadas tivessem sido executadas à custa da transformação e até da destruição de muitas preexistências.Várias das casas nobres que sobreviveram até à actualidade, apesar de manterem as características da sua traça primitiva, sofreram, nas épocas posteriores ao seu levantamento, modificações de vária ordem que lhes alteraram a feição geral. A arquitectura doméstica revelou-se, de facto, particularmente permeável às alterações das necessidades funcionais, da sensibilidade e da cultura dos seus 62 Ana Maria de Mira BORGES – Évora: da Reconquista ao século XVI. Alguns aspectos do desenvolvimento urbano e arquitectura. Évora: Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, Universidade de Évora, 1988, p. 160-162 e 166.
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Fig. 5 – Casa Soure, Évora, 2006. © Fotografia do autor
Fig. 6 – Casa Cordovil, Évora, 2006. © Fotografia do autor
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habitantes. Diversos exemplos demonstram-no. O paço de Nuno Martins Silveira (futuro paço dos condes de Sortelha), edifício onde hoje funciona a Câmara Municipal, ocupou, por volta de 1450, uma estrutura romana préexistente e uma parcela da muralha do núcleo central da cidade. Depois, em 1604, os seus proprietários cederam parte do corpo do palácio ao convento do Salvador (convento de Clarissas). Quanto ao palácio dos Condes de Basto (de S. Miguel da Freiria na origem e depois dos Castros), terá provavelmente aproveitado o que restava da alcáçova real e está alcandorado sobre panos dos muros da antiga muralha romana, muçulmana e visigótica. Passou por pelo menos duas fases de obras que, nos séculos XV e XVI, lhe imprimiram uma feição tardo-gótica (com frestas e abóbadas nervuradas), a que se acrescentou, posteriormente, uma elegante loggia de influência italianizante na frontaria, uma galeria alpendrada nas traseiras, e, no interior do paço, uma decoração de pintura a fresco com motivos mitológicos e de inspiração greco-latina. A planta é irregular, resultante dos acrescentos e das alterações de que foi alvo ao longo dos séculos. O restauro ali efectuado pelo conde Vilalva, que o comprou em 1958, sublinhou essa sucessão de intervenções trazendo à superfície elementos que o tempo tinha ocultado, como janelas geminadas e arcos de ferradura que haviam sido entaipados.63 O palácio da Inquisição, construído por determinação de Filipe III, sob a direcção do arquitecto-mor Mateus do Couto, assimilou umas casas que pertenciam ao figaldo Tristão da Cunha e aos herdeiros do Coudel-mor, D. Francisco da Silveira64, e o antigo templo romano, este último até por volta de 1844 ou 1845, quando foi libertado desses anexos por ordem da câmara municipal e iniciativa de Joaquim Cunha Rivara65. A casa senhorial quinhentista de proprietário desconhecido sita na rua de Burgos, onde hoje estão instalados a Direcção Regional da Cultura e o Instituto do Património Arqueológico e Arquitectónico, levantada sobre uma casa romana, dos quais se podem ver alguns alçados pintados. O paço dos Melo de Carvalho, cuja estrutura data da centúria de XVI, reformada na de XVIII, incorporou uma torre medieval, quadrangular, do século XII, na Rua Nova. O Quartel dos Dragões, iniciado por ordem de D. João V em 1736, mas termi-
63 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 22 e 23. 64 Susana Pastor Ferrão MENDES – Antigo Tribunal da Inquisição. Évora: Fundação Eugénio de Almeida, 2003, p. 3. 65 Túlio ESPANCA, op. cit., p. 26.
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nado apenas sob a égide de D. Maria I, em 1807, foi construído sobre as infraestruturas do Castelo-Novo, mandado levantar por D. Manuel I, do qual se mantiveram visíveis, na base da nova edificação, cordões decorativos esculpidos caracteristicamente manuelinos. Ainda em relação à explicitação desta terceira via, de realçar as particularmente intrusivas consequências da extinção das ordens religiosas em 1834 e das sucessivas nacionalizações sofridas pelos seus bens imóveis até 1911, que vieram permitir a demolição de algumas estruturas conventuais, das quais se salvaram apenas os elementos tidos como artisticamente valiosos, alguns deles reintegrados noutras edificações, antigas e recentes – assim sucedeu com o convento de S. Domingos66. A finalidade destas demolições foi ganhar espaço para erigir imóveis, instalar equipamentos e adaptar as vias às necessidades da vida moderna. Outras dessas estruturas conventuais foram adaptadas a novas funções. Deste complexo processo histórico ficou uma arquitectura urbana de larga variabilidade morfológica que permite um outro entendimento do valor patrimonial da cidade, mais completo e menos colado ao simbolismo histórico dos grandes monumentos, embora sem negar a sua fundamental relevância para a história da cidade, para a história da arte e para a história entendida no seu sentido mais amplo. Um conceito de património urbano que compreende a cidade, mesmo a do passado, como uma entidade complexa e em movimento de acordo com o estabelecido na Carta Internacional sobre a Salvaguarda das Cidade Históricas de 1987: “Todas as cidades do Mundo, por serem o resultado de um processo de desenvolvimento mais ou menos espontâneo ou de um projecto deliberado, são a expressão material da diversidade das sociedades ao longo da sua História”67. São organismos urbanos vivos, não restritos ao conglomerado de monumentos históricos e dotados de uma escala arquitectónica e uma estrutura de espaço específicas68. Os diferentes elementos que compõem o espaço urbano e que constituem a arquitectura mais comum, a dimensão material da cidade, convertem-se em
66 Demolido para permitir a abertura da praça D. Pedro IV, actual praça António Augusto Aguiar. Um dos seus portais serve ainda hoje a entrada do cemitério de Nossa Senhora dos Remédios, instalado na cerca do convento homónimo. Paulo Simões Rodrigues; op. cit., p. 57. 67 Flávio LOPES, Miguel Brito CORREIA, op. cit., p. 215. 68 Alexandre PAPAGEORGIOU, op. cit., p. 47.
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O passado é uma cidade ideal: um olhar sobre a patrimonização de Évora
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objectos do saber. A cidade pode, sem dúvida, ser concebida como uma obra de arte que, no decorrer da sua existência, sofreu modificações, alterações, acréscimos, diminuições, deformações, às vezes verdadeiras crises destrutivas69. Em Évora constatamos aquilo que John Ruskin intuiu no século XIX: que ao longo dos séculos, sem que aqueles que a edificaram ou habitaram tivessem essa intenção ou disso estivessem conscientes, a cidade representou o papel memorial do monumento, tanto pelas grandes construções como pela mais modesta das arquitecturas70. Confirma-se também o axioma defendido por Gustavo Giovannoni de que a cidade histórica constitui em si um monumento, mas é ao mesmo tempo um tecido vivo71. Desta leitura fica não uma “cidade museu” que representa um passado ideal, mas, se quisermos manter a expressão, uma “cidade museu” que mostra a realidade concreta do seu passado, feito de avanços e recuos, de dinamismos e paralisias, de expansões e depressões, de grandes personalidades e pessoas comuns, todos factores actuantes na configuração da urbe.
69 Giulio Carlo ARGAN, op. cit., p. 73. 70 Embora Ruskin não consiga perspectivas historicamente a cidade histórica que intuiu, pois defende a sua irredutível manutenção sem quaisquer alterações, devendo ser assim, como no passado, habitada. Françoise CHOAY, op. cit., p. 158 e 159. 71
Françoise CHOAY, op. cit., p. 171.
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ENTREVISTA com o Arquitecto Gonçalo Byrne conduzida por Elisabeth Évora Nunes* e Luísa França Luzio**
Arq. Gonçalo Byrne. © GB ARQUITECTOS
Gonçalo Byrne nasceu em Alcobaça em 1941. É arquitecto, diplomado pela ESBAL em 1968. Após efectuar estágio com Raúl Chorão Ramalho no Bairro dos Olivais e trabalhar com Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, constituiu atelier próprio em 1975, iniciando em 1991 o gabinete GB Arquitectos. Foi director da Revista JA – Jornal de Arquitectos em 1980.Tem exercido actividade docente desde 1986, ministrando aulas e dirigindo seminários de projecto arquitectónico em várias Universidades nacionais (no Porto, na Cooperativa Árvore, entre 1986 e 1998, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra desde 1992) e internacionais (Lausanne, Nápoles, Lovaina, Barcelona, Nancy, Veneza, Gratz, Navarra, Harvard). Recebeu em 2005 o grau de Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Arquitectura da Universidade * (EEN) Arquitecta-Urbanista; Docente Convidada a tempo parcial (1982-2003) da FCSH-UNL, em acumulação com Função Pública Estatal (aposentada em 2006) ** (LFL) Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSHUNL (Bolseira FCT); Membro do Instituto de História da Arte – FCSH-UNL
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Técnica de Lisboa. Condecorado com a Grande Ordem de Santiago da Espada pela Presidência da República Portuguesa em 2005. Foi várias vezes premiado em Portugal (Prémio AICA/SEC em 1988, Prémio Nacional de Arquitectura em 1988 e de novo em 1993), Prémio Aquisição/Arquitectura em 1995, Prémio Valmor em 2000, Prémio A Pedra em Arquitectura em 2001) e no Estrangeiro (Medalha de Ouro da Academia de Arquitectura de França em 2000, Prémio TECU Architecture Award em 2002). A sua vasta obra arquitectónica abarca desde projectos de pequena escala até acções de planeamento urbano, incluíndo numerosas intervenções em Património Arquitectónico.Tem estado representada em exposições na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, sendo alvo de numerosos estudos publicados em catálogos, artigos de revistas e outras publicações. A entrevista que aqui se publica é um pequeno excerto da realizada em Maio de 2007, quando, durante duas tardes, nos recebeu em Lisboa, no seu atelier ao Rato, falando-nos longamente de arquitectura e de cidade, explicitando teoricamente a fundamentação do seu projectar. A sua vivência profissional, permite-nos obter uma perspectiva, experienciada na primeira pessoa do arquitecto, sobre a problemática do “fazer cidade hoje”. (EEN) Gostaria de começar por te perguntar como concebes e equacionas na tua prática profissional quotidiana, a relação entre arquitectura e história, nomeadamente na óptica da história da cidade?
Para mim a história é a disciplina que melhor permite transpôr para o projecto arquitectónico a noção de que se está a trabalhar no tempo.Também a arqueologia tem uma característica extremamente interessante, ao tornar visível e táctil uma estratificação formal temporalmente distinta, sendo em si mesma uma espécie de premonição do que vai ser a arquitectura. Eu, às vezes, brinco com os meus alunos dizendo: “Nós estamos a projectar arqueologias”. Porque, de algum modo, a arquitectura que estamos a fazer hoje é, para todos os efeitos, apenas um estrato temporal, que permanecerá em alguns casos, enquanto forma erodida. Esta ideia de que a arquitectura também está inserida, em certa medida, no mundo da arqueologia, mas de uma arqueologia que é prospectiva, é uma ideia que me parece muito interessante. Ao contrário da história da Revolução Francesa, que se debruça sobre um facto cultural que já não existe, a arte e a arquitectura continuam presentes,
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continuam a confrontar-nos com a sua existência material. Considero absolutamente necessário para um arquitecto o livro The Shape of Time de George Kubler, enquanto livro de reflexão sobre a história. Quanto a mim, é muito interessante, pois é um historiador a identificar como uma das grandes dificuldades da sua prática, a necessidade de lidar com os movimentos de transição histórica. Tendêncialmente, um historiador identifica os períodos históricos a partir de certas características de permanência. Ora, o arquitecto está sempre no tempo da transição, da diacronia. Isto porque a arquitectura é sempre de algum modo uma transformação, ou seja, o projecto pega numa pré-existência, que tanto pode ser o Museu Machado de Castro em Coimbra com dois mil anos anos de história, como pode ser um troço do deserto; e essa leitura temporal da pré-existência é processada mediante o questionar do que fazer com ela. E isso é normalmente veículado através de um programa, o que é complicado à partida porque os programas violentam, muitas vezes, a transformação ainda antes da fase de projecto. Os edifícios têm todos uma vida própria, com ciclos de perda e ciclos de reabilitação, quando os têm, porque nós temos exemplos de várias cidades que, hoje em dia, são belíssimas ruínas, mas não são mais do que isso, perderam a vida. E a coisa mais danosa, para uma estrutura física, é a perda de uso. Mesmo que o uso seja a memória. Eu acho que um monumento puro tem o uso específico da memória, que é um uso simbólico, mas faz parte da vida humana precisar dessas referências. Porque a arquitectura sempre foi a expressão das exigências do vivido. O que é impressionante na arquitectura é que o que a torna específica é tudo e nada, quer dizer é completamente transdiciplinar e depois gera sínteses, que têm que ser geridas com o projecto. E um projecto consiste fundamentalmente nisto, pegando numa situação que existe e reelaborando-a, deixando qualquer coisa que não é exactamente o que existia, mesmo quando se trata de um projecto de restauro. (LFL) Dessa matriz especificamente sincrética, que identifica para qualificar o campo de acção da arquitectura, poder-se-á inferir a obrigatoriedade de uma relação temporalmente dialógica e diacrítica face à preexistência? Quero dizer, tratando-se de uma intervenção num edifício ou num conjunto urbano com uma carga Patrimonial forte, também neste domínio faria sentido para si afirmar que “a arquitectura não deve ter má consciência por ser uma Arte”?
Leon Battista Alberti, no Cinquecentto, refere esta coisa notável: dum lado há um restauratio, do outro há um inovatio; mas de um ponto de vista total,
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qualquer uma das operações é incompleta para não dizer impossível, porquê? Porque o restauratio, quer dizer trazer o passado para o presente, é possível enquanto congelamento da forma física, mas não enquanto restituição de vida; eu falo sempre dessa incongruência quando, na arquitectura de todos os dias, um cliente me pede um casa “Português-Suave” ou uma casa “século XIX”. Por outro lado, temos o inovatio, a novidade a todo o custo, a partir da tábua rasa, que também é uma operação impossível, porque a vida não se cria ex-novum desta maneira. Mas Alberti usa uma terceira expressão, ao afirmar que, entre o restauratio e o inovatio, existe o instituitio. E “instituir” é, de facto, o que a arquitectura faz, mesmo que se trate de um restauro. E Alberti, que escreveu no século XVI, provou a sua teoria com um projecto que é o famoso Templo Malatestiano de Rimini, que é uma obra absolutamente espantosa. Em Itália há várias cidades com gravíssimos problemas, porque têm planos de salvaguarda do centro histórico que só permitem o restauro filológico, excessivamente restritivo, ficando vazias, porque não geram vida. (LFL) Teórica e praticamente, o projecto de intervenção deverá pois ser entendido como um mediador face ao reconhecimento da preexistência, estabilizando-se perante esta numa plataforma de coexistência?
Exactamente, coexistência, porque o que é interessante na cidade é que ela é histórica, precisamente, porque é dinâmica. A arquitectura interessa-me muito como forma de conhecimento, mas há nela outra dimensão que me interessa igualmente: é que os arquitectos, nesta estratificação histórica, projectam e lidam com “contentores de vida”. E isto é um valor muito importante, sobretudo hoje em dia, quando a arquitectura virou quase um auto-referente de si própria, vício de arquitecto com o qual estou em total desacordo. Se me pedirem para fazer um edifício entre edifícios existentes, ao longo de uma rua, eu não defendo a condição da auto-referência, como fiz no caso da Torre de Controle de Tráfego do Porto de Lisboa, antes pelo contrário, interessa-me muito mais o valor do espaço público da rua e da continuidade ou, se quiser, da sequencialidade histórica, do que do símbolo isolado. O facto da arquitectura propôr “contentores de vida” faz com que os edifícios tenham uma vida própria: uma vez construídos eles vão permanecer, temporalmente. No entanto, eu costumo acrescentar ao Rossi, que fala da cidade como estrutura da permanência, algo mais que com ela coexiste, que são os factores de vulnerabilidade. A vida vai interferir com os edifícios e em simultâ-
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neo nós sabemos à partida, quando estamos a projectar um edifício, que esse edifício vai interferir com a vida das pessoas e, às vezes, violentamente. E isso é, para mim, uma das dimensões mais nobres da arquitectura. Há dois textos de Rafael Moneo que, a este título, considero exemplares. Um é o que ele escreveu tomando como exemplo a mesquita de Córdoba, onde fala, pela primeira vez, sobre a vida própria dos edifícios, introduzindo esse conceito das contemporaneidades sucessivas; a mesquita parece-nos hoje unitária quando, na verdade, tem uma sequência de evolução temporal, ainda no período árabe e, depois, com aquela intrusão da igreja, mas que Moneo defende, apesar da violência, como respeitando uma série de regras que aprendeu da lógica da mesquita. Mas o que o texto procura acentuar é, fundamente, o facto de os edifícios terem uma vida própria porque contêm vida, não só estão muito para lá da permanência e dos autores que os fazem, como estarão sujeitos a sabe-se lá a quê... É claro que nós, arquitectos, queremos acreditar que um belíssimo projecto de arquitectura é muito resistente e pode aguentar, facilmente, sem ser destruído, mas não é garantido que assim aconteça... Num segundo texto, escrito quinze anos depois deste, Moneo diz que os arquitectos projectam solitários. E di-lo de uma forma que considero muito bonita, que é: o edifício, uma vez construído, permanece em enorme solidão. Em solidão, porque o arquitecto que o produziu e o imaginou, tal como os construtores que o fizeram, têm uma vida muito mais curta do que a do edifício. E o edifício fica na sua enorme solidão, sujeito a reinterpretações, tanto dos próprios utilizadores, como dos arquitectos que os utilizadores forem chamar, ou de quem tiver leituras críticas sobre ele. Ao nível das cidades há uma vulnerabilidade, que é indiscutível e que toda a gente aceita, que é a vulnerabilidade das grandes catástrofes.A outra que já é menos consensual é a do mau uso e, por fim, a prior de todas, a do esquecimento e do abandono. É a pior de todas, porquê? Porque o esquecimento e o abandono têm, no fim da recta, a ruína e a anulação. E esse fenómeno existe nos edifícios e existe ao nível da transformação da cidade. (EEN) Ora, tudo o que já referiste obriga a uma gestão, por vezes complicada, tanto pela coexistência das Instituições Tutelares do Ordenamento, como das do Território Edificado e Natural, nos diferentes níveis de competência política, com as pressões dos particulares e das Autarquias, na perspectiva económica e do curto prazo. Queres citar alguns dos problemas de maior constrangimento profissional?
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Eu estou a trabalhar com Itália há muitos anos, mas a construir só há ano e meio. É muito maior a história das coisas não feitas, do que a das já realizadas. E depois, quando se consegue ir para a frente, vem a Sovrintendenza dei beni culturali, que normalmente tem uma visão extremamente estática. Posso contar uma pequena anedota de um concurso que ganhámos em Vicenza, um concurso para a construção de um ginásio mínimo numa escola do ensino secundário, a qual era já uma adaptação de um antigo convento. Ora, a escola tinha um recreio, um espaço muito amplo, muito arborizado; e nós ganhámos esse concurso, propondo um cubo muito discreto, com um ripado de madeira, que se metia bem debaixo das árvores. Quando começámos a trabalhar no projecto, este teve que ir à Sovrintendenza para aprovação e a arquitecta responsável disse-me que não, porque no centro histórico não era possível fazer cubos. E eu pedi-lhe imensa desculpa, mas lembrei-lhe que no centro histórico de Vicenza existiam imensos cubos, desde o românico até, pelo menos, ao século XIX. Ela dizia-me que não eram cubos e eu insistia que sim, que eram cubos, só que um era românico, o outro era renascentista, o outro... Este pequeno exemplo mostra, creio, como é fundamental que o projecto, hoje, saiba dialogar com a história, valorizando o que existe e respeitando o que está ao lado, mas afirmando a sua contemporâneidade. E sempre assim foi, exceptuando os revivalismos, que sabemos serem devidos ao pensamento romântico e, depois, o discurso do pós-moderno, que é muito perigoso; e o que é curioso é que o pós-modernismo cola muito bem com este historicismo, mas muitas pessoas não têm consciência disso. (EEN) Ao fazeres intervenções em Património Classificado como em Alcobaça, tiveste de gerir múltiplas contradições, desde as exigências legais, às expectativas criadas pela Autarquia, à mitificação do monumento, além dos hábitos de acessibilidade das empresas turísticas, tendo gerado conflitualidade. Explica um pouco, pois nas sessões públicas, pela maquete, nada o previa na tua proposta?...
Essa obra consistiu na remodelação da área envolvente do Mosteiro de Alcobaça. É espaço público e eu tenho que reconhecer que a transformação é radical. E fui confrontado com uma “Acção Cautelar”, que não teve provimento, que pedia a paragem imediata das obras e a nulidade contratual; mas isso foi exactamente quando a obra começou. O que é curioso, hoje em dia, nestes movimentos de cidadania, é que há de tudo. E o que acontece é que, normalmente, os mais activos são os que se
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opõem. E este fenómeno é bem conhecido, como no caso da Torre Eiffel, aquando da sua construção, gerando-se um movimento que mobilizou toda a inteligência parisiense, com Alexandre Dumas à frente, a recolher assinaturas para não a deixar construir, porque era um atentado ao património. Agora, vai hoje propôr demolir a Torre Eiffel e vais ver... E isto é muito engraçado, porque há aqui uma coisa que é curiosa, porque a cidadania, enquanto manifestação de hábitos e memórias adquiridas, tem uma relutância, eu diria quase expontânea, à transformação. E nós sabemos que as cidades se fazem historicamente com mudança. Hoje, Haussmann não teria feito nada; e, no entanto, a cidade de Paris hoje é bela como é bela, graças a um esventramento muito violento. Hoje, em Veneza, nunca terias tido uma igreja como a do Redentor, de Palladio, porque é completamente fora de escala: do outro do lado Canal da Giudecca, tens o casario e, de repente, surge aquela explosão paladiana, fabulosa, mas que hoje não passava! Está fora de escala, completamente! No resto da Europa as pessoas passaram por duas Grandes Guerras e aperceberam-se, fruto dessa experiência violentissima, que há lógicas de regeneração possíveis e que estas podem produzir coisas positivas. Creio que este é um processo de aprendizagem mútua e nós temos que aprender a dialogar, a arquitectura tem uma dimensão pedagógica que é fundamental. (LFL) Sendo arquitecto, como vê a gestão do legado do século XX em termos de Património Arquitectónico? A forma como ao nível das cidades portuguesas se tem vindo a salvaguardar ou a demolir edifícios, ou o carácter de algumas das intervenções realizadas, não denuncia também diferentes gradações de consciência da contemporâneidade acerca de si própria?
