Revista de História da Arte (n..º8 / 2008)

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Museus e Investigação N.8 2011 Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

Edição Instituto de História da Arte


abreviaturas ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo BA Biblioteca da Ajuda CHAIA Centro de História de Arte e Investigação Artística DDF Divisão de Documentação Fotográfica FBA/UP Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto FCG Fundação Calouste Gulbenkian FCG-BA Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca de Arte FCSH/UNL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa IMC Instituto dos Museus e da Conservação MNAA Museu Nacional de Arte Antiga MNSR Museu Nacional de Soares dos Reis PDVV Paço Ducal de Vila Viçosa PNA Palácio Nacional da Ajuda


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Entrevista com James Elkins

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conduzida por Afonso Ramos, Joana Cunha Leal e Mariana Pinto dos Santos

Inventare musei per ordinare e rappresentare il mondo. La Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio e le Sale della cosmografia e delle matematiche agli Uffizi a Firenze

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Angelo Cattaneo

Os Projectos do Arquitecto Joaquim de Oliveira para as Bibliotecas-Museu de Frei Manuel do Cenáculo

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Joaquim Oliveira Caetano

O “Museu de Antiguidades” da Ajuda: numismática e ourivesaria das colecções reais ao tempo de D. Luís

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Hugo Xavier

Georges-Henri Rivière na génese do Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para o estudo da colaboração entre o museólogo francês e a Fundação Calouste Gulbenkian

89

Sofia Lapa

Sérgio Guimarães de Andrade, o conservador e a sua colecção. A imaginária como conceito

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Maria João Vilhena

Objects that move: Japanese Namban screens in the realm of the senses

127

Rupert Cox

“Que hacen los conservadores?” A propósito do incomodativo problema da existência de mestres desconhecidos nas tabelas dos museus

139

José Alberto Seabra Carvalho

A exposição “A Rainha D. Leonor” no quadro das exposições evocativas do Estado Novo

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Leonor de Oliveira

Os caminhos para a Casa Perfeitíssima

169

Alexandra Curvelo, com colaboração de Mariano Piçarra e Luís Afonso

Investigar para expor. Duas exposições na Fundação Calouste Gulbenkian, 2007-2009

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Raquel Henriques da Silva

Expor a investigação – dois percursos pela obra de Henrique Pousão

193

Lúcia Almeida Matos e Vítor Silva

Na Presença de Marina Abramovic´- notas sobre musealização da performance Lúcia Almeida Matos

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Índice

Editorial


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A documentação de arte efémera como forma de preservação: O caso de Árvore Jogo/Lúdico em 7 Imagens Espelhadas de Alberto Carneiro Rita Macedo e Cristina Oliveira

235

Going Public: Conservation of Contemporary Artworks. Between Backstage and Frontstage in Contemporary Art Museums Vivian van Saaze

RECENSÕES CRÍTICAS 252

Jorge Custódio: “Renascença artística” e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1.ª República. Tese de Doutoramento em Arquitectura. Universidade de Évora, 2009. [Texto policopiado]. Joana Baião

258

Peter Goldie e Elisabeth Schellekens, Who’s Afraid of Conceptual Art?, Londres e Nova Iorque: Routledge, 2010 Miguel F. dos Santos

VARIA 264

O Conde Athanasius Raczynski e a Historiografia da Arte em Portugal Paulo Simões Rodrigues

276

José Rodrigues e o Cego Rabequista Afonso Ramos

286

Encontros perdidos: objectos surrealistas destruídos María Jesús Ávila

NOTÍCIAS - PROJECTOS DE INVESTIGAÇÃO FINANCIADOS PELA FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA (FCT) 306

Fontes para a História dos Museus de Arte em Portugal Raquel Henriques da Silva

308

Documentação de Arte Contemporânea Lúcia Almeida Matos

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Crossing Borders. História, Materiais e Técnicas na Pintura Portuguesa do Romantismo, Naturalismo e Modernismo: 1850-1918 Maria João Melo

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Linha de Museum Studies: Dissertações de Mestrado e Teses de Doutoramento em Museologia Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto


tema da conservação de arte contemporânea, área em que Rita Macedo é a maior especialista portuguesa. Os seus contactos internacionais permitiram, neste campo, a colaboração de Vivian van Saaze. Relacionado com as exigências da conservação em exposição, assinalo também o artigo de Rupert Cox, dedicado aos biombos Namban. As habituais secções da RHA mantêm-se, abrindo-se às solicitações de publicação que nos chegam permanentemente. Mas as escolhas correspondem, confesso, a opções bastante pessoais: o artigo de Afonso Ramos foi um trabalho de cadeira de licenciatura, a colaboração de Paulo Rodrigues é um sinal do activo relacionamento entre o IHA e o CHAIA da Universidade de Évora, o ensaio de María Jesús Ávila recorda a importância desta historiadora e museóloga espanhola no estudo e divulgação da história do surrealismo em Portugal. Refiro ainda as recensões críticas: a de Joana Baião, destacando uma das mais importantes teses de doutoramento realizadas em 2010, no âmbito da Patrimoniologia, da autoria de Jorge Custódio, e a de Miguel F. dos Santos que, para lá do interesse da obra analisada, assinala o início do que, estou certa, será a brilhante carreira deste jovem filósofo da arte. A estas habituais secções, acrescentámos mais duas: a lista das dissertações de mestrado e de doutoramento, realizadas até 2011, no âmbito da Linha MuSt e com orientação dos seus membros integrados. Finalmente, no mesmo âmbito, uma curta notícia sobre os Projectos de Investigação em curso, incluindo aqueles a que estamos associados. Com este nº 8, a RHA ensaia algumas alterações na sua paginação e design que, no entanto, mantém as opções vigentes desde o nº 5. A razão de ser prende-se com a procura dos melhores custos para a edição, naturalmente preocupação determinante de todo o nosso trabalho. As palavras finais são de puro agradecimento: à Leonor Oliveira e ao Hugo Xavier a quem a concretização deste número tudo deve; a todos os autores que nos oferecem os artigos; às instituições que nos cedem as imagens em condições excepcionais; à Natércia Ribeiro da Quinovi; finalmente, à Fundação Millennium BCP, na pessoa do seu Presidente, Dr. Fernando Nogueira, que mantém essa generosidade rara de ser mecenas de uma revista universitária. Bem hajam!

Editorial

O nº 8 da Revista de História da Arte (RHA) cumpre o modelo definido desde o nº 6, quando o conselho editorial decidiu que cada número seria realizado sob uma responsabilidade autoral e um tema específico. O presente número é dedicado a ‘Museus e Investigação’ e os seus autores são, maioritariamente, membros da Linha de Investigação do IHA, designada ‘Museum Studies’ (MuSt). No entanto, assumindo a polissemia dos museus de arte - cruzando a investigação em história da arte com a museologia e a museografia – as opções dos conteúdos abriram-se a outros domínios. Assim, a ‘Entrevista’ regista a presença de James Elkins na FCSH, em 2009, por convite de Joana Cunha Leal que com ele conversou, também com Mariana Pinto dos Santos e Afonso Ramos. Esta estadia marca o arranque de nova Linha de Investigação no IHA, consagrada a questões teóricas da disciplina História da Arte, no contexto de vizinhanças pertinentes, por exemplo os Estudos Artísticos. Embora Elkins não tenha (ainda) reflexão sistematizada sobre o tema Museu, as questões que aborda possuem extraordinária densidade, motivadora para muitos domínios do nosso trabalho. Escolhida a ‘Entrevista’, procurámos que os artigos reflectissem, sem artificialismos, alguns dos trabalhos em curso na Linha MuSt. É o que acontece com os artigos de carácter histórico de Hugo Xavier, Maria João Vilhena, Leonor de Oliveira e Sofia Lapa que se articulam com as suas teses de doutoramento e, também, com o Projecto de Investigação ‘Fontes para a História dos Museus de Arte em Portugal’ financiado pela FCT entre 2010 e 2013. Abrimos, no entanto, o leque de reflexão com os artigos de Angelo Cattaneo, José Alberto S. Carvalho e Joaquim Caetano que trazem dados novos para um campo cada vez mais aliciante: pensar o museu na sua própria historicidade, e a sua arquitectura e expografia, não como meros meios ao serviço de outras discursividades, mas como construtores de sentidos determinantes. Sem abandonarmos a ‘investigação’, a segunda parte da RHA destaca algumas exposições, entretanto ocorridas. Os autores foram seus comissários ou intervenientes com responsabilidades (Alexandra Curvelo, Mariano Piçarra, Vítor Silva) ou deixaram-se cativar pela particularidade das opções. Refira-se, por exemplo, o artigo de Lúcia Matos dedicado à exposição de Marina Abramovic’. Nesta secção incluem-se ainda dois estudos, consagrados ao

Raquel Henriques da Silva

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James Elkins, fotografia de Afonso Ramos, Novembro de 2009.

J

ames Elkins, professor na Escola do Art Institute of Chicago, é autor de uma vasta bibliografia no campo da História da Arte e dos Visual Studies que tem por um lado focado uma reflexão sobre a prática historiográfica e por outro tentado prestar atenção a temas que são habitualmente ignorados ou considerados incómodos por essa prática. É autor de livros como Pictures and Tears, Our Beautiful, Dry, and Distant Texts, What Painting Is, On the Strange Place of Religion in Contemporary Art e prepara-se agora para publicar What Photography Is. Organi-

zou também os volumes resultantes dos encontros no Stone Summer Theory Institute de Chicago, como Is Art History Global? Esteve em Lisboa no fim de Novembro de 2009 a convite da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde, além de ensinar um seminário de doutoramento, proferiu uma conferência pública com o título “Conceptual problems in the study of art criticism, history and theory”. Esta longa conversa teve lugar por ocasião dessa visita.


Entrevista

JAMES ELKINS

COM

CONDUZIDA POR AFONSO RAMOS (AR), JOANA CUNHA LEAL (JCL) E MARIANA PINTO DOS SANTOS (MPS)

JCL: I’d like to begin by asking you, aren’t the conceptual problems in the study of art criticism, history and theory virtually infinite? Probably. But it should be said that I didn’t choose that conference topic because it is infinite. The most challenging problems are the ones that people don’t recognize as problems. On top of that list, for me, is the material nature of the art object, because art historians are full of ideas about materiality, but the discourse of art history actually doesn’t get very close to the substance of the artwork except in very rare cases. Here’s a nice case in point. The Stone Summer Theory Institute in Chicago in July 2008 was called “What is an image?” At the conference, the French art historian Jacqueline Lichtenstein was trying to tell everyone that art history does not take paintings seriously as material objects; her example was French 18th and 19th centuries oil painting. According to Jacqueline, art historians are really only always talking about pictures, even though in the 19th century there was a discourse exemplified by people like Huysmans and Zola, in which the painting’s

materiality was acknowledged. That was met with silence, basically, because no one at the seminar was much interested in descriptions that sounded like they might have become detached from art history – Zola’s poetic descriptions, for example, as Jacqueline was quoting them. Often enough, if you start talking about individual brush marks in a painting, you risk being seen as a formalist, because it seems you’re no longer dealing with a social context. I consider myself out on a lunatic fringe on this issue; my book on that subject called What Painting Is goes into much more detail than people like Zola do. The point I made at the conference is that if you try to attend to the materiality of a painting, for example, on an inch by inch basis, you do not necessarily become a formalist. What happens is that the connections between what you’re looking at and anything that has historical meaning become more and more difficult to find. So the speed of your writing and the speed of your thinking slow. It can seem as if that kind of seeing is sequestered away from historical concerns, but I don’t think it is. It just takes so long, and results in so few insights, that it can appear to be “merely” formalist.

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I think one of the few scholars who really care about this in historical terms is Tim [T.J.] Clark; in many different texts he tries to slow his own looking, and attend to the matter of the painting itself, to the point where his reading almost stops. There’s a passage in Farewell to an Idea on Pollock’s Number 1, 1948 in which Clark looks at a little red hook of paint that’s in the upper center of the painting, and makes a claim about its importance. In another chapter, one on cubism, he looks at a little bit of a painting by Picasso, a passage just a quarter of an inch square. At moments like that I have the impression he feels that there is a kind of a limit case to the historical perusal of the inch-by-inch matter of visual art. If you get too close, your reading in terms of art history actually slows down, almost to a stop, and at that point there is a break. You can then go on and do something else, which he chooses not to do, because he wants to remain within art history. (The book What Painting Is has all kinds of problems, and one is that it forgets history all the time.) We were talking, earlier, about what might be the most difficult problem in art history and visual studies. Perhaps it is problems like this that don’t appear as problems. Because academics often feel that they are good at naming problems, and they feel that the framing of the problem is sufficient to articulate the working issues around it. So materiality has a huge literature. But that literature, from this point of view, doesn’t help. The issue is what happens when you try to put your sense of an artwork’s materiality into words. How much of the sum total of art historical and critical literature captures or embodies the artwork’s materiality, as opposed to simply pointing at it, defining it, speaking about it in a general or abstract sense, or finding social contexts and meanings for it? JCL: I would turn this conversation toward the question of theory, the relation between art history and theory. You have made a thorough analysis of the kind of impact theory can have on the common practice of art history, considering the dominance of – or at least the temptation of producing – an archival art history. In your book Our Beautiful, Dry, and Distant Texts you present a new term:

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metatheoresis. I believe that this kind of analysis is vital to the contemporary practice of art history, since there isn't much archival work left to be done as it has been well recognized since the beginning of the eighties. There is that famous article by Henri Zerner... My own dissertation supervisor E. E. Rosenthal, used to say that Renaissance art is not a very promising study field because it's like a meadow that has too many sheep on it, and the grass is too sparse. He was thinking not about archival but iconographic studies, which he thought had reached their end point. JCL: Yes, that's included in my understanding of the common practice of art history. But isn't this appeal to theory constitutive of a significant part of the discipline from the beginning? In what sense, for example? JCL: For example, we tend to separate the common practice of art history from theoretical writing which lies at its foundation. I'm thinking about the work of the first art historians, the ones that worked most in defining the discipline, from Riegl to Wölfflin, but I can also mention Burckhardt or even Panofsky. The appeal of theory is right there, in the first texts and on the most relevant art historians. Because when you consider the common practice of the discipline, it seems that the only work deemed acceptable would be an iconographical analysis or the positivist archival practice... It's a difficult subject, I think, because I wouldn't disagree that there are theoretical moments in Wölfflin. Of course in the Principles he starts with that and in his essays. And there are overtly theoretical moments in Panofsky. But there are two things to be said about this: one superficial and the other perhaps not so superficial. The superficial answer would be that the theoretical


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moments in those writers are exceptional, unusual. Panofsky is exceptional in his generation for writing, in the beginning of his career, a number of theoretically inclined essays on subjects such as artistic volition. And also in the collection Meaning in the Visual Arts, where he thinks about his time in the United States [“Epilogue: Three Decades of Art History in the United States. Impressions of a Transplanted European", Meaning in the Visual Arts – London, New York: Penguin Book, 1983, pp. 368-395 (1st ed. Doubleday, 1955)], he considers his theoretical essays and says something like “of course I don't write this way, I don't use this when I write”. So, for the first generations of twentieth-century art historians, theory was optional both in the sense that an historian might opt not to meditate on his or her philosophic position, and also in the sense that such meditations could be seen as detached from the work of art history. That's a superficial answer because, so it is said, theory already exists everywhere. The most difficult question here for me is not whether this argument makes sense or is fruitful, but why it is made to begin with, because every time I’ve heard versions of this argument in the past, it's been made from a post-structuralist point of view in which no discourse exists without theory. In other words, from a position that shouldn’t require the argument to be made to begin with. Yet, it's of interest from a certain standpoint to demonstrate that theory runs through other practices. From here, there are many paths you can take. You can say the presence of theory in texts is a sub-textual question, even a question of the unconscious, so that any full or close reading will reveal theory, but from my point of view the interesting question is the motivation, which is to show that there isn't a demonstrable distance between the older art history, what I call normal art history, and contemporary art historical practices. One of the things that I did in Our Beautiful, Dry, and Distant Texts was to suggest in a very straightforward way that there is a difference between normal art history, with its sense of its distance from theoretical reflection, and contemporary art histories, with their insistence that theory is everywhere in texts. I did this in two ways. One was to say: Look in your library, see how many journals there

are that actually mention Lacan, or the theorist of your choice. That is a bibliographic way to demonstrate the two kinds of art historical practice. The other way, which I still think is perfectly plausible, if somewhat aggressive, is to say to people: If you think that there is no difference, can you write something that will be accepted by, let's say, the Burlington Magazine? Often, I think, the answer will be no. It’s hard to write for those normal art history journals; just because you can demonstrate the existence of unvoiced theory in those texts doesn’t mean you can reproduce their practices, which are very different from current practices. Hence, art history really can be divided into practices with and without theory. JCL: I can tell you my motivation and it has to do with the relation to visual studies. It seems like art history is the poor relative. And visual studies act like the old challenging theoretical stances coming from fields other than art history, when it's not the case... Actually, some of the most interesting and challenging subjects discussed in visual studies spring from art history. For instance, even with Wölfflin, when he proposes an art history without names, that would certainly please many structuralists. What counts as visual studies in your question? Visual studies implies a certain position or relation to theory which is different from the positions that art history proposes. Visual studies is meant to replace the disciplinarity and the specialties of art history. It replaces specialized bodies of knowledge with knowledge of theory, so theory exists differently, and for a different purpose, in visual studies. That can create problems for comparisons of the place of theory. MPS: Nevertheless, in your writings you seem to oscillate between the two fields, visual studies and art history. Do you consider yourself an art historian or are the boundaries between art history and visual studies difficult to establish? Where are the boundaries?

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I can answer that in a very straightforward way. In terms of visual studies, I am very skeptical of a lot of things, not just those that I’ve written about already. I’m planning a conference two years from now called “Farewell to Visual Studies”. (Chicago, 2012; see www.stonesummertheoryinstitute.org) I’ve heard a lot of problems and complaints about the way the field has developed all around the world. In terms of art history, I have never been a proper art historian, I have never been a well-behaved art historian, because, as a reader of a manuscript pointed out years ago, I have never written a monograph about a single artist, which by the way Gombrich never did either. Most recently someone characterized me as a meta-theorist of art history, meaning that I’m not even theorizing anymore, I’m just observing other people’s theories, right? So, in terms of relative disaffection with the disciplines, I’m relatively disaffected with visual studies than with art history, which is more differentiated and in some ways less disciplinary than the allegedly interdisciplinary visual studies. AR: You just mentioned Gombrich, but I remember that he didn’t consider himself as an art historian, but rather as a “commentator on art history”. Yes, that’s right. You know, when he died there was a proposal that the College Art Association (CAA) in the States had to have a web site with a forum on him, but it never happened. And they asked me to write an essay to start the conversation and the essay is called “Ten Reasons Why Gombrich Is Not an Art Historian”; it has recently been re-written and published in Bratislava, in Ars. I don’t think Gombrich would disagree with anything in that essay. He was very clear about his relation to what he thought of was art history. MPS: I was just going to ask a question related to the previous one because visual studies seem to operate a leveling of subjects while art history basis itself on distinction. Do you agree that the key question in differentiating one from another is a

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question of value? And why do both have difficulty in assuming they operate with value? Yes, to the first question. Along with the function of theory in the discipline, I think that question of value is the other major determinant of what visual studies could be. If visual studies is going to be coherent, if it’s going to be a discipline, then value is definitely the major criterion. The problem is that I know only very few people around visual studies who live and act and believe that there are no distinctions between low and high art or between any kind of visual object and fine art object. That’s a problem which I think is so widespread that you could almost use the failure as a sign of what visual studies is. MPS: And do you believe in it? You mean, do I believe that there is effectively no distinction between high and low? Well, not in the sense that people like Fred Jameson and Victor Burgin do. For me, there is a slightly different issue involved here, which people like Fred Jameson aren’t interested in, and that’s the place and value of non-art images. When comes to the distinction between high and low art, I doubt many people truly experience the domain of images as a continuous mixture; I know I don’t. But when it comes to the distinction between art and non-art, I would be happy to say that I think there is potentially no difference in richness between the Mona Lisa and a map. JCL: It depends on the map… Yes. I wouldn’t say a table of numbers, for example, could be that rich in meaning. There are limits to this, but the limits are much farther afield than most people think. I’d be willing to say that an electrocardiogram could be as rich as a painting. And richness is not a random word, because richness is one of the substitute words for value. This word richness was brought to my attention by Charles Altieri, a scholar of modern poetry and literature in Berkeley (he used to be Chair of the Art Department there). He used the word richness as his main criterion for discrimi-


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nating what he should look at in place of value or quality. I am not at all interested in wondering if a cigarette ad in a glossy magazine could be as rich as the Mona Lisa. Potentially, sure. But in fact, in the historical record, any number of the pictorial practices could require the same number of words as the Mona Lisa if it’s a matter of providing a preparatory contextual description and inventory of meanings. MPS: But surely the kind of richness that you find in a cigarette ad or in an electrocardiogram, must be altogether different from that of the Mona Lisa? You feel it has to be different? MPS: Yes. And how would you justify that? MPS: Perhaps because the Mona Lisa, or any other painting, has a background of cultural relations attached that other things do not. It’s not just the object. Now you’re shifting the operative term from richness to cultural value. Back to value, in other words. So value and quality, the two modernist tropes… Well, let’s take a more concrete example, the supposedly biggest printed atlas of the world, the London Times Atlas. I read somewhere that it has something like 200 million discrete names in it. To those 200 million you’d have to add all of the ultimately unspecifiable spatial relations that come when you have those names not only indexed at the end of the book, but also placed in the individual maps. So, for a nominal, verbal equivalent of the London Times Atlas you have, let’s say, a 200 million word essay. Well, if you switch from richness back to value, it’s not the same. But if you stay with richness, you have a problem. And the reason why people like Altieri prefer richness, prefer artworks they perceive as rich in meaning, is because value is part of the modernist aesthetic.

JCL: We have reached what I believe to be the key question of art history, because if you push art history to its boundaries, it deals with value and nobody knows exactly where value comes from. We are talking about things that are too big for one conversation. But value is a problem in art history, in a way that it is not in art criticism. For Greenberg, value is not a problem: value is the given. And if the business of the critic is creating judgments based on value that’s a straightforward business. I mean, how it gets done is different but the objective and the purpose of the criticism is clear. But I wouldn’t say that art history deals with value, it avoids value. It is predicated on value but it avoids value. You study Rubens because you think that his value is ultimately related to the culture. When you study him, you don’t actually deal with the value, you assume the value. In fact, if you dealt with the value you wouldn’t be an art historian, you’d be a critic. Take for example Picasso’s idea that Rubens was a cartoonist. He said something very derogatory along those lines. Well you can’t believe that about Rubens and be an art historian. Art history is actually predicated on avoiding the question of value. It deals with it only in the sense that its concern is other people’s valuations. * AR: In Pictures and Tears you remark the lack of emotion of many contemporary viewers in contemplating a number of artworks that should be able to move us to tears. Do you think the opposite case could be argued, that with modernism and post-modernism that kind of overwhelming emotion hasn’t always been a priority for artists? Yes, I argue that in the book. I’m not advocating that everybody should bring a handkerchief with them to the museum because there are periods in which the artist’s intention doesn’t include the full range of passions. And definitely large parts of the last hundred years have fallen into that range. So the claim in that

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book is that if you’re an art historian and you study periods in which passion, emotion, or effect were at stake and you haven’t felt something, then there is a problem, and that problem has an historical significance – it’s significant to the study and writing of history. I don’t say anything about periods, times, and places where people haven’t generally felt strong passions in front of artworks, except to say that strong emotions are always possible on the continuum of responses to art. I think of affective responses as a bell curve. If the majority of responses to a given kind of art fall under the middle of the bell curve, and if those responses are relatively emotionless (let’s say the subject is a Carl André floor piece, something that provokes thought more than passion), then it is still possible to be what statisticians call an “outlier,” someone whose response falls on one of the “tails” of the bell curve. The point of that metaphor is to claim that responses are continuous, so very strong responses are actually tied to normative, “tearless” responses. They are not the solipsistic reactions of psychologically unstable viewers (as some critics have said). So if you’re looking at a work that’s full of emotion, a sublime landscape or something like that, and you feel strongly in response, you would be in the normal group of respondents. If you choose to respond by writing an academic essay about the concept of sublimity, your response might be relatively dispassionate, but it is still linked to – provoked by – the kinds of response the artist intended. In that way intellectual, “cool” writers like Joseph Koerner can say interesting things about artworks that were intended to elicit much stronger responses, and vice versa: the “teary” respondents in my book can still say something about artworks that were not intended for such responses. Koerner’s account of Caspar David Friedrich is scholarly and intellectual; mine, in Pictures and Tears (which I gather he hasn’t read) is a kind of opposite. On the other hand, if you’re looking at a Joseph Albers painting (a work that does not normally provoke strong, passionate feelings) and you feel something very strongly, then you’re way off into the “tail end” of the bell curve, but your responses are linked to the rel-

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atively passionless majority. It’s not the same thing as saying that everybody is missing out of not crying when they see Joseph Albers. AR: But someone like the Scottish artist Ian Hamilton Finlay strongly criticized what he considered to be a lack of affection in contemporary art. If there’s any truth to it, then people must be learning a new position towards art, more intellectual and emotionally disconnected, so that the art produced today directly affects the way we are looking at the art of the past. Oh, definitely. That’s an art historian’s disease too, by the way. There’s a problem with having a career as an art historian in this regard, because everyone starts out knowing which art they love, and the longer that they’re employed as an art historian, the more they’re asked to teach a wider and wider ranges of cultures and art, and after a while they can end up like Panofsky, who could look at an enormous range of art practices with equal sympathy, equivalent understanding. He claimed that he only knew an archipelago – the line is something like, “My knowledge is like an archipelago: most of it is under water.” Of course that’s false modesty because by the standards of his generation, he knew everything. But he knew it in a way an art historian would know it, that is to say, with a very articulate but ultimately even attachment to all cultures, developed from a study of their own terms and discourses. That’s an illness in art history from which there is no cure except unemployment. MPS: You claim that we must read everything: science publications, neurophysiology publications, art publications from all over the world. And that we must practice art or at least that we must learn how to draw. Aren’t you demanding an impossible super-specialist? Well, let me separate your question into three parts: the idea of reading everything, the interest of science, and the claim that art historians should learn to draw.


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My reasons for saying that you should read everything have to do with things that I’ve learned from doing these conferences in which I get a whole range of participants to talk about one question. I found that in any given specialty having to do with visual arts, a certain set of issues keep coming up over and over again. The best way to change that situation is by asking people to read more widely in their field. The idea of reading more widely has two purposes: it can introduce new concepts and problems; and it can prompt people to look more deeply into their own specialty, to address questions that have conventionally gone unsolved. Within particular identifiable fields like art criticism, for example, there are issues that have been dealt with seriously and others that tend to be ignored or left unsolved, and are therefore raised over and over again. In art criticism, for example, very few people have read the philosophic literature on the nature of judgment, even though it is central to art criticism; and the result is that certain debates get repeated over and over. It’s also the case that few people have read critical literature outside the usual nineteenth and twentieth-century critics, and if they did criticism would expand in unpredictable directions. This double problem doesn’t happen in science, which as I hear it is the second part of your question. It can happen in science that someone raises an old problem, something long ago asked and answered, but then that person will effectively be sent to a library to look up the literature. Reading and looking widely in art history and criticism is the analogue of studying all kinds of creatures in biology. Biologists don’t just prefer large warm fuzzy animals like tigers and lions; they also study bacteria, because bacteria are more common. So if the commonest kind of image is a chart or a graph and the rarest an oil painting, we should be looking at charts and graphs. It’s really that simple. I know this doesn’t answer your implicit question: Why read science? But the answer there is actually very simple: most images that are produced within the university are made outside the humanities, and most theorizing about vision takes place in cognitive psychology and neurobiology, not in the humanities. so if we don’t read

science, we’re not participating in the full conversation on the visual world. And then I would also separate both these issues (of reading everything, and of science) from the issue of whether or not art historians should draw. That, for me, is an ongoing problem and, even though I published a little bit on it, I have a lot that I haven’t published because I still can’t figure out how to pose it in such a way that art historians would pay attention. When I say art historians should learn to draw, I’m taking drawing as a synecdoche of all kinds of activities. Art historians who haven’t practiced artists’ techniques are apt to make claims that are astonishing and bewildering to artists. This is not at all to say that it’s important that everything that gets written as art history should be acceptable to artists. Of course not. It’s more a question of stopping art historians from being so confident that artists are in complete control of their projects and therefore susceptible to a thorough or systematic interpretation of all the details of their work. And it’s a matter of being more realistic about what is and isn’t understood at the time of making. MPS: That relates to my next question. But I’m afraid you might get mad at it. It’s not very likely I’d be mad at it. MPS: I have briefly studied the reaction of art history to David Hockney’s book Secret Knowledge… Oh yeah… [LAUGHS] I’m not annoyed… MPS: And I understand how annoying the media coverage was and all of the sensationalism brought about by the book. What I thought was that the thesis could however be worked out seriously by art historians if they were to discard the prejudices and the errors of Hockney. And what I would like to ask is: wasn’t the art historians’ reaction a bit corporative?

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Maybe. That big NYU conference in 2000 was amazing – the biggest art history conference in my lifetime, in terms of popular and media interest. Most art historians were defensive because journalists were entirely on Hockney’s side: the journalists were happy to be able to tell their readers something which they could then take to a museum and use. But the defensiveness was, I think, largely based on a feeling that art history as a discipline was being misunderstood, because Hockney’s interests are purely technical and optical and to call that kind of interest a minority in art history is almost an exaggeration. You have a few people like Martin Kemp or John Gage, for whom the scientifically verifiable facts and circumstances of Western representation are the object of study. But in the 2000 conference there were scholars of artists like Caravaggio and Brueghel who look at many things other than technical prowess – and when they do look at technical prowess, it’s to understand cultural values, not the production of naturalistic images. Hockney is way, way off the scale of interest of contemporary scholarship. To answer your question: I’m a little hesitant to speak for a large group of art historians who decided for a wide range of reasons to participate in that conference. But my sense of it was it’s not so much that Hockney’s work was wrong, as that Hockney seems to be substituting his own painter’s technical concerns for the reasons why art historians are interested in Caravaggio and other artists. I have been shadowed by Hockney’s collaborator Charles Falco and a scientist who argued against Falco, David Stork. Ever since the conference I have been getting emails saying: “Here’s my latest finding on the scale of Pollock’s gestures, interpreted mathematically,” or just “I’m coming to Chicago. Can I lecture at the Art Institute?” Both Falco and Stork have made actual discoveries about the way the perspective works in certain pictures. But that doesn’t seem to have any point of contact with any art historian’s interest, even in perspective. And there are very few of us interested in perspective anyway! MPS: You said that those kinds of investigations around the Hockney-Falco thesis would probably

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go on in magazines like Leonardo. And there was an article published precisely in Leonardo in 2003, that tried, not to prove Hockney’s thesis, but to understand when it would have been possible to use that kind of mechanisms, the mirror… And he advanced circa 1580, as the date in which that kind of things were possible. Just before the camera obscura. MPS: Exactly. And in 1589 there is a description of the mirror being used with the camera obscura in a way that they could project images with much more definition. This is in a book by Giambattista della Porta. JCL: Magia Naturalis. MPS: Well, that book had two editions. In the first one he talks about the effect of the mirror and in the second one, after the invention of camera obscura, he talks about the effect of the mirror with the camera obscura. And the author would use it to produce magic and theater performances. The point is that it is in fact, as you said, in Leonardo magazine that these kind of things are discussed and they seem to have no repercussion and no interest to art history. Why is that? MPS: That is my question to you. I’ll tell you a story. You know Douglas Hofstadter? He wrote a book called Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid. He’s a scientist and he writes very popular books, sometimes bestsellers, which are, as you can tell by the title of that book, mixtures of mathematics, science, and art. Hofstadter came to a meeting of the American Society for Aesthetics (ASA) some years ago and presented a piece that he was doing in collaboration with a computer scientist. They had developed software where if


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you play a little bit of Mozart to it, the computer will compose a Mozart piece for you. What he had done was he had played it some Rachmaninoff and then had the software produce Rachmaninoff pieces that never existed. He played us five pieces, all played by a human pianist; three of them were really Rachmaninoff and two of them weren’t. He asked us to vote after each one. Most of the audience was fooled each time. He got very stern with us and said “You’re all aestheticians. You should really have gotten this right. You should have known what was Rachmaninoff and what wasn’t.” And he said, “So we’re improving this software all the time and sooner or later we’re going to get to the point where we can fool the world’s foremost Rachmaninoff expert with our computer generated Rachmaninoff. Then,” he said, “we will be in possession of the true explanation of Rachmaninoff”. At dinner, Joseph Margolis, who is an aesthetician, and I had this argument with Hofstadter. Our claim was that if he did do that and produce the perfect Rachmaninoff forgery, his computer code would not be an explanation of Rachmaninoff, it would just be computer code. The computer code would not contain words like romantic and sublime, which are necessary for what we consider to be explanations of Rachmaninoff. Therefore the code, the software, would not count as an explanation of the composer’s works. Hofstadter wouldn’t budge. He said “No, I’m sorry. It just means that my explanation would be more accurate. It’s the way science works. If you get a better explanation, you can give up the other explanation”. So that argument didn’t go anywhere. This is my response and it’s my explanation about Leonardo too. Leonardo could explain every millimeter of some perspective picture and it still might not have anything to do with the reasons it is valued in the rest of the literature. MPS: I understand that’s the kind of approach of Falco – the scientist who reveals the secrets of painting – and it is of course rather sterile. But I think Hockney’s view wasn’t like that, I think it was a passionate view about the paintings.

Well, it was passionate, but it was in terms of optics. So how does it change it that he was passionate? MPS: I think this kind of information could be used by art history and could be related with another kind of reflection and discussion. It could be. I wouldn’t even deny there could be a few of these examples, but not many. I think that Hockney is a marginal figure. Like John Onians, from East Anglia, who has for years been pursuing a kind of neurobiology of vision; he has just published a first book on this subject, called Neuroarthistory and he’s going to come out with two more volumes soon. I’ll give you another brief story to illustrate the marginal nature of optical and scientific studies. Onians works in the World Art Studies Centre in East Anglia. I sat in on a seminar one time with him, three students, and me. And they spent an hour or an hour and half in the seminar reading a paper by a scientist about Mondrian. The paper claims that the evolution of Mondrian’s paintings follows the development of the processing of the image in the visual cortex. Early Mondrians are all organic, then things fall into geometric form and then finally they’re just verticals and horizontals. And in the visual cortex this is the way that things are processed up to a certain point. There will be neurons that will be looking for vertical and diagonal elements and different primary colors and so on. So I listened through this whole thing and I said at the end to John: “Look, I don’t want to interrupt your seminar. This was your seminar and it’s your program and I’m just a guest. But I don’t see how any of this is helping us to understand Mondrian as he is currently understood.” And John said “I agree with you. It’s not very promising, this particular article.” And then he said something brilliant: “That article doesn’t do much, but wait twenty five years and science will own art history.” * JCL: I would like to introduce a different subject now, your praise of the irrationality of art history.

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I’m thinking about the chapter “The Theory of Meandering” in your book Our Beautiful, Dry, and Distant Texts. I don’t like to pose as the misunderstood author because that is such a common pose and I don’t think that I am misunderstood much of the time. But I haven’t heard from anyone who read that book the way I intended it. And I am also not the kind of person who says it’s the reader’s fault. Sure there are many things wrong with that book that prevented it from being read the way I intended it. But one of my intentions was to say that what I was calling normal art history, for which theory is an unnecessary addition, is richer than what theory imagines its interaction to art history to be. JCL: While we are on the subject, I was always curious to know if you consider T. J. Clark’s work an example of normal art history? No. At the time I wasn’t thinking of him at all and I wouldn’t include him because what I meant by normal art history was, to put it emblematically, writing without Hegel in the footnotes. The irrationality I praise in normal art history follows in part from the richness of a practice that depends, often, on Hegel, but does not cite him. It seems to me some really astonishingly wonderful texts have been written in this manner – excluding what is perceived as theory – going back to the beginnings of the discipline as it identified itself, in the 19th century. These texts by people like Roberto Longhi and August Schmarsow can be amazing. What is taken as their complexity by theoretically-minded contemporary readers is of the same order as the complexity of a novel as it appears in the hands of a literary critic. Theory, as we see it, was not necessarily present. It didn’t need to be articulated and often wasn’t recognized at the time of the making of the text. So, necessarily, when you’re in that kind of situation your practice meanders, and theory has the virtue of picturing itself as something that is transparent and is controlled by

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the person who is deploying it. But practice in the sense that I am meaning, it doesn’t have that luxury. For me, there is a parallel here with the book I wrote on art instruction, Why Art Cannot Be Taught. At the end of that book I got some criticism for having said that studio art instruction is so deeply irrational that I don’t actually have any proposals to change it. What’s much more interesting is to study it, which I have tried to do in that book, just to try and understand a little bit more of it. But you can’t intervene with any confidence in a practice which is so entangled in lack of self-awareness. JCL: But you do believe that we have to invest in creating a conscious background for the contemporary practice of the discipline, studying methodological… Yes. I think if you claim in your practice as an art historian to be doing certain things whether or not you count them as theory, then those are things which you are, as far as I’m concerned, more or less obligated to attempt to understand. That doesn’t mean you’re actually going to make their operations in the text clear, and it certainly doesn’t mean you’re going to improve your practice by elucidating them – even if you could. That’s why I like to say to students who are struggling over Lacan or some other theorist, that theory is easy. Theory is the easiest part of art history; it just appears to be the hardest part. Once you take the trouble and make the effort to learn it, theory always presents itself as transparent to itself. What is not transparent is, you might say, what’s around it, as people from Freud onwards has said in many different ways. That means that what’s left over, all the other things that don’t present themselves to you as objects of philosophic enquiry, are really the interesting things, as far as I’m concerned. There aren’t many authors who are concerned with this issue – recently I’ve discovered Alain Badiou’s “inaesthetics,” which comes near this: he’s concerned with how philosophy and artworks might mutually discover one another, rather than the usual situation in which


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philosophy mines art. (His position has been well critiqued by Jacques Rancière.) * AR: I’d like to know your views on the idea that nowadays art has lost the power to communicate on itself. Or, as Adorno famously put it, “Today it goes without saying that nothing in art goes without saying”. Do you think that, broadly speaking, art is more in need of criticism than it ever was? Some art. Some modernism definitely requires discourse and that’s been under development ever since the beginning of modernism. But you could easily argue that there is no clear time limitation on that particular requirement: discursive contexts that support sand elucidate art existed before modernism. But as a way that art understands itself, critical discourse is relatively recent. The conditions under which artists could say, “You need this text in order to understand this work,” are relatively recent. That didn’t happen with Byzantine icons, for instance, although you could easily claim that a Byzantine icon requires an interpretive context of a complexity that is compatible with contemporary academic discourse – as in the work of Marie-José Mondzain. AR: Considering the endless, ongoing proclamations that painting is dead, do you think this crisis is really in painting or in the critics’ inability to judge it? Someone like Luc Tuymans for instance, complains that from a painter’s perspective this discussion just doesn’t make any sense at all. Well, I don’t think it’s a problem at all. It’s only a problem if it stops somebody from making work, or prompts them to switch prematurely from painting to video art, or some other medium. Otherwise it’s not a problem, it’s a trope in the discourse of modernist painting. The “death of painting” is built right into painting; the his-

tory of modernist painting is characterized by a motion of continuously diving toward the “death of painting,” coming back from it, and diving towards it again. The “death of painting” raises exactly the same issues as the recurrence of the monochrome. From many different perspectives and for many different reasons the monochrome keeps presenting itself as an option; people return to it, and then go away from it. Hence in conferences about the death of painting – and I’ve been in a number of them – it seems to me the first thing to do is to look at the immediate context that surrounds the asking of the question and find out why it is that painting seems suddenly to be hopeless, historically exhausted, or terminal, and then to just get on with painting. This idea of taking the death of painting seriously is a little bit like learning a language but missing out on a really important word like the verb to be. Then you really have problems. AR: So in the end, could we all agree with Salvador Dalí when he wrote “painting is dead – long live painting!”? At the moment, one of the ways painting dies is by dismembering itself. There’s a trend in the last five or six years to make paintings that are parts of paintings. You take two pieces of the stretcher bars, tear off the other two, put a bit of canvas on them, throw them on the floor, step on them a few times, and after a while you get little pieces of dismembered painting lying around... but those fragments are still painting. There’s a great essay on this subject, by Stephen Melville, in the book called As Painting. What he says there, essentially, in a very abstract but interesting way, is that after minimalism, painting has had to reinvent itself in much more radical ways than had been necessary before minimalism. For example painting has had to re-imagine itself as something that is not singular, but multiple. Many different kinds of things can now be called painting that couldn’t be called painting before. The reason to stick with painting is because ultimately the discourse of painting is the one that is most deeply rooted in Western critical writing. And so, even if it’s necessary to

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completely reinvent what you want to call painting, it’s still useful in the end to keep that word painting.

Yes. If you’re constructing concepts then in that context judgment is not pertinent.

AR: You’ve also tackled the conspicuous lack of judgment in present criticism. Is it something specific to art criticism or could it be extended to, say, literary criticism?

*

I think it’s specific to art criticism. It’s worth saying that if you’re a novelist, you can be attacked in the most vicious, personal way in a newspaper. AR: And why do you think that isn’t the case with visual artists? The superficial answer is the art market. If the art market has so much to say about things then it’s not very likely that the newspapers would want to publish something that says, “This new work is absolutely nonsense.” If Pessoa’s editions were selling for a million Euros each they would probably attract some criticism, but basically there would be a lot of industry and market on board. So that’s the superficial answer. I don’t know if there is a single, deeper answer, unless it has have to do with what’s taken to be the nature of the visual–that it is somehow outside argumentation. A deeper answer would also have to do with the heritage of romanticism, because if visual art exists to express inward thoughts, then who’s to say your inward thoughts are wrong? And much of contemporary visual art is, in that particular sense, a heritage of late romanticism. If you were to compel me to come up with a more detailed answer it would have to do with those two things. But that’s a puzzle through the whole book What Happened to Art Criticism? Nobody really knows why art criticism is non-judgmental. The standard post-structuralist answer is that conceptual art forced that change. JCL: And therefore the most interesting thing to do is construct the argument and you don’t have to express an opinion, a judgment?

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MPS: You have also been very interested in studying the place of religion and emotion regarding art historical discourse. Could you talk a little bit about your interest in these subjects? I’m still very involved in that. Just last week I accepted an invitation to a Christian scholars’ conference in a university few people have heard of: Lipscomb University in Nashville, Tennessee. The topic, as usual, is this: Is religion accepted in the art world and, if not, why not? It’s a huge issue. After writing this book [On the Strange Place of Religion in Contemporary Art, 2004] I’ve been invited to a lot of Christian colleges. I’m very interested in them because almost invariably what matters in those contacts is your commitment. In an art history conference no one ever asks you why are you spending your life studying your chosen specialty. If they do ask, you can give them nearly any story. If an art historian studies Mondrian, for example, and she is asked why, she might say, “You know, I went to Amsterdam when I was ten…” and so forth. But in the religion conferences the strength of your commitment to your profession is second only to the strength of your commitment in faith. You need to have a good, thoughtful, reflective answer to the question, “Why do you specialize in Mondrian?” because your thoughtfulness on that topic is a mirror of your thoughtfulness on your religious beliefs. I find this exhilarating and wonderful. The first conversation that has to happen is: “What is your faith?” And I get to say I am a lapsed Jewish boy. I was Jewish when I was ten. What am I now? Nothing. It doesn’t matter what I answer. What matters is the sincerity of the answer. Then people will raise what is to them the really difficult question: What is the relation between commitment to art and commitment to religion? Can commitment to art be a calling? Or does it have to be something lesser? Does it have to


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be just affection? I find that kind of conversation just great, much more whole than the discourse of academia: your whole self is engaged.

about passionate responses to artworks). This, I think, is the crucial question for all academics in the humanities: Do I have a voice of my own?

MPS: That concern of yours with passion and emotion within art history frequently reminds me of Daniel Arasse’s writings, and I’d like to know what you make of them.

* MPS: In what way do visual studies relate to the museum?

I think they’re wonderful, and when you were mentioning him earlier, I was going to mention Jean-Louis Schaeffer who I also think is great, especially, to my mind, because he write so passionately that he is on the edge of a kind of writing that isn’t history or criticism. You could say that basically what I’m trying to do at the moment is split two kinds of writing as far apart from each other as I can get them. All these academic conferences and public lectures – I’m trying to keep them very far away from my more personal writing projects. The book I’m writing now is called What Photography Is. It’s written against Camera Lucida 1, and I’m trying to write it in as weird as possible a way. I want to take writing itself as seriously as Barthes, Schaeffer, and other authors have done, and the only way I can feel sufficiently free to do that is to make a big division between that project and those texts that have footnotes – the ordinary texts that come out of conferences and public lectures, the ones that result in university jobs and lecturing invitations. In this photography book, I am trying to let the writing develop as it will, trying to let my own convictions find voice, trying not to write for an imaginary public of other academics, trying to find out what I really care about for myself. And to do that I need to risk writing books that will not be read, in academia or outside it. My own way of doing that is to split my academic work from these writing projects. Some of the themes you have asked about go in the academic direction (such as the question about neutrality in criticism), and others go away from it, in the direction of experimental, writerly responses (as in the question 1

Only in an uneasy way. Take for instance the famous Kirk Varnedoe exhibit, the High and Low: Modern Art and Popular Culture, from ten or fifteen years ago, special exhibits like Charles Falco’s motorcycle exhibit at the Whitney, or the Armani exhibit at the Guggenheim. Visual studies come into museums in those odd, miscellaneous, inventive, marginal ways, because the museum is about patrimony, patriotism, civic identity, and cultural heritage. It doesn’t fit the mobile, transcultural, ephemeral, commercial nature of much of what visual studies looks art. I spent a lot of time in our museum in Chicago, teaching classes where art historians draw and paint and obviously taking classes too. So I have a good idea of what average museum visitors say and think – a better idea, perhaps, than some people who rely on the polls that museums commission. I’ve heard people, for example, asking “How do you get out of the modern wing? I hate all this modern painting. What’s the way out?” I’ve seen them almost running out of the galleries because they’re “trapped” in modernism. I was looking at a Rembrandt one time and this guy came in with his two little kids and he said: “See that? That painting is not just hung, it’s bolted to the wall. Why? Because it’s worth six million dollars.” There was a pause for about a second, and then he said, “Okay kids, we’re going.” So, I think I have a very good sense of what a museum does for a community. Unless the museum works really hard, it is just a proof or token of general cultural value. Our big painting in Chicago, the Seurat Grande Jatte, is not understood by anybody outside a small circle of art historians. Even though we’ve had a number of special exhibits

Roland Barthes, La Chambre claire – note sur la photographie, Paris, Seuil, 1980.

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about it, the painting doesn’t mean much most people other than an emblem of Chicago’s stature. I mentioned polls because I don’t think curators, docents, and art educators always have a fair idea of the average museum-goer. This is a huge challenge as far as I’m concerned for museums: to try and make that connection and to produce meaning other than cultural pride. MPS: I would like to ask you if you feel art history will dissolve itself in visual studies, to close that subject. In my experience, yes. In most places I have visited that have a visual studies department or people who work more or less in the name of visual studies, it’s pretty consistent. Visual studies takes students away from art history. In that sense, yes, art history is in trouble. Conceptually, in terms of literature, in terms of what we were calling patrimony, no, art history isn’t in jeopardy. One thing we haven’t talked about is postcolonial theory, which in my mind poses the most direct threat to art history. Visual studies per se has different objects of interest than art history; art history is not competing, for example, to write about advertisements. But postcolonial theory directly competes with art history, because it is sometimes concerned about the same major art works, but from a completely different perspective. You have accounts of national traditions of modernist painting in postcolonial theory that completely avoid aesthetic criteria, except in so far as aesthetic criteria are the products of certain social constructions and socio-economic conditions. Why was Pakistani modernist painting valued in Pakistan in the 1960s? Well, it had to do with social-economic issues there that created a market. That’s a generally speaking post-colonial way of looking at that kind of issue. And if you do that, you cannot also, at the same time, in the same text, use the terms that art history employs, regarding value and quality, because they would have to be reconfigured as questions of society and economics. But purely institutionally, in terms of student numbers and funding, visual studies is the principal threat, because advertising is more fun for students than Michelangelo.

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MPS: But while we are on the visual studies versus art history subject, you say that visual studies should go back into the past, should go into antiquarian studies... Well, to me that’s a separate issue. One of the reasons I’m disappointed in visual studies is that the initial claim in cultural studies in the 60s in the UK was that cultural studies – what became visual studies – was the general study of cultural production – which became the general study of visuality. Visual studies has never made good on that claim. In fact, it’s restricted itself to a smaller and smaller set of subjects. MPS: Yes, because you say visual studies should go back into the past and study things like the curiosity cabinets, things you consider as the antecedents of the discipline. Absolutely. But I mean things even further afield than curiosity cabinets, which are now an accepted topic. Visual studies should look at the entire world of the visual: ordinary objects, craft, and – in terms of older European culture – popular visual imagery such as Nuremberg broadsheets. MPS: So why shouldn’t that be a recommendation for art history? For art history to broaden its field? It should be. The reason I address this to visual studies is because visual studies is the field that began more or less with the claim that it (visual studies) is the field that emerged after specialization. It’s the field that studies really production and perception of image and visuality in general. Art history has never made that claim. Art history has grown that way, as we all know from Riegl and Warburg, and it keeps growing. But it’s also become a trope within art history to praise the field by saying it has always grown in these interdisciplinary directions, away from fine art. Actually only a tiny portion of art historical scholarship is concerned with anything other than painting, sculpture and architecture.


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JCL: I have done some research on JSTOR and I found out that the Burlington Magazine was probably the only international publication in 1909, 1911, 1912, that published studies on Portuguese art. And one of the contributions is about the ox-yolks used in the north of Portugal. It’s a completely unexpected subject. That’s interesting. Was the essay published as part of the general sense that art history’s origins are in antiquarianism?

the growth of the art historical discipline, and not a lingering effect of the earlier antiquarian interest. I don’t see early twentieth-century art history gradually widening out from only the Mona Lisa through the Scythian belt buckle (Riegl’s famous subject), and I don’t see the contemporary discipline continuing to widen. What I see instead is, if anything, a narrowing. Look at Georges Didi-Huberman, he deals with a very particular set of fine-art objects. Even most interesting contemporary scholarship is not going from more Scythian belt buckles.

JCL: I don’t know. And perhaps back in the beginnings of the discipline the desire to construct the archive was really a broad invention.

JCL: I’ve read his last book about the Brecht albums [Quand les images prennent position, Èditions du Minuit, 2008]. And it’s about the idea that image prompts theory.

That’s quite possible. Well, you could use JSTOR to pursue that research. The 18th century origins of art history include antiquarian studies of coins, medals, busts and all sorts of things. A large number of articles in late 19th century in German journals – the predecessors, you might say, of the Burlington Magazine – are about silver, jewelry, and the whole range of things you can collect and own, such as candelabras and stucco. So before the connoisseur was the antiquarian. You would want to make sure the essay you found is evidence of

Interesting. My point here is that even someone like Georges is not studying oxen yolks. Most art historians don’t. Then there is the larger question of motivation for the claim that art history is expanding. Broadly speaking, we’re still studying painting, sculpture and architecture. JCL: We’ll see in the next generation! I hope you’re right!

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Resumo Este artigo traça a história da invenção e construção de dois lugares museológicos (um literário e outro real) na Florença da segunda metade do século XVI, chamando a atenção para o seu significado no contexto do saber da época. O projecto cosmográfico para o Guarda-roupa novo do Palazzo Vecchio e as Salas da Cosmografia e das Matemáticas nos Uffizi, oferecem a possibilidade de explorar dois sistemas semióticos que permitem explorar os processos de invenção e criação do museu como lugar – literário, imaginário, arquitectónico, epistemológico – no qual e através do qual se ordena e representa o mundo. O primeiro destes espaços é o projecto cosmográfico idealizado por volta de 1560 por Cosimo I, Giorgio Vasari e Miniato Pitti para o Guarda-roupa novo do Palazzo Vecchio, actualmente conhecido, impropriamente, como “Sala das cartas geográficas”. O projecto nunca foi concluído; porém existiu e continua a existir e a fascinar como “espaço literário” através de uma página visionária na segunda edição das Vite de Giorgio Vasari. O segundo lugar é a Sala da Cosmografia, mandada construir por Ferdinando I em 1589, juntamente com a contígua Sala das Matemáticas o da Arquitectura Militar na Galleria degli Uffizi. No centro do novo projecto expositivo, totalmente concluído, pela primeira vez, forma colocados os instumentos e livros cientificos e, implicitamente, o Homem como observadore demiurgo do mundo.

palavras-chave Museus História Invenção séc. XVI-XVII Florença Collecionismo científico dos Medici Galleria degli Uffizi Palazzo Vecchio, Guardaroba nuova

Abstract This article outlines the history of the invention and construction of two museum spaces (one literary and the other real) in Florence during the second half of the 16th century, underlining its significance in the context of the knowledge of the time. The cosmographic project for a new Wardrobe of the Palazzo Vecchio and the Cosmography and Mathematics rooms of the Uffizi gives us two semiotic systems that allow us to explore the processes of invention and creation of the museum as a place – that is literary, imaginary, architectural, epistemological – in which and through which one can organize and represent the world. The first of these spaces is the cosmograhic project conceived around 1560 by Cosimo I, Giorgio Vasari and Miniato Pitti for the new Wardrobe of the Palazzo Vecchio, today known as (inappropriately) the “Maps Room”. The project was never finished; however it did exist and still exists, and fascinates, as a “literary space” of a visionary page of the second edition of the Vite by Giorgio Vasari. The second room is the Room of Cosmography, ordered to be built by Ferdinando I in 1589, along with the adjoining Mathematics Room, of Military Architecture in the Galeria degli Uffizi. At the centre of the new exhibition project, which was completely finished, for the first time, scientific instruments and books were placed, as well as Man, implicitly, as an observer and demiurge of the world.

keywords Museums History Invention 16th and 17th centuries Florence Scientific collection of the Medici Galleria degli Uffizi Palazzo Vecchio, Guardaroba nuova


INVENTARE MUSEI PER ORDINARE E RAPPRESENTARE IL MONDO. LA GUARDAROBA NUOVA DI PALAZZO VECCHIO E LE SALE DELLA COSMOGRAFIA E DELLE MATEMATICHE AGLI UFFIZI A FIRENZE ANGELO CATTANEO Centro de História de Além-Mar, FCSH/UNL

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Questo contributo porta a compimento una ricerca iniziata nel 2005 con la partecipazione dell’autore a due progetti: “I Medici e le scienze”, patrocinato dall’Istituto e Museo di Storia della Scienza di Firenze (Camerota e Miniati 2008) e “La Sala delle Carte Geografiche in Palazzo Vecchio” (Cecchi e Pacetti 2008). Ai rispettivi coordinatori va il riconoscimento dell’autore. Fondamentali, per contestualizzare questo studio – pur con interpretazioni spesso divergenti da quelle qui proposte – i seguenti saggi citati in ordine cronologico: Berti, 1967; Allegri e Cecchi 1980; Findlen 1994, 17-151; Barocchi e Ragionieri 1983; Barocchi e Gaeta Bertelà 2002, vol. I, tomo I; Michelacci 2004; Camerota e Miniati 2008; Cecchi e Pacetti 2008. In particolare, risulta imprescindibile l’infaticabile e monumentale spoglio archivistico e documentale curato nel corso di oltre tre decenni da Paola Barocchi, Giovanna Ragionieri e Giovanna Gaeta Bertelà, sul quale poggiano le mie ricerche e quelle di chiunque voglia intraprendere uno studio sul collezionismo mediceo e la costruzione della Firenze del Principato.

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Vasari 1568, vol. II, 877.

Nelle pagine che seguono esamineremo i punti salienti della storia di due progetti museali fiorentini creati nella seconda metà del Cinquecento. Tenteremo di coglierne contiguità e divergenze, mettendone in luce il significato nel contesto dei saperi e delle pratiche che, a partire dalla seconda metà del Cinquecento, portarono all’invenzione del museo quale luogo per ordinare e rappresentare la complessità dell’imago mundi. È una riflessione che prende forma presso la corte granducale di Firenze e quella papale di Roma soprattutto, ma anche a Bologna e a Napoli, a partire dalle invenzioni e sperimentazioni di Paolo Giovio, Giorgio Vasari, Ulisse Aldrovandi, Ferrante Imperato, e dei loro committenti e mecenati, sulle modalità di narrare la storia universale (degli uomini illustri, della pittura e degli artisti, della natura) e rappresentarla per tramite del collezionismo nei musei e negli studioli 1. Il primo luogo che indagheremo, va sottolineato da subito con forza, è letterario: il progetto espositivo-cosmografico elaborato intorno al 1560 dal Granduca di Toscana Cosimo I, dall’architetto e regista di corte Giorgio Vasari e dal cosmografo Don Miniato Pitti, per la Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio, nota ora come “Sala delle carte geografiche”; un progetto grandioso ed enciclopedico per una macchina cosmografica mai portata a compimento durante il secolo XVI, che è esistita e continua ad esistere e ad affascinare in quanto tramandata da una pagina particolarmente enfatica nella seconda edizione delle Vite di Giorgio Vasari del 15682. Il progetto è diventato, da subito e prima di tutto, un caso letterario, il cui valore non risiedeva nell’essere stato

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realizzato – anche se molto spesso gli studiosi che se ne sono occupati sembrano dimenticarsene3 – ma nell’essere stato immaginato, raccontato e divulgato attraverso la stampa in un’opera di grande successo, se non fondativa, del secolo XVI. Il secondo luogo che prenderemo in esame comprende la Sala della cosmografia e la Sala delle matematiche, fatte costruire ed allestire dal granduca Ferdinando I tra il 1589 e il 1599, chiudendo un terrazzo nella Galleria degli Uffizi, inaugurata circa dieci anni prima al secondo piano del palazzo delle magistrature fiorentine di Vasari dal fratello e predecessore alla guida del Granducato, Francesco I. Questo secondo progetto portava a compimento – in una nuova veste ed in un nuovo contesto – quello pensato dal padre, Cosimo I, per la Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio. A differenza però del progetto espositivo della Guardaroba, incompiuto, la Sala della Cosmografia e la Sala delle matematiche vennero realizzate interamente, sia per la parte architettonica che per quella espositiva, divenendo il primo esempio di collezione-museo centrata sugli strumenti. Tuttavia – e il contrasto con la Guardaroba nuova alla quale sono state tributati molteplici studi magniloquenti e enfatici non potrebbe essere più icastico e ironico – nel corso del Settecento questa parte degli Uffizi venne smantellata, le raccolte di strumenti, libri e mappe che vi erano conservati vennero dispersi in varie biblioteche e musei fiorentini e, da allora, se ne è persa la memoria (ça va sans dire, quasi nessuno ha loro dedicato ricerche e pubblicazioni specifiche4). Contrariamente a quanto suggerito da recenti studi che riducono il theatrum mundi immaginato da Vasari, Cosimo I e Pitti (dimenticando tra l’altro le sale della cosmografia e delle matematiche agli Uffizi) a una semplice collezione di mappe, per di più sottolineandone una presunta eccezionalità – forse da interpretarsi come un riflesso, un’epigone tardiva di studi, ormai molto datati e confutati, a sostegno di un presunto quanto falso primato di Firenze negli studi geografici e cartografici a partire dal Quattrocento5 – i due progetti si distinguono invece per essere due forme originali di pensare e inventare, attraverso le maglie concettuali della cosmografia, il museo come microcosmo per rappresentare l’imago mundi e celebrare il Principe. A Roma, a partire dal papato di Sisto IV (nato Francesco della Rovere, 1414-1484, papa dal 1471), prese forma e si concretizzò l’idea del museo come luogo di preservazione e di manifestazione dell’identità di una civiltà, attraverso la creazione di uno spazio in cui conservare ed esporre in forma pubblica i tesori artistici che le appartenevano e la identificavano. La corte papale, attraverso l’appropriazione, esposizione e gestione pubblica del patrimonio artistico della Roma classica, nel palazzo del Campidoglio, si costituì come erede legittima dell’antica Roma6. Circa mezzo secolo più tardi, a Firenze prendeva forma un’altra tipologia di museo, basata sul riconoscimento, appropriazione ed esposizione non più dell’eredità artistica antica, ma del patrimonio costituito dalla produzione e creazione artistica contemporanea, percepita come pari, se non superiore, a quella dell’antichità. La nascita dell’ “arte moderna”7 attraverso la celebrazione dei suoi principali protagonisti (Giotto, Masaccio, Brunelleschi, tra i primi) si integrava nella fondazione dell’identità fiorentina che, un secolo più tardi, nel 1550, sarebbe scaturita nell’invenzione

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3 [Danti, Egnazio] a cura di Levi Donati 2002 (1. ed. 1995); [Buonsignori, Stefano] a cura di Levi Donati 2006. Fiorani 2005; Cecchi e Pacetti 2008. 4

Uniche eccezioni, di valore, i recenti studi e le ricostruzioni multimediali curate dal Museo e Istituto di Storia della scienza di Firenze pubblicati in Camerota e Miniati 2008, 228-280; Heikamp 1970, 3-25 e la poderosa ricerca documentale di Barocchi e Gaeta Bertelà 2002, vol. I, tomo I, 91-143. 5

Da abbandonare definitivamente è infatti l’idea, avanzata a suo tempo da Roberto Almagià, ma ancora molto assecondata, di un presunto “primato” fiorentino nella ricezione e trasmissione del sapere cosmografico e cartografico, e in particolare della Geografia di Tolomeo. Almagià 1929, 60-80.

6

Daltrop 1985, 111-129; Pommier 2007, 315-334.

7 Il termine “moderno” è usato da Cennino Cennini intorno al 1400: “Il quale Giotto rimutò l’arte del dipingere di greco in latino e ridusse al moderno”. Cennini, 2004, 18.


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Adorno 1983. Wazbinski 1987.

9

Emiliani, 1996, 28-35. Si vedano in particolare i decreti e bandi: “Dipinti dei quali si proibisce l’estrazione” (24 ottobre 1602); “Proibizione di cavare da Siena, senza licenza, opere di pittori morti e celebri” (28 ottobre 1602); “Bando del medesimo oggetto” (5 novembre 1602); “Ordine ai doganieri di non fare uscir da Firenze alcuna sorta di pitture, senza licenza dell’Accademia” (6 novembre 1602). 10

Heikamp 1964, 11-30; Heikamp 1965, 27-46.

11

Bocchi, 1591, 100-112.

12

Bacci 1980, 244-255.

13

Barocchi e Ragionieri 1983; Gli Uffizi 1980; Camerota e Miniati 2008, 210.

della storia degli artisti, Le vite, capolavoro di Giorgio Vasari, e nella fondazione dell’Accademia e Compagnia delle Arti del Disegno, nata sotto la protezione del granduca Cosimo I e la sovrintendenza dello stesso Vasari nel 1563. Cosimo I de’ Medici e i suoi successori Francesco I e Ferdinando I, fecero ogni sforzo per costituire una grande raccolta di “arte moderna”, la prima nel suo genere in Europa. I granduchi avevano compreso che la grandezza e il primato di Firenze passavano attraverso la celebrazione della sua cultura artistica: per questo venne creata l’Accademia che trasformava la Compagnia di San Luca (e cioè la corporazione medievale degli artifex, pittori, architetti, scultori) in un ente che aveva finalità di tutela e supervisione sull’intera produzione artistica del principato mediceo8. Dal 1602 Ferdinando I emanò una legislazione che regolava la commercializzazione e esportazione dell’arte fiorentina (che tra l’altro e per la prima volta proibiva l’esportazione al di fuori del territorio del granducato di Toscana delle opere di diciannove artisti, elencati per nome, previa autorizzazione dell’Accademia), di fatto approntando una prima definizione giuridica della nozione di patrimonio9. Nel 1581, il Granduca Francesco I decise di utilizzare il piano superiore del palazzo degli Uffizi – completato vent’anni prima da Vasari, su commissione di Cosimo I, per alloggiare e razionalizzare le magistrature fiorentine – per ospitare le sue collezioni. Il nuovo allestimento aveva il proprio fulcro in una sala centrale, la “Tribuna”, progettata da Bernardo Buontalenti, a pianta ottagonale, esemplata sulla Torre dei venti di Atene, carica di allusioni simboliche all’ordine cosmico10. Completata nel 1591, la galleria venne descritta e celebrata già nella prima guida di Firenze di Francesco Bocchi, pubblicata quello stesso anno11: è l’atto di nascita di uno dei più importanti musei del mondo, come raccolta di arte e di scienza. Se oggi la collezione è costituita essenzialmente da dipinti e statue, nella prima concezione del museo le raccolte artistiche convivevano con quelle naturalistiche, con gli strumenti scientifici e con l’armeria12. La Galleria degli Uffizi divenne uno dei cardini dell’identità fiorentina, inseparabile dalla notorietà allegata alla città ruolo nello sviluppo delle arti13. È questo il contesto in cui si devono inserire, analizzare e comprendere la Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio e le Sale della cosmografia e delle matematiche agli Uffizi (e non certo la storia della geografia o della cartografia, che hanno un ruolo accessorio): la prima, come progetto, visionario e letterario, di rappresentazione enciclopedica e olistica del macrocosmo e della storia dell’umanità, ordinata e messa in scena dal Principe demiurgo; le seconde, agli Uffizi, non più raccolta enciclopedica di oggetti – naturalia o artificialia che fossero – ma di strumenti (globi, orologi, apparecchi di misurazione, mappe e libri scientifici) che pongono il Principe – e implicitamente, l’uomo – osservatore e misuratore della natura al centro dell’esposizione.

Palazzo vecchio e il theatrum mundi della Sala della Guardaroba nuova Divenuto nel 1537, a soli diciassette anni, Duca di Firenze, tre anni più tardi Cosimo I de’ Medici trasferisce la propria residenza nel palazzo pubblico fiorentino, il Palazzo della Signoria. Questo imponente palazzo medievale, attribuito a Arnolfo di Cambio

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FIG. 1 – Nei pannelli del soffitto doveva essere dipinta la mappa del cielo con le dodici costellazioni. ©Firenze, Museo Galileo. Immagine a cura del Laboratorio multimediale del Museo. www.museogalileo.it.

(† 1302), architetto del Duomo e della chiesa di Santa Croce, costruito a partire dal 1299 sulle rovine del Palazzo dei Fanti e del Palazzo dell’Esecutore di Giustizia, che poggiavano sulle fondamenta del teatro romano di Florentia, dal 26 marzo 1302 (il primo giorno dell’anno, secondo il calendario fiorentino) divenne sede della Signoria e cioè delle principali magistrature comunali fiorentine. Nel corso dei duecento anni che seguirono, il Palazzo venne più volte modificato e ampliato; in particolare tra il 1440 e il 1460, sotto Cosimo de’ Medici, con l’introduzione di decorazioni in stile rinascimentale nella Sala dei Dugento e nel cortile interno, detto di Michelozzo (Bartolomeo Michelozzi, 1396-1472). Il celebre e maestoso Salone dei Cinquecento fu invece costruito dal 1494, durante la repubblica di Girolamo Savonarola14. A partire dal 1555, nominato responsabile delle fabriche per il rinnovamento di Palazzo Vecchio, Vasari cominciò un sostanziale lavoro di trasformazione del palazzo medievale delle magistrature nella reggia di un principe rinascimentale. Mentre l’aspetto esteriore fu volutamente preservato – per marcare dal punto di vista simbolico la continuità con l’antica repubblica fiorentina – gli interni, giudicati da Vasari e da Cosimo I non adeguati alle esigenze private e di rappresentanza della nuova corte, vennero profondamente rimaneggiati. Il progetto culturale e la visione storico-artistica vasariana di superare, sia nelle forme architettoniche che decorative, il lascito artistico medievale,

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Allegri e Cecchi 1980.


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Scrive Vasari nei Ragionamenti: “Com’egli [Cosimo I] che è capo di questa repubblica ed ha conservato ai suoi cittadini le leggi e la iustizia e dominio, e tutte le ha ampliate ed accresciute e con tanta gloria magnificate, il medesimo vuol che segua di queste muraglie, le quale, per esservi tante discordanze e bruttezza di stanzaccie vecchie ed in loro disunite, che mostranci il medesimo ordine che era in loro per la mutazione de’ governi passati; dove il Duca nostro adesso mostra appunto in questa fabrica il bel modo che ha trovato di ricorreggerla, per far di lei, come ha fatto in questo governo, di tanti voleri uno solo, che è appunto il suo”. Citato in Barocchi e Gaeta Bertelà 2002, 14.

aveva finalmente trovato un ambito in cui potersi esprimere in forma unificata, come opera d’arte totale. Architettura, pittura, e arti decorative (del vetro, del legno, degli stucchi, del cotto, arazzeria, etc.) vennero orchestrarti da Vasari per rinnovare l’antico e disunito palazzo medievale affinché divenisse la metafora più eloquente della coerenza ed efficacia del potere unificato nella persona del Principe15. È in questo contesto di rinnovamento radicale del palazzo come esito del consolidarsi del potere del principe e nella sua celebrazione pubblica – a titolo di esempio, e in soli due anni, il soffitto dell’imponente Salone dei Cinquecento venne rialzato e le pareti e i soffitti affrescati e decorati con impressionante profusione di oro, per celebrare l’apoteosi del principe conquistatore e unificatore dei domini fiorentino e senese – che intorno al 1560 Vasari e Cosimo I, coadiuvati dal cosmografo Don Miniato Pitti, pensarono di costruire un nuovo spazio architettonico nel secondo piano del palazzo, da adibire a guardaroba, in cui allestire un theatrum mundi per rappresentare e ordinare il cosmo. Per cogliere appieno la grandezza e dimensione immaginativa, se non onirica del progetto, vale la pena leggerne la descrizione dettagliata che ci ha lasciato Vasari: […] un’opera che di quella professione [la cosmografia] non è stato mai per tempo nessuno fatta, né la maggiore, né la più perfetta; e questo è che sua eccellenzia con l’ordine del Vasari, sul secondo piano delle stanze del suo palazzo ducale, ha di nuovo murato a posta et aggiunto alla guardaroba una sala assai grande, et intorno a quella ha accomodata di armari alti braccia sette con ricchi intagli di legnami di noce, per riporvi dentro le più importanti cose e di pregio e di bellezza che abbi sua

FIG. 2 – L’apertura di due pannelli del soffitto lasciava intravedere i due globi, celeste e terrestre, pronti per esser calati nella stanza. ©Firenze, Museo Galileo. Immagine a cura del Laboratorio multimediale del Museo. www.museogalileo.it.

FIG. 3, 4, 5 – I due globi scendevano fino ad essere posati sui rispettivi piedistalli. ©Firenze, Museo Galileo. Immagine a cura del Laboratorio multimediale del Museo. www.museogalileo.it.

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eccellenzia; questi ha nelle porte di detti armari spartito dentro agl’ornamenti di quegli cinquantasette quadri d’altezza di braccia due incirca e larghi a proporzione, dentro a’ quali sono con grandissima diligenzia fatte in sul legname a uso di minii dipinte a olio le tavole di Tolomeo misurate perfettamente tutte, e ricorrette secondo gli autori nuovi e con le carte giuste delle navigazioni, con somma diligenzia fatte le scale loro da misurare, et i gradi dove sono in quelle, e’ nomi antichi e moderni […] a sommo dirimpetto alla porta principale, nel qual mezzo s’è posto l’oriolo con le ruote e con le spere de’ pianeti che giornalmente fanno entrando i lor moti: quest’è quel tanto famoso e nominato oriolo fatto da Lorenzo della Volpaia fiorentino. […] è poi ordinato nel basamento da basso in altretanti quadri attorno a torno, che vi saranno a dirittura a piombo di dette tavole tutte l’erbe e tutti gli animali ritratti di naturale secondo la qualità che producano que’ paesi. Sopra la cornice di detti armari, ch’è la fine, vi va sopra alcuni risalti che dividono detti quadri che vi si porranno alcune teste antiche di marmo di quegli imperatori e prìncipi che l’hanno possedute, che sono in essere, e nelle facce piane fino alla cornice del palco, quale tutto di legname intagliato, et in 12 gran quadri dipinto per ciascuno quattro immagini celesti, che farà 48, e grandi poco men del vivo con le loro stelle; sono sotto (come ho detto) in dette facce 300 ritratti naturali di persone segnalate da 500 anni in qua o più dipinte in quadri a olio (come se ne farà nota nella tavola de’ ritratti, per non far ora sì lunga storia con i nomi loro) tutti d’una grandezza e con un medesimo ornamento intagliato di legno di noce, cosa rarissima. Nelli due quadri di mezzo del palco larghi braccia quattro l’uno, dove sono le immagini celesti, e’ quali con facilità si aprono senza veder dove si nascondano, in un luogo a uso di cielo saranno riposte due gran palle alte ciascuna braccia tre e mezzo, nell’una delle quali anderà tutta la terra distintamente, e questa si calerà con un arganetto che non vedrà fino a basso e poserà in un piede bilicato che ferma si vedrà ribattere tutte le tavole che sono a torno ne’ quadri degli armari et aranno un contrasegno nella palla da poterle ritrovar facilmente. Nell’altra palla saranno le 48 immagini celesti accomodate in modo che con essa saranno tutte le operazioni dello astrolabio perfettissimamente16. È un theatrum mundi enciclopedico e favoloso come solo i luoghi letterari possono essere, che tuttavia non venne mai portato a compimento. Il progetto descritto da Vasari era un vero e proprio trionfo della cosmografia, dell’enciclopedismo, della storia universale, delle arti matematiche, della misurazione, del costruire macchine, ma anche della rappresentazione teatrale, con cui si voleva mettere in scena la rappresentazione della Terra e del Cielo. Cinquantasette tavole geografiche che coprivano l’intera terra, i ritratti degli uomini illustri antichi e moderni fatti copiare da Cosimo I a Cristofano dell’Altissimo (1525–1605), uno dei pittori della corte medicea, dalla collezione allestita a Borgovino, nei pressi di Como, dal medico, storico e umanista Paolo Giovio (la cosiddetta Gioviana) – su cui ritorneremo di seguito –, i busti in marmo degli imperatori e dei regnanti, un celeberrimo orologio astronomico con i pia-

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Vasari 1568, vol. II, 877.


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Crum 1989, 237-253.

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Cirni 1560, [15-16]. Questo il passo completo: “Sopra l’arco vi era il Mondo, e di dietro sotto a esso queste lettere greche alludendo con bella inventione al nome del Duca: KO™MO™ KO™MOY KO™MO™ che secondo mi hanno riferito alcuni, che dicono d’intenderle, significano, che il Duca Cosmo honora il mondo, e’l mondo lui, ò vero, che’l mondo è di Cosmo et egli è di lui. In cima all’arco appoggiato al Mondo era l’immagine del Beatissimo Nostro Signore Papa Pio di rilievo finta d’oro, e grande, che verso il Domo dava la beneditione con questa inscrittione: Super Aspidem & Basaliscum ambulabis, dinotando la potentissima autorità che tiene dall’alto Motore. Questo è quel verissimo Pontefice per le cui sante, pie, benigne, grate, e giuste attioni s’illumina il camino a la vera, e catolica vita, si mostra l’esempio per arivare a gli honori celesti, et immortali, e s’insegna come s’habbia da reggere, e reganare con dolce quiete, et amato riposo”. Cito dall’edizione critica dell’opera, Cirni e Davies, 2010. La stampa originale è priva di paginazione; si segue dunque quella stabilita dal curatore.

19

Sacrobosco e Danti 1579.

20

Yates 1990, 18-36; Matasiliani 1572. Sul globo terrestre come emblema del potere tra antichità e medioevo, Paravicini Bagliani 1992, vol. I, 65-79.

21

Gautier Dalché 2009, 13-22; Jones e Berggren 2000; Gentile 1992; Gentile 1991, 9-63; Milanesi 1993, 15-32.

neti, costruito da Lorenzo della Volpaia su commissione di Lorenzo de’ Medici, pitture di naturalia, e due imponenti machinae mundi, un globo terrestre e un globo celeste a scomparsa, da calarsi con delle carrucole dal soffitto per specchiare i contenuti delle tavole geografiche e astronomiche dipinte sugli sportelli degli armadi, erano gli ingranaggi della macchina cosmografica che metteva in scena la storia universale in un theatrum mundi sospeso tra cielo e terra. Il complesso impianto scenografico della Guardaroba nuova venne concepito intorno al 1560, durante l’ultimo decennio di governo di Cosimo I, quando attraverso l’opera di Giorgio Vasari, don Vincenzo Borghini, Giambattista Andreani, con il contributo cosmografico di Don Miniato Pitti, Cosimo I enfatizzava il proprio potere privilegiando ambiti che si riferivano a significati universali, cosmici. Emblematica, a questo proposito, la statua di “Cosimo I – Ercole” (fondatore di Firenze) – “Cosimo I – Augusto”, commissionata a Vincenzo Danti, fratello maggiore di Egnazio, per la facciata degli Uffizi, oggi conservata al Bargello.17 Ugualmente rivelatrice l’iconografia e la simbologia per l’entrata di Cosimo a Siena il 28 ottobre 1560: la fase finale della parata vedeva un arco trionfale con un grande globo, con l’iscrizione in greco divenuta celebre: “Kosmos kosmou kosmos”. Antonio Francesco Cirni, cortigiano dei Medici, testimone dell’evento, così la interpretava: “significano che il Duca Cosimo honora il mondo, e’l mondo lui, o vero, che’l mondo è di Cosimo et egli di lui”18. Lo stemma dei Medici su mappamondo sormontato da una corona con in basso il medesimo motto venne adottato come marca tipografica dai Giunti, editori fiorentini, come si vede nel frontespizio del trattato De sphaera di Sacrobosco, nella traduzione italiana e con la prefazione di Egnazio Danti19. La palla del mondo e, per estensione, la cosmografia univano e incorporavano diversi livelli semantici; soprattutto richiamavano gli apparati simbolici imperiali, da quelli dell’imperatore Augusto a quelli di Carlo V, contemporaneo di Cosimo20. Struttura portante, materiale e concettuale, dell’intero progetto erano le cinquantasette carte geografiche “di Tolomeo” (con la rappresentazione dell’ecumene antica e dei nuovi mondi che l’espansione europea aveva svelato nel corso dell’ultimo secolo) e i ritratti degli uomini illustri copiati dalla collezione di Giovio. Il progetto della Guardaroba di Vasari, Pitti e Cosimo I integrava una rappresentazione cosmografica universale dell’imago mundi, implicita nella teoria cartografica di Tolomeo, con l’idea di una rappresentazione universale della storia dell’umanità, che soggiaceva alla galleria degli uomini illustri creata dallo storico, umanista e vescovo Paolo Giovio (1483-1552) nella sua villa di Borgovico, sul lago di Como. Per meglio comprendere questo aspetto, ancora non pienamente analizzato e compreso, vale la pena tracciare brevemente la storia della ricezione fiorentina della Geografia e la storia della galleria universale di Giovio.

All’origine della Guardaroba nuova: la Geografia di Tolomeo, l’umanesimo fiorentino e la narrazione visuale della storia universale di Paolo Giovio La ricezione della Geografia di Tolomeo fu un avvenimento centrale – anche se non “rivoluzionario”, come a lungo creduto21 – nella storia culturale della Firenze rinascimentale e entrambi i progetti della Guardaroba nuova e quello successivo della

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Sala della Cosmografia, sono da intendersi come due modalità molto particolari di ricezione e interpretazione dell’opera tolemaica. Scientificamente debitore della scienza cosmografica ellenistica, di Eratostene e di Marino di Tiro, nell’Alessandria del II secolo d.C., al tempo della massima estensione territoriale dell’Impero Romano, Claudio Tolomeo approntava un manuale intitolato Geographiké Uphégesis, “Guida alla cartografia”, che consentiva a chiunque avesse familiarità con i concetti di coordinate astronomiche e con il disegno geometrico la costruzione di mappe dell’intera ecumene, la parte conosciuta e abitabile della Terra. Tolomeo fissò l’estensione della parte della Terra conosciuta e abitata tra Thule, posta a 63° latitudine nord, il parallelo di anti-Meroe a 16° 25’ lat. sud, le Isole Fortunate ad ovest, in corrispondenza con il meridiano 0° e Sera Metropolis ad est, a 180° di lon. Al di là di queste latitudini e longitudini vi era terra incognita. Ecumene e terra incognita occupavano i 6/7 della superficie del globo, relegando gli oceani a grandi bacini mediterranei. La Geografia era composta da otto libri, dei quali il primo, una parte del secondo e del settimo – i cosiddetti libri teoretici – insegnavano a costruire carte secondo quattro metodi geometrici: una procedura con paralleli e meridiani retti e perpendicolari, già utilizzata da Marino di Tiro e raccomandata da Tolomeo per le carte regionali, per le quali la curvatura terrestre può essere considerata irrilevante (Geografia I.24.1); una procedura con meridiani retti e convergenti e paralleli curvi (Geografia I.24.3); una procedura con meridiani curvi e convergenti e paralleli curvi (Geografia I.24.9); infine, una speciale proiezione in cui l’ecumene è visualizzata su un globo rappresentato all’interno di una sfera armillare, osservati da una distanza che consenta di abbracciare con lo sguardo l’intero emisfero (Geografia VII.6-7)22. I restanti libri tramandavano una lunga lista di circa ottomila nomi di località, identificate dalle loro coordinate astronomiche, in Europa, Asia e Africa, e consentivano il disegno di una rappresentazione universale dell’ecumene e di 26 tavole regionali (12 per l’Europa, 10 per l’Asia e 4 per l’Africa). A differenza dell’Almagesto, l’opera principale di Tolomeo, tradotta in latino dall’arabo a partire dal XII secolo, la Geographiké Uphégesis, nota agli arabi almeno dal IX secolo, rimase sostanzialmente sconosciuta quanto ai suoi contenuti specifici fino all’arrivo a Firenze dell’umanista bizantino Emanuele Crisolora (1335-1415)23, invitato ufficialmente a Firenze nel 1397 da Coluccio Salutati (1331-1406), cancelliere della Repubblica, per insegnare greco24. Nei due anni che rimase a Firenze, Crisolora iniziò la traduzione della Geografia, forse avvalendosene anche come testo didattico. La traduzione completa dell’opera venne portata a termine tra il 1406 e il 1409 da Iacopo Angeli da Scarperia, suo allievo, mentre era segretario apostolico presso la curia pontificia25. Intorno al 1415, Francesco di Lapacino e Domenico di Buoninsegna, membri del cenacolo umanistico che si raccoglieva attorno a Niccolò Niccoli e Ambrogio Traversari, portarono a termine la traduzione dei toponimi e delle iscrizioni delle ventisette carte geografiche che completavano l’opera26. Le ragioni dell’interesse degli umanisti fiorentini verso la Geografia di Tolomeo erano diverse: la prima era la ricerca erudita sulla toponomastica antica, che aveva avuto

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22 Geografia I.3, I.7-13, I.23; Jones e Berggren 2000, 20-23, 61-62, 64-75, 84-85. Per l’analisi dei fondamenti geometrici delle proiezioni, Valerio 1995, 63-82. 23 Per la genesi della traduzione della Geografia e la sua ricezione quattrocentesca: Gentile 1992; Milanesi 1993, 15-32; Gautier Dalché 2007, 285-364; Gautier Dalché 2009. 24

Gentile 1992, 291-308.

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Weiss 1977, 255-277.

26

Gentile 1992, 80-82.


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Si trattava di un interesse che per Petrarca, Boccaccio, Domenico Bandini, Domenico Silvestri contemplava la ricerca di opere perdute come il De Chorographia di Pomponio Mela, ma anche l’utilizzo delle ‘modernissime’ carte nautiche e l’interesse per i primordi dell’espansione europea, come traspare evidente nelle opere del Boccaccio: Boccaccio 1998, vol. VIII, 1825-2122; Boccaccio 1992, vol. V, t. I, 971-986. 28 Per la “Dedica” di Iacopo Angeli, Hankins 1992, 118-127 (125-127). 29 Per la scelta fatta da Iacopo Angeli di intitolare l’opera ‘Cosmographia’, Milanesi 1994, 443-468. 30 Firenze, BNCF, Magl. XIII,16, f. 1v: “Cl. Ptolomei cosmographia cum tabulis regionum nostri temporis et universis portubus et locis maritimi tractus tam notis qual a rege Portus Galli nuper repertis: hoc ornatissimo codice continentur”. 31 Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Pl. 30,2, Ptolemei Cosmographie, trad. latina di Jacopo Angeli 1455-1462 circa; tavole tolemaiche attribuite a Piero del Massaio (Firenze 1425 – ?); pergamena manoscritta e miniata, 66x84 cm, c. 1460. Il codice appartenne a Lorenzo di Pier Francesco de’ Medici (“Liber Laurentii Petri Francisci de’ Medicis n. 1”, f. 117r) ed entrò successivamente nella biblioteca di Cosimo I (“Dell’Illustrissimo et excellentissimo S. Duca di Firenze Cosmo de Medici”, f. 1r).

promotori illustri in Petrarca e Boccaccio, come parte dell’istanza cruciale dell’umanesimo di recuperare e salvare il patrimonio culturale in latino e in greco degli antichi27. A questa istanza si aggiungeva l’interesse per i contenuti scientifici e di metodo cartografico dell’opera tolemaica, innovativi rispetto alle opere latine di geografia, come evidenzia Iacopo Angeli nella lettera di dedica della traduzione a papa Alessandro V28. I geografi latini avevano descritto l’ecumene dal punto di vista storico-geografico (historicorum more, scriveva Jacopo Angeli), non indicando la longitudine e la latitudine dei luoghi e neppure avevano spiegato come si potesse raffigurare la superficie sferica della terra in piano: queste mancanze non consentivano di realizzare una raffigurazione pittorica del mondo in cui le singole parti mantenessero una corretta proporzionalità con il tutto. Tutte queste istanze trovavano invece soluzione nella cosmografia mathemathicorum more di Tolomeo29. L’arrivo della Geografia di Tolomeo a Firenze (ma anche presso la corte estense, la curia pontificia) venne salutato con grande interesse, non disgiunto da critiche rivolte sia all’inadeguatezza della traduzione di Angeli, sia al disaccordo tra le descrizioni tolemaiche dell’ecumene e quelle che si incominciavano ad apprendere da viaggiatori provenienti da regioni lontane o dal confronto tra il disegno cartografico tolemaico e quello nautico, ad esempio della carta d’Italia o dell’intero bacino del Mediterraneo. Sulla base di nuove informazioni, già intorno al 1450, alle 27 carte ‘originali’ dei codici della Geografia vennero aggiunte tavole moderne che aggiornavano la cartografia tolemaica. A Firenze tre furono i principali ‘dipintori’ di codici della Geografia che introdussero queste aggiunte: Niccolò Germano, Piero del Massaio e, nell’ultimo quarto del secolo, Enrico Martello Germano. Quest’ultimo intorno al 1490 approntò un’opera intitolata Ptolomei cosmographia che rappresenta l’apogeo della ricezione manoscritta, non solo fiorentina, dell’opera di Tolomeo: alle 27 carte “originali”, Martello ne aggiunse, affiancandole alle antiche, 21 moderne, in parte aggiornate anche alla luce delle navigazioni portoghesi, come dichiarato nel frontespizio del codice che le tramanda30. L’immaginazione cosmografica di Cosimo I, Vasari e Pitti attingeva e traeva ispirazione da questi manoscritti aggiornati della Geografia di Tolomeo, una componente importante dell’eredità culturale dell’umanesimo fiorentino (Cosimo I possedeva personalmente vari codici antichi della Geografia, ereditati dalla famiglia Medici, che portava con sé nei suoi viaggi31) in congiunto con l’idea di una rappresentazione visuale della storia dell’umanità implicita nella galleria universale di uomini illustri ideata e allestita da Paolo Giovio. Giovio, un partigiano mediceo dal tempo di papa Leone X (nato Giovanni de’ Medici, secondogenito di Lorenzo de’ Medici e Clarice Orsini, 1575-1521), ebbe con Cosimo I e Vasari una lunga frequentazione, a partire dall’elezione del giovane di casa Medici a duca nel 1537. Dal 1549, lasciata la corte papale, Giovio divise il suo tempo tra la corte di Cosimo e la villa di Borgovico. A Cosimo I dedicò la Sala dell’Onore del suo Museo, una camera decorata con le imprese del duca. Il museo gioviano – portato a termine nel 1543, grazie al mecenatismo di Cosimo I de’ Medici, Francesco I di Francia e di Alfonso d’Avalos, governatore di Milano – oltre ad una straordinaria collezione di antichità, conservava una galleria di ritratti di uomini illustri,

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risultato di decenni di ricerche sul tema della storia universale. La galleria dei ritratti, ciascuno corredato da una breve biografia in versi composti da Giovio (gli Elogia, di cui gli Elogia virorum bellica virtute illustrium, in sette libri, vennero pubblicati a Firenze per i tipi di Torrentino nel 1551; i restanti invece vennero pubblicati postumi tra il 1575 e il 157732) era divisa per generi, il cui ordine è descritto da Giovio nella Musei Descriptio, premessa agli elogia composti nel 1546. I personaggi selezionati da Giovio (letterati, uomini dall’ingegno eccezionale, artisti e uomini faceti, papi, re e duchi, ritratti con la più a grande verosimiglianza a partire dalle fonti iconografiche più sicure che Giovio riuscì a procurarsi) ambivano a rappresentare una selezione esaustiva degli uomini che avevano contribuito e contribuivano alla storia dell’umanità, concepita da Giovio come risultato dell’azione di individualità d’eccezione, le cui personalità spiegavano gli accadimenti storici più rilevanti. La galleria non aveva alcun intento celebratorio per nessun regnante: suo unico scopo era la narrazione della storia universale, attraverso le gesta esemplari che avevano forgiato e forgiavano le principali vicende dell’umanità33. La galleria universale di uomini illustri divenne da subito celeberrima presso le corti italiane e europee34. Per quanto ci riguarda, già nel 1552 – e cioè quasi dieci anni prima che pensasse alla Guardaroba nuova – Cosimo I inviò a Como il pittore di corte Cristofano di Papi dell’Altissimo, allievo di Agnolo Bronzino, per copiare i ritratti35. I ritratti copiati da Cristofano vennero successivamente destinati da Vasari e Cosimo I al theatrum mundi della Guardaroba, in cui avrebbero dovuto essere esposti in base alla provenienza geografica36. Alla morte di Cosimo I nel 1574, la produzione si interruppe. Francesco I commissionò pochi ritratti; l’opera d copiatura della collezione gioviana proseguì però con l’avvento al potere di Ferdinando I che ancora si avvalse di Cristofano dell’Altissimo. Nel corso di quasi trent’anni, vennero realizzati complessivamente 272 ritratti che rimasero a Palazzo Vecchio fino al 1587. Tra i 1587 e il 1591 Francesco I e Ferdinando I li destinarono invece alla neonata Galleria degli Uffizi, venendovi esposti non più su base di pertinenza geografica, ma ordinati secondo principi iconografici e di pertinenza storica dal diplomatico, letterato, storico e geografo Filippo Pigafetta (1534-1604), consigliere d Ferninando, poi ispiratore e inventore del progetto espositivo dedicato agli strumenti dell’arte della guerra, per lo Stanzino delle matematiche agli Uffizi37.

Un progetto incompiuto La realizzazione delle carte geografiche tolemaiche – in fondo la parte più semplice e sicuramente la meno costosa, di un progetto ambizioso – così come la realizzazione del globo terrestre – questa invece più complessa, soprattutto per la parte meccanica e la grandezza della macchina – furono affidati al domenicano Egnazio Danti (1536-1586), allora non ancora trentenne, ma già buon matematico, poi divenuto cosmografo di grande fama, insegnando cosmografia allo Studio di Bologna e poi lavorando alle carte geografiche dei palazzi Vaticani, invitato da papa Gregorio XIII, che lo nominò matematico pontificio e ne fece un membro della commissione per la riforma del calendario38. Francesco I che a causa dell’infermità che colpì il padre Cosimo I già dal 1565 aveva responsabilità dirette nella gestione del Granducato, da

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Giovio 2006.

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Michelacci 2004. Minonzio 2002.

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Con la pubblicazione a Basilea degli Elogia curati da Pietro Berna nel 1577, e con le incisioni di Tobias Stimmer, l’interesse per la raccolta si diffuse a livello europeo: nell’ottobre 1579 Ferdinando II Arciduca d’Austria chiese che fosse concesso ai pittori da lui inviati di eseguire copie dei ritratti destinate al Castello di Ambras. La medesima richiesta viene rivolta nel febbraio 1610, pochi anni prima della distruzione della villa del Giovio, dal cardinale Federigo Borromeo, che avviò la propria collezione gioviana, ora nella Pinacoteca Ambrosiana di Milano.

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Nella seconda edizione delle Vite – la stessa in cui si pubblicava il progetto per il theatrum mundi della Guardaroba – Vasari pubblicò anche un indice di 219 ritratti realizzati fino ad allora da Cristofano dell’Altissimo. Si veda la Tavola de’ Ritratti del Museo dell’Illustriss. et eccellentiss. D. Cosimo Duca di Fiorenza, et di Siena, in Allegri e Cecchi 1980, @@@. 36 Per la storia della tradizione fiorentina degli uomini e delle donne illustri, a Palazzo Vecchio: Cecchi 2008, 67-85. 37

Barocchi e Gaeta Bertelà 2002, 61-75, 91-143 e l’ampio apparato documentale citato e trascritto nelle appendici al volume.

38 Fiore 1986, 659-663; Paltrinieri 1994, 367-386; Dubourg-Glatigny 2002, 543-605.


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Sull’allontanamento di Danti da Firenze, a causa di un processo per inquisizione, probabilmente non disgiunto a contrasti violenti all’interno del monastero di Santa Maria Novella, si veda Marcolin 2008, 116-119.

40

Sulle differenze compositive tra le tavole di Danti e quelle di Buonsignori, si veda Marcolin 2008 in Cecchi e Pacetti 2008, 107-133.

41Per

Lafreri si veda Besse 2009, 35-57. Tooley 1939, 12-47. Fondamentale lo studio e la catalogazione di Borroni Salvadori 1980. 42 Ramusio 1550-1559; Ramusio e Milanesi 1978-1988. Sull’utilizzo della cartografia di Gastaldi e Lafreri da parte di Danti, Cattaneo 2008, 147-151. Per la comparazione mi sono servito della raccolta Lafreri della Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze. 43

Lombardi 2008, 135-149.

44

Come ha fatto notare Valentina Zucchi nel corso del convegno “La Sala della Guardaroba o delle Carte Geografiche in Palazzo Vecchio”, organizzato da Paola Pacetti il 19-20 ottobre 2006 a Palazzo Vecchio, a Firenze. Si rinvia ora a Pacetti 2008, 30-31. 45 46

Woodward 1997, 52.

“Guarda robba del Gran Duca piena di preziosi, e riccho arnesi, di gran numero di tavole dipinte da’ migliori maestri, e più sovrani: oltra ciò si conservano in questo luogo le Pandette di Giustiniano [raccolte di leggi del VI secolo che costituiscono la base del moderno Diritto], tanto da’ letterati più intendenti apprezzate, e tanto tenue, come più nobile scrittura , e più utile, in sommo honore”. Cito dall’edizione di Le bellezze della città di Fiorenza curata e ampliata da Giovanni Cinelli (Bocchi e Cinelli 1677, 95). Sulle Pandette di Giustiniano, un codice del sec.VI, che raccoglie le compilazioni complessive di diritto romano redatte dagli antichi giureconsulti, conservate a Firenze a Palazzo Vecchio, e poi trasferite nel 1786 alla Biblioteca Medicea Laurenziana, si veda Spagnesi 1983. Anche la succinta descrizione della Sala dell’Oriuolo (i cui si trovava l’orologio planetario costruito da Lorenzo della Volpaia) in cui si poteva immaginare fossero confluite, almeno in parte, le raccolte di naturalia e artificialia pensate per la Guardaroba Nuova, non riferiscono nulla del progetto: “Sala dell’Oriolo si trova una statua di bronzo di Davitte di mano di Andrea Verrocchio di somma bellezza, da tutti gli artefici senza fine lodata. E nella Sala poscia egli ci ha un altro Davitte d mar di mano di Donatello, ammirato, e tenuto in sommo pregio da tutti” (Bocchi e Cinelli 1677, 93).

subito osteggiò e rallentò il progetto per una diversa visione culturale oltre che per contrasti con Giorgio Vasari. Quando nel 1574 morì Cosimo I e gli subentrò il figlio Francesco I, Danti venne messo sotto inchiesta dall’Inquisizione e costretto, forse per intervento del Granduca, a lasciare Firenze. Nel progetto fu sostituito con Stefano Buonsignori († 1589), frate olivetano ed allievo di Miniato Pitti39. Ai due cosmografi, Egnazio Danti prima ed in seguito a Stefano Buonsignori, era stato assegnato il compito di trasformare i codici e le edizioni a stampa della Geografia di Tolomeo, con le 26 carte regionali antiche e le ormai più numerose carte moderne, in un ciclo murale, un libro aperto, che tuttavia mantenesse le caratteristiche formali dei codici della Geografia: l’inquadramento nel reticolo di latitudini e longitudini e il frazionamento dell’ecumene in carte parziali40. Per il disegno delle carte, Danti e Buonsignori – pur con obiettivi diversi – si avvalsero di raccolte e rappresentazioni letterarie e cartografiche sistematiche di grande successo, soprattutto di provenienza veneziana e romana, come le Navigazioni et viaggi di Giovanni Battista Ramusio (1485-1557) e l’opera cartografica di Giacomo Gastaldi (che lavorò insieme a Ramusio) nelle edizioni a stampa delle sue carte edite a Roma da Antonio Lafreri (di origini francesi, nato Antoine Lafrery, ma attivo a Roma nella seconda metà del Cinquecento) e, soprattutto per Buonsignori, delle carte del Theatrum orbis terrarum di Abramo Ortelio, pubblicato a Anversa nel 157041. Queste ultime furono appunto le fonti dirette utilizzate da Egnazio Danti per disegnare e descrivere tra il 1565 e il 1574 ventisette delle cinquantasette tavole originariamente previste42. La Sala non venne mai portata a compimento. Il progetto voluto da Cosimo I venne realizzato solo per la parte architettonica e l’arredamento ligneo, in quanto guardaroba e, in modo assolutamente parziale per il complesso theatrum cosmografico43. Solo l’orologio planetario venne posto nella sala (come segnalato negli inventari del 1570 e del 1574 che parlano di una “stanza nuova dell’oriolo” piuttosto che di una “stanza dell’horologio”44) insieme alla galleria dei ritratti degli uomini illustri eseguita da Cristofano dell’Altissimo. Gli inventari della Guardaroba mostrano che le carte geografiche – approntate nel corso di due decenni, tra il 1563 e il 1586, un tempo davvero lungo per un lavoro di copiatura o al più di adattazione di fonti cartografiche a stampa, tratte per lo più dall’ “antologia cartografica” (l’espressione è di David Woodward45) edita a Roma da Antonio Lafreri – persero da subito significato, diventando opache, parte indistinta delle pareti e degli armadi. Il globo di Danti non fu mai esposto a Palazzo Vecchio se non nel secolo scorso; il globo celeste non venne invece mai costruito, così come l’intero l’apparato scenico. Le Bellezze della città di Fiorenza di Francesco Bocchi, celeberrima prima descrizione e guida esaustiva della città gigliata, pubblicata nel 1591, pur descrivendo nel dettaglio i diversi ambienti di Palazzo Vecchio, della Guardaroba ricorda solo i gioielli e gli “arnesi” preziosi, i dipinti, e il codice con le famose “Pandette di Gistiniano”46. Del theatrum mundi della Guardaroba non vi è traccia. In breve, la cosmografia della Guardaroba nuova, come la ammiriamo oggi Palazzo Vecchio, con le tavole di geografia dipinte nel corso di circa vent’anni da due cosmografi di corte, il domenicano

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Egnazio Danti (fino al 1574) e l’olivetano Stefano Buonsignori (dal 1575 al 1586 circa) e il globo di Egnazio Danti, al centro della sala, è il risultato di una riscoperta e ricostruzione, per di più molto parziale, attuati tra Ottocento e Novecento. Ciò che vediamo oggi è riconducibile solo in minima parte al progetto espositivo enciclopedico con il quale Cosimo I ambiva a “mettere insieme una volta queste cose del cielo e della terra giustissime e senza errori e da poterle misurare e vedere, et a parte e tutte insieme”47. Esempio emblematico di immaginazione al potere e, allo stesso tempo, di potere dell’immaginazione, all’indagine storica e archivistica, il theatrum mundi di Cosimo I-Vasari-Pitti, affidato all’arte cosmografica di Danti e poi di Buonsignori, si sgretola. Nonostante ciò la pagina onirica e celebratoria di Vasari continua a compiere il suo sortilegio: The marvel of maps, e La Sala delle Carte geografiche in Palazzo Vecchio “capriccio et invenzione nata dal Duca Cosimo” sono i titoli, tanto altisonanti, quanto fuorvianti, degli ultimi studi, eruditi e monumentali, sulla “meravigliosa” e mai esistita “Sala delle Carte geografiche” di Palazzo Vecchio48. Francesco I, principe reggente dal 1564, granduca di Toscana dal 1574 al 1587, cultore di studi alchemici, aveva una diversa visione della natura e delle artes rispetto al padre. Si dedicò alla creazione di laboratori di sperimentazione nel Casino di San Marco in Firenze (celebri furono gli esperimenti che, sotto la direzione di Bernardo Buontalenti (1536-1606) e la partecipazione personale di Francesco, portarono alla realizzazione, intorno al 1575 della porcellana, la cosidetta “Porcellana dei Medici”). A Palazzo Vecchio, già nel 1570, fece costruire da Vasari, coadiuvato da Don Vincenzo Borghini, uno Studiolo, “un microcosmo che va dal naturalismo alla magia alchemica e alla mitologia in continua tensione tra scienza e immaginativa”, un luogo appartato e segreto, dedicato a “servire per un guardaroba di cose rare et pretiose, et per valuta et per arte, come sarebbe a dire Gioie, Medaglie, Pietre intagliate, cristalli lavorati e vasi…”49. Il contrasto con il progetto paterno della Guardaroba non poteva essere più stridente. Ferdinando I, che succedette al fratello Francesco I alla guida del Granducato nel 1587, pur affascinato dalla cosmografia, optò per un diverso progetto cosmografico, meno visionario e più fattibile.

La Sala della cosmografia e delle matematiche agli Uffizi Il 19 ottobre 1587 morì Francesco I e alla guida del Granducato gli succede il secondogenito di Cosimo I, il cardinale Ferdinando. Su consiglio del cosmografo e ingegnere Antonio Lupicini, Ferdinando prende in esame alcuni progetti lasciati incompiuti dal padre ed ignorati dal fratello e, tra questi, la cosmografia nella Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio. Così scrive Lupicini nel suo rapporto al Granduca Ferdinando a riguardo dello stato di avanzamento del progetto cosmografico di Palazzo Vecchio: “Il 5.°[progetto incompiuto] era la fabricha d’una stanza a similitudine delle 4 parte di questa machina, dove s’aveva vedere tutti e fatti più famosi di Alessandro Mangnio, di Caio Cesare et d’altri valorosi guerrieri, insieme con le calamità di Troia, Cartagine e d’altre distrutione simile; e nella base di dette Storie s’aveva

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Vasari 1568, vol. II, 877.

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Due recenti pubblicazioni – Fiorani 2005 Cecchi e Pacetti 2008 – di cui non si discutono l’impegno di ricerca e l’erudizione – indugiano nell’ambiguità di confondere il progetto cosmografico letterario di Cosimo I, Vasari e Pitti e la sua (presunta) concretizzazione (molto parziale e per di più recente) nella Guardaroba nuova. Perché tutto questo accada, nonostante le serie e notevoli ricerche d’archivio condotte per la preparazione di questi studi, rimane misterioso. Che l’intento autocelebratorio della cosmografia, “capriccio et invenzione nata dal Duca Cosimo” continui a compiere il suo sortilegio?

49 Si cita da Lensi Orlandi 1991, 109. Berti 1967, 61. Sulla genesi dello Studiolo, la sua costruzione e per un’analisi dettagliata di tutte le parti della decorazione si veda Conticelli 2007 e Conticelli 2008, 205-209.

FIG. 6 – Ricostruzione virtuale della Sala della Cosmografia negli Uffizi, alla fine del Cinquecento. La sfera armillare di Santucci e il globo di Danti erano poste al centro della sala con gli affreschi di Ludovico Buti del Dominio fiorentino, senese e dell’Isola d’Elba. (Cf. Camerota e Miniati 2008, 228.) ©Firenze, Museo Galileo. Immagine a cura del Laboratorio multimediale del Museo. www.museogalileo.it.


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Si cita da Camerota 2008, 229-33 (229).

dimostrare tutte le spezie delli animali terrestri di ciascheduna provincia, e nel fregio de l’architrave si vedeva tutti e ritratti de’ personaggi più famosi, che di presente n’è fatti la maggior parte; e nel pavimento si aveva commettere uno spargimento proporzionato alla soffitta, nella quale s’era risoluto farvi diverse storie morali. Così mostro le dette pitture, con tratenimento gustoso, e non credendo vedere altro in detta stanza, a un dato cenno si eclissava le dette storie e si scopriva la Cosmografia di tutta la machina con il medesimo ordine che dimostra Tolomeo; e nello scoprirsi favene aprire la sofitta e calare le Teoriche de’ pianeti in forma circholare, e posavano sopra un piede che usciva dal pavimento, dal quale veniva fuora uno appamondo terestre e uno celeste di 3 braccia e mezzo l’uno di diamitro, che di già se n’era fatto uno che lo dipinse frate Egnatio, et il modello di questo conposto lo tengho appresso di me. Il 6.° concetto furono tutte le teoriche de’ pianeti, le quali l’ò fatte finire con ordine del Gran Duca Francesco, felice memoria, e son nella libreria di San Lorenzo50”. La nota informativa del Lupicini, oltre a confermare che il progetto cosmografico per Palazzo Vecchio era rimasto incompiuto, aggiunge dettagli scenografici inediti rispetto alla descrizione di Vasari. Come in un vero e proprio teatro, non solo i globi erano a

FIG. 7 – Ricostruzione virtuale della Stanza dell’architettura militare, anche chiamata Stanzino delle Matematiche, negli Uffizi secondo il progetto di Filippo Pigafetta. (Cf. Camerota e Miniati 2008, 248.) ©Firenze, Museo Galileo. Immagine a cura del Laboratorio multimediale del Museo. www.museogalileo.it.

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scomparsa, ma anche le tavole geografiche sarebbero dovute apparire a comando, sotto i ritratti dei personaggi “più famosi”, questi sì già in buona parte realizzati. Nonostante che cinquantatre delle cinquantasette tavole tolemaiche fossero già state montate sugli sportelli degli armadi della Guardaroba, che l’orologio di Della Volpaia fosse già installato, che il globo di Danti giacesse a Palazzo Pitti, che almeno 219 ritratti degli uomini illustri erano già stati copiati dalla collezione gioviana, Ferdinando I decise di accantonare definitivamente il progetto paterno e di realizzarne uno proprio. Il nuovo progetto architettonico venne affidato all’architetto e scenografo di corte Alfonso Parigi († 1606) il quale costruì una nuova ala della Galleria degli Uffizi facendo chiudere un terrazzo su via dei Castellani. La Sala della Cosmografia venne affrescata dal pittore di corte Ludovico Buti e dal cosmografo di corte Stefano Buonsignori con le rappresentazioni dei domini fiorentini, senesi e dell’isola d’Elba. Al centro della sala venne posta una straordinaria sfera armillare lignea semovente (altezza 370 cm, diametro 242 cm) realizzata sotto la direzione del cosmografo Antonio Santucci, che affiancava l’altrettanto straordinario globo (220 cm di diametro), terminato già tra il 1569 e il 1574 da Egnazio Danti per il progetto della Guardaroba di Palazzo Vecchio, ma lì mai esposto51. Si trattava delle più grandi e complesse macchine cosmografiche mai costruite fino ad allora e che vennero superate – ma quasi un secolo più tardi – dai globi, terrestre e celeste, preparati da Vincenzo Coronelli nel 1683 per Luigi XIV di Francia (circa 387 cm di diametro, pesanti due tonnellate ciascuno)52. Se il progetto cosmografico di Cosimo I era un theatrum mundi visionario ed enciclopedico, che demandava alla sistematicità della geografia mathematicorum more di Tolomeo il compito di tenere insieme l’intero creato e la sua evemenzialità, Ferdinando I e i suoi cosmografi, Lupicini e Antonio Santucci (già suo astronomo personale quando era cardinale a Roma) progettano e realizzano qualcosa di concettualmente più semplice e di più immediata lettura, ispirandosi alla definizione dei linguaggi di rappresentazione dello spazio di Tolomeo: la cartografia universale (il globo d Danti) è accostata alla corografia (la rappresentazione dei territori del Granducato), mentre la rappresentazione cosmica dell’universo aristotelico-tolemaico è affidata ad una sfera armillare semovente, da costruirsi ampliando il modello che Santucci aveva costruito nel 1582 e che Ferdinando aveva inviato in dono a Filippo II di Spagna53. Le tavole tolemaiche, asse portante del progetto di Cosimo I, ma innegabilmente di difficile lettura, vennero definitivamente accantonate. Il grandioso globo di Danti, curiosamente “dimenticato” a Palazzo Pitti, fatto restaurare da Ferdinando, acquistò il centro della scena; a lato la sfera armillare dorata, maestosa, di Santucci, con i pianeti e il sole che ruotavano attorno alla Terra – un globo finemente dipinto, che consentiva di distinguere le forme dei continenti attraverso le armille dorate – mostrava la meccanica del mondo celeste. La nascita del Granducato, attraverso la conquista di Siena e dei suoi territori, era così proiettata in un contesto ecumenico e cosmico. I grandi affreschi del dominio fiorentino (730 x 320 cm) e del territorio senese (600 x 320 cm) dipinti nel 1589 da Ludovico Buti sulle pareti della Sala, coadiuvato dal

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51 Il globo, diventato quasi illeggibile, è stato recentemente oggetto di un’analisi diagnostica approfondita. Il riscorso a nuove tecnologie ha finalmente messo in luce la complessa struttura costruita dagli artigiani fiorentini affinché il globo potesse ruotare sia orizzontalmente che verticalmente; il che conferma la descrizione di Vasari: “il quale è fatto con invenzion nuova talmente, che con un sol dito sì gran macchina si muove per tutti i versi, et si fa alzare et abbassare i poli con facilità grandissima”, Vasari 1568, vol. II, 877. Casali 2008, 269-273. 52 53

Milanesi 2002, 34-49 ; Richard 2006.

Filippo II lasciò la sfera armillare in dono al monastero dell’Escorial, dov’è ancora oggi visibile nella biblioteca principale. Cfr. Camerota e Miniati 2008, 245, voce IV.2.2, a cura di Giorgio Strano e la bibliografia citata.


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54 Genovié 1927, 587-632; Heikamp 1970, 3-25; Bacci 1980, 244-255; Heikamp 1983, 461-541; Miniati 1990, 9-48. 55

In Italia se ne conserva un solo esemplare per ciascuna: quello del dominio fiorentino alla Biblioteca Angelica di Roma (BB. 22,27), mentre la descrizione di Siena è alla Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze (Rinasc. Medici 198d , tav. fuori testo, a seguito della p. 188). Entrambe le mappe ebbero tuttavia una larga diffusione europea in due edizioni del Theatrum Orbis Terrarum di Abraham Ortelius, quella latina del 1601 e quella in volgare curata da Filippo Pigafetta nel 1612. 56

Del Badia 1899. Camerota e Miniati 2008, 214 (scheda III.1.4 a cura di Angelo Cattaneo).

57 A questo proposito, vale la pena riportare per intero le due dediche che Buonsignori fece incidere nella Nova pulcherrimae civitatis Florentiae topographia e nella Dominii fiorentini… descriptio. Nella parte destra della topografia di Firenze, in alto, un cartiglio rettangolare riporta questa iscrizione: “Al Ser.mo Gran Duca Francesco Medici. Io ho con molta diligenza descritta in disegno Fiorenza Città degna per la bellezza e per la magnificenza sua d’esser veduta da tutti gli huomini e la mando a V.A. accioché in una vista rimirandola si compiaccia d’esser Principe e Re di Città tanto nobile e tanto illustre che il celebrarla è superfluo; et s’allegri di rivedere in lei gli ornamenti fatti da V.A. dal padre vostro e da vostri maggiori, amandola come benefattore e padre, che Dio sempre la feliciti Sono di V.A. Don Stefano monaco montolivetano”. Nella carta del Dominio fiorentino, all’interno di una cornice ovale, nella parte superiore destra della mappa si legge invece: “Al Ser.mo D. Francesco de’ Medici Gran Dica di Toscana / io ho ridotto in questo piccolo foglio il suo belliss(imo) et ampiss(imo). dominio fiorentino il più / purgato et emendato che mi sia stato possibile / accettilo V. A. lietam. come cosa sua, venuta / da un servitor suo, et fatta coll’aiuto suo; non / vivendo fuor di speranza d’hauverle un dì / a presentare cose maggiori / Il suo Ser.re / D. Stefano monaco di / Monte Uliveto”.

cosmografo di Corte Stefano Buonsignori, derivano rispettivamente da due mappe di piccole dimensioni, intitolate Dominii florentini locorumque adiacentium descriptio (46 x 37 cm) e Senarum locorumque adiacentium descriptio (37,8 x 35 cm) approntate dallo stesso Buonsignori e incise a bulino su rame nel 1584 da un monaco di Vallombrosa, tale Don Vito.54 I disegni preparatori di Buonsignori sono andati perduti, tuttavia le due carte erano state pubblicate a Bologna nel 1586 per i tipi di Gerolamo Franceschi come tavole fuori testo nella Vita di Cosimo I primo Gran Duca di Toscana di Aldo Manuzio il Giovane (1547-1597), grecista di fama, nipote di Aldo Manuzio (ca. 1450-1515), che dal 1573 associò la celebre tipografia di famiglia a quella dei tipografi Giunta di Firenze. Rispetto alla maggior parte dei cicli cartografici murali, di cui si sono perduti tutti i materiali preparatori, le due carte preparatorie, nelle edizioni a stampa del 1584, diventate rarissime55, consentono di meglio mettere a fuoco la genesi e il significato politico della rappresentazione cartografica dei due domini, uniti da Cosimo I nel territorio del Granducato di Toscana e descritti da Buonsignori per il predecessore di Ferdinando, Francesco I. Stefano Buonsignori, monaco olivetano, matematico e cosmografo, allievo di Miniato Pitti, nel 1576 venne chiamato al servizio di Francesco I come cosmografo di corte, succedendo al domenicano Egnazio Danti che, come già accennato, alla morte dei suoi protettori Cosimo I e Giorgio Vasari nel 1574, era stato bandito da Firenze, con l’avvallo di Francesco I, a seguito di un’inchiesta dell’Inquisizione. Buonsignori nel 1584 aveva già disegnato per Francesco I la straordinaria Nova pulcherrimae civitatis Florentiae topographia accuratissime delineata, una rappresentazione topografica di Firenze, incisa ad acquaforte e stampata su nove fogli nel 1584 da Bonaventura Billocardi (“Bona.ra Billocardus ori/fex fecit Flo. 1584”).56 Il disegno preparatorio di Buonsignori è perduto; se ne conserva un’unica copia a stampa nel Gabinetto delle Stampe degli Uffizi (Inv. n. 2614, st. sc.). La mappa è il risultato di un accurato rilievo topografico, organizzato e realizzato da Buonsignori a partire dal 1575-76, con l’ausilio di misuratori e cartografi muniti di bussola e staziografo; la rappresentazione associa il precisissimo rilevamento in proiezione orizzontale proprio di una planimetria a una visione assonometrica degli alzati degli edifici, resi con grande maestria prospettica e artistica. Le carte dei domini fiorentino e senese e la topografia di Firenze facevano dunque parte di un medesimo progetto di rappresentazione accurata dei territori del Granducato, a fini di conoscenza del territorio, non disgiunti dalla celebrazione del potere del principe. Non solo l’intero Granducato era percorribile con un solo sguardo, ma nella stessa rappresentazione si potevano ripercorrere i luoghi salienti della laboriosa e difficile conquista del dominio senese57. Gli affreschi nella Sala della Cosmografia degli Uffizi commissionati a Buti completano dunque un percorso che da Cosimo I, conquistatore e fondatore del Granducato, passa per Francesco I, primo erede di Cosimo e destinatario delle carte di Buonsignori, e giunge fino a Ferdinando. Appropriandosi dell’eredità paterna e del fratello, lo scopo della loro rappresentazione, nella Sala della Cosmografia, è quello di inserire il Granducato fiorentino nella storia universale e cosmica.

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L’aspetto celebratorio degli affreschi e l’imponenza e spettacolarità del globo di Danti e della sfera armillare di Santucci 58 non devono tuttavia oscurare il fatto che le due machinae mundi fossero anche due strumenti che consentivano di esemplificare misurazioni astronomiche e geografiche. A questo proposito, Antonio Santucci nel Trattato di diversi istrumenti matematici in cui, appena terminata la costruzione della sfera armillare, nel 1593 descriveva gli strumenti della Sala della Cosmografia e quelli delle Matematiche, non solo ricorda la passione di Ferdinando per gli strumenti che collezionava anche quando era a Roma durante il cardinalato, ma racconta anche di avere in programma la preparazione di un manuale in cui illustrare i procedimenti di costruzione, ma anche l’uso astronomico e astrologico della sfera armillare59. Il compendio, per quanto ne sappiamo, non venne mai realizzato; si conserva però il Trattato sopra la nuova invenzione della sfera armillare …, composto da Santucci intorno al 1582 come complemento alla sfera armillare donata nel 1582 a Filippo II60, che espone le procedure costruttive del modello cosmologico ed include le circonferenze principali delle sfere celesti, insieme alla spiegazione delle finalità dell’utilizzo dello strumento, prevalentemente a scopo esemplificativo-didattico, per l’astronomia e l’astrologia. Grazie a un sistema di ingranaggi e cremagliere, le armille delle sfere per Filippo II e Ferdinando I potevano essere fatte ruotare attraverso una manovella, permettendo di visualizzare la rotazione diurna dei pianeti intorno alla Terra centrale immobile61. Il globo, le sfere armillari, pur con decorazioni che celebravano i loro committenti, rimanevano essenzialmente degli strumenti. Alla fine del 1599, su consiglio di Filippo Pigafetta, da qualche tempo al servizio di Ferdinando come ambasciatore, alla Sala della Cosmografia venne affiancata una sala più piccola, attigua alla Tribuna degli Uffizi, dedicata all’architettura militare e all’arte della guerra, nota come Stanzino delle matematiche62, in cui venne esposta una raccolta di strumenti di misurazione e rilevamento, modelli di fortezze e di macchine (per sollevare pesi, scavare fossati, piantare pali, gettare ponti, etc.) ma anche mappe e trattati scientifici63. Già nel 1597 Pigafetta illustrò a Ferdinando il progetto di una “Stanza dell’architettura militare” come degno completamento della Galleria agli Uffizi. Gli “instrumenti da dissegnare et misurar con la vista, così in cielo come in terra, et di modelli per sollevar pesi gravissimi con poca forza, et d’inventioni, et d’ingegni diversi et di scritture alla predetta Architettura pertinenti” erano al centro dell’esposizione. Pigafetta si era ispirato a una sala che Filippo II fece costruire all’Escorial64. La decorazione del soffitto curata da Pigafetta e affidata all’architetto e pittore Giulio Parigi (1571-1635), svolgeva una vera e propria storia figurata delle matematiche, che celebrava i grandi matematici e scienziati greci, Pitagora, Tolomeo, Euclide e Archimede e le loro invenzioni, scoperte matematiche e applicazioni (dalla sfera armillare, alle figure geometriche e le loro proprietà e teoremi, ma anche le macchine belliche con cui Archimede nel III a.C. difese Siracusa dall’assedio della flotta romana65) insieme a strumenti moderni, come ad esempio lo sportello per disegnare in prospettiva ideato da Albrecht Dürer, andato purtroppo perduto. Come ricorda Filippo Camerota, “gli strumenti [moderni] raffigurati dal Parigi sono quasi tutti ritratti dal vero tra

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Si veda Camerota e Miniati 2008, 214.

59 Firenze, Biblioteca Marucelliana, Ms. C 82, A. Santucci, Trattato di diversi istrumenti matematici, 1593, f. 4v: “Ad immitation del quale [Cosimo] il Ser.mo Don Ferdinando, Terzo Gran Duca di Toscana, oltre al fare questo trattato per dichiaratione delle operationi de sopradetti strumenti, ve ne ha aggiunti degli altri venuti da Roma, come alchuni bellissimi quadranti e Bussole; et oltre a questo ha anche fatto fabricare al presente una Sfera di Maravigliosa grandezza e la più copiosa che si vedessi gia mai della quale se il Signore Iddio ce lo concedera se ne vedrà presto un copioso compendio, dove si dichiarano i suoi termini con tutte le operationi astronomiche e geografiche che in quella si contengono”, Si cita da Camerota e Miniati 2008, 230. 60

Genova, Biblioteca Universitaria, Ms. F.VII.6, Antonio Santucci, Trattato sopra la nuova invenzione della sfera armillare, c. 1582. 61 Righini e Bonelli 1968, 37-40; Righini e Bonelli 1978, 61-63; Miniati 2000, 280. 62

Come fa notare Filipppo Camerota, la denominazione “stanzino delle matematiche” appare negli inventari della Galleria degli Uffizi del 1638: “Nello Stanzino doue sono li strumenti da / mattemat[ic]a e Carte di Cosmog[rafi]a” (Jesus Maria MDCXXXVIII. Inventario della Galleria, Tribuna e altre stanze, consegnato a Bastian Bianchi come custode di esso, fatto questo dì su detto, 9 dicembre 1638 [aggiornato nel 1654] al tempo dell’amministrazione dell’Ill.mo Sig. March. Francesco Coppoli Guardaroba Generale di S.A.S. mss. cart. in-fol. di c. scritte 69, Biblioteca degli Uffizi, Ms. 76, f. 61v.

63

Prinz 1983, 343-353.

64 Lettera non datata, ma scritta tra il 1597 e il 1599 da Pigafetta a Ferdinando I (Milano, Biblioteca Ambrosiana, S 97 Sup. I, cc. 385-390). Si cita da Camerota 2008, 249. Per l’edizione della lettera, Prinz 1983, 343-353 e Pozzi 2004, vol. II, 181-183. 65

Galluzzi 1989.


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Pozzi 2004, vol. II, 181-183.

67 Cito da Barocchi e Gaeta Bertelà 2002, 107 e mi avvalgo dell’ampio apparato documentale e bibliografico citato e trascritto. 68

Gallo 1943, 47-113; Milanesi 2006; Quinlan McGrath 1997, 1045-1100; Gambi, Milanesi e Pinelli 1996. 69

Hereford, Cattedrale di Hereford, Mappa Mundi, membr., 120 x 180 cm, c. 1300. Si veda Westrem (2001). 70 “Ite in orbem universum, et de omni eius continencia referte ad Senatum. Et ad istam confirmandam, huic scripto sigillum meum apposui”, Westrem 2001, 9. 71

“Lucas in Evvangelio: Exiit edictum ab Augusto Cesare ut describentur Huniversus orbis” (Vangelo di Luca, 2.1), ivi.

quelli che formavano la collezione dei Medici” e in parte sono oggi conservati al Museo di Storia della Scienza di Firenze66. Gli strumenti reali – “oriuoli” (e cioè orologi) da giorno e da notte, astrolabi, regoli, bussole, quadranti, sfere 67 – erano invece esposti su un tavolo, in “palchetti” e in un armadio, insieme a trattati che ne descrivevano la costruzione e l’utilizzo. Vi era inoltre una collezione di mappe, incollate su pannelli di legno incernierati, sedici delle quali sono ancora custodite nella collezione dei “Portolani” della Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze. Era nato il primo museo interamente dedicato agli strumenti scientifici: al centro dell’attenzione non vi erano né naturalia, né artificialia, ma l’uomo osservatore e indagatore della natura, i cui sensi erano potenziati e espansi dagli strumenti, prolungamento dell’intelletto umano. Le due stanze delle matematiche e della cosmografia rimasero sostanzialmente immutate rispetto all’allestimento originale voluto da Ferdinando fino al 1704 quando gli strumenti dello Stanzino delle matematiche furono trasferiti nella Sala della cosmografia, in tre grandi cassettiere fatte appositamente costruire addossate alle pareti. Gli strumenti più grandi trovarono posto nel centro della sala, accanto al globo di Danti, la Sfera di Santucci e a due nuove sfere armillari che raffiguravano il sistema copernicano, eliocentrico, e il sistema misto elaborato da Tycho Braque. Nel 1775 la Sala che, nel frattempo (dal 1704) era stata chiamata Sala della Mathematica, venne definitivamente smantellata e l’intera collezione di strumenti fu gradualmente trasferita nel nuovo Museo di Fisica di Palazzo Torrigiani, l’attuale Museo La Specola, accanto a Palazzo Pitti. Ironia e nemesi della storia, la Sala della Cosmografia degli Uffizi, esistita per quasi duecento anni, non ha ancora ricevuto i tributi trionfali ed encomiastici della vicina e mai esistita “Sala delle Carte geografiche” di Palazzo Vecchio.

Paradigmi e sintassi L’idea di dipingere le pareti o le ante degli armadi di regge o di palazzi pubblici con carte geografiche non era affatto originale, anzi divenne quasi una moda tra gli architetti che lavoravano per i principi o per i palazzi pubblici del Cinquecento. Solo per restare in ambito italiano ricordo la Sala dello Scudo del Palazzo Ducale di Venezia, la Sala del Mappamondo di Palazzo Farnese a Caprarola, la Terza loggia dei Palazzi Vaticani tutte realizzate negli stessi anni68. L’idea, d’altronde, è di origine classica e forse per questo divenne di grande successo già nel corso del Medioevo, fino a imporsi come pratica e gusto condivisi nel Cinquecento. La scelta della cosmografia come forma di celebrazione del potere del Principe attingeva a modelli ben conosciuti e radicati: lo studio, il possesso, la committenza di carte erano un affare per principi. ? un tema che ha radici antiche, come è mostrato in forma eloquente nella Hereford Mappa Mundi, disegnata intorno al 1300 per il capitolo del monastero benedettino di Hereford, nel Regno Unito69. Nell’angolo inferiore sinistro della carta, un imperatore comanda a tre geometri di andare per il mondo, di misurarlo e di farne relazione al senato di Roma70. Più in alto è trascritto un versetto del Vangelo di Luca sul censimento ordinato dall’autorità imperiale71. In quest’associazione affiorano elementi culturali risalenti all’Antichità classica che si

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riversano nella prima età moderna attraversando il medioevo: benché molto più antica, la Hereford Mappa Mundi è fondamentale per decifrare il significato politico del progetto cosmografico della Guardaroba nuova e della Sala della cosmografia. Prima di tutto vi è il ricordo dell’agrimensura romana, una tecnica raffinata di rilevamento, di misura e di rappresentazione delle terre: l’agrimensura e la costruzione di strumenti di rilevamento del territorio furono tra le attività principali che Danti e Buonsignori svolsero a Firenze come “cosmografi di corte”. La stessa parola mappa, nata proprio nel milieu degli agrimensores romani, evoca nella mente degli uomini medievali e della prima modernità il dominio universale dell’impero romano. ? proprio l’esercizio della sovranità, che tramite le conquiste dei territori, permette di conoscere la geografia dell’orbis terrarum, garantendone la veridicità. Tutti questi elementi sono graficamente radunati nell’immagine della mappa mundi di Hereford, così come nei progetti della Guardaroba nuova di Cosimo I e della Sala della Cosmografia di Ferdinando I, nel palazzo di Caprarola, piuttosto che nelle gallerie cartografiche dei palazzi vaticani: in sintesi, la potenza e la sapienza del principe si esprimono in modo perfetto nelle carte geografiche dei territori conquistati, così come nelle carte universali terrestri e celesti che ne inquadrano la legittimità universale e cosmica. Piuttosto, dunque, che sottolinearne la (solo presunta) eccezionalità cartografica, vale invece la pena mettere in evidenza che la cosmografia (letteraria) di Cosimo I, Vasari e Pitti e quella pienamente realizzata di Ferdinando I non erano affatto assimilabili ai numerosi cicli cartografici murali coevi. Il progetto per la Guardaroba nuova di Palazzo Vecchio e le Sale della cosmografia e delle matematiche agli Uffizi, erano invece due sistemi semiotici inventati per ordinare e rappresentare l’imago mundi nel microcosmo delle collezioni granducali, nell’ambito e come forma di celebrazione del potere del Principe. Caso unico nella storia dei paradigmi formulati nel corso del Cinquecento per l’invenzione del museo come spazio di rappresentazione72, la teoria cartografica della Geografia di Tolomeo (II sec. A.D.) – opera che aveva avuto in Firenze uno dei principali luoghi di ricezione e trasmissione – forniva l’impianto teorico e la sintassi per compiere una tale complessa narrazione visuale, attraverso il connubio di arte e scienza. Come Leonardo da Vinci aveva concettualizzato l’impiego delle coordinate cartografiche tolemaiche per la rappresentazione dell’anatomia del corpo umano nel suo “atlante anatomico”73, la cartografia tolemaica, e cioè una rappresentazione dello spazio basata su coordinate geometrico-astronomiche, diviene il principio organizzativo del progetto collezionistico e cosmografico della Guardaroba nuova: la complessità eterogenea dell’imago mundi e l’evenemenzialità della storia universale vengono ordinate dall’univocità delle coordinate astronomiche tolemaiche, integrando la narrazione visuale della storia universale implicita nella galleria degli uomini illustri pensata e realizzata da Paolo Giovio nel suo museo di Borgovico, e fatta copiare da Cosimo I, con artificialia, naturalia, globi, e un orologio astronomico. Coordinate e proiezioni consentivano di mostrare i legami e le corrispondenze tra il cangiante, corruttibile e perituro mondo sublunare con la perfezione cosmica del mondo celeste, dei pianeti e delle stelle fisse, fino all’empi-

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Findlen 1994 e Pommier 2007, 315-335.

[Leonardo da Vinci] a cura di Keele e Pedretti 1980; [Leonardo da Vinci] 1977.


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74 Claudii Ptolemaei Cosmographie Liber primus, cap. primum: “In quo differt Cosmographia a Chorographia” (ad esempio in Firenze, BNCF, Magl. XIII,16, f. 3r); si veda Jones e Berggren 2000, 57-59. 75

Da ultimo, si veda Miniati 2008, 73-91.

reo. Il principe demiurgo ordinava il cosmo, rivendicando e celebrando il proprio (modesto, nel caso dei Granduchi di Toscana) potere come parte di un ordine cosmico universale, ispirandosi agli apparati celebrativi imperiali e papali. Diversa, ma ancora profondamente tolemaica, era la sintassi narrativa che stava all’origine della Sala della cosmografia degli Uffizi. L’insieme formato dalle corografie sulle pareti della Sala (gli affreschi dei territori medicei alle pareti), dal globo terrestre di Egnazio Danti e dalla sfera armillare di Antonio Santucci posta al centro esemplifica tutti i linguaggi e le sintassi cartografiche così come definite nel Libro I della Geografia di Tolomeo, e cioè la cosmografia, la geografia e la corografia74. Rispetto al padre Cosimo I, Fernando I cambia teatro, strategia e scenografia; inoltre semplifica e ridimensiona i contenuti del progetto cosmografico, ma la finalità celebratoria rimane la stessa: le modeste – quanto dispendiose e difficili – conquiste territoriali medicee vengono accostate alle più grandi machinae universalis mai costruite. Un ulteriore elemento innovativo rispetto ai progetti cinquecenteschi di invenzione dei musei appare nell’attiguo Stanzino delle matematiche: le collezioni di naturalia e artificialia sono sostituite dagli strumenti (di misurazione e rilevamento, ma anche mappe e trattati scientifici) posti gli uni accanto agli altri. Lo stanzino inaugura una nuova forma di rappresentazione della natura attraverso la celebrazione degli strumenti, prolungamento e potenziamento della mente umana, che consentono e costituiscono per sé nuove visioni del mondo75.

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Resumo Um conjunto de desenhos da Biblioteca Pública de Évora, da autoria do arquitecto Joaquim de Oliveira, podem ser identificados com projectos para edifícios de Bibliotecas e Museus idealizados por Frei Manuel do Cenáculo para as suas colecções, primeiro em Beja e depois em Évora, as duas cidades onde ocupou a Mitra. São dos primeiros desenhos de arquitectura conhecidos para Museus em Portugal.Cenáculo esteve ligado à criação de algumas das primeiras bibliotecas públicas portuguesas, como a Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, a Biblioteca da Real Mesa Censória, antecessora da Biblioteca Nacional, e a Biblioteca Pública de Évora. Foi também o fundador do primeiro Museu Público, o Museu Sesinando Cenáculo Pacense, inaugurado em Beja, em 1791. A necessidade de unir a biblioteca e o museu como instrumentos essenciais de base da construção do edifício científico é exposta várias vezes no pensamento de Frei Manuel do Cenáculo que, até à sua morte, tentou por várias vezes dar forma a este projecto, finalmente concretizado na Biblioteca Pública de Évora em 1805, já depois da morte do arquitecto.

palavras-chave Museus Bibliotecas Arquitectura Joaquim de Oliveira Frei Manuel do Cenáculo

Abstract A group of drawings from the Public Library of Évora, by the architect Joaquim de Oliveira, can be identified as projects for buildings of Libraries and Museums conceived by Frei Manuel do Cenáculo for his collections, first in Beja and then in Évora, two cities that were part of his diocese. These are the first known architectural drawings for Museums in Portugal. Cenáculo was connected to the creation of some of the first Portuguese public libraries, such as the Library of the Science Academy of Lisbon, the Library of the Royal Censorial Table, a predecessor to the National Library, and the Public Library of Évora. He was also the founder of the first Public Museum, the Museu Sesinado Cenáculo Pacense, founded in Beja in 1791. The need to combine library and museum as key instruments for the basis of construction of a scientific building is shown in Frei Manuel do Cenáculo’s thinking, who up until his death has tried several times to give life to this project, which was finally brought to a close with the Public Library of Évora in 1805, well after the death of the architect.

key-words Museums Libraries Architecture Joaquim de Oliveira Frei Manuel do Cenáculo


OS PROJECTOS DO ARQUITECTO JOAQUIM DE OLIVEIRA PARA AS BIBLIOTECAS-MUSEU DE FREI MANUEL DO CENÁCULO JOAQUIM OLIVEIRA CAETANO Museu Nacional de Arte Antiga

1 No seu conjunto esta documentação permanece inédita. Já tinham sido no entanto referenciados por Gabriel Pereira, Cartas Geographicas e Topographicas, gravadas ou Manuuscriptas conservadas na Bibliotheca Pública de Évora, s.l.. 1880, e por nós (Caetano, 2005). Recentemente tiveram uma primeira análise em Rodrigues, 2008:p. 70 e segs.

Duas dezenas de desenhos existentes na Biblioteca de Évora dizem respeito a projectos realizados pelo arquitecto Joaquim de Oliveira para Frei Manuel do Cenáculo. Concretamente, para institutos científicos que Cenáculo pretendeu criar em Beja e Évora, cidades de que foi respectiva e sucessivamente Bispo e Arcebispo e para onde projectou Bibliotecas e Museus, acabando no entanto por concretizar realizações bem mais modestas do que os projectos que agora revelamos deixam ver que terá sonhado. Mas representam, como veremos, documentos importantíssimos quer no contexto da história dos Museus em Portugal, quer na clarificação do papel de Cenáculo nessa história1. Frei Manuel do Cenáculo foi um dos vultos da cultura portuguesa do século XVIII que mais contribuiu para o nascimento de instituições públicas do saber, sendo mesmo esta uma das principais características da sua actuação. Esteve na génese de algumas das principais bibliotecas portuguesas, como a do Convento de Jesus/Academia das Ciências, Biblioteca Nacional e Biblioteca Pública de Évora e fundou em Beja, em 1791, o primeiro museu público português, o Museu Sesinando Cenáculo Pecence. Se quisermos sintetizar os aspectos essenciais da sua actuação cultural podemos dizer que a noção profunda da necessidade de reforma dos estudos, tendo como base a dotação de instrumentos de conhecimento como as bibliotecas, e a noção profunda da necessidade de compreensão e estudo da cultura material são dois aspectos centrais do seu pensamento e da sua prática (Caeiro, 1959 e Calafate, 1994). Esta consciência ,que o levará a coleccionar e a disponibilizar ao público as suas colecções, pode ser encontrada no momento essencial de viragem em que decorreram os primeiros anos da sua apren-

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dizagem. Cenáculo nasceu em 1724, em Lisboa, de família humilde, tendo optado muito cedo, talvez pelas modestas posses familiares, pela entrada na Religião. Aos 12 anos frequentou na Congregação do Oratório, em Lisboa, o curso de Filosofia do Padre Baptista Carbone. Aos 15 anos passou porém para os Franciscanos da Ordem Terceira da Penitência, rumando a Coimbra, em 1740, para lições com Frei Joaquim de S. José, que sempre considerará o seu grande mestre e a quem o unirá até ao fim da vida um profundo respeito e amizade. O próprio Cenáculo considerou que foi o seu mestre quem em Portugal iniciou a reforma da filosofia: “desde o ano de quarenta deu entrada a mil e mil faíscas, que unidas, haviam de ser depois luz radiosa”. A formação de Cenáculo e a sua intensa curiosidade pelo conhecimento beneficiaram desse momento de efervescência na educação portuguesa, anquilosada por séculos de escolástica, que teria o seu auge em 1746 com a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de Luis António Verney. Mas o interesse de Cenáculo pela investigação histórica e pelo coleccionismo, beneficiou também de um momento priviligiado em Portugal no reinado de D. João V, com o próprio exemplo régio, a formação da Real Academia de História, o decreto de 1721 que pela primeira vez define um conceito de património histórico e sublinha o valor dos monumentos e do património material no estudo do passado. Um momento essencial da formação do franciscano foi a viagem que juntamente com o seu mestre fez a Roma no ano de 1750, e da qual deixou um diário manuscrito (Biblioteca Pública de Évora, doravante BPE, CV/1-10). Do Diário ressalta o impacto causado pela Biblioteca Real de Madrid e pela Universidade de Alcalá, em Espanha, a Universidade de Turim e o Instituto Specula de Bolonha, sediado no Palazzo Poggi, que lhe deixa uma viva impressão, não só pelo avanço científico no estudo da astronomia e das matemáticas, como pela organização espacial das salas abertas para o claustro, divididas por áreas de saber, agrupando, cada uma, modelos, objectos e colecções do seu tema de estudo, para além de uma biblioteca. Cenáculo visitou ainda Barcelona, Milão, e Roma, que afirma no seu Diário não ter palavras para descrever, gaba a arquitectura de Itália, mas é esse modelo de Bolonha, reunindo os objectos à Biblioteca que se tornará decisivo na sua acção e lhe marcará a perspectiva de coleccionador. A actividade da Academia de Bolonha já devia aliás ser conhecida anteriormente por Cenáculo, pois coube ao seu primeiro mestre João Baptista Carbone a resposta a um pedido da Academia Bolonhesa a D. João V para o envio de “curiosidades naturais” de Portugal para o enriquecimento dessa instituição (Brigola, 2003, p. 76) criada “per l’uso pubblico di tutta terra”, um princípio que se verá bem vincado na futura actuação do Arcebispo e nos fins que procurará dar às suas bibliotecas e colecções. Embora não se saiba exactamente quando Cenáculo começou a coleccionar é certo que já nos anos de Lisboa, onde regressa em 1757, quando é nomeado Cronista da Província Franciscana, depois dos anos passados em Coimbra como lente de Teologia no Colégio de S. Pedro, possuía uma razoável colecção e um gosto em reunir informações de carácter arqueológico. Fr. Francisco Sanches Sobrinho refere-se à sua colecção lisboeta, que incluía já uma série de inscrições e um importantíssimo monetário catalogado (Hubner, 1871, p.6).

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A vinda para Lisboa correspondeu ao período de maior intervenção de Cenáculo na esfera pública, sustentada pelo apoio de Pombal, um suporte que se estreitará sobretudo na década de 1760, acentuando-se depois do Ministro de D. José ter aceite a dedicatória das “Memórias Históricas do Ministério do Púlpito”, terminadas por Cenáculo em 1766. Nos anos “lisboetas” Cenáculo acumulou um grande número de cargos religiosos e políticos: Cronista da Ordem Terceira em 1757, Inspector das Igrejas das Ordens Militares, em 1758, Capelão mor das Armadas, em 1764, Provincial dos Terceiros, em 1768, confessor do Príncipe D. José no mesmo ano, que o verá ainda nomeado para Capelão Régio e Deputado da Real Mesa Censória, cuja presidência ocupou em 1771. Já um ano antes D. José o propusera para Bispo da recuperada Diocese de Beja, e o nomeara preceptor do Príncipe do Brasil. Ainda em 1770 ocupou o cargo de Primeiro Conselheiro da Junta da Providência Literária (veja-se sobretudo Marcadé, 1978: pp. 51-80). A Junta, recém criada, estava ocupada na reforma do ensino e foi um dos principais projectos de Pombal. Já antes porém a Real Mesa Censória, que Cenáculo dirigia, tinha a supervisão da reforma do Colégio dos Nobres, o que torna assim Cenáculo, no início da década de 1770, a figura central na reforma do ensino em Portugal. É esse o momento em que tem condições para tentar levar à prática, sobretudo depois da criação da Junta do Subsídio Literário (em 10 de novembro de 1772) que deveria fornecer as bases financeiras para a reforma dos estudos, através do imposto sobre as bebidas alcoólicas, as suas ideias de criação de Bibliotecas e Museus. É no seu âmbito que Cenáculo projectará a Biblioteca da Real Mesa Censória, que deveria ocupar o lado Ocidental da Praça do Comércio. Não conhecemos os planos para esta biblioteca, mas em 1773, a 4 de Julho, Cenáculo entregou ao arquitecto Reynaldo Manuel dos Santos, uma memória do que deveria ser o edifício, “huma casa vasta, bem proporcionada, majestosa, capaz de muitos mil volumes”, com um átrio “indispensável para Ornato, e pela decência”, gabinetes e salas de leitura, oficinas e casas para mapas e globos, raridades e manuscritos, e também galerias para monetários, estampas, desenhos e pinturas “principalmente dos sujeitos Mestres, o que He ornato essencial de uma biblioteca” (ANTT, Ministério do Reino, Lº 362, fl. 113vº 114. Domingos, 1992:148). Como dissemos, desde que em 1750 fez com o seu mentor uma visita a Roma passando por várias bibliotecas em Espanha e Itália se formou no espírito de Cenáculo a importância da criação de um estabelecimento científico que unisse uma biblioteca e um Museu. Esta ideia transparece logo no seu diário de viagem e tem expressão por várias vezes na sua obra e nos escritos dos seus colaboradores mais próximos. Por exemplo, no plano de Reforma dos Estudos Menores e seu financiamento pelo Subsídio Literário, que propõe em 1773, sugere como Primeira Aplicação a “compra sucessiva e inextinguível de livros para a Biblioteca Pública ... para se formar não somente uma das primeiras Bibliotecas da Europa, mas também que seja decorada de preciosos manuscritos e dos livros mais raros e escolhidos”. A segunda aplicação seria “a composição de um Museu de Raridades para o que dão hoje exemplos, e estímulos de Sciencias e de paixão as Nações cultas, mas que brevemente hajam de receber os mesmos e mais

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FIG. 1 - Tommaso Zappati, Topo da Biblioteca Casanatense, Roma, 1773, 50,2 x 36,7 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 36) .

FIG. 2 - Tommaso Zappati, Outro topo da Biblioteca Casanatense, Roma, 1773, 50,4 x 36,8 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 34).

significantes exemplos desta Capital”. O projecto de Cenáculo incluia assim no conceito de biblioteca o de museu, com a apresentação pública de raridades e colecções de arte. Ou seja, propõe não só a criação de uma biblioteca central, mas também a de um Museu Nacional, ideia que demorará mais de um século a cumprir-se. O conjunto de desenhos da Biblioteca Pública de Évora inclui alguns planos de bibliotecas e academias, sendo muito relevantes, quer pela sua qualidade, quer pela data de 1773, coincidente com a apresentação do seu projecto a Reynaldo Manuel dos Santos, os três desenhos do interior da Biblioteca Casanatense de Roma (FIG. 1,2 e 3). São três belos e grandes desenhos aguados a cinza, que representam os topos e um corte transversal do interior desta biblioteca, inaugurada no início do século XVIII. O corte está datado de 1773 e assinado por “Tomaso Zappati Nipote di N. Pagliarini”. Nicolau Pagliarini era amigo de Cenáculo e o principal dos seus fornecedores. Homem profundamente ligado a Pombal foi desde 1768 “encarregado da custódia e arrumação das livrarias do Paço e do Real Colegio dos Nobres” e director geral da Impressão Régia, para além de fornecedor principal da Real Biblioteca Pública. Regressou a Roma depois da queda de Pombal. A sua cumplicidade com Cenáculo é atestada numa

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FIG. 3 - Tommaso Zappati, Corte longitudinal da Biblioteca Casanatense, Roma, 1773, 50,1 x 95 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 32).

2 Uma visão muito interessante da importância da investigação arqueológica e do restauro de monumentos clássicos em Roma neste período está em Ridley 1992, com referencias concretas à actividade de Zappatti a pag. 36-37.

intensa correspondência de dezenas de cartas (Gusmão, 1944-56 e Vaz, 2009). Não é possível no entanto identificar com segurança este Tomaso, sobrinho de Pagliarini, com o seu sobrinho do mesmo nome que continua o papel de agente do tio como comprador de livros para Cenáculo. Numa carta datada de Roma, de 11 de Novembro de 1789, Nicolau diz que o seu sobrinho “Thomaz continua estudando português para poder servir Cenáculo” (Gusmão, 1944-56, carta 4332), mas é difícil saber se se trata do arquitecto ou do futuro agente, ou até se são a mesma pessoa. Tommazo Zappati, que assina os três belos desenhos do interior da biblioteca Casanatense, aparece ligado sobretudo a obras de restauro e antiquariato. Deveu-se-lhe a desobstrução dos arcos de Severo e Constantino e fez projectos para salvaguarda do Coliseu, para além do monumento efémero em honra do Papa Pio VII, conhecido como “Il Triunfo di Constanza”, do qual existe uma gravura de Bartolomeo Pinelli. Segundo Missiri era “arquitecto engenhoso e pleno de fantasia” (Missiri, 1823: 427) e trabalhou sobretudo no período em que António Canova era Inspector Geral das Belas Artes de Roma e do Estado Pontifício e em que foram efectuadas importantes obras nos monumentos da Antiguidade de Roma (Jokilehto, 1999:126-143)2.