É uma questão que eu acho complexa, porque tem um pouco a ver com o que eu dizia sobre o texto de Moneo, de que os arquitectos projectam solitários e os edifícios uma vez acabados ficam entregues a si próprios, não é? Eu acredito que a arquitectura fica como testemunho, mas depois o seu autor desaparece, se tiver sorte ainda vive vinte e tal ou trinta anos com a sua obra, durante os quais vai sofrer imensamente se lhe alteram a janela, não é? Agora, essa obra pode, a certa altura, aparecer classificada. Como é que uma obra se torna património? Eu acho que, de algum modo, a arquitectura produz património, o que é uma afirmação completamente contestável, porque nós sabemos que há arquitecturas péssimas, arquitecturas assim-assim, arquitecturas
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boas e arquitecturas muito boas. Mas eu, às vezes, até me pergunto se as que vão ser reconhecidas são aquelas que eu hoje considero muito boas. E tenho esta dúvida, até porque este reconhecimento não depende, de todo, de mim, depende, eventualmente, de alguns colegas meus daqui a quarenta anos, depende com toda a certeza de outras gerações de historiadores. É por isso que me parece difícil falar de património sem alguma distância de tempo. Nós hoje já estamos muito preocupados com o DOCOMOMO, com o património Moderno, mas eu sinto que, em relação a algumas obras, há pouca distância temporal para fazer o julgamento. Esta questão é uma questão que eu devo dizer que a mim, como arquitecto, não me angustia muito. (EEN) Como avalias então o carácter das alterações sucessivas, explícitas ou camufladas, a conjuntos urbanos que tinham a sua coerência própria e que se vão esventrando? Estou a pensar por exemplo no Bairro do Arco do Cego, mas é um fenómeno que encontramos um pouco por todo o lado...
É a história do neo-fachadismo, do qual é exemplo máximo Bruxelas, a cidade mais desastrada e terrível da Europa em intervenções desse género. Eu tenho uma visão em relação ao património e, concretamente, no que toca à questão do fachadismo, que é: enquanto as fachadas pombalinas são fachadas que são projectadas claramente com esse objectivo, têm uma carga de perenidade fortíssima, muitas das fachadas que a nossa cidade construiu, já nos anos ’30 eram muito más! Quer dizer, já eram péssimas! E o que se passa é que nós estamos a conservar coisas que são péssimas! Porque a boa cidade, que não tem por detrás a regra indiscriminada da permanência da fachada, sempre se fez com contemporaneidades ao lado umas das outras. Portanto, eu não vejo razão para que hoje não se possa fazer assim, não tem que ser por contraste, pode ser por analogia, o que acho é que tem que ser por diálogo e interpretando, correctamente, algumas regras urbanas. Não tem que ser obrigatoriamente a manutenção formal da fachada, creio que em Lisboa se tem abusado claramente dessa receita. Às vezes pergunto-me se não vale a pena correr o risco de fazer um bom exercício de uma fachada contemporânea e ter a coragem de demolir a outra. O arquitecto Fernando Távora tem um texto fabuloso sobre isso, onde diz que “a fazer mal, então é preferível morrer de pé”, se não se pode fazer bem, reinterpretando. A única receita que eu sei é que é muito importante dialogar do ponto de vista formal, do ponto de vista da escala, do ponto de vista da continuidade urbana, com uma grande exigência crítica e de qualidade.
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(LFL) Para terminar, gostariamos de lhe propôr que nos falasse da Torre de Controle de Tráfego do Porto de Lisboa, que mencionou há pouco, um dos seus projectos em que mais se sente a mútua referênciação entre o edifício e a cidade...
Uma das coisas que me interessou muito quando participei neste concurso foi a localização proposta. Em Lisboa identificamos momentos particulares em que se processou uma espécie de condensação de toda a contemporaneidade, produzindo testemunhos muito icónicos. Para um edifício ter carga de monumento – quer dizer de memória, de singularidade – normalmente estabelece uma relação muito interessante com o espaço vazio à sua volta, e isso é muito importante para mim. Fiz uns esquiços que acompanharam a memória descritiva, em que fazia uma espécie de sequência que começava com a tipologia da Praça do Comércio que é, claramente, uma Place-Royale em que o vazio é fundamental, porque é o chamado espaço de respeito à figura régia. Este é talvez o exemplo mais extremado e radical de que para um edifício se tornar auto-referente tem de ter um grande vazio à sua volta. A Praça da Comércio sendo uma das praças mais notáveis da produção Iluminista europeia, pode ser considerada um momento singular, como o haviam sido o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, ou mesmo, ainda que desastradamente, o Padrão dos Descobrimentos, que têm uma relação directa com o rio, com o vazio, que é fundamental para a sua singularidade. Outro momento singular que então citei é o que encontramos na Ponte 25 de Abril, que considero um ícone em termos de contemporaneidade. Em primeiro lugar, não é um edifício de monumento, porque é um edifício que tem um uso e normalmente o monumento afasta-se; sendo uma infra-estrutura, corresponde a um momento, justamente essencial, na génese da cidade metropolitana. Por outro lado, a Ponte é interessante porque é o cruzamento da grande infra-estrutura da auto-estrada, que imprime uma marca na cidade metropolitana, com a infra-estrutura da memória, da história, do rio. É muito feliz, como desenho, por duas razões: primeiro, ao ter dois pilares cria, à escala da cidade, uma nova porta sobre Lisboa; segundo, porque sendo o perfil do rio Tejo um perfil irregular, a ponte, partindo da cota da margem esquerda, que é uma arriba acentuada, projecta essa cota sobre a margem direita da cidade, que tem uma pendente mais ou menos suave. Ao fazer esta passagem sobre uma cidade que tem uma escala muito mais doméstica, projectando este sistema de
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viadutos, faz algo que eu acho muito bonito, porque permite uma leitura e uma percepção da cidade, que é também do nosso tempo, que é a leitura dinâmica do automóvel, a leitura em movimento. Estes valores foram muito importantes para mim quando trabalhei este projecto. O programa do concurso era pragmático: propunha a Torre tal como os postos de observação dos aeroportos, um edifício na base de uma grande coluna, onde se colocavam os equipamentos tecnológicos, encimada por um disco todo em vidro para permitir a observação. Concluí que não tinha que ser assim. Podia pegar nestes espaços de trabalho e dividi-los por pisos. A Torre de Controle tem uma hierarquia muito estabelecida, se reparar, respeita até a hierarquia do edifício clássico: o embasamento em pedra, o corpo do edifício em cobre e a “cornija” em vidro, muito transparente, coincidindo com os pisos de observação, campeado com um terraço. A seguir, o raciocínio foi outro. Era obrigatório que a Torre aparecesse na ponta de um esporão, entrando pelo rio. Qualquer que fosse o projecto que se fizesse ali, iria estar na berlinda, ficaria tão destacado, teria um vazio tão grande à sua volta, que estavam reunidas todas as condições para que o edifício tivesse uma leitura um pouco “icónica”. (LFL) Mas curiosamente essa dimensão “icónica” do edifício parece prender-se com uma leitura prévia que fez de Lisboa e que, à posteriori, propicía que o edifício estabeleça uma relação quase metonímica com a cidade...
Hoje em dia, creio que se exagera na dimensão auto-referente da arquitectura, mas há certas condições e ocasiões em que a arquitectura deve assumir conscientemente essa dimensão. E este era, indubitavelmente, um desses casos. Nunca estamos em condições de saber se aquilo que projectamos vai ou não assumir essa condição icónica, aí há outro factor, que é o factor tempo e a interpretação futura; no entanto, aprendendo um pouco com o exemplo dos edifícios mencionados anteriormente e com o que os caracteriza, pareceu-me que este iria transportar sempre a carga da nossa contemporaneidade. Pareceu-me interessante valorizar dois aspectos. Um é essa espécie de tributo à importância do rio, enquanto caminho da viagem e da descoberta; também por isso a opção de fazê-la inclinar, introduzindo-lhe um certo vector dinâmico – porque se eu fizesse um edifício vertical, seria o máximo de carga estática – e eu gostaria que o edifício pudesse insinuar que se mexe, que se vai embora também. Por outro lado, pareceu-me igualmente importante valorizar
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algo que é talvez o lado difícil e fascinante da nossa cultura contemporânea, que é: nós estamos a viver um momento histórico em que as certezas estão muito em causa, não é que elas não existam, a visão que tenho é que têm que ser procuradas no dia a dia. Há um filósofo italiano, Gianni Vattimo, que escreve sobre a condição da contemporaneidade e, falando concretamente sobre o projecto de arquitectura, diz que um dos grandes problemas hoje é que para além do projecto é preciso construir a fundamentação do projecto; e isto, para mim, é uma atitude muito interessante porque, desde logo, introduz no projecto arquitectónico uma dimensão ética que me parece essencial. Numa altura em que já não podemos dizer que o projecto está bem porque tem pilotis, assenta numa tábua rasa, como dizia Corbusier, porque esse tempo já lá vai, hoje temos que justificar a coerência do edifício mediante critérios que obviamente têm a ver com o espaço que está à sua volta, porque esse é o espaço da cidade e o espaço da cidadania.
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Palavras-chave: Cidade Histórica; Baixa de Lisboa; Urbanismo Português; Salvaguarda; Baixa-Chiado
Key words: Historic city; Lisbon downtown; Portuguese urbanism; Safety; Baixa-Chiado
RESUMO
ABSTRACT The application of the area of Baixa Pombalina for classification as World Heritage was prepared by the City of Lisbon in 2004 but for several political reasons has not yet been formalized. This article deals with some aspects of the preparatory work conducted by the Scientific Committee that prepared the application.The area to be classified should be underlined. It includes the area of Chiado as well as the historically innovative aspects of the 1755 postearthquake Reconstruction Plan framed by a double context: that of European Enlightenment urbanism of the 1700s, and the Portuguese “city making” tradition developed in the vast colonial space.
A candidatura da Baixa pombalina a Património da Humanidade foi preparada, pela Câmara Municipal de Lisboa, em 2004 mas, por razões políticas diversas, não foi ainda formalizada. Neste artigo abordam-se alguns aspectos do trabalho realizado pelo Conselho Científico daquela candidatura. Saliente-se a determinação da área a classificar, incluindo, no seu interior, a “alta” da Baixa pombalina, ou seja o Chiado, bem como os aspectos historicamente inovadores do urbanismo e da arquitectura determinadas pelo Plano da reconstrução pós terramoto de 1755 que têm dois contextos: o urbanismo europeu do Iluminismo setecentista e a tradição portuguesa de “fazer cidades” no vasto espaço colonial.
A CANDIDATURA DA BAIXA POMBALINA A PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE Raquel Henriques Silva*
No século XVIII português, o único acontecimento verdadeiramente original foi o terramoto de 1755 – e o nascimento de uma nova cidade que disso foi consequência. Esta é a última das antigas cidades da Europa e a primeira das cidades modernas”. José-Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo
Alguns factos, 2004-07 Em 2004, a então vereadora da cultura da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Eduarda Napoleão decidiu avançar com a proposta da candidatura da Baixa a Património da Humanidade, trabalhando com o apoio do Presidente da Câmara, Pedro Santana Lopes e com a competência técnica do seu assessor João Mascarenhas Mateus. Este veio a ser o responsável pela preparação da mesma candidatura, e sua apresentação pública, no final 2005, trabalhando com diversos serviços da Câmara e, especialmente, com o Conselho Científico (CC) que, entretanto, fora criado, presidido por mim e integrando reconhecidos especialistas (Ana Tostões, José Sarmento de Matos, José Monterroso Teixeira, Maria Helena Ribeiro dos Santos e Walter Rossa). Esclareço, à partida, que, para todos os membros do CC, a intenção da candidatura foi entendida, não uma finalidade em si mesma (apesar da importância simbólica da sua desejável e esperável aprovação) mas um território de possibilidades para aprofundar o estudo da área e alertar para o seu gravíssimo estado actual. Apesar da qualidade do dossier final da proposta, o Governo português entendeu não o enviar à UNESCO por considerar que ele carecia de uma
* Professora Auxiliar, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
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componente essencial: “o plano de gestão” para a conservação, valorização e dinamização do bem. Era verdade, mas ainda hoje estou convencida que teria sido melhor que ele tivesse sido formalmente apresentado. Iniciar-se-ia mais cedo um segundo nível de debate, com compromissos para a acção. Aliás, não teria sido a primeira vez que uma candidatura portuguesa seria apresentada e aprovada sem Plano de Gestão (como se sabe, é, ainda hoje, a situação de Sintra). Em 2006, já noutro contexto de governação da Câmara Municipal, a então vereadora Maria José Nogueira Pinto criou um grupo de trabalho com a finalidade de elaborar uma proposta adequada para a requalificação da “Baixa-Chiado”. Uma das razões apontadas para esta iniciativa foi que dela poderia resultar “o plano de gestão” exigido pelos normativos das candidaturas a Património da Humanidade. Este Grupo de Trabalho apresentou o seu Relatório final ainda em 2006, difundindo-o amplamente junto dos mais variados grupos de interesse, incluindo os escassos moradores. No entanto, mercê de uma profunda crise política no seio da Câmara Municipal (que conduziu à eleição intercalar de 2007), ele ficaria detido na Assembleia Municipal, sem aprovação final e sujeito a diversos questionamentos políticos e técnicos que não tiveram ainda resposta. Tudo leva a crer que a nova governação da CML, empossada em 1 de Agosto de 2007 (no momento em que escrevo este artigo) irá retomar o Relatório do Grupo de Trabalho e talvez reapreciar o estado actual da candidatura da Baixa Pombalina a Património da Humanidade. Sobre o significativo e qualificado trabalho realizado, este lugar maior de Portugal irá, finalmente, entrar num ciclo novo. O que pretendo com este artigo (que passa a escrito e actualiza a conferência do curso livre do IHA, dedicado às “Cidades Portuguesa, Património da Humanidade”) é, primeiro, sintetizar as razões que o Conselho Científico (CC) de 2004-05 elencou para justificar a oportunidade e adequação da candidatura. Depois, reflectir sobre alguns princípios e estratégias que decorrem da Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado.
Definição e âmbito geográfico da Baixa Pombalina A primeira questão que ocupou o CC foi a definição da área a propor para classificação a Património da Humanidade. A CML pensara, inicialmente, restringi-la ao território entre a Praça do Comércio e o Rossio/ Praça da Figueira,
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Nova Lisboa, cópia da denominada planta número 5 (?) c. 1758. Lisboa, Museu da Cidade.
aquele que fora já objecto de classificação nacional: a Praça do Comércio como Monumento Nacional (1910), o restante conjunto de arruamentos e praças, como Imóvel de Interesse Público (1978). Na opinião unânime do CC, essa opção seria definitivamente empobrecedora da historicidade do Bem e coarctaria as dinâmicas essenciais para a sua salvaguarda. Por isso, se entendeu propor que a classificação se ancorasse num documento célebre e inquestionável: a Planta da reconstrução de Lisboa, certamente elaborada por Eugénio dos Santos, talvez já com a colaboração de Carlos Mardel, e sancionada pelo Senado da Cidade e pelo Marquês de Pombal, datável de 1758. Como se sabe, esse instrumento fundador da cidade contemporânea abrange, além da área da “Baixa”, o território da sua “Alta” ou seja a colina do Chiado, estendendo-se, para ocidente, até aos arruamentos envolventes da Praça de S. Paulo. Esta opção provocou inicialmente alguma resistência: afinal não era a “Baixa” a concretização maior da Lisboa pós terramoto? Não era aí que estavam os seus valores monumentais mais expressivos e que se podia compreender o urbanismo iluminista adoptado, implicando uma disciplina absoluta sobre a arquitectura? Por outro lado, alargar a área ao Chiado não seria inu-
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tilizar a própria designação da Candidatura que sempre se pensou como “Baixa Pombalina”? Foi, como se calculará, uma reflexão muito interessante e de partilha de saberes há muito adquiridos. Embora não se tenha encontrado melhor designação do que a historicamente consagrada (Baixa Pombalina) a verdade é que uma das particularidades mais ousadas do plano de Eugénio dos Santos foi precisamente a sua complexidade topográfica, envolvendo, além do território plano da Baixa, a colina de S. Francisco e, a partir dela, o redesenho do Chiado, entrosando-se com o Bairro Alto de matriz quinhentista que o terramoto em grande parte preservara. Descendo de novo para o Tejo, para reconstruir, com radicalidade absoluta, o ribeirinho bairro de S. Paulo que se articula também com a retícula da Baixa, através da Praça do Município, da Rua do Arsenal e do Cais do Sodré. Depois de ter pensado na eventualidade de designação alternativa - que melhor representasse a autoria do plano, a sua diversidade topográfica e a sua vária concretização – o CC não entendeu necessário mudar a designação de “Baixa Pombalina” para “Baixa-Chiado”, reconhecendo, embora, que esta se foi popularizando, desde a inauguração da estação de Metro com o mesmo nome. Foi a primeira e mais saborosa vitória do CC. Hoje é consensual que a “Baixa” contém uma “Alta” e uma adjacência ocidental; que este território, com história, topografia e vivências bem diversificadas, foi entendido como um todo, pelos arquitectos da reconstrução da cidade; que é a sua inteireza que deve ser objecto de classificação. Pouco interessa que poucos se lembrem da autoria da disseminação deste adquirido, antes só consensual entre alguns especialistas. Depois de encontrada a justificação inquestionável para a opção da área a classificar, o CC iniciou aquela que foi a sua tarefa técnica mais complexa, desenvolvida sobretudo por Maria Helena Ribeiro dos Santos, com a boa colaboração de técnicos do Gabinete da Baixa-Chiado: descrever, rigorosamente, com indicação dos números de polícia, o perímetro da área a classificar. Depressa se percebeu que nem os limites recentes da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) para a Baixa-Chiado, nem os da área abrangida pela actuação do Gabinete da Baixa-Chiado se adequavam aos princípios que definimos, visando, no essencial, garantir a mais ampla protecção das vistas sobre o Bem, e, ainda, a máxima coerência topográfica e histórica da, também definida e descrita,“zona de transição”. Por isso, o trabalho desenvolvido foi meticulosíssimo, construindo-se sobre diversas visitas à vasta área abrangida. Para quem nele participou, foi a oportunidade de um reencontro com uma diversidade
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extraordinária de questões, envolvendo épocas históricas do urbanismo de Lisboa, situações monumentais consolidadas mas também zonas de extrema fragilidade e de incerteza em relação à sua protecção patrimonial. Infelizmente, o facto de a candidatura ter sido detida não permitiu garantir a aceitação formal da proposta do CC para a zona de transição que implicará, aliás, a revisão de alguma regulamentação actualmente existente. Mesmo a sensibilização que o Instituto Português do Património Arquitectónico chegou a revelar em relação ao assunto – ancorada na proposta de classificação, como monumento nacional, de toda a área a candidatar a Património da Humanidade – não teve também sequência, enredada nas indefinições e restruturações do Instituto que não estão ainda terminadas. Por isso, esta é uma das importantes questões que terá de ser ponderada, embora grande parte do perímetro definido tenha sido utilizado na Proposta de Revitalização da Baixa- Chiado.