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O atraso nas obras da Praça do Comércio, com o privilégio dado à instalação e inauguração da Estátua Equestre de D. José, ditaram a demora e o abandono do projecto da Biblioteca, da qual não conhecemos nenhum estudo de Reynaldo Manuel dos Santos, mas pela mesma altura Cenáculo envolveu-se noutra biblioteca, a do Convento de Jesus, convento onde havia professado e ao qual estava profundamente ligado, até pelo cargo de ocupou entre 1768 e 1777 de Provincial da Terceira Ordem Franciscana. As suas preocupações com a reconstrução do edifício envolvem aspectos de salubridade, iluminação, mas também de ensino dos noviços e do papel nesse ensino da biblioteca, reforçada com espólio de colégios jesuíticos extintos (Vaz, 2004 e BPE, cod. CXXVIII/2-5). O próprio Cenáculo doa cerca de 3000 livros para o enriquecimento desta biblioteca mas está igualmente interessado na reconstrução da Igreja das Mercês, cujas obras se prolongaram por mais tempo do que normalmente é dito (França, 1987:190-91 e Rossa, 1989), pois em várias cartas trocadas com o seu amigo e condiscípulo D. Fr. João Evangelista Pereira da Silva, Bispo do Pará, vai dando conta do adiantamento da obra do adro e do frontispício da igreja, até à sua finalização em 1777 (Gusmão, 1944-56: carta 890). José-Augusto França considerou justamente as Mercês como a “a mais bela fachada das igrejas de Lisboa: movimentada, alegre, um pouco pretensiosa, mas de uma nobreza segura” e a sua autoria tradicional ao arquitecto Joaquim de Oliveira está hoje documentalmente provada3, o que tem para nós a maior das importâncias, pois é este arquitecto que veremos sistematicamente ajudar Cenáculo nos seus projectos futuros em Beja e Évora. Joaquim de Oliveira tinha relações de parentesco com Cenáculo e o termo “primo” aparece várias vezes referido na correspondência entre ambos. Conhecem-se seis cartas de Joaquim de Oliveira para Cenáculo entre 1776 e 1785 (Gusmão, 1944-56: cartas 2453 a 2458) e várias referências ao arquitecto em correspondência para outros interlocutores (cf. Vaz, 2009). O percurso de Joaquim de Oliveira, cuja competência artística é bem expressa na Igreja das Mercês, está mal estudado, ainda que se conheçam bastantes passos da sua actividade, sobretudo pelo currículo de Obras Públicas, que a sua viúva, Maria Wargart, insere num pedido feito após a morte do marido, em 1803, para que fosse socorrida da difícil situação económica em que se encontrava. Foi arquitecto da Casa do Risco da Junta do Comércio, medidor e arquitecto das Obras dos Paços Reais, arquitecto das obras do Conselho da Fazenda e arquitecto do Senado de Lisboa. Entre as obras nomeia-se o trabalho de 50 anos em obras de faróis, a autoria do Quartel da Cruz do Tabuado, da reedificação do Convento de Palmela e ainda projectos para o Convento de São Bento e para o Palácio da Ajuda (Viterbo, 1904). Joaquim de Oliveira teve certamente a protecção de Cenáculo que, por parentesco, amizade e colaboração se interessou amiudadamente pela sua carreira. Numa carta a Mayno de18 de Julho de 1778, agradece-lhe o despacho que concedera ao arquitecto e queixa-se de não ter sido feita justiça a Joaquim de Oliveira “na dependência de arquitecto” (Vaz, 2009:102). Cenáculo foi nomeado para Bispo de Beja, uma diocese interrompida desde o período Visigótico, no auge da carreira e do seu peso na vida portuguesa, em 1770, e sagrado

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FIG. 4 - Joaquim de Oliveira, Planta do antigo colégio jesuítico de S. Sesinando, de Beja, 1774, 44,8 x 29,8 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 56).

FIG. 5 - Joaquim de Oliveira, Planta do conjunto de edifícios projectado para Frei Manuel do Cenáculo, incluindo Catedral, Seminário, Jardim, Paço Episcopal, Capela, Cocheiras, Biblioteca e Museu, 42,1x26,8 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 16).


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3 Agradecemos a Sandra Costa Saldanha esta informação, baseada em documentação inédita que em breve será dada a conhecer pela historiadora.

na Real Capela da Ajuda em 28 de Outubro desse ano, mas só três anos depois entrou pela primeira vez na cidade, regressando de novo à corte, até que em 1777, após a morte de D. José, o afastamento do Marquês de Pombal e o início do adverso reinado de D. Maria I, o Bispo decidiu, por vontade própria ou pela força das circunstâncias, ausentar-se da corte e fixar-se em Beja. Não sabemos se Oliveira acompanhou o novo bispo na sua primeira visita à diocese, mas a ideia de Cenáculo para a ocupação do colégio jesuítico nasceu dessa visita a Beja, pois a “Memória” que acompanha o levantamento de Joaquim de Oliveira data de 4 de Julho de 1774. O Colégio havia sido começado no final do século XVII, depois de várias tentativas dos Jesuítas e uma forte oposição dos Franciscanos que tinham obtido privilégios no estabelecimento na cidade. Em 1673, acabada a Igreja de S. Sesinando instalou-se nela um grupo de Jesuítas que tinha vindo pregar na cidade três anos antes. Esta ocupação foi confirmada por D. Pedro II em 22 de Março de 1687, mas só em 12 de

FIG. 6 - Joaquim de Oliveira, Projecto de fachada para a Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 26,8 x 78,8 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta 1, nº 51).

FIG. 7 - Joaquim de Oliveira, Projecto alternativo de fachada para a Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 26,8 x 78,8 cm (BPE, reservados, Gaveta 8, Pasta I, nº 37).

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Março de 1695, depois de um voto da rainha Dona Maria Sofia, foi lançada a primeira pedra do novo colégio, um edifício grandioso, semelhante ao eborense, dedicado a S. Francisco Xavier. Apesar da grandeza do projecto, a Igreja principal nunca chegou a ser construída (veja-se, Mss. 213, nº 25 dos Reservados da Biblioteca Nacional). Cenáculo começaria mais tarde a reelaboração da igreja para Catedral, mas nesta primeira fase, como se percebe do projecto arquitectónico, interessava-lhe sobretudo a transformação do edifício em Seminário. A planta (FIG. 4) mostra, para além de uma livraria na parte norte, com gabinete e salas para o Provisor, e de uma capela no topo nascente, uma ocupação de toda a ala sul com salas de aula, acomodações dos professores e zonas utilitárias para cozinhas, quartos de criados, etc. Mais interessante é a planta de implantação (FIG. 5), onde se vê como o antigo edifício da Companhia

FIG. 8 - Joaquim de Oliveira, Planta do piso térreo da Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 28,9x80,2 cm (BPE, reservados, Gav.8, Pasta I, nº 53).

FIG. 9 - Joaquim de Oliveira, Planta do piso nobre da Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 28,5x 82 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 43).

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FIG. 10 - Joaquim de Oliveira, fachada sul e corte transversal (E-W) da Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 41,9x27 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 28).

FIG. 11 - Joaquim de Oliveira, Cortes do corpo Central com átrios e escadaria da Biblioteca e Museu de Frei Manuel do Cenáculo em Beja, 46,6x28,6 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 55) .

era inserido numa grande mole de edifícios episcopais que ocupariam uma grande parte da actual Rua Frei Manuel do Cenáculo e do Jardim Público. A Sul do Colégio, que mantinha as valências de Seminário, Cenáculo e Oliveira projectam uma rua que ligava o edifício a dois corpos. Um, mais a nascente, era composto pelas cocheiras e pela capela do Paço Episcopal e o bloco poente era destinado a Biblioteca e a Museu. Ao centro, envolvendo um pátio, ficavam as salas de aula e no topo sul situar-se-ia o Paço Episcopal. A parte que mais interessou a Cenáculo parece ter sido a da Biblioteca e Museu, pois é a única de que conhecemos desenvolvimentos de pormenor desta planta de distribuição através de cortes, plantas e desenhos de fachada com duas alternativas (FIG. 6 e 7). Ambas as fachadas são iguais na sua dimensão e distribuição, com um corpo central coroado de frontão triangular, diferindo apenas no desenho do pórtico, nos dois casos rusticado, mas numa das hipóteses ligado ao janelão do primeiro piso e noutro coroado por um frontão em arco abatido. Num dos desenhos as janelas do piso superior são mais altas, com bandeiras, e no outro têm um desenho de moldura ligeiramente mais elaborado.Mas o aspecto geral do edifício, com o corpo central bem marcado, assim como os dois topos, a cimalha corrida em platibanda, e um prospecto de grande horizontalidade são muito semelhantes, não havendo, como se pode ver pelas duas plantas de ambos os pisos, modificações a este nível para os dois projectos (FIG. 8 e 9). O corpo central desdobra-se num grande átrio de recepção, com uma escadaria monumental num corpo mais recuado. Recorde-se que já no papel dado a Reynaldo Manuel dos Santos para a Biblioteca da Real Mesa Censória, em 1773, a que acima aludimos, Cenáculo acentuava a importância do átrio como “indispensável para ornato, e para a decência”, ideia que aparece expressa neste plano de Joaquim de Oliveira, tal como a utilização do piso térreo com uma sequência de divisões, necessárias, a julgar pelo pensamento de Cenáculo descrito no papel referido, para “armazéns capazes de albergar materiais de imprensa e oficinas de encadernação e livros e livrarias antes da catalogação, além de livros de “ordem inferior” (Domingos,1992,p.148). Para o corpo central Joaquim de Oliveira apresenta em dois cortes projectos alternativos (FIG. 11) onde se pode ver a escadaria, com pequenas alterações , variações nas janelas, de bandeira semicircular num e rectangular noutra e, sobretudo alterações no portal de entrada para as salas superiores, claramente mais barroco no projecto de cima e mais clássico no inferior, com frontão triangular e colunas embebidas. Para o corpo principal do edifício apenas conhecemos um projecto (FIG. 10) que mostra o piso térreo dividido por um corredor central e no superior uma só nave ampla abobadada, que correspondia ao espaço das salas de Museu e de Biblioteca, cada uma com 30 metros de comprimento por 12 de largura. Nesta folha apresenta-se ainda a fachada do lado sul com ligação ao que seria o edifício do Paço. Praticamente nada destes projectos teve execução prática. Em 1777 com a morte de D. José e a queda de Pombal, Cenáculo sofreu a sorte de outros pombalistas. O mal estar na corte leva-o a fixar-se em Beja, com certo alívio, pois comemorará para sempre a data da sua saída de Lisboa. Em Beja esperava-o a tarefa hercúlea de organi-

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zação de uma diocese vasta e desamparada e com pouquíssimos meios, dado que muitas das rendas ficavam na arquidiocese de Évora e nas Ordens Militares. Foram anos difíceis que não permitiram abalançar-se a uma realização tão grande como a que tinha idealizado. Chegou mesmo a pensar vender tudo e de facto tentou arranjar compradores para uma série de preciosidades, quer da colecção do Museu, quer da Biblioteca. Numa minuta de resposta a uma carta de Fr. Rafael Mohedano, datada de 21 de Novembro de 1781, Cenáculo expressa bem o desalento pela situação que vivia em Beja, no tocante à sua colecção e à falta de recursos para a manter: “aqui se me perdem Pinturas, e livros porque não tenho casa própria para isso, nem facilmente a poderei fazer, havendo pobreza infinita que deve prevalecer. Se V. M. tiver modo de saber quem compre daquela fazenda, avise porque certamente estou em animo de desistir do que não he possível conservar, e melhor he dinheiro, e mais útil do que alfayas pobres” (BPE, cod. CXXVIII/2-19). Apesar do desalento continuou os seus trabalhos arqueológicos e históricos, que até intensificou criando uma rede de informadores entre os párocos que lhe faziam chegar peças e descrições de todo tipo de achados, e continuava a contar com amigos na côrte, que o visitam por vezes em Beja (Marcadé, 1978: 227-8) e com a permanência do apreço do próprio Príncipe D. José, seu discípulo e amigo que, já em 1783, o defendeu para a mitra vaga de Évora4. É uma época de grande austeridade, mas proficua, em que Cenáculo divide o Seminário entre a sua residência e algumas aulas, ocupa como catedral a próxima igreja paroquial do Salvador, e se dedica enormemente aos trabalhos arqueológicos, e à recolha de peças e as informações do vasto território abundante em vestígios5. É um período de desalento político mas muito fértil nas investigações pessoais, o que lhe faz aumentar a fama de erudito, o que conjuntamente com as relações com outros académicos e as doações que faz para outras instituições científicas, terá o seu peso na reabilitação política do Bispo de Beja (Caetano, 2005). Não sabemos todos os motivos que levaram a que Frei Manuel do Cenáculo não iniciasse imediatamente os seus grandes projectos arquitectónicos. Em 1777 João Pedro Ribeiro escrevia-lhe dizendo “ter ficado admirado com o que se passa acerca da obra da igreja que deve servir de Catedral” (Gusmão 1944-56: carta 2206). E em 20 de Agosto do ano seguinte, o mesmo aconselhava Cenáculo a “manter-se no seu retiro de Beja”, a não aparecer, para não surgirem as “maquinações dos seus inimigos” e a continuar a sua grande obra, que “acabará por ser reconhecida de todos” (idem, carta 2213). O Bispo enfrentava pois um clima muito adverso, mas é de crer que na não prossecussão dos seus maiores projectos estivesse sobretudo uma grande deblidade económica das suas rendas pessoais e da diocese, nova, pobre, e ainda muito deblitada pela não transferência de todos os rendimentos da mitra de Évora. A situação económica só vem a melhorar depois de 1790, quando estes problemas começam a ser sanados. Uma importante carta de Pagliarini, datada de Roma em 13 de Janeiro de 1790, mostra as diligências que Cenáculo fazia aí para conseguir a consolidação das rendas da nova diocese para obter proventos suficien-

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Uma carta de Alexandre Ferreira de Faria Manuel, datada de 3 de Abril de 1783, conta a Cenáculo uma reunião da família Real a esse propósito, mostrando profunda alegria pelo que parece ser o início da reabilitação política de Frei Manuel do Cenáculo: Agora dou a V. Exª mil Parabéns do que lhe vou dizer e lho digo e refiro com o mais excessivo gosto; gosto e alegria sem dúvida a maior que tenho tido depois que tive a desgraça de V. Exª se auzentar desta Cidade: Estando a Raynha, e El Rey, e o Príncipe juntos; disse este que o Arcebispado de Évora estava vago e que ele o pedia para o Bispo de Beja: a Raynha ficou como suspensa, e disse que o Arcebispado de Évora era para pessoa de grande qualidade: replicou o Príncipe, que mais qualidade que ser Bispo! e Bispo como o Bispo de Beja que he meu Mestre? a Raynha como perturbada disse ao Príncipe: o Tio (isto he El Rey) he quem hade resolver isso; El Rey respondeu: Eu não me meto nisso. O Príncipe instou e a Raynha sem rezolver nada se levantou, olhos arrazados em lágrimas, e se foi: Este facto He certíssimo, e talvez He maior do que refiro: Quem o presenciou o referio a quem a mim mo contou dando-me disso os Parabéns” (BPE, cod. CXXVIII/1-10, fl.. 106).

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O melhor documento para avaliar o interesse da sua actividade arqueológica, para além das cartas e do diário, é o manuscrito de Cenáculo “São Sesinando mártir e Beja sua Pátria”, conservado na Biblioteca Pública de Évora cod. CXXIX/1-9 e publicado por Manuel Joaquim Delgado, no “Arquivo de Beja”, vol. III e seguintes, 1946.


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É muito provável que a melhoria das relações da corte mariana com Cenáculo se relacione não só com o abrandamento da crispação política que se seguiu à queda de Pombal e à reclusão bejense, sem grande intervenção pública, do Bispo, como muito directamente com os acontecimentos decorrentes da morte do Príncipe D. José em 11 de Setembro de 1788. Cenáculo tinha uma profunda admiração pelo Príncipe, de quem fôra confessor e mestre, sentimento que era recíproco. A queda em desgraça do Bispo de Beja parece ter mesmo sido precipitada por um plano que Cenáculo expõe ao Príncipe, em 19 de Março de 1777, logo após a morte do rei D. José, para o fazer alçar ao trono. Em 16 de Dezembro de 1788, Cenáculo realizou em Beja um acto solene pela morte do Príncipe do Brasil, onde recitou uma brilhante e sentida Oração Fúnebre em memória de D. José, testemunho que foi muito apreciado na côrte, o que, conjuntamente com o desaparecimento daquele que poderia ser o ponto de unidade dos antigos pombalistas, parece ter feito desaparecer a má vontade da côrte em relação a Cenáculo. De facto, logo em 9 de Abril de 1789, Cenáculo recebeu autozição de Dona Maria para ir a Lisboa tratar dos assuntos da diocese, como anota no seu diário (Vaz, 2009:p. 597). Veja-se também Ferro, 1989. O original da Oração, sob o título de “Oração Funebre que nas Exequias celebradas na Cathedral de Beja disse o Bispo daquella Diocese no dia desaseis de Dezembro de 1788 em Memoria saudossisima do nosso Amado Principe o Senhor D. Joze que Deos tem” está na BPE, códice CXXIX/1-18. Também não é por certo casualidade que esta reaproximação de Cenáculo à corte se dê precisamente na altura em que o seu amigo, também pombalista, José de Seabra da Silva (1732-1813), regressado do exílio angolano é promovido a Secretário de Estado. Com ele tratará, como veremos, Cenáculo os principais assuntos.

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Uma cópia desta autorização da Rainha encontra-se na BPE, códice CXXIX/1-20, fls. 212.

8 A escritura não deve ter sido realizada de imediato, pois ainda em 11 de Julho, Bernardo de Lima “procurador de Cenáculo” manifestava em carta as suas dúvidas sobre a necessidade de se abrir ou não concurso público para as obras “pois é de lei que se abram, quando se trata de aplicação de capitais, quer do Estado, quer da Igreja”( BPE, cod. CXXVII/1-4, Gusmão, 1944-56: carta 634)

tes para o início das obras. Pagliarini escreve que em primeiro lugar é necessário “alcançar de Pio VI o Breve de confirmação do Bispado de Beja”, criado por Clemente XIV, e em segundo lugar “que o Santo Padre mande pertencerem ao Bispado de Beja os rendimentos que a Igreja de Évora cobra nas vilas de Serpa e Moura” e tentar a “supressão do Arcediago de Oriola”, revertendo os bens deste “com os 23 benefícios vagos” para se utilizarem na “Fábrica da Igreja, Seminário e Casa Episcopal” (Gusmão, 1944-56:carta 4309). Só a solução deste problema permitiu a Cenáculo alguma verba para suportar a renda do Cofre da Massa da Catedral, que tinha instituído. Por essa altura Cenáculo foi pessoalmente à corte e lá se deteve alguns meses para tentar resolver todos os problemas económicos do Bispado, contando já então com uma boa recepção da Rainha e dos Ministros quando aí chegou a 27 de Maio6. Numa nota do seu diário, de 31 de Outubro de 1789 escreve que recebeu finalmente o dinheiro que lhe deviam do ordenado como Mestre do Príncipe D. José, e que nas reuniões tidas com o secretário de Estado José Seabra e com o Bispo Confessor “ficaram resolvidas todas as dependências do meu Bispado para se estabelecer a Igreja nova, Casa Episcopal e Seminário com as providências necessárias” (Vaz 2009: p. 597). Noutro apontamento, de 22 de Maio de 1790, “aos seis meses justos da minha chegada a esta corte”, relata uma conversa com o secretário de Estado José Seabra, em que este lhe pedia que voltasse a Beja e lhe garantia já terem ido para Roma as diligências “de quanto pertencia ao Bispado como eu havia pedido”, o que se relaciona com a carta de Paglarini, que acima referimos, e acrescentava “que não era necessário esperar pela Impretra” dando-lhe duas cópias dos decretos pelos quais a Rainha lhe mandava dar a “muralha velha” e, por dez anos o dobro da Siza (Vaz 2009: p. 597)7. Em 29 de Julho, Cenáculo acusa uma carta de Roma em que lhe davam conta da expedição das Bulas pretendidas pelas secretaria de Estado e em 11 de Junho do ano seguinte, anotou a recepção, “por Évora” da Concessão da Bula para a Fundação da Catedral. Desta forma Cenáculo conseguia as bases económicas para os seus projectos. E não perdeu tempo. Mesmo antes de entrarem os primeiros dinheiros no “Cofre da Massa da Catedral” (em 16 de Junho de 1791), o seu Diário anota as diligências feitas. Em 24 de Agosto escreve a saída de Lisboa do Juiz do Dinheiro e do mestres de obra José da Sé e Manuel José para “virem observar o terreno para as obras da Sé, Biblioteca e Palácio Episcopal”. Em 13 de Junho de 1791, apenas dois dias depois de ter recebido a Bula para a Fundação da Sé, enviou a Lisboa o seu irmão para “celebrar a escritura e o mais para se começar a obra da Igreja Catedral e mais obras” (Vaz 2009: p. 598)8. Embora, como se vê, a prioridade absoluta se centrasse na construção da Igreja, Cenáculo aproveita este momento de feição para organizar, ainda que em espaços provisórios, a Biblioteca e o Museu. Em 10 de Janeiro de 1791 anota no Diário ter nomeado para Bibliotecário o Abade Bernardo de Lima Bacelar, e para Prefeito do Museu ao Abade José Lourenço do Valle e, em 28 de Outubro do mesmo ano, anota também a nomeação de Julião e Alexandre “um para Fiel do Museu, e outro da Biblioteca com 30 mil réis cada um”.

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Cenáculo não esperou de facto pelas obras, que demoraram muito, acabando por ficar, como se sabe, a igreja incompleta e sem cobertura9. Instalou a Biblioteca em salas do Seminário e abriu o seu Museu Sesinando Cenaculano Pecense, em 1791, talvez o primeiro museu público português, ou pelo menos o primeiro a ter uma organização interna, com conservador e ajudante e um catálogo preparado para impressão, com desenhos das principais peças de arqueologia10. A Oração de inauguração, feita pelo conservador Frei José Lourenço do Valle, mas revista por Cenáculo, foi proferida em 16 de Março de 1791 e é um documento precioso, e já várias vezes utilizado, para a história da museologia portuguesa e para o pensamento de Cenáculo sobre a função de um museu11. Um dos aspectos essenciais desta concepção é a ideia abrangente ou totalitária do Museu como microcosmos do Mundo e da História, isto é, como reflexo de toda a criação divina e das acções humanas, devendo assim abranger a memória das civilizações através dos seus objectos e da sua arte, e a memória da criação divina, através da apresentação e catalogação da natureza. No estilo empolgado que a ocasião e o tempo requeriam, escreve Fr. Lourenço do Valle: “escutai enquanto eu trabalho em seguir os passos daqueles respeitáveis Sábios que dignamente já disserão tudo neste lugar. Na lição da antiguidade, deos Jmmortal que superioridade. Que magnificencia! Que fundamentos para a História Sagrada! Que conhecimentos das Regiões e Lugares! Que homens! Que artes! Que Costumes! Que erudição sagrada e humana! Que imprevistas mudanças da natureza, e dezengano do mundo! Todas estas grandezas se comprehendem no Muzeo, e não direis que o seu estudo he somente o conhecimento da Fizica natural, dos saes, sucos oleozos, pedras, petrificações, christaes, Minerais, Metaes, plantas e todas as mais produções maravilhozas da natureza: eu me esqueço de todos estes magnificos objectos, ou melhor eu os ajunto todos em hum. O estudo do Museo he estudo de todas as sciencias para conhecermos a Deos e sua Religião, com utilidade nossa, donde provem fortes rezões para nos applicarmos a elle. Com effeito, Snrs, que apinhoados conhecimentos me trás a memoria o nome de Muzeo” (fl. 1 vº). O segundo esteio do pensamento de Cenáculo sobre o Museu, está na sua ligação ao ensino, no carácter didactico e exemplar que o estudo das colecções, sobretudo históricas, fornece, ajudando à procura da verdade da própria ciencia histórica: “No estudo das raridades dos engenhos não se consideravão os metaes, e pedras nuas; mas illustradas com varias figuras, emblemas, symbolos, typos, inscrições, com que a recreação do estudo anda sempre unida. Nada ha mais agradavel do que ver os retratos dos antigos Heroes, contemplar enigmas, conhecer Tropheos, ver as façanhas e louvores deixados aos seculos: e de que nasce a utilidade de com esta lembrança exercitarse o dezejo de immitar aquelles, a quem o mundo deve honra, e a posteridade veneração, e a historia o seo esplendor. Estes documentos tam respeitaveis são a testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da Lembrança, mestra da prudencia, e correios da antiguidade, que acendem luzes da Historia, e guião para a exacta chronologia”.

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9 Os projectos que vimos de Joaquim de Oliveira são

pouco pormenorizados e o arquitecto continuou a realizar estudos de pormenorização da obra, embora disso não tenhamos senão notícias muito vagas. Uma carta de Joaquim José da Silva Torres, datada de 8 de Julho de 1794, comunica a Cenáculo a sua chegada a Lisboa, acrescentando que não tivera ainda ocasião de procurar o Senhor Joaquim de Oliveira “para tratar com ele a respeito dos papéis pertencentes à capela mor” (BPE cod. CXXVII/1-13, citado por Gusmão 1944-1956: carta 2434). Duas outras cartas, de Pagliarini, desse ano de 1794, referem-se igualmente ao andamento dos trabalhos, que então seguiam a contentamento de Cenáculo. Numa, de 24 de Abril, o livreiro congratula-se pelo estado de saúde do Bispo e pelo “estado das obras para o estabelecimento da sua Catedral e do Seminário”. Noutra, de 30 do mesmo mês, estima as notícias que Cenáculo lhe manda “acerca da Catedral e do Seminário do seu novo Bispado” (Gusmão 1944-1956: cartas 4370 e 4371). 10 Biblioteca Pública de Évora, Inscrições do Museu Sisenando Cenaculano Pacence (cod. CXXIX/ 1-13) e Lápides do Museo Sesinando Cenaculano Pacense (códice CXXIX/1-14) 11 Biblioteca Pública de Évora, Fundo da Manizola, cod. 75, doc. 19. Foi publicada parcialmente por Vasconcelos, 1898 e, na íntegra, por Pereira, 1995 e Janeira, 2007.


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No Diário de Frei Manuel do Cenáculo encontra-se uma “Breve Relação de algumas Memórias a respeito dos Estudos desde o anno de 1777 até ao ano de 1791 na Cidade de Beja”, BPE, cod. CXXIX/1-20, fls. 197-204.

13 A dimensão desta doação foi imensa, e de grande qualidade. Contam-se nela 1942 títulos e mais de 2100 moedas, para além de um grande número de curiosidades artísticas e arqueológicas. O catálogo dos livros encontra-se em três códices dos Reservados da Biblioteca Nacional (cod. 11522, 11523 e 11525). Sobre esta doação veja-se sobretudo o catálogo da Exposição “Casa dos Livros de Beja. Doacção de Frei Manuel do Cenáculo à Real biblioteca Pública da Corte”, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2006. veja-se ainda Vaz, 2009: p. 318-32 e Domingos 1995. 14 Vaz, 2009:p. 436-7. Este autor publica um interessantíssimo número de cartas sobre esta doação, a pag. 432-440. 15 Antes da doação circulava na corte, e junto de D. João, que Cenáculo vendera para Espanha o seu monetário, o que levou o Marquês de Ponte de Lima a garantir ao regente a “vassalagem e o amor à Pátria de V. Exª” – Carta a Cenáculo de José Joaquim da Costa e Sá, de 2 de Dezembro de 1796, BPE, códice CXVIII/1-1, nº 91.

A pressa de Cenáculo em avançar com a criação do seu Museu, mesmo antes de estar concluído o edifício próprio que delineara nos seus projectos o arquitecto Joaquim de Oliveira, tinha sem dúvida várias razões. Uma delas, a que já fizemos referência, era a consciência do próprio bispo do estado em que se encontravam as suas colecções, sujeitas à degradação pelo mau acondicionamento. Outra foi a consciência pedagógica que tinha do seu acervo que deveria ser disponibilizado no âmbito do Seminário que começa a ter alguma expressão, com cursos sucessivos de história, linguas antigas e religião12. Mas para a decisão não seria também indiferente o facto de começarem a desenvolver-se no país outros projectos museológicos, quase todos, é certo, na área das ciências naturais, mas também já com inclusão de objectos arqueológicos e artísticos (veja-se Teixeira, 2000 e Brigola, 2003). Um desses projectos, que retomava no fundo uma ideia de Cenáculo a que já fizemos referência, foi a criação da Real Biblioteca Pública, fundada em 1796 com os fundos da Real Mesa Censória. O seu primeiro director foi António Ribeiro dos Santos (1745-1818), amigo de Cenáculo, com quem manteve sempre uma profunda colaboração e uma intensa troca epistolar. A biblioteca viria a assumir, pelo decreto de 4 de Fevereiro de 1802, funções que antigamente cabiam à Real Academia da História joanina, no tocante à defesa de bens patrimoniais de interesse histórico, devendo ter nas suas instalações “huma grande collecção de Peças de antiguidade e Raridade”. Frei Manuel do Cenáculo colaborou intensamente na oferta de livros e de colecções arqueológicas e, sobretudo, de moedas13. A doação causou imensa impressão não só no Bibliotecário, mas em toda a corte e teve um papel determinante na carreira futura de Cenáculo. O próprio Cenáculo empenhou-se neste projecto com verdade e paixão. Numa carta a António Ribeiro dos Santos, datada de 26 de Março de 1797 escrevia “quanto eu valho, ainda agora nesta memoria estafada, heide servir a Vossa Senhoria, com mil amores, e a esse abençoado Museo, com as notícias, e préstimos a que eu chegar, mas desejo de antes enviar-lhe outras coisitas que inteirem alguns rôtos”14. Ribeiro dos Santos, por seu turno, não tem palavras para expressar o seu contentamento pela doação do bispo de Beja. Por várias vezes em 1797 testemunha o seu apreço por Cenáculo e sublinha o seu papel na constituição da Biblioteca Pública (Gusmão, 1944-1956, vol. I: p. 212-217). Numa dessas cartas, em que dá a Cenáculo a notícia da abertura da Real Biblioteca, Ribeiro dos Santos é muito claro sobre a importância da doação para a Biblioteca, ao escrever “A Bibliotheca abrio-se com mais brevidade, do que eu esperava; e não me coube em tempo, e no meyo dos trabalhos, que então tive, antecipar a Vossa Excelência esta notícia. Ella tem conseguido os elogios do Publico; e o Sagrado Nome do seu Illustre bemfeitor tem conciliado de tal modo a attenção dos concurrentes, que todos vão com alvoroço à Casa dos Livros de Beja, como em Romagem ao Sanctuario das Musas” (Gusmão, 1944-56: vol.I, p. 215). Como já notou Esteves Pereira (Pereira, 1983:p. 80), a doacção de Cenáculo não foi inocente e foi mesmo um ponto de viragem na sua reabilitação política15. A nosso ver foi mesmo o factor determinante para que o exilado pombalino viesse a receber o Arcebispado de Évora. Mais do que os hiperbólicos agradecimentos de Ribeiro dos Santos é

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sobretudo pelas cartas de Joaquim José da Costa e Sá, que segue todo o processo, que nos podemos aperceber com clareza da relacão entre os dois acontecimentos. Em 19 de Maio de 1797 Joaquim José escreve a Cenáculo uma carta em que se mostra claramente como a doacção estava a agitar o ambiente na corte, entre apoiantes e inimigos do bispo de Beja: “hoje fui buscar o S. Dez.or António Ribeiro dos Santos à Bibliotheca P. Eu o cumprimentei da parte de V. Exª R.ma, e me disse participasse a V. ER.ma que o Sr. M.M.M.16 ficou como assustado, quando lhe comunicou que V. Exª R.ma tinha enviado o Monetário de cobre, acompanhado de raridades, e de livros de exquisita estimação, e que era huma remessa importantísssima por tão singulares aquisições; e que o dito S.M.M.M. lhe dissera: Eu tenho andado sobressaltado e sem socego com a canelada de S. Alteza, e não tenho tido lugar para fazermos o que S. A. mandou fazer ao Grande Bispo de Beja” (BPE, cod. CXXVIII/ 1-1, nº 93). No dia 25, em nova carta, escreve que “aqui ficaram todos hiantibus oribus quando virão os precisosissimos thesouros vindos de Beja”, descrevendo os mais importantes e dizendo que Ribeiro dos Santos tinha ordem “que logo que chegassem as Raridades com o Monetario desse parte pera S. Alteza vir ver”. E acrescenta: “os offícios estão resolutos por S. Alteza, mas o Marquez ou por negligência, ou por affazeres, que trazem as cabeças de todos os Ministros, não expedio os despachos úteis e de honra pera V. Exª R.ma, e o Ministro de estado, o senhor D. Rodrigo17 me pediu que lhe contasse tudo, para ele entrar com sua Alteza em couzas respectivas a V. Exª Rma” (BPE, Cod. CXXVIII/1-1, nº 92). Em 13 de Janeiro do ano seguinte dá conta da chegada do monetário: “Chegou Gamito, e fez-se a entrega hontem de tarde ao Sr. RR dos Santos em sua mão do Monetario preciosíssimo que V. Exª R. ma mandou. Sua alma ficou transportada vendo tantas raridades, anneis, e sommão todas as peças ao numero de 2100 peças. Elle diz que S. Alteza ganhou hum grande thesouro em seus dias” (idem, nº 98). Em 23 de Janeiro nova carta elogia os livros. A recompensa de Cenáculo, relacionada já com a Mitra de Évora, assume contornos mais claros quando D. Rodrigo de Sousa Coutinho assume a Inspecção da Biblioteca. Em 13 de janeiro de 1801, Joaquim José da Costa e Sá escreve uma longa carta a Cenáculo, em que lhe dá conta das movimentações em seu apoio: “... o Exmº Sr. D. Rodrigo de S.C., quando tomou posse daquela Inspecção, se encarregara de pôr na Augusta Presença do Príncipe Regente Nosso Senhor este negocio (...). Diga-me V. Exª Rev.ma em franqueza, e logo, que Partido deseja se tome sobre o modo, e natureza da Recompensa”18 (idem, nº 110). Nesse ano, por morte do Arcebispo Xavier Botelho de Lima vagou a Mitra de Évora e a “recompensa” começa a ser mais precisa. Em 7 de Dezembro, Joaquim José dá conta ao Bispo de Beja, “Quinta feira tomou posse da Inspecção da Bibliotheca Pública o Exmº Sr. D. Rodrigo de S. C., a quem o Bibliothecario Maior só teve para mostrar, como cousas singulares, e bellas, as preciosissimas raridades, e riquissimos livros, e mui singulares medalhas, com que V. Exª ataviou, e adornou aquelle thesouro de litteratura; e S. Exª admirado de ver tão lindos e brilhantes monumentos da veneranda Antiguidade, perguntou: Que se deo em premio a este distintissimo, e exemplaríssimo Bispo? Respondeo o B.M. Nada até agora. Mas isto já o sabia S. Exª, e eu na véspera o prevenira” (idem, nº 112). Em 13 de Fevereiro de 1802, nova

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16 Trata-se quase seguramente da abreviatura para o

Marquês Mordomo Mor, D. Tomás Xavier de Lima Nogueira Vasconcellos Telles da Silva (1727-1800), 14º Visconde de Vila Nova de Cerveira e 1º Marquês de Ponte de Lima. Substituiu Pombal como Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino e foi Presidente do Real Erário. Vaz, 2009: p. 502-506, publica três cartas de Cenáculo a D. Tomás. 17

D. Rodrigo Domingos de Souza Coutinho Teixeira de Andrade Barbosa, 1º Conde de Linhares (1745-1812), Secretário de Estado da Marinha. Os despachos referidos deviam ser a resolução do problema dos pagamentos em atraso a Cenáculo pela suas Presidência da Real Mesa Censória e da Junta do Subsídio Literário, que continuavam por pagar e que Cenáculo recebe nesta altura. D. Rodrigo era um dos grandes apoiantes de Cenáculo, vd. infra. 18

Veja-se sobre os pedidos de Cenáculo e a sua relação com D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Marcadé, 1978: pp. 409-437.

FIG. 12 - Levantamento do piso nobre do Paço Arquiepiscopal de Évora e Colégio dos Meninos do Coro da Catedral, 35,5 x 43,8 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 9).

FIG. 13 - Levantamento do piso térreo do Paço Arquiepiscopal de Évora e Colégio dos Meninos do Coro da Catedral, 35,5 x 43,9 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 6).


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FIG. 17 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a transformação do piso térreo do Colégio dos Meninos do Coro da Catedral de Évora para o edifício da Biblioteca Pública, c. 1802-3, 35,7 x 43,9 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 50).

carta, informava Cenáculo do passo mais importante: “he verdade que o Exmº Sr. Dom Rodrigo de S. C. ama a V. Exª, e certamente desejaria ver a V. Exª sentado na Catedral Metropolita de Évora: por tanto a este Ministro benfazejo, e justo deverá V. Exª ver dentro de poucos dias coroada com premio a sua generosa Doação: meu Irmão lavrou hontem o Decreto, e enquanto não baixa assignado, não se deve nada dizer” (idem, nº 113). Em 11 de Março, finalmente, podia dar conta a Cenáculo da certeza de ter almejado a desejada cadeira e do apoio do Regente: “Hontem fui a Queluz, por dependencias, de que me acho particularmente encarregado para o Gabinete de S.A.R.; e então beijei a mão ao Príncipe R.N.S., que me recebeo como costuma fazer-me Mercê, e quando lhe rendi as Graças pela mercê de haver elevado V. Exª à Dignidade eminentíssima de Metropolitano de Évora, me respondeo: Eu amo ao Arcebispo eleito pelas suas virtudes, e Litteratura; e ha annos o trago no meu coração” (idem, nº 117). A nomeação para a rica Arquidiocese de Évora abriu nova esperança de retoma dos projectos de Cenáculo e quase imediatamente recomeçaram, agora para Évora, os projectos de Joaquim de Oliveira. Como em Beja o primeiro é um levantamento circunstanciado dos dois pisos do Paço Arquiepiscopal e do edifício contíguo e a ele ligado que havia sido construído no século XVII pelo administrador do Arcebispado D. João de Sousa (FIG. 12 e 13). É neste último edifício, tornado inútil pela transferência do colégio para a construção a sul do claustro da catedral, que Cenáculo pretende instalar as suas colecções e livraria. Os projectos de Joaquim de Oliveira mostram-nos uma transformação do piso térreo (FIG. 17), com aproveitamento das paredes exteriores e uma reelaboração do espaço interior, e uma utilização completamente nova do piso superior. Também aqui, como em Beja, Joaquim de Oliveira fornece dois projectos alternativos, mas com maiores diferenças um do outro. É curioso dizer desde já que em qualquer dos projectos a fachada principal aparece voltada a sul, para a cabeceira da Catedral, isto é, para o actual largo Mário Tavares Chicó. Hoje este largo

FIG. 14 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a fachada sul da Biblioteca Pública de Évora, c. 1802-3, 26,5 x 36,5 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 44).

FIG. 15 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a fachada sul da Biblioteca Pública de Évora com variante no frontão, c. 1802-3, 26,5 x 36,5 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 44).

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FIG. 16 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a fachada ocidental da Biblioteca Pública de Évora, c. 1802-3, 43,9 x 34,5 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 39).

FIG. 18 - Joaquim de Oliveira, Planta do piso nobre da Biblioteca Pública de Évora, c. 1802-3, 34,9 x 43,9 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 46).

é uma simples passagem entre a praça do templo romano e a descida da colina até às Portas de Moura, contudo antes da desobstrução do templo, que daria ao Largo Conde de Vila-Flor uma centralidade na cidade que não existia desde os tempos romanos, o pequeno largo junto à cabeceira da Catedral era verdadeiramente central. Para lá se abriam os portais dos Paços dos Condes de Basto e de Portalegre, para lá se abria uma entrada directa do Paço dos Arcebispos e as portas do celeiro catedralício e para lá se tinha voltado a primitiva Câmara da cidade. O próprio Ludovice, na sequência das obras de construção da nova capela-mor da Sé no século XVIII, projecta para este espaço duas grandes praças desniveladas unidas por escadarias cujo projecto se conhece por um grande desenho das colecções do Museu de Évora ( ME 12230). As praças ludovicianas, que dariam um outro impacto urbanístico à nova capela-mor, mostram a importância do espaço público que se mantinha ainda nos inícios do século XIX quando Joaquim de Oliveira faz os seus projectos para a Biblioteca. Dos dois conjuntos arquitectónicos conhecidos um tinha claramente uma menor monumentalidade (FIG. 14, 15 E 16), mantendo uma linha de altura semelhante ao Paço Arquiepiscopal, ao qual se ligava por duas arcadas, com o último arco já incorporado dentro da estrutura do edifício da Biblioteca. A fachada sul, a principal, é projectada com um grande frontão triangular, tripartida entre um corpo central e dois laterais que dão simetria ao último arco do passadiço. As janelas são de desenho simples, aparecendo ligadas as centrais num eixo sobre a porta em três sucessivos registos. Um pequeno papel mostra para esta alternativa duas hipóteses distintas (FIG. 14 e 15) para o coroamento. Numa o frontão é preenchido por três janelas encimadas por um brasão e noutra, sobre o corpo principal, abre-se um frontão interrompido por um grande janelão coroado pelas armas arquiepiscopais.

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FIG. 19 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a Biblioteca Pública de Évora - corte E-W, c. 1802-3, 26,7 x 36,5 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 41).


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FIG. 20 - Joaquim de Oliveira, Projecto para a Biblioteca Pública de Évora - corte N-S, c. 1802-3, 26,3 x 42,3 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 48).

FIG. 21 - Joaquim de Oliveira, Segundo Projecto de Fachada Sul para a Biblioteca Pública de Évora, 1802-3, 43,7 x 35,5 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 54).

O desenho da fachada poente é particularmente interessante pelos artifícios que comporta (FIG. 16). A abertura dos dois arcos que compunham então o passadiço entre o colégio e o paço arquiepiscopal, causavam um natural desequilíbrio na simetria da fachada e, para o minimizar, Joaquim Oliveira propõe a inclusão do último deles no novo edifício, com uma passagem em cotovelo através do arco aberto à direita. Desta forma, embora este lado do edifício fique apenas com duas janelas (e não com três, como o oposto), a forte marcação do corpo axial, a colocação das duas janelas no ático, de memória mardeliana, e a dimensão geral do edifício, ajudam a manter um equilíbrio da composição apesar desse elemento de ligação. As janelas são de moldura bastante simples, mas o corpo central é particularmente engenhoso. Em três registos, com frontão triangular coroado por pináculos, é marcado pela linha dos vão abertos, quase em contínuo. No piso inferior abre-se uma larga porta em arco abatido que se liga com o janelão aberto até ao chão, mais estreito, de recorte circular e, já dentro do frontão, uma outra janela corre ao nível do ático. É particularmente interessante o jogo destes vãos com as molduras das janelas cegas, laterais no piso nobre e interrompidas no térreo, que ajudam à simetria e ao equilíbrio deste corpo e de toda a fachada. Esta solução correspondia na planimetria do piso nobre a duas salas, sendo a maior voltada a poente, a toda a largura do edifício, com uma outra mais estreita nas traseiras (FIG. 18). Esta destinava-se provavelmente às colecções, ficando a mais

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FIG. 23 - Joaquim de Oliveira, Segundo Projecto para planta do piso nobre da Biblioteca Pública de Évora, 1802-3 (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 38).

FIG. 22 - Joaquim de Oliveira, Segundo Projecto de Fachada Ocidental para a Biblioteca Pública de Évora, 1802-3, 35,4 x 44 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 45).

larga, com cerca de dois terços da área, para biblioteca (FIG. 19). Conhecemos o corte longitudinal desta sala já com a aplicação das estanterias da livraria (FIG. 20). O segundo projecto era bem mais ambicioso, com uma estrutura de telhados em cruz que uniam as fachadas mais elevadas. A fachada sul continua a ser a principal, mas eleva-se agora claramente acima da antiga cércea do edifício através da subida do corpo central, com três registos claros, coroado por frontão triangular (FIG. 21). Notamos o mesmo sentido de construção de uma fachada sóbria, mas harmónica, procurando a simetria através de um portal recuado na parte direita, abrindo-se um arco que dá continuidade ao passadiço inserido no plano de fachada. O corpo central cruza-se com os telhados do corpo central leste-oeste, como se pode ver melhor pelo desenho proposto para a fachada ocidental (FIG. 22). A mole do piso superior e o jogo dos telhados, bem como a elevação do corpo central monumentalizavam bastante esta proposta, dotada de varanda no janelão principal do piso nobre. Na planimetria esta solução traduzia-se por uma planta em cruz na sala principal, com quatro salas mais pequenas nos cantos, talvez destinadas às colecções museológicas (FIG. 23). O corte norte sul mostra-nos como no interior as aberturas do último registo davam origem a janelas termais, lateralizadas por duas aberturas dentro de goivas, o que melhoraria substancialmente a iluminação do interior, uma preocupação várias vezes expressa por Frei Manuel do Cenáculo. É interessante que, tanto nos projectos para Évora, como nos anteriores para Beja, há sempre uma distinção entre o piso nobre, onde Museu e Biblioteca se instalam, e uma ocupação do piso térreo apenas para depen-

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FIG. 24 - Joaquim de Oliveira, Segundo Projecto para a Biblioteca Pública de Évora, corte N-S, 1802-3, 26,7 x 42,3 cm (BPE, reservados, Gav. 8, Pasta I, nº 49).


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dências menores de depósitos e oficinas, à excepção claro está, do átrio da escadaria, que desde o programa dado a Reynaldo Manuel dos Santos para a Biblioteca de Lisboa, sempre fora uma das preocupações de Cenáculo. Há nesta posição um misto de razões práticas, de conservação das espécies em melhor ambiente, mas também uma razão ideológica de associação ao espaço palaciano, onde desde a Renascença se tinha interiorizado a supremacia simbólica do Plano Nobre. Talvez demasiado ambiciosos, nenhum destes projectos sobreviveu à morte do arquitecto Joaquim de Oliveira, ocorrida em 1803. Já entrado em idade, Cenáculo tinha certamente pressa de ver o seu projecto corporizado sem delongas e acabou por optar por uma intervenção mais ligeira, apenas vagamente inspirada nos projectos de Joaquim de Oliveira. As obras decorreram com grande rapidez de forma que em 1804 o mobiliário, pelo menos em parte, já estava instalado. O Diário de Frei Manuel do Cenáculo dá-nos uma visão muito rápida do desenvolvimento dos trabalhos: 7 de Dezembro de 1804 – Fui levar o painel do Senhor entre os doutores no templo e colocá-lo na frontaria da Biblioteca por ser orago da casa e museu, e festejei assim o aniversario da minha saída de Lisboa; 8 de Fevereiro de 1805 – Assentou-se a última estante da Livraria; 6 de Março de 1805, meu aniversário, se abriram na livraria os primeiros caixotes de Livros; 5 de Março de 1805 – Fui pôr o primeiro livro nas estantes da minha livraria; foi o primeiro tomo da polyglota de ximenes; fui com o vigário geral, capellães e pessoas de família. Mandei abrir um caixote e o primeiro livro que deparei foi a Evora Gloriosa, o que me pareceu coisa de reflectir” (Vaz, 2009: p. 603-4). As obras custaram 6.8000.000 réis, numa primeira fase (BPE, Cod. C./ 2 -18, nº 20), e numa segunda, mais 3.479.260 rs., a que se refere em Julho de 1805 a pagamentos ao pintor, aos carpinteiros e aos pedreiros, “por uma sala anexa à grande da livraria”, provavelmente destinada às colecções de arte e de curiosidades (BPE, Cod. C/2-11). No entanto, pela instabilidade das invasões francesas ou por outros motivos, não se deve exagerar a “inauguração” da biblioteca, que já depois da morte do arcebispo dava mostras de estar ainda numa grande desorganização, tal como as colecções museológicas. Pelo inventário pós-mortem feito aos bens de Cenáculo, podemos ver que grande parte das obras de arte, curiosidades e mesmo objectos arqueológicos não estava na biblioteca-museu, mas sim no Paço (Espanca, 1956). Por outro lado, a 22 de Fevereiro de 1814 os encarregados de proceder á inventariação traçam um quadro bastante negro das condições de organização da Biblioteca: “A Livraria, incluída apenas n’huma vastíssima sala com 72 estantes de 11 ordens cada huma, que não podem conter grande numero de livros, que ainda estão em bancas e caxottes fechados he avaliada talvez sem excesso em 50 000 volumes. Além destas estantes, e caxoens ha mais 30 grandes armarios, e 28 mais pequenos, recheados de manuscritos, e livros antigos impressos, obras prohibidas, e sobre tudo de pergaminhos da maior requeza e variedade: os gabinetes contêm riquissimas pinturas originaes, ou excelentíssimas copias dos milhores Autores, retratos de Homens e pessoas insignes, lápides, e monumentos antíquíssimos, um Monetario com medalhas dos 3 metaes, ainda que de oiro apenas serão 16 a 20 por se dizerem roubadas na invazão, e muitos productos dos reinos Vegetal e

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mineral, mas de tanta preciozidade, nem há catalogo, nem inventário algum, e o mais he que huma tão admiravel Livraria esta colocada sem ordem ou sisthema algum, nem mesmo tem a vantagem de se encontrarem juntas todas as obras do mesmo Autor, e algumas vezes nem todos os tomos da mesma obra” (BPE, cod. C/2-18, nº 2)19. Esta inventariação tinha uma raiz curiosa. Como atrás vimos, Cenáculo tinha conseguido o dobro da Sisa do Bispado de Beja para as obras da Catedral, Paço, Biblioteca e Museu, que nunca chegaram a ser feitas. Ao ser eleito arcebispo de Évora, trouxe consigo as colecções, o que, como bem viu João Brigola (2003: p. 432), nos deve levar a discutir o carácter “público” do seu Museu, que não seria público, senão no sentido da sua abertura generalizada à população que o requeresse. A arrematação dessas sizas deixou uma dívida que o bispado bejense entendia, e bem, não dever pagar, o que levou ao arresto da biblioteca e museu de Évora. A situação resolveu-se a contento e mesmo algumas peças arqueológicas deixadas em Beja viriam a ser trazidas para Évora, na renovação da Biblioteca e Museu realizada por Augusto Filipe Simões (Simões, 1869). Ainda restaram contudo em Beja tanto peças arqueológicas como pinturas, o que faz com que a colecção Cenáculo esteja de facto na génese quer do Museu de Évora, quer do Museu Regional Rainha Dona Leonor, de Beja, devendo reconhecer-se ao Arcebispo o título de criador de Bibliotecas e Museus, com singular primasia em Portugal.

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19 A 12 de Março, na sequência deste relatório, uma resolução da Regência mandou inventariar todo o espólio pelo Bispo Eleito Vigário Capitular, à excepção das pinturas que ficariam para um inventariador especializado (BPE, cod. C/2-12, doc. 11).


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Resumo Iniciativa paralela à galeria de pintura criada pelo rei D. Luís no Palácio da Ajuda, em 1867, o “museu de antiguidades” conservou e expôs o essencial das colecções de numismática e ourivesaria daquele monarca, acrescidas com diversas peças pertencentes ao tesouro da Casa Real, parte das quais provenientes dos conventos extintos pelo Liberalismo. Hoje disperso por diferentes instituições museológicas, colecções particulares ou em paradeiro incerto, aquele acervo pretende ser dado a conhecer ao longo deste artigo, sobretudo no que diz respeito aos seus núcleos mais representativos, procurando-se simultaneamente reconstituir a apagada memória do espaço que o albergou, o papel desempenhado pelo seu conservador, Teixeira de Aragão, e as aquisições efectuadas. Em foco estarão também os catálogos editados, a cedência de peças para exposições nacionais e internacionais e a atenção dada por D. Luís aos novos processos fotográficos como forma de documentar e divulgar a colecção real.

palavras-chave Ourivesaria Numismática Colecções reais D. Luís Teixeira de Aragão Palácio da Ajuda

Abstract As a parallel initiative to the painting gallery created by king Luís of Portugal at the Ajuda Palace, in 1867, the “museum of antiquities” has maintained and exhibited the essence of the collections of numismatics and jewelry of the king, along with several pieces from the Royal Family’s treasury, some of which belonged to convents that were extinct by Liberalism. Scattered today among different museum institutions, private collections or uncertain whereabouts, this collection will be the focus of this article, especially its more representative parts. This article will also rebuild the lost memory of the space to which it belonged, the work of its conservator, Teixeira de Aragão and the acquisitions. We will also focus on the published catalogues, the loan of art works for national and international exhibitions and the attention king Luís gave to new photographic processes as a way of documenting and disseminating the royal collection.

key-words Plate Numismatics Royal collections D. Luís Teixeira de Aragão Ajuda Palace


O “MUSEU DE ANTIGUIDADES” DA AJUDA: NUMISMÁTICA E OURIVESARIA DAS COLECÇÕES REAIS AO TEMPO DE D. LUÍS 1 HUGO XAVIER Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de Museum Studies Bolseiro de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/64602/2009)

“É mister no entanto confessar, que Portugal está aquém das nações mais illustradas em estudos archeologicos, e as causas principais deste seu atraso são a falta de ensino e de museus” Teixeira de Aragão, 1874

FIG. 1 - Rei D. Luís. Prova actual de negativo em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 40772. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

1

O presente texto retoma e desenvolve um ponto de um estudo mais alargado, intitulado Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda. Dissertação de Mestrado em Museologia e Património apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa, 2009, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Entre as iniciativas de cariz cultural empreendidas, logo no início do seu reinado, por D. Luís (1838-1889) (FIG. 1), precocemente e inesperadamente subido ao trono aos 23 anos de idade, em 1861, destaca-se a criação de uma galeria de pintura no Palácio da Ajuda, então escolhido para residência oficial. Procurando fazer face à dramática incapacidade do Estado neste domínio, sobretudo em relação à Academia de Belas Artes que tardava em abrir a sua galeria de pintura, D. Luís lança-se na organização de uma pinacoteca real, influenciado talvez pelos equipamentos congéneres visitados durante as suas viagens ao estrangeiro, a exemplo da Galeria Sabauda de Turim, criada pelo rei Carlos Alberto junto ao palácio real. A construção da galeria, ou melhor, a adaptação para o efeito de uma enorme sala da ala norte do palácio, simétrica à actual “Sala da Ceia”, teve o seu início em 1866 e foi entregue ao engenheiro José António de Abreu que a dotou de modernas soluções museográficas, tais como longos varões metálicos junto à cimalha destinados à suspensão das obras, guardas com balaústres em metal para evitar uma aproximação excessiva às mesmas, e iluminação zenital através de grandes superfícies envidraçadas rasgadas no tecto. Consciente do pouco que as modestas pinturas conservadas nos palácios reais tinham para oferecer, D. Luís deu início a um importante movimento de aquisições que atin-

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giu o seu ponto mais significativo entre 1865, ano da primeira viagem da família real ao estrangeiro, com avultadas compras e encomendas em Itália, pátria da rainha, e 1867, correspondente ao périplo europeu do futuro director da galeria, o pintor Marciano Henriques da Silva (1831-1873). A este artista que administrava lições de pintura ao monarca foi dada carta branca para efectuar diversas aquisições, tendo sido igualmente incumbido de proceder à organização do acervo e inauguração da pinacoteca, ocorrida a 6 de Outubro de 1867, assinalando o 20.º aniversário de D. Maria Pia. Editado por ocasião da sua abertura ao público, ocorrida dois anos depois, o primeiro catálogo da galeria2 apresenta o resultado desse esforço aquisitivo, continuado nos anos subsequentes, embora com menor fôlego, motivando uma nova edição, em 18723. A partir de então as compras foram-se tornando mais pontuais, a que não será estranho o precoce desaparecimento de Marciano, e a desinteressada direcção do artista convidado para o substituir, Tomás da Anunciação. Da leitura sequencial dos catálogos ressalta a mistura das escolas representadas e a falta de critério cronológico, sem preocupações sistematizadoras a não ser a divisão entre “Quadros Modernos” e “Quadros Antigos”, num esquema museológico característico de Oitocentos. Entre as sonantes atribuições, na maioria dos casos falaciosas, não podemos deixar de fazer notar a existência de algumas obras de importância maior, actualmente conservadas no Museu Nacional de Arte Antiga, como o S. Damião de Bermejo, o Casamento místico de Santa Catarina de Murillo, a Conversação de Pieter de Hooch e o célebre tríptico das Tentações de Santo Antão de Bosch que, apesar de não figurar nos catálogos, chegou a integrar também o acervo4. O período compreendido entre a inauguração da galeria (1867) e a sua abertura ao público (1869) será marcado pela criação de um novo núcleo museológico que se irá articular com aquele equipamento e destinado a expôr a que aparece por vezes designada de “Collecção archeologica da Ajuda”5. Note-se que o termo arqueologia refere-se aqui aos testemunhos materiais móveis das sociedades antigas, circunscrevendo-se essencialmente aos objectos executados com metais nobres. Sempre atento a tudo o que dizia respeito à família real, O Diário de Notícias especificava tratar-se de um “museu de antiguidades”, para o qual D. Luís mandara preparar uma sala “no pavimento nobre, próxima à galeria de pintura e à capela” informava em Novembro de 1867. O mesmo jornal advertia que “n’aquele trabalho há que conciliar a segurança com a elegância, pois alli vão ser depositados os mais valiosos objectos do thesouro da casa real”, tendo sido “encarregado de os collocar e organizar o sr. dr. Aragão”6. A Augusto Carlos Teixeira de Aragão (1823-1903), distinto cirurgião militar, investigador e coleccionador, com interesses centrados na numismática7, havia sido meses antes confiada a tarefa de levar aqueles e outros objectos à Exposição Universal de Paris, onde figuraram com assinalável sucesso como nos dão conta os Rapports du jury international 8, entidade que conferiu a essa participação uma Médaille d’or. Tal reconhecimento terá certamente encorajado o monarca a promover a apresentação dos mesmos junto à sua galeria de pintura.

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2

Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda fundada por Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Luíz I, 1869. 3

Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda fundada por Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Luíz I, 1872. 4

MNAA, inv. 1583, 1608, 1620 e 1498 respectivamente.

5 “Collecção archeologica da Ajuda” in Portugal. Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico […], vol. I, 1904, p. 108. 6

DN, 19 Novembro 1867.

7A

este respeito cf. J. Leite de Vasconcellos, “Teixeira de Aragão. Noticia Bio-Bibliographica”. Sep. O Archeologo Português, IX, n.º 3-6, 1904. 8

“De toutes les nations qui ont pris part à l’exposition internationale de l´Histoire du Travail, il en est peu dont le succès ait dépassé celui qu’a obtenu la section portugaise; ce succès dû à la magnificence de quelques-unes des oeuvres exposées et à leur bon classement, peut être aussi, à juste titre, attribué pour une bonne part aux efforts puorsuivis par la commission royale, encouragée et soutenue par l’initiative personnelle d’une souverain ami des arts, grand collectionneur lui-même, et qui n’a pas hésité, pour les envoyer aux galeries du Champ-de-Mars”. Exposition universelle de 1867 à Paris. Rapports du jury international, publiés sous la direction de mr. Michel Chevalier, commission de l’histoire du travail, 1867, pp. 102-104.


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DN, 21 Outubro 1866. O marquês efectuou ainda algumas aquisições como também será noticiado: “O sr. marquês de Souza adquiriu para o museu d’arte antiga que intenta organizar na academia real das bellas artes, um admiravel fructeiro de prata dourada e lavrada de grandes dimensões […]”. DN, 16 Janeiro 1869.

10 Em 1795, o Almanach de Lisboa mencionava já a existência de um Gabinete de Medalhas de Sua Magestade. 11 D. Luís I, Duque do Porto, Rei de Portugal, 1990, p. 23. 12 O pagamento foi feito em prestações, tendo-nos

sido possível localizar diversos recibos assinados por Teixeira de Aragão. Cf. ANTT, ACR, cx. 4958 a 5057. 13

Teixeira de Aragão, Description des monnaies, médailles et autres objets d’art concernant l’histoire portugaise du travail, 1867, pp. 9-121.

FIG. 2 - Cruz procesional. Portugal, 1214 (dat.). Ouro, safiras, granadas, pérolas e aljôfares. MNAA, inv. 540 Our. © José Pessoa, DDF/IMC.

A iniciativa museológica de D. Luís não poderá deixar de ser também associada à colecção que o marquês de Sousa Holstein, vice-inspector da Academia das Belas Artes de Lisboa, começou a organizar numa sala próxima à futura Galeria Nacional de Pintura, em finais de 1866, com diversas alfaias provenientes da Casa da Moeda, onde permaneciam entesouradas desde há décadas. Congratulando-se com o gesto do vice-inspector, o Diário de Notícias comentava, logo em 66, ser “possivel que a apparição de taes objectos, collocados em boa ordem e onde possam ser devidamente analysados, desperte o louvavel desejo de se cuidar seriamente em se organizar um museu de antiguidades, coisa que ainda não possuimos”9. D. Luís contribuiu assim para colmatar tal lacuna, reunindo numa sala e patenteando ao público muitos dos preciosos objectos da Casa Real e das suas colecções pessoais, em dois núcleos que passamos a considerar.

Moedas e medalhas Um dos objectivos da cuidadosa educação pretendida para seus filhos por D. Maria II e D. Fernando, levada a cabo por diversos mestres, escolhidos entre os melhores ao tempo, foi desenvolver nos príncipes o gosto pelo coleccionismo, complementando o estudo que faziam das outras ciências. O hábito de coleccionar encontrava-se então bastante enraizado entre os jovens aristocratas europeus, apesar de em algumas famílias ou contextos nacionais aquela prática ser mais seguida que noutros. Portugal não constituía certamente o melhor exemplo nesse domínio, o que levou D. Fernando, reputado coleccionador, a encorajar os filhos na prática de coligir e classificar objectos, seguindo as tradições familiares dos Saxe-Coburgo. É nesse contexto que devemos situar o interesse de D. Luís pela numismática, um dos vectores mais eruditos do coleccionismo pelo seu cariz eminentemente científico. A par da já existente colecção da Casa Real10, começou a reunir um conjunto apreciável de moedas e, em 1855, aos 17 anos, organiza um catálogo manuscrito dedicado ao seu sub-inspector de estudos, “Catálogo das medalhas e dinheiros antigos e modernos oferecido ao meu amigo Manuel Moreira Coelho”, onde descreve 105 moedas portuguesas de diferentes reinados, a que acrescenta uma listagem de 15 moedas estrangeiras11. Esse interesse perdurou pela idade adulta e conheceu o seu ponto alto com a compra da importante colecção de Teixeira de Aragão12, pacientemente reunida um pouco por todo o país desde a década de 1850. A convite do monarca, Aragão catalogou13 e expôs uma qualificada selecção da mesma na secção portuguesa de “História do Trabalho” da Exposição Universal de Paris, em 1867, com elogiosas referências na imprensa nacional e internacional. O correspondente do Diário de Notícias naquela capital, fazia saber que a “collecção de moedas de el-rei enviadas à exposição tem merecido especial estudo pedindo-se o desenho de algumas inéditas para serem publicadas”. Elogiava, em particular, “o methodo e a ordem por que estão collecionadas” de maneira contarem a “historia metalica do nosso paiz, desde os Celtas, Phenicios, Romanos, dominação Goda e Arabe e, por ultimo, as dos nossos reis desde o senhor D. Affonso Henriques até hoje”.

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Informava ainda o mesmo correspondente ter sido Teixeira de Aragão nomeado membro da Sociedade Francesa de Numismática, presidida pelo visconde de Ponton d’Amécourt que, durante um jantar da sociedade, e na presença de Aragão, “levantou um brinde a sua magestade el-rei o senhor D. Luiz de Portugal, como soberano amador e cultivador da numismatica, sendo acolhido pela assembleia com enthusiasticos applausos”14. Na sequência destes acontecimentos, seria o monarca português nomeado presidente honorário da mesma sociedade. Em Junho daquele ano, D. Luís empossava oficialmente Aragão, “conservador do meu gabinete numismático com o vencimento de vinte mil reis por mez”15, o mesmo valor auferido pelo director da galeria de pintura, Marciano da Silva, nomeado também no mesmo dia. Ao contrário deste último, destacou-se o erudito conservador por estudar aprofundadamente a colecção, sobretudo no que diz respeito à sua área de especialidade, a numismática, com alguns títulos que até meados do último século constituíram uma referência nesse domínio16. O “gabinete numismático”, designação correntemente empregue para designar aquele núcleo museológico, muito embora, como veremos, este não se cingisse apenas a moedas e medalhas, começou então a ser organizado pelo seu conservador, com especiais cuidados na acomodação dos numerosos espécimes, levando-o a solicitar ao bibliotecário real, Alexandre Herculano, a transferência “para o dito gabinete das estantes dessa real biblioteca que em tempo serviram para arrecadação das moedas antigas”17. Pertencente à Coroa, esse núcleo de moedas foi também, segundo temos notícia, parcialmente exposto no gabinete, mas em local específico para não se confundir com a colecção adquirida a Aragão que era propriedade pessoal do monarca. O pedido das estantes18 é efectuado em 1869 e enquadra-se talvez nos preparativos da abertura da vizinha galeria de pintura, ocorrida a 26 de Setembro daquele ano. Menos de um mês depois, o Diário de Notícias fazia notar ser “brevemente exposto ao publico por ordem de el-rei o sr. D. Luiz o importante gabinete de numismatica que sua magestade possue no paço da Ajuda”.19 Ao que tudo indica, e nesta fase inicial, o horário seria o idêntico ao da galeria de pintura – domingos das 10h às 16h – ficando os restantes dias da semana reservados à família real e aos seus convidados. O enriquecimento da colecção não foi descurado, tendo Aragão procedido desde logo a novas incorporações, no intuito de colmatar possíveis lacunas. Em 1872, declarava ter recebido do tesoureiro da Casa Real a quantia de 24 mil réis, “conta das moedas antigas que comprei para o gabinete real por ordem de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Luiz”, num total de 10 espécimes em ouro e prata, de diferentes períodos, cunhados na Península Ibérica, África e Brasil. O mesmo documento informa-nos terem sido adquiridos junto de ourives, avaliadores e cambistas da Baixa de Lisboa, mostrando ainda não existirem entre nós negociantes especializados nesse domínio20. Tendo tido oportunidade de visitar o Palácio da Ajuda durante a sua viagem a Portugal, em 1874, Fernando Modesto y Gonzales mostrar-se-á impressionado com o gabinete, constituído ao tempo por 2.653 moedas “clasificadas con esmero y presentadas en forma”, informando ter D. Luís, “completa su colección monetaria de la

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DN, 12 Junho 1867.

15

ANTT, ACR, cx. 4846, doc. 112 A.

16

Merecem especial destaque a Descripção historica das moedas romanas existentes no gabinete numismatico de sua magestade el-rei o senhor D. Luiz I, 1870 e a Descripção geral e historica das moedas cunhadas em nome dos reis, regentes e governadores de Portugal, 1874-1880.

17

Cf. ANTT, ACR, cx. 7504, s./n.

18 Correspondem provavelmente às que ainda se conservam num corredor da zona de serviços do palácio, dotadas de expositores envidraçados para colocação de pequenos objectos. Restauradas na década de 1960, apresentam grandes afinidades quando comparadas às existentes na sala de entrada da Biblioteca da Ajuda. 19

DN, 15 Outubro 1869.

20

ANTT, ACR, cx. 4989, doc. 112 A.

FIG. 3 - Custódia. Portugal, Gil Vicente, 1506 (dat.). Ouro e esmaltes polícromos. MNAA, inv. 740 Our. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.


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21

Fernando Modesto y Gonzales, De Madrid á Oporto pasando por Lisboa: diario de un caminante, 1874, pp. 223 e 256.

22

Ofício datado de 18 de Janeiro de 1872. ANTT, ACR, cx. 4994, doc. 239. 23

Cf. “Relação dos legados que deixou o Conselheiro Joaquim Antonio de Moraes Carneiro a Sua Magestade El Rei o Senhor D. Luiz, a Sua Alteza o Principe Real e Serenissimo Senhor Infante D. Affonso”. ANTT, ACR, cx. 7332, s./n.

24 Cf. “Nota das medalhas para Sua Magestade remettidas pelo cônsul geral de Portugal no Mexico”. ANTT, ACR, cx. 7332, s./n. 25 A. Marques Pereira, Moedas de Siam. Lisboa: 1879. 26

“Collecção archeologica da Ajuda” in Portugal. Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico […], vol. I, 1904, p. 109. 27

A transferência das moedas e medalhas para a Casa da Moeda foi ordenada em 1924, com vista à criação de um museu numismático. Posteriormente, por ordem ministerial, o núcleo de medalhas seria integrado nas colecções do Paço Ducal de Vila Viçosa. C. M. Almeida Cabral, Catálogo descritivo das moedas portuguesas – Museu Numismático Português, 1977, p. 14.

época de Alfonso V, habiendo comprado por 40 libras esterlinas la única moneda de oro que le faltaba”21. O monarca não deixou de fazer pessoalmente algumas aquisições, como revela um oficio dirigido ao vedor da Casa Real, relatando que, “por occasião da ultima visita que Se dignou fazer à Casa da Moeda e Papel Sellado, escolheu n’esta Repartição para o Seu gabinete numismático algumas moedas e medalhas”, cujo pagamento, parcialmente efectuado, importava então concluir.22 A colecção de numismática viu-se ainda acrescida com a generosidade de grandes e pequenos coleccionadores, como o conselheiro Moraes Carneiro que legou ao rei algumas moedas e medalhas em ouro, prata e cobre23, ou o cônsul de Portugal no México que lhe remeteu um apreciável conjunto de moedas oriundas daquela antiga colónia espanhola, “algumas mui raras e escassas”, como indica na listagem elaborada para acompanhar a remessa24. Tão invulgar como representativo foi o donativo do nosso cônsul no reino do Sião, Marques Pereira, com 813 moedas siamesas, catalogadas pelo próprio em 187925. Aquela que no início do século XX era considerada “a primeira e mais completa collecção numismatica de Portugal”26, seria dividida após a implantação da República entre a Casa da Moeda de Lisboa e o Paço Ducal de Vila Viçosa, encontrando-se hoje menos acessível ao público do que ao tempo de D. Luís27.

Objectos de aparato e cerimonial

28

Teixeira de Aragão, Description des monnaies, médailles et autres objets d’art concernant l’histoire portugaise du travail, 1867, pp. 123-130. 29 ANTT, ACR, cx. 7504, doc. s./n. - cópias manuscritas de toda a documentação relativa a essas transferências, incluindo listagens das peças. Entre outras, sobressaem o cofre eucarístico do convento de Cristo do Tomar (MNAA, inv. 819 Our), o cálice que então se associava ao mesmo convento (MNAA inv. 815 Our), a cruz relicário e par de galhetas do mosteiro de Alcobaça (MNSR, inv. 120/1/2/3 Our) e a píxide italiana (Trapani) da Cartuxa de Laveiras (MNSR, inv. 193 Our). 30 No dizer de Vilhena Barbosa, aqueles objectos “foram encorporados nos bens da coroa para uso dos soberanos, em troca, ou como indemnisação das numerosas e mui valiosas peças de prata da casa real, que por ordem de sua magestade imperial D. Pedro IV, duque de Bragança, regente do reino, foram levadas para a casa da moeda, em Lisboa, onde foram reduzidas a dinheiro cunhado nos fins do anno de 1834 para acudir ás immensas e urgentíssimas despezas da guerra da restauração da liberdade e do throno da sr.ª D. Maria II”. Inácio de Vilhena Barbosa, “A Exposição Retrospectiva Portugueza em Paris”. Archivo Pittoresco, vol. X, Lisboa, 1867, p.184.

A secção portuguesa de “História do Trabalho” da Exposição Universal de Paris de 1867, tinha outro ponto forte no valioso conjunto de “objets d’art et d’industrie” provenientes de algumas colecções públicas e privadas e igualmente catalogados por Aragão28. Parte importante desses objectos pertenciam às colecções da Casa Real, com destaque para a ourivesaria civil, representada, entre outras peças, pelo conjunto de salvas com pé alto ainda hoje conservadas no Palácio da Ajuda, obras quinhentistas em prata dourada com densa carga ornamental e acrescentos posteriores (pé e orla) e, sobretudo, para a ourivesaria religiosa, com duas obras de importância maior: a Cruz de D. Sancho (FIG. 2) e a Custódia de Belém (FIG. 3). Conservadas até 1845 na Casa da Moeda, onde haviam recolhido do Convento de Santa Cruz de Coimbra e do Mosteiro dos Jerónimos respectivamente, estas duas peças, e uma meia dúzia mais proveniente de outros conventos extintos29, deram entrada nas colecções reais por intervenção de D. Fernando II, numa vaga troca ou indemnização de uma avultada porção de prataria da Coroa fundida por ocasião da vitória liberal30. Não passa de um mito o romântico episódio, tantas vezes narrado, de o rei-artista ter salvo a custódia ao solicitar, por ocasião de uma visita aquela instituição, que lhe fosse aberto um armário onde se encontravam peças destinadas a serem fundidas. Esse perigo não recaía já sobre os objectos de ourivesaria entesourados na Casa da Moeda, encontrando-se os mesmos guardados a bom recato até serem transferidos, uns para o Tesouro Real, e outros, anos mais tarde, para a Academia das Belas Artes de Lisboa.

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Estimulado talvez pelo interesse paterno por objectos de ourivesaria sacra e civil, D. Luís começou a desenvolver aquisições nesse domínio, como sugerem vários ofícios trocados entre a Alfândega de Lisboa e a vedoria da Casa Real. Em Janeiro de 1863, por exemplo, assinalava-se a chegada a Lisboa, com destino ao Palácio da Ajuda, de uma caixa contendo “peças antigas de prata”, seguida, um mês depois, de uma outra contendo “dois objectos antigos”, especificando uma nota que “um dos objectos antigos he um relicario de madeira com chapas de prata, o outro he um navio de prata dourada”31. Outras compras foram efectuadas durante as deslocações do monarca ao estrangeiro, nomeadamente, ao antiquário D. A. Kuhn de Genebra que visitou em Julho de 1867, a caminho da Exposição Universal de Paris, e onde despendeu 2.500 francos com “une monstrance en vermeil XVIe siècle”32. No ano seguinte adquiria em Lisboa, por 218 mil reis, uma salva de modelo idêntico às que a Coroa já possuía, “com pé alto à maneira de castiçal e diâmetro palmo e meio, toda em meio relevo, ornada de diversas peças douradas e lavradas de feitio antigo, representando folhas, flores, figuras d’homens e cavaleiros e com quarto figuras de serafins na base do pé”33. Assim a descreveu o vendedor em carta dirigida a uma dama do paço, D. Gabriela de Sousa Coutinho, intermediária na transacção, permitindo-nos identificá-la (FIG. 4). No intuito de expôr convenientemente estas ou outras peças, eram despendidos, em Fevereiro de 1871, 35 mil reis, “importância de uma vitrina para o museu d’Ajuda, pertencente a Sua Magestade El Rei o Sr. D. Luiz 1.º; incluindo o frete” declarava, no recibo, o marceneiro responsável pela encomenda, Miguel Silvestre da Silva34.

FIG. 4 - Salva de pé alto. Portugal, séc. XVI (salva); 1.º quartel do séc. XVIII (pé e orla). Prata dourada. PNA, inv. 4812. © Manuel Silveira Ramos, DDF/IMC.

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31

ANTT, ACR, cx. 4702, n.º1 e n.º 127.

32

ANTT, ACR, cx. 4822, n.º 10.

33

O vendedor, José Vinha, acrescenta ser “objecto dos principios da monarchia portuguesa, rico para ornato de toucador pela elegancia do trabalho d’aquelle tempo e hoje objecto raro”. ANTT, ACR, cx. 4868, s./n.

34

ANTT, ACR, cx. 4954, 3.º maço, doc. s./n.