Critérios justificativos da proposta de classificação Definida a área a classificar, os seus limites e zona de transição, o CC concentrou-se sobre os diversos critérios determinados pela UNESCO para fundamentar a classificação do Bem. Foi um período intenso de trabalho conjunto, sobre sucessivas sugestões ou propostas dos vários membros, que conduziu a preencher-se todos os seis critérios regulamentares, embora tal não fosse necessário. Sendo consultáveis os textos finais produzidos, compreender-se-á que não os transcreva aqui. Mas será útil referenciar que justificámos que a Baixa “representa uma obra-prima do génio da criatividade humana” (1º critério) pela qualidade moderna do seu plano, do ponto de vista urbanístico, arquitectónico e tecnológico, propondo níveis elevados de vivência económica, social, política e cultural. Salientou-se também que a eficácia do Plano se entrosa com uma tradição multissecular de “fazer cidade”, praticada pelos portugueses, desde o século XV, em todas as regiões do seu vasto império, assumindo-se então Lisboa como resultado último dessa extraordinária experiência, corpo e imagem de uma capital imperial. Esta continuidade dinâmica foi relacionada com as diversas cidades, classificadas como Património da Humanidade, que têm matriz urbanística e histórica portuguesa. É o caso de S. Salvador da Baía, S. Luís, Diamantina e Góias
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(todas no Brasil e objecto de artigo específico nesta Revista de Renata Araújo), Galle no SriLanka e a Colónia do Sacramento no Uruguai. No sentido de destacar, por relacionamento, o caso de Lisboa, referiram-se experiências antecedentes (Turim, através dos contactos com Filipe Juvarra; Londres, possivelmente pela intensificação das relações com a Grã-Bretanha através de D. Catarina de Bragança, rainha britânica à época do grande incêndio de 1666), considerando-se também os casos de Reims, Nancy, Lyon e, sobretudo, Edimburgo, cujo plano data de 1766. Noutros momentos do preenchimento dos sucessivos critérios, salientou-se a história ímpar das decisões políticas que envolveram o delineamento e execução do Plano, implicando a demolição do muito que restava da cidade baixa, a proibição de intervenções particulares, a definição conceptual e técnica de uma ordem arquitectónica sobre novo loteamento. Destacou-se também a implementação das infra-estruturas, a determinação regulamentar dos usos, em termos de habitação e das actividades comerciais, a distinção do centro político da capital, assumido na Praça do Comércio, de arquitectura erudita, aberta sobre o Tejo. Além das rupturas, foram salientadas as continuidades: o facto de a Baixa pombalina, apesar do corte radical que introduziu na vivência e imagem de Lisboa, catalizar, não só a já referida experiência imperial de “fazer cidade”, mas a própria história antiquíssima da capital. É o que acontece com a contenção do Plano, respeitando os bairros antigos (Mouraria, Alfama Castelo. Graça), recriando percursos da cidade desaparecida, de articulação Sul-Norte e EsteOeste (as célebres Rua Nova e Rua Nova d’El-Rei de fundação quinhentista) e reconfigurando o Terreiro do Paço, totalmente desaparecido, como praça nova, geométrica e normalizada, mas que mantém elementos essenciais do passado, como as arcadas dos pisos térreos e os torreões de fecho. Sob este aspecto, não deixou de enumerar-se a integração de elementos de arquitecturas eruditas, desaparecidas enquanto totalidade, nas novas igrejas, ou a modernidade com que a estrita malha predial foi capaz de acolher, sem perturbação, o prestigiado Convento do Corpus Christi, incluindo a sua reconstruída igreja. Como se sabe, a poderosa laicização da imagem da cidade é um dos aspectos mais radicais da modernidade pombalina (submetendo a Igreja ao Estado) e é visível no modo como, em toda a área da reconstrução, as numerosas igrejas se encaixam na malha constrangente do edificado. Pormenorizou-se, particularmente, as novidades tecnológicas do Plano, relacionadas com as condutas de esgotos, o traçado das ruas e passeios e a
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prevalência do quarteirão na composição arquitectónica, no interior do qual se estruturavam os ritmos do loteamento e a tipificação das volumetrias, desde a definição das cérceas à organização interior dos edifícios, e à estandardização de diversos elementos construtivos. Neste âmbito, valorizou-se o inovador sistema da gaiola pombalina, relacionando-o com outros sistemas afins, mas destacando a sua incontornável originalidade que tem vindo a ser objecto de confirmação por estudiosos estrangeiros. Apesar do CC considerar que o valor essencial da Baixa pombalina é a complexidade, eficácia e historicidade do Plano, não deixou de registar os tempos longos, com contextos diversos, da sua concretização: na verdade mais de cem anos, se se considerar a data da inauguração do Arco da Rua Augusta (1873). Neste âmbito, interessa salientar as conclusões de trabalhos entretanto realizados, nomeadamente pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) que, em 2004, dedicara a revista Monumentos (nº 21) à Baixa Pombalina. Destaco, particularmente, a datação rigorosa das primeiras edificações da Baixa propriamente dita, baseada no inventário do imposto predial Décima da Cidade que permitiu confirmar a importância da edificação na época de D. Maria I, e caracterizar os valores da arquitectura de “um segundo pombalino”. Os seus referentes de conforto, ornamentação e distinção imagética começaram a alterar aspectos constitutivos do Plano, mesmo em termos do loteamento e da definição da cércea. É nessa época, após o desaparecimento de todos os autores do Plano, que o Chiado se foi caseando, ao longo de ruas quase integralmente redesenhadas, manejando a maior liberdade que o Plano lhe atribuíra, de modo que o pombalino conforma ali uma arquitectura que mescla casas nobres e palacetes com prédios por vezes designados, na documentação, “casas nobres de aluguer”. Elas estendem-se à Rua do Alecrim e bairros anexos da Emenda e Rua das Flores, enquanto, ao Cais do Sodré e a S. Paulo, se manteve, mais estritamente, a urbano-arquitectura inicial, baseada na figura estruturante do quarteirão. Mas, terminado o Antigo Regime e instaurado o liberalismo, a Baixa continuou a ser a imagem mais impressiva de Lisboa onde as novas operações urbanísticas se conformaram ainda às normas do Plano da Reconstrução, mesmo quando envolveram situações antes impensáveis, decorrentes da extinção dos conventos, em 1834. Assim aconteceu, por exemplo, em relação ao imenso território do ex-convento de S. Francisco.
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Pense-se também no caso do Rossio, onde o edifício delineado por Carlos Mardel ou Reinaldo Manuel, para albergar a Inquisição, depois de ardido, foi substituído pelo Teatro Nacional D. Maria II, desejado por Almeida Garrett para educação de um povo de cidadãos. A sua elegante arquitectura neoclássica, já romantizada, da autoria de Fortunato Lodi (1846) adequou-se à ampla praça que, entretanto, tivera o chão decorado com uma das primeiras composições basálticas a preto e branco, tão características do urbanismo romântico; no fim do século, chegarão as fontes monumentais de origem francesa e as primeiras demolições e reconstruções, modernizando, no gosto ecléctico de 1900, as fachadas e os interiores de habitações e, sobretudo, as lojas dos pisos térreos. A Baixa foi então, e até aos anos de 1950, o bairro chic de Lisboa, pela riqueza burguesa das suas lojas, a boémia de cafés, teatros e cinemas, a proximidade do “país dos jornais” no Bairro Alto, mas também a vida mais soturna de bancos e da administração pública. Valorizando as diferenças, as alterações que ao longo de duzentos e cinquenta anos ocorreram no território da Baixa, pôde, no entanto, provar-se
Vista área de Lisboa, em primeiro plano, a Praça do Comércio (c. 1960)
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que o seu valor de integridade se mantém, no essencial, intacto. Não questionado pelas apropriações da história, de gostos e funcionalidades novas, essa integridade tem sobrevivido também às situações de declínio e abandono que começaram a delinear-se na década de 1960, relacionadas, primeiro, com as novas centralidades económicas e financeiras, e, progressivamente, pelo abandono demográfico que atinge, hoje, uma expressão dramática. Compreende-se assim que, para todos os membros do CC, a preparação da Candidatura da Baixa a Património da Humanidade teve, como já afirmei, um entendimento estratégico, recomendando-se, em diversos monumentos do ano de trabalho, a urgência de se criarem instrumentos legislativos adequados para se iniciar a valorização patrimonial do Bem. Infelizmente, até 2006, nada foi feito, tendo os dossiers da candidatura sido sepultados não sabemos onde. Quanto aos pareceres e sugestões do CC, talvez nunca tenham sido lidos por quem de direito.
O Plano Baixa-Chiado Como inicialmente referi, em 2006, nova esperança surgiu para a salvaguarda e revitalização da Baixa Pombalina, com a criação de um grupo de trabalho presidido pela então vereadora Maria José Nogueira Pinto que, em Setembro de 2006, apresentou, sob a forma de dossier, uma Proposta de Revitalização para a Baixa-Chiado. Fiz parte desse grupo de trabalho, fundamentalmente porque se entendia que, a elaboração de um estudo, destinado à acção, poderia vir a ser considerado o “Plano de Gestão” necessário para a apresentação da candidatura da Baixa a Património da Humanidade. Embora, em consciência, tenha subscrito e assumido publicamente o documento final, não me identifico com alguns dos projectos ali definidos e que, na arquitectura geral do Plano, são considerados fundamentais. Trata-se, como se sabe, de questões da maior complexidade e com elevadíssimo grau de risco. A maioria dos membros daquela equipa - sobretudo Manuel Salgado, enquanto arquitecto, e Augusto Mateus, enquanto economista e sociólogo – considera que a intervenção deve ser extensiva e densa, de modo a dotar aquela zona da cidade com condições atractivas para o investimento, para o comércio e sobretudo para o turismo. Admitem por isso, embora com preocupações de salvaguarda patrimonial, intervir significativamente
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Vista geral das praças do Rossio e da Figueira
quer no loteamento, quer nas funções tradicionais. Exemplos maiores da radicalidade da intervenção são, por exemplo, a proposta de um hotel de luxo na ala mais nobre da Praça do Comércio, com parque de estacionamento subterrâneo, ou a criação de um “centro comercial a céu aberto” nas Ruas da Vitória e de Santa Justa. A minha reserva temerosa em relação a este tipo de projectos não é, no entanto, absoluta. A degradação e abandono da Baixa é tal, em termos patrimoniais e vivenciais, que criar uma dinâmica de investimento significará, necessariamente, possibilidades de trabalho positivo de salvaguarda. No entanto, preferiria uma filosofia de intervenção de pequena escala, o “fazer conjunto da concertação local” (Choay, 2005) capaz de criar um conjunto coerente de intervenções qualificadas nos numerosos prédios (alguns da primeira época da edificação) cuja estrutura construtiva e arquitectónica é ainda quase integralmente pombalina.Tal seria realizado com a eficácia de gabinetes técnicos de acompanhamento (o da Baixa-Chiado seria bastante, enriquecido com excelentes técnicos que andam, desmotivadamente, a vegetar em diversos serviços), estimulando, acompanhando e servindo a extrema diversidade de interesses públicos e privados em jogo.
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A questão maior da salvaguarda da Baixa – que qualquer instrumento financeiramente poderoso poderá pôr em causa – é, no interior da coerência do Plano, a extraordinária diversidade de situações existentes, determinando actuações igualmente diversas. O que se agrava pelo facto que, apesar dos imensos progressos, o inventário sistemático, profundo, informado das existências, não está concluído. Por isso, o empenho em promover os estudos que estão por realizar (envolvendo desde a geologia às artes decorativas, passando não só pelas engenharias e as arquitecturas, mas também pela história económica, social e cultural) irá ser condição de efectiva adequação dos planos a realizar. A Proposta para a Revitalização da Baixa-Chiado procura integrar esta necessidade de estudo interdisciplinar com a criação de uma espécie nova de Escola de Artes e Ofícios, sedeada na zona e envolvendo, em termos de pósgraduações e mestrados, diversas faculdades que asseguram formação nos domínios do património, estendendo-se ao design e às indústrias culturais. Esta é uma excelente proposta, como o é também a de instalar, na ala ocidental da Praça do Comércio, um núcleo do Museu da Cidade, acolhendo a grande diversidade e riqueza das colecções pombalinas. Ideia já antiga, sucessivamente apresentada com algumas variantes, ela deverá ser, na minha opinião, mais do que o instituto museu, um centro de estudo e de divulgação, capaz de servir públicos muito diversos, dos cidadãos comuns e turistas aos níveis mais exigentes de investigação. O que é essencial – e assim termino – é que a consciência da excepcionalidade histórica e patrimonial da Baixa esteja no cerne de todos os planos de salvaguarda, modernização e dinamização. Essa consciência é, em primeiro lugar, um imperativo histórico constrangente que não poderá ser mais torpedeado. Foi-o no passado, em inúmeras situações que, desde os anos 40, geraram a “Baixa betonizada” mas, há luz da nossa cultura contemporânea, não pode voltara a sê-lo (e, no entanto, obras em preparação ou em curso continuam a inflectir esta exigência). A valorização dos patrimónios históricos tem vindo a adquirir – desde os anos 80, quando se iniciou o crescimento imparável do turismo mundial – um significado económico e cultural que antes não possuía, senão em casos de excepcionalidade monumental. Nas nossas sociedades nómadas e cada vez mais iguais entre si – em que o peso das diferenças históricas e culturais não tem cessado de enfraquecer – os centros históricos das velhas cidades euro-
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peias tornaram-se mais-valia inquestionável. Mas, para os mais atentos, compreende-se já que as gerações futuras vão cansar-se desses lugares de excepção em que quase já só existem turistas e uma oferta cultural sem marcas de particularidade antropológica. Pelo contrário, na Baixa-Chiado, como em todos os bairros históricos de Lisboa, será ainda possível viver quotidianamente, aceitando os limites que os sítios e as casas velhas nos impõem. Alguns, como eu, consideram que esses limites são leves e familiares e preferem-nos às comodidades indiscutíveis das cidades satélites. Por isso, olho, com inquietação, os novos hotéis de cinco estrelas que esventraram integralmente velhos edifícios de que só resta a pele remaquilhada dos seus centenários corpos, ou os apartamentos de luxo que, identicamente, exigem elevadores, parques de estacionamento e, eventualmente, piscinas no terraço. Estas situações – todas infelizmente existentes, pelo menos em projecto – sugerem que o grande investimento (e os excelentes técnicos que o servem) negam hoje a velhice das cidades, como os homens e mulheres do jet set mundial negam, para si próprios, o seu normal processo de envelhecimento. Será que os “não-lugares” do século XXI (Augé, 2005) se irão instalar nas pregas, artificialmente alisadas, da cidade histórica?
Bibliografia Considerando a vastidão da bibliografia fundamental sobre o tema, remeto, os leitores interessados, para - Monumentos. Revista Semestral de Edifícios e Monumentos Nacionais, nº 21, Setembro de 2004 - que apresenta um elenco apreciável de bibliografias especializadas nos seus sucessivos artigos. As obras que a seguir destaco não são ali citadas: AUGÉ, Marc (2005) – Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90º (1ª ed.: 1992) CHOAY, Françoise (2005) – Património e Mundialização. Évora: Casa do Sul Editora/ Centro de História da Arte da Universidade de Évora. PORTAS, Nuno (2005) – Os Tempos das Formas. Vol. I – A cidade feita e refeita. Universidade do Minho/ Departamento Autónomo de Arquitectura. RODRIGUES, Paulo Simões (2005) – Lisboa, a Construção da memória da cidade. Évora: Casa do Sul Editora/ Centro de História da Arte da Universidade de Évora.
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Recens천es
KLEIN, Peter K. – Beato de Liébana: La ilustración de los manuscritos de Beato y el apocalípsis de Lorvão. Valência: Património ediciones, 2004.
Peter Klein é professor na Universidade de Tübingen (Alemanha). Tem dedicado grande parte da sua investigação ao estudo dos Beatus, estabelecendo linhas de correlação iconográfica entre os diferentes manuscritos existentes. A obra aqui apresentada resulta do estudo e análise sistemática da iconografia das iluminuras do Apocalipse do Lorvão (Ms. Lorvão 43; Casa Forte nº160), actualmente con-
servado no IAN-TT, considerado pelo autor como sendo “um dos primeiros e mais sumptuosos manuscritos iluminados do jovem reino de Portugal”1 bem como uma das raras cópias que chegaram até nós exemplificativas da tradição pictórica mais antiga dos Beatus. O autor utiliza uma metodologia de trabalho concisa e clara. Partindo da análise codicológica do manuscrito2, aborda a sua procedência, origem
1 Peter Klein, ob, cit., p.11. 2 Igualmente elaborada pelos dois autores que dedicaram uma monografia ao Apocalipse do Lorvão: EGRY, Anne de – O Apocalipse do Lorvão e a sua relação com as ilustrações medievais do Apocalipse. Lisboa: F.C.G., 1972; PEIXEIRO, Horácio Augusto – Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão. Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superior de Tecnologia, Departamento de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicas para professor coordenador. Acerca do tema dos Beatus consultar a obra de dois eminentes investigadores,Yarza Luaces e John Williams, que se têm debruçado sobre o estudo do conjunto destes manuscritos, com um capítulo dedicado ao Apocalipse do Lorvão (Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005; John WILLIAMS – The Illustrated Beatus: a corpus of the illustrations of the commentary on the apocalypse. London: Harvey Miller Publishers, 2003.Volume V). No domínio da análise iconográfica não podemos esquecer os trabalhos levados a cabo por Maria Adelaide Miranda sobre a iluminura românica em Portugal com referências ao Apocalipse do Lorvão (Maria Adelaide MIRANDA “A iluminura românica em Portugal”, in A iluminura em Portugal: identidade e influências. Lisboa: B.N., 1999. p. 166-171). Por último não posso deixar de referir a contribuição do Prof. Doutor Aires Augusto do Nascimento, nomeadamente na leitura que este faz da iluminura do fl.153v do Apocalipse do Lorvão, no qual o dragão, símbolo do diabo, invade a esfera do celeste, salientando que “neste mundo ordenado de criaturas, não existe apenas o “alto”, isto é , o valor, o céu, mas também o “baixo”, a privação de valor, a terra, os infernos. A invasão da esfera superior é símbolo da subversão dos valores, de desregramento, próprio do demónio” (Aires Augusto do NASCIMENTO, “O sufrágio: o trinitário gregoriano”, in A Imagem do tempo: livros manuscritos ocidentais, Catálogo da exposição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, p.432-434).
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e estilo, bem como as relações com a iluminura românica3 em Portugal, situando-o na tradição dos Beatus existentes. Um breve capítulo é dedicado à utilização do Comentário ao Apocalipse por Beato de Liebana, pelos monges, a partir do estudo das glosas existentes no Beato do Lorvão bem como no de Alcobaça (século XIII), que permitem comprovar uma leitura do texto mencionado no refeitório. O cerne do seu estudo é tratado no capítulo mais relevante da obra dedicado às iluminuras do Apocalipse do Lorvão e à sua relação com os restantes Beatus. Peter Klein vai distinguir três personagens na elaboração do Apocalipse Lorvão: o escriba, identificado no cólofon como sendo Egeas, e os iluminadores; através da análise da escrita e das tintas preta e vermelha, utilizadas no texto e nas miniaturas, contesta o
facto de alguns autores atribuírem a mesma identidade ao copista e ao iluminador, destacando inclusive a diferença subjacente a nível do tratamento plástico do rosto, patente em certas iluminuras. Como suporte desta análise vai igualmente servir-se da leitura iconográfica, atribuindo ao artista mais hábil as iluminuras que melhor ilustram o texto bíblico bem como o do comentário e a capacidade de introdução de novos elementos iconográficos coerentes com a temática abordada e a um segundo artista (aquele que executa grande parte das iluminuras) os “erros iconográficos”4 existentes, considerando-o um iletrado5. Numa tentativa de determinar o scriptorium donde saiu o Apocalipse do Lorvão, Peter Klein parte das análises estilísticas já estabelecidas, pelos autores que estudaram este manuscrito, com o Livro das Aves (este executado
3 Note-se que o autor se limita a referir as relações já estabelecidas por outros investigadores, nomeadamente por Anne d’Egry e Adelaide Miranda. 4 Peter Klein, ob. cit., p.24. 5 Os resultados da investigação (a publicar) levada a cabo pela Profª Doutora Adelaide Miranda (Coordenadora pela FCSH-UNL) e pela Dra. Ana Lemos, bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito do projecto “A cor na iluminura portuguesa: uma abordagem interdisciplinar” (POCTI/EAT/33782/2000), suscitam algumas interrogações quanto à posição de Peter Klein ao considerar todo o desvio iconográfico como um erro do iluminador ao mesmo tempo que atribui a um outro artista, a capacidade de introduzir novos elementos iconográficos. Note-se que o autor considera como novos elementos iconográficos todos aqueles que se inserem na temática abordada. Esta dicotomia entre “novos elementos iconográficos” e “erros” põe de lado qualquer capacidade inventiva e / ou de leitura por parte do iluminador. Estaremos, tal como Peter Klein o afirma, perante “erros iconográficos” (Peter KLEIN, ob. cit., p.24) ou, segundo Adelaide Miranda e Ana Lemos, perante um desvio da tradição iconográfica dos Beatos?
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no scriptorium do Lorvão) e com o Saltério de Santa Cruz (BPMP, Ms.27)6, cuja proveniência não se encontra devidamente comprovada. Assim, através da comparação estabelecida entre a iluminura da Crucifixão do Santa Cruz nº 27 e algumas das iluminuras do Apocalipse do Lorvão, avança um novo dado na investigação do fundo pertencente ao Mosteiro do Lorvão e no reconhecimento da existência dum scriptorium ao considerar que o Santa Cruz nº 27 poderá ter sido obra deste mesmo scriptorium, deixando em aberto a questão do facto do estilo das figuras destes três manuscritos poderem representar um cunho próprio do atelier de iluminura deste Mosteiro. Considera, no entanto, o estilo das iluminuras do Apocalipse do Lorvão bastante peculiar e sem paralelo tanto na escultura como na pintura, destacando a sua paleta de cores extremamente reduzida mas não explora este factor, determinante no estudo deste manuscrito. Antes de entrar propriamente na análise das iluminuras do manuscrito do Lorvão, Peter Klein, a partir das semelhanças e divergências apontadas, pelos autores que se debruçaram sobre o estudo dos Beatus, com
outros manuscritos do grupo, nomeadamente com o Beato de Osma, dá-nos um panorama geral, decompondo-as e analisando-as uma a uma, permitindo apreender as linhas condutoras que unem o Apocalipse do Lorvão a alguns dos Beatus e as interligações existentes entre os dois Ramos. A análise das iluminuras do Apocalipse do Lorvão e da sua relação com os outros Beatus, pertencentes tanto ao Ramo I como ao II7, um capítulo fundamental deste trabalho, constituía uma lacuna no estudo destes manus-
6 MIRANDA, Maria Adelaide – A iluminura românica em Portugal. In A iluminura em Portugal: identidade e influências. Lisboa: B.N., 1999. p.136.
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critos. Peter Klein, numa linha aberta por Yara Luaces, abre uma nova perspectiva de abordagem na sua tentativa de identificar qual a representação que se encontra mais próxima da versão original, redimensionando a importância do Apocalipse do Lorvão face ao conjunto dos restantes manuscritos, não só pelos elementos iconográficos que o ligam a uma tradição mais antiga (oriental e bizantina) mas também pela inovação trazida no campo iconográfico. As estreitas relações iconográficas entre o Apocalipse do Lorvão e o Beato de Osma haviam já sido salientadas pelos autores que se dedicaram ao estudo do grupo dos Beatus. No entanto, Peter Klein parte desse conhecimento adquirido referenciando e analisando os modelos comuns aos dois manuscritos, bem como reafirmando o papel que tiveram na modificação da iconografia tradicional, ao mesmo tempo que
atribui ao iluminador/ou iluminadores do Apocalipse do Lorvão a introdução de alguns elementos iconográficos específicos a este manuscrito como, por exemplo, a figura de Cristo, de braços abertos, no fl.112r8 e a figura do cavaleiro, coroada, no registo superior bem como a figura com uma seta cravada no peito na margem exterior do fl.115r, representação essa sem paralelo noutro manuscrito dos Beatus e que, nomeadamente, não aparece mencionada no texto bíblico da storia nem no comentário, constituindo, a sua representação nesta cena, uma incógnita É interessante o paralelismo que o autor faz entre as figuras mencionadas do fl.115r e a figura do 1º cavaleiro do fl.108v9 interpretando-o à luz da leitura do comentário que “compara al primer jinete com las palabras de los predicadores, personificados en el jinete, que «al igual que flechas, persiguen el
7 O conjunto dos Beatus encontra-se dividido em dois Ramos principais, o Ramo I e o Ramo II, que por sua vez se subdividem em diversas ramificações. Este stemma, proposto por Peter Klein (Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005, p.45) com base num preexistente elaborado por Wilhelm Neuss, resulta da análise dos Beatus existentes e das relações intrínsecas estabelecidas entre eles. O Apocalipse do Lorvão, único manuscrito português do conjunto dos Beatus, para além de ser o único do século XII que se encontra datado (1189), pertence ao Ramo I, considerado o mais próximo do protótipo. 8 Peter Klein, ob. cit., p.78, o autor refere que “los brazos extendidos de Cristo en ambos registos parecen ser también una invención del ilustrador de nuestro Beato, pues carecen de paralelo en otras ilustraciones”. 9 Yarza Luaces salienta as semelhanças, mas também as incongruências entre estas duas figuras, vendo no cavaleiro do fl.115 a representação do Anticristo e na figura que se encontra na margem externa um dos “santos que derraman su sangre” (Joaquín Yarza LUACES – Beato de Liébana: Manuscritos iluminados. M. Moleiro Editor, S.A., 2005, p.272). Já Horácio Augusto Peixeiro levanta algumas questões quanto a esta atribuição referindo que “parece estranho que esta figura, tão elaborada,
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corazón humano, eliminando la incredulidad»”10, questionando a introdução deste elemento iconográfico na representação temática da abertura do sexto selo. Igualmente importante para o estudo das vias iconográficas é a identificação de elementos existentes no Apocalipse do Lorvão e apenas visíveis noutros Beatus do Ramo II, tal como o “extraño disco doble”11 na figura de Cristo na cena da Ceifa e da Vindima (fl.172v), permitindo, deste modo, estabelecer uma ligação com o Ramo II e pressupondo a existência duma versão original comum aos dois ramos. Esta abordagem sistemática, a partir da análise de cada uma das iluminuras do Apocalipse do Lorvão, decompondo os pormenores de cada
uma das cenas, estabelecendo as ligações existentes, seja com os manuscritos pertencentes ao Ramo I, seja com os do Ramo II12, permite uma visão mais abrangente da importância do manuscrito do Lorvão no estudo do conjunto dos Beatus dando-lhe o lugar de destaque que este merecia a nível internacional. Peter Klein considera as iluminuras do Lorvão como “un testimonio único de la tradición original”13 mas, os elementos iconográficos adicionados em algumas das suas composições (tal como no Beato de Osma), levam-no a pensar que o modelo no qual ele se inspirou não estará tão próximo do arquétipo como até agora se supunha, avançando mesmo com a hipótese de se tratar dum manuscrito
possa ter uma carga negativa, sabendo que o Anticristo apresenta sempre determinadas características iconográficas que o identificam” para além de se encontrar no plano superior da composição “normalmente reservada a figuração com conteúdo positivo” (Horácio Augusto PEIXEIRO – Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão.Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superior de Tecnologia, Departamento de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicas para professor coordenador, p.107). Note-se que na discussão em torno da identificação do cavaleiro do fl. 115 seria interessante ter em conta a análise iconográfica de Aires Augusto Nascimento ao fl.153v justificando a presença do mal na parte superior da composição (Aires Augusto do NASCIMENTO, ob. cit., p.434). 10 Peter Klein, ob. cit., p.79. 11 Peter Klein, ob. cit., p.110. 12 Peter Klein vai, no entanto, privilegiar as ligações preestabelecidas por outros investigadores, com o Beato do Burgo de Osma (Ramo I), bem como com outros Beatus pertencentes ao mesmo Ramo, na análise das iluminuras. Ainda que tenha chamado a atenção para a ligação com alguns manuscritos do Ramo II, nomeadamente através da análise de um elemento iconográfico, o “extraño disco doble” na figura de Cristo, fl.172v (Peter KLEIN, ob. cit., p.110) não alarga a investigação nesse campo descurando a existência de outros elementos de comparação passíveis de ligarem o Apocalipse do Lorvão a Beatus deste ramo. Adelaide Miranda e Ana Lemos (investigação em curso no âmbito do projecto interdisciplinar citado) estabeleceram algumas ligações com o Beato do Seu de Urgell. 13 Peter Klein, ob. cit., p.147.
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moçárabe, do século X, que poderia ser idêntico ao Beato (actualmente perdido) oferecido em 959 ao Convento de Guimarães “com miniaturas abstractas y esquemáticas”14, apontando os erros iconográficos existentes como passíveis duma má interpretação do iluminador do modelo que tinha à sua disposição15. Este trabalho abre novas perspectivas de análise ao vincar a importância do Apocalipse do Lorvão no estudo do stemma iconográfico dos Beatus mas aborda muito superficialmente a questão da paleta de cores específica a este manuscrito (laranja, amarelo e vermelho) bem patente na análise que o autor faz da iluminura do fl.43r, quando refere que esta, passo a citar: “…resulta muito bem concebida graças ao contraste das cores laranja e amarelo”. Fica por estabelecer, uma ligação entre a cor utilizada e a simbologia da composição. Igual-
mente, apesar de constatar que a cor se limita a preencher os fundos da composição e que é dada primazia ao desenho, o que considera “típico de una tendência específica del scriptorium de Lorvão (véase en particular el «Livro das Aves»), pero única en el románico portugués, a excepción de algunos paralelos distantes en manuscritos del convento cercano de Santa Cruz de Coimbra”16, o autor não procura estabelecer ligações artísticas. Outro ponto a assinalar é o facto de Peter Klein, ao abordar o panorama das relações com a escultura, não mencionar as ligações já estabelecidas com o românico português17. Trata-se, no entanto, de um trabalho monográfico fundamental para o conhecimento dum manuscrito português, na continuidade dos trabalhos pioneiros de Anne de Egry e de Horácio Augusto Peixeiro. Ana Lemos*
14 Peter Klein, ob. cit., p.147. 15 Adelaide Miranda e Ana Lemos, na investigação levada a cabo no âmbito do projecto “A cor na iluminura portuguesa: uma abordagem interdisciplinar” (POCTI/EAT/33782/2000), analisaram alguns desses erros iconográficos numa perspectiva diferente considerando que estamos perante um desvio, por parte do iluminador, da iconografia tradicional (trabalho a publicar). 16 Peter Klein, ob. cit., p.147. 17 Vários autores abordaram a questão das ligações existentes com a escultura do românico português, salientando as semelhanças entre o Cordeiro apocalíptico, adulto, de pontas reviradas, representado na Igreja de Fonte Arcada (Póvoa do Lanhoso) e o Cordeiro do Apocalipse do Lorvão, bem como o apoio dos pés com arcos em ferradura, da figura de Cristo no fl.207, com o representado no tímpano da Igreja de Sepins (datado de 1080). Note-se que este campo de investigação necessita de um estudo mais aprofundado podendo trazer algumas luzes para a compreensão de certos elementos iconográficos patentes no Apocalipse do Lorvão. * Bolseira de Investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), no âmbito do projecto “A Cor na iluminura portuguesa: uma abordagem inter-disciplinar” (POCTI / EAT / 33782/200).
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Museologia.pt. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, ano I, n.º 1 (Maio 2007)
Delineada durante o ano de 2006 pelo Instituto Português de Museus (IPM) e publicada em Maio de 2007, já sob a responsabilidade do recém-criado Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), a revista Museologia.pt constitui um importante contributo face à aridez editorial que se verifica em Portugal nesse domínio. A rarefacção de publicações regulares sobre museus e museologia é, desde há muito, sentida no meio profissional e académico que contou, em tempos, com o Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, cuja reedição, já anunciada, tem permanecido por concretizar, não esquecendo a revista Museu, ainda hoje publicada pelo Círculo Dr. José de Figueiredo (Grupo de Amigos do Museu Nacional Soares dos Reis). Ao contrário do que se verifica noutros países, esta lacuna não tem sido colmatada pelas associações de profissionais do sector, marcadas por uma maior ou menor dinâmica editorial. É o caso da Asociación Española de Museólogos, responsável
pela edição da Revista de Museología que publicou, em 2000, um número monográfico dedicado a Portugal e que, coordenado por Maria da Luz Nolasco, teve a colaboração de diversos investigadores e profissionais permanecendo, até ao surgimento de Museologia.pt, como a mais consistente iniciativa editorial sobre a realidade museologia nacional1.
1 Nolasco, Maria da Luz (coord.), Museos y museología en Portugal. Una ruta ibérica para el futuro, número monográfico da Revista de Museología, Asociación Española de Museólogos, 2000
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Dirigida por Clara Frayão Camacho, subdirectora do IMC, a revista em apreço surge como um complemento do Boletim da Rede Portuguesa de Museus, concebido como um mero canal de notícias de temas museologicos, cuja publicação trimestral se iniciou em 2001 e pretende, nas palavras da sua directora, “afirmar-se como um fórum de debate de questões e problemas dos museus e da Museologia, divulgar práticas inovadoras, reflectir linhas e tendências culturais contemporâneas, contribuir para o aprofundamento da reflexão museológica e constituir um instrumento de referência para os profissionais do sector” (p.VIII). O seu público-alvo é constituído por docentes e estudantes dos cursos de Museologia, de Património, de Conservação e Restauro, podendo (e devendo) alargar-se a todo o tipo de profissionais cuja actividade se relaciona com o sector museológico, tais como artistas, designers, arquitectos ou historiadores. Museologia.pt organiza-se em cinco partes essenciais, cada uma com um número variável de ar tigos: “projectos e experiências”, “exposições”, “história e memórias”, dossiê – museus e arquitectura” e “internacional”. O dossiê, que constitui o seu caderno central (pp. 105-195) traça, pela mão de museólogos e arqui-
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tectos, uma panorâmica das mais recentes intervenções nesse domínio, umas já concluídas, outras em fase final de obras ou em pleno estaleiro. Ao todo são nove museus, caracterizados pela diversidade geográfica, de tutela e temática (arte, arqueologia, história, literatura e indústria) mas unidos, na sua quase totalidade, por um aspecto que, como Raquel Henriques da Silva faz notar no texto introdutório a esta secção, se revela numa marca identitária entre nós: a adaptação de espaços pré-existentes, quase sempre carregados de história. A primeira parte, “projectos e experiências” (pp. 12-49), compreende vários artigos de que destacamos o de Luís Raposo onde são abordados, sucessivamente e em tese geral, os aspectos conceptuais, legais, metodológicos e práticos inerentes à definição da lista de “bens de interesse nacional”, adoptada em 2006 pelos museus do Ministério da Cultura, dependentes do ex-IPM. Já Joaquim Oliveira Caetano reflecte sobre um processo de investigação que se encontra em curso e que envolve uma equipa alargada de âmbito internacional: o estudo e conservação do retábulo da Sé de Évora, obra flamenga da transição do século XV para o século XVI, pertencente às colecções do museu da daquela cidade.
Em “exposições” (pp. 53-81) é dado lugar de relevo a esta função museológica, sobressaindo a profunda avaliação que María Jesús Ávila faz da mostra dedicada a Amadeo de SouzaCardoso (Fundação Calouste Gulbenkian) a partir da análise do conceito e objecto que a orientaram, dos objectos que a integraram e da sua disposição no espaço. A insuficiência da “folha de sala” como instrumento intermédio de interpretação conta-se entre os problemas apontados pela autora, tema que é problematizado por Clara Mineiro num artigo sobre a importância do texto nos museus. O resultado de uma entrevista a Adília Alarcão, figura marcante das últimas décadas da museologia em Portugal, é publicado em “história e memórias” (pp. 85-101), sob a forma de texto corrido, opção questionável que levou a uma fragmentação desnecessária dos depoimentos. Conduzida por José Luís Porfírio e Graça Filipe, esta entrevista centra-se nos testemunhos sobre o seu percurso e experiências (sobretudo no Museu Monográfico de Conímbriga e no Museu Machado de Castro), tendo sido privilegiados os aspectos da acção e do trabalho dos museus ligados à formação, às competências, à administração e à direcção de museus. Ainda nesta secção, Henrique Coutinho Gouveia evoca sumariamente o pano-
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rama museológico português do último século, tendo em atenção a Lei-quadro dos Museus Portugueses publicada em 2004. Numa abertura a realidades extra-nacionais e a fechar a edição, a rubrica “internacional” (pp. 198-219) dá a conhecer as politicas museológicas e os sistemas de museus de Espanha e do Brasil com base nos artigos de Marina Chinchilla Gómez e José do Nascimento Júnior/Mário Chagas respectivamente. Tendo em conta as afinidades de cariz cultural e linguístico mantidas com Portugal, revela-se interessante comparar as linhas orientadoras e as concretizações alcançadas por estes dois países. São estes os conteúdos essenciais do primeiro número de Museologia.pt que, tirando partido da larga experiência editorial do antigo IPM, apresenta-se claro e actual, ainda que pouco arrojado sob o ponto de vista gráfico. Tratando-se de um projecto colectivo, aberto a numerosas colaborações (cerca de quatro dezenas), ele ressente-se um pouco pelo facto de nem todos os artigos possuírem a mesma substância, sendo desejável um maior equilíbrio nas próximas edições. A ausência de uma rubrica dedicada a recensões críticas, prevista mas não concretizada, afigura-se também como uma lacuna a ser colmatada futuramente. Aguardemos pois
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pelo segundo número deste projecto que, tendo em conta a sua periodicidade anual – e não semestral como
seria preferível – deverá surgir em Maio de 2008. Hugo Xavier*
* Mestrando em Museologia e Património pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia
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MOSTEIRO DE SANTA MARIA DA VITÓRIA - a fundação, o programa, os arquitectos, as fontes de influência -
A fundação No dia 4 de Outubro de 1426, o rei de Portugal D. João I (1357-1433) assinava o seu testamento definitivo nos paços régios da vila de Sintra. A escolha deste local para a realização de tal acto poderá não ter sido fruto de um qualquer acaso; na verdade, D. João I sempre dedicou especial afeição a esta montanha tão próxima de Lisboa e ao palácio régio aí implantado, que ampliou e dotou com um conjunto de dependências de grande significado no contexto da própria arquitectura civil europeia dos finais da Idade Média. Ainda hoje existentes e conservadas no seu essencial, essas dependências – estruturadas em torno de um pátio central e tendo como registo visual mais significativo as duas monumentais chaminés – formam um dos conjuntos mais definidores tanto da arquitectura desse palácio quanto da efabulação e do maravilhoso que os séculos lhe criaram, de forma notável1. Nesse princípio de Outono de 1426, ao assinar o testamento muito
provavelmente no recolhido interior de uma das câmaras do seu palácio de Sintra, D. João I cumpria um dos rituais mais importantes da sociedade tardo-medieval na preparação individual da morte, quando dela se intuía a iminência: a resolução de todos os problemas pendentes – quer fossem espirituais quer fossem materiais – com que se pretendia alcançar primeiro a paz com Deus, depois consigo próprio e com a sociedade e desta forma lograr, conjuntamente com a boa memória dos homens, a salvação eterna. Por entre as diversas cláusulas que preenchem com normalidade os itens recorrentes nestes instrumentos legais, avulta surpreendentemente, no testamento de D. João I, o teor e a extensão das considerações reservadas a um único edifício – o Mosteiro de Santa Maria da Vitória ou da Batalha. O monarca, com efeito, testemunha na primeira pessoa tanto as motivações mais imediatas que o levaram a erigir este edifício e as circunstâncias da sua entrega a uma ordem religiosa específica – a Ordem de S. Domingos –,
1 Sobre o Palácio Nacional de Sintra, nome por que hoje é designado este paço medieval, consultese SILVA, José Custódio Vieira da, The National Palace, Sintra, London, Scala Books/Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002.
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Batalha: Capela do Fundador. © Fotografia do autor
quanto o modo de sustentação económica de uma comunidade mendicante que, por ficar anormalmente afastada de um centro urbano, como era de uso, deixaria de contar com os respectivos moradores para acudirem à sua subsistência. A explicitação tão alargada de preocupações deste tipo num testamento tardo-medieval, para além de não ser o mais comum, é desde logo demonstração segura da grande importância que o rei D. João I atribuía a esta sua fundação, até porque não era o Mosteiro da Batalha o único edifício
que havia fundado, remodelado ou, como se viu relativamente ao Palácio de Sintra, ampliado. Vale a pena, por conseguinte, deter-nos em algumas das palavras ditadas pelo monarca a Lopo Afonso e registadas naquele dia 4 de Outubro de 1426 e, desta forma, acompanhar mais de perto, para melhor as entender, as considerações por ele expendidas. «Item porque nos prometemos no dia da batalha que ouvemos com el Rey de Castela, de que Noso Senhor Deus nos deu vitória, de mandarmos fazer aa homrra da dita Nossa Senhora Samta Maria, cuja vespera emtom era, ally açerqua domde ella foy, huum Moesteiro, o quall, depois que foy comesado, nos requereo o doutor Johan das Regas, do noso comelho, e frey Lourenço Lamprea, noso comfessor, estamdo nos em o çerquo de Mellgaço, que hordenasemos que fosse da hordem de Sam Domymguos e nos duvidamos de ho fazer, porque asy foy noso prometimento de se fazer aa homrra da dita Senhora Samta Maria: e rrespomderam nos que a dita hordem em espeçiall era muyto da dita Senhora, declarando nos as rrezõoes porque.As quaaes vistas per nos acordamos e prouve nos de hordenar o dicto Moesteiro que fose da dita hordem»2.
2 GOMES, Saúl António, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha (Séculos XIV a XVII), Vol. I, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), 2002, p. 135-136, Doc. 52.
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Na altura em que este testamento foi redigido, haviam-se passado quarenta e um anos desde o dia em que, a 14 de Agosto de 1385, o rei D. João I de Portugal se defrontara com o forte exército do rei de Castela, nos campos de Aljubarrota. Recém-aclamado rei nas cortes de Coimbra, realizadas entre Março e Abril desse mesmo ano de 1385, D. João I, que até aí era apenas mestre da ordem militar de Avis, havia contado, entre outros, com o apoio precioso do doutor João das Regras (?-1404) – notável legista e professor da Universidade de Lisboa e dotado, como diz o cronista Fernão Lopes, de grande «sotillidade e clareza de bem fallar» – para, escudado em argumentos de grande consistência dialéctica, convencer aquele magno conclave a considerá-lo como o único que, entre vários outros pretendentes, reunia efectivamente todas as condições para ser escolhido rei de Portugal3. Com efeito, o trono português encontrava-se vago desde a morte do rei D. Fernando, ocorrida em 22 de Outubro de 1383. A perspectiva – que se tornou certeza – de o rei de Castela, casado com D. Beatriz, filha única do monarca lusitano, invocar os
direitos legítimos de sua mulher para se assenhorear da coroa de Portugal, tinha feito despoletar uma crise de grande amplitude que, entre vários confrontos militares de maior ou menor envergadura, conheceu o seu momento culminante exactamente a 14 de Agosto de 1385. Nessa tarde, nos campos de Aljubarrota, o exército português, comandado por D. João I, infligia uma pesada derrota ao mais numeroso e melhor equipado exército castelhano, obrigando o rei de Castela, também denominado João I, a abandonar apressadamente o campo de batalha e a perder a esperança de ascender ao trono de Portugal. No dia daquele embate, véspera da festa de Nossa Senhora da Assunção, e perante a dimensão de tudo o que estava em jogo, D. João I de Portugal invocou a protecção da mãe de Cristo, prometendo-lhe, em caso de vitória, a construção e dedicação de um mosteiro. Foi o que, perante a sorte favorável das armas, se apressou a cumprir. Para concretizar essa promessa, escolheu não o próprio campo de batalha, por nele não existirem as condições julgadas necessárias, mas antes um local muito próximo, locali-
3 Consulte-se, a este propósito, a obra de COELHO, Maria Helena da Cruz, D. João I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005, p. 59-73.
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zado a norte, «a par da Canoeira» no termo da cidade de Leiria4. Dotado de melhores condições topográficas e sobretudo de água em abundância, indispensável à vivência de uma comunidade, essa quinta foi adquirida ao respectivo proprietário, Egas Coelho, amigo e companheiro de combate do rei5. Desta forma nascia, como ex-voto de uma promessa assim cumprida, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. O significado da sua construção, no entanto, não se esgotava no cumprimento honesto daquele voto; corporizava também, e logo desde o momento da formulação dessa promessa, a consagração de D. João I como rei de Portugal. Com efeito, a vitória militar obtida através da protecção da Virgem Maria – «nossa defensora e destes reinos», como se lhe refere o próprio monarca6 – era entendida como o assentimento do poder divino na legitimação definitiva de D. João I como rei, já que esse mesmo assentimento, por parte do poder dos homens, primeiro fora obtido nas Cortes de Coimbra. De qualquer modo, a vitória em Aljubarrota assumia-se, no fundo, como a consagração
Batalha. © Fotografia do autor
da sua eleição como rei de Portugal, já que era o sinal indispensável da legitimação divina, conseguida através do apoio da Virgem. A fundação do mosteiro prometido adquiria, por consequência, valor de símbolo – o mais excelente – da nova dinastia iniciada em D. João I, expressamente legitimada pela vontade e poder divinos. A ordem religiosa escolhida pelo rei para povoar o Mosteiro da Batalha acabou por ser, como o próprio mo-
4 SOUSA, Frei Luís de , História de S. Domingos, Porto, Lello e Irmão, Editores, 1977, p. 631. 5 CORREIA, Vergílio, Batalha. Estudo Historico-Artistico-Arqueologico do Mosteiro da Batalha, Porto, Litografia Nacional, 1929, p. 9. 6 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 630.