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35 “In glass cases round the cabinet are many valua-

ble pieces of siver-gilt plate, some Polish tankards of beautiful workmanship, a curious baptismal font set with 138 Roman coins, and which has served at the christening of the soverings of Portugal for many generations [...] and many other articles of vertu”. Joaquim António de Macedo, A guide to Lisbon and its environs […], 1874, p. 184. 36 Teixeira de Aragão, Descripção histórica das moedas romanas existentes no gabinete numismatico de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Luiz I, 1870, p. 89. A taça conserva-se ainda no PNA (inv. 4286). 37 A este respeito cf. Maria do Rosário Jardim e Inês

Líbano Monteiro, “A prata do solene aparato da Coroa portuguesa a partir da segunda metade do séc. XVIII. Identificação de um conjunto de 23 obras dos sécs. XVI a XVIII”. Revista de Artes Decorativas, n.º4, 2011 (no prelo). 38

“On this occasion, Spain, and to a greater extent Portugal, were represented by collections got together fot the occasion from various sources, and undoubtedly the splendid and most original art objects then exhibited gave a vogue and status to Peninsular art, which speedily had a potencial effect in the country itself”. Catalogue of the Special Loan Exhibition of the Spanish and Portuguese Art […], 1881, p. 8.

FIG. 5 - Cofre eucarístico. Portugal, séc. XVI (3.º quartel). Prata e prata dourada. MNAA, inv. 819 Our. © José Pessoa, DDF/IMC.

FIG. 6 - Cálice. Portugal, 1524 (dat.). Prata dourada, esmaltes, ametistas, granada e quartzos forrados. MNAA, inv. 815 Our. © José Pessoa, DDF/IMC.

Publicado poucos anos depois, um guia para viajantes britânicos fazia notar a existência de “glass cases round the cabinet”, aludindo a outros objectos da colecção real35, como uma vetusta taça em prata dourada utilizada nos baptizados dos príncipes, incrustada com 138 moedas que Aragão apurou tratarem-se de cópias de espécimes gregos e romanos36. A sua apresentação denota um novo entendimento estético em relação a peças a quem eram essencialmente atribuídas funções de aparato e cerimonial, estando quase sempre vedadas ao olhar do grande público pois só eram utilizadas por ocasião de grandes solenidades reais.37 É todavia através das Exposições de Arte Ornamental de Londres (1881) e, sobretudo, de Lisboa (1882) que podemos ter uma ideia aproximada da riqueza e variedade dos objectos pertencentes ao “museu de antiguidades” de D. Luís. O certame inglês foi organizado no South Kensington Museum (actual Victoria & Albert Museum) e contou com uma comissão de notáveis, entre os quais o académico hispanista J. C. Robinson que, na introdução ao catálogo, não deixou de recordar a excelência da representação portuguesa na Exposição Universal de Paris, ocorrida 14 anos antes, e a sua importância na promoção internacional das artes decorativas peninsulares38.

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O sucesso alcançado em Londres motivou a organização em Lisboa de uma mostra congénere, a ter lugar no palácio Alvor-Pombal, às Janelas Verdes, e à qual D. Luís deu patrocínio real. Presidida por Delfim Guedes, futuro conde de Almedina, a comissão executiva incluía entre os seus vogais o conservador do gabinete real, Teixeira de Aragão, encarregue de catalogar a Sala G onde foram colocadas duas vitrinas pejadas de peças daquela colecção39. Para além da custódia mandada executar pelo rei D. Manuel com o primeiro ouro de Quíloa, obra-prima da nossa ourivesaria tardo-gótica, a quem Aragão deu honras de abrir a sala (cat. 1), e da românica cruz processional em ouro e pedras preciosas mandada executar por D. Sancho para Santa Cruz de Coimbra (cat. 3), merecem destaque outras peças, actualmente também na posse do Museu Nacional de Arte Antiga, como o cofre em prata dourada do Convento de Cristo de Tomar (FIG. 5) (cat. 29), obra de linhas arquitectónicas muito marcadas cujo risco foi recentemente atribuído em co-autoria a Baltazar Alvares40, e o aparatoso cálice quinhentista que se julgava à época ter pertencido ao mesmo convento (FIG. 6) (cat. 5), e que D. Luís mandou copiar à casa Leitão & Irmão para oferecer ao papa Leão XIII, por ocasião do jubileu de 188841. Exposta na sala G estava também a cruz relicário em ouro e pedras preciosas encomendada por D. João IV ao ourives Filipe Vallejo, hoje conservada no Paço Ducal de Vila Viçosa (FIG. 7) (cat. 2), tal como um grande cofre do séc. XIV com esmaltes de Limoges, erradamente considerado bizantino por Aragão (FIG. 8) (cat. 50). Entre outras peças, algumas tão díspares como um par de “torques celtibericos de oiro com ornatos toscos” (cat. 39 e 40) ou um Livro de Horas cuja encadernação apresentava “as armas portuguezas em oiro esmaltado e cravejado de brilhantes rosas e rubis” (cat. 42)42, cha-

FIG. 7 - Cruz relicário. Portugal, Filipe Vallejo, 1656-1673. Ouro, prata, diamantes, rubis, esmeraldas, pérolas, cristal e esmaltes polícromos. PDVV, inv. 356. © J. Real Andrade, FCB.

39 Catalogo illustrado da exposição retrospectiva de

arte ornamental portugueza e hespanhola [...], 1882, pp. 127-170. 40 Ricardo Lucas Branco, Italianismo e Contra-Reforma: a obra do arquitecto Baltazar Álvares em Lisboa. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, 2008, vol. I, pp. 66 e 67. 41

Cf. O Occidente, n.º 327, 21 Janeiro 1888.

42 Trata-se do Livro de Horas de D. Fernando, con-

FIG. 8 - Cofre relicário. França, Limoges, sécs. XII-XIII. Ferro e esmaltes polícromos. PDVV, inv. 689. © J. Real Andrade, FCB.

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servado actualmente no MNAA (inv. 13 Ilum).


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43 Conjunto executado por Antoine-Sébastien Durand para o rei D. José I. MNAA, inv. 1797 e 1798. 44 PNA, inv. 4800. Cf. Tesouros Reais (catálogo de

exposição), 1991, pp. 365-367. 45

Foi autor de um estudo monográfico sobre esta colecção de ourivesaria, realizado na década de 1880 e publicado postumamente. Cf. Marquês da Foz, A Baixela Germain da Antiga Corte Portuguesa, 1926. 46 Tratou-se de Germain Bapst, autor de Études sur l’orfèvrerie française au XVIIIe siècle, 1887 e L’orfèvrerie française a la cour de Portugal au XVIIIe siècle, 1892. 47

“Collecção archeologica da Ajuda” in Portugal. Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico […], vol. I, 1904, p. 109. 48

DN, 24 Março 1868.

49 Cf. “Conta da importancia da construção d’uma barraca que por ordem de Sua Magestade El-Rei D. Luiz se fez na Real Quinta de Belem, para operações photographicas”. Documento datado de 12 de Dezembro de 1862. ANTT, ACR, Cx. 4661, doc. 1315. Agradecemos a indicação do mesmo a Maria do Carmo Rebelo de Andrade, conservadora do PNA. 50 D. Luís I, Duque do Porto, Rei de Portugal, 1990, p. 22. 51 Processo fotográfico introduzido por Frederick Scott Archer em 1851 e muito utilizado até cerca de 1875. Tinha essa designação porque empregava o colódio (composto por partes iguais de éter e álcool numa solução de nitrato de celulose) como substância ligante para fazer aderir o nitrato de prata à chapa de vidro que constituía a base do negativo. A exposição devia ser realizada com o negativo ainda húmido e a revelação efectuada logo após a tomada da fotografia, em câmara escura.

FIG. 9 - Cruz relicário e par de galhetas. Índia Mogol, sécs. XVII-XVIII. Jade nefrítico, ouro, rubis e quartzos forrados. MNSR, inv. 120. © Carlos Monteiro, DDF/IMC.

mamos a atenção para o raro conjunto de cruz relicário e par de galhetas em jade com montagens em ouro, trabalho da Índia Mogol que pertenceu ao mosteiro de Alcobaça (FIG. 9) (cat. 59), integrando hoje as colecções do Museu Nacional Soares dos Reis. Da riquíssima colecção real de ourivesaria francesa de Setecentos, figuravam apenas na mostra um jarro e respectiva bacia em prata dourada,43 apresentados separadamente (cat. 12 e 34), estando a bacia associada, e mal, a um jarro em forma de búzio também conservado na Ajuda,44 revelando existir ainda algum desconhecimento sobre aquela colecção. Na realidade, só começou a ser estudada e valorizada pouco depois, por acção de um dos nossos mais sofisticados coleccionadores, o marquês da Foz,45 que promoveu a sua divulgação internacional através da vinda a Lisboa de um reconhecido especialista francês46. Consequentemente, e num período de recuperação do rocaille, o gabinete real viria a apresentar nas suas vitrinas, “diversas peças da baixella da Casa Real, obra do ourives francez do seculo XVIII, Germain, que firmou algumas d’ellas”47, tornando ainda mais rico um acervo já de si opulento.

Documentar e divulgar Admirador do progresso técnico como tantos homens cultos da segunda metade do século XIX, D. Luís não deixou de o fazer associar às suas colecções artísticas, mandando registar, através da fotografia, parte importante das peças que as constituíam, num gesto ainda pouco comum entre os coleccionadores da época. Em 1868, noticiava-se ter o monarca ordenado que se “tirassem photographias das riquíssimas peças da baixella da casa real que foram á exposição de Paris. Para tal fim tem ido estes dias o distincto photographo da casa real o sr. Gomes, ao jardim de Belém, onde sua majestade algumas vezes tem assistido aos processos photographicos”48. A referência à “baixella da casa real” deverá ser associada, não ao célebre serviço encomendado pelo rei D. José a François-Thomas Germain, mas às salvas quinhentistas e restantes objectos reais de ourivesaria civil mencionados no catálogo daquela exposição internacional. Foram fotografados por Francisco Augusto Gomes, proprietário, com o seu irmão António Augusto, de um dos estúdios mais mundanos e afamados de Lisboa durante as décadas de 1850 e 1860, pertencendo-lhes parte importante da iconografia da família real. Como é mencionado na notícia, os trabalhos decorreram na Quinta de Belém onde, em 1862, D. Luís havia mandado construir uma “barraca para operações photographicas”49, no provável intuito de se exercitar nesse domínio. Com efeito, a fotografia viria a prender a atenção do monarca que chegou inclusivamente a instalar uma câmara escura num piso intermédio do Palácio da Ajuda, de onde viu sair diversos trabalhos da sua autoria50. Identificámos na Divisão de Documentação Fotográfica do Instituto dos Museus e da Conservação algumas dezenas de negativos em suporte de vidro e colódio húmido51 que poderão ser associados à campanha do fotógrafo Gomes atrás mencionada ou, quando muito, ao próprio D. Luís, provavelmente em colaboração com

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Gomes ou outro fotógrafo da Casa Real. Entre os negativos encontram-se alguns retratos do monarca (FIG. 1), em diferentes poses, assim como de dignitários e damas da corte, num cenário rude com uma carpete que mal cobre o chão terroso, no que corresponderá à tal “barraca” armada nos jardins do palácio de Belém. A grande maioria dos negativos diz todavia respeito a espécimes das colecções reais de pintura e, sobretudo, de ourivesaria, algumas captadas em ângulos diferentes para fixar determinados pormenores, como se de uma inventariação fotográfica se tratasse. Em certos casos é-nos dado a ver o tecido utilizado para servir de fundo neutro, com as pontas presas por objectos vários ou mesmo pedras, e as portas com rede de um armário destinado seguramente a fazer arrecadar com segurança as alfaias à medida que iam sendo fotografadas (FIG. 10 e 11). As provas em papel albuminado obtidas através dos “colódios” de pintura foram reunidas pelo monarca num álbum, surgindo acompanhadas por notas manuscritas referentes à autoria das obras e, caso significativo, à proveniência dos mesmas52. Próprios de um coleccionador metódico, estes registos permitem-nos aferir onde foram adquiridos determinados quadros e quem ofereceu outros, enriquecendo substancialmente o estudo daquela colecção. Semelhante ideia poderá ter existido para as peças de ourivesaria dada a grande quantidade de negativos a elas relativos mas, segundo conseguimos apurar, tal não se realizou. Do conjunto, verificamos ter o monarca deixado de fora os importantes espécimes provenientes dos conventos extintos, captando outras peças da Coroa e da sua colecção pessoal, algumas das quais actualmente em paradeiro incerto, o que confere especial importância às imagens. É o caso de um aparatoso relicário que figurou na Exposição de Arte Ornamental (FIG. 10), descrito no catálogo como sendo em cobre dourado, “formando uma cúpula rodeada de nichos rendilhados, com estatuetas de santos, sendo algumas em prata” e tendo na base, em medalhões, “o busto do Salvador, esmaltes, coralinas, etc.”53. Teixeira de Aragão considera-o de “estylo gothico puro”, parecendo-nos antes uma falsificação deliberada mas nada desinteressante, quem sabe executada num dos vários ateliers parisienses que à época se dedicavam a este tipo de trabalhos54. Genuinamente gótica será uma custódia (FIG. 11) que poderá muito bem corresponder à que mencionámos ter sido adquirida em 1867, ao antiquário D. A. Kuhn de Genebra, por ocasião da viagem da família real ao estrangeiro. O conservador informa-nos ser também em cobre dourado, com o hostiário “ladeado por dois pilares acorucheados aos quaes se encostam duas estatuetas” e, na parte superior, “outros pilares similhantes que se ligavam aos lateraes por meio de rendilhados, de que apenas restam fragmentos”55. Ausentes do catálogo da magna exposição de 82 estão o conjunto de jarro e bacia (FIG. 12 e 13), talvez em prata dourada, com requintada ornamentação cinzelada e gravada ao gosto renascentista onde sobressaem pequenos elementos ovais lisos e salientes que corresponderão a gemas em cabochão incrustadas. A hipótese de possuírem marcas de uma execução coeva, assumidamente historicista, poderá explicar

80

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52

PNA, inv. 55454.

53

Catalogo illustrado da exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza e hespanhola […], 1882, p. 131 - cat. 30. 54

Sobre esta questão cf. Mark Jones (ed.), Fake? The Art of Deception. Londres: Bristish Museum, 1990, pp. 161-235. 55

Catalogo illustrado da exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza e hespanhola […], 1882, p. 133 - cat. 49 (custódia) e p. 132 – cat. 44 (relicário).


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FIG. 10 - Relicário. Prova actual de negativo em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 165.001.026. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

56 O estudo sistemático dos Arrolamentos dos palácios da Ajuda e das Necessidades que se encontra a ser efectuado no âmbito do projecto de investigação “Fontes para a História dos Museus de Arte em Portugal” (PTDC/EAT-MUS/101463/2008), irá permitir aclarar melhor esta questão. 57

Catalogo illustrado da exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza e hespanhola […], p. 132 - cat. 38. 58 59

Palácio do Correio Velho.

A execução é balizada entre 1550 e 1570. Joaquim de Vasconcelos, A ourivesaria portuguesa sécs. XIV-XVI: ensaio histórico, [c. 1880], p. 66. A peça figura igualmente no catálogo da Exposição de Arte Ornamental, com o n.º 23 da sala G: “Gomil de prata dourada com carrancas e outras ornamentações. A aza, muito levantada, representa uma serpente com duas cabeças, quatro pares de azas e duas caudas”. A execução é atribuída ao séc. XVII. Catalogo da exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza e hespanhola […], 1882, p. 130.

FIG. 11 - Custódia. Prova actual de negativo em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 165.001.038. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

a sua ausência numa mostra que impedia no seu regulamento a inclusão de objectos posteriores a finais de Setecentos. Desconhecendo-se a localização actual destas peças, parece provável terem sido enviadas após a implantação da República à família real exilada, como sucedeu a tantos objectos das colecções reais, dispersando-se posteriormente56. Já a gorgeira que Aragão dizia ser da armadura de Francisco I de França (FIG. 14), outra provável contrafacção oitocentista de assinalável qualidade, permaneceu em solo português, dando em 1918 entrada no Museu Militar com mais algumas armas de aparato pertencentes a D. Luís57. Transaccionado há alguns anos no mercado leiloeiro nacional, erradamente associado no catálogo da venda a D. Fernando II, e tido como proveniente de Fulwell Park, residência de exílio de D. Manuel II58, é o jarro em prata dourada que sabemos ter constituído uma oferta a D. Luís (FIG. 15), conforme inscrição gravada na base: “A S[ua] M[agestade] F[idelíssima] El-REY o mais leal dos seus vassalos ABF – 1863”. A data terá levado os responsáveis da leiloeira a situar a execução da peça no século XIX, contrariando um olvidado testemunho de Joaquim de Vasconcelos que a ela se refere no seu ensaio sobre ourivesaria portuguesa, datando-a da segunda metade do séc. XVI59.

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FIG. 12 e 13 - Bacia e jarro. Provas actuais de negativos em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 165.001.016 e 165.001.014. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

O decano dos historiadores da arte portugueses faz ressaltar a “ornamentação de mascaras e cartouches com fructos, no estylo de Vries”, depreciando a asa “composta de uma serpente alada, de proporções um pouco pesadas, defeito que se nota ainda no bojo excessivamente longo”. Só uma cuidada reavaliação da peça poderá esclarecer-nos se será quinhentista ou oitocentista. Joaquim de Vasconcelos destaca e analisa naquele seu trabalho outras peças representativas da “collecção da Ajuda” que refere ter tido oportunidade de examinar pessoalmente em 1877, tecendo especiais encómios a uma grande salva em prata dourada, “obra d’arte de primeira ordem, concebida segundo um plano original, e executada em todos os detalhes com a maior perfeição”60 (FIG. 16). Ainda conservada no palácio e associada anteriormente a um jarro61, esta peça sobressai pela profusão de escudos com que se encontra decorada, alusivos a alianças dos Sás com outras famílias ilustres, tratando-se no entender do historiador de uma “encommenda celebratória feita de Portugal a algum dos grandes ourivezes da escola de Augsburgo”62. As apreciações de Vasconcelos foram escritas com base em fotografias, remetendo os leitores para o catálogo fotográfico de Jean Laurent, através do qual podiam ser escolhidas e adquiridas provas de quase todas as peças a que alude. O conhecido his-

82

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60

Idem, p. 75.

61

PNA, inv. 4811

62 Joaquim de Vasconcelos, op. cit, p. 76. Uma aná-

lise actualizada a esta peça é efectuada por Maria do Rosário Jardim e Inês Líbano Monteiro, “A prata do solene aparato da Coroa portuguesa a partir da segunda metade do séc. XVIII. Identificação de um conjunto de 23 obras dos sécs. XVI a XVIII”. Revista de Artes Decorativas, n.º4, 2011 (no prelo).


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FIG. 14 - Gorgeira de armadura. Prova actual de negativo em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 165.01.037.01. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

63

Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas (org.), Cartas de Joaquim de Vasconcelos, 1975, p. 4. 64

António Sena, História da imagem fotográfica em Portugal (1839-1997), 1998, p. 46.

65 Cf. A. Roswag, Nouveau guide du touriste en Espagne et Portugal. Itinéraire artistique, 1879, p. 187. Lamentavelmente, não nos foi possível localizar nos arquivos e colecções nacionais quaisquer provas das fotos referenciadas no catálogo.

FIG. 15 - Jarro. Prova actual de negativo em suporte de vidro e colódio, c. 1868. PNA, inv. 165.001.040. © Luísa Oliveira, DDF/IMC.

toriador esteve, aliás, a par dos seus colegas europeus na consciencialização da importância da fotografia para as suas áreas de investigação. Em carta enviada a António Augusto Gonçalves, em 1879, comentava: “Já tenho uma rasoavel colleção de photographias nacionaes, mas é pouco. Os nossos photographos ainda não comprehenderam bem a riquissima mina que teem a explorar e a excellente receita que podem tirar d’essas reproduções”63. Na falta de iniciativa nacional, havia a estrangeira, sobressaindo o já citado Jean Laurent, fotógrafo francês residente em Madrid que, em 1869, se deslocou até Portugal, procurando tirar partido do crescente interesse pelas fotografias de monumentos e costumes, motivado pelo ainda incipiente turismo64. O seu catálogo chegou enumerar cerca de 5000 fotos de Portugal e Espanha, sobretudo de edificios românicos e góticos, mas também de obras de arte de colecções públicas e privadas, onde se incluíam as de D. Luís que autorizou generosamente a sua reprodução para deleite de estudiosos ou simples amadores, num gesto de raro alcance cultural. No total são indicadas 12 fotografias de peças de ourivesaria sacra e civil, todas captadas individualmente, exceptuando um “trophée formé de quinze objects d’art divers, de la collection de S. M. le roi D. Louis”65. Será preciso esperar pela Exposição de Arte

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66 Carlos Relvas fotografou diversos objectos daquela exposição o que exigiu a construção de um estúdio nos jardins do palácio Alvor-Pombal. Não existindo capacidade editorial por parte das entidades oficiais, resolveu lançar-se na edição de um luxuoso Álbum de Fototypias da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental em Lisboa. Cf. Carlos Relvas e a Casa da Fotografia, 2003, pp. 40-44. 67 Conhece-se um exemplar idêntico transaccionado recentemente no mercado leiloeiro internacional e referenciado como trabalho francês do século XIX. Cf. lote 246 do cat. Salvatore e Francesco Romano. Antiquari a Firenze. A century as antique dealers at Palazzo Magnani Feroni, Sotheby’s, 12 Oct 09 - Thu, 15 Oct 09 [MI0294]. 68

Ferreira de Mesquita, “Um punhal da galeria do paço da Ajuda”. A Arte, Junho 1879, p. 90.

FIG. 16 - Salva. Alemanha, séc. XVIII (2.ª metade). Prata dourada. PNA, inv. 4816. © Manuel Silveira Ramos, DDF/IMC.

Ornamental para ver entre nós semelhante recolha e disponibilização fotográfica qualificada de objectos das colecções reais, com a empreitada para o Album de Fototypias editado pelo abastado fotógrafo Carlos Relvas66. A divulgação do acervo do “Museu da Antiguidades” estendeu-se ainda à imprensa ilustrada, podendo destacar-se o caso da revista A Arte que, em 1879, reproduzia um punhal em prata e pedras preciosas com um emaranhado de figuras fantásticas, sendo o punho formado por um esqueleto assente nas asas de um morcego, numa alusão à Morte (FIG. 17). Acompanhado por um artigo de Ferreira de Mesquita que relata ter sido adquirido por intermédio de Teixeira de Aragão ao visconde Sanches de Baena, o punhal era então fantasiadamente atribuído ao ourives Benvenuto Cellini67 e celebrizara-se por ter sido furtado do Palácio da Ajuda por ocasião de um baile, reaparecendo dias depois numa rua da capital68. Narrada pelos jornais com certa dose de romantismo, a obscura história do furto prendeu a atenção dos lisboetas, ocorrendo ao director da revista A Arte ilustrar a peça, para o que solicitou a autorização do monarca, conforme foi noticiado: “S. M. El-Rei o Senhor D. Luiz permitiu gostosamente ao director deste periódico, o sr. Souza e Vasconcellos, a quem recebeu com a amabilidade que costuma dispensar às pessoas que teem a boa fortuna de se acercar de S. M., que não só o punhal mas outros objectos de arte do importante museu da Ajuda, sejam copiados, para figurarem gravados na Arte”. Nas edições subsequentes seriam reproduzidos: o cofre do Convento de Cristo de Tomar, a cruz relicário de Vila Viçosa, uma píxide em prata dourada e pedrarias cujo paradeiro actual se desconhece (FIG. 18), e duas salvas, uma alemã e outra portuguesa, de pé alto, que o monarca havia adquirido em 1868 como tivemos oportunidade de relatar. A maioria destas peças foram gravadas a partir das fotografías então disponíveis, sendo sempre acompanhadas por artigos analíticos de colaboradores daquela revista.

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FIG. 17 – Punhal. Gravura publicada na revista A Arte, 1879. © Hugo Xavier.


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Epílogo

FIG. 18 – Píxide. Gravura publicada na revista A Arte, 1879. © Hugo Xavier.

Cumprindo tradicionais funções de aparato, diversas peças das colecções de ourivesaria da Casa Real e de D. Luís foram frequentemente requisitadas para ornamentar uma ou outra sala do andar nobre da Ajuda, sobretudo por ocasião de bailes e recepções. Disso nos dão conta os relatos dos jornais coevos 69 e até uma fotografia da Sala do Corpo Diplomático (FIG. 19), cujos aparadores apresentam uma heteróclita conjugação de peças de uso sacro e profano, nacionais e estrangeiras e de diferentes épocas, no que deverá ter sido o tipo de exposição aplicada às vitrinas do “museu de antiguidades”. Ocupa lugar de destaque num dos aparadores, entre salvas e gomis, o cofre eucarístico do convento de Cristo de Tomar (FIG. 5), enquanto no outro vislumbramos parte do cofre em esmaltes de Limoges que se conserva actualmente no Paço Ducal de Vila Viçosa (FIG. 8). Verificamos ainda a presença de algumas salvas e canecas alemãs em prata dourada, a maioria das quais executadas em Agusburgo, entre os séculos XVII e XVIII, e ainda uma chaleira da baixela Germain, num gosto decididamente ecléctico, a recordar a decoração que D. Fernando II imprimiu ao seu gabinete de trabalho das Necessidades, onde concentrou a sua notável colecção de ourivesaria70. Embuído de idênticas preocupações decorativas, D. Carlos fez transitar para aquele palácio, logo após a sua subida ao trono (1889), parte significativa do acervo de ourivesaria sacra e civil conservado na Ajuda, contrariando um desejo expresso pelo pai num testamento redigido em 186971. As peças mais relevantes continuarão todavia a ser cedidas para figurar em exposições temporárias, como foi o caso da Exposição

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“Esteve esplêndido o baile do paço dos nossos reis. Perto de 2000 pessoas povoavam as vastas salas do palacio da Ajuda que se achavam adornadas com sumptuosidade, e inexcedível gosto, tornando-se notáveis a sala dos retratos […]. Na sala próxima, entre objectos de subido valor, e de muita raridade, via-se a grande bacia de oiro macisso onde foi baptisado el-rei D. Sebastião”. DN, 8 Fevereiro 1865. Trata-se seguramente da bacia em prata dourada utilizada na solenização dos baptizados dos príncipes (PNA, inv. 4286). 70 Vejam-se as imagens publicadas por José Texei-

ra, D. Fernando II. Rei-Artista. Artista-Rei, 1986, pp.202-205. 71

“As minhas colecções de bellas-artes e antiguidades e medalhas deixo-as a meu filho mais velho para que sempre as conserve e augmente no mesmo local do paço d’Ajuda em que hoje se achão”. Francisco Louro. “Um testamento inédito do rei D. Luís”. Sep. Bracara Augusta, t. XXX, fasc. 69 (81), 1976, p. 5.

FIG. 19 - Sala do Corpo Diplomático. Fotografia de Henrique Nunes, c. 1880. BA 232/4 Reg. 1494. © Cortesia da BA.

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de Arte Sacra Ornamental, promovida em 1895 pela Comissão do Centenário de Santo António de Lisboa, e de onde resultou um notável Catálogo da Sala de Sua Magestade El-Rei, elaborado pelo bibliotecário real, Ramalho Ortigão72. Circunscrito à colecção numismática e a pouco mais, o gabinete real, espaço que tanto se distinguiu por cumprir funções inerentes à actual prática museológia – sobretudo no que diz respeito à investigação, incorporação, documentação, exposição e divulgação – conhecerá a partir de então o seu fim. Em 1899, um representante de Teixeira de Aragão entrega na Administração da Fazenda da Casa Real o núcleo de moedas e medalhas da Coroa que D. Luís havia feito depositar no gabinete, junto à sua colecção pessoal73. Com a implantação da República, assiste-se a uma nova dispersão das moedas e restantes objectos lá conservados, disseminados por onde se julgou mais adequado, e que aqui procurámos de novo reunir, contextualizando-os como colecção, de maneira a oferecer uma visão de conjunto do que foi o núcleo museológico ideado por D. Luís.

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Ramalho Ortigão, Catálogo da Sala de Sua Magestade El-Rei – Exposição de Arte Sacra Ornamental, 1895. 73 “Copia do auto de entrega das medalhas e moedas da Coroa que foram entregues na Administração da Fazenda da Casa Real por um representante de Teixeira de Aragão. 15/11/1899”. Arquivo do PNA – 4.1.2.


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Resumo A abertura ao público do Museu Calouste Gulbenkian, em Outubro de 1969, resultou de um longo processo de programação, iniciado em Julho de 1956, alicerçado no trabalho continuado de uma equipa fixa, informado pelo contributo inestimável de um numeroso conjunto de consultores permanentes e de consultores pontuais. O presente artigo resulta da investigação desenvolvida no âmbito da nossa dissertação de mestrado em Museologia e Património, no qual, com base na análise de um conjunto de documentos de programação do Museu Calouste Gulbenkian, procurámos identificar os contributos de Maria José de Mendonça e de Georges-Henri Rivière para a génese da exposição permanente daquele Museu. Georges-Henri Rivière, então director do ICOM, foi, a partir de 1958, consultor permanente da Fundação Calouste Gulbenkian, na área da museologia. Para este breve artigo recuperámos, daquele estudo académico, um conjunto de propostas de programação para o Museu Calouste Gulbenkian patentes em cinco relatórios de consultoria (três deles inéditos) assinados por Rivière. Sabemos hoje, que umas não passariam para a programação definitiva do edifício do Museu, enquanto outras constituíram contributos directos dessa personalidade maior da museologia do século XX, marcando, na sua génese, a programação da exposição das galerias públicas do Museu.

palavras-chave Programação museológica Museu Calouste Gulbenkian Georges-Henri Rivière

Abstract The opening of the Calouste Gulbenkian Museum, in October 1969, resulted from a long process of programming, begun in 1956, together with the work of a team, informed by a priceless contribution of a number of permanent consultants and temporary consultants. The present article is the product of an investigation which was developed in the context of our master’s thesis in Museum Studies and Heritage, in which, based on the analysis of several programming documents of the Calouste Gulbenkian Museum, we have tried to identify the contributions of Maria José de Mendonça and Georges-Henri Rivière, then director of the ICOM who was also from 1958 the permanent consultant of the Calouste Gulbenkian Foundation, in the area of museum studies. For this brief article we have recovered, from that academic study, a number of proposed programmes for the Calouste Gulbenkian Museum belonging to five consultant reports (three of which unpublished) signed by Rivière. We know today that some did not go through to the definitive programme of the Museum, while others were direct contributions of this great personality of 20th century museology, who marked the exhibition programme of the public galleries of the Museum.

key-words Museum programming Calouste Gulbenkian Museum Georges-Henri Rivière


GEORGES-HENRI RIVIÈRE NA GÉNESE DO MUSEU CALOUSTE GULBENKIAN. CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DA COLABORAÇÃO ENTRE O MUSEÓLOGO FRANCÊS E A FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN 1 SOFIA LAPA Instituto de História da Arte da FCSH/UNL, linha de Museum Studies. Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/65696/2009).

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Para o estudo do tema do presente artigo foram fundamentais as obras: Sede e Museu Gulbenkian. Ensaios (Catálogo da Exposição e CD ROM) com concepção e coordenação científica de Ana Tostões (Março 2006) e Fundação Calouste Gulbenkian. Os Edifícios (Livro e DVD), da mesma autora (Dezembro 2006). A investigação que está na base deste artigo contou também com o imprescindível apoio directo da professora doutora Ana Tostões, ao disponibilizar-me o acesso a documentação reunida no âmbito da preparação da exposição e das publicações da FCG atrás referidas. 2 Desde a abertura do MCG ao público, em Outubro de 1969, a programação de exposições temporárias tem sido marcada por o que pode ser designado de efeito comemorativo, fazendo coincidir as datas de inauguração com datas em que se comemoram aniversários do nascimento ou da morte de Calouste Gulbenkian, da criação oficial da FCG, ou da inauguração do Museu. VID.: www.museu.gulbenkian.pt: “exposições passadas”. 3 A Colecção do Museu Calouste Gulbenkian é for-

mada por “6440 peças”. IN.: FCG, 1981, 80.

Um museu-monumento: o protagonismo decisivo de José de Azeredo Perdigão A exposição permanente do Museu Calouste Gulbenkian (MCG) constitui um dos eixos de identidade institucional da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). Desde a génese desta Fundação, tem-se mantido uma identificação entre o Museu e a exposição permanente desse museu. Em grande parte da documentação de programação por nós estudada, essa exposição surge recorrentemente identificada como “museu”, e isto apesar de a vertente de programação expositiva temporária do Museu Calouste Gulbenkian ser muito dinâmica.2 A colecção de arte que está no cerne deste museu3 foi reunida por Calouste Gulbenkian (1869-1955) e legada pelo coleccionador à fundação por ele instituída no seu testamento. As decisões relativas à programação e à gestão da colecção têm cabido inteiramente aos administradores da Fundação, dado que no testamento do benemérito milionário são inexistentes referências directas a qualquer museu. José de Azeredo Perdigão (1896-1993) foi consultor jurídico de Calouste Gulbenkian, durante os treze anos em que este cidadão arménio e inglês viveu em Portugal

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(1942-1955), foi seu executor testamentário, e trustee, conjuntamente com Kevork Loris Essayan (genro de Gulbenkian) e com Lord Radcliffe (que, logo em 1956, na sequência da decisão de localizar a sede da fundação em Lisboa, recusaria exercer aquelas funções). Perdigão e Essayan foram igualmente escolhidos por Gulbenkian como administradores vitalícios da FCG. Presidente do Conselho de Administração4, José de Azeredo Perdigão (JAP) foi o protagonista decisivo na definição de uma ideia de museu-monumento a Calouste Gulbenkian, validando um programa museológico e o projecto arquitectónico que o veio suportar. A 20 de Junho de 1956, na primeira sessão oficial da FCG5, JAP anunciou a criação “imediata” de “quatro órgãos de consulta, estudo e informação” da FCG: o “conselho de beneficência”, o “conselho das belas artes”, o “conselho da educação” e o “conselho da investigação científica” (Perdigão, 1960, 33), esclarecendo que “esses conselhos serão formados por um núcleo de pessoas das mais experimentadas e das mais conhecedoras da generalidade dos problemas próprios de cada um dos referidos ramos de actividade da Fundação. Inicialmente constituídos por um número limitado de pessoas, poderão, todavia, com a concordância do conselho de administração, agregar a si, para o estudo de certos problemas particulares, especialistas nacionais ou estrangeiros.” (Perdigão, 1960, 33). E assim veio a suceder. Nos treze anos que durou o processo de programação, projecto e construção dos edifícios do museu e da sede (edifícios directamente relacionados entre si), as equipas responsáveis por esse processo foram sofrendo reformulações em termos da sua composição, sobretudo no sentido de um alargamento do número de colaboradores, passando os “órgãos de consulta, estudo e informação”, inicialmente designados “conselhos”, a ser designados por “serviços”. Logo em Setembro de 1956, no seio do “Serviço de Projectos e Obras” (SPO), foi criado o “Grupo de trabalho de programação das instalações do museu e sede da Fundação Calouste Gulbenkian”, tendo tido como coordenadores o engenheiro Luís de Guimarães Lobato (LGL), que dirigia o SPO, e Maria José de Mendonça (MJM) (1905-1976), então conservadora efectiva do Museu Nacional de Arte Antiga. O engenheiro Lobato fora chamado em 1956, por Perdigão, para dar o seu parecer sobre o local da edificação da sede e do museu da FCG na cidade de Lisboa, agregando a si a colaboração dos três elementos da sua equipa do “Gabinete de Estudos Urbanos” da Câmara Municipal de Lisboa: o engenheiro Hipólito Raposo e os arquitectos Jorge Sotto-Mayor e José da França Sommer Ribeiro (1924 – 2006) (Tostões, 2006 b: 42-43). Este último arquitecto, veio a ser um dos principais protagonistas da montagem definitiva da exposição permanente, patente ao público ao longo de trinta anos, entre Outubro de 1969 e Outubro de 1999.6 O processo de escolha de um lugar para construir os edifícios da sede e do museu e o parque da FCG ficou resolvido em Janeiro de 1957.7 A aquisição do Parque de Santa Gertrudes, à Palhavã, foi formalizada nos Paços do Concelho, a 30 de Abril de 1957 (Tostões, 2006 b: 52). Maria José de Mendonça integrou o primeiro núcleo duro da programação do Museu da FCG. Em Setembro de 1956, iniciou a sua colaboração com a FCG, ligando-se

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de Azeredo Perdigão presidiu ao Conselho de Administração da FCG até 1985 (data em que completara já 93 anos de idade). 5

No decorrer do primeiro ano após a morte de Calouste Gulbenkian, JAP deu forma jurídica à FCG, sendo os Estatutos desta instituição publicados no Diário da República a 18 de Junho de 1956 (Decreto-Lei 40 690, 18 Julho 1956). Mas o processo de pleno reconhecimento internacional do direito da FCG à herança legada por C. Gulbenkian só ficou concluído em 1958, sendo então os colaboradores dos “Serviços” integrados num quadro de pessoal. VID.: SPO, Luís de Guimarães Lobato, Relatórios de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958, 2 de Junho de 1958, pág. 1. A.FCG. 6

Devido a uma necessária modernização técnica do edifício do Museu, a galeria de exposição permanente esteve encerrada por um período de quase dois anos, entre Outubro de 1999 e Junho de 2001. O guião original desta exposição, mantido durante o longuíssimo mandato da directora Maria Teresa Gomes Ferreira (1969-1998), tem também sido mantido sob a actual direcção do Museu, assumida por João Castel-Branco Pereira, em 1999. Mas, se durante o período de encerramento não se procedeu a uma reprogramação da exposição permanente do Museu, foram, ainda assim, introduzidas alterações museográficas significativas. VID.: Lapa, 2009 (policopiado), 33-40. O estudo da exposição permanente do Museu Calouste Gulbenkian constitui o eixo principal da investigação de Doutoramento em História da Arte – especialização Museologia e Património Artístico que presentemente desenvolvemos, com a orientação científica da Professora Doutora Raquel Henriques da Silva. O Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian (AFCG) conserva documentação cujo o estudo, prevemos, permitirá reforçar a excepcionalidade do trabalho de programação museológica desta instituição cinquentenária. 7 VID.: SPO – Luís de Guimarães Lobato, Memorando sobre a localização instalações da Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian. 13 de Janeiro de 1957. Documento assinado por L. G. Lobato. Datado. 8 págs. AFCG.


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8 Este relatório foi anexado ao Memorando sobre a

actividade do grupo de programação das instalações do museu e sede da Fundação Calouste Gulbenkian, 15 de Janeiro de 1957. Deste relatório apenas conhemos as passagens citadas por JAP no Relatório do Presidente. VID.: Perdigão, 1961, 122-126. 9

JAP apresentou o primeiro relatório de MJM formulando a seguinte questão: “Como transformar uma colecção particular, valiosíssima mas muito heterogénia, num museu?”, IN.: Perdigão, 1961, 123.

10 “Calouste Gulbenkian adquiriu os imóveis que depois transformou no palacete da Avenida de Iéna, 51, entre 1923 e 1924, palacete que, até se fixar em Portugal, foi a sua principal residência. Antes habitava, ora em Paris, no Quai d’Orsay, ora em Londres, em Hyde Park Gardens. Só a partir de 1927 Calouste Gulbenkian pôde começar a reunir na bela moradia da avenida de Iéna as suas colecções”. IN: Perdigão, 1969, 179. 11 VID.: FCG [Maria José de Mendonça], Instalações da Sede e Museu. Esboço de programa, Julho de 1957, 33 págs. [datado de Julho de 1957, não assinado]. AFCG. 12

“Inicialmente criados apenas para a construção da Sede e do Museu, os Serviços foram desdobrados em Setembro de 1957 em Serviço de Projectos e Obras e Serviço de Belas Artes e Museu.” IN.: SPO, Luís de Guimarães Lobato, Relatórios de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958, 2 de Junho de 1958, 1. AFCG.

13 Em 1958 foi adquirido pela FCG o antigo Palácio

do Marquês de Pombal, em Oeiras. Depois de concluídas as obras de conservação do edifício setecentista, foram para ali transferidas todas as peças da Colecção de Gulbenkian, vindas de Paris, de Londres e de Washington. A transferência da Colecção ficou concluída em Junho de 1960. VID.: Perdigão, 1975: 9. 14

Segundo consta num documento da autoria de Maria Teresa Gomes Ferreira, citado por Ana Tostões, Maria José de Mendonça apresentou o seu pedido de demissão em Novembro de 1960. VID.: Tostões, 2006 b: 260, nota 23. O Catálogo da exposição Tableaux de la Collection Gulbenkian, organizada pela FCG, em Outubro de 1960, na antiga residência parisiense do Coleccionador, foi já da responsabilidade do “Serviço de Museu”, sob a coordenação de MTGF. VID.: FCG, 1960, [I].

directamente quer à área da programação do Museu quer à da programação de exposições temporárias. É da sua autoria o documento que lançou as primeiras linhas de programação do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (relatório datado de Dezembro 1956)8. Nessa primeira “concepção geral do museu”, surge a perspectiva de que o edifício do museu que viesse a ser construído pudesse ser um edifício que “evocasse o espírito do Coleccionador”. Porém, nesse documento, em que Maria José de Mendonça apresenta as linhas gerais para “transformar uma colecção particular, valiosíssima mas muito heterogénea, num museu”9, defende também explicitamente que a organização da exposição permanente não deveria vir a funcionar como um espelho do que fora a organização/arrumação dada por Calouste Gulbenkian à sua colecção no palacete parisiense em que viveu.10 Para essa exposição, MJM previa uma selecção das “melhores obras de arte” da colecção, organizadas segundo um critério geográfico e cronológico. A partir de Novembro de 1956, passou a contar com colaboração directa da jovem conservadora Maria Teresa Gomes Ferreira e do fotógrafo Mário de Oliveira. Foi sob a directa coordenação de Mendonça que se procedeu ao inventário da colecção de arte e foi ela a principal responsável pelo “esboço do Programa do Museu” (Junho 1957). Neste documento, elaborado seis meses depois do relatório inaugural atrás referido, MJM propôs que o museu fosse organizado em três grandes “sectores”: Antiguidades pré-clássica e clássica; Arte do Próximo, do Médio e do Extremo Oriente; e Arte Ocidental. Cada um destes sectores estava dividido em “núcleos” tipológicos.11 Com a crescente especialização do trabalho ligado à programação do Museu e das exposições temporárias, foi decidida, em Setembro de 1957, a criação do “Serviço de Belas-Artes e do Museu”.12 Autora do programa da exposição “A Rainha D. Leonor” [VID. artigo de Leonor de Oliveira neste número da RHA], tendo tido uma participação, pontual, na revista Colóquio. Revista de Artes e Letras (Março de 1959), Maria José de Mendonça foi também quem supervisionou grande parte do processo de transferência da colecção Gulbenkian para Portugal13 e foi co-autora da versão final do “Programa do Museu”, apresentado pelo Conselho de Administração às equipas de arquitectos convidadas para desenvolverem propostas de edifícios para a sede e o museu da FCG. Em 1960, ainda participou nas primeiras discussões com Georges-Henri Rivière, relativas à fase de programação museológica relacionada com a elaboração do projecto do edifício, orientadas já para a revisão e aprofundamento da proposta que saiu vencedora do concurso. Esta intensa colaboração, de quase cinco anos, terminou em Dezembro de 1960, depois de Mendonça ter visto aceite o seu pedido de demissão da FCG. 14 Com a saída de MJM, o “Serviço de Belas Artes e Museu” foi dividido em dois serviços autónomos: o “Serviço de Belas Artes” e o “Serviço de Museu”. Maria Teresa Gomes Ferreira, entretanto promovida a conservadora-chefe, passou a assegurar a coordenação do “Serviço de Museu”. À semelhança do “Serviço de Belas-Artes e do Museu”, o “Serviço de Museu” teve duas funções fundamentais: a programação definitiva do futuro Museu e a organização de exposições temporárias. Enquanto se programava e edificava, na Palhavã, o Museu, importantes núcleos da colecção reunida e legada por

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Gulbenkian foram expostos em Lisboa (MNAA, 1961-62; 1963), no Porto (Museu Soares dos Reis, 1964) e em Oeiras (no antigo Palácio Pombal, 1965-1969).15 Desde Outubro de 1969, com a abertura do MCG ao público, cerca de um sexto da colecção do Museu tem estado exposto em permanência, diversos núcleos têm sido expostos temporariamente, e a restante parte mantém-se guardada nas reservas.16

Os consultores permanentes Georges-Henri Rivière na génese do Museu Calouste Gulbenkian Em 1956, no âmbito do processo de estudo da localização em Lisboa do lugar de construção da sede e do museu da FCG, os arquitectos Carlos Ramos (1897-1969) e Keil do Amaral (1910-1975) começaram a assegurar uma consultoria permanente à FCG. Em finais de 1958, no âmbito do processo de consolidação e conclusão da programação necessária ao concurso para os edifícios da sede e do museu da FCG, iniciaram um trabalho de consultoria permanente junto da fundação o museólogo e director do Internacional Comitée of Museums/Conseil International des Musées (ICOM), Georges-Henri Rivière17, e os arquitectos Leslie Martin, Franco Albini e William Allen. Pelo menos ao longo de um período de seis anos, entre 1958 e 1963, Georges-Henri Rivière desenvolveu uma colaboração directa com a FCG. Como terá surgido

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15 Sobre as cinco exposições temporárias da colec-

ção do MCG realizadas antes da abertura da exposição permanente deste museu, VID.: Lapa, 2009 (policopiado), vol. 2, anexo 4. 16 Na nossa dissertação de Mestrado procuramos identificar as grandes variações do acervo da exposição permanente do MCG, entre a data de abertura ao público, em 1969, e 2007 (limite cronológico dessa nossa investigação académica). VID.: Lapa, 2009 (policopiado), vol. 1, 9-14. 17 G.-H. Rivière participou directamente na criação do ICOM, organismo criado em 1947, sob a égide da UNESCO, substituindo o Office internacional des musées (orgão da Société des Nations) que fora criado em 1926, sob proposta de Henri Focillon. Rivière assegurou a direcção do ICOM entre 1948 e 1966, mantendo-se “conselheiro permanente” até à sua morte, em 1985.

FIG. 1 - Maqueta apresentada em 1960 pela equipa vencedora do concurso de concepção arquitectónica geral dos edifícios da sede e do museu da Fundação Calouste Gulbenkian. ©José Manuel Costa Alves.


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IN.: Luís de Guimarães Lobato, Relatório de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958, 2 de Junho de 1958. Citado IN.: Tostões, a.(2006): CD-ROM, Catálogo, capitulo 2 - O processo. 1956-1958, 14. Segundo Ana Tostões, na sua passagem por Paris, estes dois arquitectos “contactam com Georges-Henri Rivière”, tendo mesmo “certamente [sido] acompanhados por Georges-Henri Rivière.” VID.: Tostões, 2006 a: CD-ROM: Catálogo, capitulo 2 - O processo. 1956-1958, 14.

19

IN.: SPO – Luís de Guimarães Lobato, Apontamento – Programa das instalações da sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, 24 de Janeiro de 1959, pág. 5. AFCG A referência à intervenção do museólogo consultor da FCG surge nos pontos 11.,12. e 14. deste documento. 20

Rivière devia estar a referir-se aos projectos de Franco Albini nos três museus de Génova: no Museo del Tesoro di san Lorenzo (1952-56), no Palazzo Bianco (em curso desde 1950, e finalizada em 1962); e no Palazzo Rosso (em curso desde 1952, e finalizada em 1962). VID.: www.fondazionefrancoalbini.com

21 IN.: SPO – Luís de Guimarães Lobato, Apontamento – Programa das instalações da sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, 24 de Janeiro de 1959, 5. AFCG. 22

Para um “resumo do percurso da viagem, com indicação de locais e edifícios visitados, a partir da correspondência enviada à família e guardada no espólio Cottineli Telmo”. VID.: Martins, 1995 (policopiado), Vol. II: 327- 335.

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Este museu situar-se-ia junto ao Parlamento. VID.: Martins, 1995 (policopiado), Vol. 1, 234, nota 32. Muito recentemente, Nuno Grande, na sua tese de Doutoramento, recupera esta informação, defendendo ser “surpreendente” a planta que Cottinelli Telmo previa para o Museu de Arte Contemporânea a construir no terreno lateral ao Palácio de S. Bento, onde hoje existe um pequeno jardim: “não só porque o edifício indiciado pelo documento [divulgado e descrito por Martins, 1995, vol. 1, 234] se aproxima tipologicamente da descrição que desenvolvemos sobre o chamado “modelo MOMA” - generalizado na concepção dos museus de arte nos EUA e na Europa do II Pós-Guerra – mas sobretudo porque se afasta claramente do projecto de MAC que Cristino da Silva acabaria por desenvolver para a Praça do Império, em 1943.” IN.: Grande, 2009 (policopiado), 91-92.

este convite a Rivière? Em 1958, os arquitectos Sommer Ribeiro e Jorge Sotto Mayor “tiveram oportunidade de visitar em Paris o novo edifício da UNESCO e de examinar os novos projectos dos museus do Havre e de Paris (Artes e Tradições Populares)”.18 Atendendo à data do “Relatório de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958”, no qual esta viagem surge referida (o relatório data de 2 de Junho de 1958), pode colocar-se a hipótese de ter sido na sequência desse primeiro contacto directo entre os dois arquitectos do SPO e o museólogo francês, que este último veio a ser convidado para colaborar com a FCG como consultor. Certo é que “em Setembro de 1958 [Rivière] esteve em Lisboa, a convite da Fundação, [...] para o efeito de com ele se discutirem as bases do programa do museu, e logo nessa primeira visita se verificou quanto a sua colaboração podia ser útil”. (Perdigão, 1961: 126). A 24 de Janeiro de 1959, estava concluído o “Programa das instalações da sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian” que serviria de base para a elaboração das “propostas de estudo e concepção geral dos edifícios da sede e do museu da FCG”, no âmbito do concurso que veio a envolver as três equipas de arquitectos, convidadas pela FCG (Tostões, 2006 b., 83). Guimarães Lobato descreveu a participação de Rivière no trabalho que conduziu à conclusão do “Programa”, afirmando que este “apreciou e discutiu pormenorizadamente as bases da programação do Museu, confirmando a justeza dos critérios seguidos, [...] tendo apenas aconselhado, dentro do seu ponto de vista, alguns acertos museográficos de pormenor”.19

Visitas a museus estrangeiros Rivière, que tinha uma longa prática de trabalho museal e que, por via do ICOM, contactava com numerosos profissionais, aconselhou os programadores dos edifícios da sede e do museu da FCG a visitarem museus internacionais, nomeadamente “museus italianos” cuja museografia fora recentemente renovada20, e “museus ingleses, para aspectos técnicos específicos”.21 Esta salutar prática de preparar-se para a invenção de um projecto conhecendo edifícios com funções afins, projectados por outros arquitectos, não era novidade entre os arquitectos portugueses. Keil do Amaral, em 1945, visitara os EUA para estudar vários edifícios que pudessem prepará-lo para o projecto do Palácio da Cidade, destinado ao Parque Eduardo VII, em Lisboa. (Tostões, 2006 b, 41). Mesmo na geração anterior, precisamente a de Carlos Ramos (consultor permanente da FCG, como sabemos), também o arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948), reconhecera a importância de “ver a valer aquilo de que vimos reproduções”, referindo-se, nomeadamente, a uma série de museus holandeses que visitou em 193522, precisamente num momento em que preparava o programa para o Museu de Arte Contemporânea, a construir em Lisboa.23 Conhecemos cinco relatórios de Rivière, pertencentes ao arquivo da FCG, que documentam directamente a sua ligação à programação do Museu da FCG. Sendo docu-

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FIG. 2 - Na primeira versão da maqueta do edifício do Museu (maqueta de estudo, 1960) propunha-se que a exposição permanente ocupasse dois pisos do edifício. O piso superior, exclusivamente dedicado à arte europeia, teria uma iluminação natural, zenital e lateral, associada à iluminação artificial. Na fachada virada ao grande lago propunha-se uma janela contínua (na versão definitiva, optou-se por cinco altas janelas, que com duas outras entradas de luz natural, iluminam o núcleo 4 - Arte do Oriente Islâmico). ©José Manuel Costa Alves.

mentos de consultoria, os relatórios de Rivière têm como principal objectivo informar uma prática, obedecendo a uma estrutura que torna claro esse propósito. Cada assunto a tratar surge inserido numa grelha temática previamente apresentada. E cada tema é abordado através de um texto objectivo, descritivo, sintético. Os cinco relatórios estudados24 foram elaborados entre Março de 1960 e Março de 196325, correspondendo ao período do processo de programação, que se iniciou com a avaliação das propostas apresentadas no concurso de arquitectura promovido pela FCG, e que terminou antes do início da construção do edifício do Museu.

A «flexibilidade da proposta dos arquitectos Athouguia-Cid-Pessoa (Março 1960) No primeiro relatório, tendo já como base de trabalho a proposta arquitectónica que veio a ser vencedora do concurso, Rivière avança com um conjunto de aspectos que gostaria de ver introduzidos na proposta arquitectónica dos arquitectos Rui Athouguia (1917-2006), José Pessoa (1919-1985) e Pedro Cid (1925-1983). Rivière atribui o enorme agrado que sentiu ao desenvolver este seu trabalho, sobretudo, ao facto de ter podido contar com uma equipa de trabalho na FCG, destacando em mais de uma ocasião o profissionalismo de Maria José de Mendonça: “Son esprit logique, son érudition étendue, sa sensibilité, sa gentillesse ont favorisé mes efforts”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 2). E explicita que as “sugestões” sobre a exposição permanente, apresentadas na segunda parte deste relatório, resultaram das reflexões conjuntas que pôde desenvolver, durante a sua estada em Lisboa: “Les échanges de vues auxquels j’ai pu procéder durant mon séjour, les réflexions qui l’ont suivi me permettent de présenter à ce sujet, quant au musée, les suggestions qu’on va lire. Je le fais dans la plus grande modestie, le meilleur de ce que j’avance revenant à Mlle de Mendonça et à son remarquable effort préparatoire” (Rivière, 11-15 Março 1960, 13 e 15).

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apenas acesso parcial aos documentos que aqui estudo, a vários faltava texto, e a todos faltavam os anexos gráficos. 25 Os relatórios de consultoria elaborados por Georges-Henri Rivière estão datados: (1.º relatório) 11-15 de Março de 1960; (2.º relatório) 13 de Abril de 1962; (3.º relatório) 11 de Setembro de 1962, com revisão em Outubro desse ano; (4.º relatório) 23 Novembro de 1962; e (5.º relatório) 24 de Março de 1963. Estes documentos são indicados no corpo deste artigo como: Rivière, 13 Abril 1962; Rivière, 11 Setembro 1962; Rivière, 23 Novembro 1962; e Rivière, 24 Março 1963, respectivamente. VID. referências completas dos cinco relatórios de Rivière na Bibliografia, neste artigo.


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FIG. 3 – Primeira versão da maqueta do edifício do Museu, 1960. Nesta maqueta de estudo propunha-se já uma grande janela na fachada virada a oeste (abertura esta que, na versão definitiva, permite uma fonte de iluminação natural do núcleo 10 – “Artes Decorativas. França. Século XVIII”). Uma segunda abertura veio a ser criada nesta fachada (a do núcleo 15 – “Pintura e Escultura. França. Século XIX”). © José Manuel Costa Alves.

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“Les “unités écologiques” ce sont des ensembles présentent tous les objets d’un lieu particulier, tels qu’ils étaient dans leur contexte naturel (le bateau de Berck, l’atelier d’un tourneur sur bois, une forge du Queyras, un intérieur de Brasse Bretagne...). Leur reconstitution dans le musée a nécessité un rigoureux travail scientifique de repérage, démontage-remontage des oeuvres, contrairement aux évocations nostalgiques et folkloriques présentées dans d’autres instituitions muséales à l’époque.”. IN.: www.musee-atp.fr Conceito caro a Rivière, uma das marcas da sua museologia, as “unidades ecológicas” foram postas em prática quer no musée des arts et traditions populaires (atp) quer em vários outros museus franceses (os designados, precisamente, “eco-museus”) em cuja programação expositiva o director dos atp participou directamente.

As propostas relativas aos aspectos museográficos apresentadas neste primeiro relatório de Rivière resultaram também das conversas tidas com o arquitecto Franco Albini que, como Rivière, esteve em Lisboa nesses cinco dias de Março de 1960: “Mon excellent ami, M. Franco Albini était celui des deux architectes conseillers avec lequel je me suis trouvé en contact pendant mon séjour. En présence des questions concrètes que nous posait la mise en valeur des objets de musée, il m’a manifesté, une fois de plus, sa technicité rechaussée d’inspiration créatrice”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 1). Vamos deter-nos no ponto V. da segunda parte deste relatório. Este ponto, que trata das “galerias da exposição permanente”, é introduzido com a indicação de que fora feita uma reformulação do “Programa” de Janeiro de 1959: “Nous avons été amenés, Mlle de Mendonça et moi, à envisager un certain remaniement de cette partie du programme”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 15). Tornaremos a esta questão. Rivière organiza a reflexão sobre as galerias de exposição permanente em seis temas ou assuntos: 1. Princípios; 2. Selecção; 3. Plano actualmente sugerido; 4. Áreas; 5. Rigidez - flexibilidade; 6. Pôr em prática o programa de apresentação.

Princípios da exposição permanente Destacaremos, muito brevemente, o que defendeu Rivière em relação a cada um destes assuntos. Quanto aos “Princípios” da exposição permanente, Rivière defendia que se devia (a.) “acentuar o carácter didáctico da exposição”, mas sem para isso ser necessário “desenvolver indiscretamente o aparelho documental”. Este princípio estaria, desde logo, assegurado pelos critérios geográfico e cronológico seguidos na disposição dos objectos da colecção nas galerias. Esta apresentação cronológica permitiria (b.) “evocar sobretudo o clima original da colecção”, na medida em que aproximaria a pintura, a escultura e o desenho das chamadas artes aplicadas, aproximando-se do que Rivière designava de “unidades ecológicas”26 e, atenuando, assim,

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“o ambiente clássico dos museus de arte”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 16). Esta decisão introduziu, de facto, um factor de reprogramação que, pensamos, está na génese do único núcleo da exposição que constitui uma variante ao programa esboçado por Maria José de Mendonça, o “Núcleo 10 - Artes decorativas. França. Séc. XVIII”. Os dois outros princípios evocados por Rivière prendem-se directamente com a conservação. Assim, dever-se-ia (c) ter em conta, para os agrupamentos previstos, a maior ou menor reacção dos objectos à luz natural ou artificial, ficando prevista a rotatividade de alguns núcleos e, (d.) admitido o imperativo da conservação física, deveria ser dada preferência à luz natural, reforçada em caso de necessidade por luz artificial. A questão da iluminação das galerias de exposição veio a ser profundamente debatida. Neste relatório, Rivière defende: “Rien ne vaut la lumière du jour pour la peinture. Dans les limites du raisonnable, une communication avec le paysage extérieur est souhaitable”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 16). Quanto à (2.) “Selecção” do acervo da exposição permanente, tarefa da responsabilidade do conservador, devendo este aconselhar-se com os especialistas das várias áreas de colecção, Rivière elogia o trabalho adoptado por Mendonça: “Le Conservateur envisage de mettre au point ses choix à l’aide de conseils des meilleurs experts. Je ne puis que souligner l’intérêt de cette méthode”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 16). Rivière faz o ponto da situação relativamente à selecção do acervo, aconselhando o pedido de consultoria especializada para várias outras áreas da colecção. O (3.) “plano” de exposição então sugerido reforçava “as três subdivisões fundamentais do Programa: Antiguidades, Oriente, Ocidente.” Podendo, assim também fixar-se “as principais zonas de repouso” (Rivière, 11-15 Março 1960, 20). Da leitura deste ponto V.3 podemos concluir que: – Em Março de 1960, Georges-Henri Rivière e Maria José de Mendonça previam que a exposição permanente do MCG se organizasse em três partes: Antiguidade Pré-clássica e Clássica; Oriente; e Europa, sendo fixado um total de dezanove agrupamentos de objectos: três grupos nas “Antiguidades”, dois no “Oriente” e catorze no “Ocidente”. Como sabemos, na programação definitiva, a exposição permanente viria a organizar-se não em três, mas em dois amplos circuitos, em que o primeiro integra as “Antiguidades” (Pré-Clássica e Clássica) e o “Oriente” (Turquia e Arménia, Próximo Oriente, Médio Oriente e Extremo Oriente), e o segundo toda a arte da “Europa”; Na montagem definitiva, a exposição contaria com dezassete núcleos (seis no primeiro circuito e os restantes onze no segundo circuito). Tendo em conta o que viria a ser a programação definitiva, considerem-se os seguintes aspectos: – A clareza que aqui é defendida através de uma divisão em três grandes períodos cronológicos vai perder-se na programação definitiva; – Os três agrupamentos de objectos da “primeira parte” eram menos diversificados (sobretudo o da colecção de arte grega que então apenas integrava a numismática); – No “Oriente”, no agrupamento que respeita ao “Islão”, havia uma clara orientação geográfica, que veio a perder-se na programação definitiva;

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FIG. 4 - Desenho do projecto do edifício do museu da Fundação Calouste Gulbenkian. VID. legenda da FIG. 2. © José Manuel Costa Alves.

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Estas duas esculturas de Houdon constituíram, em Junho de 1960, tema de um artigo de Louis Réau, publicado na revista da FCG. VID.: Reau, Junho de 1960.

– Não estava previsto um agrupamento de arte arménia (futuro núcleo “5 – Arte Arménia”, montado no interior da grande galeria da Arte do Oriente Islâmico, o núcleo 4); – Relativamente ao agrupamento de objectos da “China e do Japão” previa-se que estivessem também expostos objectos de um período recente. E, de facto, entre 1969 e 1999, esteve exposto, em permanência, um numeroso conjunto de estampas japonesas do século XIX; – No que respeita à “terceira parte” da exposição permanente, os catorze agrupamentos previstos sofrerão uma forte reprogramação. Refiram-se, entre outros aspectos, que o desejado «sistema cronológico marcante» na ordenação das peças vai atenuar-se; que o gabinete de ourivesaria não estava ainda previsto (corresponderá ao essencial do núcleo 12 - «Ourivesaria. França. Século XVIII»); e que aqueles que vieram a ser os dois únicos núcleos monográficos da exposição permanente em Março de 1960, mão estavam ainda configurados, o de Francesco Guari (núcleo 14) e o de René Lalique (núcleo 17). – Este relatório também testemunha a minúcia a que se obrigaram os dois museólogos ao escolherem, em vários casos, as peças exactas dos grupos de objectos. Para algumas delas, é mesmo apontado o modo como serão dispostas no espaço (refiram-se os casos do Apolo e da Diana de Houdon27 ou o das lâmpadas de mesquita Sírias). – Outro aspecto a reter é o que respeita às zonas de descanso. São previstas duas, situadas entre o primeiro e o segundo agrupamentos, e entre o segundo e o terceiro. Quanto ao modo como se previa que viessem a ser museografadas, são pensadas como constituindo também elas “ambientes”, ainda que “secundários”, sugestão esta que veio a ser posta de parte na programação final do museu. Quanto às (4.) “Áreas”, referindo o carácter mais fragmentário das artes plásticas e aplicadas, relativamente à “programação de origem”, Rivière alerta para a necessária rotatividade das peças mais frágeis deste acervo, a menos que se procedesse a um aumento das superfícies previstas (Rivière, 11-15 Março 1960, 20).

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Iluminação das galerias de exposição permanente Quanto à (5.) “Rigidez – flexibilidade”, Rivière refere-se à distribuição da iluminação zenital nas três partes do museu: na Antiguidade e no Oriente ela seria dispensável, no Ocidente seria “indispensável”. Lembremo-nos, que nesta fase inicial, o projecto que serve de base a todas estas considerações previa que as galerias de exposição permanente do MCG se desenvolvessem em dois pisos, o inferior reservado à Antiguidade Clássica e ao Oriente, e o superior ao Ocidente. Como sabemos, não chegaria a existir qualquer zona com iluminação zenital no MCG. Finalmente, havia que (6.) “Pôr em pratica/passar a obra o programa de exposição”. Rivière considera que “la mise en œuvre du programme de présentation” da exposição permanente exigia um arquitecto especializado, aconselhando a Fundação a encontrar um que saiba responder à especificidade deste “museu-piloto”. (Rivière, 11-15 Março 1960, 21) Relativamente à “Galeria de exposições temporárias” do museu (Ponto VI.), Rivière aconselha a utilização de luz zenital. Em relação aos “Serviços administrativos e técnicos” (Ponto VII.) apenas recomendava que se evitasse a construção de “murs porteurs”, para facilitar a sua futura programação. GHR felicita a introdução de um “Serviço de Educação” (Ponto VIII.), “entre temps dans le programme”, e recomenda que a sua localização seja próxima das galerias do museu. A este último propósito, acrescenta que “une telle situation correspondait, s’agissant des méthodes d’accueil des groupes cul-

FIG. 5 – Estudo da programação da exposição permanente (cerca de 1961?). Nesta planta do museu, além da indicação sumária de mobiliário expositivo dos vários núcleos de arte não europeia, estão desenhados tapetes orientais. O modo como estão diferenciadas as dimensões, cores e padrões dos tapetes, parece apontar para um estudo específico da montagem desse núcleo da colecção. ©José Manuel Costa Alves.

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Verificava-se quer a sua existência quer o seu estado de conservação material. O objectivo era proceder à conservação e ao restauro, se necessário, de todas as peças da colecção antes da abertura do museu.VID.: Perdigão, s/data [1966], 90. 29

IN.: Perdigão, 1961, 126.

30

IN.: Perdigão, 1961, 126.

31

VID.: Tostões, 2006 b., 52.

32

Desconhecemos o teor desta alteração mas, segundo escreve Luís de Guimarães Lobato ao arquitecto Franco Albini, ela foi tida em consideração: “[...] The design of the Museum is now being changed in accordance with G. Rivière’s recommendations made last summer.”. IN.: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência do Engenheiro Guimarães Lobato ao Consultor Franco Albini, 23 Outubro 1961, 1.

turels, aux recommandations du stage consacré par l’UNESCO aux musées et à l’éducation, tenu à Rio en 1958” (Rivière, 11-15 Março 1960, 22). O espaço do “Serviço educativo” viria a ser ignorado no projecto definitivo do edifício do Museu. Quanto às “Reservas de colecções” (Ponto IX.), Rivière previa um aumento das respectivas áreas. Numa breve “conclusão geral”, depois de defender uma “personalização” da biblioteca que deveria situar-se nas proximidades dos serviços do museu, Rivière alertava para a importância de uma clarificação da estruturação dos diversos órgãos do museu – a exposição permanente e temporária, o serviço educativo, os serviços administrativos e técnicos, e as reservas – devendo evitar-se a sua dispersão (Rivière, 11-15 Março 1960, 13-14). Em Setembro de 1960, seis meses após este relatório, Maria José de Mendonça apresentou a sua demissão da FCG. Maria Teresa Gomes Ferreira passou então a liderar, como como conservadora-chefe, a equipa de quatro conservadoras do Serviço de Museu. Entretanto, a partir do momento em que toda a colecção passou a estar em Oeiras, a preocupação da conservação física da colecção levou a que um “trabalho de rotina” do Serviço de Museu consistisse na verificação de todas as suas espécies o que, simultaneamente, foi permitindo às conservadoras conhecerem melhor a colecção.28

Aspecto de reprogramação introduzido por J.A.Perdigão Em 1961, JAP apresentou uma síntese sobre o contributo dado no ano anterior por GHR à programação do Museu: “[...] [Georges-Henri Rivière] voltou a Lisboa, em Março de 1960, agora para dar parecer já sobre o anteprojecto que, entretanto, havia sido preparado. Com esta nova visita do Director do I.C.O.M. ficou esclarecida toda a sistemática da programação do museu e bem assim revisto todo o conceito museográfico da apresentação das obras de arte. Determinou-se também a natureza da luz a empregar na iluminação dos diversos agrupamentos das obras que constituem a colecção. Nestes trabalhos tomaram parte, não só Georges Rivière e os técnicos dos nossos Serviços de Belas-Artes e Museu e de Projectos e Obras, mas também os nossos consultores nacionais e estrangeiros, para os principais problemas relativos à elaboração do projecto do conjunto das instalações definitivas da Fundação, os professores Sir Leslie Martin, de Cambridge, Franco Albini, de Milão, Carlos Ramos, do Porto, e o arquitecto Keil do Amaral”.29 Neste relatório, Perdigão explicitou a alteração introduzida na “secção de arte europeia”, defendendo “a conveniência de introduzir nas suas linhas gerais, alterações destinadas a dar-lhes mais equilíbrio, designadamente na distribuição dos objectos que formam a secção de arte europeia, tornando menos rígida a separação entre artes plásticas e ornamentais”.30 A 31 de Julho de 1961 foi entregue na Câmara Municipal de Lisboa o “Projecto de Licenciamento dos edifícios da sede e do museu da FCG”.31 Nesse Verão de 1961, GHR esteve em Lisboa e fez sugestões de alteração do projecto do museu.32

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FIG. 6 – Maqueta de apoio à elaboração do programa da exposição permanente do Museu C. Gulbenkian, cerca de 1958, ainda sob a orientação de Maria José de Mendonça. © Mário de Oliveira.

A 7 de Novembro de 1961, a conservadora-chefe do MCG, Maria Teresa Gomes Ferreira elabora um relatório em que surgem as seguintes indicações: “Depois de montada a maquette do arranjo das obras de arte no futuro Museu Gulbenkian, de acordo com o último relatório enviado pelo Senhor Georges-Henri Rivière e de acordo com os elementos que haviam ficado no Serviço depois da saída da antiga Directora, verificou-se a necessidade de: 1.º - Proceder a certos reajustamentos das áreas inicialmente definidas para abrigar as Colecções de arte; 2.º - Estruturar, de forma tanto quanto possível definitiva, os agrupamentos de arte de modo a permitir a definição dos espaços para cada secção do futuro museu”.33 A 26 de Fevereiro de 1962, Luís de Guimarães Lobato escreve ao consultor arquitecto William Allen contando-lhe: “It seems that the definitive design for the Museum has been achieved with enough flexibility of composition and concepts and that will allow now to proceed with the definitive approaches for the right solution of the three main designing problems: lighting, structures and air conditioning. At the same time, our curator, Mme. Gomes Ferreira, proceeded with the final studies of the different sections of the collection, in order to settle the museographic program, as recommended by Rivière. This work was based upon visits of experts which are still going on.”. 34 Numa outra carta, datada de 17 de Março de 1962, Guimarães Lobato escreve a Leslie Martin: “The Museum has been completely redesigned and some real exhibition tests are going at the Palace of Oeiras. This will provide a good subject to discuss with you and Rivière on the policy to be followed for the Museums arrangements. [...] We have now to settle defiantly the question for natural lighting for the Museum”.35 A questão da iluminação das galerias de exposição permanente, absolutamente fundamental para a finalização do projecto do edifício, foi longamente debatida quer pelos consultores permanentes e equipa do Museu, quer através do contributo pontual de consultores especialistas.

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Maria Teresa Gomes Ferreira, Apontamentos de museografia, 7 de Dezembro de 1961. IN.: Tostões, 2006 a., CD-ROM: Catálogo, Capitulo 5 - Do projecto à obra. 1961-1969. 1961, pág. 12, e nota 23, pág. 16. Note-se que, embora Maria Teresa Gomes Ferreira se refira a Maria José de Mendonça como «Directora», em rigor, a então conservadora-chefe do Museu Nacional de Arte Antiga nunca assumiu a direcção do Museu da Fundação Gulbenkian.

34

IN.: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor William Allan, 26 Fevereiro 1962, 1. 35 Correspondência entre o engenheiro Lobato e o Consultor Leslie Martin, 17 de Março de 1962. IN.: Tostões, 2006 a., CD-ROM: Catálogo, Capitulo 5 - Do projecto à obra. 1961-1969. 1962, pág. 5 e nota 14.


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Documento referido por Guimarães Lobato IN.: SPO [Luís de Guimarães Lobato], Programação do Museu: lista cronológica do trabalho realizado entre 1959 e 11 de Setembro de 1962, 31 Outubro 1962, pág. 1. AFCG. 37

Neste relatório de Abril de 1962, escreve a propósito deste espaço: “Auditorium: il ne double pas ceux du batiment central, il répond à des programmes d’activités culturelles du Musée et de la Bibliothèque, susceptibles de s’étendre en dehors des heures d’ouverture du bâtiment central. La situation en est très favorable au voisinage du vestibule. Equipe pour la projection des films de 16 mill. et au-dessus, ce qui dispense d’une cabine – 100 places. Niveau 2 – Surface: 12 x 8 = 96”. IN.: Rivière, 13 Abril 1962, 7.

Entre o primeiro e o segundo relatórios de GHR, o Serviço de Belas Artes e Museu procedeu a uma “revisão do programa da sede e Museu” de que resultou o documento “Programa estabelecido de acordo com a revisão de G. H. Rivière e MJM em 1960”.36 Uma reavaliação dos índices de luz a que os objectos das diferentes tipologias da colecção podiam estar sujeitos e a consultoria recebida da parte de especialistas nas várias secções da colecção do MCG estiveram na base das várias revisões que o programa do Museu sofreu entre Novembro de 1960 e 13 de Abril de 1962, data do segundo relatório de GHR. Em Abril de 1962, o projecto arquitectónico do museu apresentava já uma solução de organização segundo a qual as galerias de exposição permanente ficavam localizadas num único piso, o superior. Este segundo relatório foi estruturado em três partes. Depois de tratar do “aspecto geral” do museu (I Parte), Rivière refere-se a todos os “serviços do museu” (II Parte) e finalmente às “galerias publicas” (III Parte). Elaborado num período em que o projecto arquitectónico ganhava “ossatura”, este relatório documenta a fase em que se aprofundava o estudo da articulação dos vários serviços do museu: “Le projet s’est maintenu dans ses très grandes lignes. Mais l’ossature en a été mise au point ces dernières semaines, et de même l’articulation avec les systèmes de la Bibliothèque et des expositions temporaires de la Fondation”. (Rivière, 13 Abril 1962, 5).