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narca uma vez mais confirma no seu testamento, a ordem dominicana. Não terá sido essa, no entanto, a sua intenção primeira, uma vez que só os pedidos insistentes feitos pelo seu confessor, o dominicano frei João Lampreia, e pelo doutor João das Regras durante o prolongado cerco da vila de Melgaço, no norte de Portugal, terão levado o monarca a considerar essa hipótese e a aceder a esses pedidos. Assim, e atendendo aos argumentos que lhe foram apresentados, D. João I apressava-se, em Abril de 1388, a passar a indispensável carta de doação aos dominicanos, que logo tomaram posse do mosteiro. Por essa altura, a montagem do estaleiro e as obras de construção, cujos custos eram suportados pelas rendas do almoxarifado de Leiria, deveriam estar já em bom andamento. Depreende-se isto, por um lado, através da afirmação, uma vez mais, do próprio monarca que, no seu testamento, diz claramente que o Mosteiro já estava começado quando o doutor João das Regras e Frei João Lampreia lhe solicitaram, durante o referido cerco de Melgaço, que o doasse aos dominicanos; por outro lado, da insistência que estes revelaram na feitura do pedido e do alcance dos argumentos expendidos transpa-
rece a necessidade e a urgência de se anteciparem a qualquer outra iniciativa que o rei tivesse em mente, em termos da doação definitiva do mosteiro, atendendo às obras já iniciadas e à necessidade de solucionar, nesse tempo exacto, a planificação e organização dos espaços conventuais. Reveste-se de todo o interesse, por consequência, tanto sob o ponto de vista histórico, para um melhor entendimento de mentalidades da época, quanto sob o ponto de vista arquitectónico, para uma melhor compreensão das soluções utilizadas no edifício, tentar perscrutar qual a ordem religiosa a quem D. João I pensaria entregar, afinal, a nova casa monástica. O único argumento expendido pelo rei no seu testamento (que é, aliás, a principal causa expressa das muitas hesitações quanto à entrega aos frades dominicanos) relaciona-se com a intensidade da prestação do culto «aa homrra da dita Nossa Senhora Samta Maria»7, a quem ele prometera dedicar o mosteiro. Por isso mesmo, e para convencer o rei D. João I a mudar de opinião, tiveram, quer o seu confessor dominicano quer o doutor João das Regras, de insistente e repetidamente provar-lhe que «a dita hordem em espeçiall era
7 GOMES, Saúl António, ob. cit., p. 135.
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muyto da dita Senhora»8, ou seja, que desde o início a Ordem de S. Domingos tinha precisamente como uma das características mais definidoras e identitárias da sua espiritualidade a devoção muito intensa a Nossa Senhora. O teor das hesitações expressas por D. João I fazem-nos crer que a primeira ideia ocorrida ao monarca terá sido a de entregar o Mosteiro de Santa Maria da Vitória aos monges cistercienses. Se havia ordem religiosa que, desde as origens, se distinguira pela profundidade do culto prestado à Mãe de Deus e pela grande ênfase posta na sua difusão era a Ordem de Cister, salientando-se de modo particular, pela autoridade teológica e intenso misticismo emanados da sua palavra falada e escrita, a acção de S. Bernardo de Claraval. O próprio rei D. João I, por que mestre da ordem militar de Avis, conhecia bem de perto a regra cisterciense, cujas prescrições serviam de norma à congregação militar que comandava. A estes argumentos acresce ainda o de o então abade do mosteiro cisterciense de Alcobaça – D. João de Ornelas – ser não só amigo do monarca como seu apoiante declarado na oposição ao rei de Castela. Significativo desta amizade é o facto de o baptizado do infante D. Afonso, filho 8 Id., ibidem.
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primogénito de D. João I, morto prematuramente aos dez anos, se ter realizado precisamente neste mosteiro. Encontrando-se o lugar de Aljubarrota, onde ocorrera o combate, tão próximo de Alcobaça e podendose inclusivamente deitar mão do sistema de filiação tão típico da organização cisterciense para ligar as duas casas monásticas, parecia bem lógico entregar a estes monges a nova fundação promovida por D. João I, até como agradecimento pelo importante apoio prestado pelo referido abade D. João de Ornelas. Além do mais, o rei poderia também poupar em doações várias ou mesmo em cedências de bens de raiz indispensáveis à sobrevivência de uma nova comunidade de religiosos, uma vez que o mosteiro de Alcobaça era, sob o ponto de vista económico, suficientemente poderoso para acudir com os seus rendimentos à sustentação do convento de Santa Maria da Vitória. No seu testamento, aliás, o monarca não se esquece de lembrar essa circunstância, ou seja, a de ter sido forçado a comprar, após autorização papal para o efeito, todo um conjunto de bens imóveis como garantia de subsistência da comunidade dominicana a quem acabara por entregar o referido convento de Santa Maria da Vitória.
Finalmente, a existência no mosteiro alcobacense do panteão régio onde, em mausoléu de excepcional valia artística, se guardava o corpo do rei D. Pedro I (1320-1367), pai de D. João I, poderia constituir razão suplementar para que este último pensasse em entregar o Mosteiro da Batalha aos monges de Alcobaça, uma vez que, através desta ligação, ganhava uma nova e mais consistente visibilidade a sua ascendência régia e se menorizava, pela mesma forma, a sua bastardia pelo lado materno. Nos primeiros tempos de governo, com efeito, D. João I sentiu recorrentemente a necessidade de afirmar essa sua ascendência real para legitimar, sob o ponto de vista do direito hereditário, o poder de governar que nas Cortes de Coimbra lhe havia sido entregue: «filho del-rei D. Pedro», assim mandou gravar no elmo que encima o seu brasão de armas colocado sobre a porta lateral da igreja do Mosteiro da Batalha. Todo este conjunto de razões permite sustentar, como acima dissemos, que a ideia inicial do rei D. João I terá sido a de entregar a nova casa religiosa aos monges do Mosteiro de Alcobaça. Assim também melhor se compreende a razão pela qual (pelo menos aparentemente) o conjunto
pensado e começado a construir pelo monarca e correspondente, sem dúvida, ao projecto por ele financiado, não tenha previsto várias das dependências necessárias a uma comunidade mendicante, mesmo que afastada de um centro urbano. Na verdade, e para além da igreja e sacristia, a construção joanina ficava, de início, limitada ao claustro régio e, neste, à casa do capítulo, dormitório, cozinha e refeitório, ou seja, às dependências estritamente necessárias a uma comunidade monástica cuja principal missão seria a de honrar a Virgem Maria através de orações propiciatórias da protecção divina, no cumprimento rigoroso do voto feito por D. João I de «mandar fazer casa de oração, em a qual à honra e louvor da dita Senhora se faça serviço a Deus»9. De resto, a proximidade da casa-mãe de Alcobaça permitiria acudir com presteza a todas as outras necessidades materiais e espirituais inerentes à vida dessa eventual comunidade cisterciense. Se era esta a intenção primeira do rei, a verdade é que, no final, os argumentos do Dr. João das Regras e de frei João Lampreia, apresentados durante os longos e excepcionalmente trabalhosos dias do cerco de Melgaço, foram convincentes. A par da devoção mariana que era apanágio da
9 SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., p. 631.
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Ordem de S. Domingos desde a sua fundação, o apoio que, naquele final do século XIV, os dominicanos davam ao papa de Roma contra o de Avinhão (que Castela apoiava), terá igualmente pesado na decisão de D. João I de entregar, por fim, o novo mosteiro à referida Ordem de S. Domingos. De qualquer modo, e como o principal cronista desta ordem em Portugal – Frei Luís de Sousa (15551632) – não se esquece de anotar, os dominicanos «não davam voto nem traça, nem ordem em cousa alguma, porque toda a fábrica estava à conta del-Rei, e dos que em seu nome presidiam nela»10.
O programa construtivo. Os arquitectos. Embora não haja certezas sobre a data exacta de início das obras de construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, a formação do grande estaleiro, adequado à grandiosidade do projecto desejado por D. João I, ter-se-á iniciado um ano ou dois após a batalha de Aljubarrota. Como já referimos (e não será demasiado insistir), é uma vez mais o próprio monarca a adiantar essa informação no seu testa-
mento, ao afirmar que o conjunto monástico, aquando do cerco de Melgaço ocorrido ainda no ano de 1387, havia já sido começado. Nestas circunstâncias, é forçoso reconhecer e salientar, desde logo, a rapidez com que o monarca se apressou a cumprir a promessa feita a 14 de Agosto de 1385, atendendo a que as dimensões arquitectónicas e artísticas do projecto por si acalentado, pouco usuais na arquitectura portuguesa medieval (só o mosteiro de Alcobaça, eventualmente, se lhe poderia equiparar em grandiosidade e imponência), implicavam, a par do financiamento, um grande esforço de selecção e recolha de meios materiais e de constituição de uma equipa muito alargada de mestres, oficiais e artífices das diversas especialidades adequadas a esse projecto. Conhece-se, aliás, parte substancial da documentação relativa à constituição e funcionamento desse grande estaleiro de obras, que o torna perfeitamente condizente com a organização de estaleiros congéneres europeus da mesma dimensão11, bem como, desde há muito, a sequência dos mestres principais responsáveis pela condução do projecto arquitec-
10 Id., p. 632. 11 GOMES, Saúl António, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no século XV, Coimbra, Instituto de História da Arte – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990.
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Batalha: lavabo do claustro régio. © Fotografia do autor
tónico.Vale a pena, de qualquer modo, recensear os arquitectos mais importantes pela realização de uma das obras de referência de toda a arquitectura portuguesa e, embora de modo mais restrito, também da própria arquitectura gótica europeia. O primeiro arquitecto é Afonso Domingues, activo no Mosteiro de Santa Maria da Vitória desde o início da construção até ao ano de 1402, data presumível do seu falecimento. A ele se deve a concepção e a traça geral do complexo monástico que compreendia, como já se afirmou, a igreja e a sacristia e, a par delas, o claustro com as dependências inerentes à orgânica conventual, isto é, a casa
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do capítulo, o dormitório, a cozinha e o refeitório. Cerca de 14 anos passados a dirigir os trabalhos de construção permitiram-lhe erguer grande parte da igreja, a sacristia e duas alas do claustro (a virada a Nascente e a voltada ao Sul), tendo ainda iniciado a casa do capítulo. Em 1402 sucede-lhe Huguet (?1438), um mestre estrangeiro que se encontrava já a trabalhar, com Afonso Domingues, nas obras batalhinas, embora sem exercer funções de chefia. Durante os longos 36 anos em que se manteve operante na direcção do estaleiro coube-lhe finalizar, naturalmente, o trabalho iniciado pelo primeiro arquitecto, concluindo, dessa
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forma, a igreja, o claustro, a casa do capítulo e demais dependências. Fê-lo, porém, introduzindo sempre que possível, de forma sábia e articulada, formulações arquitectónicas e decorativas inovadoras e completamente diferenciadas das de Afonso Domingues, cuja formação técnica não esconde um sabor mais arcaizante: a arrojada abóbada que cobre, num único lanço, a casa do capítulo é, neste aspecto, a demonstração primeira e mais evidente das capacidades do segundo mestre da Batalha. Na verdade, o tipo de cobertura que Afonso Domingues previra para este espaço – o esquema tradicional de uma abóbada apoiada em dois conjuntos de colunas centrais, como se vê na casa do capítulo do Mosteiro de Alcobaça – foi ultrapassado pelo lançamento de uma única abóbada estrelada, sem quaisquer apoios para além dos muros da própria quadra capitular, num desafio técnico que ainda hoje suscita surpresa e admiração. Mestre Huguet não se limitou, no entanto, a completar, mesmo que inovando, o programa delineado por Afonso Domingues. Deve-se-lhe também, por encomenda directa de D. João I e de seu filho o rei D. Duarte (1391-1438), a planificação de raiz de duas capelas de planta centralizada: a Capela do Fundador e a(s) Capela(s) Imperfeita(s). A primeira, pensada por
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D. João I numa fase mais tardia da fundação do Mosteiro da Batalha para seu túmulo e da mulher, a rainha D. Filipa de Lencastre, e para panteão da sua linhagem e de outros príncipes, pôde Huguet realizá-la na totalidade; a(s) segunda(s), encomendada(s) pelo rei D. Duarte com idêntica finalidade de panteão familiar, ficaram inacabadas até aos dias de hoje. Essa é, aliás, a razão para o nome de Capelas Imperfeitas que a História lhes reservou. Enquanto a Capela do Fundador desenha, em planta, um quadrado, transformando-se o volume em octógono apenas ao centro – como dossel grandioso que impregna de sagrado o túmulo dos Fundadores e os glorifica –, as Capelas Imperfeitas assumem desde logo uma planta octogonal, colocando-se as diferentes capelas funerárias numa disposição radiante que torna mais dinâmico este espaço, ao mesmo tempo que ganham uma autonomia e individualidade inexistentes na Capela do Fundador. E se Huguet tivesse logrado concluir esta obra (só as mortes quase simultâneas do rei D. Duarte e do próprio arquitecto terão impedido que tal se concretizasse), a abóbada que a deveria cobrir constituiria um outro momento de grande arrojo e criatividade, atentas as dimensões do vão, ainda hoje causadoras de algum espanto.
Huguet, na plena posse dos seus recursos técnicos e artísticos, amadurecidos nos muitos anos à frente do estaleiro batalhino, levou até às últimas consequências, nas Capelas Imperfeitas, a proposta que, esboçada na ousada abóbada da casa do capítulo, havia sistematizado logo de seguida na singular Capela do Fundador.A importância inovadora daquele projecto encomendado pelo rei D. Duarte avalia-se tanto melhor quanto, no contexto peninsular, o seu panteão – as Capelas Imperfeitas – é precoce em relação a outras estruturas semelhantes que então foram sendo construídas, como é o caso das capelas funerárias de D. Álvaro de Luna e de D. Alonso de Cartagena, na catedral de Toledo, ou da Capela do Condestável, na catedral de Burgos. O terceiro mestre a dirigir o estaleiro de obras do Mosteiro da Batalha é Martim Vasques, cuja actividade, exercida entre 1438 e 1448, se terá limitado a concluir trabalhos já em curso nas dependências conventuais, executadas durante a regência do infante D. Pedro (1392-1449), irmão do rei D. Duarte. Não se lhe pode atribuir, na verdade, qualquer intervenção de maior consistência, seja em
termos estruturais seja em termos puramente plásticos ou decorativos. Os conturbados tempos políticos, culminados com a morte do infante D. Pedro no embate de Alfarrobeira, também não se mostraram os mais favoráveis para o lançamento de qualquer iniciativa de fundo que não apenas a continuidade do que por então se fazia. Maior relevância adquire o seu sucessor e sobrinho, Fernão de Évora, que, como quarto mestre, desempenhou o cargo de 1448 a 1477. A ele se deve a construção do segundo claustro do Mosteiro da Batalha: conhecido por claustro afonsino, do nome do rei – D. Afonso V (14321481) – que o terá financiado, introduz uma linguagem estética nova que, no seu despojamento formal, se diferencia por completo das propostas nervosas e movimentadas de mestre Huguet. Ao mesmo tempo, Fernão de Évora ergue pela primeira vez um claustro com dois pisos, segundo uma proposta cujos contornos arquitectónicos se aproximam de soluções já há muito consolidadas na arquitectura quer religiosa quer civil do Levante peninsular, particularmente da cidade de Barcelona e da sua área de influência12.
12 Consulte-se, sobre este assunto, o que já escrevemos em O Tardo-Gótico em Portugal. A Arquitectura no Alentejo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 41-50 e 79-90; e em Para um Entendimento da Batalha: a influência mediterrânica, Actas do III Encontro sobre História Dominicana,Tomo 1, Arquivo Histórico Dominicano Português,Vol. IV/1, 1991, pp. 83-88.
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Apesar da sua simplicidade e despojamento, o claustro afonsino do Mosteiro da Batalha não perde na comparação com a opulência do vizinho claustro real, a que se encosta pelo lado sul. Enquanto este, apesar da riqueza e variedade de soluções que tanto Afonso Domingues quanto Huguet lhe plasmaram, representa um ponto de chegada, aquele torna-se um ponto de partida: após ele, todos os claustros se irão erguer preferencialmente em dois andares e, mais ainda, será acrescentado, a muitos outros, o segundo andar de que não dispunham13. Vale ainda a pena acrescentar que este claustro afonsino, cuja construção, por há muito habitarem o convento, terá sido orientada quase de certeza pelos dominicanos, responde não só melhor às exigências da sua vivência comunitária, devido à disposição de celas individuais no segundo piso que permitem o estudo e a meditação solitários, como assinala uma nova vivência conventual dos valores evangélicos da pobreza e da simplicidade de vida por que muitos cristãos, quer religiosos quer mesmo laicos, clamavam já no século XV.
Após o afastamento do mestre Fernão de Évora da direcção do estaleiro, segue-se um período de algum afrouxamento nas obras do Mosteiro da Batalha, visível na instabilidade dos mestres. «Em menos de 8 anos (1477-1485), são nomeados quatro arquitectos, quando os quatro mestres anteriores tinham coberto um período de quási um século»14. Deste modo, o último nome que, pela qualidade do seu trabalho, importa fazer sobressair nesta sequência dos principais mestres responsáveis pela construção de uma imagem consistente do Mosteiro da Batalha, dentro ainda dos pressupostos da arte e da estética góticas, é o de Mateus Fernandes, activo entre 1490 e 1515, ano em que faleceu, a 10 de Abril. Deve-se-lhe o segundo grande momento construtivo das Capelas Imperfeitas, realizado, após o longo hiato que a paragem da sua construção representou, em obediência ao desejo da sua finalização ordenada e financiada pelo rei D. Manuel I (1469-1521). Se Mateus Fernandes, a exemplo do arquitecto que primeiro as havia concebido – mestre Huguet –, não logrou também alcançar a sua conclu-
13 SILVA, José Custódio Vieira da, Para um Entendimento da Batalha: a influência mediterrânica, ob. cit., pp. 87-88. 14 SANTOS, Reinaldo dos, Batalha. Guia de Portugal. II. Extremadura, Alentejo, Algarve. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1927, p.674.
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são, por desinteresse posterior do monarca, pôde, no entanto, deixar bem expressa a sua marca pessoal, criando, particularmente no magnificente portal de entrada, uma das primeiras e mais originais manifestações da Arte Manuelina. Este portal, pelas suas grandes dimensões (cerca de 15 metros de altura por 7,5 metros de largura), pela sua dupla afirmação para o exterior e para o interior, pela grandiosa obra escultórica em que todo ele se converte, fragilizando-o e impedindo a colocação de quaisquer portadas de madeira, transforma-se, afinal, num arco de triunfo celebrativo da realeza de Portugal, muito particularmente da pessoa do rei D. Manuel I, a quem uma sucessão de acasos (para ele felizes) fizera aceder ao trono15. O trabalho complexo das bases, a molduração diferenciada das arcarias, a decoração variadíssima e requintada dos intercolúnios (a hera, a alcachofra, os festões, as sugestões têxteis, os entrançados de cestaria), o talhe de relevo ora superficial ora profundo que arranca contrastes violentos de luz e sombra – tudo se conjuga para fazer deste arco triunfal um dos momentos
de maior criatividade da Arte Manuelina e talvez mesmo, pelo seu teor eminentemente celebrativo, a sua obra mais grandiosa. Ao arquitecto Mateus Fernandes se poderá atribuir também o preenchimento das bandeiras de grande aparato do claustro régio, portador de uma gramática decorativa igualmente denunciadora daquela mesma linguagem tão característica da arte portuguesa do reinado de D. Manuel I. A grilhagem das bandeiras, com efeito, é constituída por troncos e festões ondulantes que, ao entrecruzar-se, emolduram romãs mas também cruzes de Cristo e, em cada arcada central, marcando o eixo da quadra correspondente, uma discreta esfera armilar16. Além destes arquitectos principais, vários outros, de menor nomeada, dirigiram ao longo de todo o século XV as demoradas obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. A sua participação ter-se-á limitado, tanto quanto é possível inferir da documentação escrita e da análise arquitectónica, a dar continuidade aos trabalhos em curso. No entanto, um dos aspectos relevantes suscitados pela prolongada actividade do esta-
15 Sobre o alcance e a extensão deste problema, consulte-se SILVA, José Custódio Vieira da, A Importância da Genealogia e da Heráldica na Representação Artística Manuelina. O Fascínio do Fim, Lisboa: Livros Horizonte, 1997, pp. 131-151. 16 A importância atingida pelo arquitecto Mateus Fernandes fica bem patente no facto de ser o único a ficar sepultado no interior da igreja do Mosteiro da Batalha, em campa rasa situada na nave do meio, ao pé da porta principal.
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leiro batalhino é o facto de se terem originado laços familiares entre diversos artistas, destacando-se, entre todos, um tal mestre Conrate cujas duas filhas se haveriam de casar, uma, Branca Eanes, com o carpinteiro João de Sintra, outra, Catarina Eanes, com o vitralista mestre Guilherme. Deste último casamento nascerá Isabel Guilherme, que irá desposar o último arquitecto com intervenção digna de realce nas obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória e já aqui referido – Mateus Fernandes. Quanto ao citado mestre Guilherme, apesar de ser vitralista de ofício, chegou a assumir em 1480 (embora por pouco tempo) a direcção do estaleiro. Este facto, se por um lado credita o seu valor e influência, indicia também que os trabalhos mais importantes então a decorrer por esses anos finais do século XV deveriam ser os da feitura e colocação de vitrais, de acordo com um programa que, pela quantidade e qualidade, se revelava completamente inédito na arte medieval portuguesa.
As fontes de influência. As repercussões. A dimensão grandiosa do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, pouco comum nos monumentos medievais
portugueses, aliada à sua qualidade arquitectónica e estética inovadora, tem suscitado, entre vários historiadores da arte tanto nacionais como estrangeiros, opiniões divergentes sobre as suas fontes de influência. Muito cedo, aliás, a importância deste conjunto monástico medieval foi reconhecida e discutida pela sociedade culta europeia dos finais do século XVIII e princípios do século XIX, através do excelente e inédito trabalho de levantamento arquitectónico realizado por James Murphy (17601814), um arquitecto irlandês entusiasta da arquitectura medieval (e muito especialmente da arquitectura gótica). O livro daí resultante, publicado em fascículos entre 1792 e 1795, para além da sua repercussão imediata na Inglaterra e da influência directa sobre a geração romântica portuguesa de ensaístas, historiadores, documentalistas e estetas da primeira metade do século XIX, entusiasmou de modo particular historiadores da arte e da arquitectura alemãs, ao ponto de dele ser feita uma tradução em alemão, em 181317. Este reconhecimento quer internacional quer nacional da importância e da originalidade do Mosteiro da Batalha tornou-o alvo, a partir de
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PEREIRA, Paulo, James Murphy e o Mosteiro da Batalha. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural (IPPC), 1989, pp. 16-17.