Programação dos espaços «semi-públicos» do Museu: a «Sala de exposições temporárias, a «Galeria de estudo» e a «Sala de consulta» (Abril de 1962) Rivière apresenta os Serviços do Museu divididos em três grandes grupos: (1.) Órgãos comuns ao Museu e à Biblioteca (vestíbulo, hall, auditório37 e snack-bar); (2.) Órgãos semi-públicos do Museu (sala de exposições temporárias; galerias de estudo e sala de consulta); (3.) Serviços do Museu (conservação; serviço fotográfico; laboratórios e oficinas de manutenção; instalações sanitárias e vestiários) (Rivière, 13 Abril 1962, 5). Detenhamo-nos agora no ponto III. da segunda parte deste relatório. Relativamente ao que designa por “órgãos semi-públicos do Museu”, Rivière prevê a existência de uma “sala de exposições temporárias”, de uma “galeria de estudo” (a que se teria acesso através da sala de exposições temporárias) e de uma “sala de consulta”. Atentemos no programa defendido para estes três espaços: “Salle d’expositions temporaires: cette salle ne double pas la grande salle d’expositions temporaires de la Fondation. Bien plus réduite de surface, elle est destinée à deux sortes de programmes, en relation directe avec la vocation du Musée: (a.) Présentation par roulement d’éléments de la Collection Gulbenkian, systématiquement extraits des séries suivantes: manuscrits, impressions rares, dessins, estampes et monnaies, non expo-

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sées dans les galeries publiques; (b.) Occasionnellement: autres éléments des collections ou éléments externes en relation avec les programmes du Musée.” (Rivière, 13 Abril de 1962, 7). Na programação definitiva, como sabemos, veio a existir uma galeria de exposições temporárias do Museu, de acesso público. A proposta de exposições rotativas da colecção na galeria de exposições temporárias apresentada por Rivière na alínea a) poderá ser relacionada com o ulterior ciclo de programação de exposições rotativas intitulado “Uma obra de arte em foco”38. Lembramos que a escolha das peças apresentadas nestas exposições rotativas não se confinou aos núcleos referidos por Rivière na alínea em questão, e que o espaço de apresentação dessas exposições rotativas variou ao longo dos últimos vinte anos de actividade do MCG, repartindo-se entre a galeria de exposições temporárias do Museu e a galeria de exposição permanente, na zona de passagem entre os dois circuitos em que esta está organizada. E aquilo que Rivière defende na alínea b) como devendo ter um carácter ocasional, veio, afinal, a constituir a grande linha de programação da galeria de exposições temporárias do Museu. Já a programação de exposições temporárias do MCG não se confinou ao espaço então previsto para esse fim, contando também com a galeria de exposições temporárias do edifício sede (Piso 0). Segue-se a introdução de uma das marcas autorais da museologia criada por GHR, que centra a instituição museal na sua função primeira, a de conservar/investigar uma colecção. Caracterizando o tipo de exposição das galerias públicas e aquilo que deveria ser reservado aos vários espaços semi-públicos, Rivière relaciona directamente a função expositiva do museu com a investigação, propondo a existência de uma “galeria de estudo” no Museu da FCG. Na “galerie d’étude” estaria acessível aos investigadores uma parte da colecção do Museu: séries de objectos que, não tendo sido expostos na exposição permanente não deveriam ficar nas reservas, mas antes disponíveis para serem estudados. A sua montagem seria marcada por duas opções: por um lado os objectos seriam dispostos de um modo denso e, por outro, não have-

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Embora o título deste já longo ciclo indicie um carácter monográfico, na verdade, esta linha de programação de exposições temporárias iniciada em 1989, com uma duração média de seis meses por exposição, tem sido pontuada quer por exposições centradas numa única “obra de arte” quer num núcleo de objectos da colecção do Museu. Muito excepcionalmente, beneficiando de protocolos de permuta temporária de obras entre o MCG e outros museus, foram apresentadas obras não pertencentes à colecção do MCG. VID.: www.museu.gulbenkian.pt

FIG. 7 – Maqueta de estudo da exposição permanente do Museu Calouste Gulbenkian, 1961. Esta imagem remete-nos para um período de programação em que estava prevista um tipo de compartimentação do espaço da galeria de exposição permanente que veio a ser abandonado, em favor de uma circulação mais fluída. © Mário de Oliveira.


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Na folha de rosto do terceiro relatório do Rivière foi dactilografado no canto superior direito: “Lisbonne, le 11 septembre 1962”. E na última folha, quase em fim de página, foi dactilografado: “Rev: Octobre, 1962”. VID.: Rivière, 11 Setembro 1962, 1 e 9.

ria praticamente informação disponível sobre esses objectos. Estes dois aspectos deveriam diferenciar a museografia seguida nesta galeria daquela que se previa para as galerias públicas: “Dans les galeries publiques du Musée, les chefs d’œuvre et la fleur des séries de la collection Gulbenkian se déploieront à l’aise, en progression chronologique et selon toutes les ressources de l’art muséographique, en vue de l’éducation et de la délectation du public”. (Rivière, 13 Abril 1962, 8) Por último, era também aconselhada a existência de uma “sala de consulta”, de acesso condicionado a núcleos específicos da colecção do Museu, onde estariam acessíveis as séries de manuscritos, impressos e desenhos – objectos sobre papel, portanto – e, eventualmente, um conjunto de moedas gregas. (Rivière, 13 Abril 1962, 8-9). Em síntese, segundo esta proposta de Abril de 1962, os espaços de apresentação das peças da colecção do Museu dividir-se-iam segundo um critério de acessibilidade. Às “galerias públicas” - correspondentes ao espaço de exposição permanente do museu (piso superior) – teria acesso todo o público. Já a “sala de exposições temporárias”, a “galeria de estudo” e a “sala ou gabinete de consulta” (localizados no piso inferior) seriam “órgãos semi-públicos do museu” com função de exposição, e acesso sujeito a autorização prévia. As “galerias públicas”, a “galeria de estudo” e a “sala de consulta” teriam como acervo exclusivo peças da colecção do MCG. A “sala de exposições temporárias” poderia, ocasionalmente, apresentar peças de outras colecções. As superfícies propostas por Rivière para cada uma dessas três zonas semi-púbicas permitem também perceber a importância que o museólogo lhes reconhecia: a “sala de exposições temporárias do Museu” contaria com uma área aproximada de 144 m2; a “galeria de estudo”, com cerca de 390m2, ocuparia um espaço mais de duas vezes e meia maior do que o da “galeria de exposições temporárias do Museu”, e a “Sala de Consulta” teria uma área de cerca de 114 m2, correspondendo, assim, a uma área ligeiramente menor (menos 40m2) do que a da “sala de exposições temporárias do Museu”. (Rivière, 13 Abril 1962, 6).

Consultas a especialistas resultaram num aumento significativo do acervo da exposição permanente (Setembro de 1962) Relativamente aos “serviços do Museu”, salientamos o desaparecimento do “serviço educativo”, cuja introdução na programação fora felicitada por G. H. Rivière no seu relatório de Março de 1960. O terceiro relatório de GHR é um “relatório de revisão ao [relatório] de 13 de Abril 1962”39 e está dividido em duas partes: (I.) Programa e (II.) Projecto. Deter-nos-emos aqui no “Programa”. Na síntese introdutória a esta primeira parte do relatório, GHR afirma que, salvo algumas excepções que poderiam sofrer alterações de detalhe detectáveis durante a realização, a preparação do programa das galerias ou, noutros termos, a escolha das obras a apresentar, podia ser considerado acabado.

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Este facto ficava a dever-se: (a.) aos estudos dos especialistas entretanto consultados: Christianne Noblecourt (Egiptologia), Antoinette Haucchecorne (artes do Japão), Jean Adhemar (estampas), Jean Porcher (iluminura e artes do livro), Pierre Pradel (escultura do Ocidente) e Charles Sterling (pintura e desenhos do Ocidente); (b.) à elaboração pela conservadora-chefe e suas colaboradoras, de relatórios das consultas prestadas pelos diversos especialistas. Os grandes capítulos do programa foram mantidos: antiguidade, artes do Oriente, artes do Ocidente e, no interior destes capítulos, permanecia o desenvolvimento cronológico desde há muito adoptado. O importante facto novo foi o aumento, por vezes de forma considerável, do número de obras escolhidas. (Rivière, 11 Setembro 1962, 11) 40 Na programação final, como sabemos, a exposição permanente viria a organizar-se em dois “circuitos”. O primeiro “circuito” engloba a arte das antiguidades Pré-clássica e Clássica e a arte do Próximo, Médio e Extremo Oriente, agregando dois “capítulos” que em Setembro/Outubro de 1962 surgiam ainda divididos. Esse circuito contará com seis núcleos, o mesmo número que se previa neste relatório para os dois primeiros “capítulos” do museu. No entanto, observe-se o seguinte: (a.) em Setembro de 1962 previa-se que o capítulo Antiguidades reunisse a “arte neo-assíria” (o futuro núcleo 3 – Arte da Mesopotâmia), o “Egipto” (o futuro núcleo 1 – Arte Egípcia) e a “Grécia” (o futuro núcleo 2 – Arte Greco-Romana). As alterações gerais que vieram a verificar-se dizem respeito, por um lado, à sucessão destes três núcleos, e por outro, ao alargamento da secção da “Grécia” à arte romana; (b.) no capitulo “arte do Oriente” previam-se três secções: “Islam”, “China” e “Japão”. Como sabemos, a “arte do Oriente Islâmico” constituirá o acervo do futuro núcleo 4; será criado um núcleo de “arte arménia” (o núcleo 5 “Arte arménia”); e a arte da China e a arte do Japão serão englobadas num único núcleo (o núcleo 6 “Arte do Extremo Oriente”). Quanto ao segundo circuito, o da “Arte Europeia”, que neste relatório de Setembro/ Outubro de 1962 corresponde ao capítulo “Artes do Ocidente”, estavam previstos oito grupos, enquanto que na exposição permanente definitiva contará com onze núcleos. As cartas escritas a 16 de Novembro de 1962, por Guimarães Lobato, ao arquitecto Franco Albini e ao arquitecto Willliam Allen, reforçam o que temos verificado relativamente à responsabilidade de Rivière no processo de programação do MCG: “Dear Albini, the architects are developing a final design for the chronological display for Art Collections of the Museum. It seems that they have achieved what was strongly recommended by Georges-Henri Rivière, without compromising the architectural of the structural design of the building. [...]”41 e “Dear Bill, there has been some delay in the architects work to find the right solution for the Museum design. Fortunately a final solution has been arrived at. It seems that it only needs a final checking and confirmation from Rivière. [...] It seems that after all, the museographic problems have been solved and the structural and air conditioning designs have been settled, in their basic lines which enables us to introduce the final lighting and acoustical designs. [...]”.42 O quinto relatório de GHR,, datado de 24 Março 1963, resultou de uma “troca de pontos de vista” com LGL, os arquitectos Sommer Ribeiro e Sotto Mayor e os arqui-

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40 Com base nas informações constantes neste relatório de G.-H. Rivière, elaborámos um quadro em que identificamos os consultores e as alterações introduzidas na programação da exposição permanente na sequência das suas consultas. VID.: Lapa, 2009 (policopiado), vol. 1, 170-171. 41 IN.: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor Franco Albini, 16 de Novembro 1962. 42

IN.: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor William Allan, 16 Novembro 1962.

FIG. 8 – Planta do Piso 2 do edifício do M.C.G. (não datada). Era neste piso do edifício do Museu que Georges-Henri Rivière propunha que se criassem as três áreas, de acesso semi-público, directamente relacionadas com a investigação da colecção do museu: a «Galeria de estudo», a «Sala de consulta» e a «Galeria de exposições temporárias». ©José Manuel Costa Alves.


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No final deste relatório, Rivière lamenta não ter podido reunir com Maria Teresa Gomes Ferreira, dado que a conservadora-chefe se encontrava indisponível na data em que o museólogo se deslocou a Lisboa. VID.: Rivière, 24 Março 1963, 6.

tectos Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa. Nele o museólogo francês dá conta do “estado de avanço do Projecto do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian”. Este documento foi estruturado em nove pontos: (1.) “Structures et trame générales de l’édifice; (2.) Eclairage; (3.) Collections d’étude; (4.) Expositions temporaries; (5.) Laboratoires; (6.) Distribution des services et des magasins; (7.) Plan et équipement de la galerie d´étude; (8.) Plan et équipement des galeries niveau III; (9.) Ethno-musicologie du Portugal” (Rivière, 24 Março 1963, 1).

Rotatividade do acervo da exposição permanente (Março de 1963)

FIG. 9 – Planta do Piso 3 do edifício do M.C.G. (não datada). Piso subterrâneo em que estão localizados serviços de apoio ao Museu e à Biblioteca. ©José Manuel Costa Alves.

Neste relatório, Rivière defendeu que a parte da colecção reservada ao estudo e ensino fosse distribuída pela exposição permanente – da mesma forma que aconselhara no relatório de Novembro de 1962 – e pela galeria de estudo. Esta última ficaria directamente ligada a dois serviços que muito lhe poderiam ser úteis: a “sala de catalogação” e a “sala de trabalho do Serviço de Colecção”. Previa também que a selecção das obras de segunda escolha, a serem expostas nas galerias de exposição permanente, fosse rotativa. Deste modo permitir-se-ia a divulgação do maior número possível de objectos da colecção do museu, habitualmente conservado nas reservas. Estamos em Março de 1963 e o museólogo expressa a vontade de discutir com a conservadora-chefe a programação da galeria de estudo. Prevendo que tal discussão pudesse vir a ocorrer em Maio desse ano, Rivère pede que a conservadora elabore uma lista dos objectos que, no seu entender, deveriam aí ser expostos. Mesmo que tenham vindo a discutir, a ideia de uma “galeria de estudo”, como sabemos, viria a ser abandonada na programação definitiva do MCG. Rivière informa que as maquetas do edifício tinham sido alteradas de acordo com os “melhoramentos” que em Novembro de 1962 tinham sido “previstos como sendo possíveis de introduzir”. Como resultado das indicações dadas pelos especialistas, cujo período de consulta terminara em Março de 1963, as conservadoras puderam repensar a programação. Rivière planeia poder discutir, numa próxima vinda a Lisboa, as questões surgidas em resultado dessas consultas. Sugere, como passo seguinte, começar a estudar, com a conservadora, o equipamento das galerias de exposição permanente. Conclui o relatório constatando que desde a sua passagem pela Fundação, quatro meses antes, muito trabalho fora desenvolvido, quer do “lado da arquitectura”, quer do “lado da conservação” (Rivière, 24 Março 1963, 6). Como enunciara logo no título deste relatório - “Rapport sur l’état d’avancement du projet du musée de la Fondation Gulbenkian” – Rivière não se ocupou da Programação do museu (por não ter podido reunir-se com MTGF43). No final de Abril de 1963, está-se ainda em pleno trabalho de programação do museu. Procede-se ainda à análise de soluções existentes noutros museus, soluções essas que possam interessar para tomar decisões definitivas em relação ao desenho do MCG.

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Numa carta escrita por Guimarães Lobato a William Allen, datada de 11 de Abril, o engenheiro informa o consultor da FCG de que o arquitecto Alberto Pessoa e o engenheiro Hipólito Raposo (SPO) preparam uma visita a Inglaterra na última semana desse mês: “[...] I think it would be very useful if Raposo visited the National Gallery to discuss lighting problems with the curators and Assistants. The same things applies to the security installations. In case there is time available it might be intersting to Raposo to visit the Victoria and Albert Museum and have a look at their photographic and technical laboratories in order to collect their present comments and advice...”.44 E a 23 de Outubro de 1963, o director do Serviço de Projectos e Obras escrevia a William Allen informando-o de que: “[...] It is now envisaged to start next month with the definite Project of the museum. [...]”.45 Desde o seu primeiro relatório directamente relacionado com a avaliação das propostas arquitectónicas do museu e sede, até ao último relatório de que temos conhecimento, elaborado num momento em que se finaliza o projecto arquitectónico, Rivière, recorrentemente, elogiou a qualidade da flexibilidade oferecida pela definição base do edifício concebido pela equipa Athouguia-Pessoa-Cid. Vimos como, no relatório de Março de 1960, esse foi, aliás, um dos principais critérios para considerar o “estudo de concepção geral dos edifícios da sede e do museu” desta equipa como o que merecia ser seleccionado como vencedor. De facto, pensando agora apenas nas galerias de exposição permanente do Museu, não fosse a flexibilidade do projecto base, e dificilmente poderiam ter sido solucionadas duas questões tão estruturais como a da iluminação natural – que no relatório de Março de 1963, estava ainda prevista ser lateral e zenital – e a da constituição do acervo dessa exposição – que, como agora sabemos, sofreu em Setembro de 1962 um aumento considerável. Por último, lembremos que o piso superior do edifício do museu, um enorme rectângulo de 90 x 30 metros pontuado simetricamente por dois

44

IN: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência enviada a William Allen, 10 de Abril de 1963, [1]. 45

IN: Luís de Guimarães Lobato, Correspondência enviada a William Allen, 28 de Outubro de 1963, [1].

FIG. 10 – Detalhe da grande vitrina central das porcelanas chinesas (núcleo 6 – Arte do Extremo Oriente) da maqueta de estudo da exposição permanente do Museu C. Gulbenkian. ©Sofia Lapa, Outubro 2009.

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Vários dos especialistas que prestaram consultoria pontual à programação do Museu, colaboraram também directamente na elaboração dos catálogos das exposições temporárias, programadas pela FCG, entre 1960 e 1969. VID.: Lapa, 2009 (policopiado), vol. 2, anexo 4, 8-14.

FIG. 11 – Planta do Museu Calouste Gulbenkian à consulta, desde Outubro de 1969, no átrio principal do edifício do Museu. ©Sofia Lapa, Outubro 2010.

pátios interiores e a que se acede por um generoso átrio, ofereceu aos programadores da exposição permanente a flexibilidade necessária para poderem ensaiar múltiplas soluções de montagem. Rivière era um programador muito exigente. Apercebemo-nos que sempre que surge um assunto que, no seu entender, requer a opinião de um especialista, o museólogo protela a conclusão da programação. Rivière insistiu na necessidade da FCG consultar um conjunto de especialistas na área da conservação e estudo das várias secções da colecção do museu e foi indicando as pessoas concretas a quem deveriam recorrer. Poderá também ter tido influência na decisão de a FCG adoptar uma prática de apresentação de exposições de núcleos da colecção, como forma de preparação para a ulterior montagem da exposição permanente e de, paralelamente, ir divulgando junto do público, essa colecção. Com efeito, as duas principais linhas de divulgação da colecção da FCG durante o período de programação e construção do Museu foram a da programação de exposições temporárias e a da publicação de catálogos46 e de artigos em publicações periódicas. Rivière teve uma responsabilidade directa na qualidade do guião original da exposição permanente do Museu Calouste Gulbenkian, qualidade essa que, defendemos, tem permitido que o Conselho de Administração da Fundação o venha mantendo, quase inalterado, ao longo dos últimos 40 anos. Mas uma das principais marcas autorais da museologia de GHR não passaria, no caso do Museu Calouste Gulbenkian, de conselho documentado nos relatórios de consultoria. Essa marca foi introduzida em Abril de 1962 e estava directamente relacionada com a programação dos espaços “semi-públicos” do museu e com a valorização da função investigação, enquanto valência directamente associada às exposições da colecção.

Bibliografia Fundação Calouste Gulbenkian - Serviço de Museu, Tableaux de la Collection Gulbenkian. Paris. Octobre 1960, Lisboa, 1960. Fundação Calouste Gulbenkian / MCG, Museu Calouste Gulbenkian. Roteiro, 3 vols., Lisboa: FCG, 1969. Fundação Calouste Gulbenkian, Inauguração do Museu, Biblioteca e demais Instalações Culturais, 2 e 3 de Outubro de 1969, Lisboa: FCG, 1969. Fundação Calouste Gulbenkian / MCG, Museu Calouste Gulbenkian. Catálogo, Lisboa: FCG, 2.ª edição revista e aumentada, 1989 (1,ª edição, 1982). Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Calouste Gulbenkian 1956-1981: 25 anos, Lisboa: FCG, 1981. FERREIRA, Maria Teresa Gomes. “Museu”, Colóquio Revista de Artes e Letras, n.º 56 – número especial sobre a Inauguração da Sede e do Museu da FCG, Dezembro 1969. GRANDE, Nuno. Arquitecturas da cultura: política, debate, espaço. Génese dos grandes equipamentos culturais da contemporaneidade portuguesa, Tese de Doutoramento em Arquitectura, Orientação do Professor Doutor Mário Júlio Teixeira Kruger, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2009. 1 vol. (policopiado).

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MUSEUS E INVESTIGAÇÃO

LAPA, Sofia Boino de Azevedo. Para que (nos) servem os museus? A génese do Museu Calouste Gulbenkian, Dissertação de Mestrado em Museologia e Património, Orientação da Professora Doutora Raquel Henriques da Silva, Lisboa: F.C.S.H. da U.N.L., Março de 2009, 2 vols. (policopiado). MARTINS, João Paulo. Cottinelli Telmo (1897-1948). A obra do arquitecto, Dissertação de Mestrado em História da Arte, Orientação da Professora Doutora Margarida Acciaiuoli de Brito, Lisboa: F.C.S.H. da U.N.L., 1995, 2 vols (policopiado). PERDIGÃO, José de Azeredo. “Discurso do Dr. José de Azeredo Perdigão, “Trustee” da Fundação”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: FCG, 1960, pp. 27-39. (Discurso proferido na Sessão de Homenagem a Calouste Gulbenkian, a 20 de Julho de 1956, no Museu Nacional de Arte Antiga). PERDIGÃO, José de Azeredo. Relatório do Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian (20 de Julho de 1955 – 31 de Dezembro de 1959), Lisboa: FCG, 1961, 308 págs. PERDIGÃO, José de Azeredo. II Relatório do Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian (1 de Janeiro de 1960 – 31 de Dezembro de 1962), Lisboa: FCG, 1964. PERDIGÃO, José de Azeredo. III Relatório do Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian (1 de Janeiro de 1963 – 31 de Dezembro de 1965), Lisboa: FCG, s.d. Perdigão, José de Azeredo. Calouste Gulbenkian Coleccionador, Lisboa: FCG, 1969. (3.ªed. 2006) Perdigão, José de Azeredo. No XX Aniversário da Morte de Calouste Gulbenkian. Breve história da sua vida e da sua obra, Lisboa: FCG, 1975. REAU, Louis. “La Diane et L’Apolon de Houdon à la Fondation Calouste Gulbenkian”, Colóquio. Revista de Artes e Letras, 1.ª Série, n.º 9, Junho de 1960,, pp. 1-9. TOSTÕES, Ana. (Concepção e Coord. Científica), Sede e Museu Gulbenkian. Ensaios, Lisboa: FCG, Março 2006. Inclui CD-ROM - Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian. A Arquitectura dos Anos 60. Projecto e Construção. TOSTÕES, Ana. Fundação Calouste Gulbenkian. Os Edifícios, Lisboa: FCG, Dezembro 2006. Inclui DVD Os Edifícios. 13 Testemunhos.

Sites www.fondazionefrancoalbini.com www.musee-atp.fr www.museu.gulbenkian.pt

Documentos do Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian (por ordem cronológica) SPO – Luís de Guimarães Lobato, Memorando sobre a localização instalações da Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian. 13 de Janeiro de 1957. Documento assinado por L. G. Lobato. Datado. 8 págs. SPO – [Luís de Guimarães Lobato], Memorando sobre a Actividade do Grupo de Trabalho de Programação das instalações do Museu e Sede da Fundação Calouste Gulbenkian. 15 de Janeiro de 1957. [Documento não assinado. Datado]. 3 págs.

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FCG [Maria José de Mendonça], Instalações da Sede e Museu. Esboço de programa, Julho de 1957, 33 págs. [datado de Julho de 1957, não assinado] [Anexado a este documento estava o programa gráfico: esquemas funcionais, II + 23 págs.] FCG, Relatórios de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958, 2 de Junho de 1958, 5 págs. SPO - Luís de Guimarães Lobato, Relatórios de actividade de Novembro de 1956 a Junho de 1958, 2 de Junho de 1958, 5 págs.. SPO - Luís de Guimarães Lobato, Apontamento - Programa das Instalações da sede e Museu, Condições Gerais de Programação, 24 Janeiro de 1959, 8 págs. RIVIÈRE, Georges-Henri. Rapport sur les Études de Conception du Musée de la Fondation Calouste Gulbenkian et sur la suite à donner à ces travaux, 11–15 Março de 1960. 22 págs. Assinado e datado “Lisbonne - Paris, 11-15 mars 1960”. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência do Engenheiro Guimarães Lobato ao Consultor Franco Albini, 23 Outubro 1961, 1 pág. FCG – Serviço de Museu, Maria Teresa Gomes Ferreira, Apontamentos de museografia, 7 de Novembro de 1961. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor William Allen, 26 Fevereiro de 1962, 1 pág. RIVIÈRE, Georges-Henri. Projet du musée de la Fondation Gulbenkian Rapport du 13 Avril 1962, 13 Abril de 1962. 15 págs. RIVIÈRE, Georges-Henri. Rapport sur l’état d’avancement du programme et du projet du musée de la fondation Calouste Gulbenkian, 11 Setembro de 1962. 9 págs. Assinado e datado “Lisbonne, le 11 septembre 1962”. SPO - [Luís de Guimarães Lobato], Programação do Museu: lista cronológica do trabalho realizado entre 1959 e 11 de Setembro de 1962, 31 Outubro 1962, 2 págs. [Não assinado. Datado]. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor Franco Albini 16 Novembro 1962, 1 pág.. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor Willian Allen 16 Novembro 1962, 1 pág.. RIVIÈRE, Georges-Henri. Rapport sur l’état d’avancement du programme et du projet du musée de la fondation Calouste Gulbenkian, 23 Novembro de 1962, 4 págs. Assinado e datado “Lisbonne, le 23 novembre 1962”. RIVIÈRE, Georges-Henri. Rapport sur l’état d’avancement du programme et du projet du musée de la fondation Calouste Gulbenkian par le directeur du Conseil International des musées, 24 de Março de 1963, 6 págs. Assinado e datado “Lisbonne, le 24 mars 1963”. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor Willian Allen 10 Abril 1963, 2 págs. LOBATO, Luís de Guimarães. Correspondência entre o Engenheiro Guimarães Lobato e o Consultor Willian Allen 28 Outubro 1963, 2 págs.

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Resumo A institucionalização definitiva da Secção de Escultura do Museu Nacional de Arte Antiga deve-se ao conservador Sérgio Guimarães Andrade (1946-1999). Num encontro sintético entre os conceitos pessoais do ofício de museólogo e de objecto museológico, os do entendimento da arte da escultura e as grandes transformações da colecção provocadas pela incorporação da Colecção Ernesto Vilhena, geriu a Secção de Escultura e produziu a primeira exposição permanente de Escultura Portuguesa do MNAA, inaugurada em 1994, também legível como história da imaginária esculpida em Portugal entre o século XIV e o início do século XIX.

palavras-chave Museologia Museu Nacional de Arte Antiga Colecção de Escultura Conservador Colecção Ernesto Vilhena

Abstract The definitive establishment of the Sculpture section in the Museu Nacional de Arte Antiga is the result of the efforts attempted by the curator Sérgio Guimarães Andrade (1946-1999). In a synthetic assembly between his personal concepts of museum curatorship and museological object, the understanding of the art of sculpture and the main changes occurred upon the integration of the Collection of Ernesto Vilhena, he conducted the Sculpture Department and produced the first permanent exhibition of the Portuguese Sculpture in MNAA, inaugurated in 1994, also consistent as a sculpted image history in Portugal between the 14th and the beginning of the 19th centuries.

key-words Museology Museu Nacional de Arte Antiga Sculpture collection Curator Ernesto Vilhena’s collection


SÉRGIO GUIMARÃES DE ANDRADE, O CONSERVADOR E A SUA COLECÇÃO. A IMAGINÁRIA COMO CONCEITO 1 MARIA JOÃO VILHENA DE CARVALHO Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de Museum Studies Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/40853/2007)

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A primeira versão deste texto foi apresentada publicamente na conferência integrada na homenagem In Memoriam Sérgio Guimarães Andrade. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 8 de Janeiro de 2010. 2

A reflexão sobre a expografia da Escultura promovida no âmbito dos estágios, como no contexto de actividades de investigação, é exemplar e sintomática da nova linha conceptual introduzida e do estímulo à profissionalização que era desejável na actividade e nas funções do Conservador, na esteira da vida do Museu Nacional de Arte Antiga enquanto Museu Normal. Assim surgem, desde 1945, os trabalhos de Salvador Barata Feyo (1948, Organização de uma Galeria de Escultura num Museu do Tipo das Janelas Verdes), Maria José de Mendonça, Manuel Bom (1955-1956, Evolução da Escultura em Portugal analisada através da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga), Belarmina Ribeiro (1959, "A Escultura No Museu Nacional De Arte Antiga (1/Esquema De Duas Visitas Guiadas).") e Cordeiro de Sousa (1959, "Os Medalhões Della Robbia Do Museu Das Janelas Verdes."). 3

Registo de memória em depoimento escrito de José Luís Porfírio, Janeiro 2010.

O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) viveu a paulatina especialização das práticas e dos saberes museológicos na senda do pensamento de João Couto. Durante a sua direcção (1938-1962) desenhou-se pela primeira vez a trilogia funcional Colecção-Secção-Exposição2. Posteriormente, no início da década de 1970, este processo veio a ter como corolário a fixação e a estabilidade de um sistema de organização dos serviços internos em Secções que correspondiam às diferentes Colecções; isto é, um conjunto de objectos da mesma categoria artística era da responsabilidade científica de um conservador. É nesta conjuntura que o quadro de profissionais integrará uma nova geração que marcou a história recente do Museu e que será, grosso modo, a responsável pelas renovações expositivas da década de 1990. Com todas as suas diferenças, é fundamental reconhecer nesta geração de museólogos a importância do conceito de "interpretação" e a majoração do conceito de objecto museológico a partir dos quais se pode começar a traçar a existência de uma cultura visual/museológica própria do MNAA da segunda metade do século XX, cuja fonte se pode recuperar dos processos herdados da particular sensibilidade de João Couto e depois amadurecidos na aprendizagem com Maria José de Mendonça e Madalena Cabral3. A vitalidade e a institucionalização definitiva da Secção de Escultura devem-se a Sérgio Guimarães Andrade (1946-1999) que, num encontro feliz e sintético entre os conceitos pessoais do ofício de museólogo, os do entendimento da arte da escultura e as grandes transformações da colecção, produziu a primeira exposição permanente de Escultura Portuguesa do MNAA, inaugurada em 1994 e que, nas suas linhas

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fundamentais, se manteve aberta ao público até 2009, encerrada para dar lugar à mostra Encompassing the Globe. Sérgio Guimarães Andrade licenciou-se em História na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, onde é forçoso assinalar a sua aprendizagem com intelectuais tão referentes como Vitorino Nemésio, Pe. Manuel Antunes, Virgínia Rau, Mário Tavares Chicó, Jorge Borges de Macedo, Oliveira Marques, Mário de Albuquerque e D. Fernando de Almeida, para além de Jorge Henrique Pais da Silva. Fez também o curso de conservador de Museus (in. 1972), de que sempre exaltava a formação com Maria José de Mendonça e Abel de Moura. Foi particularmente sensível à influência do pensamento e actuação de Madalena Cabral, responsável pelos serviços de educação do MNAA, quanto à filosofia, objectivos e processos de acção nos museus. Na análise que fez do seu próprio amadurecimento destacava ainda o trabalho com Per-Uno Ägren (1930-2008), museólogo sueco e consultor da Unesco com quem trabalhou directamente entre 1976 e 19814. O itinerário profissional de Sérgio Andrade iniciou-se no Museu Nacional de Arte Antiga em Novembro de 1970, ainda com o estatuto de tarefeiro, pelas mãos de Maria José de Mendonça5, então directora, e de Jorge Henrique Pais da Silva6. Colaborou no projecto de investigação do Retábulo de Santa Auta – com um estudo sobre a representação dos negros7 – e na primeira inventariação da Colecção de escultura doada ao Estado português pelos herdeiros do Comandante Ernesto Vilhena pouco tempo antes, em 1969, e que se encontrava depositada no espaço do Museu. Como breve nota, que é importante pelo que significa de ligação imediata a um núcleo de peças esculpidas que posteriormente integrará a sua colecção de trabalho, retemos que no processo de inventário das esculturas Vilhena, Sérgio Andrade coordenou o levantamento fotográfico levado a cabo pelos Estúdios Novaes e os registos museográficos das peças, que incluíram a concepção de uma ficha de inventário própria, os termos básicos de classificação por matérias, séculos e estilos de produção e também a definição de uma arrumação ordenada dos objectos e do seu estudo8, criando aquela que seria a primeira fórmula de documentação da colecção Vilhena em contexto museológico e que, anos mais tarde, viria a desenvolver num sistema documental completo que ia desde a atribuição de número de inventário até ao estudo material e à investigação histórico-artística. Nesta sequência de trabalhos com as peças doadas, participou no projecto da exposição Imagens da Virgem da Colecção Vilhena comissariada por Irisalva Moita, conservadora chefe do Museu da Cidade, aberta ao público em Dezembro de 1971. Data deste momento e dessa tarefa de inventariação a sua ligação definitiva à escultura. Em 1973, integrou oficialmente o quadro do pessoal do Museu Nacional de Arte Antiga. A colecção de escultura anterior à entrada de Sérgio Andrade contava 935 peças registadas, provenientes na sua maioria da transferência de propriedade das corporações religiosas extintas, de doações, legados e de aquisições. Os núcleos mais significativos eram os Della Robbia florentinos, as figuras de presépio em terracota

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4 MNAA, Arquivo de Secretaria, Pessoal, Dossier curricular de Sérgio Guimarães Andrade, Curriculum Vitae, 1999. 5 Maria José de Mendonça (1905-1984) ocupou o

cargo de directora do MNAA desde Setembro de 1967 até Janeiro de 1975. 6 MNAA, Arquivo de Secretaria, Livro 72, Cópias de Correspondência Remetida de Janeiro a Junho 1973: Processo 207/1-A: "Exmo. Senhor Director-Geral dos Assuntos Culturais. Em referência ao requerimento de SÉRGIO AUGUSTO ALBUQUERQUE GUIMARÃES DE ANDRADE para ser provido no lugar de Terceiro-Conservador além do quadro posto a concurso conforme aviso publicado no Diário do Governo, II Série nº 68 de 21 de Março de 1973, cumpre-me prestar a seguinte informação: O candidato é discípulo do Professor Jorge Pais da Silva, tendo em preparação a tese de licenciatura sobre um tema de arte. Em Novembro de 1970 o Professor Pais da Silva apresentou-o no Museu de Arte Antiga como sendo um aluno qualificado que desejava vir trabalhar no Museu. Admitido em regime de tarefeiro, Sérgio Andrade mostrou-se interessado pelo estudo da escultura e desde logo o encarreguei de proceder ao inventário de existência da Colecção do Comandante Ernesto de Vilhena, em depósito no Museu. Terminado esse inventário, para o qual Sérgio Andrade estudou um tipo especial de ficha, passou a trabalhar na organização da galeria de estudo da Secção de Escultura do Museu (...) Museu Nacional de Arte Antiga, 2 de Abril de 1973. A Directora, Maria José de Mendonça." 7 Retábulo de Santa Auta. Estudo de Investigação.

1972. Lisboa: Ministério da Educação Nacional-Instituto de Alta Cultura-Centro de Estudos de Arte e Museologia. 8

MNAA, Espólio Sérgio Guimarães de Andrade, Pasta Colecção Vilhena, "Relatório sobre o trabalho efectuado na Secção de Escultura até 7 de Outubro de 1972. Colecção Comandante Ernesto Vilhena", dactilografado; "Relação ordenada das peças de Escultura da Colecção Vilhena", manuscrito, Fevereiro/Março 1971.


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Maria João Vilhena de Carvalho. "A Colecção de Escultura: Exposição e Histórias". Comunicação apresentada no Ciclo de Conferências de Primavera: 120 Anos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 20 de Maio de 2004.

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A obra do Dr. João Couto no MNAA, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1967. 11

Em Outubro-Novembro de 1969 - coincidindo com a inauguração do edifício sede da Fundação Calouste Gulbenkian, é remontada a Sala Museológica que João Couto autonomizara no MNAA após a Doação. O projecto museológico então concebido por Maria José de Mendonça teve risco museográfico de Cruz de Carvalho, pintor e decorador. Na plasticidade desta Sala Gulbenkian, com fortes ecos das propostas do italiano Francesco Albini, estavam presentes os valores da obra de arte entendida como unicum, na sua essência e no seu contexto de Colecção, exaltado através da cenografia, dos suportes dos objectos e da sua iluminação particular.

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Note-se que estes níveis correspondem a uma topografia interna do Museu Nacional de Arte Antiga que já não existe e foi profundamente alterada nas intervenções arquitectónicas da década de 1980, por ocasião dos preparativos da XVIIª Exposição de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa, e da primeira metade da década de 1990, antecedendo a reabertura ao público de 1994.

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Corresponde actualmente às salas de exposição permanente de Mobiliário Português do MNAA, no piso 1.

14 MNAA, Arquivo de Secretaria, Livro 66, Cópias de

Correspondência Remetida, Janeiro a Junho 1970, Nº 133, Proc. Nº 5-M-2, 9 de Março de 1970.

policromada, um internacionalmente reputado conjunto de alabastros medievais ingleses, as esculturas doadas por Calouste Gulbenkian, e sobretudo muitas imagens barrocas e tardo-barrocas em madeira estofada. Tratava-se de um conjunto de tipo cumulativo, com um historial de proveniências que se pode considerar orgânico e que não constituía, portanto, um agregado coerente capaz de documentar e construir a história da escultura portuguesa ou a europeia. A expografia da escultura, entendida como mostra de colecção, também se caracterizava fundamentalmente pelo carácter episódico, fragmentado, e resultava espacialmente das grandes transformações das obras de 1938-1942, da construção do edifício Anexo e das alterações do Palácio dos Condes de Alvor - cujas montagens se podem considerar consolidadas no ano de 1945 - e do grande corte com o conceito de um Museu-Pinacoteca ambicionado por José de Figueiredo que ocorreu com a chegada de João Couto à direcção, em 19389. Durante o período em que Maria José de Mendonça foi directora regista-se a sua sensível abertura e o interesse pela arte da Escultura. Não podem deixar de mencionar-se a ênfase que deu ao enriquecimento do acervo escultórico do Museu por parte de João Couto na Exposição evocativa da sua obra, logo em 196710; a realização da Exposição Comemorativa do centenário da morte de Auguste Rodin, em 1968; a mostra das Imagens da Virgem, em 1971; a participação com parte do acervo de peças Vilhena na Exposição do Salão de Antiguidades da Fil, em 1972; a colaboração do Museu na Exposição Iconográfica e Bibliográfica Comemorativa do VIII Centenário da Chegada das Relíquias de São Vicente a Lisboa, em 1973; a Exposição «comunal», dedicada a Santo António, São João e São Pedro e realizada no átrio das Janelas Verdes, em Junho de 1973; ou ainda a mostra da Arte do Século XVIII no Brasil, da qual permanece no Museu a reprodução de um dos Profetas de Congonhas, do Aleijadinho. Na gestão da Colecção de Escultura há a destacar o pioneirismo e modernidade com que renovou o conceito expositivo da Doação Gulbenkian, diferenciando os seus núcleos constituintes e criando uma sala própria para as peças de escultura com desenho arquitectónico de Cruz de Carvalho11, como também o modo como enfrentou, com um programa aggiornato com as propostas da nova museologia contemporânea, a recente realidade da explosão do crescimento do acervo provocado pela entrada da Colecção Vilhena na posse do Estado Português e a sua integração no espaço do Museu Nacional de Arte Antiga. Para o acesso público e a distribuição dos objectos, o projecto de Mendonça previa quatro níveis, equivalentes às diversas possibilidades de acesso público12: 1º - uma galeria aberta ao público, apresentada no grande vestíbulo e galeria superior do Anexo; 2º - uma galeria de estudo, localizada no espaço entre o vestíbulo e a Secção de Cerâmica, no Anexo13; 3º - um núcleo de Reserva, instalado numa ampla dependência da zona destinada a depósito de obras de arte, no piso térreo do Anexo14. A ideia modelo transmitira-a a própria museóloga anos antes, entre 1963-1964, publicada no Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, ao referir que «foi dada uma diferente arrumação nas arrecadações e depósitos da cave do edifício novo, por se averiguar conveniente a nova

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disposição das secções ali existentes. (…) Na galeria oposta à do mobiliário foi instalada a secção de escultura e noutras dependências colocaram-se as peças e fragmentos de talha dourada e os metais. A nova disposição permitiu criar uma galeria de estudo com vista à formação prática de Conservadores. No intuito de tornar mais agradável a permanência nestas arrecadações, instalou-se um sistema de ventilação que permite uma constante renovação de ar»15. Maria José de Mendonça manifestava ainda a sua concordância com a decisão administrativa superior16 de, após a transferência da Colecção para o Museu de Arte Antiga, ser aqui feita uma selecção de peças destinadas a outros museus do país17, que só muitos anos mais tarde seria pontualmente realizada por Sérgio Andrade (Carvalho, 2009, 158-162). (FIG. 1) O início do trabalho de Sérgio Guimarães de Andrade é praticamente concomitante com essa nova realidade da colecção que é necessário gerir, e que ele transforma. O novo contexto, sublinhamos, é resultado da doação ao Estado Português da Colecção de Escultura do Comandante Ernesto Vilhena (n. Ferreira do Alentejo 1876-m. Lisboa 1967), efectuada pelos seus herdeiros, em 1969, e da conservação no Museu Nacional de Arte Antiga de cerca de 1500 (mais exactamente 1490) peças. Este crescimento exponencial teve imediatos efeitos práticos na vida do Museu logo em 1969 (apesar da doação só ter sido definitivamente oficializada como propriedade do MNAA em 1980, após forte insistência junto das instituições de tutela durante o período da direcção de Maria Alice Beaumont18), obrigando permanentemente a um hercúleo redimensionamento do espaço destinado a arrecadação e à manutenção das ideais condições de conservação dos objectos. 940 imagens esculpidas em pedra, 510 talhadas em madeira e 40 trabalhadas noutros materiais quase triplicaram os números da Colecção de Escultura e o MNAA, entre os museus nacionais, passou a contar com o conjunto mais completo de obras da imagi-

FIG. 1 - Esculturas incorporadas nas colecções do MNAA.

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15 Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga. 1963-

-1964, publicado em 1966, p. 73. 16 Tal como reportava o jornalista que acompanhou a visita oficial, em 22 de Fevereiro de 1969, do Ministro da Educação Nacional (José Hermano Saraiva), do Secretário de Estado da Informação e Turismo, do director-geral de Espectáculos e Cultura Popular à Casa Vilhena, após a assinatura do Auto de Doação ao Estado: “ (…) Vão ser criados o Museu Nacional de Escultura e núcleos de cultura espalhados pelo País. Segundo nos informou o sr. ministro da Educação Nacional, a colecção Vilhena, legada ao Estado,vai ficar temporariamente arrecadada, em condições ideais, nas salas vagas da nova Biblioteca Nacional. Mas só enquanto não se construir em Lisboa o Museu Nacional de Escultura, onde serão recolhidas peças dispersas por museus nacionais e não se criarem os já projectados Centros de Cultura, a disseminar por todo o país e que incluirão muitas das obras existentes aqui em duplicado. Assim se devolverá à província alguma coisa daquilo que ela, ao longo dos séculos, foi perdendo – os testemunhos da sua própria criação artística. (…)”, in “Uma Dádiva Que Não Tem Preço”. Diário de Notícias, 23 Fevereiro 1969, p. 1 e 6. 17 MNAA, Arquivo de Secretaria, Livro 66, Cópias de Correspondência Remetida, Jan-Jun 1970, Nº 133, Proc. Nº 5-M-2, 9 de Março de 1970: (…) “Transferida a colecção para o Museu de Arte Antiga, será aqui feita a escolha das peças destinadas a outros museus do país, conforme foi superiormente determinado, procedendo-se ao inventário e fotografia de todas as espécies, o que se torna urgente fazer.” 18 Maria Alice Beaumont (1929-2004) ocupou o cargo de directora do MNAA desde Abril de 1975 até Setembro de 1990. MNAA, Arquivo de Secretaria, Cópias de Correspondência Remetida, Jan-Jun 1980-I; Nº 197, Proc. 4-M-5, 15-04-1980: Exma Senhora Directora Geral do Património Cultural. Conforme é do pleno conhecimento de V. Exa. a antiga colecção de escultura Comte. Vilhena encontra-se depositada neste Museu desde 1970, sem que a sua situação esteja clara e inequivocamente definida. Ao tratar-se na presente ocasião da exposição de escultura em Mafra, parecer-nos-ia um momento adequado para resolução desta questão, pelo que proponho a V. Exa. que a dita colecção seja incorporada nas colecções do Museu Nacional de Arte Antiga, aplicando-se-lhe assim os regimes de inventariação e registo que são praticados no Museu, e passando a incluir-se nos seus núcleos em situação museográfica definida. Esta incorporação far-se-ia naturalmente sem prejuízo de futuras resoluções no que respeita a cedência e ou utilização de peças da dita colecção. (...) A Directora, Maria Alice Beaumont.


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19 Teresa Pacheco Pereira em "Evocação" In Memo-

riam Sérgio Guimarães Andrade. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 8 de Janeiro de 2010, expôs já o conceito de objecto de Sérgio Andrade num contexto patrimonial não exclusivamente museográfico, nomeadamente do Monumento-Mosteiro da Batalha (onde Sérgio Andrade foi Presidente da Comissão Instaladora do Museu do Mosteiro de Santa Maria da Vitória - entre 1979 e 1980 -, autor do projecto da sua reutilização museológica e primeiro responsável do Museu/Mosteiro com exercício efectivo da sua direcção - entre 1981 e 1986-) entendido ele próprio como objecto museológico.

nária esculpida em Portugal entre os séculos XIII e XVIII, destacando-se as peças dos séculos XIV, XV e XVI pela qualidade de alguns exemplares únicos e, em simultâneo, pelo valor serial que se pode reconhecer na multiplicação imagética desses modelos. Foi com esta profunda alteração do conteúdo do acervo – a Colecção de Ernesto Vilhena - que a Secção de Escultura se transformou, o que permitiu a Sérgio Andrade enunciar novos objectivos baseados no seu particular conceito do objecto museológico, para si o verdadeiro protagonista do Museu desde o processo da incorporação, passando pela conservação, estudo e investigação, documentação e informação até, finalmente, à interpretação dada a público em exposição. Neste sentido, comungava, aliás, das linhas contemporâneas da Nova Museologia. Segundo ele, o conservador deve produzir a interpretação do objecto como realizador – no sentido cinematográfico – quer da exposição permanente, (ou «de base», como sempre lhe chamava), quer da exposição ou da acção temporária em que esse objecto é sempre o actor. A proposta criativa do museólogo enquanto realizador é então entendida como uma tradução da linguagem que é própria dos objectos que se expõem para a linguagem do público19. Assim, para Sérgio Andrade, os seus objectos de trabalho, as imagens esculpidas, não actuariam como meros exemplos ou ilustrações: propõem uma re-conceptualização do passado por via da interpretação sugerida pelo conservador ao visitante através da montagem cujo objectivo será dar a conhecer, com clareza, um determinado sentido e o significado dos objectos. O Museu é um espaço de transfigurações. Uma ilustrativa passagem dum documento datado de 1979 resume a actividade dos primeiros dez anos passados com responsabilidade pela Secção de Escultura e elucida com transparência o conceito da intervenção do conservador sobre o objecto, ao mesmo tempo que enuncia o que considera ser a diferenciação fundamental entre uma actividade temporária e a exposição permanente: «O pensamento que tem orientado a secção de escultura tem sido o de, através de exposições temporárias, e com pretexto destas, estudar e apresentar ao público pequenos núcleos da colecção. Resulta esta linha não só dos problemas consequentes à falta de espaço, mas também da convicção de ser tal processo preferível ao de exposições de base que, em grande parte por motivos já apontados, não poderiam ter a força suficiente para se enquadrarem com exposições desse tipo de pintura ou ourivesaria. Permitem ainda as exposições temporárias, sistematicamente ou permanentemente organizadas, a elaboração de programas de estudo e de conservação ou tratamento, e revestem-se do aliciante – ou desafio – de apresentarem ao público leituras, ou propostas de leitura, dinâmicas, por isso mesmo susceptíveis de serem sempre diferentes e de convidarem o visitante a assumir uma intervenção. Dentro desta linha a exposição de base encontra-se limitada a um núcleo de presépios, a outro de peças em madeira setecentista (capela) e aos núcleos Gulbenkian e de peças Della Robbia. Exposições temporárias, mais ou menos permanentes, têm-se organizado desde 1975, e a pretexto delas se procurou estudar e/ou tratar os núcleos que as constituíam. Assim se procedeu com a colecção de imagens de Malines e com a de alabastros medievais ingleses, com um

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núcleo de figuras de presépio, e com o grupo de imagens que integram a exposição ainda patente de escultura em madeira. A exposição “O Natal” patente em 1977 e 1978, abriu por seu turno caminho a um estudo dos presépios, e à tentativa de publicação de um álbum, que persistentes faltas de tempo e pessoal impediram se concretizasse. A linha de reduzir as exposições de base ao mínimo considerado necessário dentro de um pensamento global do Museu, e de recorrer a exposições temporárias, mais ou menos longas, e de acordo com as preocupações que o Museu vem manifestando, continuará a ser o eixo orientador da secção de escultura, subordinando a essa opção os programas de estudo, de conservação e tratamento, de investigação. Por seu turno o que se pretende com as exposições não é mostrar peças – mas sim contribuir para uma compreensão e para um conhecimento das coisas, das realidades, das vivências em que essas peças, pretextos, não são senão um testemunho ou um objecto consequente de uma ideia, de uma mentalidade, de uma intenção, de uma maneira de nos assumirmos a nós próprios e perante os outros. Se expôr é, neste contexto, acima de tudo expôr ideias, o objecto, a peça, é o pretexto imediato, exigindo dele uma leitura, uma conversa, que transcende evidentemente os campos de estudo tradicionais a que a peça se encontra limitada nos museus. Crê-se que o desafio que se põe ao conservador (e fala-se de um museu de arte e de um com as características do Museu Nacional de Arte Antiga) não é o de restituir a peça à sua função original, mas sim o de lhe procurar tantas utilizações quantas as que lhe permitem dar-lhe uma rentabilidade contribuindo para aquela compreensão e conhecimento do que nós somos, e do mundo que nos rodeia. (…)»20. A relação com os objectos – simultaneamente intelectual, histórica, cultural, antropológica em suma, - torna-se física, material e é nesta condição que o conservador age sobre eles, diríamos que "epifanicamente", porque as esculturas também se lhe revelam. (FIG. 2) Na prática do ofício tal como Sérgio Andrade o executou reconhecemos esta relação, muito concretamente, na compreensão e re-interpretação das qualidades matéricas - formais e físicas - das esculturas que foram o seu suporte de trabalho, como uma fenomenologia. Em primeiro lugar, porque pelas suas formas ou pelos atributos que as acompanham, as próprias peças podem ser detonadoras de uma ideia de exposição, como aconteceu com a mostra S. Thiago Discipulo de Jezus e Fez Guerra contra os Mouros, promovida em Santiago de Palmela em 199821; depois, num entendimento muito claro das diferentes expressões dos materiais, da pedra, da madeira, do barro ou dos efeitos que as técnicas de acabamento têm sobre estas22; pela total adequação de dimensões e a articulação dos suportes expositivos que utilizava com a materialidade (volume e dimensões) e os valores plásticos das peças; ou ainda pela total abertura da relação física entre público-espectador do Museu ao objecto que propunha e defendia, distanciados estes apenas quanto a segurança de obras de arte únicas o exige. Estes valores conceptuais retemo-los das suas palavras e podemos reconhecê-los nas montagens das suas exposições temporárias. Dizia assim que, «mais importante que ver numa escultura um objecto de história de arte, é senti-la como expressão das vidas que a constituíram e que por ela passaram. É percebê-la como resultado e como síntese de

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MNAA, Arquivo de Secretaria, Relatório de actividades, 1979, dactilografado, "3. Movimento das Colecções. Escultura". 21

S. Thiago Discipulo de Jezus e Fês Guerra Contra os Mouros, Palmela, Igreja de Santiago-Castelo de Palmela, 1998. 22

Reencontrando-se empiricamente com o trabalho produzido por Michael Baxandall na História da Arte, no seu The Limewood Sculptors of the Renaissance Germany. 1980. New Haven and London: Yale University Press.

FIG. 2 - Sérgio Guimarães Andrade em Expressões Medievais, Caldas da Rainha, 1992. © Arquivo MNAA.


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A Escultura em Portugal no Século XV. Museu-Mosteiro da Batalha, 1983. 24

Com uma lúcida perspectiva sobre as vicissitudes contínuas que a gestão do museu envolve, informa sobre as implicações que a exposição Feitorias teve sobre a exposição de escultura: "(...) 13. Em Maio de 1991, e depois de um conjunto de situações que estão relacionadas directamente com o pedido de aposentação da Sra. Dra. Maria Alice Beaumont, o 3º piso foi finalmente inaugurado com exposições de base de Pintura e Escultura Portuguesas. Concebidas, organizadas e montadas pelas respectivas secções do Museu. 14. Cerca de 11 meses decorridos o Museu é obrigado, sem possibilidades de reacção ou dela incapacitado, a retirar novamente estas exposições, e a assistir, marginalizado, à alienação dos seus espaços. Onde novamente se fazem adaptações, exclusivamente pensadas em termos da temporária "Feitorias", ignorando claramente a vocação e usos museológicos dessas salas. 15. Quando se concluir as "Feitorias" (três meses?) então irá ser necessário desmontar e retirar as grandes estruturas expositivas, todos os materiais e suportes, mas, sobretudo, e pelo menos, pintar uma vez mais as enormes áreas de paredes das salas da Pintura Portuguesa, totalmente inadequadas a este fim. (...)". MNAA, Espólio Sérgio Guimarães Andrade, Dossier Informações e Notas de Serviço, "Informação sobre a Exposição Feitorias. 21.05.92". 25 Quando, em 1982, se iniciaram as obras das instalações do MNAA, foi transferida e provisoriamente arrecadada no Palácio Nacional de Mafra, uma quantidade significativa de esculturas, quase todas elas provenientes da Doação Vilhena, aí permanecendo até 1997, momento em que regressaram definitivamente ao Museu. Deste conjunto de esculturas foi feita uma selecção de uma centena e meia de peças do período medieval que, a título de depósito no Museu-Mosteiro da Batalha, foram protagonistas de uma série de exposições concebidas por Sérgio Guimarães Andrade.

anseios, dúvidas, angústias, de desespero e de alegrias dos Homens que nela concentraram as suas preces, as suas fés os seus desejos, as suas esperanças. Mais importante que analisá-la como volume e como forma em discussões desarticuladas de conteúdo humano, é compreendê-la e sentir ao tocá-la outras mãos e outros olhos que no passado nela deixaram algo de si próprios. De acordo com tal intenção seguiram-se processos de montagem em que as peças são trazidas a um contacto próximo e directo com o público, em que se formam grupos onde elas próprias conversam entre si e com as pessoas, ou então pela sua força se individualizam numa tentativa de diálogo.»23 No início da década de 1980 no Museu Nacional de Arte Antiga, grandes obras de intervenção no edifício Anexo permitiram criar um piso intermédio onde, dez anos mais tarde, o espaço do Claustro do piso superior virá por fim a receber a Exposição Permanente de Escultura. A abertura definitiva da exposição permanente - ou "de base" -, de escultura portuguesa, em 1994, representou uma ruptura na história das exposições da escultura no Museu Nacional de Arte Antiga. Inaugurada inicialmente em Maio de 1991, a realização da mostra No Tempo das Feitorias em 1992, retomando o certame da Europalia 91 em Bruxelas, iria provocar o seu adiamento até 199424. João de Almeida seria o autor do projecto de arquitectura. Essa exposição resultou do particular entendimento dos valores que caracterizaram a nossa imaginária, tal como Sérgio Guimarães de Andrade o foi mostrando ao longo do vasto trabalho de museólogo nas diferentes exposições temporárias que organizou tanto dentro do Museu Nacional de Arte Antiga - entre as quais salientamos Escultura em Madeira (1979) (FIG. 3), Natal (1983) ou Imagens no Tempo (1988) como noutros contextos institucionais, fossem eles o Palácio Nacional de Mafra (1980) (FIG. 4), o Museu/Mosteiro da Batalha, com várias mostras decorridas entre 1982 e 198525, ou em espaços museológicos camarários como aconteceu em Estre-

FIG. 3 - Escultura em Madeira, MNAA, 1979 © Arquivo MNAA.

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FIG. 4 - Coleccionar. A Colecção Ernesto Vilhena, Palácio Nacional de Mafra, 1980 © Arquivo MNAA.

moz (1986) (FIG. 5), nas Caldas da Rainha (1992), em Óbidos (1992), ou em Palmela (1998), ou até, e ainda, em movimentos expositivos itinerantes que se alargaram a numerosos locais como nos casos das exposições dedicadas aos Alabastros Medievais Ingleses ou às Imagens de Malines em Portugal26. Paralelamente às actividades temporárias e descentralizadas, oferecia-se agora ao público uma exposição coerente da história da imaginária esculpida em Portugal. Mostrava-se muito mais e melhor, num discurso museológico coerente na sua arquitectura conceptual. E a escultura passou a estar presente não só na Exposição de Escultura Portuguesa localizada no espaço do Anexo, mas também integrada no discurso expositivo dos Núcleos Cronológicos patentes no espaço do Palácio dos Condes de Alvor e distribuídos por pequenas "bolsas" cuja lógica era a da leitura integrada das esculturas portuguesas - ou das existentes em Portugal nos contextos das produções europeias, como ainda nos diversos apontamentos escultóricos que se dispersaram e dispersam ao longo das diferentes Exposições de Artes Decorativas e das Artes não europeias. (FIG. 6) O conceito da mostra permanente do MNAA radicou nos princípios de base que conciliavam os valores que dão identidade à Colecção de Escultura com as linhas fundamentais da trajectória histórica da escultura em Portugal, segundo os pressupostos considerados pelo conservador no programa que viria a desenvolver no Museu Nacional de Arte Antiga, de novo a partir de Maio de 1991, e cujo enunciado de realidades trazemos mais uma vez pelas suas palavras: «Quando terminada a XVIIª foi necessário definir o programa de organização do "Anexo" (dedicado à Arte Portuguesa); des-

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26 Por ordem cronológica, comissariou as exposições: Presépios, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1975; O Natal, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1976; Imagens de Malines, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1976 (com itinerâncias); Alabastros Medievais Ingleses, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1977 (com itinerâncias); Livro de Horas de D. Manuel, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1977 (adaptado a kit e itinerante); A Rua, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1977; Escultura em Madeira, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1979-1980; Coleccionar. A Colecção Ernesto Vilhena, Mafra, Palácio Nacional de Mafra, 1980; Alabastros Medievais Ingleses, Museu-Mosteiro da Batalha, 1981; Mosteiro da Batalha. Fotografias de Mário Novais, Museu-Mosteiro da Batalha, 1981; Esculturas do Século XV, Museu-Mosteiro da Batalha, 1982; Música no Século XV. Os Instrumentos Musicais Representados no Mosteiro da Batalha, Museu-Mosteiro da Batalha, 1982; A Escultura em Portugal no Século XV, Museu-Mosteiro da Batalha, 1983; O Mosteiro da Batalha e a Arquitectura Gótica em Portugal. Museu-Mosteiro da Batalha, 1983; Presépios, Museu Nacional de Arte Antiga, 1983-1984; Imaginária Medieval, Museu-Mosteiro da Batalha, 1984; Arquitectura e escultura góticas, Museu-Mosteiro da Batalha, 1985; Exposição de base de Escultura, Museu Nacional de Arte Antiga, 1985-1987; Esculturas em Madeira dos Séculos XIX e XV, Museu-Mosteiro da Batalha, 1985; Esculturas dos Séculos XIII e XIX. Imaginária do Tempo da Rainha Santa Isabel. 650º Aniversário da Sua Morte, Estremoz, 1986; Imagens no Tempo., Lisboa, MNAA, 1988; Espaços e Imagens. Esculturas Portuguesas dos Séculos XIII ao XVIII, Óbidos, Museu de Óbidos, 1992; Exposição de base de Escultura Portuguesa, Museu Nacional de Arte Antiga, 1991-1992; Expressões Medievais. Escultura em pedra do Museu Nacional de Arte Antiga, Caldas da Rainha, Galeria Municipal, 1992-1993; Exposições de base de Escultura, Museu Nacional de Arte Antiga, 1994-2009; S. Thiago Discipulo de Jezus e Fês Guerra Contra os Mouros, Palmela, Igreja de Santiago-Castelo de Palmela, 1998. Foi ainda o autor dos fundamentos de Ai Confini della Terra. Scultura e arte in Portogallo. 1300-1500, Rimini, Palazzi dell'Arengo e del Podestà, 2000 - O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal (1300-1500), Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2000-2001. 27 MNAA, Espólio Sérgio Guimarães Andrade, Dossier Exposição de Base Anexo (Claustro), Maio 91/Abril 92.


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FIG. 5 - Esculturas dos Séculos XIII e XIV. Imaginária do Tempo da Rainha Santa Isabel, Estremoz, 1986. © Arquivo MNAA.

FIG. 7 - Expressões Medievais, Caldas da Rainha, 1992-1993: musealização de Sérgio Guimarães Andrade © Arquivo MNAA.

FIG. 6 - MNAA, Espólio de Sérgio Guimarães Andrade, Projecto para a Exposição de Escultura Portuguesa, 1991-1992 e 1994. © Arquivo MNAA.

tinou-se o seu último piso para a Pintura e Escultura. Agora, com a reabertura deste 3º piso, a colecção de escultura portuguesa do Museu passa a dispor, pela primeira vez, de um espaço próprio e de uma exposição de base. Esta é constituída por cerca de 100 peças, que vão desde o séc. XII a finais do séc. XVIII, em pedra e madeira, na quase totalidade imaginária. Vive-se uma situação importante, consequência da maior dimensão que a colecção ganhou dentro do acervo do Museu de Arte Antiga a partir de 1980/81. Nesta altura foi incorporado o núcleo proveniente da antiga colecção Ernesto de Vilhena (na posse do Estado desde 1969) muito heterogéneo na qualidade e interesse, mas constituído por tão elevado número de peças (perto de 1500) que naturalmente se alterou o significado da secção no conjunto do Museu. Secção que até aí era bastante limitada e com reduzido número de esculturas susceptíveis de serem expostas.»27 A perenidade de algumas exposições temporárias ficou patente na arquitectura das Salas do Anexo destinadas à Escultura, e este fenómeno registava-se a vários níveis, actuando como condicionalismos, alguns dos quais continuam a caracterizar o espaço até hoje. Em primeiro lugar, a própria disponibilidade/existência desse espaço, que resultou da construção do piso intermédio concretizada em 1983, após a XVIIª Exposição de Arte Ciência e Cultura do Conselho da Europa. Depois, nos condicionantes arquitectónicos, e referimo-nos aqui às grelhas metálicas das coberturas das salas que "fecham" as condutas de climatização e as calhas técnicas da iluminação. Em terceiro lugar, nas permanências residuais das arquitecturas de actividades temporárias que marcaram alguns momentos-chave da história institucional do Museu Nacional de

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FIG. 8 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, perspectiva do Claustro, Este, 1994-2009 © Arquivo MNAA.

Arte Antiga, como sejam as memórias das exposições Feitorias que se mantinham nos ângulos formados pelos painéis da ala Norte da Galeria interna, ou ainda a repetição de cor das paredes da XVIIª Exposição, todos actuando como factores altamente determinantes em necessárias reestruturações da área expositiva. Em quarto lugar devemos mencionar mais uma vez outras experiências museográficas cumulativas do Conservador Sérgio Andrade, algumas delas ensaiadas nesse mesmo espaço durante as décadas que antecederam a montagem final da Exposição de Base e onde se reconhecia o seu característico sistema de articulação de plintos, pensado em função de volumetrias, escalas, e direccionamentos de percursos visuais. (FIG. 7) Na sua estratégia narrativa, a exposição era diacrónica, apresentando a linha da cronologia que enforma a história da imaginária em Portugal e mostrava, fundamentalmente, seguindo mais uma vez as palavras de Sérgio Andrade que continuamos a citar, «uma grande colecção de escultura religiosa medieval que sobretudo define certa intimidade no culto; um século XVI em que o trabalho de pedra branda acusa ascendências francesas; um caminho conventual pelo barro e madeiras estofadas a ouro [dos séculos XVII e XVIII], até aos presépios palacianos dos fins do século XVIII».28 (FIG. 8 e FIG. 9) Ocupando cerca de 480m2 do actual 3º piso do edifício Anexo, a expografia desenrolava-se num sistema combinado composto pelas quadras internas, que são as da Galeria, e as exteriores, que são as do Claustro, espaços pré-existentes e conservados na sua planimetria. Naquele macro-espaço, a circulação era naturalmente axial, fazendo-se por cada uma das quadras internas e/ou externas, constituindo cada uma delas micro-módulos cronológicos. As duas espacialidades eram articuladas através de paredes-diafragma

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Idem, ibidem.

FIG. 10 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, Claustro-Galeria, perspectiva da bancada de escultura medieval em pedra, 1994-2009 © Arquivo MNAA.


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FIG. 9 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, perspectiva do Claustro, Oeste, 1994-2005. © Arquivo MNAA.

FIG. 11 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, Claustro-Galeria, quadra Século XVII, 1994-2009 © Arquivo MNAA.

construídas por painéis que eram mais estreitos e mais baixos do que os vãos das arcadas do claustro. No exterior, os painéis surgiam também inseridos nas cantoneiras da arcada (que, por sua vez, se mantinha rasgada ao centro (FIG. 10), e serviam de enquadramento a imagens – e sublinhamos que eram quase sempre imagens que esta exposição mostrava –, imagens estas que eram exibidas isoladas sobre plintos individualizados. Estas esculturas exteriores propunham-se também como síntese do discurso que se desenrolava cumulativamente na parte interna da Galeria. A escultura única, expressivamente simbólica e significativa dos valores plásticos do período, poderia ser descoberta como “maravilha”, actuando pela sua qualidade escultórica/estética na descoberta da história das formas e da sua riqueza de acabamentos (Boldrick, Park e Williamson 2003). (FIG. 11) Internamente, na Galeria, o discurso despia-se do valor da peça única, trazia as séries ao percurso visual. (FIG. 12) Na quadra da escultura da Idade Média, impunha-se a bancada de estrutura de ferro aparente com tampos de travertino onde a multidão dos santos em pedra se alinhava e articulava nas suas diferentes escalas; as imagens estavam dispostas numa hierarquia que também podia ser lida de acordo com a história sagrada, começando pelas representações em pedra de Santíssimas Trindades esculpidas no século XIV e multiplicando-se pela quase totalidade do panteão agiográfico da Cristandade do Ocidente Medieval. Ficava-lhe sobreposto um segundo andar de bancada, mais curto, onde as diversas representações das invocações da Virgem Maria, do século XIV ao final do século XV, desfilavam perante os olhos. As peças de pequenas dimensões surgiam sobre blocos paralelepipédicos projectados das linhas horizontais da bancada.

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Na sua quase totalidade, a quadra medieval era constituída com objectos provenientes da Colecção Vilhena: a memória da acumulação privada coincidia com a abundância da imagem esculpida no Portugal medieval. Podia acompanhar-se igualmente o desenrolar histórico dos centros de produção da imaginária e descobrir as personalidades artísticas mais individualizadas e a par dos seus émulos: Mestre Pero, a escultura produzida em Coimbra e em Évora associada aos grandes empreendimentos religiosos do século XIV, a irradiação das formas dos mestres franceses da Borgonha, a escultura relacionável com o estaleiro do Mosteiro da Batalha, a obra de João Afonso e a escultura dela dependente executada pelas oficinas de Coimbra no século XV, as oficinas activas na Estremadura, até às primeiras décadas do século XVI, peças associadas a Diogo Pires o Velho e outras a Diogo Pires o Moço a fazerem a passagem para a escultura de Coimbra do século de Quinhentos, esta já marcada quer por influências francesas, quer por influências do Norte da Europa. Nas quadras mais à frente, mostrava-se a escultura conventual, contando também com algumas memórias da escultura monumental retabular trazidas através de painéis esculpidos em madeira, dourados e policromados, antecedendo a nova dominância da imaginária barroca estofada. Nas últimas quadras dominavam as oficinas de Lisboa do século XVIII: imaginários anónimos, José de Almeida, Joaquim Machado de Castro, os presepistas com eles relacionados e os discípulos de Machado de Castro estavam presentes de novo através de imagens, de figuras de presépio e também dos modelos/esboços modelados em terracota para estatuária e para imaginária devocional. Mas esta exposição era igualmente sincrónica. A história plástica era proposta ao visitante através do diálogo visual dos diversos materiais da escultura nas áreas da mostra correspondentes aos períodos medieval e do século XVI, oferecendo ao público o contacto/provocação sensível do olhar face a esculturas materialmente diversas embora produzidas no mesmo tempo. Nas quadras seguintes, dedicadas ao século XVII e XVIII, desaparecia o discurso comparativo de expressões matéricas, com o domínio absoluto da madeira surgindo pontuado apenas pelo barro, perspectivando-se assim os diferentes ciclos/períodos produtivos da escultura portuguesa. A disposição das imagens tinha sempre as paredes como fundo, quer quando colocadas na bancada medieval, quer nos plintos compostos ou simples, dimensionados em função das volumetrias e das alturas de cada um dos objectos. Em Museu, na realidade da sala cúbica, traduzia-se a relação entre a imagem esculpida e a arquitectura, duplamente seu abrigo e seu suporte, que individualiza a escultura portuguesa. (FIG. 13) Na maioria dos casos, a observação era frontal. A visão das obras a 180 ou a 360 graus só surgia pontualmente, tal como acontecia ao centro do Claustro. Aqui, neste ponto, a arcada mantinha-se rasgada em espaço correspondente aos módulos de três arcos. Nestes vãos foram implantados plintos soltos com peças de destaque, que sublinhavam a leitura axial da sala quando vista na sua totalidade. (FIG. 14) De novo no exterior, a grande sala Claustro era ampliada organicamente por um módulo complementar que formava um rectângulo - que fechava o eixo longitudinal do espaço e era marcado por duas obras-paradigma (a Fonte bicéfala, Inv.

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FIG. 12 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, perspectiva da Galeria, quadra medieval, 1994-2009. © MC/IMC/DDF, José Pessoa, 1995 - IFN TC 13686.


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644 Esc, única obra de escultura civil exposta, e a Custódia do Sacramento, depósito do Museu Nacional de Machado de Castro), exemplos de peças escultóricas funcionalmente diversas da imaginária anterior. Este rectângulo encerrava o percurso expositivo através da inclusão de uma memória espacial de "Gabinete", transposta museograficamente através da inserção de vitrinas encastradas em painéis dispostos na transversal contentores das peças em barro de pequeno formato. A sedimentação da exposição desde 1994 até 2005, data em que alterações na exposição de pintura portuguesa interferiram nesta unidade conceptual, permite afirmar que a sua marca mais forte foi a de uma "acumulação dinâmica", mostrando-se então 245 peças que eram equivalentes a 10% da totalidade da colecção. A acumulação deverá ser entendida não no sentido decorativo dos museus historicistas, mas em função das alterações de constituição do acervo de Escultura e do próprio significado da "Imagem Esculpida" na história artística e devocional portuguesa. Ao número de peças do coleccionador Vilhena equivalia a fortíssima, constante e múltipla presença da imagem esculpida medieval, panteão tangível no quotidiano. Na síntese museológica de Sérgio Guimarães de Andrade, o público percorria visual e materialmente este duplo sentido das acumulações, conciliando com muita clareza as identidades entre história visual, patrimonial e história da colecção. Nas suas linhas conceptuais, a exposição permanente de escultura portuguesa do Museu Nacional de Arte Antiga pode ser lida como uma história da arte da imaginária esculpida em Portugal do século XIV ao início do século XIX. A validação histórico-artística era a proposta pelo Conservador que, como vemos, desenvolveu o seu próprio método e o exercício de classificação e ordenação na sua montagem. Destaque-se, além do mais, que trabalhava na sua maioria com objectos não documentados, situação que caracteriza a quase totalidade da Colecção Vilhena que foi doada sem qualquer registo informativo, facto que continua até hoje a impedir o Museu de dispor dos dados macro-

FIG. 13 - MNAA, Espólio de Sérgio Guimarães Andrade:, Projecto para a Exposição de Escultura Portuguesa 1991-1992, Desenho dos painéis do Claustro-Galeria; Exposição de Escultura Portuguesa, Santo Onofre, Inv. 350 Esc © Arquivo MNAA.

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FIG. 14 - MNAA, Piso 3, Exposição de Escultura Portuguesa, Sala a Oeste, 1994-2009 © MC/IMC/DDF, José Pessoa, 1995 - IFN TC 13687.

-históricos sobre as suas peças29. Ao propor materialmente o conceito de imaginária esculpida a públicos muito alargados, divulgando conhecimento, intervindo a nível formativo sobre a cultura, as mentalidades, a cultura visual e a consciência patrimonial, mostrava também ao mundo académico português outras linhas de pesquisa, diversas da investigação dedicada quase exclusivamente aos estudos do património integrado ou in situ para os quais a pintura ou a escultura integradas na arquitectura possuem um peso quase auto-fágico e descartam com frequência a biografia dos objectos (na totalidade dos seus sentidos material e histórico) em detrimento das macro-análises de conjunto. No domínio da divulgação editorial da Colecção, o enunciado da sua interpretação da Colecção era coerente com as ideias que aplicou museologicamente e funcionava em complementaridade. Na memória descritiva do projecto de edição dedicado às "Esculturas Medievais", detonado pelo futuro próximo da inauguração da mostra permanente do MNAA mas igualmente pensado para poder acompanhar qualquer outra exposição de escultura medieval, não executado por dificuldades orçamentais, deixou claro que o objectivo era a divulgação susceptível de fazer o ponto de situação relativo ao conhecimento sobre algumas peças e sobre questões relativas à escultura medieval portuguesa e propor algumas vias para o conhecimento/compreensão desta escultura. A selecção de peças seria feita em função da sua importância relativa enquanto esculturas na colecção do Museu e na produção portuguesa medieval e das suas possibilidades como objectos susceptíveis de exposição de base. As fotografias conduziriam a organização e a concepção gráfica - «como tal têm que 'falar' directamente ao observador/leitor e os textos, ordenados pelas imagens, são elementos complementares para a compreensão das esculturas»30-, o que significava

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Situação de que o Conservador era consciente e lamentava em carta a Bernardo Ferrão: MNAA, Arquivo de Secretaria, Livro 76, Cópias de Correspondência Remetida, Janeiro a Junho de 1975; Nº 338, Proc. 4-M-3: "(...) Não temos conhecimento de nenhum catálogo da colecção Vilhena, excepto é evidente os catálogos de exposições temporárias onde figuraram peças desta colecção. Quando foi doada ao Estado, a então Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas Ates procedeu a uma inventariação sumária, de que resultaram listas, de “uso interno”, com a indicação, para cada peça, ou grupo de peças da época (em termos de Românico – Gótico – Renascimento), material (pedra ou madeira), assunto (por vezes não concordante) e avaliação monetária. (...) Esta questão é tanto mais grave quanto, quando o Museu recebeu a colecção, recebeu tão só as peças e estas listas – desconhecemos portanto toda a origem das esculturas, de onde são provenientes, onde e quando foram adquiridas, etc., com as más consequências daí advenientes. (...)"