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1840, de profundas e consistentes obras de restauro, numa acção pioneira em Portugal. Particularmente notável foi o trabalho consciencioso e de grande qualidade desenvolvido pelo primeiro restaurador, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, entre 1840 e 1843 e que, como o próprio confessou, teve como fonte de inspiração os desenhos do livro de James Murphy. Apesar de tudo, a continuação dos restauros levou à destruição de várias instalações conventuais localizadas a nascente do mosteiro, numa atitude impregnada por uma mentalidade romântica que via o Mosteiro de Santa Maria da Vitória quase só como um símbolo histórico e nacionalista, esquecendo a vivência da comunidade dominicana durante vários séculos. Contribuiu também para esta atitude o facto dessas instalações demolidas (de que fazia parte outro claustro) serem do século XVI e não já do estilo gótico, que apaixonava particularmente os restauradores18. Por estas mesmas razões, convirá também dizer desde logo que, se a qualidade dos levantamentos e dese-
nhos realizados pelo referido James Murphy não pode, de forma nenhuma, ser posta em causa, já a fidelidade de representação do edifício original terá de ser equacionada com maior prudência. Os esboços e apontamentos por ele feitos no local, onde permaneceu treze semanas, foram depois completados no seu ateliê em Londres segundo uma idealizada perfeição arquitectónica e gráfica que não correspondia de todo à realidade física do mosteiro19. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque e os seus continuadores no restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ao seguirem de perto as propostas de James Murphy, poderão ter sido os responsáveis pela introdução de elementos formais estranhos ao edifício original e, desse modo, pelo acentuar do tom decorativo inglês que, muito cedo, alguns críticos se apressaram a reconhecer, filiando a arquitectura do Mosteiro da Batalha directamente nas influências do perpendicular20. O facto de o rei D. João I ter sido casado com D. Filipa de Lencastre (1360-1415), filha do duque João de Lencastre e neta de Eduardo
18 NETO, Maria João Baptista, O Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória de 1840 a 1900. Cadernos de História da Arte. Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Letras de Lisboa, 1991, p. 232. 19
NETO, Maria João Baptista, James Murphy e o Restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XIX. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 45.
20 Id., ibidem.
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III de Inglaterra, também influenciou aprioristicamente o sentido crítico de alguns historiadores que consideraram esta circunstância razão suficiente para por si só poderem afirmar, sem quaisquer hesitações, que o arquitecto responsável pelo plano e construção do edifício havia sido um mestre inglês, acompanhando, para esse efeito, a rainha D. Filipa de Lencastre na sua vinda para Portugal21. Hoje não subsistem dúvidas nem quanto à pessoa do primeiro arquitecto do Mosteiro da Batalha, Afonso Domingues, nem quanto à sua nacionalidade portuguesa. Embora não se conheça o seu trajecto profissional nem, muito menos, onde teria feito a sua aprendizagem, deveria ser, necessariamente, um mestre de reconhecido merecimento, senão mesmo o de maior competência em Portugal, para o rei D. João I lhe ter entregue a concepção e direcção inicial da grande obra régia, mantendo-o sempre, até à sua morte, na direcção do estaleiro. Sabe-se que Afonso Domingues possuía uma casa em Lisboa, na freguesia da Madalena, onde eventualmente residiria. Conhecia, portanto
(se é que não terá mesmo feito nela a sua aprendizagem), a obra que, pelos meados do século XIV, o rei D. Afonso IV (1291-1357) mandara erguer na Sé românica de Lisboa – uma cabeceira gótica, constante de uma abside e de um deambulatório com capelas radiantes, obra que no reinado de D. João I, mercê de um terramoto, houve que reconstruir em parte. Este programa monumental, adoptando uma linguagem formal e estética ao nível da melhor arquitectura episcopal europeia de então, revelava-se igualmente inovador no contexto da arquitectura gótica portuguesa (apenas o mosteiro cisterciense de Alcobaça, iniciado em 1178, apresenta uma estrutura deste tipo). Como afirma Mário Chicó, esta «nova cabeceira representa o único esforço realizado em Portugal para se atingir a monumentalidade das grandes igrejas góticas do Norte [da Europa]»22. Poder-se-á pensar, inclusivamente, que a outra obra arquitectónica de referência no final do século XIV, mandada erguer pelo rei D. Fernando (1345-1383) para albergar o seu monumento funerário – o chamado Coro Alto da igreja de S. Francisco de
21 SÃO LUIZ, Frei Francisco de, Memoria Histórica sobre as obras do Real Mosteiro de Santa Maria da Victoria, chamado vulgarmente da Batalha. Obras Completas.Tomo I e Tomo X. Lisboa: Imprensa Nacional, 1827, pp. 282-283. 22
CHICÓ, Mário T., A Arquitectura Gótica em Portugal. 3ª ed., Lisboa: Livros Horizonte, 1981, p. 129.
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Santarém – tenha sido da responsabilidade do arquitecto Afonso Domingues. Com efeito, o trabalho por ele realizado no mosteiro de Santa Maria da Vitória não só acompanha de perto, nas soluções formais e decorativas, algumas das propostas mais identificadoras dos referidos monumentos de Lisboa e de Santarém como denuncia também, em certos aspectos, uma linguagem algo arcaizante, integradora de um discurso bem característico da arte portuguesa medieval. Nada, nas suas propostas para o Mosteiro da Batalha, denuncia a influência do mundo gótico inglês. O conhecimento da nacionalidade de Huguet, segundo mestre do Mosteiro da Batalha, revela-se mais problemático. É certamente de origem estrangeira, já que o seu nome não deixa quaisquer dúvidas. Desconhece-se até ao momento, no entanto, a sua nacionalidade precisa: inglesa, francesa ou catalã, têm sido as propostas avançadas, com argumentos de maior ou menor consistência, por diversos historiadores23. A verdade é que a sua intervenção, longa de 36 anos, como mestre e responsável das obras do complexo monástico revela um artista conhecedor de soluções definidoras do
Batalha: lavabo. © Fotografia do autor
tardo-gótico que estavam a ser usadas um pouco por toda a Europa. Desde a decoração caracteristicamente flamejante que invade capitéis, pináculos e coruchéus até ao lançamento de abóbadas estreladas de grande efeito plástico – as primeiras a ser construídas em Portugal –, a sua arte requintada marcou indelevelmente o Mosteiro de Santa Maria da Vitória.Trouxe fórmulas novas que soube empregar admiravelmente, sem deixar de res-
23 Inclinamo-nos para a sua origem levantina, concretamente catalã, como já o afirmámos em «Para um entendimento da Batalha: a influência mediterrânica», ob. cit..
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peitar as características estruturais e decorativas devidas ao primeiro mestre: daí a harmonia que existe em quase todo o monumento24. A haver alguma proposta sua que aparente ligações com a arquitectura gótica inglesa, será unicamente o caso das abóbadas estreladas que lançou na casa do capítulo e na Capela do Fundador, aprestando-se para o fazer, provavelmente, também nas Capelas Imperfeitas. Tudo leva a crer que as abóbadas estreladas terão sido erguidas pela primeira vez em Inglaterra. Na altura, porém, em que mestre Huguet as desenha para o Mosteiro da Batalha, elas estavam já há muito disseminadas pela Europa e, como tal, qualquer arquitecto de qualidade, independentemente de ser ou não inglês, saberia desenhá-las e construí-las. Pode dizer-se, portanto, que é no Mosteiro da Batalha e pela mão de mestre Huguet que o tardo-gótico faz o seu aparecimento em Portugal, daqui irradiando um pouco para todo o país. Mestres pedreiros, canteiros, carpinteiros, simples artífices formados no estaleiro grandioso e longamente activo do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, foram, chamados ou por iniciativa própria, prestar o seu
contributo a obras várias, assim disseminando a nova arte batalhina. Entre outras, na igreja da Graça de Santarém, na igreja do Carmo de Lisboa, nas catedrais da Guarda e de Silves, na igreja da Conceição de Beja, no castelo de Porto de Mós, essas influências ganham uma visibilidade total25, podendo mesmo afirmar-se, com Vergílio Correia, que a fábrica da Batalha «foi a grande mestra dos artífices nacionais até o segundo quartel do século XVI»26. Curiosamente, o quarto mestre – Fernão de Évora – adopta um formulário totalmente oposto ao de Huguet. Em lugar do brilhantismo decorativo e das novidades estruturais, utiliza no claustro afonsino uma linguagem simplificada até ao limite, sem concessões a qualquer formulário decorativo que não seja a presença de discretos elementos heráldicos em algumas das chaves da abóbada do piso térreo. O contraste quase brutal existente entre estas duas propostas plásticas, que mais se amplia por estarem assim colocadas lado a lado, é bem reveladora das sensibilidades por vezes contraditórias que perpassam pelos tempos finais da Idade Média e que encontram, no Mosteiro de Santa
24 CHICÓ, Mário T., ob. cit., p. 157. 25 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., pp. 40-41. 26 CORREIA,Vergílio, ob. cit., p. 17.
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Maria da Vitória, uma feliz formulação que lhe assinala, uma vez mais, um papel determinante na arquitectura do século XV. O tardo-gótico em Portugal, iniciado com a intervenção do segundo mestre nas obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, integra, na verdade, dois discursos paralelos e contraditórios. O primeiro é, como se acabou de dizer, aquele que consta das propostas de mestre Huguet. Revelando, em alguns elementos, nítida proveniência do Norte da Europa, caracteriza-se pela prioridade no uso do arco contracurvado e de soluções decorativas ricas e complexas que respeitam uma gramática definidora desse momento final da arte gótica. O segundo, originário do trabalho desenvolvido por Fernão de Évora no claustro afonsino, privilegia a simplicidade estrutural e decorativa, adoptando soluções de tendência geometrizante e de volumes definidos com grande clareza que se relacionam,
preferentemente, com uma sensibilidade mediterrânica visível, de modo mais intenso, na zona da Catalunha e do Midi francês. Duas linhas de força – o gótico flamejante do Norte da Europa e o gótico austero, de linhas sóbrias, do Sul mediterrânico – que irão continuar a defrontar-se na evolução posterior do tardo-gótico em Portugal27: ambas experienciadas pela primeira vez no Mosteiro de Santa Maria da Vitória e, pela sua qualidade pioneira e exemplar, imitadas e difundidas um pouco por todo o país – assim também rematando, pela forma mais visível das suas propostas artísticas, o sentido comemorativo e de celebração que havia levado D. João I a construí-lo.
José Custódio Vieira da Silva*
27 SILVA, José Custódio Vieira da, O Tardo-Gótico em Portugal, ob. cit., p. 50. * Professor Associado, Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
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Das Caldas do Populus à Cidade Aberta à Humanidade 1. Introdução Nascida das águas e de um gesto de profundo humanismo, a cidade das Caldas da Rainha possui um património de valor excepcional e universal, associado a um hospital para o Populus, legado no final do século XV pela rainha D. Leonor e que mantém ainda a sua autenticidade assistencial aos mais desprotegidos. Na sua origem, esta vila renascentista estabeleceu uma profunda relação com as águas curativas; não tão monumental como qualquer urbe romana, nem tão poética como a islâmica, teve nas águas o suporte da prosperidade económica de um centro urbano que criou em si mesmo um dinamismo próprio e constituiu o sustento da indústria artesanal e do comércio, e por isso com significado para as suas gentes. Nos seus primeiros séculos, a água, depois de servida no corpo humano, corria à flor do corpo urbano na pendente natural do terreno, activando moinhos e azenhas que geraram os ofícios mais importantes e uma economia local florescente. Esta relevou desde sempre um centro oleiro pujante pela qualidade das margas da terra e criatividade das mãos dos seus artistas. Mais tarde, a movimentação de visi-
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tantes alimentou o trabalho dos seus habitantes em actividades que se diversificaram cada vez mais. O hospital é considerado mais do que um edifício em si mesmo, sobrevivendo para além do banho medicinal em período estival e de uma actividade colectiva e temporal. É por estas razões que este e outros patrimónios não sobrevivem sem o valor humano e sem que os mesmos tenham sentido para as comunidades e para quem os visita. As Caldas do Populus, que se estruturaram dentro destas premissas, não ficaram fechadas intramuros, mas foram desde sempre constituídas por espaços abertos, favorecendo as relações entre os seus cidadãos, convidando os de fora para fazerem jus à hospitalidade de sempre. Hoje, este conjunto histórico monumental e simbólico é constituído pelo Hospital Termal Rainha D. Leonor – considerado o primeiro e mais antigo dos hospitais termais europeus e a primeira grande unidade assistencial em Portugal –, pela Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Mata Rainha D. Leonor e pelo Parque D. Carlos I, como elementos patrimoniais e testemunhos do seu decurso histórico. É nas palavras dedicadas recentemente a este património, porque insubstituíveis pela sua análise apaixona-
damente atenta e conhecedora, que fundamos as nossas próprias convicções e esperanças de que estes valores venham a ser justamente reconhecidos, nacional e universalmente. O presente contributo deve ser um sinal acrescido de alerta, na comunidade científica e nos decisores públicos.
2. Justificação de «Valor Universal e Excepcional» do Conjunto Termal O Conjunto Termal das Caldas da Rainha respeita os critérios essenciais para que lhe seja reconhecido, formalmente, o seu valor universal e excepcional. É manifestamente verdade que este conjunto constitui um exemplo eminente de fixação humana e de ocupação do território tradicional «representando várias culturas (a da balneoterapia, a da beneficência social, a da literatura e das artes)» (Aires-Barros 2005), permanecendo no tempo, directa e materialmente associado a acontecimentos, a tradições e a ideias, e a obras de significado excepcional. Neste valor indubitável, o Conjunto Termal das Caldas da Rainha fornece um testemunho único da permanência da ver tente assistencial durante mais de cinco séculos, como tradição cultural viva, desde o magnífico conjunto de espaços e equipa-
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mentos sem paralelo na estrutura hospitalar epocal – grande edifício e uma das maiores casas de assistência do seu tempo –, com base numa «concepção culta, espiritual e assistencial da ideia de cidade» (Sousa 2005). A primeira grande obra de caridade da rainha D. Leonor foi a fundação do grande Hospital das Caldas, precursor do movimento das Misericórdias que correu mundo. O papel da sua fundadora, rainha culta, peregrina, mecenas, impulsionadora das artes do Renascimento, foi essencial num primeiro tempo. O hospital das águas, dedicado a Santa Maria do Pópulo ou de Nossa Senhora do Pópulo (denominação popular), tornou-se lugar de cura e de descanso estival «para reis e príncipes, finas aristocracias e escritores de descansada passagem. À ritualização religiosa das águas termais promovida pelas dádivas de D. Leonor somar-se-ia uma longa especialização das Caldas como espaço de retiro, passeio, veraneio, visita» (Sousa 2005). O Hospital das Caldas passou a estar dotado das melhores condições para os doentes mais desfavorecidos mas também para a família real e corte que habitualmente o frequentavam. Quando esta prática se tornou moda na Europa, as estâncias termais mais em voga conservaram um ambiente cosmopolita, mas sem atingirem a par-
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ticularidade das Caldas em conciliar também o valor assistencial em condições modernas para a época. A tendência de vilegiatura, que viria a proliferar em toda a Europa, teve nas Caldas da Rainha, a partir da reconstrução do Hospital no século XVIII, o atributo de conciliar num mesmo edifício os doentes pobres ou deserdados, internados nas suas enfermarias comunitárias, de forma gratuita, e aristocratas e burgueses ricos, nacionais e estrangeiros, que frequentavam os banhos (piscinas), mas alojando-se com mobílias e recheios em casas alugadas. O banho reunia as classes. Os mais pobres eram acolhidos à sombra da instituição de assistência fundada pela rainha D. Leonor e os mais ricos constituíam um grupo abastado de veraneantes que pagavam as aplicações terapêuticas. Da política centenária de beneficência e de assistência social, da contínua exploração de um recurso mineral peculiar como são as águas termais caldenses, da criação e manutenção de uma atmosfera de repouso, paz mental e lazer, da envolvência que impregna um bom património cultural, «os tempos têm depositado em todo este sítio das ‘caldas’ esta benemerência: nas suas águas quentes, nas suas árvores acolhedoras, nos seus monumentos distribuidores de prazeres e de graças, nos seus hospícios
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dadores de benesses, no todo envolvente, capaz de incentivar a motivação para a criação artística, da literatura às artes.» (Aires-Barros 2005). Simultaneamente, trata-se de um património vulnerável nos seus elementos centrais, a Água e o Hospital Termal, quando no primeiro caso se prende com questões ambientais e de preservação do principal recurso natural e, no segundo, com o efeito deste – de características geoquímicas peculiares – sobre os materiais pétreos, com mutações irreversíveis. Ainda assim, este hospital perdurou, mantendo o seu carácter regenerador nas gentes que o procuram. A fundação do Hospital das Caldas coincidiu com uma nova percepção do espaço, de reconhecimento do lugar do corpo, distante da imperfeição pecaminosa medieval. Inicialmente, trata-se de um espaço de cura, de vapores cálidos, onde a ciência vai tendo um papel cada vez mais relevante, para se tornar também no espaço do novo conceito oitocentista, ligado ao ócio e a espaços de encontro, manifestado nas experiências espaciais do banho, no «tomar águas», no passeio e no jogo. O pulsar dos tempos deixou traços da criatividade humana: primeiro, no complexo fundador hospital-igreja; segundo, na obra arquitectónica da refundação no século XVIII, a partir da qual se tornou num exemplo pioneiro
Gravura de 1747 presuntiva do primitivo Hospital Termal, fundado em 1485, reprodução de bilhete-postal. Colecção dos autores
de arquitectura termal e engenharia hidráulica e num elemento estruturante do urbanismo, em que os melhores recursos artísticos e técnicos serviram o objectivo estratégico do país; terceiro, na manifestação higienista e moderna de finais do século XIX. O primeiro tempo revela uma instituição e espaços edificados pioneiros. A existência de corpo clínico próprio (médico, enfermeiro, boticário) e enfermarias para doenças intercorrentes, nomeadamente as febris, surge apenas no fim do século XV, registando-se noutros locais europeus, até esse momento, o funcionamento
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de hospícios, hospedarias, leprosarias e gafarias, destinados a pobres. A fundação anterior de estruturas hospitalares junto a nascentes de águas termais passou por um número reduzido de camas, sem médico, nem enfermeiros. Em toda a Europa, existiam hospitais militares e termas onde eram tratados doentes pobres, mas a maioria deles era apenas frequentada por doentes sarnosos e leprosos, o que, só por si, era motivo para afastar outros enfermos, com receio do contágio. Assim, a construção do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo reuniu em si todo um programa assistencial inovador (hospital, confraria de cari-
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dade e igreja) e deu origem a uma nova povoação – facto que não se passara noutros países – que cedo beneficiou do desenvolvimento induzido pela actividade do seu Hospital Termal. Portugal passou a ter o seu primeiro grande hospital e o primeiro no mundo com as características fundamentais dos hospitais modernos, recorrendo ao emprego das águas termais como medicina predominante. Dada a sua notável organização – na gestão e na estrutura técnica e profissional –, o Hospital Termal foi pioneiro numa moderna prestação de cuidados terapêuticos (o banho, a medicação, a alimentação e o repouso), até à fundação no século XVI de outros hospitais, em Inglaterra e França. Nenhum deles teve a importância do das Caldas ou perdurou no tempo. Cumulativamente, a estrutura do Hospital das Caldas tem na capela dedicada ao Populus o seu elemento artisticamente mais sublime, onde os acamados nas enfermarias encontraram a simbiose perfeita entre a fé e a Arte. As características únicas e qualidades formais e artísticas da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo foram esclarecidamente tratadas pelo professor José Custódio Vieira da Silva, que se lhe refere relevando o seu «valor intrínseco, sob o ponto de vista arquitectónico, que não só a individualiza como lhe confere um lugar
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Torre sineira da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. © Fotografia dos autores
Pia baptismal da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, bilhete-postal. Colecção dos autores
preciso, pelo seu assinalável valor, no contexto da época artística de que faz parte» (Silva 2005). O seu experimentalismo na Arte Manuelina condensa-se nas novidades e no interesse artístico dos diferentes aspectos da capela-mor, bem como no arco triunfal que lhe dá acesso e na porta da sacristia que atesta a fundação deste empreendimento pela inscrição esculpida no filactério do seu vão – partes de um todo que conjuga o Tardo-gótico europeu com os primeiros sinais do Manuelino e que faria escola ao longo da primeira metade do século XVI. Até a sua implantação singular, a uma cota extraordinariamente baixa relativamente à circulação viária, merece interesse, reforçado pela proximidade do olhar à magnífica torre sineira. Pena é que algumas intervenções – ditas de conservação e restauro –, designadamente na pia baptismal, não tenham respeitado recentemente os mais rigorosos métodos científicos. O Conjunto Termal das Caldas da Rainha testemunha também uma considerável troca de influências no que respeita à arquitectura termal, designadamente na campanha de obras do século XVIII, a qual representou um verdadeiro laboratório da arquitectura utilitária traçada ao estilo joanino, mas já denunciando raízes pombalinas que viriam a ser confirmadas na enor-
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me empreitada de construção dos edifícios de rendimento da Baixa de Lisboa. À visão estratégica expressa no desenho da rede de aquedutos e chafarizes ligam-se os profundos conhecimentos técnicos de Manuel da Maia, no delineamento do «monumento termal», e a arte dos seus colaboradores, especialmente Eugénio dos Santos, que assumiu o papel de vulto na execução dos planos arquitectónicos. O novo Hospital passou a constituir um marco na arquitectura termal, pela inovação das soluções funcionais e estruturais e antecedeu, em algumas décadas, o desenvolvimento construtivo das termas centro-europeias. Para além deste aspecto, a refundação do Hospital Termal das Caldas da Rainha, entre 1747 e 1750, enquadra-se nos primeiros sinais do termalismo moderno na Europa, associados ao «higienismo» e às práticas assentes na ratificação científica, mantendo intacta a relação do indivíduo com a água (para além da terapia), na dimensão religiosa e na dimensão social mais profunda. Este é um caso exemplar na história do termalismo universal, de como a evolução de uma estrutura face ao avanço do conhecimento das terapias não deixa de lado o traço fundador desta instituição. O seu cariz urbano deve-se ao crescimento da assiduidade social e à
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Fachada do Hospital Termal joanino, reprodução de albumina. Colecção dos autores
sua localização privilegiada. As actividades económicas floresceram. E quando no século XIX se descobre uma vida social, sanitária e cultural mais intensa – inscrita em rituais próprios de que a estada de espanhóis, aristocratas e burgueses traz um suplemento de vibração –, então o espaço conforma-se numa concepção própria: o Passeio da Copa dá lugar ao grande Parque, a Mata propicia o deleite da paisagem natural, o Clube de Recreio alarga-se, a Casa da Convalescença abre portas, o banho individualiza-se. Ainda assim, a buvette é um ponto de convergência
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e central relativamente a toda a planta térrea do edifício hospitalar, que entretanto se elevou num piso mais, passando a ter como concorrente os novos e excêntricos Pavilhões, que ficariam para sempre associados a uma arquitectura de sonho – única –, debruçada sobre um parque termal gerador da mundaneidade e de partilha pela comunidade local. No final de oitocentos, Caldas da Rainha e os seus espaços e edificações associados à prática termal e ao veraneio tornam-se no ideário de um lugar salubre e, por isso, em condições de enfrentar o século seguinte, de
Casa da Copa do Hospital Termal, reprodução de fotografia. Colecção dos autores
mudanças profundas: a vila torna-se cidade, expandindo-se em diferentes funções e formas, mas mantendo o seu traço fundador de hospitalidade para todos. O conjunto termal ilustra assim, na sua continuidade histórica, o permanente suporte assistencial que lhe vem de origem: apoio terapêutico aos doentes mais desfavorecidos, lugar de vilegiatura e de moda das cortes, da aristocracia e das classes mais abastadas e refúgio dos invasores franceses e simultaneamente das tropas portuguesas e inglesas e, mais tarde, dos refugiados Boers do início do século XX e dos Judeus da II Grande Guerra.