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30 MNAA, Espólio Sérgio Guimarães Andrade, Documento Esculturas Medievais, 1ª Projecto para a Publicação, 31 de Julho 1989, manuscrito. 31

Idem, ibidem.

32 Trazida

depois ao público português com o título seleccionado pela equipa do MNAA responsável por aquela mostra, em homenagem ao pensamento original de Sérgio Guimarães de Andrade: O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal (1300-1500). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, Outubro 2000- Janeiro 2001.

a dispensa de textos corridos discursivos e, sendo estes sugeridos pelas imagens, deviam intervir apenas como legendas alargadas de cada uma delas. Sérgio Andrade apresentava assim «uma grande colecção de escultura portuguesa medieval», «onde se sobrepõe os valores da religião e do culto», «em que as formas evoluem no sentido de uma definição mais humana e mais realista», «na qual se podem detectar centros de produção e oficinas que marcam a escultura medieval portuguesa» e que «seguem caminhos próprios, que têm ascendência hispânica, francesa e flamenga»31. A fortuna da interpretação de Sérgio Guimarães Andrade foi reconhecida internacionalmente em 2000, com a realização em Rimini, Itália, da exposição Ai Confini della Terra. Scultura e arte in Portogallo (1300-1500), mostrada nos Palazzi dell'Arengo e del Podestà, concebida a partir do guião original do Conservador e produzida pelo Museu Nacional de Arte Antiga em parceria com o Instituto Português de Museus e a organização não governamental Meeting per la amicizia fra i popoli 32. Dos "exóticos" confins da Europa, a imaginária esculpida nos séculos de Trezentos e Quatrocentos ofereceu-se, com o sentido das imagens, como contraponto à arte da pintura cultivada na Península Itálica mostrando-se nos seus tipos, espaços, funções, formas, centros de produção e mestres, temas e cultos, antes da nova época de Quinhentos.

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Resumo Este artigo identifica e critica o valor da quietude como condição necessária para a exposição e apreciação de objectos de arte como os biombos Namban do século XVI, cujas história e função são caracterizadas por formas de movimento. Baseando-me em trabalho de campo em galerias de museus que expõem estes biombos no Japão, em Portugal e na América do Norte, irei mostrar em detalhe como a interpretação da história da arte da passagem física destes objectos e o seu valor como património cultural se baseiam num ponto fixo perspectivista de redes e num paradigma visual. Os processos de conservação e exposição de museus podem ser entendidos como extensões deste paradigma. Por meio do controlo ambiental, dirigido à localização de conhecimento perceptivo no que está disponível para a visão e para a atenuação necessária de outros sentidos, os movimentos materiais do objecto e os movimentos dos materiais constituintes do objecto são apaziguados. O argumento é a favor de uma abordagem sensorial dos museus e dos seus objectos, que neste caso têm em conta os movimentos materiais dos biombos ao atrair os sentidos através do ‘toque de som’ assim como da visão.

palavras-chave Arte namban Materialidade Visualidade Património Antropologia sensorial

Abstract This paper identifies and critiques the value of stillness as a necessary condition for the display and appreciation of art objects like the 16th century Japanese Namban screens, whose history and function is characterised by forms of movement. Drawing on multi-sited fieldwork in museum galleries that display these screens in Japan, Portugal and North America I will detail how the art-historical interpretation of the physical passage of these objects and their value as cultural heritage is based upon the fixed point perspectivism of networks and a visualist paradigm. Museum focused processes of conservation and display can be understood as extending this paradigm. By means of environmental controls, directed towards the location of perceptible meaning in what is available to vision and the necessary attenuation of the other senses the material movements of the object and movements of constituent materials in the object are stilled. The argument is for a sensory approach to museums and the objects within them, which in this case takes account of the material movements of the screens by engaging the senses through the ‘touch of sound’ as well as vision.

key-words Namban art Materiality Visualism Heritage Sensory anthropology Paper


OBJECTS THAT MOVE: JAPANESE NAMBAN SCREENS IN THE REALM OF THE SENSES RUPERT COX Faculty of Social Sciences, Social Anthropology, University of Manchester, Arthur Lewis Building, Oxford Road

1 The

research upon which this paper is based was generously supported by a small research grant from the British Academy and by a major research grant from the Economic and Social Research Council, UK. Thanks are also due to the following persons and institutions: Alexandra Curvelo, Yamamoto, Yukio, Museum of Antique Art, Lisbon; Portland Art Museum; Nagasaki Museum of History and Culture.

2 These

screens are held by the Kobe city museum as part of the Namban Komo collection.

The public exhibition of local history in Nagasaki city, Japan, presents strategic and curatorial challenges of an unusual kind as all aspects of the city’s past and present must contend with national and global responsibilities to relate the story of the tragedy of the atomic bombing in 1946. It is a gloomy image of the city for residents and many visitors alike and countered by ambitious and expensive city council sponsored projects such as the re-creation of the 17th century Dutch settlement at Dejima finished in 1998 and since 2005, by the ‘Nagasaki Museum of History and Culture’ (Nagasaki Rekishi Bunka Hakubutsukan). This museum focuses deliberately on the history prior to the modern period of militarism in the 1930’s and 1940’s and its cataclysmic ending. It starts by looking back to the original, 16th century foreign settlers of the city, the Portuguese missionaries and merchants referred to as ‘Southern Barbarians’ (Nambanjin). The encounters between these in-comers and Japanese residents are evidenced primarily by the imagery of the folding screens (byôbu) which depict their meeting as an exotically picturesque space of cultural exchange, mutual discovery and in some instances of comic mimicry (Toby 1998). (FIG. 1) Ships, goods, people and ideas move across what is typically a six paneled expanse of the screen, driven by elemental forces of wind and sea, but also by the passions for faith and profit. The museum encourages an appreciation of these movements as part of a journey of the imagination, into a romantic world now hardly visible in the urban architecture of the city outside but evoked within the museum by particular techniques for displaying the screens.1 As a visitor enters the initial corridor of the exhibition, they encounter to-scale reproductions of the famous Namban byôbu, attributed to the painter Kanô Naizen2 and are surrounded by the sounds of lapping water, wind and sea birds. The sounds index a pictorial reading of the screens, which show one of the great Nao sailing vessels departing, journeying, arriving and being disembarked at a location which is most likely

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FIG. 1 - A pair of Namban byôbu attributed to Kanô Naizen and held in the Namban Komo collection of the Kobe city museum.

Nagasaki itself. The proximate nature of these sounds and indeed of the screens themselves, which are not behind glass, does not invite the kind of critical distance and attention paid to objects of artistic value in an art museum or gallery setting. They are not placed for scrutiny or for lingering in front of, due to the constant passing flow of visitors in this corridor. Instead the visitor is led onwards through a chronology of Nagasaki’s history by an array of multi-media devices, which have the desired duration of an observer’s attention built into their design. There are, after all, only so many times it is possible to listen comfortably to the same sound loop of waves and birds and 16th century court music, before moving to another exhibit. This restlessly mediated narrative history of Nagasaki ends with the entrance to a second section of the exhibition’s display where the generosity of space within and between tall, wide, highly polished and temperature controlled glass cases reproduces the modernist design and purpose of the art museum familiar to the capital cities of Europe and North America. Here, the attention of the visitor who looks upon the arrangement of assorted, original Namban byôbu in these cases is engaged by the controlled absence of distractions, as the environment is regulated so as to still the senses and to concentrate vision. Sound is not built into the display mechanisms as elsewhere and in as much as it is a function of the presence of visitors it is muted by their self-conscious caution. For they are aware of the reverberant qualities of the gallery’s constituent materials - wood, glass and steel – and are sensitive to their own voices in conversation and the potentially unwelcome publicity of being overheard. This kind of stillness is of course common to the

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experience of looking at many other kinds of museum or gallery exhibited art-works in various locations, but it achieves a particular effect in regard to the academic appreciation of Namban Byôbu and takes on particular significances in this museum in Nagasaki (Cox 2008). These effects and significances are worth considering as they reveal the constraint of sensory modes of apperception besides and alongside vision. They also reveal the ways in which the screens are objects which were made to be mobile and performative (Lippit 2007) and which as confluences of constituent materials are also constantly in a process of movement and change. It shows how exhibition strategies are constructed around the desire or need to still and control these movements in order tell different stories across museum collections, stories of renewal, discovery and philanthropy. In this case, the narrative of aesthetic appreciation built into the display environment confirms the authenticity of the objects and the veracity of the operation of sight in their observation. This kind of attentive vision embeds and solidifies the pictorial content of the screens within the history of the city and the history of art. It affirms the seriousness of the museum as a repository of aesthetic knowledge and works alongside the sensory design of the multi-mediated imaginarium in the first part of the exhibition, which evokes an exotic past. Recent anthropological work on material culture has drawn attention to the way that museums construct sensory registers for the objects in their displays which may work with as well as against the ways in which they were made to be apprehended (Edwards et al. 2006). As such, the sensory realms of exhibition spaces may restrain

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and direct the appreciation of material culture into knowledgeable forms that reproduce colonial, national, local and corporate regimes of power and authority. Vision remains the primary means and organizing principle for such discursive determinations, extending a linguistic paradigm whereby the value of objects may be read and tracked outwards from their visible appearance into networks of signification. Within these networks, objects are treated as static nodes, connecting points of production, dissemination and reception which in the 16th century would have included Kyoto, Nagasaki, Hirado, Macao, Goa, Lisbon and locations in Mexico. Today, it would include the various museums and private collections where Namban Byôbu are held but also the particular workshops and studios where they are repaired and conserved. This approach to material culture, which follows Actor-Network-Theory (ANT) by treating the agency of art as a distributed process (Knappet 2008, 139), is a means of mapping stylistic continuities and discontinuities between Namban Byôbu across space and as such confers a directionality and intent to the passage of time. The virtues of this theory are that they make apparent the semiotic connections between the pictorial elements of the screens and also, potentially, the material elements - the paper, wood, nails which must also hold together, if the screen is to be recognized as such. However, the subordination of materials to the pictorial elements of the screens as part of their en-visioning across different locations in time, manufactures lines of connecting relevance that are static and not dynamic. For it is the flow of materials, their movements within the composite elements of the screen through the action of time as an organic process and through the action of human agents as the screen is folded and unfolded, which are obscured by the attendant visualism of their exhibited environments. In this visual sense, where lines of connectedness are precipitates of movement and not flows of movement, material culture cannot be unequivocally conceived of as an index for the operation of strategic and economic networks and as a derivative of relationships formulated through stylistic continuities and discontinuities. It is by thinking in terms of the flow of materials and recognising in the activities of contemporary conservators, which are led not only by sight but also by the senses of touch and even hearing, that the means by which these movements create deposits and leave residues of their performative presence offer insights into the ways in which the screens were originally made to be used and made to be seen. Recognising how the extra-visual qualities of mobile objects like the Namban Byôbu may be stilled in the conditions of their museum display, which acts as a constraint upon the flow of the materials, can help us to understand how certain kinds of value are attached to them. Studies of Japanese material culture have focused on identifying the value that is attached to objects in the process of their re-presentation as cultural heritage (Daniels 1999), in order to critique the invention of and nostalgia for tradition (Ashkenazi and Clammer 2000, Vlastos 1998). These essentially deconstructive approaches are motivated by a sense that the scopic regimes of modernity (Jay 1995) and the ‘ethnoscapes’ (Appadurai 1996) of globalisation define in visual terms and

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spatial limits the historical meanings that are produced through the public and institutional uses of objects such as the Namban byôbu. Such approaches are critical reactions to romantic, conservative interpretations of Japanese art as heritage that also use visual means to identify aesthetic genres and styles; such as the Kanô school from which the Namban byôbyu emerged to eventually become officially designated and protected national-cultural treasures. The historical and cultural integrity of these art works depends on the expert vision of art historical connoisseurship and is therefore undermined by the visual and extra-visual practices associated with the conservation as well as the reproduction and re-creation of these screens in local environs today. In this sense, this paper addresses the debate in visual and heritage studies (Lowenthal 1985, Elkins 2002) about the universalising claims made about art works by the discipline of art history, the heritage industry, and national and international institutions on the one hand and the concepts and practices related to the physical presence of artworks as objects that exist in diverse social contexts on the other. Questions about the visual properties and materiality of art works as forms of heritage are particularly significant in Japan which was active in the creation (2001) of a universal evaluation of heritage for UNESCO as an ‘intangible cultural property’. The convergence in the UNESCO proclamation of local practices with a generalising rhetoric about heritage has created a new regime for the valuation of art and culture, what Michael Herzfeld has called a ‘Global Hierarchy of Value’ (2005). I have argued elsewhere (Cox 2006, 2009) that this hierarchy can be approached through questions of visuality, asking what modes of seeing are active in the hierarchy and how people involved in presenting heritage en-vision its value. As such, and in relation to this case, I follow Ronald Toby’s interpretation (1998) of Namban art as a subject rather than a style, for inscribing geographically distant foreigners within domestic cultural spaces so as to imagine and image a new anthropology of and for Japan. The mode of assimilative, reflective vision which emerges from this interpretation of Namban art enables us to rethink and reformulate how the heritage value of byôbu is made through a constant process of combining and recombining its visual, material and performative elements in museum displays. This is ably demonstrated in the Portuguese context by Peixoto’s analysis (2006) of different exhibition strategies for showing Namban Byôbu in locations within and around Lisbon. This deconstruction of the precedents and influences on the design of the exhibition of two famous screens, presently displayed in Lisbon’s ‘Museum of Ancient Art’ (Museu Nacional de Arte Antiga), reveals the complex intersections of curatorial interventions, architectural propositions, spatial limitations and cultural deference to the screen’s nominal ‘Japanese’ origins. The Museum of Ancient Art’s exhibition of the screens exists in a space of the museum that is organized as a network of rooms and corridors full of objects distinguishable by the geography of their origins and their formally defined aesthetic or functional affinities. Both of these paradigms – geographic and aesthetic - work together in making visible a national narrative of Por-

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tuguese discoveries and explorations, Catholic missionary work and settlements in Asia, as art and as power. An interesting example of this kind of visually led narrative strategy can also be found in a museum on the other side of the world in the city of Portland Oregon. The pair of Namban screens on display in the Portland Art Museum is in a room which geographically distinguishes objects of ‘Japan’ from those in adjoining rooms belonging to Korea and China. However, like most of the 4000 or so items in the Asian collection, these screens were originally gifted by wealthy families and individuals whose entrepreneurship and philanthropy had helped to build the wealth of the city itself. Their names are listed on a plaque located prominently just to one side of the first entrance to the exhibition space of the Asian collection, a practice which is in keeping with the philosophy of making a public acknowledgement of the origins of gifts in US museums. The plaque divides into six categories the kinds of giving which have constituted the gallery space and its collection as it now appears to the visitor. In descending order, with type face that gets smaller with each listing, these are: ‘benefactors’, ‘patrons’, ‘sponsors’, ‘donors’, ‘contributors’ and ‘supporters’. The relationships between these categories are complex, defined not simply by the monetary value of the gift, but also by the form of the gift and the type of organization making it. Therefore we have mixed together: individuals and families, Japanese banks, glass manufacturers and com-

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FIG. 2 - The opening view from the entrance to the Asian collection at the Portland Museum of Art.

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An extended version of this argument can be found in Cox 2006.


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FIG. 3 – The annual Namban festival (matsuri) parade on Tanegashima island off the coast of Kyushu.

memorative associations. Top of the list in a category of its own making and displayed prominently on the wall above the cases housing the Namban screens is the name of the family who gave the screens to the museum and whose identity is now conferred on this first room of the Asian collection: ‘Schnitzer Family Gallery’. (FIG. 2) These families and organisations constitute another, additional network of connections and significances to the Namban screens, wherein the precipitates of the movements of the objects are materialist as well as material and a narrative emerges of the prestige value of philanthropy. It is a narrative communicated through the textual visibility of names in the gallery, that speaks to the North American context of the display of the objects and more specifically, if somewhat cynically, to Oregon’s state tax laws which allow its high level of income tax to be offset through donations to museum institutions. To compare geographically distant, discursively distinct but in terms of exhibition design, visually similar examples such as these in Lisbon and Portland is to reveal the ways in which a particular art form from Japan may be used to tell different stories internationally, raising questions about how it is presented to communicate the value of local and national cultural heritage in Japan. My argument here is that our understanding of the national-cultural value held to reside in the aesthetic style and historical context of these screens in Japan, may be extended through a consideration of the paintings physical form, reproduced in the local public spaces of the sites where the encounters first took place3 and as they are conserved and repaired. The material presence of these screens is an active witness to the historical identity and cultural heritage of these sites through the kinds of vision they engender; for they are instrumental to the spectacle of annual historic parades (FIG. 3) and to the gaze of tourists looking for souvenirs of their visits. There is a link between the modes of seeing which are intrinsic to these paintings when approached as pictorial representations of a national history of cultural contact and the different forms of contemporary spectatorship which become evident when we consider their local utility in performances of historical identity. This shows that the heritage value of art in Japan resides not only in the identification of enduring aesthetic values but also in the material qualities and social trajectories of these objects as they are subjected to different sensorial practices: of commoditisation, reproduction, and re-creation in local performances and conservation in specialist workshops . To acknowledge these practices as part of the evaluation of art-works is to recognize that as James Elkins has argued, there is no such thing as ‘just looking’ (1999) and that when we look at art, particularly in a museum context, there are many kinds of looking going on. We might, following the work in the anthropology of the senses, go further and recognise that other senses are engaged synesthetically alongside looking. This is the position taken by Janet Brodsky (2002) who proposes that a multi-sensory “whole body” experience is engaged in both the making and the viewing of artworks and that this is a perceptual relationship with a work of art not readily available to the observer because it has been ground out by the particular sensory environment of the museum and the ocular-centric epistemologies of art history.

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My proposition in this paper has been that these institutional and professional modes of observation implicate the senses in distinct relationships to each other and may include a kind of acoustic visuality. This is a way of seeing that is circumscribed by the sounds of the institution and also by the ‘aurality’ of the artwork itself. I am referring to sound in two ways here: in relation to vision and in relation to the pictorial image. In the first sense I mean that the control of sound in an art museum setting may be understood as a necessary aspect of the viewing conditions of a work so that its mimetic value as a formal equivalence in composition and material structure to the object it represents can be appreciated. In the second sense, I mean to recognize the subjectivity of the sensory observer who may experience the work not only in its museum location but perhaps in the very spaces that the work represents. Then visual likenesses between pictorial representation and original location may be perceived and made meaningful through a different array of sense and sound, as part of the presence of a lived environment. The recognition of the subjective observer may then help us to appreciate the sensory and in this case aural elements in a work that are not simply dependent on a mimetic understanding of its representational value. It is an approach that moves us beyond modes of interpreting art works exclusively as representations to be seen and read like linguistic signs and addresses the crucial question of depiction: that is do pictures cause us to see things they represent because they are likenesses of them or do we call them likenesses because they cause us to see them ? I have argued elsewhere (Cox 2008) that the causality or agency of Namban screens that expresses the relationship between their formal content and the spaces they depict is played out in important ways visually, through the pictorialisation of sound. Here I want to propose that once we approach the screens as material objects they may also be considered as devices for listening with and for listening to. As items of furniture, the screens were used to divide up the living space of the homes of their usually wealthy merchant owners and to act as ornamental backdrops for the host on the occasion of meeting important guests. The grandeur and intimacy these screens lent to the ceremonious exchanges and conversations that ensued, means that we may regard them also as a kind of listening device changing the delivery and enhancing the importance of what was said. As many of their original owners were converters to Catholicism and its confessional practices, it may not be too much a leap of the imagination to suppose that the enclosed environment that the screens created had added significance as an auditory technology. We can go a step further than this though in auditory terms and listen to the distinctive sounds of the physical substrate of the screens. The Hyôsô-shi, who are the craftsmen responsible for mounting the painted screens onto their frames and thereafter conserving their condition, speak in auditory terms of the differences in good and bad technique. Take the skill used to meld the layers of the screen together. A (hinoki) pine brush is used to strike down (tadaku) onto the screen’s surface and it must be the edge of the curve of the brush that makes contact and with a heavy enough touch

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FIG. 4 – The Hyôsô-shi, Mr Yamamoto demonstrating the correct brushing action needed to put moisture back into a screen.


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so as not to bounce straight back up (utsu). It should therefore make the thicker ‘bam-bam-bam’, sound that denotes a good technique rather than the ‘pan-pan-pan’ cadence that is evidence of inexperience and ineptitude. Perhaps the most distinctive sounds are those of the hammer fixing the pins to the frame of the screen and the brushing (haku) of its surface which should make a ‘fluffy’ (kebatsu) sound, as the loose back-and-forward wrist action with the brush puts moisture into the picture (FIG. 4). These last sounds were those noted by Mr Yamamoto, Yukio, a Hyôsô-shi that I interviewed in Kyoto and they are significant because he was asked to recreate them for a character who played a Hyôsô-shi in the film Chikamatsu monogatari (1954) (The Tale of the Crucified Lovers) by the director Kenji Mizoguchi. The corporeal onomatopoeic language that is used by the Hyôsô-shi to describe these sounds isn’t bound by visual conventions and the bodily sensations this language evokes reach towards feeling and presence rather than semantic meaning. They propose that alongside the apprehension of what is made visible and therefore knowable about Namban screens through the sensory control of their museum display, we need to learn to engage with them through other sensory practices. This may include a certain kind of listening, to the touch of sound, through the techniques of craftsmen employed in the screen’s repair and conservation. It is through such interactions with these screens that we may come to understand their evaluation as cultural heritage not as a function of a static network or hierarchy but as emergent from the relationship between the movements of materials and the movements of the senses that they engender.

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Resumo As tabelas nos museus servem para comunicar um conhecimento tão sintético e objectivo quanto supostamente sólido acerca das peças que neles se expõem. Daí que a menção “Autor desconhecido” seja a maior decepção que o visitante, ávido de saber quem foi o criador do que interessadamente vê, pode enfrentar nesses sumários registos de informação. Este artigo procura explorar, com base na experiência do Museu Nacional de Arte Antiga e sua colecção de pintura, o “fogo cruzado” a que se sujeita o conservador quando assume o anonimato autoral de algumas das peças que expõe nas salas do museu: dum lado, a autoridade da connoisseurship, do erudito ou do académico que julga deter claras e definitivas soluções sobre mistérios autorais; do outro, o público que, perante a menção a “Mestre desconhecido”, pode deduzir que o conservador é ignorante ou preguiçoso. Através do caso de um pintor quinhentista que terá sido colaborador e continuador de Garcia Fernandes mas cuja identidade por enquanto se ignora, o texto procura ainda comprovar que, neste como noutros casos, o anonimato não prejudica o aprofundamento do conhecimento de um grupo de pinturas atribuídas a um mestre desconhecido.

palavras-chave Autor desconhecido Mestre desconhecido Atribuição Garcia Fernandes Manuel André

Abstract The museums’ inscriptions are meant to communicate brief and objective knowledge, as well as a supposedly solid knowledge, of the pieces it exhibits. Therefore the mention “Unknown author” may be the biggest deception a visitor, who is keen in learning who created what he looks at, may confront with in these summary registers of information. This article intends to explore, based on the experience of the Museu Nacional de Arte Antiga [National Museum of Ancient Art] and its painting collection, the “cross fire” the conservator is subject to when he assumes the anonymity of the authorship of some of the pieces he shows in the museum’s rooms: on one side, the authority of the connoisseurship, of the erudite or academic who believes he holds clear and definitive solutions to the author mysteries; on the other, the public, who before the mention “Unknown author”, sees the conservator as someone who is ignorant and lazy. With the example of a painter from the 16th century who would have been a collaborator and a continuer of Garcia Fernandes but whose identity is for now unknown, this text will also prove that, in this case and in many others, anonymity does not prejudice the deeper understanding of a group of paintings attributed to an unknown master.

key-words Unknown author Unknown master Attribution Garcia Fernandes Manuel André


“QUE HACEN LOS CONSERVADORES?” A PROPÓSITO DO INCOMODATIVO PROBLEMA DA EXISTÊNCIA DE MESTRES DESCONHECIDOS NAS TABELAS DOS MUSEUS JOSÉ ALBERTO SEABRA CARVALHO Museu Nacional de Arte Antiga

“O anonimato preside a toda esta galeria de obras portuguesas” João Couto, 1956 No livro de sugestões do Museu Nacional de Arte Antiga, um visitante de língua espanhola escreveu o seguinte comentário: “Hay demasiadas obras non atribuidas. No es normal para una pinacoteca tan buena. Que hacen los conservadores?”. A pergunta traduzirá, por supuesto, uma velha recriminação à qualidade e esforço da investigação no museu de arte (tradicionalmente, aliás, mais ao museu latino que ao anglo-saxónico), à sua capacidade científica como instância produtora de conhecimento, ao descuido com as expectativas do visitante interessado que espera ser esclarecido acerca daquilo que nele encontra e admira, e outras questões deste tipo que costumam alimentar dissertações em congressos de museologia. Mas é simplesmente evidente que o comentário se trata de um modo de dizer algo mais incisivo: se as pinturas são boas mas permanecem anónimas, é porque os conservadores não as estudam, isto é, hacen muy poco. Descartado, por desinteressante, o aspecto laboral da coisa (nesta, como noutras classes profissionais, há na verdade os que fazem pouco, os que fazem muito e os que fazem o que podem…), tal juízo exprobatório parece expressar igualmente a perplexidade do emissor acerca do assunto, isto é, acerca da razão e significado do anonimato autoral das obras, mas evoca-me, sobretudo, o recorrente “libelo” contra uma cultura de “distanciação” e de alegada prudência do museu face à investigação e produção historiográficas desenvolvidas em territórios externos. Ou seja, e para colocar um pouco linearmente a questão, como e até que ponto deverá o con-

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servador informado seguir e conceder crédito ao que vai expendendo a universidade, a crítica ou o publicismo na história da arte quando chega o momento de elaborar a tabela da peça, a folha de sala ou a sucinta referência que lhe compete no breve roteiro a editar. Neste, como noutros aspectos, o Museu Nacional de Arte Antiga foi entre nós o chamado “Museu Normal”, aquele cuja experiência tendia a definir critérios e, como agora banalmente se diz, a exemplificar “as boas práticas”. Vejamos como João Couto, seu director, via a questão na década de 50 quanto à pinacoteca das Janelas Verdes, por si expositivamente dividida em pintura portuguesa e pinturas de escolas estrangeiras. Na “Advertência” introdutória ao Roteiro das Pinturas editado em 1951 (e depois reeditado durante mais de uma década sem alteração desse texto), Couto estipulava dois critérios. O primeiro: “Para as pinturas das escolas estrangeiras seguem-se na maior parte dos casos as lições fornecidas pela historiografia da arte”. Nada mais claro, mesmo com uma ressalva logo adiantada – “Não significa isso, entenda-se bem, que nos associamos sempre a esses pareceres. Sabemos por experiência que o momento actual em matéria de atribuições (…) é de profunda revisão dos conceitos adiantados (…)”. Nada mais claro, mesmo constatando nós a omissão, não despicienda, de que este sector da pinacoteca ignorava contributos epistemológicos modernos e continuava assaz devedora de atribuições oitocentistas desde há muito a precisarem de profunda revisão crítica. Todavia, para o mais importante segmento da colecção de pintura portuguesa, o critério adoptado vinha a ser outro e bem mais difuso: “Na pintura portuguesa dos séculos XV e XVI, o leitor notará, talvez com espanto, o grande número de obras executadas por mestres desconhecidos, mas para as quais, no entanto, se tem procurado estabelecer identificações mais ou menos engenhosas. O facto de omitirmos a maior parte dessas tentativas não significa menor apreço pelos trabalhos, alguns muito eruditos, dos investigadores e dos críticos que têm pretendido encontrar os nomes dos autores de certas pinturas. Mas em matéria tão vasta e ainda tão desprovida de indicações precisas, pareceu-nos ser, por ora, mais indicado limitar as atribuições àquelas obras de que os contratos ou as assinaturas apostas nos quadros documentam a autoria, ou sempre que esta apareça assentar em bases que não sofram discussão. Não nos esqueçamos porém que nesses tempos recuados as encomendas realizadas em parceria eram as usuais; que elas eram sempre efectuadas em apertada colaboração de mestres, oficiais e aprendizes e que, por vezes, os contratantes não eram os executores das obras”. Deste modo, como o próprio João Couto admitia em texto posterior1, “o anonimato preside a toda esta galeria de obras portuguesas”. Isto não obstante “a tendência de todos os visitantes” se dirigir “sempre no sentido de saber o nome da pessoa que executou o trabalho”. Couto acreditava sobretudo num “colectivismo” (o conceito é manifestamente simplificador, hoje como nessa altura) de produção destas pinturas: “Nada há que estranhar na subscrição anónima. Resultado de obra colectiva, poderia quando muito conhecer-se o nome do artista que assinou o contrato e que

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“A pintura representada no Museu das Janelas Verdes e o critério da sua apresentação na galeria. I - A Escola Portuguesa”, Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, vol. III, fasc. III, Lisboa, 1956, p. 15.


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2

Idem, ibid., p. 16.

3

Vol. III do Dicionário da Pintura Universal, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1973.

4

Luís Reis-Santos, “Pintura da Renascença”, Diário de Notícias, Lisboa, 25 de Dezembro de 1938. Idem, “Duas obras-primas de um grande pintor ignorado na Misericórdia da Lourinhã”, Estudos de Pintura Antiga, Lisboa, Edição do Autor, 1943.

5

Os volumes Gregório Lopes; Garcia Fernandes; Cristóvão de Figueiredo; Vasco Fernandes; O Mestre da Lourinhã; Jorge Afonso; todos da “Nova Colecção de Arte Portuguesa”, Edições Artis.

pode mesmo não ter tido qualquer intervenção na factura do mesmo”. E acreditava, por consequência, que a determinação autoral e personalizada de tais obras constituiria uma possibilidade remota, algo venal e bem menos importante que a sua dimensão “estética”: “Por isso, repetimos, a maior parte das pinturas antigas são anónimas, facto que em nada as prejudica. Quando são belas, não é pelo facto de estarem ou não atribuídas que o seu merecimento se altera. Os estetas continuarão a bem lhes querer. Os historiadores e os críticos, desejosos de lhes completar a ficha, rodeiam-nas de investigações aturadas e formulam a seu respeito as mais desencontradas e as mais desconcertantes hipóteses. Para os que se preocupam com o seu valor material e para os negociantes, o nome do autor tem lugar essencial e dele depende, mais do que do merecimento da obra, a sua cotação no mercado das obras de arte. Isso, porém, não interessa”2. A adopção de um tal critério, sobrelevando uma atitude “estética” perante as peças e pressupondo que o próprio público indistinto a adoptaria dada a “beleza” das obras, creio que era, predominantemente, uma atitude reactiva a um meio em que o director do Museu Nacional de Arte Antiga só via, aliás com bastante acuidade, “desencontradas” e “desconcertantes hipóteses” fruto de más práticas atributivas, não significando de modo algum fraco interesse ou alheamento da sua parte pelo aprofundamento do conhecimento histórico e artístico das pinturas. Marcava entretanto, é certo, uma radical distância face à ansiedade intelectual da connoisseurship, a qual, desde Friedlander, caracterizava o anonimato como signo de um conhecimento imperfeito ou defeituoso. Da mesma forma que o criterioso Armando Vieira Santos, nas entradas a seu cargo para o Dicionário da Pintura Portuguesa3, contemplava nada menos que quatro dezenas de mestres de nome convencional só para a área dos Primitivos Portugueses, nas tabelas da sua exposição de pintura portuguesa Couto entendia, pacientemente, o contrário de Friedlander. E o resultado era, nas salas da pinacoteca portuguesa das Janelas Verdes, o hegemónico predomínio dos mestres desconhecidos ou dos mestres de nome convencional, estes por vezes debilmente “inventados” apenas a partir de um retábulo (“Mestre do Retábulo de Santa Auta”, “Mestre do Retábulo de S. Bento”, “Mestre do Retábulo de Santos-o-Novo”, etc., etc.). A atitude atingia particular radicalidade numa espécie de “negacionismo” aplicado ao chamado Mestre da Lourinhã, pintor de designação convencional a quem Luís Reis Santos (que o “inventou”4) dava duas pinturas do Museu (Santo António e S. Francisco, Santa Clara e Santa Coleta) mas em cujo roteiro estas eram simplesmente atribuídas a um “Estilo luso-flamengo”. E levava, no mesmo roteiro sucessivamente reeditado, a outras situações algo insólitas, como a inexistência de qualquer obra atribuída a Garcia Fernandes, um dos mestres mais destacados na primeira metade do século XVI. Reis-Santos, nos volumes monográficos das Edições Artis que lhe coube escrever5, fazia entretanto o contrário. Em cada um tratava de construir e organizar em períodos cronológicos todo um vasto corpus de pinturas de um mestre quinhentista, ela-

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borando listas de peças sem aparentes hesitações atributivas e, ao mesmo tempo, não se preocupando em fundamentar ou justificar tal articulado de obras e períodos. Pode dizer-se que se o Museu Nacional de Arte Antiga não promovia exposições monográficas de pintores dessa época por, manifestamente, não achar que alguma coisa de substancial se pudesse reunir sob uma mesma e segura atribuição, Reis-Santos assegurava sucedâneos de tais “exposições” nas retocadas ilustrações em rotogravura dos livros da Artis, que supostamente exibiam o seguro catálogo de obras de cada autor importante… Os tempos hoje são outros, quer nos museus, quer na historiografia. A própria noção de autor, na pintura dos séculos XV e XVI6, é hoje mais relativizada e complexificada graças aos estudos técnicos respeitantes à materialidade e processo criativo das obras, bem como à investigação sobre a encomenda, o mercado ou a organização oficinal que estruturavam o sistema de produção das pinturas. A colaboração entre conservadores, historiadores e cientistas acerca de todos estes aspectos tendem a constituir em torno da atribuição uma sofisticada metodologia. A tabela da pintura no museu alargou assim o seu leque de possibilidades de classificação e por vezes, na secura e concisão do seu formato informativo, não consegue traduzir a subtileza do assunto ou as dúvidas que ele próprio encerra. Tem de ser complementada por outros suportes de comunicação. Actualmente, nas salas de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga, a informação é bem mais “audaz” e generosa que na época de João Couto, quer no que se refere à objectividade atributiva, quer no que respeita à informação histórica sobre as obras. Mas continuam a existir, necessária e prudentemente, pinturas não atribuídas, admitindo que o aspecto mais fecundo do conhecimento que elas convocam não se esgota essencialmente (ao contrário do que também propugnava Friedländer) na elucidação da identidade do seu autor. Tal anonimato não decorre, portanto, nem da preguiça nem da ignorância do conservador. As pinturas que o museu vai expondo e relacionando, em diversas situações mais ou menos ocasionais ou temporárias, trazendo peças das reservas ou recebendo empréstimos, permitem até certos confrontos que promovem o agrupamento identitário de algumas obras em torno de um mestre ainda desconhecido mas identificável pelo estilo, comum, dessa série de pinturas. O museu promove assim um aprofundamento do conhecimento que não é prejudicado pelo anonimato autoral, abrindo a possibilidade propositiva, em termos atributivos, de um novo “nome de convenção”. O caso de que se ocupa a segunda parte deste texto resulta de uma soma de situações expositivas que ocorreram no Museu Nacional de Arte Antiga nos últimos anos – exposições temporárias como A Espada e o Deserto (2002) e algumas remodelações da exposição na Galeria de Pintura Portuguesa na última década. Ele propõe um agrupamento de pinturas que definem a produção de mais um “autor anónimo”, curiosamente na esteira do pintor ignorado nos roteiros de João Couto: Garcia Fernandes.

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6 Cf. Maryan Wynn Ainsworth, “What’s in a Name?

The question of attribution in Early Netherlandish Painting”, Recent developments in the technical examination of Early Netherlandish Painting. Methodology, limitations & perspectives, Cambridge e Turnhout, Harvard University Art Museums e Brepols Publishers, 2003.


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Entre 1540, data do testamento e presumível morte de Jorge Afonso, e 1565, ano em que duvidosamente ainda viveria Garcia Fernandes, desaparecem de cena os outros principais vultos: Vasco Fernandes (1542?), Gregório Lopes († 1550), Cristóvão de Figueiredo (ainda activo em 1555 mas já muito velho) e Diogo de Contreiras (que em 1565 já tinha falecido).

Um colaborador ou seguidor de Garcia Fernandes ainda sem nome Pelos meados do século XVI a pintura portuguesa atravessa um tempo de renovação de gerações. O desaparecimento dos principais mestres emergentes no âmbito da já “longínqua” conjuntura manuelina7 (longínqua não só pelo simples correr do tempo mas também pelas transformações italianizantes da década de 30) e os sinais de actividade independente de alguns pintores “menores” – e ainda anónimos – que actuariam junto das oficinas ou na órbita de tais mestres e que revelam partilhar os seus modelos, configuram uma situação típica de crise no sentido historiográfico do termo. De facto a transição só se cumprirá plenamente com a adopção de novos paradigmas artísticos, isto é, com a obra-manifesto e a modernidade romana de um pintor nos Jerónimos, António Campelo, cuja idade ou biografia se desconhecem porém quase em absoluto. Entretanto, a situação de crise reflecte-se na nossa própria dificuldade de individuação e interpretação dos fenómenos de continuidade e descontinuidade que se detectam na prática artística desses meados do século. Dando exemplos, aliás bem conhecidos: a destrinça entre a produção final de Gregório Lopes e a actividade do chamado Mestre de Abrantes (possivelmente Cristóvão Lopes); a proximidade de expressões pictóricas entre alguns painéis dados ao Mestre de Abrantes e certas obras iniciais da carreira de Francisco de Campos em Portugal; a identificação de antecedentes formais e “expressivos” do Mestre de Arruda dos Vinhos, quer em Lopes ou Garcia Fernandes, quer em Diogo de Contreiras. Por outro lado, a historiografia tem revelado algum desconforto no emprego de noções como “oficina de”, “círculo de” ou “continuador de” para caracterizar atributivamente um bom número de peças ou grupos retabulares de outra natureza, obras em que se pressente um certo grau de filiação estilística e ao mesmo tempo de sensível derrogação formal face a modelos picturais identificados com as já referidas grandes oficinas da época. Na maior parte dos casos são obras que “inflacionaram” quantitativamente o catálogo dos chamados Mestres de Ferreirim, ainda através dos célebres volumes das Edições Artis, e hoje criticamente encaradas, segundo uma análise mais exigente e menos atribuicionista, à luz das referidas noções operativas – estas quase sempre de “geometria” variável quanto à definição dos seus limites qualificativos, ou seja, da sua real valia operativa. Interessa-me, nesta última perspectiva, destacar sumariamente a possível unidade de uma série de pinturas retabulares que se filiam predominantemente no estilo pictural de Garcia Fernandes – ou o que dele mais seguramente conhecemos enquanto tal e que acaba por se cingir a uma abundante produção retabular no tempo breve de uma só década, a que vai de 1531, data do tríptico de Santa Clara de Coimbra (Museu Nacional de Machado de Castro), a 1541, data do Casamento de Santo Aleixo para a Misericórdia de Lisboa e sua última peça identificada (Museu de S. Roque) –, mas que não me parecem poder ser atribuídas a este operoso mestre, pinturas cuja fortuna crítica mais recente tem sido fragmentária ou casuística, com prejuízo de uma perspec-

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tiva unificadora tendente ao seu agrupamento em torno de um pintor de que desconhecemos a identidade mas cuja obra pode vir a demarcar-se à custa, justamente, de algum “emagrecimento” de antigas e dilatadas versões do corpus de Fernandes. Datáveis de c.1550, as quatro tábuas da Lenda e Martírio de Santa Catarina que pertencem ao MNAA8 ajustam-se bem à demonstração da dificuldade de traçar nítidas fronteiras autorais. O painel da Elevação do corpo de Santa Catarina é talvez um elemento de forte aproximação com o ciclo do mesmo tema na sacristia da Sé de Velha Goa, dado a Fernandes e datável do final da década de 1530, mas as três pinturas restantes evidenciam com maior clareza, quer nas figuras secundárias, quer nas arquitecturas, um tipo de concepção mais simplificada da forma e um cromatismo relativamente restrito e pouco vibrante. Aquilo que no retábulo de Goa é sedutora demonstração de um desenho sintético e ondulante no privilegiar da figura, no outro conjunto catarinista passa a ser simplificação e alguma secura da forma, para além das também notórias diferenças de articulação das personagens com o espaço pictórico

FIG. 1- Degolação de Santa Catarina de Alexandria, 114 x 85 cm, MNAA, inv.1837 Pint. © José Pessoa, DDF/IMC.

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Santa Catarina disputando com os Doutores, Destruição da máquina do martírio, Martírio de Santa Catarina e Elevação do corpo de Santa Catarina pelos Anjos. Vd. João Couto, “Quatro pinturas da vida de Santa Catarina”, in Belas-Artes, Revista e Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1950.

FIG. 2 - Deposição de Cristo no Túmulo, 168 x 98,4 cm, Museu Francisco Tavares Proença Júnior, inv.15.25 MFTPJ. © José Pessoa, DDF/IMC.


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Opinião idêntica expressa Joaquim Oliveira Caetano no catálogo da exposição que comissariou em 1998 sobre Garcia Fernandes: “O seu desenho esquemático e o tratamento dos panos lembram muito a pintura de Garcia Fernandes, mas também muito difere do seu modo de pintar, nomeadamente uma mais forte abertura à paisagem e uma colocação mais aberta das figuras no espaço” (Garcia Fernandes, um pintor do Renascimento eleitor da Misericórdia de Lisboa, Museu de S. Roque, Lisboa, 1998, p.72). 10

Pertence à colecção do MNAA, inv. 62 Pint. Cf. Dalila Rodrigues, Museu Grão Vasco – Roteiro, Viseu, 2004, p.151. 11 Cf. Joaquim Oliveira Caetano, ob. cit. na nota 3,

p.72, e Joaquim Oliveira Caetano e Vítor Serrão, A pintura em Moura, séculos XVI, XVII e XVIII, Moura, 1999. Também os catálogos de exposição Entre o Céu e a Terra. Arte sacra da Diocese de Beja, Beja, 2000 (ficha crítica de Vítor Serrão e José António Falcão a p. 158 e ss. do vol. II) e As formas do espírito. Arte sacra da Diocese de Beja, Beja, 2003 (ficha crítica de Fernando António Baptista Pereira e José António Falcão a p. 60 do tomo II).

envolvente (FIG. 1). Para usar uma fórmula simples, o conjunto do MNAA creio poder constituir obra retabular não de mas, quando muito, com Garcia Fernandes9. Duvido que seja exactamente em tais parâmetros que se pode questionar, por seu turno, a Deposição de Cristo no Túmulo do Museu de Tavares Proença Júnior (Castelo Branco) (FIG. 2), obra provavelmente anterior, ainda da década de 1540-50, muito concentrada num esplêndido tratamento do corpo exangue de Cristo e do sudário que o envolve, prestes a repousarem numa belíssima arca de mármore, lisa e despojada, de saliente presença plástica no conjunto da composição. Há aqui particularidades de “estilo” que remetem, sem dúvida, para Garcia Fernandes, a intervenção dominante do pintor nesta obra parece configurar-se como muito plausível, mas continua a ser imprudente assacar-lhe sem reticências tal autoria. Continua a ser uma obra muito complexa nesse nível de análise. Creio entretanto poder dar-lhe uma “descendência”, ou seja, apontar uma pintura, com idêntica cronologia, que detém alguma filiação no particular “estilo” do painel de Castelo Branco. Trata-se da Lamentação (FIG. 3) exposta no Museu Grão Vasco10, tais afinidades se evidenciando no “redondo” tratamento de figuras e panejamentos, no seu envolvente agenciamento, bem como em figurações de planos secundários e elementos comuns de topografia da paisagem. A partir destas duas obras verifico ter ocorrido uma “migração” de elementos figurativos para um painel um pouco mais tardio, julgo que datável da década de 1550, actualmente exposto na igreja de S. Pedro de Moura mas pertencente a um antigo retábulo da igreja do convento do Carmo na mesma localidade. Falo de uma Lamentação sobre Cristo Morto11 (FIG. 4) que toma de empréstimo à Deposição de Castelo Branco as duas figuras secundárias de Santas Mulheres e ao painel de Viseu a tipologia essencial das personagens da Virgem e de S. João, para além das representa-

FIG. 3 - Lamentação, 83 x 133 cm, Museu Grão Vasco, depósito do MNAA, inv.62 Pint © Carlos Monteiro, DDF/IMC.

FIG. 4 - Lamentação, 122 x 84 cm, Igreja de S. Pedro, Moura © MNAA.

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FIG. 6 - Cristo descido da Cruz, 226 x 206 cm, MNAA, inv.1265 Pint © MNAA.

FIG. 7 - Martírio e milagre de S. Cristóvão, 118 x 85 cm, MNAA, inv.1270 Pint. © José Pessoa, DDF/IMC.

ções do túmulo de Cristo e do Calvário, aqui reunidas no lado esquerdo da composição. A pintura de Moura exibe no entanto um modelado mais sumário, um contorno e estrutura das figuras mais rígido e menos expressivo, uma construção do espaço e da paisagem que cumpre a sua vocação narrativa mas que resulta inapelavelmente esquemático, configurando o lugar da acção mas não participando da dramaticidade do episódio. E é essa rigidez e esquematismo que por seu turno o aproxima, mais pelo pintar que pelo figurar, do conjunto da lenda de Santa Catarina a que aludi acima, tais características tornando-se ainda mais evidentes no outro painel remanescente do retábulo de Moura, um Martírio de S. Sebastião hoje pertencente a colecção particular12. Os painéis do Carmo de Moura podem assumir-se, deste modo, como um ponto de convergência e de reutilização de modelos figurativos criados na oficina de Garcia Fernandes, tratando-se já de uma produção autónoma relativamente ao trabalho do mestre e não de um testemunho tardio da sua ignorada carreira depois de 1541. Obra cronologicamente mais recuada desse pintor do estreito círculo de Fernandes poderá ser o painel da Virgem das Dores rodeada pelos sete correspondentes episódios da Vida e Paixão de Jesus (dado por Luís Reis-Santos à “terceira época [1531-40]” de actividade de Garcia Fernandes) (FIG. 5), onde quer a figura central quer a represen-

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FIG. 5 - As Sete Dores da Virgem, 73 x 56 cm, MNAA, inv.947 Pint © José Pessoa, DDF/IMC.


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Para uma ilustração, embora deficiente, deste painel, ver Joaquim Oliveira Caetano e Vítor Serrão, A pintura em Moura, séculos XVI, XVII e XVIII, Moura, 1999, p.30. 13 Vítor Serrão, “O programa artístico da igreja de São Cristóvão de Lisboa. O retábulo quinhentista e a campanha de obras protobarrocas (1666-1685)”, Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa, série IV, nº92, 1990/98.

tação do passo da Lamentação de Cristo sustentam claras afinidades com as soluções figurativas do painel alentejano. No que resta do curioso retábulo quinhentista da igreja de S. Cristóvão de Lisboa13, creio que executado já depois de dobrado o meio do século e hoje incorporado nas reservas do MNAA, julgo haver também indícios do trabalho deste pintor. O conjunto não é inquestionavelmente homogéneo, o grande painel central de Cristo descido da Cruz (FIG. 6), caracterizado por uma espacialidade larga e monumentalizante onde as personagens detêm uma escala e uma rotundidade que se articula muito eficazmente com a sensação de amplitude da composição (essa escala e articulação sendo radicalmente estranhas aos códigos da tradição manuelina e ensaiando um processo de espacialização que caracteriza boa parte da pintura maneirista em Portugal), parece diferenciar-se de um processo compositivo que, nos dois painéis da vida de S. Cristóvão (FIG. 7), privilegia um escalonamento e acumulação figurativas, os restantes três painéis de predela, com meias-figuras de apóstolos, nada os

FIG. 8 - S. Sebastião conduzido ao martírio, 102 x 76 cm, MNAA, inv.76 Pint © José Pessoa, DDF/IMC.

FIG. 9 - Martírio de S. Sebastião, 101 x 75 cm, MNAA, inv.75 Pint © José Pessoa, DDF/IMC.

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FIG. 10 - Prisão e Morte de S. Roque, 152 x 110 cm, MNAA, inv.1900 Pint © MNAA.

FIG. 11 - Santa Bárbara, 111 x 66 cm, MNAA, inv.77 Pint © José Pessoa, DDF/IMC.

particularizando neste equacionamento. O certo é que essa abertura ao espaço da paisagem combinada com uma tendência à densificação dos grupos de personagens que configuram certas situações narrativas, acaba por caracterizar outros agrupamentos de painéis retabulares que apresentam, simultaneamente, uma já ténue herança do estilo de Fernandes e um aprofundamento, distintivo, de soluções plásticas de tipo maneirista. Refiro-me aos dois painéis do Martírio de S. Sebastião (FIG. 8 e 9) que devem ter provindo do convento lisboeta dos Grilos14, à sequencial Prisão de S. Roque que replica um dos anteriores painéis da Lenda do santo15 (FIG. 10), e a uma Santa Bárbara (FIG. 11) igualmente conservada nas reservas do MNAA. No primeiro grupo, como no isolado episódio de S. Roque, o pintor retoma soluções de espaço e figuração aplicadas nos painéis de S. Cristóvão, revelando entretanto uma

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14 Cf. A Espada e o Deserto, catálogo de exposição,

Lisboa, MNAA, 2002, pp. 4 e 29. 15

Cf. A Ermida manuelina de São Roque, catálogo de exposição, Lisboa, Museu de São Roque, 1999.


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16 Vd.

Sérgio Gorjão, Museu Municipal de Óbidos – Catálogo, Câmara Municipal de Óbidos, 2000, pp. 26-40. 17

Estudadas por Joaquim Oliveira Caetano em “A pintura em Torres Novas nos séculos XVI a XVII”, in Nova Augusta, nº6, 1992, e em O que Janus via. Rumos e cenários da pintura portuguesa (1535-1570), Dissertação de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996, p. 200.

FIG. 12 - O corpo de S. Vicente abandonado, 94 x 78,5 cm, Museu Municipal de Óbidos, inv.15 © MNAA.

tendência à sofisticação narrativa pela pose ou atitude dos protagonistas e o gosto descritivo por adereços e elementos ornamentais dos trajes e ambientes. Tal tendência afirma-se depois com maior sentido de elegância e requinte da forma na composição de Santa Bárbara, alguns elementos da paisagem, como o artificioso traçado dos troncos e copas das árvores, participando intimamente nessa vocação estilizante da representação (aqui ainda mais sensível pela utilização de um colorido predominantemente sombrio). Sublinhando que esta abordagem das obras tem como fio condutor apenas o reconhecimento de certas afinidades entre elas e que não pretende esboçar, por enquanto, qualquer proposta do seu alinhamento cronológico, julgo que este inventado percurso entre a graciosa fragilidade formal das pinturas de Moura e o propósito figurativamente “estiloso” da tábua de Santa Bárbara creditam a possibilidade de reconhecer o nosso anónimo pintor na execução de um conjunto retabular iconograficamente muito interessante: o retábulo da antiga capela de S. Vicente de Óbidos, actualmente incorporado nas colecções do Museu Municipal de Óbidos16. Aqui me parece evidente que se condensam os defeitos e virtudes da representação do corpo no estilo pessoal deste mestre (FIG. 12), o desenho anatómico acusando as simplificações de modelado que já lhe conhecemos, o cânone de proporções da figura que tende ao alongamento da sua representação, a ingénua expressividade das atitudes e emoções das personagens, algo imperturbáveis no desempenho do seu “papel” ainda que este seja de uma crueldade ou de um sofrimento extremos, a sua colocação escalonadamente ambígua no espaço pictórico que arquitectonicamente se define por vocabulários de grande simplicidade ou acusadamente convencionais no pitoresco de casarios em fundo, a singularidade de certas formas “orgânicas” da paisagem que passam já por poder constituir uma marca de autor e, finalmente, certos dispositivos de narratividade da acção internos à estrutura de algumas composições, recorrendo à sugestão de espaços-caixa. Devo ainda aludir à existência de múltiplas afinidades entre os painéis vicentinos de Óbidos e uma série de quatro pequenas pinturas existentes na igreja de S. Pedro de Torres Novas (S. Jorge, Santa Apolónia, Santa Marta e S. Filipe)17 (FIG. 13) que me parecem poder partilhar a mesma autoria. É escusado propor-se, assente em mera conjectura, a identificação deste pintor com Manuel André, único discípulo documentado de Garcia Fernandes mas de cuja actividade apenas temos notícia de que andava em 1569 a pintar umas obras para o claustro da Sé de Lisboa. Não creio tão-pouco que se deva baptizá-lo desde já com um nome de conveniência, embora o número de peças que aqui lhe atribuo seja suficiente para o efeito (Federico Zeri dizia que para se poder dar um nome de convenção a um mestre anónimo do Cinquecento são precisos pelo menos cinco quadros…). Contudo, a incursão “formalista” que aqui deixei esboçada, a propósito destes vários grupos de pinturas, tem pelo menos o mérito de chamar a atenção para zonas de conhecimento menos sistematizado da pintura portuguesa do século XVI, as quais não ganham nova luz por conjecturais atribuições de autor mas por um novo

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FIG. 13 - S. Jorge, Santa Apolónia, Santa Marta e S. Filipe, c.50 x 30 cm, Igreja de S. Pedro, Torres Novas © Joaquim O. Caetano.

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entendimento, visual, comparativo, das relações entre as obras. No fundo, pelo recurso aos melhores dispositivos da velha “ciência” atributiva cujo território de eleição é, sem dúvida, a pinacoteca. Espero ter demonstrado algo do que podem fazer los conservadores mesmo que não possam honestamente evitar o anonimato das pinturas à sua guarda.

Bibliografia A Espada e o Deserto, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, 2002 (catálogo de exposição) A Ermida manuelina de São Roque, Lisboa, Museu de São Roque, 1999 (catálogo de exposição) As formas do espírito. Arte sacra da Diocese de Beja, Beja, 2003 (catálogo de exposição comissariada por José António Falcão). AINSWORTH, Maryan Wynn – “What’s in a Name? The question of attribution in Early Netherlandish Painting”, Recent developments in the technical examination of Early Netherlandish Painting. Methodology, limitations & perspectives, Cambridge e Turnhout, Harvard University Art Museums e Brepols Publishers, 2003. COUTO, João – “A pintura representada no Museu das Janelas Verdes e o critério da sua apresentação na galeria. I - A Escola Portuguesa”, Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, vol. III, fasc. III, Lisboa, 1956. CAETANO, Joaquim Oliveira – “A pintura em Torres Novas nos séculos XVI a XVII”, Nova Augusta, nº6, 1992. CAETANO, Joaquim Oliveira – O que Janus via. Rumos e cenários da pintura portuguesa (1535-1570), Dissertação de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996. CAETANO, Joaquim Oliveira e Serrão, Vítor – A pintura em Moura, séculos XVI, XVII e XVIII, Moura, 1999. COUTO, João – “Quatro pinturas da vida de Santa Catarina”, Belas-Artes, Revista e Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1950.

Entre o Céu e a Terra. Arte sacra da Diocese de Beja, Beja, 2000 (catálogo de exposição comissariada por José António Falcão). Garcia Fernandes, um pintor do Renascimento eleitor da Misericórdia de Lisboa, Museu de S. Roque, Lisboa, 1998 (catálogo de exposição comissariada por Joaquim Oliveira Caetano). GORJÃO, Sérgio –Museu Municipal de Óbidos – Catálogo, Câmara Municipal de Óbidos, 2000. REIS-SANTOS, Luís – “Duas obras-primas de um grande pintor ignorado na Misericórdia da Lourinhã”, Estudos de Pintura Antiga, Lisboa, Edição do Autor, 1943. RODRIGUES, Dalila – Museu Grão Vasco – Roteiro, Viseu, 2004. SERRÃO, Vítor – “O programa artístico da igreja de São Cristóvão de Lisboa. O retábulo quinhentista e a campanha de obras protobarrocas (1666-1685)”, Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa, série IV, nº92, 1990/98.

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Resumo A Exposição A Rainha D. Leonor foi organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido inaugurada em Dezembro de 1958 no Mosteiro da Madre de Deus. Desde logo foi assumida a necessidade de proceder a reparações no Mosteiro fundado por D. Leonor, tendo em vista não só a realização da exposição evocativa da obra mecenática e caritativa da Rainha, mas também a instalação naquele edifício centenário do futuro Museu do Azulejo. Porém, as consequências deste evento são mais amplas, pelo desenho dos elementos expositivos e pelo pensamento global que o orientou e também pelo que manifesta da acção da nova Fundação, criada em 1956. Esta instituição enuncia, através da Exposição da Madre de Deus, a atenção que irá dedicar à preservação do património histórico, investindo simultaneamente numa representação de si própria junto do público. A sua imagem retém-se na novidade da montagem da exposição e na identificação da missão da Fundação com o papel protagonizado pela Rainha D. Leonor no apoio às artes e na assistência.

palavras-chave Exposições evocativas Fundação Calouste Gulbenkian Design de exposições Conceição Silva Mosteiro da Madre de Deus

Abstract The exhibition Queen Leonor of Portugal was organized by the Calouste Gulbenkian Foundation, and opened on December 1958 at the Madre Deus Monastery. From the beginning there was a concern to proceed with the repairs of the Monastery founded by Queen Leonor, bearing in mind not only the evocative exhibition of the patron and charitable work of the Queen, but also the installation in that building of the future Tile Museum. However, the consequences of this event were bigger, due to the drawing of the exhibition elements and the global thinking that guided it, as well as the intervention of the newly Foundation, created in 1956. This institution will underline, through the Madre Deus Exhibition, its attention to the preservation of historical heritage, investing at the same time in its image towards the public. Its image retains in the novelty of the creation of the exhibition and the identification of the Foundation’s mission with the role of Queen Leonor for her support and assistance to the arts.

key-words Evocative exhibitions Calouste Gulbenkian Foundation Exhibition design Conceição Silva Madre Deus Monastery


A EXPOSIÇÃO “A RAINHA D. LEONOR” NO QUADRO DAS EXPOSIÇÕES EVOCATIVAS DO ESTADO NOVO LEONOR DE OLIVEIRA Instituto de História da Arte, FCSH/UNL, linha de Museum Studies Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/45440/2008)

FIG. 1 – Placa indicativa da exposição na Avenida das Naús. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

O ano de 1958 marcava os 500 anos do nascimento da Rainha D. Leonor (1458-1525), esposa de D. João II, mecenas e fundadora das Misericórdias em Portugal. A recém-criada Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) foi a precursora das comemorações do aniversário da Rainha ao decidir organizar para o efeito uma “exposição comemorativa”, no Mosteiro da Madre de Deus, fundado por D. Leonor em 1509. José de Azeredo Perdigão (1896-1993), presidente do Conselho de Administração da FCG, justificava do seguinte modo esta medida, tomada em Setembro de 1957, no momento em que a Fundação preparava a I Exposição de Artes Plásticas (que se realizaria em Dezembro desse ano) e a atribuição das primeiras bolsas aos artistas portugueses: “um tal acontecimento [o 5.º centenário do nascimento da Rainha] não podia ser indiferente à Fundação Calouste Gulbenkian, uma vez que, entre os seus fins estatutários, figura a realização da caridade e a protecção das artes. A Rainha Dona Leonor foi, ao mesmo tempo, uma alma dotada do mais puro amor do próximo e um espírito devotado aos mais belos empreendimentos artísticos e culturais” (Perdigão 1958, 7). A FCG encontrava-se, pois, um ano após a sua criação (1956), em plena actividade, procurando legitimar a doação que lhe fora feita pelo seu fundador, Calouste Sarkis Gulbenkian, (e que era motivo de contestação por um dos herdeiros) e credibilizar e divulgar, nacional e internacionalmente, a sua intervenção através de uma acção imediata e visível nas áreas de actuação indicadas nos seus estatutos: artes, educação, ciência e beneficência. Se para a consolidação de uma imagem da FCG no país era fundamental a construção da sua sede (concretizada em 1969), a sua actividade, desenvolvida logo após a sua constituição, manifestava já claramente o potencial financeiro, organizacional e imagético da nova instituição: “havia pois que mostrar rapidamente, em Portugal e em alguns países estrangeiros, que a Fundação existia,

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não só de direito, mas também de facto, e que, para além disso, era capaz de realizar uma obra de efeitos a curto prazo […] A pronta satisfação [de alguns] dos múltiplos pedidos […] deu uma amostra das suas possibilidades futuras e, assim, o cepticismo que nos envolvia e podia, em certos casos, comprometer ou sacrificar os nossos destinos, converteu-se em confiança na Instituição e nos seus dirigentes e em esperança quanto aos benefícios que ela poderia trazer”2. A identificação da Fundação com a acção cultural e benemérita de D. Leonor explica, assim, a realização da exposição evocativa. Esta teria, no entanto, que ser forçosamente antecedida pelas obras de recuperação do Mosteiro da Madre de Deus, levadas a cabo pela Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais. Para tal, segundo Azeredo Perdigão, em carta dirigida a Pedro Teotónio Pereira3, “foi necessário pôr de acordo […] os Ministérios das Obras Públicas e da Educação Nacional”4. Na mesma carta, o presidente da FCG descreve o processo de organização das comemorações, iniciado pela Fundação e seguido pelo Governo: “meses depois de termos publicado a resolução de comemorar […] o centenário do nascimento da Rainha D. Leonor, o Governo publicou uma portaria, nomeando uma comissão encarregada de, por sua vez, organizar as comemorações oficiais”. Azeredo Perdigão, relata ainda a Teotónio Pereira a primeira reunião da Comissão Nacional5, na qual a FCG foi convidada a participar: “a Comissão pensa que teria muito interesse integrar, na nossa Exposição, uma outra, incluindo todas as bandeiras das Misericórdias do País, províncias ultramarinas e Brasil, com valor artístico, e, bem assim, os respectivos compromissos, ou, pelo menos, as bandeiras e compromissos das Misericórdias instituídas pela Rainha D. Leonor. Como a ideia era interessante, e só viria a enriquecer a nossa Exposição, aceitei-a”. Azeredo Perdigão estimou a despesa com o restauro do Mosteiro em 1.250 contos, que acabou por incluir também um anexo que tinha sofrido um incêndio. A FCG, por insistência do Governo, que não poderia dispor rapidamente de mais verbas, concordou em comparticipar metade do valor desta nova empreitada (250 contos), tendo a decisão sido tomada muito rapidamente devido à necessidade de concluir as obras em Agosto, a fim da exposição inaugurar em Outubro6. A exposição, intitulada A Rainha D. Leonor, desenvolveria uma abordagem apoiada no estudo histórico e na recolha iconográfica da “obra” da Rainha, sob uma dupla perspectiva, a criação das Misericórdias e o apoio às Artes. Reuniu-se, para o efeito, um grupo de colaboradores, que apoiariam, entre outras tarefas, o trabalho de localização e requisição de peças de diversa natureza a instituições estrangeiras e nacionais: João Couto (director do Museu Nacional de Arte Antiga) - estudo do papel da Rainha no campo das artes plásticas; Fernando Correia (director do Instituto de Higiene Dr. Ricardo Jorge) análise das Misericórdias e recolha iconográfica; Manuel Estevens (director da Biblioteca Nacional de Lisboa) - recolha e análise de códices e incunábulos encomendados pela Rainha; Jorge Moser - estudo da genealogia da Rainha e da sua heráldica. No catálogo, o tom dos textos destes especialistas é sempre reverencial, procurando sublinhar a plena integração no movimento renascentista dessa figura caridosa e humanista que foi “Princesa Perfeitíssima”.

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2 Excerto da carta de Azeredo Perdigão dirigida a Pedro Teotónio Pereira, datada de 7 de Julho de 1958, citada por Ana Tostões na publicação Fundação Calouste Gulbenkian: os edifícios. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Serviços Centrais, 2006: 41-42. 3

Pedro Teotónio Pereira (1902-1972) integrou o primeiro Conselho de Administração da FCG, ao mesmo tempo que desempenhava funções diplomáticas, encontrando-se, nesta altura, em Londres, como Embaixador de Portugal.

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Perdigão, José de Azeredo. 1958. Cópia dactilografada da carta dirigida a Pedro Teotónio Pereira. 11 Abril 1958. Fundação Calouste Gulbenkian: Arquivo da Presidência – PRES 108: 1. 5 Esta comissão era presidida pelo provedor da Mi-

sericórdia de Lisboa, José Guilherme de Melo e Castro e integrava José Azeredo Perdigão; José Hermano Saraiva (representante da Direcção Geral de Assistência); José de Sousa Machado Fontes (provedor da Misericórdia do Porto); José António Silva (Presidente da Câmara Municipal de Beja); Alcino de Sousa Coelho (director do Hospital Rainha D. Leonor das Caldas da Rainha), e Artur Nobre de Gusmão (Escola de Belas Artes de Lisboa). 6

Perdigão, José de Azeredo. 1958. Cópia dactilografada da carta dirigida a Pedro Teotónio Pereira. 11 Abril 1958. Fundação Calouste Gulbenkian: Arquivo da Presidência – PRES 108.


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Maria José Mendonça é, na documentação consultada, referida como “adjunta do Director do Serviço de Belas-Artes”. Porém, Maria José de Mendonça, que se manteve vinculada neste período ao Museu Nacional de Arte Antiga, do qual se tinha tornado conservadora efectiva em 1944, terá sido a primeira responsável por aquele Serviço da FCG, como comprovam publicações posteriores da própria Fundação (V. Fundação Calouste Gulbenkian, 1956-1981, 25 anos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983). A sua colaboração com esta instituição iniciou-se em 1956, tendo-se desenvolvido em dois planos: programação do futuro museu da colecção reunida por Calouste Gulbenkian e organização de exposições temporárias (V. Lapa 2009, vol. 2, 42). 8

Mendonça, Maria José de. 1958. Comemoração do 5.º centenário do nascimento da Rainha D. Leonor: Esboço de um programa. 21 Fevereiro 1958. Fundação Calouste Gulbenkian: Arquivo do Serviço de Belas Artes – SBA 15333: 1.

FIG. 2 - Aspecto do Claustro Joanino à noite. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

Tendo em conta os objectivos da exposição, Maria José de Mendonça7, com o apoio de Artur Nobre de Gusmão e Maria Teresa Gomes Ferreira, elaborou o plano da mostra, que foi sendo actualizado a partir dos dados fornecidos pelos vários consultores. Em 21 de Fevereiro de 1958, Maria José de Mendonça assina um “esboço de um programa” de 11 páginas, definindo os núcleos da exposição e o seu conteúdo: “I - A Rainha e os Artistas: Pintura: Retábulos que pertenceram ao Mosteiro da Madre de Deus no séc. XVI, alguns dos quais se sabe que foram encomendados pela Rainha D. Leonor. Objectos de ourivesaria, iluminura, escultura e paramentaria com as armas da Rainha ou que foram propriedade sua. Incunábulos mandados imprimir pela Rainha ou que pertenceram à sua Livraria. Autos de Gil Vicente dedicados à Rainha ou por ela encomendados. As fundações da Rainha D. Leonor – fotografias, gravuras e desenhos. II - A Rainha D. Leonor Fundadora de Misericórdias; III - Iconografia, Heráldica e Bibliografia – pequena secção de carácter histórico de que farão parte também os autógrafos da Rainha […]”8. A listagem de obras documentais a apresentar na exposição, indicada por Maria José de Mendonça nos seus relatórios, é substancialmente mais extensa do que os restantes núcleos, o que comprova a dimensão documental desta exposição. A inauguração de A Rainha D. Leonor foi, entretanto, remarcada para a primeira quinzena de Novembro, mas, sendo uma “exposição de tipo complexa”, como a caracterizou Maria José Mendonça retrospectivamente (Mendonça 1959, 17), a sua abertura sofreu um segundo adiamento para o início de Dezembro: “houve […] que proceder com sujeição ao condicionalismo derivado do próprio local onde a exposição, por imperativo das suas determinantes e da sua finalidade, tinha de ser realizada, condicionalismo que tornou ainda mais difícil a sua articulação. A limitação do espaço, a estrutura e a correlação das dependências ou lugares onde a exposição é apresentada impuseram deficiências e criaram vários problemas, uns de ordem lógica e outros de ordem estética, na escolha e apresentação das coisas a expor” (Perdigão 1958, 10). Francisco Conceição Silva (1922-1982), arquitecto formado pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, juntamente com os arquitectos José Daniel Santa-Rita (1929-2001) e Raul Santiago Pinto e o decorador Manuel Rodrigues (1906-1965), seus colaboradores noutros projectos, foram encarregues de articular peças de diversa natureza (pintura, escultura, ourivesaria, manuscritos, livros, tapeçarias, etc.), reproduções em variados suportes (fotografias, modulações em gesso), painéis informativos, com um espaço que também contribuiria para ilustrar o período em que a Rainha D. Leonor viveu, a sua devoção religiosa e patrocínio artístico. O espaço e o seu conteúdo serviam, simultaneamente, como representação histórica, e não eram apenas as obras de arte a sustentar o discurso sobre a Rainha, mas também o material documental e fotográfico, que assumia, assim, protagonismo evocativo. Acres-

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cente-se ainda as bandeiras e algumas peças de “saboroso rusticismo” (Pamplona 1959, 51-52), provenientes das Misericórdias espalhadas pelo país, que reforçavam a amplitude e representação destas instituições de assistência. Na montagem da exposição, o primeiro e segundo pisos do claustro de D. João III foram amplamente utilizados. O ambiente era aquecido por radiadores (estava-se em Dezembro) e havia quem aconselhasse a visitar a exposição ao anoitecer (FIG. 2), uma vez que os efeitos da iluminação eram particularmente belos (Lowndes 1958). “Concertos de musica gravada com composições da segunda metade do século XV e da primeira do século XVI” (Uma exposição evocativa 1958) acompanhavam o percurso da mostra. A exposição iniciava-se com a caracterização do período em que viveu a Rainha D. Leonor (FFIG. 3), destacando-se personalidades, monumentos e acontecimentos culturais e políticos. Fazia-se referência à expansão marítima portuguesa. Ilustrava-se a linhagem da Rainha através de árvores genealógicas da época e de um quadro genealógico e heráldico produzido por Jorge Moser, evidenciando a ascendência da Dinastia de Avis e a ligação com as monarquias europeias. Neste núcleo apresentava-se uma síntese cronológica da vida da Rainha, com elementos sobre a sua acção na área da assistência e das artes, e as localidades portuguesas relacionadas com D. Leonor. O segundo núcleo dizia respeito ao apoio da Rainha às artes, através da promoção de obras arquitectónicas, da encomenda de pintura flamenga e portuguesa (FIG. 4), de incunábulos (obras impressas antes do século XVI) e de peças de teatro a Gil Vicente, de quem foi protectora. Esta temática ocupava as salas do segundo piso com ligação à sala de Santo António e coro alto, que integravam também o percurso. A História das Misericórdias ocupava o segundo piso do claustro joanino, fazendo-se referência aos estabelecimentos de assistência que as antecederam (espécies manuscritas). Ilustrava-se o património daquelas instituições através dos seus edifícios (FIG. 5), reproduzidos fotograficamente, e de peças de valor histórico e artístico (FIG. 6), prove-

FIG. 3 - Secção «Aspectos da época da Rainha» - sala I. Ao fundo, à direita, vislumbra-se o Retábulo de Santa Auta. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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FIG. 5 - Secção «A Rainha e as Misericórdias»: aspectos das Misericórdias em Portugal – Claustro Joanino (andar superior). © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA. FIG. 4 - Secção «A Rainha e os Artistas» - aspecto de uma das salas de pintura (sala III), com o Retábulo da Igreja da Madre de Madre de Deus. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

nientes de várias partes do país. As bandeiras de diferentes Misericórdias (FIG. 7) e as representações da Nossa Senhora da Misericórdia tinham ampla presença. A exposição terminava na capela do piso térreo, junto à entrada da igreja e antecedida pelo túmulo raso de D. Leonor, que se encontrava destacado por um foco de luz. Na capela (FIG. 8), espaço remanescente do primitivo mosteiro, encontravam-se alguns objectos de uso pessoal da Rainha e a descrição da transladação do seu corpo para a actual sepultura.

FIG. 6 - Secção «A Rainha e as Misericórdias»: aspectos das Misericórdias em Portugal aspecto da sala grande do andar superior do Claustro Joanino. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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Esta exposição era vocacionada, segundo Maria José de Mendonça, para “um grande público, mais do que particularmente a investigadores e eruditos” (Mendonça 1959, 20). E, de facto, acabou por ser correspondida, uma vez que, “para atender a muitas solicitações” (Fecha no domingo. A Exposição “A Rainha D. Leonor” 1959), o encerramento da exposição foi adiado de 7 de Janeiro para o dia 11. Entretanto o horário de visita tinha já sido alargado das 21.30h à meia-noite nos dias 3, 4, 6 e 7 de Janeiro. A imprensa divulgou as reacções à exposição, destacando o “fenómeno” popular e nacionalista: “e tantas foram as expressões experimentadas, em contentamento orgulhoso, que a alma popular, recebeu e sentiu, como um lembrança para o seu coração, elevando mais alto a riqueza da Pátria” (Cruz 1959). Mas também mostrou o reconhecimento de historiadores, como Fernando de Pamplona: “nessa moldura fulgurante ressurgiu, pois, D. Leonor para os nossos olhos” (Pamplona 1959, 51-52). Fernando da Silva Correia resume deste modo o impacto da exposição da Madre de Deus: “a Exposição, verdadeira “enciclopédia pela imagem sobre a vida e a obra da Rainha D. Leonor”, foi como que uma ressurreição, dando-nos a sua verdadeira alma nos documentos da sua piedade, fé, caridade, gosto artístico, amor às letras, vistas largas, prestígio de que gozava na Corte, no Vaticano e entre os intelectuais, os artistas, a nobresa, a burguesia e o povo de Portugal. A iniciativa da Fundação Gulbenkian teve uma grande repercussão na opinião pública durante as Comemorações […]” (Correia 1959, 23).

FIG. 8 - Capela do Claustro no andar inferior do Claustro Joanino, com o Relicário de D. Leonor cedido pelo MNAA. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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FIG. 7 - Secção «A Rainha e as Misericórdias» Claustro Joanino (andar superior). © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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V. Santos 2001, 63.

A Rainha D. Leonor procede, assim, a uma síntese histórica de um período que se liga também à expansão marítima portuguesa, sendo, por isso, de marcante significado evocativo e nostálgico, e que é personificado por uma figura que incorporou o desígnio renascentista, como mecenas das artes, promotora de acção social e exemplo de uma nova espiritualidade, a devotio moderna. Para o sucesso desta exposição terá também contribuído o enfoque no “grande público” e, consequentemente, a sua dimensão pedagógica, demonstrada pela reunião dos diversos testemunhos artísticos e documentais, pela produção de materiais informativos e recolha fotográfica de variados elementos históricos e pelo percurso traçado. No entanto, há também que considerar a novidade institucional e estética desta mostra no panorama expositivo português no contexto do Estado Novo. Trata-se, por um lado, da iniciativa de uma instituição privada, financeiramente auto-suficiente, a FCG; por outro, de uma criação expositiva inédita, que veio revelar de modo mais expressivo o contributo da Arquitectura e do Design para a concretização de exposições temporárias de arte e história. Conceição Silva encontra-se na primeira geração de arquitectos e artistas portugueses que iniciaram uma nova abordagem (artística e democrática) dos objectos do quotidiano, do mobiliário, da “concepção de ambientes”, tirando partido de uma melhoria da economia nacional, do desenvolvimento industrial e de uma abertura, a nível económico, ao estrangeiro9. A Rainha D. Leonor associa-se a este período precursor do Design em Portugal através da acção de Conceição Silva e dos seus colaboradores, que apresentaram nesta exposição a sua abordagem particular – a obra total. As limitações impostas pelo espaço e a diversidade de objectos a expor determinaram o desenho de equipamentos expositivos variados, aos quais se junta sinalética específica, ligada ao percurso da visita, aos diferentes núcleos da exposição e à sua

FIG. 9 – Exposição de Arte Portuguesa, Londres, 1955-1956: Sala III – séc. XV «Manuelino», com os painéis do retábulo de Santa Auta ao centro. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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apresentação no exterior. Foram, consequentemente produzidas vitrines, painéis, painéis articuláveis (biombos), suportes verticais de pintura, molduras, plintos, bancos, etc, segundo um processo de estandardização e recorrendo a materiais básicos, madeira, metal, vidro, e a uma paleta reduzida aos tons de cinza e dourado. Associava-se, deste modo, à realização de uma exposição a produção industrial, o que contribuía para uma apresentação uniforme e objectiva dos variados objectos. No nivelamento imposto desta forma aos diferentes testemunhos reunidos nesta mostra, foi, contudo, introduzida uma distinção referente às “espécies mais sensíveis às desfavoráveis condições de ambiente” (Mendonça 1959, 20). Estas espécies (obras de arte) foram apresentadas em salas do Mosteiro (e não nos claustros ou galerias abertas), nomeadamente nas divisões do piso superior que foram adaptadas para esta exposição. Outra preocupação manifestada por Maria José de Mendonça dizia respeito à “valorização de tão numeroso e complexo conjunto de peças, deixando-as desafogadas segundo os princípios estabelecidos entre nós por esse museólogo eminente que foi o Dr. José de Figueiredo” (Mendonça 1959, 20). Os vários objectos dominavam, assim, o seu próprio espaço sem interferência de leituras cruzadas com outras peças a não ser as que iam sucedendo através do movimento do visitante. Este ritmo de obra a obra dá-nos um primeiro contraste, aquele mais evidente, entre A Rainha D. Leonor e as realizações expositivas que a antecederam, sobretudo, e de forma mais directa, com a Exposição de Arte Portuguesa em Londres (Royal Academy of Arts, 1955-1956). Ambas apontam para uma divergência conceptual marcante: a exposição total versus recriação de ambientes. A Exposição de Arte Portuguesa em Londres/ Portuguese art, 800-1800: winter exhibition, 1955-56, comissariada por Reinaldo dos Santos, serviu propósito diplomático, aproveitando o convite da Academia londrina que vinha promovendo um ciclo de artes “nacionais” de diversos países. O desanuviamento das relações após a II Guerra Mundial e a procura de cooperação internacional proporcionaram ao regime português e, particularmente a Reinaldo dos Santos, a apresentação de um discurso sobre a produção artística portuguesa assente num percurso cronológico e evolutivo, ao longo do qual o carácter artístico português ia sendo revelado. As obras-primas, reveladoras da “personalidade” nacional, encontravam-se devidamente individualizadas numa hierarquia de significações estéticas, epocais, autorais e de cariz nacionalista. Para além destes momentos de concentração encenada em peças-chave (Painéis de S. Vicente (FIG. 10) e Custódia de Belém, por exemplo), a exposição assentava na integração dos objectos em ambientes ou unidades de época, “como se o contexto histórico e estético de origem das peças determinasse o seu significado, dependendo o seu entendimento e valorização da relação intrínseca que estabelecerem quer entre si quer com o seu meio envolvente. A unidade de época ora decorre de um processo de criação de ambientes por módulos de fidelidade e autenticidade histórica e estética, apoiando-se, por exemplo, na recriação de interiores habitados, através de uma relação de verosimilhança com a realidade. Ora é sustentada por ele-

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FIG. 10 - Exposição de Arte Portuguesa, Londres, 1955-1956: Sala II – séc. XV «Nuno Gonçalves», com o políptico de São Vicente de Fora (MNAA). © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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O director do MNAA propõe a divisão da colecção deste museu em dois equipamentos, criando “um grande Museu de Artes Decorativas” e, “longe da atmosfera nociva das instalações portuárias e no meio de grandes aglomerados de verdura, uma pinacoteca e gliptoteca”.

mentos sugestivos que evocam ambientes psicológicos e mentais, como o heroísmo guerreiro e a mística medieval” (Fernandes 2001, 132). O resultado desta estratégia de montagem era a acumulação de peças diversificadas, caracterizadoras do mesmo período artístico, em que as artes decorativas eram valorizadas na dependência do seu contexto produtivo, detendo apenas uma leitura secundária, ornamental. Esta era a via que se defendera em 1915 (Figueiredo 1915, 152) para o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e que se prolongava na exposição em Londres, para além da perspectiva evolutiva e nacionalista da arte portuguesa. João Couto, no Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga de 1954-55, comenta que as artes decorativas apresentadas neste museu “estão distribuídas pelas salas, desempenhando uma função apenas ornamental e não estão dispostos em séries cronológicas ou estilísticas, como um critério apertadamente didáctico, exigiria” (Couto 1954-1955, 57)10. Relativamente aos equipamentos museográficos, o sucessor de José de Figueiredo na direcção do MNAA defende a discrição dos recursos utilizados para, relativamente aos biombos, “a sua decoração se não sobrepor às espécies a expôr”. Os plintos devem ser “feitos de material idêntico ao dos objectos que têm de suportar” (Couto 1965, 8 e 11). No caso da exposição comissariada por Reinaldo dos Santos, “o mobiliário da exposição foi escolhido pela Royal Academy, que recorreu aos seus habituais fornecedores. De presença discreta, era constituído por sólidas vitrines paralelipipédicas ou triangulares, de arestas molduradas, de base rectangular branca […] Os plintos […] eram exactamente iguais às bases das vitrines […] Por vezes o comissário não resistiu a forrar as bases de algumas vitrines com elementos têxteis – veludos lisos, tecidos lavrados com aplicação de gregas ou bordados, frontais ou panos de altar” (Fernandes 2001, 125-126). Depreende-se também desta análise que Reinaldo dos Santos dominou isoladamente todos os passos desta exposição, do programa/ discurso à montagem, sem o apoio de uma equipa especializada.

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À parte da “genealogia” das exposições evocativas de arte no contexto do Estado Novo, que assentou modelo com a Exposição do Mundo Português de 1940, e da “tradição” expositiva do MNAA, A Rainha D. Leonor pode descender mais directamente da experiência anterior de Conceição Silva – a concepção do Pavilhão de Portugal na Feira Internacional de Lausanne (Comptoir Suisse), em 1957. Neste pavilhão participaram alguns dos intervenientes na Exposição da Madre de Deus: os arquitectos Santa-Rita e Sena da Silva e o “decorador” Manuel Rodrigues. Era uma imagem de Portugal modernizado que se pretendia mostrar por via do comércio e da indústria. O recurso a painéis, que definiam o percurso expositivo e dinamizavam o espaço, e a ampliações fotográficas, o desenho de diversos dispositivos museográficos e a variedade de objectos expostos, juntamente com obras de Almada Negreiros, Jorge Vieira e Querubim Lapa, aproximam ambas as exposições. Todos os objectos são significantes e contribuem para a leitura geral do tema, ultrapassando uma disposição hierarquizada e dominada por teorias evolucionistas11. Conceição Silva foi sobretudo influenciado pelos arquitectos italianos, nomeadamente Carlo Scarpa, que estava, desde o final da II Guerra Mundial, a ocupar-se da reinstalação de exposições permanentes em edifícios antigos ou da concepção de mostras temporárias. O racionalismo do seu desenho de equipamentos articula-se com as qualidades intrínsecas dos objectos, com a ponderação cuidada dos efeitos da luz natural, a relação interior/exterior, o diálogo entre os materiais e a paleta de cores. Harmoniza-se, através desta equação complexa, a modernização expositiva com espaços de considerável antiguidade, cabendo ainda à relação entre objecto/observador uma particular atenção12. Quer a via historicista e conservadora da exposição de Londres, quer a via integradora e modernista de A Rainha D. Leonor são construídas e comunicadas pela mon-

11 Após

pesquisa aturada, não foi possível localizar as fotografias originais deste pavilhão nem identificar o seu autor. Estas imagens encontram-se publicadas na revista Binário, n.º 7, Outubro de 1958, pp. 21-23. 12

Accademia gallery, Venice, 1945-1959: “The placing of each work at the level of the observer’s gaze shows the architect’s constant efforts to establish a direct relationship between the object and its observer. The dual necessity of obtaining the greatest possible exhibition surface and carrying out the work with the simplest of solutions and materials was decisive […]” (Orsini 2007, 52).

FIG. 11 – Exposição de Arte Portuguesa, Londres, 1955-1956: Sala VI – séc. XVIII. Conjunto do reinado de D. João V. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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Para aprofundar o tema da montagem de exposições V. Celant 1996 e Serota 1996.

tagem da exposição. Esta parte sempre de uma estratégia discursiva que está profundamente envolvida na cultura visual e política do seu contexto geográfico e temporal. A montagem expositiva vai, por isso, marcando, ao longo dos anos, os diversos modos de apresentação e recepção do objecto artístico, sendo, por isso, uma manifestação cultural com uma discursividade erudita e uma posição artística13. A Rainha D. Leonor, apesar de distanciada da exposição de Londres por apenas dois anos, é enquadrada, como se referiu, por uma nova situação institucional. Aponta também, de forma explícita, para o desenvolvimento económico e industrial do pós-guerra, favorável ao incremento do Design em Portugal, através do investimento no “desenho” de autor dos seus dispositivos. Nos anos 50, em Portugal, a concepção de exposições era para os arquitectos e artistas um campo experimental. Tal como percebemos na Exposição da Madre de Deus, o equipamento museográfico não é encarado como mero suporte, mas é também considerado objecto artístico em si mesmo e agente/mediador entre obra e público (veja-se a diversidade de “suportes” desenhados por Conceição Silva para expor a pintura). Em 1958, a revista Binário sintetiza deste modo as opiniões dos seus colaboradores relativamente à importância das exposições: “a crença nas possibilidades de divulgação cultural das exposições e da necessidade que existe de mostrar sintèticamente e o mais profundamente possível, o melhor que um povo, um país, uma empresa ou um homem podem produzir, conter, criar e mesmo à vezes destruir”. Neste número da Binário, Sena Silva enumera três tipologias de exposições: “A apresentação simples de coisas “que se deixam observar”. A apresentação ordenada de imagens e textos, com aspecto informativo ou didáctico.

FIG. 12 – Exposição de Arte Portuguesa, Londres, 1955-1956: Sala IV – Renascença. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

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A organização de um espaço praticável, onde a utilização de efeitos dinâmicos de natureza diversa determina no visitante uma sucessão de emoções análogas à do espectáculo teatral ou cinematográfico” (Silva 1958, 1). Sena da Silva descreve esta última tipologia do seguinte modo: “[…] a exposição aparenta-se ao espectáculo teatral ou cinematográfico, em que o visitante é espectador e actor: exige uma história, uma planificação, uma encenação e um controle lúcido de uma diversidade enorme de efeitos emocionais. Este conceito de exposição implica um trabalho de grupo tão vasto como o da obra cinematográfica […] e evidentemente, uma entidade dirigente, coordenadora, responsável, com o talento do chefe de orquestra, do realizador cinematográfico ou do general. […] Aos imensos recursos da linguagem plástica contemporânea, das técnicas de construção, da iluminação, do som estereofónico, etc., terá que corresponder a existência de ideias” (Silva 1958, 1). A reunião na Madre de Deus de obras de arte inseridas em núcleos, mas respirando autonomamente, permitindo ao visitante uma relação mais íntima; todos os elementos contextualizadores e iconográficos, também eles individualizados; os ritmos provocados pelos suportes expositivos e divisões do Mosteiro; a criação ou valorização de momentos de pausa (como o claustro com a recriação dos túmulos de D. João I e D. Filipa, a Sala de Santo António e o Coro da Igreja); os efeitos de luz, a música e o conforto decorrente do aquecimento do espaço - tudo isto terá criado um contexto cenográfico que desencadeou também uma impressão emotiva. Na apreciação da exposição da FCG, porém, poucos conseguiram reflectir concretamente sobre a sua montagem. Frederico George, autor da instalação da Exposição Henriquina (1960), encontra na construção estetizada d’ A Rainha D. Leonor um ponto negativo: “se por um lado o ambiente do velho convento de Nossa Senhora de Madre de Deus foi enquadramento de aproximação romântica com o tema, resultando estèticamente magnífica, com momentos extraordinários de beleza, certamente dificultou a clareza da expressão do que havia que contar – a nítida ideia da figura da rainha D. Leonor, e a indispensável concatenação dos vários elementos constitutivos. É evidente ser tarefa difícil fazer coincidir as necessidades funcionais de um convento com as de uma exposição comemorativa de uma personagem ainda ligada em parte da sua vida a esse edifício” (George 1959, 40 e 42). José-Augusto França estabelece, por sua vez, o contraste entre as exposições oficiais anteriores e o trabalho de Conceição Silva, marcando um ponto de viragem na apresentação do passado histórico e artístico: “passado já o tempo novecentesco do bric-a-brac museográfico, ficara na massa do sangue dos nossos decoradores aquele complicado estilo “mundo português”, que reduzia toda a obra de arte ao nível da curiosidade, se não ao do “slogan”. A dignidade da peça desaparecia na medida em que era falsamente valorizada, nenhuma nudez de parede a recebia, nenhum espaço próprio lhe era atribuído. O arquitecto Conceição Silva, montando a exposição da Madre de Deus, e certamente com a aprovação criteriosa dos seus organizadores, realizou sistemàticamente, suponho eu que pela primeira vez, uma apresentação visualmente actualizada de quadros de cavalete e de painéis murais. Desejando criar

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FIG. 13 – Exposição Henriquina, Lisboa, 1960: Sala dos envolventes. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.


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FIG. 14 – Exposição Henriquina, Lisboa, 1960: Sala do Renascimento, com Custódia de Belém ao centro. © Foto col. Estúdio Mário Novais, FCG-BA.

relações de espaço entre as peças, o decorador soube que esse espaço não se define só nas duas dimensões da parede, mas tem de ser considerado volumetricamente” (França 1959). A Rainha D. Leonor tornou-se paradigma de uma certa tipologia de exposições – a que pretendia evocar um período e uma personalidade históricos. Neste tipo de mostras, ao contrário das exposições exclusivamente de artes plásticas, o modelo não é o espaço neutro do cubo branco, mas uma envolvência cenográfica consistente, ao mesmo tempo informativa e emotiva. Não se trata de recriação de ambientes, mas de uma abordagem contemporânea sobre o universo iconográfico de uma época anterior. Podemos, deste modo considerar, que, dentro deste novo paradigma expositivo, a descendente mais directa da mostra de 1958 foi a exposição evocativa do Infante D. Henrique (1960), desenhada por Frederico George e promovida pela Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique. No caso desta exposição, realizada no complexo do Museu de Arte Popular, existiam poucos objectos artísticos e utilitários relacionados directamente com o Infante ou com a acção marítima que desenvolveu. O aprofundamento dos testemunhos textuais e iconográficos permitiu, porém, criar uma mostra que desenvolveu audaciosamente um programa de montagem global, arquitectónico, artístico e de design, que A Rainha D. Leonor preconizava. Esse programa é claramente enunciado na introdução do catálogo da exposição: baseada nas “penetrantes sugestões artísticas que nos põe debaixo dos olhos, sucessivamente, em quadros e imagens de rica inspiração e perfeita execução, as figuras e factos dominantes da epopeia dos Descobrimentos Portugueses”, a Exposição Henriquina “é, portanto, mais uma magnífica demonstração das brilhantes possibilidades dos nossos arquitectos e artistas plásticos cuja reacção individual, no desenvolvimento dos temas desta Exposição, não deixa de constituir uma bela homenagem, ao Infante e à sua obra, dos artistas portugueses” (Exposição Henriquina 1960, 15). A Rainha D. Leonor foi a segunda grande manifestação pública da FCG, no campo das artes plásticas, após a I Exposição de Artes Plásticas, em Dezembro de 1957. A Fundação analisa desta forma aquela mostra evocativa: “a exposição “A Rainha D. Leonor” […] definiu outra linha de acção de grande alcance. Apontava a um estudo criterioso do passado e da divulgação, não menos criteriosa, dos seus resultados. […] foi também o sinal da preocupação com a salvaguarda do nosso património, pois que, além do seu custo, houve uma comparticipação financeira para a recuperação do monumento, a que ficaram ligados, também, os primeiros esforços da Fundação para a criação de um Museu, a instalar no edifício, dedicado ao Azulejo” (Fundação Calouste Gulbenkian 1983, 142). Para além de apontar para outra área de intervenção da FCG, esta exposição serviu também para criar pontos de diferenciação entre as actividades expositivas anteriormente realizadas, contribuindo, assim, para a construção de uma imagem própria da Fundação. Tendo em conta o escasso tempo de preparação d’ A Rainha D. Leonor, que, à semelhança da I Exposição de Artes Plásticas, demorou pouco mais de um ano

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a organizar, pode-se admitir a vontade da Fundação em, logo após a sua criação (1956), iniciar uma projecção pública cuidadosamente premeditada14. A FCG começou por construir a sua identidade através das decisões que tomou sobre a organização das exposições de 1957 e 1958. Desde logo ressalta o facto de, na montagem da I Exposição de Artes Plásticas e da exposição na Madre de Deus, terem intervido arquitectos que dominaram o processo de concepção dos equipamentos museográficos. No caso específico d’ A Rainha D. Leonor, investiu-se numa equipa com experiência reconhecida na montagem de exposições. Esta exposição poderá ter influenciado as apresentações expositivas da colecção formada por Calouste Gulbenkian e é possivel integrá-la “numa linha de ensaios museográficos conducentes a soluções ulteriormente adoptadas nas galerias de exposição permanente do Museu Calouste Gulbenkian” (Lapa 2009, vol. 2, 43). Posteriormente, em 1959, Conceição Silva foi convidado a participar no “Concurso dos estudos de concepção dos edifícios da sede e do museu da Fundação Calouste Gulbenkian”, integrado, numa primeira “versão”, na equipa de Alberto Pessoa, Ruy Athouguia e Pedro Cid. Em 1958, apostou-se também numa divulgação ampla na imprensa, na rádio e na televisão, que testemunharam a inauguração da exposição pelo Presidente da República e a visita do Presidente do Conselho, após a sua abertura ao público. Em Janeiro, quando A Rainha D. Leonor encerrou, reteve-se a imagem de uma Fundação capaz de mobilizar as elites políticas e intelectuais e a população em geral, que aos milhares acorreu a Xabregas. O “espectáculo” inédito que a montagem de Conceição Silva proporcionou, mitificou a figura da Rainha “Perfeitíssima”, que, pela sua diversificada acção, se confundiu com a instituição que a homenageava. Ficavam, portanto, os bons presságios de patrocínio artístico e de apoio social.

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Exposição Henriquina. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960: 15. Fecha no domingo. A Exposição “A Rainha D. Leonor”. [5 de Janeiro de 1959]. Fundação Calouste Gulbenkian: Arquivo do Serviço de Belas Artes – SBA 15335.

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V. TOSTÕES 2006, 38-40, 56-57.


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FERNANDES, Maria Amélia Bizarro Leitão. 2001. A Exposição de Arte Portuguesa em Londres 1955/ 1956: “A Personalidade Artística do País”. [Texto Policopiado]. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Tese de Mestrado. FIGUEIREDO, José de. 1915. O Museu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa. Separata de Atlântida, n.º 2: 152 op. cit. Fernandes, Maria Amélia Bizarro Leitão. 2001. A Exposição de Arte Portuguesa em Londres 1955/ 1956: “A Personalidade Artística do País”. [Texto Policopiado]. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Tese de Mestrado: 137. FRANÇA, José-Augusto. 1959. Notas e lembranças - N.º 18. Diário de Lisboa. 12 Março 1959.

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Uma exposição evocativa da rainha D. Leonor organizada pela Fundação Gulbenkian. Diário de Lisboa. 6 Dezembro 1958.

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Resumo O Museu Nacional do Azulejo (MNAz) comemorou em 2009 o quinto centenário da fundação do Mosteiro da Madre de Deus através de uma exposição que se intitulou Casa Perfeitíssima. 500 Anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus. Este texto visa apresentar uma reflexão sobre o plano das comemorações que assinalaram esta data, partindo do colóquio que antecedeu a exposição e que foi fundamental para os conteúdos do respectivo catálogo, como a concepção do projecto expositivo, soluções museográficas encontradas e o conteúdo dos diferentes núcleos.

palavras-chave Museu Exposição Projecto expositivo Museografia

Abstract In 2009 the Museu Nacional do Azulejo (MNAz) [National Museum of Tiles] commemorated the five hundred years of the foundation of the Monastery of Madre Deus with an exhibition entitled The Most Perfect House. 500 Years of the foundation of the Monastery of Madre Deus. This text intends to be a reflection on the plan of commemoration that marked this date, starting from the conference that preceded the exhibition and was essential for the contents of the respective catalogue, as well as the conception of the exhibition, museum solutions and contents of the different rooms.

key-words Museum Exhibition Exhibition project Museum studies


OS CAMINHOS PARA A CASA PERFEITÍSSIMA ALEXANDRA CURVELO Técnica Superior do Museu Nacional do Azulejo, comissária científica e executiva da exposição; Professora Auxiliar convidada do Departamento de História da Arte da FCSH/UNL e investigadora integrada do Centro de História de Além-Mar (FCSH/UNL). MARIANO PIÇARRA E LUÍS AFONSO O Designer Mariano Piçarra, da Fundação Calouste Gulbenkian, foi o responsável pelo Projecto museográfico e Coordenação do Design da exposição, tendo cabido ao Atelier afonsocarvalho a produção da mesma.

Comemorou-se em 2009 o quinto centenário da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, edifício que se encontra classificado como monumento nacional e que integra actualmente, e desde 1983, o Museu Nacional do Azulejo (MNAz). Nas actividades previstas para o MNAz em 2009, este evento assumiu, naturalmente, um destaque particular. Era intenção celebrar a data da fundação, o que ficou registado através do postal ilustrado editado pelos CTT, mas, acima de tudo, delinear um programa de acções, a culminar numa exposição, que colocasse em evidência as mais recentes investigações desenvolvidas em torno da figura de D. Leonor e da sua Casa, na qual o mosteiro se integrava como um dos núcleos fundamentais. A história factual é conhecida: o mosteiro de Xabregas, ou Enxobregas, como também é denominado, foi fundado em 1509 por iniciativa da Rainha D. Leonor (1458-1525), mulher de D. João II e irmã do Rei D. Manuel I. Cedo este espaço se afirmou como um lugar de excepção no contexto português, desde logo pela notabilidade de algumas das figuras que lhe ficaram associadas, começando pela da sua fundadora, personagem ímpar no universo intelectual e mecenático da Europa de então, assim como com as obras de arte nele reunidas. Inicialmente pensado para receber um número reduzido de freiras (foram sete as religiosas transferidas do Convento de Jesus de Setúbal para a Madre de Deus em 1509), o número de pedidos de ingresso, que se traduziu na contabilização de 42 freiras logo em 1525, teve um impacto imediato na reorganização do mosteiro e da vida conventual. Em causa estava uma vivência comunitária que, por ser feminina, se pautava por particularidades que se reflectiam nos respectivos estatutos (observância da Ordem de Santa Clara).

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D. Leonor, modelo de virtudes cristãs, fundadora das Misericórdias e uma das responsáveis pela construção de instituições hospitalares como o Hospital do Pópulo, nas Caldas da Rainha, e o Hospital real de Todos-os-Santos, em Lisboa, foi igualmente promotora da introdução da imprensa em Portugal. A ela se deve a encomenda de uma série de obras, tanto no reino, como na Europa do sul e do norte. São peças de pintura, iluminura, cerâmica, têxteis e escultura, que aliam à qualidade técnica uma riqueza iconográfica e de sentido que importa sublinhar no entendimento da figura da própria Rainha e do lugar a que ficou associada. Foi precisamente com vista à apresentação e discussão de ideias sobre este universo humano e patrimonial, que se organizou um colóquio que decorreu entre os dias 21 e 23 de Maio de 2009 no MNAz. O título dado, o mesmo que veio a ter a exposição e respectivo catálogo, remetia precisamente para este enquadramento: Casa Perfeitíssima. 500 Anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus. A palavra “Casa”, na acepção coeva do termo, evoca o conjunto de pessoas e de bens associados a D. Leonor, referida na Crónica Seráfica de Frei Jerónimo de Belém e no texto do Padre Mestre Jorge de S. Paulo dedicado à história do Hospital das Caldas como Rainha Perfeitíssima. Modelo de virtudes cristãs e complemento da acção régia de D. João II, cognominado o Príncipe Perfeito, para ela foram reservados os superlativos, agora parcialmente reapropriados e lembrados. A estruturação dos painéis das comunicações teve como fio condutor aquele que veio a modelar, em larga medida, a própria narrativa expositiva e o respectivo catálogo, tomando como ponto de partida para discussão e reflexão a figura da Rainha e do enquadramento religioso que pautou o seu tempo, para passar à discussão da cultura material que lhe está associada. Porém, e ao contrário do enquadramento temporal que veio a marcar a exposição, “emoldurada” pelo arco cronológico da vida da monarca, no colóquio houve a preocupação de atender aos momentos subsequentes da história do mosteiro e de uma ocasião comemorativa com impacto a nível nacional: o do V centenário do nascimento da Rainha, celebrado em 1958. Com um programa de comemoração que começou a ser concebido e trabalhado em Janeiro de 2009, a escassíssimos 11 meses da abertura da exposição, a realização do colóquio assumiu uma importância acrescida, tendo sido a partir das comunicações então apresentadas que se preparou o catálogo bilingue (Português/Inglês), que contou com a colaboração de especialistas portugueses e estrangeiros, tanto do mundo académico como profissionais de museus. O repto era duplo: produzir um catálogo que trouxesse, do ponto de vista da investigação, novas propostas de interpretação e de leitura da vida e do contexto cultural de D. Leonor, assim como inserir um conjunto importante de obras que por vicissitudes várias não puderam ser incluídas na exposição. Tratava-se, pois, de produzir um registo escrito e visual que traduzisse tanto quanto possível o programa comemorativo desenvolvido pela equipa do MNAz e que, em termos da correspondência expositiva, visava ultrapassar a memória material das peças exibidas.

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Estruturado em duas partes complementares, o catálogo apresenta um primeiro conjunto de dezasseis textos distribuídos por três secções: “D. Leonor, a «Rainha perfeitíssima»”; “O sítio de Enxobregas: Arquitecturas e Vivências” e “O Mosteiro da Madre de Deus: A Casa Perfeitíssima”. Segue-se o “Catálogo”, ou as entradas de peças, incluindo, como referido, as que não foram expostas, mas cuja associação ao mosteiro e/ou à rainha considerávamos importante para uma compreensão mais abrangente do objecto de estudo e de exposição. Algumas das novidades divulgadas resultaram não apenas da investigação arquivística e bibliográfica realizada nas últimas décadas, como do contributo trazido pelos exames efectuados no âmbito das intervenções de conservação e restauro levados a cabo pelos profissionais desta área. Se o catálogo reflecte inequivocamente a estreita relação da História e da História da Arte com a Conservação e Restauro, pretendeu-se que o visitante da exposição tivesse igualmente consciência do trabalho conjunto realizado e da importância da documentação a ele associada. Nessa medida, e para dois casos específicos (ambos pinturas), colocaram-se reproduções de material fotográfico (um raio-X num caso e uma fotografia no outro), chamando-se a atenção para os dados mais importantes a tomar em consideração no texto que compunha a legenda alargada que acompanhava cada uma das peças expostas. Efectivamente, constatou-se a importância da inclusão, a par da habitual ficha técnica relativa à identificação sumária dos objectos, de um texto de acompanhamento constituído por um ou dois parágrafos com informação que fornecesse ao visitante dados adicionais de interpretação e leitura.

A exposição A exposição, que inaugurou dia 9 de Dezembro de 2009 com data de encerramento inicialmente previsto para 11 de Abril de 2010, mas que veio a ser prolongada até dia 13 de Junho, compôs-se de cerca de meia centena de peças provenientes, todas elas, de instituições nacionais: da colecção do próprio MNAz, da Biblioteca Nacional de Portugal, do Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa / Mosteiro de São Vicente de Fora, da Fundação da Casa de Bragança / Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, Museu Carlos Machado, Museu Grão Vasco e Museu Nacional de Arte Antiga. Esta última instituição, actualmente detentora da grande maioria do património do primitivo Mosteiro da Madre de Deus, assumiu por esta razão um papel preponderante, tanto enquanto entidade emprestadora, como elo fundamental no diálogo estabelecido com parte do seu corpo técnico na discussão de ideias e colaboração efectiva no colóquio e catálogo realizados. Retomando parcialmente a grelha de apresentações adoptada no colóquio, a exposição estruturou-se em quatro núcleos diferenciados: Devotio Moderna, Casa Perfeitíssima, Corte e Religião e Um Mosteiro de Clarissas. O primeiro, correspondente a uma sala onde se reuniram livros, pintura, escultura e uma tapeçaria, constituindo aquele que se pautou por uma maior diversidade de suportes,

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Primeiro núcleo © Mariano Piçarra.

visava remeter para o contexto de um movimento espiritual que marcou o final da Idade Média e o início da época moderna na Europa católica. Apelando à procura de uma relação mais directa dos crentes com Deus, a Devotio Moderna antecipou assim o período de apogeu, nos séculos XVII e XVIII, de uma religiosidade monástica assente na penitência, na contemplação e na união espiritual, elementos distintivos da piedade que caracterizou o quotidiano das freiras que habitaram o mosteiro da Madre de Deus. Os objectos que aqui se reuniram surgiam como testemunho e reflexo de uma religiosidade cultivada por D. Leonor, devota senhora, profundamente católica, que se entregava às emoções de uma espiritualidade cristológica. O segundo núcleo, inserido na “Sala Árabe” ou “Capela da Rainha”, um espaço do museu contíguo à Igreja e assim distanciado das salas do piso térreo e do primeiro andar onde se localizavam as restantes secções da mostra temporária, funcionou como uma área relativamente independente e que foi, frequentemente, visitada no final do percurso expositivo. Ocupando uma sala simbolicamente importante do edifício do primi-

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tivo mosteiro, uma vez que, de acordo com uma fonte documental relevante, é provável que tenha estado na origem da escolha deste sítio para a fundação do cenóbio, este núcleo recebeu o mesmo título da exposição: Casa Perfeitíssima. As peças que o constituíam – a emblemática pintura “Panorama de Jerusalém” e quatro tondi da oficina Della Robbia com a representação dos Evangelistas – foram expostos já tomando em consideração a musealização deste espaço mesmo após o término da exposição. Associando uma obra da Europa do norte, resultado de uma oferta do Imperador Maximiliano I da Áustria a D. Leonor, a uma encomenda da monarca portuguesa a uma das mais importantes oficinas de cerâmica da Florença renascentista, procurou-se chamar a atenção para o carácter de singularidade da própria D. Leonor, sobretudo enquanto mecenas das artes e uma das grandes encomendadoras do Portugal de então. Figura poliédrica, com uma existência pautada entre a vivência da Corte e uma reclusão monástica, duas realidades a que se fez corresponder os dois núcleos finais – Corte e Religião e Um mosteiro de clarissas –, D. Leonor teve uma vida que atravessou parte do reinado de D. Afonso V, todo o reinado de D. João II e de D. Manuel I e o início do de D. João III, o que lhe permitiu assistir a mudanças radicais no reino, coincidindo com um momento fundamental da expansão ultramarina portuguesa. À data do seu nascimento, dava-se a tomada da praça marroquina de Alcácer Ceguer. Sessenta e sete anos mais tarde, em 1525, já a presença portuguesa tinha alcançado o Mar da China. Os ecos materiais dos contactos estabelecidos com outras culturas materializaram-se também no património reunido no mosteiro leonorino ainda em vida da rainha, seja através de peças de porcelana hoje desaparecidas ou, datadas de um período mais tardio, obras provenientes da antiga Pérsia e Ceilão. Esta vida longa, propiciou, também, o encontro com personagens maiores do universo cultural de então. O interesse da soberana pela vida intelectual reflecte-se numa série de acções que lhe estão associadas, tanto por via da promoção do teatro de Gil Vicente, como pela introdução da imprensa em Portugal, a importação de obras de arte e o mecenato artístico interno. Figura importante no universo intelectual e mecenático europeus, D. Leonor foi um elo fundamental da Corte portuguesa com outras cortes europeias. O Mosteiro da Madre de Deus e o Paço de Santo Elói, onde se fez rodear da mais fina elite intelectual da época, formavam a sua própria “Casa”, tendo sido pontos nodais importantes de dinâmica civil e religiosa do reino no início do século XVI. Paralelamente à exposição, e procurando lembrar esta linha de acção fundamental, realizou-se uma leitura encenada da peça vicentina Auto da Sibila Cassandra, num acção conjunta do MNAz, Teatro Nacional D. Maria II e Conservatório Nacional. A representação teve lugar na igreja da Madre de Deus a 17 de Dezembro de 2009, quase em vésperas de Natal, à semelhança do que havia sucedido há 500 anos, quando a pedido de D. Leonor, Gil Vicente escreveu um dos seus mais crípticos textos com posterior representação para as freiras do cenóbio. A ambivalência de um quotidiano monástico no contexto de um mosteiro feminino de reclusão em que a Corte se manifestava mesmo através da presença física de alguns dos seus membros, como foi o caso de D. Leonor de Áustria, 3ª mulher de D. Manuel

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Segundo núcleo © Mariano Piçarra.

(cujo retrato de Joos van Cleve abria o 3º núcleo), constituiu o pano-de-fundo do espaço do 1º piso do museu que acolheu as duas últimas secções da exposição. Para a constatação e observação do contraste entre a pintura religiosa em que o gosto e moda da Corte estão plasmados na forma como as figuras (sobretudo de uma hagiografia feminina) se encontram ricamente trajadas e ataviadas e as obras pictóricas de iconografia sobretudo franciscana, foi fundamental o contributo da equipa que concebeu, projectou e produziu a museografia da exposição.

O projecto arquitectónico Transformar “um tempo” e “um espaço”, num propósito de um Onde e num Como. Todo e qualquer problema tem uma solução. Encontrar uma resposta adequada passa sempre por um diagnóstico correcto. Há problemas mais ou menos complicados e/ou complexos, mas em principio todos eles têm solução. Se assim não for, por definição, não podem ser problemas.

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A vida profissional (e não só) coloca-nos constantes desafios, que vão sendo ultrapassados e resolvidos. Essa experiência sedimenta um leque de respostas e soluções, sobre as quais reflectimos. Esse trabalho de redução e (re)alinhamento desse(s) saber(es), sedimenta um território. Melhor, esta praxis é a transformação operacional num mapa de saberes. Este território é um campo de soluções, de certezas que ganham corpo e autonomia. No limite são “identidades” que de uma forma mais limitada podem ser copiados e repetidos, mas de um modo mais exigente e inteligente constituem-se como alavancas de outra soluções. Para além desta referência autofágica, existe uma outra fonte que se a tivesse que traduzir num movimento, chamar-lhe-ia – centrípeto. É neste “lugar” que se encontram saídas, que se “cozinham” soluções. Entre estes dois pólos existem uma colaboração estreita e uma rivalidade: Aplicar soluções testadas ou inovar? Jogar com certezas ou correr riscos? É nesta tensão que se produzem novos conteúdos e alargam perspectivas. Para lá de uma valência técnica/científica, requisitos de outra ordem se colocam; mais subtis, não tão contabilizáveis, nem mensuráveis. É parte integrante do projecto todo um leque de valores e de dados culturais: contexto histórico, espaço cultural, articu-

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Terceiro e quarto núcleos © Mariano Piçarra.

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lação com outras manifestações, etc. Pede-se a uma exposição que pelo menos cumpra estes requisitos – testemunhe o espaço e justifique o tempo que ocupa. Outras, para o melhor ou pior, não são “daqui”, nem de “agora”. Voltando ao caso concreto da exposição “A Casa Perfeitíssima”, desta vez, não para tecer considerações vagas, mas sim para dar uma resposta concreta: organizar a exposição comemorativa dos 500 Anos da Fundação do Mosteiro Madre de Deus. O ponto de partida pode ser estruturado como uma equação – existem premissas fixas e variáveis. Como fixas temos o espaço e o guião, como variável o projecto. Disponibilizaram-se para esta exposição as duas salas que o Museu do Azulejo tem vocacionadas para as exposições temporárias e um espaço que foi a antiga Capela de D. Leonor. Como se pode observar, as salas não são contíguas, e os níveis e as distâncias a que se encontram umas das outras, bem como a sua articulação, não são as mais favoráveis para construir um percurso e articular um programa. Este era um factor incontornável e um dado a considerar da maior importância para o projecto. O guião era composto por quatro núcleos: I-Devotio Moderna, II-Casa Perfeitíssima, III-Corte e Religião e IV-Um Mosteiro de Clarissas. Sabendo à priori que o segundo núcleo seria para ser instalado em definitivo na antiga capela de D. Leonor, ficamos deste modo com o primeiro, segundo e quarto núcleos para instalar nas duas salas restantes. Projectos desta natureza têm de respeitar na íntegra o guião. Este é um fio condutor impossível de ser interrompido ou pervertido, pois constroem-se narrativas muito fechadas. Partindo deste principio, ficamos com três núcleos para distribuir em duas salas. Colocavam-se duas hipóteses: primeira - instalar os núcleos I e III no piso térreo e destinar o piso superior ao IV núcleo, segunda hipótese - instalar o núcleo I no piso térreo e destinar o piso superior aos núcleos III e IV. Nunca foi colocada a possibilidade de se dividir o terceiro núcleo pelos dois espaços. Como já foi referido, existe uma estrutura narrativa que amarra e separa os objectos de uma forma muito forte, estes não podem ser desarticulados sob pena de se perder o sentido da exposição. É com estas premissas que se tem que encontrar uma solução – esta praxis profissional tem um nome: museografia. A matéria-prima de que dispomos é espaço, cor e luz. Quanto mais complicado e complexo for um programa, maior o esforço de integração e dialogo entre estes dois pólos: museologia/museografia. Quando se encontra uma solução que viabiliza um problema, não nos podemos esquecer que é uma possibilidade entre outras. Não serão infinitas, mas também não as posso contabilizar. Assim, o importante é que o projecto resulte num discurso inteligível e num corpo coerente. Se se conseguir agregar outros valores, tanto melhor. Perante a natureza efémera destes eventos, coloca-se a questão: “- O que fica?” Penso que o problema tem sido mal colocado. A pergunta a que se tem que encontrar resposta é: “- Onde fica?”

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Resumo A exposição é uma tarefa eminentemente museológica mas, desde sempre, desenvolveu uma espécie de autonomia propositiva, relacionada quer com uma celebração festiva, vocacionada para os grandes públicos (por exemplo, as grandes exposições mundiais, inauguradas em Londres, em 1851), quer com a divulgação de investigações específicas, predominantemente originais. Neste caso, podemos designá-las ‘exposições de investigação’. Este foi o âmbito de: 50 anos de arte portuguesa, apresentada na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2007, e Anos 70. Atravessar fronteiras, apresentada no Centro de Arte Moderna da mesma Fundação, em 2009. Na reflexão que se segue, adoptei privilegiar a narrativa do processo do trabalho, fruto de experiência adquirida empiricamente e das dinâmicas criadas nas equipas pluridisciplinares que conduziram os projectos à sua realização.

palavras-chave Exposição de investigação Arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian Arte contemporânea Livros de artista Rematerialização dos objectos artísticos História aberta

Abstract An exhibition is eminently a task that belongs to museums but has always developed a sort of autonomy, related to a festive celebration, targeted to larger audiences (of which the great world exhibitions, which began in London, in 1851, are examples) either with the dissemination of a specific research, predominantly original. In this case, we may call them ‘research exhibitions’. This is the context of: 50 years of Portuguese art, shown at the Calouste Gulbenkian Foundation,in 2007, and The seventies. To cross frontiers, shown at the Centre of Modern Art of the same Foundation, in 2009. In the text that follows I have tried to emphasize the narrative rather than the conceptual context of the work which came from the empirical experience and the dynamics between multitasking teams that brought these projects to a close.

key-words Research exhibition Archives of the Calouste Gulbenkian Foundation Contemporary art Artists’ books New materials of the artistic objects Open History


INVESTIGAR PARA EXPOR. DUAS EXPOSIÇÕES NA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 2007-2009 RAQUEL HENRIQUES DA SILVA Instituto de História da Arte, FCSH/UNL

“(…) Non seulement il n’y a pas de neutralité en matière de muséographie, mais il ne peut y avoir non plus de regard innocent de la part du spectateur: les oeuvres d’art ne se présentent jamais d’elles mêmes à un regardeur immédiatement disponible. (…)” Jérôme Glicenstein, 2009 : 9

FIG. 1 - Arquivo do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian.

Inaugurada em Outubro de 2009, a exposição Anos 70. Atravessar fronteiras começou a ser preparada no início de 2008, devendo ser entendida num conjunto, operativo e propositivo, com a exposição 50 anos de arte portuguesa, inaugurada em 2007. Ambas decorreram na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), embora em espaços diferentes: a de 2007, esteve patente na sala principal do edifício sede da FCG; a de 2009, no Centro de Arte Moderna (CAM) da mesma fundação. Ambas foram propostas, aprovadas e acompanhadas por duas importantes chefias da FCG: Manuel Costa Cabral, Director do Serviço de Belas-Artes e Jorge Molder, então Director do CAM. Finalmente, ambas tiveram o mesmo comissariado (eu própria que agreguei a mim, como co-comissárias, a Ana Filipa Candeias e a Ana Ruivo) e, com variantes, a mesma equipa de produção de que foram peças chaves a Rita Fabiana e a Arquitecta Cristina Sena da Silva que articularam a investigação com todos os serviços da FCG, com os artistas e coleccionadores.

50 anos de arte portuguesa

FIG. 2 - Esquema da organização da exposição 50 anos de arte portuguesa.

O ponto de partida deste evento foi conjuntural (celebrar, em 2007, os 50 anos da FCG) e estrutural (investigar e estudar, com a sistematicidade possível o Arquivo do Serviço de Belas-Artes da FCG e, na medida do possível também, pô-lo em confronto produtivo com a colecção do CAM). Para melhor perceber a espécie de missão que nos foi confiada, é indispensável esclarecer que aquele Arquivo reúne, desde 1957 até hoje (trata-se de um Arquivo aberto) toda a correspondência com artistas e instituições culturais, muito diversas, que requereram, e obtiveram ou não, apoios financeiros da FCG. Para a exposição, foi seleccionado o vastíssimo conjunto da correspondência referente

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à concessão de bolsas para o estrangeiro para aperfeiçoamento de formação, requeridas por artistas plásticos, muito especialmente os relatórios regulares que, obrigatoriamente, os bolseiros têm de apresentar ao Serviço de Belas-Artes (SBA). Este trabalho, realizado com bastante sistematicidade, ocupou as três investigadoras durante o ano de 2006, e a parte possível do ano de 2007, e teve o apoio inestimável da equipa de documentalistas que, simultaneamente, estavam a submeter aquela vastíssima documentação a tratamento arquivístico, antes inexistente. Como tive a oportunidade de referir no catálogo da exposição, este foi um dos mais belos trabalhos em que participei. Foi possível descobrir, em toda a acepção da palavra, não só importantes textos escritos por artistas, mas também obras de arte inseridas ou anexadas aos relatórios, uns e outras em grande parte inéditos. Em alguns casos, a escrita e os trabalhos estão de tal modo entrosados, que os relatórios, eles próprios, são objectos artísticos, integráveis na categoria, há muito reconhecida, de ‘livros de artista’1. A riqueza deste arquivo, bem como a sua vastidão e complexidade, recomendariam que o seu estudo e inventariação, desenvolvidos do ponto de vista da História da Arte, fosse uma tarefa em si, com meios humanos e tempo adequados. No entanto, no trabalho em curso, não foi isso que aconteceu: o objectivo de apresentar uma exposição, menos de dois anos após o início do projecto, obrigou a opções difíceis, sobretudo a de restringir acentuadamente o âmbito da pesquisa que, de modo nenhum, pôde ser concluída. Mesmo assim, o que se mostrou, mais na exposição do que no catálogo, foi reconhecido como contributo importante para a recente História da Arte em Portugal e dotou o SBA de justificação suficiente para poder programar e implementar o seu estudo sistemático.

FIG. 3 – 50 anos de arte portuguesa. Piso 0. Entrada da exposição. © FCG.

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1 Ver, como abordagem inicial, http://www. slq.qld.gov.au/whats-on/exhibit/online/ ab/what_is_an_artists_book (consultado: 3 de Setembro de 2010).

FIG. 4 - 50 anos de arte portuguesa. Piso 0. Núcleo Espaço/Lugares. © FCG.


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FIG. 6 - 50 anos de arte portuguesa. Piso 01. Cronologia. © FCG.

FIG. 5 - 50 anos de arte portuguesa. Piso 0. Núcleo Meios e processos. © FCG.

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Esta ideia, predominantemente poética, é devedora, na minha reflexão pessoal, de numerosas leituras (Roland Barthes à cabeça) mas posso exprimi-la em bibliografia, através de um dos livros mais fascinantes que já li sobre um projecto expositivo: Hubert Damisch, L’amour m’expose. Gand: Yves Gevaert, 2000. 3 Ver, para mais exaustiva descrição do fazer de uma exposição, a excelente obra de Jean Davallon, L’exposition à l’oeuvre. Stratégies de communication et médiation symbolique. Paris: L’Harmattan, 1999.

Esta é a primeira questão que aqui interessa relevar: muitas vezes, as exposições temporárias criam possibilidades de investigação que de outro modo não existiriam, nomeadamente por questões de financiamento. No entanto, o objectivo ‘exposição’ impõe também pesados condicionamentos à investigação, impedindo, como foi o caso, o seu pleno desenvolvimento e conclusão. É uma situação ambivalente que deve ser gerida com as máximas possibilidades positivas de cada situação particular. Mas não escondo que essas exigências precisas – escolher artistas e obras para uma exposição – geram uma dinâmica específica à própria investigação que se tem de tornar, mais do que é habitual, um permanente exercício de conceptualização. Com o que quero dizer que ‘pensar a exposição’ se torna também, numa pluralidade de direcções, ‘pensar a investigação’. No essencial, ‘pensar a exposição’, começa por ser um território desejante2. Dar a ver o que alguns (ou todos) já conhecem, revelando esse saber através do uso da imaginação e da provocação; ou dar a ver o que não se conhece, não como narrativa relativamente estabilizada (essa é, por princípio, a função do catálogo) antes como percurso de descoberta, apelador dos sentidos, tanto ou mais do que da razão – eis o próprio da exposição temporária que convoca a efemeridade da festa: vemos ali, junto, o que depois voltará a ser separado, sendo que o ‘junto’ não implica só coordenação ou subordinação, separação, justaposição ou substituição, mas hipóteses de fruição, descoberta e aprendizagem, definitivamente marcados pelo nomadismo de cada visitante3. Mas, como sempre acontece com a gestão dos desejos, a liberdade é um lugar determinado. Apesar das suas particularidades, uma ‘exposição de investigação’ (como é

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o caso das que estou a evocar) tem que ter princípios claramente enunciáveis. Em 50 anos de arte portuguesa, as comissárias decidiram que a norma para a selecção dos artistas seria possuírem processos bem documentados no arquivo do SBA, e concomitantemente, estarem representados na colecção do CAM. Sendo assim, os artistas estiveram presentes tanto com obras (da referida colecção) como com documentação (do referido Arquivo). No entanto, esta regra geral comportou algumas excepções, sujeitas a cuidadoso escrutínio. Houve artistas representados ou só com documentação ou só com obras, e outros (em pequeno número) que, não tendo sido bolseiros, participaram nas exposições de artes plásticas, promovidas pela FGC em 1957, 1961 e 19864. O leque de selecção alargava-se assim significativamente, permitindo restringir os problemas criados por não ter sido possível consultar a totalidade dos arquivos referentes a bolsas concedidas5. Mesmo assim, houve queixas por parte de artistas, algumas justas, outras não tanto. Na verdade, uma exposição temporária, quando lida com artistas em actividade, é também um espaço de confronto de desejos que nem sempre podem confluir na mesma direcção. Mas diga-se, em sentido contrário, que não foram poucos os artistas, mais ou menos consagrados, que ficaram agradavelmente surpreendidos pela documentação revelada (de que, em alguns casos, se tinham esquecido) ou as obras escolhidas para exposição. Falta referir o que se poderá designar pela terceira componente de uma exposição temporária de investigação, depois de avaliada a pertinência da matéria específica a tratar e de articular as suas dinâmicas com a exigência de que o projecto expositivo possa ser descrito e compreendido nas suas opções e metodologias. Essa terceira componente respeita a assunção dos riscos propositivos. Ou seja: se por um lado, se tem que conseguir explicar, com a máxima clareza, os critérios de selecção (neste caso, só artistas bolseiros e com obra no CAM; ou, excepcionalmente, artistas com obra no CAM, não bolseiros mas participantes nas exposições de artes plásticas FCG), por outro lado, há que assumir a aventura sempre aberta da investigação. Os artistas seleccionados cumpriam critérios enunciáveis (e, portanto, estabilizadores da dúvida ou da crítica) mas, entre eles, havia alguns que não ocupam lugar de relevo na historiografia consagrada; outros, que ocupam esse lugar, não estavam representados ou estavam, através de obras ou preocupações que não serão as mais importantes nas suas carreiras. Mas interessa esclarecer que essas opções pouco canónicas tiveram, para o comissariado, enquadramento conceptual: não pretendendo uma narrativa histórica consensual6, a exposição nasceu de uma série de conceitos oriundos da teoria da arte e do fazer artístico, enquadrando as principais questões que os artistas nos iam lançando, à medida que procurávamos seleccioná-los: ‘Corpo/identidade’, ‘Signos/códigos’, ‘Meios e processos’, ‘Espaço/lugares’, ‘Tempo/histórias’. É evidente que esta abrangência conceptual, que se inspira em temas relevantes da crítica da arte novecentista, permitia dispor com grande liberdade as obras e a documentação: houve artistas que estiveram em mais do que um núcleo, sobretudo se considerarmos que, a par da organização temática, a exposição manteve núcleos históricos, à volta das três exposições de artes plásticas da FCG, do grupo KWY (pela

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Ver a explicitação destes critérios em Raquel Henrique da Silva, “50 anos de arte portuguesa, do projecto à exposição” in 50 anos de arte portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007 (catálogo de exposição comissariada por Raquel Henriques da Silva, Ana Ruivo e Ana Filipa Candeias). 5 Uma das opções iniciais de balizamento da investigação foi não considerar o universo das bolsas recusadas. No entanto, e como é óbvio, este é um importante sector de pesquisa para se poder traçar com rigor a história dos apoios da FCG aos artistas portugueses. 6 Para aprofundar a reflexão sobre os limites das narrativas historiográficas, aparentemente consolidadas na História da Arte ocidental, recomendo a leitura do estimulante livrinho de James Elkins, 2002 – Stories of Art. New York and London: Routledge.

FIG. 7 - 50 anos de arte portuguesa. Piso 01. Aspecto das vitrinas. © FCG.


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Foi no início dos anos de 1970 que se começaram a fazer, nos museus de arte, exposições com amplo uso de documentação, propondo de algum modo exposições não para ver, mas para ler. Glicenstein (op. cit.: 95) refere, por exemplo, em 1972, a exposição de Joseph Kosuth, na Galeria Castelli em Nova Iorque que foi transformada “num salão de leitura; havia mesas, bancos, livros abertos (…)”. Incontornáveis são também as exposições de Marcel Broodthaers subordinadas ao tema “Musée d’Art Moderne. Département des Aigles”, iniciadas em Bruxelas em 1968. Para contextualizar esta questão, que questiona as funções tradicionais do museu, ver James Putnam, Art and Artifact. The Museum as Medium. London: Thames & Hudson, 2009 (1ª ed. 2001)

extraordinária riqueza da documentação dos artistas que o constituíram) e da chamada ‘Galeria do Bar’, quer dizer o restaurante do Museu Gulbenkian que, em 1969, quando as instalações foram inauguradas, foi decorado com telas de diversos artistas, especialmente encomendadas. A par das opções para a realização do catálogo (assumindo-se a impossibilidade de integrar toda a documentação exposta, tanto por razões orçamentais, como pelos constrangimentos de tempo para fotografar dezenas de processos de considerável extensão), a penúltima grande questão, numa exposição de investigação, é a montagem. Também neste caso, houve uma gestão de possibilidades que, em muito, se sobrepuseram aos desejos, e não me refiro ao orçamento que foi uma componente pacífica no projecto (sabia-se de quanto se dispunha e esse montante era suficiente). Na corrida contra o tempo que vai configurando a exposição, é sempre demasiado cedo que se tem que enunciar certezas e transmiti-las ao arquitecto ou designer. Em 50 anos de arte portuguesa, a arquitecta responsável pela montagem, Cristina Sena da Fonseca, pertence aos quadros das FCG e conhece todas as possibilidades para utilizar beneficamente os recursos dos diversos departamentos. Esta situação é, para mim, uma positividade porque não se pretendia senão apresentar, com qualidade, a exposição nos espaços, em si mesmos notabilíssimos, do edifício sede da FCG. Alguns aspectos foram imediatamente consensuais: atribuir ao piso 01, com uma estrutura rígida de salas articuladas por um corredor lateral, as componentes históricas da exposição, assumindo, na parede desse corredor, uma banda cronológica de cinquenta anos; reservar a grande sala do piso 0 para os núcleos estético-formais, dispostos sem grandes barreiras entre si, valorizando articulações previstas ou deixando campo aberto para a elaboração, sobretudo sensitiva, de outras; finalmente, integrar, na exposição, as obras de arte encomendadas, em meados dos anos de 1960, para a decoração do edifício, tanto mais que os seus autores foram bolseiros da FCG. Com o objectivo de potenciar a dinamização das circulações da exposição assim aberta, escolheram-se mais algumas obras, que não pertenceram à decoração inicial do edifício, mas que se propunham dialogar inovadoramente com ele (esta estratégia estendeu-se à já referida ‘Galeria do Bar’ e ao jardim fronteiro à entrada principal na Fundação). Houve, no entanto, um sector, em que o trabalho conjunto com a arquitecta não teve o mesmo nível de resultados. Utopicamente, as comissárias pretendiam que a documentação (as fichas de candidatura a bolsas, o desenrolar dos relatórios, a documentação anexa muitas vezes extraordinariamente plástica) fosse exposta com o destaque que habitualmente se dá às obras mais convencionais; mais utopicamente ainda, pretendia-se que essa documentação pudesse (em cópia) ser manejada pelo público e, em alguns casos, fosse possível ter a voz dos autores lendo os seus relatórios, às vezes bastante pessoais7. No entanto, esses desejos não foram realizados, podendo dizer-se que a documentação se apresentou aprisionada, as vozes também e os visitantes se relacionaram com uma e outra, convencionalmente, olhando para dentro de vitrinas muito arru-

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madas e ouvindo, com os habituais auscultadores, raras narrativas gravadas. Este foi o aspecto que confrontou mais negativamente o projecto das comissárias. Não há culpas, antes circunstancialismos, determinados, em grande parte, pelo lugar aurático em que a exposição decorreu onde não há hábitos (nem se pretende que venha a haver) de montagens mais desarrumadas e descentradas. O último vector de análise da exposição seria a recepção dos públicos. Sem utilizar quantidades que, em si mesmo precisariam de ser colocadas em contexto, a impressão geral foi de excelente receptividade, muito apoiada pelo programa das visitas guiadas, estruturado com criatividade e autonomia pelos Serviços Educativos da FCG. Para as comissárias, os visitantes que mais “contaram”8 foram os artistas que juntaram histórias às histórias ali evocadas e, por vezes, se emocionaram perante textos de que eram autores já pouco lembrados. Houve alguma eficácia nos diálogos sugeridos entre artistas muito diversos e no jogo aberto de correspondências entre a documentação e as obras. No entanto, houve também fracassos, relacionados com a distância imedível entre as expectativas de comunicação e a observação da sua concretização: as «bandeiras» que anunciavam os sucessivos temas foram pouco eficazes, as legendas eram diminutas, as frases de artistas, retiradas dos relatórios e disseminadas pelo espaço, deveriam ter sido mais? A interrogação significa que está tudo por fazer em Portugal no que toca à avaliação de exposições. Mas não posso deixar de afirmar, convictamente, que os ganhos ultrapassaram os fracassos. O catálogo (delineado por Jorge Silva) é um instrumento de grande qualidade gráfica que, não reunindo com sistematicidade a riqueza da documentação seleccionada e exposta, manifesta, ainda assim, para todos os interessados (artistas, curadores, historiadores, estudantes), a importância incontornável do arquivo do SBA, quer para trabalhos monográficos, quer para a elaboração de uma (quase) ausente teoria da arte em Portugal (os artistas escreveram mais do que se pensaria e, às vezes, brilhantemente) e para a visão global de mais de meio século de produção artística. Esta será a herança que mais conta do modelo de exposições de investigação: não esgotar temas de imensa complexidade que impõem múltiplos cruzamentos, mas dar a ver, com positividade, o muito que há para investigar. Um dos aspectos mais interessantes desse ‘dar a ver’, através das coisas concretas e não da sua narração, manifestava-se, na própria exposição, com notável plasticidade: os primeiros relatórios, do final dos anos de 1950, são magníficos livros, cadernos ou folhas manuscritas, ilustrados com desenhos, pinturas, esquemas, com uma artisticidade tradicional. Nessa altura, raros usam a fotografia como apoio à apresentação dos trabalhos. Mas, ao longo da década de 1960, há-de ser esse novo meio que predominará e, cada vez mais, os dispositivos. Na actualidade, os relatórios perderam corpo e a mão fazedora: são CD’s, filmes, vídeos... Estas mudanças de suporte condicionam naturalmente não só a sua exposição mas, sobretudo, a própria reflexão dos autores. Mas também o trabalho da História da Arte que se interessa pela materialidade das obras e os seus espelhamentos intrínsecos ou extrínsecos.

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Uso o verbo no sentido que lhe deu Eileen Hooper- Greenhill num célebre artigo “ Counting visitors or visitors who count” in R. Lumey(ed.), The Museum Time Machine: Putting Cultures on Display, Routledge, 1988.

FIG. 8 - Anos 70: Atravessar Fronteiras. Recriação da Acção dos círculos, guerilha urbana (1974) do Grupo Acre. © Paulo Costa, CAM/FCG.


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Anos 70. Atravessar fronteiras. Para o comissariado da exposição 50 anos de arte portuguesa, a sua principal consequência foi, ainda antes da respectiva inauguração, um segundo convite. Aberta a possibilidade, de, quase com a mesma equipa, propormos uma nova exposição, o tema surgiu naturalmente da memória do trabalho sobre os arquivos do SBA: a extraordinária riqueza criativa da década de 1970, contextualizada internacionalmente pelas heranças do Maio de 1968 francês e fragmentada, em Portugal, pela Revolução do 25 de Abril de 1974 que pôs fim a um regime ditatorial com quase 50 anos e, desse modo, a uma das últimas guerras coloniais, mantida por um país europeu em África. Aceite o tema pelos mesmos dirigentes da FCG, o comissariado começou a trabalhar com um pressuposto que nos parecia inquestionável: tratar-se-ia de uma exposição internacional, marcando assim que, mesmo antes da revolução política, os artistas portugueses pensavam e moviam-se cada vez mais numa itinerância cultural em que as questões da pátria iam perdendo pertinência, pelo menos na dimensão fantasmática das décadas nateriores; para isso, realizou-se um levantamento exaustivo de exposições internacionais relevantes (nomeadamente bienais), elaborou-se uma lista, bastante contida, de artistas e obras não portugueses cujo empréstimo deveria ser solicitado, com diversas hipóteses em aberto. No entanto, já depois de alguns empréstimos autorizados, foi preciso desistir por razões orçamentais, na ambiência de pré-crise financeira que estava a atingir a FCG. Impossibilitadas de ‘atravessar fronteiras’ políticas e geográficas, mantivemos o subtítulo da exposição por duas ordens de razões: pretendia-se enunciar que os anos 70 assistiram, mais que outras épocas anteriores, à miscigenação de géneros e técnicas e que as obras de arte saíram dos suportes tradicionais para invadir o chão e se instalarem na rua. Foi este o contexto de decisões fundamentais: não ignorar mas não privilegiar as disciplinas tradicionais (desenho, pintura, escultura), confrontando-as

FIG. 9 - Anos 70: Atravessar Fronteiras. Piso 0. Em primeiro plano, obra de Clara Menéres, Jaz morto e arrefece, o Menino de Sua Mãe, 1973. © Paulo Costa, CAM/FCG.

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com a fotografia, a gravura, a ilustração, a instalação, a perfomance. Por outro lado, acentuou-se a opção, vinda da exposição 50 anos…, de fazer sair a exposição dos espaços do Museu (agora o CAM) não só para o hall de acolhimento, onde se instalou, uma ‘casa’ visitável de Ana Vieira, mas mesmo para o exterior. No dia da inauguração da exposição, o troço de rua fronteiro à entrada do CAM foi intervencionado por dois membros do Grupo Acre (Clara Menéres e Lima de Carvalho) recriando a Acção dos círculos, guerilha urbana que o grupo (integrando também Alfredo Queirós Ribeiro, entretanto falecido) realizara, em 1974, na Rua do Carmo, em Lisboa. A exposição iniciava-se na rua, com um acontecimento efémero (foi sendo destruído, naturalmente, pelo movimento do trânsito e o ciclo do clima) que evocava a memória da arte da rua, após a revolução de Abril. Deste modo, alguns aspectos do trabalho artístico da década ficavam desde logo apresentados aos visitantes: a crítica ao museu e ao estatuto aurático da obra de arte, a prevalência da performance, a dimensão política do desempenho artístico mas também a inovação e a experimentação sem rede. Antes destas decisões, que só foram operacionalizadas em face avançada do trabalho, houve outras a tomar: a escolha dos artistas e obras que estariam presentes na exposição, uma vez que, ao contrário do que acontecera em 50 anos…, não se quis nem recorrer aos processos de obra do SBA (a não ser excepcionalmente, como documentação) nem restringir as possibilidades de selecção à colecção do CAM. Algo, no entanto, se conservou da conceptualização da anterior exposição: a lista de artistas e obras foi sendo elaborada e reelaborada, até ao limite temporal possível, com ajustes permanentes, nascidos da própria investigação. A base desta foi um levantamento exaustivo da imprensa especializada da época, relacionada com a produção e crítica de exposições o que conduziu a uma determinação de conforto: todas as obras expostas foram produzidas e expostas no decurso da década de 70, facto que é assinalado, com raras falhas, nas fichas técnicas do catálogo. O amontoado de possibilidades, que o reviver da década proporcionou, foi estruturado através de dois temas englobantes que, também eles, nasceram no fazer da investigação: ‘Necessidade de intervir: paisagens, espaços utópicos, espaços urbanos’ e ‘Experimentar, série e variação’. O primeiro destes temas, que veio a ocupar a grande nave do CAM, convocava os artistas através do seu relacionamento social e político: retratando o mundo, em paisagens cada vez mais conceptuais, inventando cidades e utopias já ecológicas ou sarcasticamente críticas de uma ordem política desacreditada. Assumindo o impacto da Revolução de 1974, um dos espaços mais marcantes deste vasto tema, apresentava um conjunto de obras paradigmáticas: por exemplo, Jaz Morto e Arrefece, o Menino de Sua Mãe de Clara Menéres, impressionante escultura hiper-realista de um soldado da guerra colonial, tema proibido em Portugal antes da Revolução. No entanto, a peça foi exposta, sem actuação da censura, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em 1973, provando que, em termos de confronto cultural, a revolução já estava em marcha; ou, já depois da Revolução, a Bandeira de Portugal, obra colectiva do portuense grupo Puzzle; ou os cartazes de

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FIG. 10 - Anos 70: Atravessar Fronteiras. Piso 0. Obras de Túlia Saldanha (Mala de Viagem, 1975-76; Fim-de-Semana, 1972-73; 240.180 DISSEMTRIAMATER, 1980). © Paulo Costa, CAM/FCG.


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Ana Hatherly que utilizaram fragmentos da imensa produção dos cartazes políticos que encheram as paredes das cidades nessa época. Não houve nenhuma preocupação de exaustividade, antes confrontos mais ou menos inesperados entre obras há muito relevadas pela História e outras quase ou totalmente desconhecidas. A par das grandes colecções públicas (CAM, Museu do Chiado, Museu de Serralves, Museu Berardo), recorreu-se sobretudo às colecções dos próprios artistas, com o objectivo (que já tinha sido prosseguido em 50 anos…) de não submeter a exposição a leituras prévias e previsíveis, de acordo com as sínteses que têm vindo a ser produzidas. O segundo núcleo da exposição, ‘Experimentar, série e variação’ embora tivesse algumas marcações na grande nave de ‘Vontade de intervir’, dispôs-se essencialmente na galeria do 1.º andar que sobre ela se debruça. Com obras em geral de menores dimensões, permitiu um conjunto de subtemas com evidente marcação conceptual que, em séries relativamente homogéneas e de grande qualidade, permitiram abordar a variabilidade de meios com que as práticas artísticas se foram desconstruindo e reconstruindo, questionando os meios tradicionais e ensaiando outros em que a fotografia, a performance, a instalação e a escrita têm um papel destacado. Foi também o desenrolar da investigação e o contacto permanente com alguns artistas que abriram a linha mais profícua de trabalho desta exposição. Refiro-me à rematerialização de obras que, depois de efémera existência, apenas existiam em projecto. O caso mais notável (que, em si mesmo, justificaria toda a exposição) foi a escultura-instalação de Alberto Carneiro, Árvore Jogo/Lúdico em sete imagens espelhadas, apresentada em 1974, como uma das obras fundadoras da peculiar poética conceptual do seu autor que reelabora, filosoficamente, um íntimo sentimento de comunhão com a natureza, percurso original próximo das primeiras práticas da ‘land-art’ internacional. Foi com imensa alegria que Alberto Carneiro acolheu o desafio de refazer a peça, o que implicou a escolha de uma oliveira cujo corpo foi seccionado e remontado ritualisticamente na primeira sala da exposição. Vale a pena assinalar que esta recriação deu origem a uma tese de mestrado, da autoria de Cristina Oliveira que, sob orientação de Rita Macedo, está a estudar as problemáticas de conservação da arte contemporânea que exigem uma ampla e rigorosa documentação. Uma síntese desse trabalho é apresentado em artigo nesta revista. Também Alberto Pimenta recriou a sua performance Homo Sapiens que se desenrolou numa jaula de gorila no jardim zoológico de Lisboa, em 1977, gravando a leitura do notabilíssimo texto com o mesmo nome, componente sobrevivente dessa obra efémera. O mesmo aconteceu com Projecto Ocultação/Desocultação de Ana Vieira, 1978, que a artista reinstalou em espaços charneira da exposição, ou com Memória de uma imagem ausente, 1970, de Rui Orfão cuja cenografia foi retrabalhada pelo autor, a partir dos meticulosos estudos que haviam ficado da performance fundadora. Mas a obra que mais ocupou a equipa e foi o maior risco da exposição foi a recriação da mítica peça de Ernesto de Sousa e Jorge Peixinho, Luís Vaz que, até então,

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fora considerada como impossível de ser reapresentada. A complexidade deste trabalho não permitiu inaugurá-lo senão um mês e meio depois do início da exposição, no espaço, rigorosamente adaptado e testado do auditório do CAM. Como já afirmei noutro texto “os especialistas que assistiram à primeira apresentação - em que actuou, como acontecera em todas as mostras realizadas pela dupla autoral, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa - consideraram que se conseguiu recriar a peça, não como ela exactamente teria sido (na verdade, mesmo em vida dos seus autores, cada uma das apresentações foi uma criação de si mesma) mas com o seu espírito e a sua plena capacidade comunicante. Perpassava ali um tempo inaugural: uma “vontade de arte” que rompe com as sistemáticas anteriores, na música, como nas artes plásticas, nos mecanismos da criação, como dos da exposição e fruição. No caso português, estes factos são claro manifesto de um desejo e de uma determinação de pertencer à cena contemporânea internacional, recuperando décadas de fechamento e auto-punição”. (Silva, 2009). Estes e outros casos de íntimo trabalho em equipas pluridisciplinares - em que, sempre que possível, os artistas foram as figuras irradiantes - constituíram, para as comissárias, o cerne desta exposição. Enquanto, em 50 anos… o que sobretudo relevou foi a revelação da riqueza, ainda por esgotar, dos arquivos do SBA, em Anos 70, fomos surpreendidas pelo risco em que se encontram muitas obras de produção

FIG. 11 - Anos 70: Atravessar Fronteiras. Piso 1. Instalação de Silvestre Pestana - Tecno-labirinto, 1979. © Paulo Costa, CAM/FCG.

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recente mas que utilizaram meios ou naturalmente efémeros ou com tecnologias então muito artesanais. É urgente, sempre que possível com os contributos dos autores, reunir documentação para as reapresentar com qualidade, o que pode exigir a reconversão dos suportes e meios iniciais. O estado da questão é, nesta matéria, particularmente gravoso em Portugal, tendo-nos impedido, em tempo útil, de recuperar peças históricas, por exemplo de José Carvalho e António Palolo. Outros aspectos relevantes da investigação realizada relacionam-se com a valorização de obras e artistas que se encontravam quase esquecidos. Sem qualquer exaustividade, destaco ainda a extraordinária instalação Tecno-labirinto de Silvestre Pestana que, no momento em que escrevo este artigo (Julho de 2010) integra, com grande destaque a exposição Povo/People comissariada por João Pinharanda e patente no Museu da Electricidade; ou a pequena exposição dentro da exposição que dedicámos à figura mítica de Túlia Saldanha que, no final dos anos de 1970, iluminou a cena artística coimbrã. A importância das obras que foi possível expor (conservadas e documentadas pela sua filha, Luísa Saldanha) conduziram à decisão de programar uma exposição individual daquela artista, assumida pela nova directora do CAM, Isabel Carlos. Outra componente da exposição deve ainda ser referida: o núcleo documental que se concentrou no piso 01, com uma mostra seleccionada de catálogos, livros, livros de artistas, revistas, fotografias, etc., permitindo evocar momentos fundamentais das práticas artísticas da década. Ao longo da parede de fundo deste espaço amplo organizou-se uma exposição de cartazes de temática diversa (envolvendo a literatura, o teatro, o cinema, a arquitectura, as artes plásticas, a dança) e, complementarmente, uma mini exposição de desenhos de João Abel Manta, quase todos publicados em jornais e revistas, constituindo-se como um jornal satírico, fortemente político da sociedade portuguesa de então. Com a colaboração da Cinemateca Portuguesa e, especialmente da televisão, foi possível utilizar alguns documentários de época, e também filmes de artistas, que permitiram convocar as extraordinárias dinâmicas criativas, antes e depois do 25 de Abril, a maioria das quais desenvolviam experiências da década anterior. Houve aspectos menos conseguidos, como as entrevistas filmadas aos mais importantes críticos dos anos 70 (Egídio Álvaro, José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves, sendo Fernando Pernes evocado num documentário de televisão) e outros que não foi possível sequer concretizar, como programas complementares de outras artes e a ocupação performativa dos jardins da FCG. Por outro lado, a escassez do tempo de trabalho, não permitiu, mais uma vez, um trabalho de fundo e atempado com a excepcional equipa dos serviços educativos. Tal como em 50 anos…, ela foi a última a entrar em cena, quando já não era possível incorporar os seus contributos. É uma falha habitual neste tipo de exposições (noutras também…) que se mantêm, até muito tarde, como projectos abertos. Essa falha é uma das razões de alguma desorientação dos visitantes isolados. Aliás, da experiência empírica de percorrer frequentemente os espaços de exposição, foi possível verificar também que os textos de sala quase não foram utilizados, pelo menos em sítio, devendo admitir-se que teria sido preferível optar por legendas desenvolvidas, junto

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FIG. 12 – Anos 70: Atravessar Fronteiras. Piso 01. Núcleo documental – Anos 70 em cartaz. © Paulo Costa, CAM/FCG.

das peças mais relevantes. Mas o catálogo (graficamente mais modesto do que o da exposição 50 anos…) pôde integrar as peças expressamente rematerializadas para a exposição que foram fotografadas depois de instaladas pelos artistas ou pela equipa, sobre documentação fotográfica das exposições originais (este foi o caso da performance Dissimetriamater de Túlia Saldanha). Numa obra recente, dedicada à historiografia das exposições de arte contemporânea que citei logo na epígrafe deste artigo, Jérôme Glicenstein discute o papel dos vários agentes que intervêm numa exposição, muito especialmente as relações, por vezes conflituosas, entre artistas, comissários e arquitectos ou cenógrafos, termo que este autor prefere. No caso das exposições aqui analisadas, as tensões foram predominantemente sadias e, em caso nenhum, as comissárias pretenderam protagonismo. Ele foi integralmente dado às obras e às narrativas, naturalmente ficcionadas, que entre elas se podem sugerir, com os recursos próprios de uma expografia (Rico, 2006, 17), sustentada em investigação e num entendimento da história da arte como um conjunto de discursividades abertas e sem linhas direccionais pré-determinadas. Idealizadas por historiadoras da arte, com diversa experiência de trabalho em museus, as exposições foram alimentadas pela investigação e pela documentação mas contri-

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buíram também, potentemente, para abrir novos campos de pesquisa, quer em termos de um arquivo por estudar, quer em termos de conservação e restauro de obras aparentemente perdidas, quer em termos da revelação de percursos e obras que a história mais institucionalizada desconhece. Por isso, os catálogos apresentam mais propostas de trabalhos futuros do que pontos de chegada. Na verdade, foi possível reforçar uma intuição inicial que esteve na origem destes dois projectos: a história que nos interessa é uma história aberta, capaz de nos surpreender e captivar a urgência de continuarmos a estudar. Em arte, isso significa, continuar a ver, com inteligência sensível, as exposições enquanto heterotopias. Como as definiu Michel Foucault: espaços outros que interrompem e confrontam os espaços e os tempos quotidianos. Poderíamos acrescentar: também o confronto com o corpo e as metamorfoses da história.