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Caldas da Rainha desenvolve um hábito que se espalharia pela Europa, ligado ao início do termalismo moderno. As refinadas elites intelectuais e aristocratas, os inválidos acompanhados ou não pelos seus médicos, os escritores, artistas e figuras mundanas aderem paulatinamente à moda das termas. No meio desta ambiência, alguns episódios marcam a universalidade deste hospital, designadamente no apoio aos desprotegidos dos confrontos de guerra. Durante as invasões francesas em Portugal, o Conselho da Regência, que D. João VI nomeara antes da ida para o Brasil, encarregou o administrador
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geral dos hospitais militares de tratar com o Provedor do Hospital das Caldas da instalação de condições de alojamento às tropas napoleónicas comandadas por Junot. O Hospital das Caldas, que só abriria em Maio, oferecia condições para de imediato receber os contingentes de soldados, curiosamente de todas as partes, franceses, ingleses e portugueses, sofridos de sarna, que aí se juntaram procurando a cura para o que a guerra lhes causara. Na segunda guerra dos Boers (1899-1902), que opôs os colonos sul-africanos de origens holandesa e francesa ao exército britânico, a vila das Caldas serviu de pátria a Boers, depois da sua passagem por Moçam-
bique fugidos dos tumultos. Por falta de acomodações e por grandes pressões das forças inglesas, estes refugiados foram deslocados em Março de 1901. Uma vez chegados a Lisboa, foram transportados para seis locais, fixando aí a sua residência enquanto durasse a guerra. A particularidade de as Caldas terem um novo, amplo e vazio edifício – os Pavilhões do Parque – junto do Hospital Termal, decorrente da campanha de obras de final do século XIX, foi decisivo para acolher 351 indivíduos. Os responsáveis locais pelo Hospital Termal, habituados às regras hospitalares, desdobraram-se para atenuar os problemas de adaptação dos novos «hóspedes»: falta de vestuário, dificul-
Gravura de 1894 do Parque D. Carlos I no ano da sua construção, reprodução. Colecção dos autores
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Lago e Pavilhões do Parque, reprodução de cliché da década de 1920. Colecção dos autores
dades para se habituarem aos temperos da cozinha portuguesa, especialmente devido à utilização do azeite, assistência médica, serviço religioso em actos de culto público. No que se relaciona com a educação, foi fundada uma escola nas Caldas da Rainha, frequentada por 117 alunos, que foram instruídos por holandeses. Após a assinatura do acordo de paz, em Maio de 1902, o governo português acabou por transferir os refugiados, agora cidadãos britânicos, para a responsabilidade do governo do Reino Unido. O regresso realizou-se a 19 de Julho desse ano, tendo sido embarcados no navio de guerra inglês Bavarian, com destino à África do Sul, levando e
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deixando um traço de saudade pela intensa convivência entre os dois povos. Este sentimento viria a repetirse durante a II Grande Guerra. Entre Junho de 1940 e Maio de 1941, passaram pelo país cerca de 40.000 pessoas em fuga de Hitler e do Holocausto. Uma parte substancial dos refugiados foi conduzida para as Caldas, até obterem passagem para um país de destino final, de preferência os Estados Unidos. Segundo o historiador João B. Serra, «era gente anónima, personalidades destacadas das ciências e das letras, da medicina, realizadores e actores de cinema, figuras políticas, historiadores, ensaístas, compositores alemães, austríacos, franceses, polacos,
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e de outras nacionalidades (gregos, luxemburgueses, holandeses dinamarqueses, etc.), expulsos dos seus países.» (Serra 2006). O impacte nas Caldas e no seu conjunto termal foi relevante. Por aí se alojaram, durante algum tempo, os estrangeiros residentes, que conferiram uma nova atitude social de cafés e vida nocturna animada no teatro e nos salões do Clube de Recreio, bem contrária ao espírito conservador e rural da época. Sucediam-se as actividades desportivas nos campos de jogos do Parque e da Mata. Era gente que vivia na incerteza, mas que encontrou nas Caldas refúgio e integração, tal como, reciprocamente, se denotaram mais-valias decisivas para as mulheres caldenses e para as aquistas a banhos. Tem sido fundamental para a comunidade residente e flutuante a existência dos espaços verdes (Mata e Parque) no contexto do conjunto termal das Caldas da Rainha, como áreas de importância ambiental e de beleza natural e estética, e testemunhos de várias épocas. Aí existem importantes e significativos habitats naturais para a conservação in situ da diversidade biológica, para além do seu papel fundamental associado ao valor da água mineral natural. Segundo o professor Fernando Catarino,
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«não deixa de causar admiração e até regozijo que a mais-valia representada por este vasto pulmão verde se tenha mantido até aos nossos dias e resistido à pressão do alastrar urbano. Raros serão os sítios urbanos que possam ombrear com as Caldas da Rainha e que possam orgulhar-se de ter o seu principal e mais valioso núcleo histórico, neste caso as Termas e o conjunto impressionante do Hospital, da Igreja e do Palácio Real, em integração tão feliz, que por um lado se cola sem nenhuma arrogância com as construções humildes do primitivo traçado urbano e, por outro, se deixa envolver no abraço protector da magnífica moldura vegetal, que de um e doutro lado dão merecido enquadramento ao lugar.» (Catarino 2005)
Ainda assim, ao longo dos tempos, as transformações da Mata e do Parque são resultantes das constantes alterações motivadas pelas solicitações dos aquistas e pelos problemas técnicos. Têm sobrevivido, porém, a não poucos desmandos por parte de responsáveis locais, sendo por isso espaços essenciais de preservação e valorização no âmbito de um Plano de Gestão.
3. Plano de Gestão Desde 1999 que existe aberto ao público o Museu do Hospital e das Caldas, integrado na antiga Casa Real, sendo um elemento de estudo e divulgação do Património, bem como centro do percurso museológico termal, constituído este pelos espaços e edifícios representativos da História do Hospital Termal e seus respectivos conteúdos. O Museu foi um dos projectos lançados pelo médico Mário Gualdino Gonçalves, enquanto Director do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, que traçou para este vasto conjunto perspectivas de gestão e projectos para alguns edifícios mais degradados e potencialmente importantes para o relançamento da actividade termal. O papel do Museu durante o período de 1999 a 2005, durante o qual a co-autora deste texto foi sua coordenadora técnica, pautou-se por uma intensa abertura à comunidade, com especial destaque para o trabalho com as escolas, integrando uma equipa de voluntários, de aquistas, funcionários e colaboradores do Centro Hospitalar, em diferentes áreas disciplinares – geologia, hidrologia, biologia, história da arte, literatura, artes plásticas –, que estruturou projectos de consolidação da imagem e da importância do Património, apresentando-o
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à comunidade local, ao país e em diferentes intervenções no estrangeiro. Numa escala alargada à cidade, a criação de um território de inovação – envolvendo a arquitectura, as artes, o design e as ciências da água e da saúde – pode induzir uma estratégia de desenvolvimento local, a qual foi efectivamente traçada no quadriénio de 2002 a 2005 pelo co-autor deste texto, no âmbito da Câmara Municipal. Essencialmente, identificam-se neste projecto três objectivos: em primeiro lugar, como suporte de uma actividade económica ligada ao termalismo; em segundo lugar, para desempenhar um papel de actualização permanente do conhecimento e para facilitar a transferência do know-how universidade-sector de actividade; e, em terceiro lugar, para actuar como catalizador da regeneração urbana e económica do centro urbano para beneficiar a comunidade. Tem de ser um projecto de longo prazo, onde a componente da qualificação urbanística assume uma importância decisiva, para além da interacção entre os sectores empresarial, de ciência, ensino e formação e a comunidade, permitindo criar um espaço atractivo para viver, trabalhar e aprender no centro da cidade; um espaço onde ocorra a inovação, com ambiente propício, recursos humanos qualificados, adequada oferta de for-
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mação e de bens culturais, incluindo, necessariamente, a cultura científica e tecnológica. A transformação do centro urbano, como nó de um sistema, permitiria desenvolver, no campo das ciências da saúde e da água e no das artes, design e arquitectura, uma economia de território capaz de provocar a inovação nas actividades do termalismo, do lazer, do ensino, da investigação e da regeneração urbana. Esta especialização competitiva da cidade das Caldas da Rainha e do seu centro urbano em particular aproxima-a de um mercado mais vasto, com repercussão também na imagem externa. Uma aposta integrada que, assente numa estratégia que beneficie toda a comunidade e que lance pontes para um intercâmbio internacional, seria um caminho desejável para criar novos horizontes, para criar o futuro. Estas ideias devem configurar o papel inovatório da cidade no contexto dos indicadores da competitividade em função de diferentes leituras da cidade para além do seu centro urbano, dos pontos de vista administrativo, empresarial, residencial, cultural, logístico, do conhecimento e do turismo e lazer. Se a aposta no relançamento do termalismo nas Caldas da Rainha for levada a sério, pensamos que podemos ligar um conjunto de perspec-
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tivas correlacionadas entre si, designadamente nas áreas da saúde, do património e do turismo. As novas tendências de procura emergentes nos mercados internacionais e nacional, centradas em motivações ligadas à recuperação física e intelectual e ao bem-estar, apontam para a necessidade de equacionar as valências da estância termal no contexto dos recentes conceitos que hoje configuram a nova realidade do termalismo. Em simultâneo, há que manter garantias de autenticidade e integridade do Conjunto Termal das Caldas da Rainha, baseadas em pilares fundamentais: a protecção e o enquadramento legislativo no quadro administrativo português, o envolvimento de todos os actores interessados no processo de classificação e valorização, o controlo de padrões físicos que permitam a monitorização do nível de conservação do sítio, a aplicação sistemática e contínua de um plano de gestão destinado à conservação. Este plano de gestão deverá ser articulado segundo as fases de consolidação dos estudos, conservação, manutenção, monitorização, protecção e valorização. Estes princípios devem começar na preservação do elemento Água. Segundo o professor Aires-Barros: «chamar a atenção para o facto de as águas minerais serem geo-recursos renováveis em função de uma
Capa de Cidade Termal, boletim de cultura urbana, n.º 10, Outubro de 2005, direcção de Jorge Mangorrinha. Câmara Municipal das Caldas da Rainha.
gestão racional da sua exploração e utilização pelo Homem. Assim se explica a necessária correlação íntima entre a gestão cuidada do fluido termal em si e na sua envolvente e a necessidade de considerar o próprio ambiente e a paisagem como recursos materiais cuja fruição supõe condicionantes estreitos e estritos. Acresce que, no caso das Caldas da Rainha, o valor ecológico de recurso geo-hidrológico, como são as suas águas termais é fundamental para a preservação da biodiversidade tão característica da região ao longo do tempo» (Aires-Barros 2005).
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Complementarmente, há a necessidade urgente em conservar e restaurar o património cultural, natural e arquitectónico e de integrar a comunidade em acções de valorização do património e dos espaços públicos, designadamente os verdes. Nesta perspectiva, também os professores Fernando Catarino e João Caldeira Cabral alertam sobre a importância da vegetação e da paisagem: «Na Mata são múltiplas as valências que concorrem para a grande importância deste património e para a necessidade imperiosa de urgentes acções de intervenção que
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garantam o seu revigoramento e sustentabilidade. É óbvio que, numa análise imediata, são os valores estéticos da própria Mata e a inerente protecção e amenização ambiental, de que as termas e a cidade directamente beneficiam, os que acolhem mais fácil consenso. Porém, são outras valências inestimáveis deste singular património mas a que, temos que admitir, continua a não ser dado o relevo que de facto merecem, tanto na simples avaliação ou valorização ambiental dos sítios como na justificação e enquadramento de políticas transversais relativas à gestão e conservação dos recursos naturais. É o caso da ocorrência de habitats muito variados e contrastantes na sua estrutura e ecologia organizados em sistemas de grande complexidade assentes num reticulado de manchas e corredores ecológicos e ecótonos extremamente representativos da biodiversidade potencial regional. Tais majorações do valor ecológico resultam da continuidade espacial da Mata e dos espaços verdes que lhe são contíguos, o Parque e a importante mancha, expectante, de espaços agrícolas e florestais como que a ser asfixiados pela malha urbana» (Catarino 2005).
Caldeira Cabral, por seu turno, refere «que é vital que, com uma correcta visão de planeamento estra-
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tégico, se aproveite de imediato a disponibilidade de terrenos ainda existente, unindo esforços necessários para o aproveitamento daquela que será a última oportunidade de manter as Caldas da Rainha como Cidade Termal» (Cabral 2005). São estas convicções, de quem connosco estudou recentemente este património, que servem de balizas para sublinhar a sua relevância universal, até há poucos anos escassamente divulgada. Exige-se que o país e a cidade lhe devolvam o seu olhar e que esta se valorize em torno de um projecto à escala urbana, a longo prazo, sublinhante das «mais variadas facetas de um local e do seu transcorrer histórico onde um denso património cultural intangível, cobre, cimenta, aglutina um amplo património tangível, arquitectónico, artístico e ainda natural, ambiental, paisagístico. Um todo prenhe de valores que o tornam único em si e na sua persistência temporal» (Aires-Barros 2005). Destas Caldas do Populus, que «deram ao Portugal de Quinhentos um dos mais importantes programas de edificação de uma ideia de Renascimento do espaço urbano ao cultivado serviço da assistência à pobreza e à miséria com que se foi longamente pintando, entre aflição e fatalismo, a vida do Povo de Portugal: saberemos agora, cinco séculos depois, preservar e renovar este
projecto único? Saberemos, mais ainda, preservar transformadamente um património único a nível nacional e europeu numa lição verdadeiramente universal?» (Sousa 2005).
E perguntamos nós, querem os portugueses – a começar pelos caldenses – reconhecer o pioneirismo deste conjunto patrimonial como secular relação do Homem com a Água?
Bibliografia: AIRES-BARROS, L. 2005. Termalismo e Preservação do Património Cultural e Natural. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. CABRAL, J. F. Caldeira. 2005. A Modernização dos Espaços Verdes Termais. O Caso Particular das Caldas da Rainha. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. CATARINO, F. 2005. A Propósito da Mata das Caldas. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. Caldas da Rainha: Património das Águas. Projecto de Candidatura a Património da Humanidade. 2004. Coordenação geral de Jorge Mangorrinha. Edição limitada da Câmara Municipal das Caldas da Rainha para a Comissão Nacional da UNESCO. PINTO, H. Gonçalves. 2005. O «Passear as Águas». Uma História do Parque
e da Mata das Caldas da Rainha. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. PINTO, H. Gonçalves e Mangorrinha, J. 2005. O Programa e a Arquitectura Termal. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. SERRA, J. B. 2006. Apresentação da obra Judeus em Portugal durante a II Guerra, de Irene Pimentel. Caldas da Rainha. 7 de Julho. http://www.cidadeimaginaria.org/. SILVA, J. C.Vieira. 2005. A Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa: Assírio & Alvim. SOUSA, I. Carneiro de. 2005. Um Hospital do Populus. Da Misericórdia e da Rainha para uma Vila do Renascimento. Caldas da Rainha: património das águas. Lisboa:Assírio & Alvim. Helena Gonçalves Pinto*, Jorge Mangorrinha**
* Licenciada em História. Mestranda em Museologia e Património. Investigadora. ** Licenciado em Arquitectura. Mestre em História Regional e Local (especialização em Património). Doutorando em Urbanismo na Universidade Técnica de Lisboa.
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Machado de Castro nos jardins de Belém A escultura realizada na Casa de Escultura dirigida por Joaquim Machado de Castro (1731-1822) para os jardins do Palácio de Belém é mais volumosa do que geralmente se crê. Ainda não há muito, no catálogo Do Palácio de Belém editado pelo Museu da Presidência da República de 2005, o texto sobre “Escultura. Do Palácio de Belém” da autoria de Carla Varela Fernandes, entre as várias esculturas de jardim abordadas, de Machado de Castro referencia apenas os já conhecidos Apolo e Diana. O texto começa, e bem, por distinguir as esculturas encomendadas, concebidas e realizadas para os jardins daquelas que, vindas de outros edifícios e até de outros museus, lá foram colocadas e readaptadas á posteriori. A autora apresentou novos e importantes dados no que se refere à análise das esculturas italianas importadas, nomeadamente com a descoberta do esboceto de terracota para a Morte de Cleópatra de Ioseph Mazzuoli conservado pela Pinacoteca Nazionale, mas em depósito no Istituto delle Belle Arti de Siena. O nosso contributo vai limitar-se a acrescentar mais um degrau no conhecimento da escultura realizada
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na Casa de Escultura dirigida por Joaquim Machado de Castro para os jardins do Palácio de Belém, e fazer uma ou duas rectificações sobre esta matéria no texto em questão. Definitivamente pouco conhecidas, inclusive dos autores coetâneos – pois as esculturas não são referidas nas descrições coevas do palácio nem das dos viajantes a Lisboa –, existem oito estátuas realizadas para a Quinta Real de Belém noticiadas pelo próprio Joaquim Machado de Castro na carta de 3 de Fevereiro de 1817 publicada por Henrique Lima (1925: pp. 319323) em que, para se defender das acusações das delongas na entrega das encomendas, redige uma breve resenha da vastíssima obra que realizara até então. Numa primeira frase, reportando a Belém, o escultor com uma pergunta retórica – “Quem fez cuido q. seis estátuas em mármore, que estão guardadas em uma Casa das Quintas de Belém, se não estes calumniados?” (Henrique Lima, 1925: p. 320) –, informa-nos sobre a quantidade de estátuas que já teria feito à muito tempo para Belém: seis. Na mesma missiva, o próprio Machado de Castro noticia que em 1817 ter-se-iam realizado mais duas estátuas em mármore de Itália
para Belém, prontas para deixar a Casa de Escultura ao mesmo tempo da Gratidão do Palácio da Ajuda, como se pode ler neste trecho: “Agora dou Parte a V. Ex.ª, como Principal Ministro da Repartição em que sirvo; e ao Snr. Visconde de Santarém, como Encarregado em Particular do complemento do Palácio Novo; de q aqui se achão tres Estatuas promptas a sahir desta Casa: duas em marmore de Italia p.ª as Reaes Quintas de Belem: e huma em marmore de Perpinheiro, representando a Gratidão: que he uma das determinadas p.ª o Palacio Novo; cuja sahida fica ao Arbitrio de Vossas Excellencias” (Henrique Lima, 1925: pp. 322-323). Temos então notícia de oito estátuas realizadas no Laboratorio de Joaquim Machado de Castro para a Quinta Real de Belém, mas quais serão estas estátuas entre o vasto património escultórico dos jardins e Palácio de Belém? Apolo e Diana seriam certamente duas delas – como está patente no “Catálogo da obra documentada de Joaquim Machado de Castro e da sua Oficina no Museu de Arte Antiga” (in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, Vol. III, nº 1, Lisboa, 1956) da autoria de Maria José de Mendonça –, cujos respectivos modelos são da factura de José Joaquim Leitão – segundo informação gravada na base do modelo – e Francisco Leal Garcia, como
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Diana. Laboratorio de Joaquim Machado Castro; José Joaquim Leitão; c. 1778; modelo em barro cozido; Alt. 34 x larg. 12,5 x Prof. 10,5; Lisboa; M.N.A.A., inv. 54 Esc. © M.N.A.A.
nos informa a etiqueta de papel colada na base do modelo escrita pela mão de Francisco de Assis Rodrigues – filho de Faustino Assis Rodrigues, braço direito de Machado de Castro –, na qual se lê “Fran.co Leal Garcia f.”. Não se percebe é porque é que depois de indicar correctamente os números de inventário dos modelos de barro cozido na nota dezassete, ao invés da imagem do modelo de Diana
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– a que aliás a legenda pertence – surge na página 216 do dito catálogo a imagem do modelo em barro cozido da Fortaleza, modelada por Nicolau Possolo (nº inv. 55 Esc, M.N.A.A.). Quanto a estas duas esculturas podemos rectificar a data da sua realização avançada por José Queiroz (Cerâmica Portuguesa,1907) e aceite por Varela Fernandes como circa 1770. Efectivamente, sabemos que estavam a ser realizadas em 1778 para manter ocupados os ajudantes de Machado de Castro quando a Casa de Escultura enfrentava problemas de sobrevivência depois da morte de D. José I, como está patente na carta de Machado de Castro de 26 de Maio de 1778 à Junta do Comércio: “No tempo da suspensão das Obras Publicas me achava encarregado da factura de duas Estatuas, em q. elles trabalhavão, de Apollo, e Diana, q. e por ordem de S. Mag.de se fazião p.ª os seus Reaes Jardins; e as quaes estão bastantemente adiantadas. Tambem estava de concluir o painel de baixo relevo allegorico, no reverso do pedestal da Real Estatua Equestre; pois a brevidade com q. e se fez não deu lugar a poder se acabar, e se acha imperfeito; o q. e lamentão não só os Nacionaes, mas ainda os Estrangeiros” (IAN/TT, Junta do Comércio, mç. 68, cx. 219, cf. documento encontrado por Miguel Faria e que nos foi gentilmente
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cedido). Esta fonte permite-nos precisar que já se trabalhava nas estátuas do Apolo e Diana à data da suspensão do Laboratorio em 1777, prolongando-se a sua execução para lá de Maio de 1778. Apolo e Diana tinham sido encomendadas ainda no tempo de D. José I, para colocar ainda não se sabia se na varanda ou nos jardins da Quinta de Belém – porque a principal preocupação fora manter os escultores ocupados –, razão pela qual em 1817 ainda se encontravam guardadas numa casa da Quinta de Belém, como descreve Machado de Castro na carta de 3 de Fevereiro de 1817. Facto curioso dada a actual localização das esculturas – visíveis mesmo para quem não frequentasse o Palácio.Assim, sem propósito bem definido nem localização definitiva prevista, as estátuas de Apolo e Diana só muito depois da sua execução vieram a ocupar esta posição estratégica, numa cidade voltada para o rio. O que explica a desproporção das mesmas face ao edifício. Os modelos de barro cozido de Apolo de Francisco Leal Garcia – e não Faria como está no texto de Carla Varela Fernandes –, e de Diana de José Joaquim Leitão, com os quais fazem conjunto as esculturas do par Adónis e Vénus sobre a balaustrada do Jardim de Buxo, permitiam-nos deduzir que encontrámos quatro das
Minerva. Laboratório de Joaquim Machado Castro; c. 1785; modelo em barro cozido; Alt. 29 x larg. 13 x Prof. 9,5; Lisboa; M.N.A.A., inv. 54 Esc. © M.N.A.A.
Minerva. Laboratório de Joaquim Machado Castro; c. 1785; estátua em pedra; Tamanho maior que o natural; Lisboa; Jardim do Palácio de Belém. © Ana Duarte Rodrigues
seis estátuas referidas inicialmente por Machado de Castro. No entanto, a documentação confirma a realização de Apolo e Diana mas não faz qualquer alusão a nenhuma das outras estátuas, pelo que no estado actual da investigação seria prematuro avançar com estas atribuições. É de frisar que apesar da identificação da autoria dos modelos estar correcta, visto tratarem-se de dois ajudantes de Machado de Castro – Francisco Leal Garcia e José Joaquim
Leitão – as esculturas foram encomendadas à Casa de Escultura dirigida por Machado de Castro e face à organização faseada da produção escultórica em fino-setecentos, início de Oitocentos, a autoria das obras não deixa de ser, à vista do próprio tempo, do director do Laboratorio, Joaquim Machado de Castro. Conseguimos identificar mais duas esculturas realizadas no Laboratorio de Machado de Castro para o Jardim da Quinta de Belém baseando-nos num
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outro modelo encontrado nas reservas do M.N.A.A. – Minerva. Colocadas sobre os pavilhões em forma de anfiteatro (1780-84), já construído no tempo de D. Maria I, as duas esculturas apresentam semelhanças formais e iconográficas evidentes que permite concluir pela mesma autoria. Quanto à última encomenda de duas esculturas prontas em 1817, colocamos a hipótese de uma delas ser o Hércules Farnesio, que se encontra actualmente no Jardim-Museu do Instituto de Investigação Científica Tropical, e fazia então parte integrante da Quinta Real de Belém. A pesquisa documental confirmou as nossas suspeitas e acrescentou-nos algumas informações sobre a execução e a datação desta escultura: João José Elveni – outro ajudante de Machado de Castro –, em 6 de Agosto de 1806, encontrava-se desde há bastante tempo a trabalhar num Hércules destinado às reais quintas. Nesse documento lê-se: “Informaçao’ a respeito do Requerim.to do Ajudante da Caza da Esculptura Joao’ Jozé Elvenich; remetida p.ª o R.al Erario em 6 de Agosto de 1806. Senhor. = Havendo o Professor da Caza da Esculptura reprezentado por huma conta datada em 7 de Mayo do prezente anno , que o Ajudante da Esculptura Joao’ Jozé Elvenich empregado na Aula e Laboratorio da mesma Caza, o primeiro que se admetio para o
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ajudar na obra da Estatua Equestre; e que ficou continuando a ter exercicio, empregando-se nas mais obras que ali se tem feito: logo ao principio dera demonstraçoens do seu genio orgulhozo, que debalde elle Professor intentou moderar, com admoestaçoens que sempre forao’ inuteis; e que nestes ultimos tempos mandando-o trabalhar em huma Estatua de Hercules, que havia alguns annos estava projectada para alguma das Reaes Quintas, nela tinha empregado immenso tempo, comunicando a sua laxidao’ ao companheiro com quem trabalhava: ultimamente, que dando-lhe huma admoestaçao’ mais viva, em que lhe espunha, que o seu procedimento o obrigava a dar parte da sua conduta; respondera que o deploravel estado da sua saude lhe não’ premitia trabalhar na pedra, e que o empregasse em modellar: que attendendo a ser o mais antigo, e ter ajudado nas principaes obras daquella Caza com sufficiente prestimo, o removera da pedra, e o destinara para modelar, onde se tem portado com igual successo; pois que em hum Grupo, que muito bem se podia fazer em 6 dias mais bem acabado, gastara nelle 31. Que allem da sua neglicencia no trabalho, o seu orgulho, a soltura de lingoa, e outros relaxados costumes, o punhao’ na preciza obrigaçao’ de dar esta parte. O que sendo prezente ao Ex.mo Inspector Geral das Obras Públicas mandou por Portaria de
12 de Mayo deste anno, que o sobredito Joao’ Jozé Elvenich, fosse expulço, e riscado da Folha por onde vencia o seu jornal. Hé quanto posso informar a V.A.R. que mandará o que for servido. Caza da Intendencia das Obras Publicas 5 de Agosto de 1806. Do Intendente das Obras Publicas. = Duarte Jozé Fava.” (IAN/TT, Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, Intendência das Obras Públicas, lv. 36, (1803-1809), fls. 47 a 48, in Ana Duarte Rodrigues, A Escultura de Vulto Figurativa do Laboratório de Joaquim Machado de Castro (1771-1822): produção, morfologia, iconografia, fontes e significado, dissertação de Mestrado apresentada à F.C.S.H. /U.N.L., vol. II, Lisboa, 2004, p. 137). Entretanto, o ajudante de Machado de Castro foi retirado do trabalho
da pedra, e ficamos sem saber se chegou a terminar a estátua. Infelizmente, o contributo da nossa investigação não permite ainda identificar as oito estátuas realizadas na Casa de Escultura dirigida por Machado de Castro, contudo esperamos que outros trabalhos acrescentem novas informações e interpretações àquelas que aqui se apresentam para podermos num futuro próximo determinar com o máximo de segurança o relevo da presença de Machado de Castro nos jardins do Palácio de Belém.
Ana Duarte Rodrigues*
* Doutoranda em História da Arte da Idade Moderna na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT (POCTI, do Quadro Comunitário de apoio III 2000-2006, com fundo comunitário FSE e nacionais).
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Arte em revista(s) Dando continuidade ao sincero desejo de abrir um espaço de confluência entre publicações no domínio da História e História da Arte de filiação académica (mais ou menos directa), venho relembrar que as revistas, conceptualmente mais próximas da Revista de História da Arte, continuam de boa saúde, manifestando um salto considerável de qualidade, nomeadamente no que respeita ao espaço dado às imagens e, em geral, à sua elevada resolução e articulação discursiva. Estou a referir-me, claro, a Artis, Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, com direcção de Vítor Serrão, e a Arte Teoria, Revista do Mestrado em Teorias da Arte da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, de que é director José Fernandes Pereira. O nº 5 da Artis, 2006, tem extraordinária amplitude histórica e temática, estendendo-se do Antigo Egipto a Picasso, mas estes dois referentes de modo nenhum dão conta do leque das áreas envolvidas, com artigos inovadores, referindo-me às áreas em que tenho alguma competência crítica. Quanto à Arte Teoria, foram publicados, em 2007, dois números, sendo o nº 10 dedicado ao tema da Cidade.
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Em qualquer dos números, o grafismo é de superior qualidade, bem como a riqueza documental, em termos de desenho e reprodução. Não sendo objectivo desta nota, a recensão crítica das revistas – antes a sua notícia – o que li em geral e em profundidade (e, neste modalidade, foram, com proveito, muitos artigos quer da Artis, quer da Teoria e Arte) proporciona-me, confesso, uma profunda alegria disciplinar. É extraordinária a quantidade e qualidade de trabalho que actualmente ocorre no domínio da História e Teoria da Arte e, a partir dele, se abre, com trocas
enriquecedoras, a outras áreas disciplinares. Como parte substancial destas investigações ou síntese da maior qualidade se articula com trabalhos académicos, em cujos júris participamos mais ou menos em conjunto, há que salientar, com a mesma profunda alegria, a rede inter-escolas da História da Arte em Portugal. Por outro lado, verifica-se também, cada vez mais, o desenvolvimento e ampliação de contactos internacionais. Sinceramente, dou os mais sinceros parabéns aos conselhos redactoriais das duas revistas! Não tendo em mãos o nº 2 da Murphy, acabado de sair quando escrevo esta nota, tenho ainda dois destaques a fazer, pedindo desculpa por outras ausências, devidas a ignorância da minha parte e falta de tempo para a colmatar. Saúdo, muito especialmente, Margens e Confluências – um olhar contemporâneo sobre as artes, com direcção de Maria José Laranjeiro, editada pela Escola Superior Artística do PortoGuimarães, em periodicidade semestral. Li, com grande agrado e proveito, o nº duplo 11-12, dedicado ao tema “Mulheres artistas Argumento de género” que mantém um sólido e belo grafismo, amplo e adequado lugar à imagem de qualidade. Ele foi-me generosamente enviado pela direcção mas acontece que, quando
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estava a preparar um pequeno artigo sobre Arte Pública, acabara de me cruzar com um número anterior das Margens (nº9) onde colhi inovador material. Foi assim, por este duplo circunstancialismo, que conheci a revista: culpa minha que já deveria conhecê-la antes! Mas aqui deixo o registo para outros distraídos interessados, como eu. Com colaboração de proveniências diversificadas, revelando redes de comunicação solidária (incluindo autoras da Universidade de Vigo e, no nº 11-12, com especial generosidade, alguns homens…) os artigos circulam entre reflexões contemporâneas, projectos artísticos e investigação histórica, garantindo à revista um aprazível lugar entre as ciência das arte (teoria, crítica e história) activado por uma “vontade de arte”, através dos projectos artísticos. Especialmente eficaz é então o jogo entre as imagens que são projecto e as que são documentação, histórica e crítica, envolvendo estes diversos domínios num clima propiciatório de criatividade. O meu segundo destaque vai para Intervalo, revista anual que publicou, em Maio de 2007, o seu terceiro número. Extremamente discreta na apresentação, tem como editores Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Olímpio Ferreira e Silvina Rodrigues Lopes, gente da História e Teoria da
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Arte Contemporâneas, da Literatura, dos Estudos Culturais, em que as transumâncias entre domínios científicos não se fazem por diluição, mas forte contaminação disciplinar. Co-edição da Vendaval e da Diatribe, Intervalo está ancorada numa reivindicação de trabalho intelectual com pontes entre vários sistemas institucionalizados e reivindicada independência. Como se proclama na folha de rosto de todos os números: “Parte da convicção de que a subordinação a estratégias de sucesso e de imposição de imagens e modelos não é uma fatalidade”. Os artigos, submetidos, sem excesso, ao tema de cada número, são inovadores e indagantes (tal como as entrevistas, excelentes) com lugar à ficção e às políticas, no sentido da utópica (re)invenção da polis. Deixando de lado
excelentes trabalhos, destaco, no último nº 3, o de Silvina Rodrigues Lopes “Resistir às máquinas identitárias…” em que se debruça a um artigo de Luís Henriques, publicado no nº 2 (“Fado, Futebol, Fátima, Foices e Martelos, Combates pelo senso comum no século XX português”) e, literalmente, desfaz Portugal Hoje, O medo de existir de José Gil. Confesso que tive desejo de ter sido eu a escrever tão brilhante artigo. Mas, embora sejam questões que estão no centro das minhas preocupações, não teria capacidade. Fica um apelo aos editores das Intervalo: embora tudo se possa pesquisar, dêem-nos duas linhas de referência curricular ou existencial dos autores. Raquel Henriques da Silva*
* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal
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História da Arte na World Wide Web (II) O espaço Web tem vindo a assumir progressivamente uma importância crescente enquanto veículo de comunicação entre as instituições científicas e o exterior. Enquanto ferramenta de divulgação, tem permitido a universidades ou centros de investigação, darem-se a conhecer a públicos progressivamente mais alargados e com grande celeridade, partilhando a actividade dos seus membros, os projectos científicos em curso e mesmo alguns produtos finais, sendo cada vez maior, entre outros, o volume de trabalhos científicos com acesso
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on-line disponibilizados por bibliotecas e departamentos universitários. Por outro lado, algumas instituições, particularmente no campo da História da Arte, facultam ainda o acesso aos seus catálogos bibliográficos e/ou visuais, relevantes para investigadores ou alunos exteriores à instituição e agora facilmente acessíveis à distância. Podemos encontrar um exemplo bem sucedido da utilização da internet pelas instituições científicas no domínio da História da Arte no Kunsthistorisches Institut in Florenz (http://www.khi.firenze.it).
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Fundado em 1897 e integrado desde 2002 na Max Planck Society, o Instituto de História da Arte Alemão em Florença colabora com várias universidades e museus, promovendo a pesquisa de académicos consagrados e de jovens investigadores em História da Arte. Albergando a maior biblioteca mundial especializada no Renascimento Italiano (aproximadamente 240 000 volumes) o KHI continua a assumir-se como uma das mais destacadas instituições de investigação na área. Uma das principais valias da sua renovada página on-line (disponível em italiano, inglês e alemão) reside precisamente no facto de possibilitar a consulta dos índices da biblioteca (menu OPAC), permitindo uma constante actualização bibliográfica no que respeita às principais áreas de investigação do Instituto. É igualmente permitida a consulta on-line do extenso arquivo fotográfico (constituído por cerca de 580 000 imagens) e dedicado maioritariamente à arte italiana (http://www.khi.fotothek.org). É ainda possível aceder a um útil conjunto de links de entre os quais se destacam: Verbundkatalog KUBIKAT (http://www.kubikat.org), o qual reúne os catálogos das bibliotecas de História da Arte do Kunsthistorisches Institut in Florenz, do Zentralinstitut für Kunstgeschichte / Munique e da Bi-
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bliotheca Hertziana – Max Planck Institute for Art History / Roma; artlibraries.net (http://www.artlibraries.net), uma base de dados sediada na Biblioteca Universitária da Universidade de Karlsruhe e que se apresenta como um meta-catálogo a nível europeu de referências bibliográficas de História da Arte, incluídas em bases de dados especializadas; arthistoricum.net (http://www.arthistoricum.net), site que reúne a base de dados anterior com o ART-Guide – Colletion of Art History Websites e o ARTicles online – Art historical articles from e-jounals, bem como vários portais temáticos. Traduzindo de igual forma esse élan comunicacional em ambiente Web por parte das instituições académicas e criando no mesmo movimento uma publicação exclusivamente on-line, encontramos a revista IMAGE [&] NARRATIVE: Online Magazine of the Visual Narrative (http://www.imageandnarrative.be), constituída como plataforma de debate teórico no campo dos estudos da imagem. Oriunda do Instituto de Estudos Culturais da Faculdade de Letras da Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), é dirigida por Jan Baetens, Hilde Van Gelder (Departamento de História da Arte) e Anneleen Masschelein (Departamento de Estudos
Literários: Literatura e Cultura). O conselho editorial engloba membros de universidades nos Estados Unidos (The Ohio State University, University of Washington-Bothell), Alemanha (Universität Hamburg, Universität Leipzig), Itália (Università di Bologna), África do Sul (University of the Free State), Filipinas (Ateneo de Manila University) e Inglaterra (Saint-Martin’s College London), operando um cruzamento com várias instituições espalhadas pelo mundo. Apresentando-se como uma revista de narratologia visual, IMAGE [&] NARRATIVE conta até ao momento com dezassete números temáticos. Nela são publicados artigos
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inéditos em inglês e francês (apresentando os respectivos resumos nos dois ediomas) em seguida a um texto de introdução ao tema aglutinador de cada número, contando no fim com uma secção de recensões críticas. Aproveitando a possibilidade de contínua actualização de conteúdos derivada do suporte virtual, a revista dispõe de períodos longos de Call for Papers e publica faseadamente alguns dos números em função dos artigos recebidos. IMAGE [&] NARRATIVE foi inaugurada com Cognitive Narratology em Novembro de 2000. Seguiram-se-lhe Bande dessinée et fanatastique (Setembro de 2001), Illustrations (entre
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Março e Outubro de 2001), Gender Issue (Setembro de 2002), The Uncanny (Janeiro de 2003), Medium Theory (de Janeiro a Agosto de 2003), Graphic Novel IAWIS (de Fevereiro a Outubro de 2003), Mélanges / Miscellaneous (Maio de 2004), Performance (Outubro de 2004),The Visualisation of the Subaltern in World Music 1 (Março de 2005), The Visualisation of the Subaltern in World Music 2 / Images in Advertising (Maio de 2005), Opening
Peter Greenway’s Tulse Luper Suitcases (Agosto de 2005), The Forgotten Surrealists: Belgian Surrealism Since 1924 (Novembro de 2005), Painting / portrait (Julho de 2006), Battles around Images: Iconoclasm and Beyond (Novembro de 2006), House / Text / Museum (Fevereiro de 2007) e The Digital Archive (Abril de 2007).
Luísa França Luzio*
* Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSH-UNL (Bolseira FCT); Membro do Instituto de História da Arte – FCSH-UNL
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Revista de História da Arte (publicação semestral do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) A Revista de História da Arte é uma revista académica semestral de teoria e história da arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto de História da Arte e Edições Colibri. Destina-se predominantemente à comunidade científica e académica, incluindo professores, investigadores e estudantes. Cada número da Revista de História da Arte é dedicado a um tema específico, tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertas a outros domínios temáticos:Varia, Recensões e Notícias.
Normas de redacção de artigos/recensões 01. Objectivos A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, tornase premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.
02. Regras e especificações para publicação de artigos 02.1 Formatação 02.1.1 Aplicação 02.1.2 Tipo de letra 02.1.3 Numeração das páginas 02.1.4 Notas de rodapé 02.1.5 Formatação dos parágrafos
Microsoft Office Word Times New Roman; tamanho 12 Sequencial Numeração automática Alinhamento à esquerda, não indentados, com duplo espaçamento entre linhas
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02.2 Tamanho Os artigos não devem exceder as 5 000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (incl. espaços). 02.3 Língua Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês. 02.4 Título Claro e sintético em maiúsculas. 02.5 Subtítulo Opcional. 02.6 Resumo Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca de 7500 caracteres (incluindo espaços), em português e, sempre que possível, em inglês. 02.7 Palavras chave Para cada artigo deverão ser indicadas, no máximo, 5 palavras chave. 02.8 Nota biográfica sobre o autor ou autores 02.8.1 02.8.2 02.8.3
Assinatura a acompanhar o artigo Afiliação Institucional Contacto de email (opcional)
02.9 Citações Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por: (apelido do autor data de edição da obra citada, nº da página) 02.10 Sistema abreviado autor-data As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página). Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47). No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas.
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02.11 Bibliografia Toda a bibliografia segue as seguintes normas: Exemplos: Monografias Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Artigos de publicação em série Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação no site www.chicagomanualofstyle.org 02.12 Ilustrações 02.12.1 Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em provas em papel ou digitalizadas em alta resolução (300 dpi’s), em formato jpg ou tif, para um formato máximo de 28x22 cm; 02.12.2 Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro independente; 02.12.3 Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda; 02.12.4 No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, do seguinte modo: fig. 1; fig. 2; etc.; 02.12.5 Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, legendas correspondentes, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. Exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg 02.13 Créditos das Ilustrações 02.13.1 No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsablidade destes obter a respectiva autorização escrita e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.
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02.13.2 Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright
03. Regras e especificações para publicação de recensões críticas 03.1 Obra recenseada 03.1.1
A obra recenseada deve ser identificada do seguinte modo: Autor, data de edição, título, local de edição e editora.
03.1.2
A citação de outras obras para além da recenseada será feita exclusivamente no texto
03.2 Tamanho As recensões críticas não devem exceder as 1000 palavras, ou cerca de 6500 caracteres (incluindo espaços). 03.3 Outras regras As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: N02.1, N02.3, N02.7, N02.8.
04. Direitos de Autor No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.
05. Revisões de Provas O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão final a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Editorial, que garante a reprodução fidedigna dos textos.
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06. Envio dos trabalhos 06.1 Todo o material em formato digital deverá ser enviado para o seguinte endereço: iha@fcsh.unl.pt 06.2 Todo o material em formato não digital, incluindo ilustrações, legendas, resumo, deverão ser assinados, e enviados para: Instituto de História da Arte Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C 1069-061 Lisboa
07 Selecção e publicação de artigos/recensões 07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário, recorrer ao seu concelho de referees, solicitando parecer científico. Em qualquer dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver anexo 1). 07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia os artigos propostos para publicação, a sua originalidade científica. 07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto. 07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à: 1. reprodução, qualquer que seja o suporte; 2. colocação à disposição do público universitário ou outros;
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3. divulgação, nas suas diversas modalidades: redes digitais, sites....; 4. distribuição e venda de exemplares da obra; 07.5 Os autores serão informados no prazo de três meses, qual a data previsível de publicação. 07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista. Os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos.
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ANEXO 1 Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de Referees internacional, em face das respectivas especialidades Revista de História da Arte – Apreciação de artigos Título do artigo: Recepção do original: Envio ao referee:
Código de referee:
Parecer: 1. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte centrado nas questões metodológicas? Sim Não 2. O artigo parece-lhe Publicável na forma actual Publicável com ligeiras modificações Publicável se for refeito Não publicável 3. O artigo é Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Apropriado 4. Apresentação do artigo Estrutura Bibliografia 5. Conteúdo do artigo (utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es), recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes): 5.1. Tema, novidade, pertinência 5.2. Revisão do estado da questão 5.3. Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização, profundidade, etc.) 5.4. Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos, tratamento de dados, desenvolvimento da análise, fundamentação das conclusões, etc.) 5.5. Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada) 5.6. Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão) 5.7. Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original) 6. Comentários (não assinados)
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