Bibliografia Anos 70. Atravessar fronteiras. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009 (catálogo de exposição comissariada por Ana Filipa Candeias, Ana Ruivo e Raquel Henriques da Silva). 50 anos de arte portuguesa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007 (catálogo de exposição comissariada por Ana Filipa Candeias, Ana Ruivo e Raquel Henriques da Silva). ELKINS, James, 2002 – Stories of Art. New York anda London: Routledge. DAMISCH, Hubert, 2000 - L’amour m’expose. Gand: Yves Gevaert. DAVALLON, Jean, 1999 - L’exposition à l’oeuvre. Stratégies de communication et médiation symbolique. Paris: L’Harmattan, 1999. FOUCAULT, Michel, 2002 - «Des espaces autres» in Dits et écris II, 1967-1988, Paris, Gallimard. GLICENSTEIN, Jérôme, 2009 – L’ art: une histoire d’expositions. Paris, PUF. MACEDO, Rita - Desafios da Arte Contemporânea à Conservação e Restauro. Documentar a Arte Portuguesa dos Anos 60/70. Dissertação de Doutoramentoapresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2008 (exemplar policopiado). MONTEIRO, Joana d’Oliva, 2010 – A Galeria de Exposições Temporárias do Mosteiro de Alcobaça. Reflexões e ocntributos na óptica do discurso expositivo. Dissertação de Mestrado em Museologia, Faculdade de Ci~encias Sociais e Humanas da universidade Nova de Lisboa OLIVEIRA, Cristina, 2009 – A preservação da arte efémera de Alberto Carneiro com aplicação ao caso de Árvore jogo/ lúdico em sete imagens espelhadas. Dissertação de mestrado em Conservação e Restauro, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa. PUTNAM, James Putnam, 2009 - Art and Artifact. The Museum as Medium. London: Thames & Hudson, (1ª ed. 2001) RICO, Juan Carlos, 2006 - Manual práctico de museología, museografía y técnicas expositivas, Silex. SILVA, Raquel Henriques da, 2009 - «Luiz Vaz de Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa, 30 anos depois: conservar a arte contemporânea» in L+Artes, Dezembro, 2009.

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Resumo Em 2009, a Universidade do Porto e o Museu Nacional de Soares dos Reis comemoraram o 150º aniversário de Henrique Pousão (1859-1884), estudante da Academia Portuense de Belas Artes, de que a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto é herdeira, e um dos artistas mais representados na colecção e exposição permanente do MNSR. Dos programas de comemorações fizeram parte as exposições Esperando o Sucesso. Impasse académico e despertar do modernismo e Diário de um Estudante de Belas Artes. Henrique Pousão (1859-1884) apresentadas no MNSR. Os projectos expositivos surgiram a partir de investigações desenvolvidas pelos respectivos comissários e utilizaram, em larga medida as colecções da FBAUP, FAUP e do MNSR. Neste texto, apresenta-se o contexto de produção de ambas as exposições e examina-se as opções curadoriais e estratégias expositivas adoptadas avançando, por fim, com uma primeira avaliação dos resultados. Esta reflexão e análise de dois modelos distintos de exposição, em torno de um mesmo artista, pretende contribuir para uma emergente área de estudo e crítica desse dispositivo de apresentação e disseminação de conhecimento que é a exposição em contexto museológico.

palavras-chave Arte Investigação Exposição Curadoria Museu

Abstract In 2009, Universidade do Porto and Museu Nacional de Soares dos Reis (MNSR), joined efforts to celebrate the 150th birthday of Henrique Pousão (1859-1884), a distinguished student of the former Academia Portuense de Belas Arts, now the Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) and one of the most eminent artists represented in the collection and permanent exhibition of the mentioned Museum. The celebrations program included two exhibitions, in the MNSR, Waiting for Success. Academic impass and modernism of Henrique Pousão and Diary of a Fine Art Student: Henrique Pousão (1859-1884). The exhibitions stemmed from investigation carried out by each of the curators and made extensive use of the collection of the two institutions involved. This paper presents the production context of both exhibitions and examines the curatorial choices and the exhibition strategies adopted leading up to a first evaluation of the results achieved. Through critical examination of two different exhibition models of the work of one same artist, this paper aims to contribute to an emerging area of critical study of that vehicle for presentation and dissemination of knowledge that is the exhibition in the context of the museum.

key-words Art Research Exhibition Curatorship Museum


EXPOR A INVESTIGAÇÃO – DOIS PERCURSOS PELA OBRA DE HENRIQUE POUSÃO LÚCIA ALMEIDA MATOS Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de Museum Studies Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto VÍTOR SILVA Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto

Introdução 1A

primeira comissariada por Vítor Silva, e segunda por Lúcia Almeida Matos.

O presente texto, escrito a quatro mãos, regista dois percursos de investigação em torno de aspectos da obra de Henrique Pousão e a produção de subsequentes exposições1, no Museu Nacional de Soares dos Reis, por ocasião das comemorações do 150º aniversário do nascimento do artista. Os dois casos apresentados consubstanciam estratégias de divulgação de projectos de investigação na área dos estudos artísticos através da exposição em contexto museológico. Obedecendo a métodos de trabalho, constrangimentos temporais e linguagens de apresentação muito diversos, investigação e exposição revelaram-se, nas duas experiências, produtivamente complementares: a investigação descobrindo possibilidades de exploração de confrontos, afinidades e percursos novos, a exposição abrindo vias de comunicação com um público alargado e, é claro, proporcionando a insubstituível experiência directa das obras. Sendo que o ponto de partida, em ambos os casos, foi a investigação levada a cabo ao longo de vários anos, desenvolvida de acordo com metodologias sedimentadas no meio académico e científico, e divulgada pelos dispositivos habituais da publicação ou apresentação em conferência, a natureza artística do objecto de estudo sugeriu a utilização da exposição como veículo especialmente vocacionado para por à prova hipóteses, conexões e conclusões decorrentes da investigação. A primeira questão colocada, ao optar pelo modelo expositivo para apresentação e divulgação da investigação, foi a possibilidade de adequar a natureza, metodologia e objectivos da comunicação científica à linguagem específica da exposição. Numa fase posterior, procurou-se avaliar até que ponto o resultado obtido se apresentou enriquecedor para ambos os campos de actividade analisando estratégias expositivas utiliza-

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das e a sua eficácia enquanto veículos de divulgação das investigações que as motivaram para, finalmente, sugerir a possibilidade de as exposições poderem constituir-se, elas próprias, não só instrumentos mas também objectos de investigação. Os casos apresentados, reportando-se à obra de um mesmo artista exposta numa mesma instituição museológica e, em parte, num mesmo espaço expositivo, divergem no objecto específico de estudo (uma única obra no primeiro caso, todo um percurso artístico no segundo) e, consequentemente, nos objectivos e métodos de análise e apresentação. Esta circunstância de alguma justaposição, e, simultaneamente, divergência, justifica a análise conjunta e eventualmente complementar, que aqui se propõe. A natureza colaborativa do trabalho envolvido na preparação de qualquer exposição, ganhou especial significado em ambos os casos apresentados. Em consideração estava não apenas a integração, na programação do Museu Nacional de Soares dos Reis, de propostas externas mas sobretudo a circunstância de grande parte das obras expostas pertencerem à colecção do Museu e destas, um número significativo se encontrar em exposição permanente construída de acordo com critérios necessariamente diversos dos que se propunham para as duas exposições temporárias. A sensibilidade da direcção do Museu, o profundo conhecimento da colecção e vasta experiência da equipa técnica que acompanhou ambos os projectos foram decisivos para, sem desvirtuar as ideias orientadoras dos comissários, se encontrarem soluções de complementaridade com as obras em exposição permanente, evitando redundâncias e, pelo contrário, tirando o máximo partido do factor exponenciador dos projectos temporários.

I. Esperando o Sucesso: impasse académico e modernismo de Henrique Pousão – Museu Nacional de Soares dos Reis – 26 de Março a 28 de Junho de 2009. A obra Esperando o Sucesso (FIG. 1), pintura de Henrique Pousão, pertencente ao Museu Nacional de Soares dos Reis, tornou-se a partir de 2002 o motivo central de uma investigação sobre desenho, sobre o sentido e o significado da sua presença e representação. Numa primeira fase, este trabalho foi desenvolvido sem intenção ou projecto de exposição, tendo sido objecto de múltiplas considerações metodológicas e críticas, todas elas directamente imbricadas no percurso e na heurística da investigação2. A escolha desta pintura deve-se ao facto dela mesma exibir a representação do desenho, ao relacionar aspectos imediatamente visíveis e singulares, como o desenho infantil e o esboço a “carvão” mas também por combinar, numa mesma figuração, o gesto e a emoção de mostrar o desenho; o modelo e o jovem desenhador; o espaço do atelier e o “lugar” do espectador; e, ainda, por revelar, de forma quase imperceptível, a caricatura do próprio pintor. O desenho constitui-se assim o reflexo criativo de múltiplas formas e imagens da pintura. Perante o espectador “moderno”, a presença do desenho dentro da pintura configura uma distribuição sensível e transformadora das práticas artísticas. O desenho transparece através da pele da pintura. Não como uma estratégia que lhe é subjacente mas como expressão justaposta, paralela e, porque não!, autónoma da pintura.

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2 Esta investigação, no âmbito da proposta de Pós-

-Doutoramento, com o Professor Lino Gelabert Cabezas, obteve o apoio da FCT, entre 2006-2008. O resultado prático da investigação consistiu no comissariado da Exposição e no texto do catálogo da exposição Esperando o Sucesso, impasse académico e despertar do moderismo de Henrique Pousão, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Lisboa: IMC, 2009.


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Os textos foram publicados nas Revistas: PSIAX, Porto, ArteTeoria, Lisboa e Derivas, Aveiro. Cf. Bibliografia Catálogo da Exposição Esperando o Sucesso, Op.cit. , p. 63. 4 Sem a ideia de Marta Mestre, sem a sua iniciativa, sem o seu entusiasmo e generosa colaboração, este projecto nunca teria existido. Uma palavra de reconhecimento e de agradecimento para o João Francisco Figueira por ter incentivado tudo isto.

FIG. 1– Henrique Pousão - Esperando o sucesso, [1882]. Óleo sobre tela, 131,5 x83,5 cm, MNSR, inv. 108 Pin. © Carlos Monteiro, DDF/IMC.

O desenho e o ensino do desenho tornam-se uma variedade estética, uma nova experiência expressiva e emotiva. Ao longo dos últimos anos, os resultados do estudo foram sendo publicados sob a forma de pequenos ensaios, definindo um conjunto de questões teóricas e práticas sobre a análise formal, histórica e iconográfica desta obra singular de Pousão3. A ideia da exposição surgiria mais tarde, em 2007, vinda de fora, como resposta aos textos publicados4. Enquanto a investigação propunha construir um mapa de diferentes ima-

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gens e documentos, do passado e da actualidade, capaz de promover contradições e princípios de associação, não inferidos por qualquer modelo monográfico mas, antes, decidido em provocar novas orientações e em suscitar diferentes interrogações, a proposta de exposição, considerada a vasta amplitude dos problemas suscitados em torno de um olhar sobre uma única obra e sobre um tema específico, o desenho, desdobrava-se num mosaico de operações visuais e de percursos expositivos complexos. Deste modo, a ideia da proposta não abdicava dos princípios da investigação e de descoberta que constituíam o seu próprio âmbito e trajecto heurístico. Contudo, à medida em que a investigação se traduzia na forma de um projecto de exposição, esta foi ganhando, com o tempo, um carácter e uma dimensão própria, contribuindo para reforçar a pertinência da sua hipótese e realização. Com o empenho e o interesse manifestado, desde a primeira hora5, pelo Museu Nacional de Soares dos Reis do Porto, a iniciativa, com o título Esperando o Sucesso: impasse académico e modernismo de Henrique Pousão, veio a integrar o programa das comemorações dos 150 anos do nascimento de Henrique Pousão6. A proposta de exposição foi objecto de longas e estimulantes negociações com as conservadoras e restante equipa técnica do Museu. Com a colaboração e o apoio, sempre generoso e competente, de Ana Paula Machado e Elisa Soares, foi possível adequar, adaptar e definir uma proposta e um percurso de exposição capazes de integrar a complexidade teórica e os núcleos fundamentais da investigação redimensionando os núcleos e reduzindo o número de obras e imagens com o intuito de delimitar e de tornar mais claro para o visitante o conteúdo da investigação. A contribuição técnica e a experiência prática do Museu revelou-se pois decisiva, permitindo reformular aspectos da proposta inicial, cuja dimensão e ambição programática seria difícil de conciliar numa única exposição. Desenvolver a investigação sobre uma única obra permitiu abrir um mundo desconhecido de inter-relações, envolvendo diferentes domínios como os da história, da arte, da iconografia, do desenho, da etnografia, da fotografia e da cultura visual e experimentar um quadro de novas hipóteses teóricas onde as representações do desenho e a intenção mimética da pintura se vêem intensificadas, como num caleidoscópio, através do jogo da sua reflexividade e do circuito da sua interpelação emotiva. Desde o início, a singularidade deste particular objecto de estudo permitiu-nos considerar a simultaneidade contraditória dos diferentes aspectos visuais, das análises e das hipóteses que nele, historicamente, se condensam e revelam de forma superlativa. Contra os efeitos do compromisso estético e historicista, que satisfazem a narrativa monográfica do pintor, procurou-se acima de tudo estudar o amplo contexto temporal, visual e expressivo que engloba o exercício da sua observação e interpretação. Hoje, para o olhar que a contempla, sente-se que a sua presença é um testemunho para o nosso tempo: uma imagem que nos interpela sobre a existência do desenho e do desenhador; que nos questiona sobre a actividade da pintura e do pintor; que nos confronta, com malícia, sobre a nossa própria condição de espectador. Deste modo, a nossa investigação preferiu indagar as impertinências formais e expressivas que, com incisivo humor, se exprimem nesta pintura. Por isso, mais do que ten-

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A primeira proposta foi apresentada em 2006 à Directora do MNSR, Drª Teresa Viana, que acolheu com entusiasmo este projecto. 6 Agradecimento muito especial à Directora do MNSR, Drª Maria João Vasconcelos, por todo o apoio e dedicação dispensados para o êxito da Exposição.

FIG. 2 - Estudo de distribuição dos espaços, desenho de Vítor Silva.


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FIG. 3 - Vista a partir do fim da sala, fotografia de Vítor Silva.

tar explicar um estilo procurou-se implicar a parte de desconhecido que estrutura, em termos formais, figurativos e narrativos, a paródia e a interpelação cómica da pintura. A pesquisa descobriu que o exercício da auto-caricatura e a figura do pequeno pastor ciociaro constituem dois dados relevantes da imagem, dois aspectos ignorados mas fundamentais da interpretação, onde se revêem reflectidos, como num espelho, o retrato do jovem pintor e a emoção da pintura moderna. A pintura Esperando o Sucesso constitui a resposta, auto-crítica e humorística, de uma vasta interrogação colocada aos fins e à finalidade da aprendizagem artística. De facto, os processos do desenho estão presentes como que para prefigurar as consequências de uma crítica da representação e das belas-artes que a ruptura do moderno soube inaugurar. O desenho torna-se aquilo que é: um espaço de variedade sensível, uma imagem em transformação. O desenho não é mais o exercício de cópia ou a sua ideia formativa. Não é mais a representação do imaginário nem o instrumento do projecto, mas a relação do real que ele mesmo produz: a possibilidade de novas formas e emoções que atravessam a sua própria potência e condição expressiva. A pintura de Pousão, Esperando o Sucesso, fala-nos disto tudo. Hoje, a prática do desenho faz-se e pensa-se na relação com as suas imagens, com a sua história, com a necessidade e o acaso das sensações, dos constrangimentos materiais e da liberdade individual que estão na sua origem. Esperando o sucesso propõe-nos assim uma encenação propositadamente satírica e crítica do desenho e da pintura, por onde as belas similitudes académicas operam conjuntamente com as perturbadoras dissimilitudes modernas, complicando a antiga finalidade do desenho e a “incerteza” do seu próprio fim. O desafio de expor as premissas e os resultados desta investigação implicou, como foi dito, um exercício de síntese e de adequação a linguagens e estratégias eminentemente

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visuais, num espaço limitado. Assim, o objectivo da exposição consistiu, no essencial, em propor uma distribuição do mapeamento das diferentes relações e interpretações visuais da pintura, Esperando o Sucesso, abrindo-a ao olhar e à consideração de novas e pertinentes contraposições críticas, temporais e expressivas. Para corresponder a este propósito foi necessário estabelecer um acordo entre as condições de espaço, a lógica dos percursos e a coerência dos núcleos interpretativos, procurando manter um princípio de exibição e de reflexão centrado, fundamentalmente, na pintura Esperando o Sucesso. Este princípio central determinou a composição e o acerto dos diversos núcleos bem como a estruturação genérica das peças e dos objectos seleccionados, deixando em aberto o impacto das relações e a livre associação das formas e dos conteúdos reunidos. A posição axial da pintura e a disposição, quase axiomática, dos núcleos, associada ao destaque de algumas peças, permitiu orientar os efeitos de estranheza e de disparidade de algumas imagens e objectos expostos. A integração de imagens e textos, obras de arte e documentos, ilustrações e fotografias, desenhos e esculturas, textos de parede e outros meios visuais, teve como objectivo principal o aprofundamento do nosso olhar e do nosso saber sobre esta pintura de Henrique Pousão, mostrando os aspectos singulares da cultura e da memória visual que, no nosso entender, entretecem a experiência e a história desta pintura: Esperando o Sucesso. A lógica de associação e de montagem obedeceu ao princípio do mapeamento das relações possíveis entre a pintura de Pousão e a arte do seu tempo, considerando também a implicação de outras imagens com as quais se compunham diferentes analogias temáticas, iconográficas, expressivas e temporais. De acordo com este princípio, a característica do espaço e a escolha das peças determinaram um percurso que se quis sóbrio e articulado, tendo como condição essencial a focagem no

FIG. 4 - Vista da entrada da sala, fotografia de Vítor Silva.

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7 Muitos estudos de distribuição do espaço foram previamente desenhados insistindo na organização de um corredor central, ver FIG. 2. 8

Cf. a imagem fotográfica do espaço da exposição, FIG. 3 e 4.

objecto-teórico da exposição e a distribuição conjugada dos diferentes núcleos previamente definidos. A condição excepcional de acesso à sala, descendo uma escadaria, permitia abordar num relance o espaço de exibição, convidando o público para um itinerário expectável que apenas pedia ser percorrido pela curiosidade e pela surpresa das relações propostas. A sala de exposição, como uma caixa fechada, longa e rectangular, permitiu dispor, para este efeito, de diferentes dispositivos, fazendo uso não só das paredes, como também de mesas, de plintos e de ecrãs, no sentido de promover distintos modos de olhar e de entender o jogo das disjunções e das relações propostas pelos diferentes objectos7. A visibilidade da pintura-tema da exposição – apenas visível do interior da sala - era assegurada por um corredor que lhe era frontal e por uma linha diagonal, virtual - que percorria toda a “caixa” espacial - onde se destacavam, núcleo a núcleo, algumas peças de referência, como por exemplo a escultura de Soares dos Reis, O Artista na Infância, e a maqueta do monumento a Pousão, de Américo Gomes e Joaquim Madureira filho8. A intenção fundamental deste dispositivo, ao invés de criar um percurso linear e contínuo, consistia em manter uma perspectiva visual sobre a pintura de Pousão, assegurando um “espaçamento” que integrasse a distância e a proximidade, e fosse capaz de criar, através das imagens dos sucessivos núcleos, uma sequência de “chamadas” e de “intrigas” visuais. O retorno ao ponto de partida oferecia ao visitante a possibilidade de este poder rever e lembrar as disjunções e/ou as associações produzidas, proporcionando o contacto e o vaivém sobre a maioria das imagens postas em confronto. Como estratégica genérica privilegiou-se assim um sistema sequencial de núcleos, cabendo ao primeiro conjunto vislumbrar imagens e conteúdos essenciais. O quadro Esperando o Sucesso combinava, num primeiro conjunto, os temas do auto-retrato, do modelo ciociaro, do jovem desenhador e do atelier do artista. Com este propósito as pinturas de António Mancini, de Wallerand Vaillant, e a reprodução, em caixa de luz, do pequeno quadro de Francesco Caroto, propunham-se articular aspectos mais ou menos evidentes da tela de Pousão mas também confrontar relações visuais nunca antes combinadas. Este núcleo, de forte presença estética, incidência iconográfica e implicação anacrónica, permitia desde logo irradiar questões que seriam retomadas mais adiante nos núcleos seguintes. A colocação quase central da escultura de Soares dos Reis, O artista na infância, elemento pivot da exposição, permitiu orientar e redistribuir o jogo das imagens e das aproximações quer formais quer expressivas dos diferentes núcleos. A maqueta do Monumento a Pousão, colocada no núcleo final, permitia ampliar este efeito de espacialização e de orientação, reiterando o pressuposto existente entre todas as peças e em especial entre a pintura original - Esperando o Sucesso - e os seus efeitos, como, por exemplo, o baixo relevo em bronze do escultor Américo Gomes. A presença da fotografia, aspecto discreto mas influente no percurso interpretativo da exposição, permitiu associar o Álbum A Henrique Pousão, pela primeira vez exibido, e relacionar outras imagens, como a estampa e a gravura. Estas imagens foram expostas em vitrines com o intuito de sublinhar o carácter documental e o apoio artístico que

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através delas se infere na relação privilegiada com a arte do século XIX e, em especial, com a pintura de Pousão. Na montagem da exposição entendeu-se que os textos de parede seriam um modo acessível de apresentar e de contextualizar, núcleo a núcleo, os conteúdos e os temas da exposição, seguindo de algum modo a lógica distributiva e irradiante dos problemas: o retrato do artista quando jovem; a figura do jovem desenhador; a cultura académica do desenho; o modelo infantil; o ciociaro; os usos da fotografia, o atelier e a fortuna crítica da obra. A caracterização descritiva dos núcleos obedeceu a um único objectivo: conjugar similitudes e analogias específicas pressupondo, por outro lado, um princípio de reflexão e de ressonância determinado pela obra central da exposição. As visitas guiadas e o ciclo de Conversas9 permitiram também aprofundar questões e problemas colocados pela exposição. Por fim, a publicação do catálogo procurou constituir-se a memória possível da exposição e a prova de que existem novas descobertas e novas experiências de investigação. II. Diário de um Estudante de Belas Artes: Henrique Pousão (1859-1884) – Museu Nacional de Soares dos Reis – 22 de Outubro de 2009 a 7 de Janeiro de 2010 A obra de Henrique Pousão encontra-se, na sua vasta maioria, localizada em duas instituições: o Museu Nacional de Soares dos Reis e a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. O facto deve-se à clarividência do pai do artista que, desejoso de assegurar a preservação da obra do filho, entendeu entregá-la, na sua quase totalidade, à Academia Portuense de Belas Artes. Hoje, uma parte significativa desse acervo, pode ser visto, como é sabido, em exposição permanente no MNSR que, no entanto, tem mantido em reserva uma parte dos trabalhos em muito pequeno formato, as cópias, as aguarelas e os poucos desenhos existentes na colecção. Também o acervo da FBAUP, na sua maioria desenhos produzidos no âmbito da formação de Pousão no Porto, Paris e Roma, está raramente acessível. Para além das obras, a FBAUP guarda, no seu Arquivo, documentação fundamental para contextualizar grande parte da obra, já que, durante a sua muito curta vida, Pousão foi sempre um estudante de Belas Artes sendo, portanto, objecto de avaliação e premiação registadas em Actas ou mantendo contacto regular com a instituição através de correspondência vária e dos relatórios anuais a que estava regulamentarmente obrigado. Pretendendo traçar a construção de um percurso artístico contextualizado pelas condicionantes de produção e de recepção, a investigação desenvolvia-se necessariamente em extensão: tratava-se de cumprir um primeiro objectivo, de identificar o lugar e o momento de produção de cada obra existente nos acervos de ambas as instituições e, inversamente, identificar as obras por vezes apenas mencionadas, de forma pouco rigorosa, na documentação, fosse bibliografia publicada ou documentos em arquivo. Apesar do levantamento, praticamente exaustivo, da produção artística de Pousão efectuado por ocasião da exposição comemorativa do centenário da morte, em 198410, e das obras entretanto localizadas e publicadas 11 havia, naturalmente algu-

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Para consultar o resumo destas conversas cf., SILVA, Vítor - «Conversas no Museu. Esperando o Sucesso» in Callipole, nº17, Vila Viçosa: Câmara Municipal de Vila Viçosa, Novembro de 2009, pp. 147-160. 10 Comissariada por José Teixeira: Henrique Pousão, no primeiro centenário da sua morte, Fundação Casa de Bragança, 1984. 11

Ver António Rodrigues, Henrique Pousão, Lisboa: Edições Inapa, 1998 e Bernardo Pinto de Almeida, Henrique Pousão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.

FIG.6 – Vista de exercício de cópia de paisagem de Silva Porto e de pequenos registos “do natural”, na sala de exposições temporárias, fotografia de Cláudia Garradas.


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FIG. 5 – Vista da sala de exposições temporárias, fotografia de Cláudia Garradas.

12 Contando com a colaboração das equipas técnicas da FBAUP (Museu, Biblioteca e Arquivo) e do MNSR.

FIG. 7 – Vista da sala de exposição permanente, fotografia de Cláudia Garradas.

mas correcções, precisões e acrescentos a fazer, ficando claro que, não sendo ainda esta a oportunidade para a compilação de um catalogue raisonné, a investigação daria um passo significativo nesse sentido. Alcançado, na medida do que se considerou razoável, o primeiro objectivo da investigação de localizar, no espaço e no tempo, toda a obra de Pousão identificada até à data, a investigação prosseguiu no sentido de contextualizar cada peça tendo em atenção os parâmetros da formação académica, referências visuais, cruzamentos e contaminações, eventuais marcas autorais12. Procurava-se respostas para questões como: em que medida é Pousão fruto da formação artística que recebeu e até que ponto se desprende dela no sentido de abrir um caminho próprio? Que importância tem na sua obra a instrução formal na École des Beaux-Arts versus o contacto informal com os museus e o trabalho de outros artistas, em Paris? Que continuidades se podem estabelecer entre as obras escolares do Porto e as finais de Itália? Há alguma marca autoral distintiva da sua produção? E, em consequência, é lícito entender essa produção como um corpo de obra autónoma ou apenas como promessa do que poderia ter sido? A investigação abriu-se então, da consulta dos planos e programas de estudo à identificação dos manuais das diversas disciplinas, à procura de obras, nos acervos da FBAUP e do MNSR, que tivessem sido utilizados para exercícios de cópia e de exercícios de colegas de Pousão que pudessem ser confrontados, produtivamente, com os dele tanto nas escolas do Porto como de Paris. Procurou-se traçar os itinerários de Pousão em Paris, identificar as exposições que possa ter visto, os museus que possa ter visitado, completando a informação directa fornecida pelos documentos e cartas do artista com as de outros, nomeadamente de Sousa Pinto, que o acompanhou, ou de amigos que o visitaram. A contextualização do período em Itália havia avançado extraordinariamente com a longa e exaustiva investigação de Vítor Silva e a exposição que a partir dela havia sido organizada anteriormente. A documentação existente em ar-

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FIG. 8 – Vista de exercícios de cópia de ordens arquitectónicas e álbuns, na sala de exposições temporárias, fotografia de Cláudia Garradas.

quivo, forneceu informação adicional sobre detalhes significativos que até agora haviam passado despercebidos: como se sabe, o que se encontra depende, muitas vezes, do que se procura e a verdade é que o enfoque desta investigação motivou questões novas permitindo chegar a algumas, também novas, conclusões13. A metodologia de registo dos resultados da investigação adoptada - construir um mapa geográfico e temporal da produção artística de Pousão que, à medida que a investigação avançava, contextualizasse a sua produção artística - determinou, desde o início, a produção de um objecto da ordem do visual que se ofereceu ao olhar como um potencial itinerário expositivo. A exposição apresentou-se, no próprio título, como proposta de um itinerário pelo quotidiano artístico de Pousão, proposta de leitura da obra à luz de um percurso com uma cronologia mas também com etapas temáticas correspondentes aos tópicos essenciais na formação do artista. A experiência de percorrer as diversas etapas testemunhando a produção artística em cada uma, exigia um espaço expositivo onde esse itinerário pudesse ser mapeado tanto na sua extensão linear como nos seus desvios, hesitações ou pausas. Sendo a sala de exposições temporárias prevista manifestamente insuficiente para o efeito, foi proposta, e aceite14, a integração do espaço habitualmente destinado à exposição permanente dedicada a Pousão, no percurso expositivo temporário. Assim, houve que integrar, no planeamento da exposição, a natureza distinta das duas salas, quer na sua dimensão física quer simbólica, e pensar o itinerário conceptual e físico da exposição em função dessa realidade sem por em causa a coerência da exposição no seu todo. A sala de exposições temporárias foi dedicada à primeira parte da exposição, os anos de formação na Academia Portuense. O itinerário acompanhava as etapas determinadas pelo currículo académico (Fig.5), iniciando-se pela a cópia de estampa, avançando para o exercício a partir de gessos, o desenho de arquitectura e culminando no desenho de

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Como aconteceu, por exemplo com a investigação relativa à identificação dos modelos masculinos que permitiu por sua vez sugerir, fundamentadamente, a identificação do desenho de modelo vivo que integrou as provas de pensionato, até aqui proposto como um eventual auto-retrato. Ou a inequívoca localização em Roma da pintura de modelo feminino, pertencente à FBAUP.

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Agradeço a Maria João Vasconcelos, directora do MNSR, a rápida adesão à proposta de intervir, temporariamente, no espaço da exposição permanente. A definição do tratamento mais ajustado desse espaço foi levada a cabo em estreita colaboração com a equipa do Museu, para que, tornando perceptíveis as transformações efectuadas, fossem mantidos os sinais identificadores do circuito da exposição permanente do MNSR em que a sala se integra.


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FIG 9 - Desenho de modelo vivo/Carvão e crayon negro sobre papel/607x452 mm/Ass. Pousão/Dat. Porto, 15-5-1875/Modelo: Aniceto José da Silva/FBAUP. INV. 98.DES.382 , fotografia de Jorge Coelho.

modelo vivo para logo passar à pintura de modelo e à composição com figuras e, finalmente, a especialização em Paisagem (Fig. 6). Num e noutro extremo da sala confrontavam-se os desenhos de simples cópia de estampas, com paisagens e motivos vegetais, por um muito jovem Pousão adolescente, e as ambiciosas pinturas produzidas no âmbito do concurso para pensionista no estrangeiro, após completar todos os cursos oferecidos na Academia, do desenho à pintura, da escultura à arquitectura. O segundo núcleo da exposição, na sala habitualmente destinada à exposição permanente dedicada a Pousão, manteve-se a estratégia de tornar evidente o percurso académico, de carácter mais formal mas agora acompanhado, em paralelo, por produção autónoma sobretudo presente em pequenos registos pintados, as muito apreciadas “tabuinhas”. A exposição terminava com as três grandes telas inacabadas (Fig. 7) sublinhando-se a incorporação da intensa investigação levada a cabo por Pousão nos pequenos formatos nas obras mais ambiciosas com que tencionava cumprir a suas obrigações académicas. Estando a organização cronológica subjacente à organização da exposição, como o título aliás já anunciava, procurou-se não a reduzir a uma linearidade temporal simplista mas antes tornar visível a simultaneidade e complexidade inerente à vivência quotidiana e aos factores que, nessa vivência, dentro e fora do meio académico, foram contribuindo para a formação e autonomização do artista. Assim, a base cronológica sequencial foi assegurada, a um primeiro nível, pela divisão por duas salas coincidentes com dois períodos bem demarcados do percurso académico de Pousão (o nacional e o estrangeiro), a um segundo nível pela organização das obras de acordo com o ritmo dos programas curriculares (do mais simples para o mais complexo) e a um terceiro nível pela indicação, sempre que possível, nas tabelas de cada peça, do dia, mês e ano de execução. Esta linearidade foi sendo interrompida por uma organização do espaço e correspondente distribuição das obras por núcleos temáticos que, cruzando a sequência temporal, pretendiam tornar visível as condições de produção, divulgação e recepção, na primeira sala, e as “novidades” processuais e consequentes avanços na construção de um ambicioso projecto pessoal, na segunda sala. As obras apresentavam-se em contexto, com a apresentação em suportes distintos mas paralelos, de livros de exercícios (Fig. 8), de reproduções em revistas, de fotografias e de textos, possibilitando através da evidência visual ou do enunciado em texto, a percepção da rede complexa de factores que foram determinando um percurso artístico e, finalmente, toda uma obra. Na medida do possível, tornou-se visível a vivência quotidiana, através de detalhes como a identificação dos modelos da Academia Portuense repetidamente presentes nos exercícios escolares (Fig. 9), da reprodução de comentários na imprensa, da evocação do ambiente do atelier de Cabanel em companhia de Sousa Pinto (Fig. 10) ou, oferecendo o testemunho, em primeira mão, do próprio Pousão que, ao longo dos dois relatórios anuais enviados à Academia orientava o olhar do visitante para os exercícios de cópia, os registos de viagens, ou dava conta da prematura deslocação para Itália imposta pela falta de saúde, ou ainda da satisfação com os sucessos profissionais.

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Um roteiro com selecção de imagens das obras expostas e dos textos de sala deu apoio à visita individual e uma série de visitas conduzidas não apenas pela comissária mas pela equipa técnica da FBAUP e do MNSR, assegurou a desejável diversidade complementar de vozes e pontos de vista. O desenvolvimento da investigação efectuada, em que a exposição se apoiou, será objecto de publicação em livro, assegurando-se assim o registo de um patamar de investigação que se considera relevante para o conhecimento não apenas da obra individual de Pousão, mas das condições de formação académica e de produção profissional em Portugal, no final do século XIX.

15

Ingrid Schaffner “Wall Text”, Paula Marincola, What Makes a Great Exhibition. Philadelphia, University of the Arts, 2007, p. 156. 16

Idem, p. 164.

Conclusão O papel de ambas as exposições, na apresentação e divulgação das investigações que as fundamentaram revelou-se, do ponto de vista dos investigadores/comissários, extremamente positivo. O exercício de transposição do discurso conceptual e argumentativo para a apresentação eminentemente visual, se arriscou alguma excessiva simplificação, provou ser quase sempre clarificador cumprindo, sobretudo, a insubstituível função de proporcionar a experiência directa das obras e a eventual (e desejável) verificação das hipóteses e conclusões avançadas. Sem pretender exaustividade na análise dos factores que determinaram o que consideramos, do nosso ponto de vista, o sucesso do empreendimento, avançam-se alguns aspectos que consideramos determinantes: Uma primeira ordem de factores referem-se às circunstâncias em que foi possível concretizar os dois projectos expositivos: sendo o Museu Nacional de Soares dos Reis, instituição de referência para a pintura de Henrique Pousão, foi com naturalidade que as exposições se instalaram nos seus espaços expositivos, beneficiando do entorno dos seus contemporâneos, dos artistas que o precederam e que foram seus mestres e modelos, e dos que se lhe seguiram, explorando, de outras formas, temáticas tratadas por Pousão; o produtivo diálogo com a equipa do MNSR, que acompanhou de perto e contribuiu com o conhecimento acumulado da colecção do museu bem como dos espaços e equipamentos disponíveis permitindo evitar erros, contornar obstáculos e sobretudo, potenciar os meios disponíveis; a parceria institucional do Museu com a Universidade do Porto e o entendimento conjunto de que, em articulação, melhor se prestaria justiça a um artista e a uma obra que ambas as entidades estão interessadas em potenciar e divulgar. No âmbito das opções curadoriais, considera-se particularmente feliz a articulação das obras de arte com materiais de carácter documental seleccionado com base na eficácia visual mais do que discursiva e, por outro lado, a atenção prestada aos textos utilizados, em ambas as exposições, enquanto “instrumentos efectivos de interpretação e de informação complementar das peças”15 e, em particular na segunda exposição, recorrendo a curtos complementos às obras em exposição como forma de oferecer oportunidade ao visitante não apenas de saber mais mas também de ver mais16.

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FIG. 10 – Vista de desenhos de modelo vivo em Paris, na sala de exposição permanente. À direita, desenhos executados por Pousão e Sousa Pinto, lado a lado, no atelier de Cabanel, fotografia de Cláudia Garradas.


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17

Robert Storr, “Show and tell”, Paula Marincola, What Makes a Great Exhibition. Philadelphia, University of the Arts, 2007, p. 14. 18

Nicholas Serota, Experience or Interpretation, London, Thames & Hudson, 2000, p.55.

O carácter mais aberto da primeira exposição terá sido o ajustado a premissas baseadas nos múltiplos papéis desempenhados pelo desenho na obra de Pousão e nas desdobradas ressonâncias dos temas sugeridos em Esperando o Sucesso, em obras de várias épocas e lugares de origem. Aqui, a aposta foi, pois, na experiência proporcionada ao visitante pela presença de referências visuais inesperadas, deixando-lhe a liberdade e o estímulo para as multiplicar e completar com as suas próprias associações. Na segunda, a opção de integrar obras habitualmente mantidas em reserva, como sejam trabalhos eminentemente académicos ou exercícios de cópia de pinturas de outros autores, permitiu oferecer e explorar o contexto necessário à leitura das obras maiores habitualmente em exposição. O recurso a múltiplas vozes registadas nos textos que pontuaram a vários níveis o percurso expositivo, com especial ênfase para os relatórios do próprio artista, propiciaram o “tom” pretendido e anunciado no título da exposição, eminentemente pessoal, tecido pelos apoios familiares, pelas cumplicidades dos amigos, pelas imposições escolares, pelas ambições e vitorias anunciadas com contido orgulho. Julgamos que os modelos de exposição adoptados nesta dupla iniciativa expositiva, não apenas para celebrar mas também aprofundar e alargar o entendimento, ressonância e apreciação da obra de Pousão, consubstanciam experiências valiosas, alternativas a modelos mais tradicionais, só possíveis levar a cabo com cumplicidades entre os agentes implicados e directamente interessados no estudo e divulgação deste património artístico. Experiências que valerá a pena aprofundar e alargar nas suas vertentes práticas e teóricas, partilhando o interesse da comunidade científica e profissional internacional por esse objecto de estudo que tem como missão construir discursos visuais associando “apresentação e comentário, documentação e interpretação”17 , simultaneamente contribuindo para o avanço do conhecimento e proporcionando um gratificante “sentimento de descoberta”18, que é a exposição.

Bibliografia VASCONCELOS, Maria João; SILVA, Vítor; TEIXEIRA, José de Monterroso - Esperando o Sucesso, Impasse académico e moderismo de Henrique Pousão, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Lisboa: IMC, 2009. SILVA, Vítor - “Conversas no Museu. Esperando o Sucesso” in Callipole, nº17, Vila Viçosa: Câmara Municipal de Vila Viçosa, Novembro de 2009, pp. 147-160. WALSH, John – “Pictures, Tears, Lights, and Seats “ in CUNO, James (ed.) – Whose Muse? Princeton: Priceton University Press, 2004. SCHEFFNER, Ingrid - “Wall Text” in MARINCOLA, Paula - What Makes a Great Exhibition. Philadelphia: University of the Arts, 2007. STORR, Robert - “Show and tell”, MARINCOLA, Paula, - What Makes a Great Exhibition. Philadelphia: University of the Arts, 2007. SEROTA, Nicholas - Experience or Interpretation, London: Thames & Hudson, 2000.

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Resumo De 14 de Março a 31 de Maio o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) apresentou, pela primeira vez, uma exposição individual retrospectiva dedicada exclusivamente à arte da performance intitulada Marina Abramovic: The Artist is Present. A artista está presente, é também o título da obra criada especialmente para a exposição, que envolveu a presença permanente de Abramovic´ no átrio do museu, sendo os visitantes “convidados a sentar-se em silêncio com a artista durante o tempo que entenderem”. Inédita na ambição de expor quase quarenta anos de performance da artista, a exposição utilizou estratégias expositivas menos convencionais que integraram a reperformance de cinco obras emblemáticas lado a lado com a documentação tradicionalmente utilizada: fotografias, vídeos, objectos. A nova performance, poderosa na sua extrema simplicidade, mereceu surpreendente adesão do público que acorreu a participar. O acontecimento despoletou imediatas críticas, comentários, testemunhos que circularam em sites institucionais, blogs pessoais e redes sociais, produzindo um cenário de recepção também ele inédito pela diversidade e quantidade de públicos envolvidos. As notas que se apresentam, produzidas em cima do acontecimento, tentam reflectir essas realidades enquadrando-as na reflexão e debate crítico em curso em torno das questões colocadas pela preservação, e reapresentação da arte da performance a que a exposição no MoMA veio dar nova dimensão e urgência.

palavras-chave Performance Reperformance Exposição Conservação

Abstract From March 14 until May 31, the Museum of Modern Art in New York presented, for the first time, a solo retrospective exhibition exclusively dedicated to performance art titled Marina Abramovic: The Artist is Present. The artist is present is also the title of the new work produced for the exhibition, which involved Abramovic´s continuous silent presence in the museum atrium and the invitation to the public “to take the seat across from her for as long as they choose”. Without precedent in its ambition to show almost forty years of the artist’s performance production, the exhibition used unconventional display strategies which included re-performances of five emblematic works alongside more traditional forms of documentation such as photos, videos and objects. The new powerful yet simple performance captured the interest of the public who came to the museum eager to participate. The event immediately triggered criticism, comments, testimonies which circulated in institutional sites, personal blogs and social networks, producing a kind of widespread reception also with no precedent in the diversity and numbers of those involved. These notes, produced during the event and its aftermath, try to reflect these realities and place them within the frame of the ongoing critical debate around the issues raised by preservation and re-presentation of performance art to which the MoMA exhibition brought a new dimension and urgency.

key-words Performance Re-performance Exhibition Conservation


NA PRESENÇA DE MARINA ABRAMOVIC´ NOTAS SOBRE MUSEALIZAÇÃO DA PERFORMANCE1 LÚCIA ALMEIDA MATOS Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de Museum Studies Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto

1 As notas que se seguem, decorrem da visita à ex-

posição Marina Abramovic´: The Artist is Present (MoMA 14 de Março – 31 de Maio de 2010), da experiência de participação na performance The Artist is Present, especificamente produzida pela artista para a exposição, no acompanhamento do debate Marina Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance (2 de Junho) que encerrou o evento, na participação no simpósio Thinking Performance no Museu Guggenheim (18 de Junho), algum acompanhamento do eco que a exposição foi tendo junto da crítica e do público através de consultas de testemunhos publicados online no decurso da exposição, e informações obtidas informalmente junto de alguns dos intervenientes. 2

Destacam-se Art, Lies and Videotape: Exposing Performance, na Tate Liverpool em Novembro de 2003 – Janeiro 2004; After de Act, no Museum Moderner Kunst Stiftung Ludwig de Viena em Novembro de 2005 3 De que é exemplo, sem paralelo, a exposição dedicada a Marina Abramovic´, organizada, este ano,pelo MoMa.

Os processos de musealização da performance, da produção à exposição, têm vindo a ser objecto de reflexão e debate não apenas no meio profissional e institucional dos museus e no meio artístico mas também no âmbito da teoria, da história e da crítica da arte. A actual intensificação da prática da performance, aparentemente recorrente em épocas de crise social e política, reflecte-se no elevado número de apresentações de performances, pelos museus, nos últimos anos. Mais raras são as exposições antológicas dedicadas às diversas práticas da arte da performance ao longo dos anos2, ou exposições retrospectivas de percurso individuais3 que colocam dificuldades específicas de natureza conceptual e operacional. Sendo múltiplas as razões do presente interesse na musealização da performance, a idade mais ou menos avançada de toda uma primeira geração de performers não deixará de ser uma importante motivação para coleccionar, documentar e expor uma das mais significativas práticas artísticas contemporâneas enquanto o acesso directo aos seus criadores é ainda possível. Para os artistas, este interesse constitui uma oportunidade de tornar visível o seu percurso artístico, de o repensar em função da sua projecção no futuro que o museu assegura e de ter voz activa no debate em torno da eventual subversão de valores considerados intrínsecos à natureza destas obras em consequência da sua incorporação nos acervos museológicos. Em causa estão os custos que essa extensão no tempo terá para obras baseadas na efemeridade, tendo como suporte o corpo do próprio artista e predicadas na experiência ao vivo do espectador. Nascida em ambiente de contestação ao mercado, à institucionalização e ao sistema da arte em geral, situando-se algures entre o teatro, a dança e as artes visuais, a arte da performance, conforme lembra Danto no catálogo da exposição (Biesenbach,ed. 2010, 29), sempre assumiu a galeria (e por extensão o museu) como o seu lugar natural. Por outro lado, não será por acaso que, apesar da reiterada natureza efémera e precária destas obras, tantas foram, e continuam a ser, objecto de registo visual e/ou sonoro, efectuado por iniciativa dos próprios artistas. Os artistas têm consciência de que a inscrição

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da performance na narrativa da arte contemporânea e a ressonância que este tipo de prática artística possa vir a ter no futuro da arte depende, em grande parte, da sobrevivência e exposição dessa documentação só possível, a longo prazo, se integrada em colecções museológicas. Por seu lado, os museus têm tido dificuldade em lidar com a performance. Não propriamente com a apresentação no espaço museológico, que vem acontecendo desde muito cedo, mas no que respeita à sua incorporação nos acervos e posterior exposição. A consciência de que a musealização deste tipo de obras exige, para além de reflexão e debate, um ajustamento de procedimentos por parte de todos os interessados na sua conservação, é muito recente. No MoMA, o departamento de Media and Performance Art foi criado em 2006 em reconhecimento, não apenas da relevância mas sobretudo da especificidade de práticas artísticas caracterizados não só por envolverem meios tecnológicos na sua produção e apresentação, mas sobretudo por se basearem no tempo, incorporarem som e movimento e, no caso da performance, utilizarem o corpo como suporte. Na colecção, até à data, apenas cinco obras estão classificadas como performance4, e nenhuma pertence ao período inicial que definiu a prática em função de uma acção irrepetível, desencadeada pelo próprio artista, ao vivo perante uma audiência, de desenlace imprevisível. O cânone da arte da performance tem vindo a ser transformado pelos próprios artistas, expandindo-se a práticas que se destinam e serem apresentadas exclusivamente em suporte tecnológico, que envolvem a presença física de executantes mas não do artista cujo papel se resume à concepção e planeamento da acção, ou ainda executadas por outros, incluindo a audiência, de acordo com instruções apenas verbais. Estas modalidades têm em comum basearem-se em premissas conceptuais que dispensam a presença, ao vivo, do artista e implicam a possibilidade de serem repetidas. A obra de Marina Abramovic´, contudo, sempre esteve predicada na sua presença, como o título da exposição não deixou de sublinhar e as dúvidas levantadas relativamente à exposição no MoMA, consistentemente invocam essa realidade. Se a importância e significado da iniciativa de um museu, com a projecção do MoMA, de apresentar uma exposição dedicada a quarenta anos de actividade da auto-denominada “avó da performance” foi reconhecida unanimemente pela crítica, já as soluções escolhidas para expor, em ambiente museológico, performances identificadas com a figura carismática da artista, conhecida pela radicalidade e carácter transgressor de grande parte das suas obras, não mereceram, previsivelmente, unânime aprovação. Pelas questões que levantou e discutiu, as escolhas que apresentou e as soluções que propôs, a exposição, comissariada por Klaus Biesenbach5, tornou-se já uma referência no debate em curso sobre autenticidade e autoria, mediação e reapresentação, preservação e documentação da arte da performance.

Documentação A exposição, relativa a cerca de 50 obras, organizou-se em três núcleos que acompanhavam a biografia da artista, indicando a relação próxima entre a vida e a obra. Primei-

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4

Agradeço a informação a Glenn Wharton no departamento de conservação do MoMA.

5

Primeiro director do departamento Media and Performance Art e actualmente director do P.S.1 Contemporary Art Center.


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6 Freeing the Body, 1975, 8 horas, Kunstlerhaus Bethanien, Berlim: “envolvo a cabeça num pano preto/Movimento-me ao ritmo de um tambor africano/Movimento-me até ficar completamente exausta/Caio no chão. 7

Imponderabilia, Junho de 1977, 90 min, Galleria Comunale d’Arte Moderna Bologna: “Estamos de pé nus, na entrada principal do Museu, de frente um para o outro/O público que entra no Museu tem que passar de lado através do estreito espaço entre nós/Cada pessoa que passa tem que escolher qual dos dois encarar”.

8 Luminosity, Outubro de 1992, 2 horas, Sean Kel-

ly Gallery, New York: “Sentada num selim de bicicleta/ Os meus pés não tocam no chão/ A intensidade da luz aumenta gradualmente no espaço”. 9 Registos que serão entregues à artista e integrados no arquivo do Marina Abramovic´Institute for Preservation of Performance Art. Agradeço a informação a Glenn Wharton no departamento de conservação do MoMA. 10 http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/ /content/article/2010/04/15/AR201004150629 4.html 11http://www.artinfo.com/news/story/34243/

why-marina-abramovics-moma-show-underperforms/?page=1

ras obras de natureza conceptual e performances a solo (1968-1975) como Freeing the body, de 19756. Colaborações com o artista Ulay (1976-1988) de que é exemplo Imponderabilia de 19777. Trabalhos a solo, performances e instalações (1992-2010) como Luminosity de 19928. Integrando a exposição, mas fora do circuito das obras históricas, encontrava-se ainda a performance criada para a ocasião, The Artist is Present. O acesso às obras foi, em grande parte, mediado por fotografias, vídeos, gravações de som e objectos diversos utilizados durante as performances, alguns originais como a carrinha Citroen que abria a exposição, usada na performance com Ulay Relation in Movement apresentada em 1977, outros repostos como foi o caso das lâminas de barbear utilizadas em Lips of Thomas, apresentada em 1975. A quantidade e tipologia de documentação que subsiste de cada performance é naturalmente muito variável, dependendo dos meios tecnológicos disponíveis à artista no momento da produção e da própria natureza da obra. Para quem não pôde deslocar-se ao museu e usufruir da experiência ao vivo da nova performance, The Artist is Present, o museu disponibilizou on line uma parte importante da documentação da obra produzida, em tempo real, pelo registo digital em vídeo das mais das 700 horas de duração da performance e os retratos de todos os que nela participaram, sentando-se em frente a Abramovic´9. Como acontece com outras tipologias de práticas artísticas contemporâneas de base tecnológica, de instalação, ou envolvendo materiais eminentemente efémeros, a documentação tem-se revelado, também para a performance, a estratégia mais adequada para garantir tanto a sua preservação como a futura reapresentação. Mas, se de um modo geral, a documentação daquelas práticas artísticas é utilizada sobretudo para apoiar e informar processos de decisão relativos ao modo como essas obras serão conservadas e reapresentadas, no caso da performance a documentação é a exposição. Por isso, o registo de uma acção única e irrepetível, resultante do impulso de produzir uma espécie de testemunho tão esclarecedor quanto possível do que se passou, pode transformar-se, quando exposto, em substituto credível da acção. Quando o registo remete o espectador para uma temporalidade e espacialidade que este identifique com o acontecimento original, o efeito de perda e de distanciação da obra que o motivou resulta minimizado o que explica a unanimidade da crítica em torno do grau de eficácia10 da documentação apresentada: os registos em vídeos das performances mais antigas foram considerados “hipnoticamente perturbadores” uns, “comoventes” outros11, enquanto o som dos gritos da performance de 1975 Freeing the Voice, que se fazia ouvir por toda a exposição, foi apreciado como a apropriada “banda sonora de toda a exposição”.

A reperformance como estratégia de preservação A polémica centrou-se sobre a estratégia de preservação e exposição da performance que Marina Abramovic´ vem defendendo e que identifica como reperformance. O con-

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ceito inclui tanto a reinterpretação de obras de performance de outros artistas de que é exemplo Seven Easy Pieces, apresentada no museu Guggenheim em 2005, em que Marina Abramovic´ re-interpretou obras de Bruce Nauman, Vito Acconci, Valie Export, Gina Pane, Joseph Beuys e dela própria, como a reapresentação das suas performances por ela ou por outros performers, devidamente preparados para o fazerem, como aconteceu nesta exposição. A distinção entre um e outro tipo de reperformance não fica clara parecendo residir sobretudo no grau de liberdade com que o reperformer interpreta a peça original e no contexto em que a reperformance tem lugar. Para Abramovic´ a reperformance (tanto na forma de reinterpretação como de reaparesentação) é a resposta mais ajustada a duas das principais dificuldades inerentes ao processo de musealização da performance: preservar a acção ao vivo e possibilitar a participação efectiva do público. No processo de preparação e de concretização das reinterpretações para Seven Easy Pieces, Marina Abramovic´ propôs-se investigar e lançar a discussão sobre a possibilidade da performance poder ser reapresentada e definir um modelo apropriado para o fazer12. Algumas das reinterpretações não se basearam na experiência directa da artista que não esteve presente no momento das performances originais e implicaram trabalho de investigação profundo já que, para algumas, quase não existe documentação o que a fez sentir “uma arqueóloga, tentando perceber, a partir de ruínas, o que realmente aconteceu”13. Para a exposição retrospectiva no MoMA, Marina Abramovic´ preparou a reapresentação de algumas das suas próprias performances pondo em prática a metodologia que considera mais adequada para garantir a sua sobrevivência: no seguimento de uma “casting call” seleccionou, através de uma curta entrevista, um grupo de quase 40 de entre cerca de 150 candidatos e preparou-os, física e psicologicamente para darem corpo e alma às suas peças. Deborah Wing-Sproul, uma das performers seleccionada para participar na exposição, relata: Depois de ter mandado o currículo, encontrei-me com Marina. Foi só uma conversa, não uma audição formal. Ela pretendia apenas ficar com uma impressão de cada um de nós. Em termos da preparação, Marina convidou-nos para um retiro na sua casa no Hudson Valley em Agosto passado. Foram cinco dias passados sobretudo em silêncio e sem alimento. Fizemos uma série de exercícios prolongados no tempo, exercitando como estarmos lenta e completamente presentes e ultrapassarmos o desconforto físico. Dormimos no chão de celeiro e lavámo-nos no ribeiro, todas as manhãs, sempre acompanhados de Marina. Nunca sabíamos no início de muitos dos exercícios que fizemos, que incluíram contar grãos de arroz, ou sentarmo-nos de olhos vendados, se iriam durar quinze minutos ou três horas. Nunca ensaiámos. (…) Não somos actores, e isto não são réplicas – são reinterpretações, por isso não estamos a tentar reproduzir exactamente os movimentos dela14.

Para Abramovic´ trata-se de garantir que o reperformer compreende em que consiste a obra, conhece bem as características do trabalho da autora e depois confiar que,

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12Durante

o debate Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance (MoMA, 2 de Junho, 2010), Abramovic´ referiu que a performance foi, durante muito tempo, “território de ninguém”, produzida em espaços e situações “alternativas” e, por isso, vulnerável à apropriação e utilização abusivas e considerou que as condições para a re-interpretação de peças de outros artistas devem envolver obter autorização do autor ou seu representante; pagar os direitos de autor; investigar o conceito; creditar a autoria; expôr a documentação relativa à apresentação original. 13 Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance (MoMA, 2 de Junho, 2010). 14

http://nymag.com/arts/art/features/66162/


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Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance (MoMA, 2 de Junho, 2010). 16 Como testemunhou uma visitante: “sentimo-nos

constrangidos e eles não e são eles que estão nus” http://www.huffingtonpost.com/2010/03/16/im ponderabilia-abramovic-_n_500589.html

inevitavelmente introduzindo sempre algo de si próprio/a, respeita a autoria. Uma das reperformers referiu-se à sua actuação em termos de uma “tradução” admitindo que, nesse processo, algo se vai necessariamente perder mas também alguma coisa poderá ser ganha, acrescentando “há que adoptar uma atitude respeitosa para mudar sem mudar”15. Ábramovic´ compara a reapresentação de performances com a interpretação de uma mesma obra musical ou um peça de teatro, por diferentes intérpretes. Faz questão, no entanto, de distinguir performance de teatro e considera que no âmbito do conceito da reapresentação da performance, a distinção se mantém: não há lugar a ensaios mas a preparação pessoal (mental e física) e investigação (leitura do guião escrito pelo artista, visualização dos registos originais das performances e, sendo possível, conversas com a artista). Ao contrário do que se passa no teatro, na performance tudo é real: uma faca é sempre uma faca verdadeira que fere efectivamente produzindo sangue real. Este será um dos limites da utlização da reperformance no contexto do museu que necessariamente terá de excluir as que possam colocar em risco os performers ou o público. Na exposição, ao lado dos respectivos registos e despojos, cinco das performances, Relation in Time (1977), Imponderabilia (1977), Point of Contact (1980), Luminosity (1997) e Nude with Skeleton (2002), foram, pois, reapresentadas pelo referido grupo de reperformers preparados pela artista. O resultado desta estratégia tornou-se um dos pontos de maior polémica. A crítica mais negativa considerou que as reapresentações enfraquecem o impacto que a documentação de arquivo ainda transporta funcionando, quando muito, como “notas ilustrativas” das obras originais. Pondo em causa, de uma forma geral, a metodologia, a avaliação negativa referiu-se sobretudo às obras de maior dramatismo por perderem, na reapresentação, a força que o carisma de Marina Abramovic´ lhes imprime e que é, em grande parte, a razão da sua eficácia. No entanto, performances como Relation in Time e Point of Contact, que exploram conceitos de transmissão de energia entre duas pessoas por pontos de contacto ao longo do tempo, não parecem ter perdido com a reapresentação que, sobretudo funciona como meio de proporcionar ao público a experiencia actualizada, através da presença viva dos intervenientes, da energia convocada para a performance. Nude with Skeleton and Luminosity, sobrepõe ao factor tempo/energia a tensão dos corpos nus em exposição e a consequente situação de extrema vulnerabilidade, um tanto mitigada nesta, pela altura em que a reperformer se colocava, mas plenamente presente naquela. Quanto a Imponderabilia, a re-apresentação mais polémica, sofreu sobretudo com a decisão, por parte do museu, de providenciar uma alternativa de passagem aos visitantes, o que afectou a radicalidade do conceito da obra. Contudo, outras vertentes importantes da performance subsistiram nomeadamente a experiência daqueles que escolheram participar, passando pelo estreito espaço entre os dois corpos nus dos reperformers, ultrapassando constrangimentos relativos ao contacto físico com estranhos16.

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A artista está presente

17 http://www.vanityfair.com/online/daily/2010/

/03/the-athletic-artist-takes-on-moma.html 18

“Ainda que a exposição se resumisse a essa subversiva performance, ficaria entre o que de mais hipnótico já tive ocasião de ver num museu, especialmente no átrio do MoMA que já engoliu obras monumentais como o mural Nenúfares de Monet ou o Obelisco Quebrado de Barnett Newman”17. O processo de decisão Marina Abramovic´ sobre a natureza e características da obra a apresentar ao vivo e por toda a duração da exposição, no átrio do museu, é referido por Arthur Danto, que o acompanhou: Decidi que quero fazer um trabalho que me relacione mais com o público, que se concentre (…)

http://thesmartmoney.wordpress.com/2010/ 05/24/sitting-with-marina-abramovich-at-m-o-m-a-in-new-york-city-live/ 19 Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance (MoMA, 2 de Junho, 2010) 20 http://www.vanityfair.com/online/daily/

2010/03/the-athletic-artist-takes-on-moma.html 21 http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/

content/article/2010/04/15/AR2010041506294. html

na interacção entre mim e a audiência. Quero ter uma mesa simples, instalada no centro do átrio, com duas cadeiras. Vou sentar-me numa das cadeiras com um quadrado de luz, vinda do tecto a separar-me do público. Qualquer pessoa vai ter a liberdade de se sentar do outro lado da mesa, na segunda cadeira, permanecendo pelo tempo que quiser, participando de forma plena e única na Performance18.

The Artist is present, galvanizou um público heterogéneo atraindo-o a participar numa obra fundada no paradoxo de uma acção definida pela imobilidade e a indeterminação temporal e na tensão resultante da natureza eminentemente pública (no átrio do museu, divulgada online em tempo real) e profundamente privada (olhar a artista nos olhos, em silêncio). Para Marina Abramovic´ a intenção enunciada de produzir uma performance orientada para a participação efectiva do público, cumpriu-se na relação “de um para um”19 que proporcionou, reforçada com a decisão de, no início do terceiro mês, retirar a mesa, único obstáculo físico que até aí a separara de cada participante. Marina Abramovic´ ocupou a sua cadeira, de acordo com o programa que estabeleceu, durante as mais de 700 horas da exposição, coberta com um longo vestido azul em Março, vermelho em Abril, branco em Maio. A área onde decorria a performance encontrava-se definida pelo rectângulo marcado, no chão, delimitando a zona de distanciamento dos visitantes e pela iluminação que, simultaneamente, colocava em destaque as duas figuras sentadas e as isolava do restante público. O indiscutível impacto visual da performance foi diversamente acolhido e interpretado: enquanto alguns saudaram mais uma “obra simples e poderosa, de cortar a respiração”20 outros criticaram o sentido “operático” da performance com “o objectivo de espantar e impressionar”21, outros ainda compararam a figura, serenamente estática, à pose do modelo de uma pintura. Na manhã do dia 14 de Maio, sentei-me na cadeira em frente a Marina Abramovic´. Porque a fila de espera atrás de mim era longa, considerei demorar-me apenas 15 minutos. Mas não havia meio de medir o tempo, uma vez que, devendo fixar os olhos da artista, estava fora de questão consultar o relógio. Á medida que o tempo passava, a experiência isolava-me do mundo que circulava à nossa volta – sentia-o mas não o via – e isolava-me até da artista à minha frente porque não via a expressão do rosto, apenas os olhos. A consciência da passagem do tempo, da exposição pública, do desconforto físico,

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The Artist is Present, MoMA, 12 de Maio de 2010, fotografia de Lúcia Almeida Matos.


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foi-se progressivamente desvanecendo e tive a sensação que podia ficar ali por muito mais tempo. Verifiquei depois que havia permanecido 30 minutos. Ficou então clara, para mim, a razão da insistência de Abramovic´s na relevância da experiência efectiva da performance que decorre por um lado, da presença ao vivo da/o performer e, por outro, da oportunidade que é oferecida, a cada elemento do público, de se envolver directamente e assim tornar-se co-performer da peça. Em The artist is present, a parceria efectivava-se na decisão do tempo de permanência, deixada ao arbítrio do visitante, limitada apenas pelas horas de abertura do museu. Este nível de participação está necessariamente ausente da visualização de documentação, conforme pôde ser amplamente constatado por quem seguiu a transmissão online da performance: o espectador observa as imagens e eventualmente compreende o que se está a passar, avalia a radicalidade da acção e do conceito subjacente, mas a experiência está fora das possibilidades. Sendo o médium deste tipo de performance o corpo e não a sua imagem, na impossibilidade de participar no primeiro momento de apresentação da performance, a reperformance parece ser a aproximação potencialmente mais ajustada à obra inicial já que retém essa componente essencial da experiência e participação. Algumas das questões que o método levanta, foram objecto de análise e debate no simpósio Thinking Performance, no Museu Guggenheim a 18 de Junho. Claire Bishop integrou a reperformance num contexto mais alargado de “outsourcing” da prática da performance, considerando que a obra é assim apresentada “simultaneamente ao vivo e mediada”; Carrie Lambert-Beatty sugeriu que a instituição será “um espaço de possibilidades” onde poderão ser ensaiados vários modelos de exposição de perfomance; Nancy Spector reafirmou a ideia expressa, a propósito de Seven Easy Pieces de que a reperformance será uma forma “poética, não normativa (mas respeitosa) de manter a obra viva e relevante”.

Ao vivo no museu Para o museu, a estratégia de exposição de obras de performance através da sua reapresentação ao vivo obrigou ao questionamento e revisão de uma série de convenções que certamente continuarão a ser objecto de reflexão e debate. A reacção, tanto da crítica profissional como do público, polarizou-se entre a apreciação violentamente negativa e a adesão entusiástica, atestando a novidade de algumas das situações e das soluções encontradas pelo museu. Sendo a exposição o dispositivo historicamente aceite para a apresentação pública da obra de arte, determina uma relação do espectador com a obra que se pode tornar problemática quando o suporte é o corpo nu do performer. O espectador atento de uma pintura transforma-se em potencial voyeur face ao corpo nu que é apresentado, “em exposição” no museu, estabelecendo uma relação com a obra diferente da que potencialmente estabeleceria no contexto, menos codificado e formal, da apresentação inicial da performance. Por outro lado, o ambiente controlado e estendido no tempo da

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exposição, pode convidar a uma fruição mais ponderada e sensível à dimensão ética e estética das obras.. Neste contexto, serão relevantes os testemunhos dos próprios performers: A primeira obra que apresentei foi Nu com esqueleto, em que um esqueleto está deitado em cima de mim, movendo-se ao ritmo da minha respiração. Não costumo apresentar-me nua (…), mas uma vez imersa na obra, a nudez deixa de estar em causa. (…) Fui muito afectada pelo envolvimento das pessoas. Uma mulher dos seus 65 ou 70 anos, aproximou-se tanto quanto lhe era permitido e disse-me” És tão corajosa. Não és vaidosa como eu” (…). Uma mãe parou com uma criança de três anos e disse-lhe “olha para a respiração” (…) Há visitantes que choram ou que fazem uma espécie de vénia e me dizem “obrigada”22.

Também a proibição de tocar nas obras de arte ganhou uma dimensão muito particular, no contexto da exposição, com Imponderabilia, que pressupõe precisamente o contacto físico do visitante com os corpos nus dos performers, sendo que a fronteira entre a participação na obra e o abuso, foi por vezes ultrapassada. A situação de vulnerabilidade dos performers convocou cuidados acrescidos por parte dos guardas do museu atentos não só a eventuais agressões por parte do público como aos efeitos, na condição física dos performers, do esforço imposto por longos períodos de exposição em completa imobilidade ou em posições difíceis de manter. Houve que limitar os tempos de actuação e prever protocolos de rotatividade dos performers para que as reapresentações pudessem decorrer durante todo o período de abertura do museu. O recurso a dispositivos museográficos, como as vitrinas ou a iluminação artificial direccionada, utilizados nas obras reapresentadas ao vivo, se por um lado condicionaram o contacto directo com a obra, sublinharam, por outro, a natureza cenográfica que caracteriza qualquer exposição evitando assim a eventual ambiguidade que a presença dos reperformers pudesse trazer relativamente ao seu estatuto de mediadores de uma obra criada noutro tempo e lugar, colocando as reperformances num plano distinto das primeiras actuações documentadas com as imagens e os materiais da época, devidamente identificados pelas tabelas. Quanto a The artist is present, o aparato cénico exponenciado pela monumentalidade da arquitectura, que mereceu algumas críticas por contrário à natureza eminentemente directa e transgressora de grande parte da obra de Marina Abramovic´, não só não constituiu obstáculo ao cumprimento da intenção expressa da artista de convocar a participação do público, como parece tê-la facilitado: a estrutura de apresentação, simultaneamente clara e familiar nos dispositivos que usou (o rectângulo delimitando no chão a zona de acesso do espectador, a iluminação orientada para a obra) e a simplicidade da acção (sentar a uma mesa ou apenas sentar), providenciou a estrutura estável onde a experiência individual, imprevisível e, até certo ponto, incontrolável, podia acontecer. Klaus Biesenbach admitiu que imaginara a performance com a artista sentada, só, em frente a uma cadeira vazia. Afinal, Marina Abramovic´ esteve acompanhada durante toda a performance e a cadeira nunca ficou vazia.

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http://nymag.com/arts/art/features/66162/


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23 Abramovic: The Artist is Present: The Legacy of Performance no MoMA (2 de Junho, 2010)

Conclusão

24

Thinking Performance no Museu Guggenheim (18 de Junho).

A exposição reflectiu, nas suas diversas dimensões, o que o título anunciava: a presença da artista. Klaus Biesenbach fez questão de se apresentar como “comissário para Marina”23 pretendendo assim sublinhar o espaço que foi dado à artista para participar na formulação e construção do registo até hoje mais ambicioso da sua obra de performance. Marina Abramovic´ esteve presente, ao vivo, durante toda a duração do evento em The Artist is Present e representada nas fotografias, vídeos e gravações sonoras das várias fases da sua vida e obra, nas salas de exposição. Está presente no catálogo que integra um registo da voz da artista comentando e contextualizando brevemente cada uma das obras reproduzidas. Esteve presente no simpósio, após o encerramento, defendendo e debatendo as suas ideias e o seu trabalho. Esteve presente também no estabelecimento de conceitos que permearam toda a exposição (duração no tempo, presença ao vivo do performer, participação do público), o que contribuiu sem dúvida para a coerência que a caracterizou. Grande parte da polémica e das dúvidas manifestadas a propósito de vários aspectos da exposição, especialmente no que respeita a reperformance de algumas obras, fundamenta-se em percepções nostálgicas da obra de Abramovic´ e em conceitos de performance estabelecidos nos anos 60 e 70. A própria artista admite que, nessa época, não concordaria com a ideia de reapresentar as suas performances, que agora propõe. Presentemente, considera que aceitar a mudança permite ao artista crescer e participar, de forma positiva, no processo da transformação natural da obra24. Alguma transformação terá sempre lugar de cada vez que a performance for recriada ou reapresentada, em função do seu intérprete e do seu público, sendo essas transformações que manterão a obra viva e pertinente em cada momento. Esta atitude reflectiu-se directamente na exposição que, sendo retrospectiva, transformou-se num evento peremptoriamente afirmativo do presente. Essa foi, creio, a principal razão do seu sucesso e é certamente uma das mais pertinentes contribuições que a exposição (com a presença da artista) trouxe para a reflexão e o debate em torno da musealização da arte da performance. NOVA IORQUE, JUNHO DE 2010

Bibliografia BISENBACH, Klaus, ed.. 2010. Marina Abramovic´ The Artist Is Present: New York: The Museum of Modern Art. ABRAMOVIC´, Marina. 2007.Marina Abramovic´: Seven Easy Pieces. Milano: Edizioni Charta. CLAUSEN, Barbara, ed.. 2005. After the Act – The (Re)Presentation of Performance Art. Wien: Museum Moderner Kunst Stiftung Ludwig. GEORGE, Adrian, ed.. 2003. Art, Lies and Videotape: Exposing Performance. London e Liverpool: Tate.

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Resumo No que diz respeito à sua preservação e apresentação grande parte da arte contemporânea exige respostas eficazes e pragmáticas do ponto de vista da museologia. Esta situação torna-se mais evidente em obras de instalação e media art, que recorrem a múltiplos objectos, mantêm uma relação com o espaço e são alvo de fenómenos de obsolescência tecnológica, reclamando assim, estratégias que passam pela produção activa de registos documentais, a fim de garantir o seu legado a gerações futuras. A partir da obra de Alberto Carneiro Árvore jogo / lúdico em 7 imagens espelhadas, que foi pela primeira vez materializada na Galeria Quadrum, em Lisboa, em 1975, e destruída no ano seguinte pelo autor, após a Bienal de Veneza, discutimos as estratégias documentais mais adequadas. A metodologia assenta num trabalho de base antropológica, através de entrevistas com o artista, que permitam identificar todos os aspectos relacionados com o processo criativo e criar um manual de instalação, que se pretende de fácil acesso a investigadores, conservadores e até ao público em geral. Para este efeito iniciou-se um trabalho de colaboração com o Departamento de Informática da FCT-UNL com vista à construção de uma ferramenta multimédia que permita reunir num só local toda a informação relativa à obra.

palavras-chave Conservação da arte contemporânea Documentação Alberto Carneiro Representação digital

Abstract In regards to its preservation and presentation, a large part of contemporary art demands effective and practical answers in terms of museology. This situation is even more evident in installation pieces and media art, that use multiple objects, maintain a relationship with space and are subject to the phenomena of technological obsoleteness, therefore claiming strategies that use documented records in order to guarantee its legacy to future generations. From the work of Alberto Carneiro Árvore jogo / lúdico em 7 imagens espelhadas (Tree / a game in 7 mirrored images), shown for the first time at the Quadrum Gallery in Lisbon, in 1975, and destroyed a year later by its author, following the Venice Biennale, we will discuss the most appropriate documentary strategies. The method of work is based on an anthropological side, through interviews with the artist that allow us to identify all the aspects related to the creative process and to create an installation manual, which should be of easy access to investigators, conservators and the general public. To this effect we’ve started collaborating with the IT Department of the FCT-UNL in view of the construction of a multimedia tool that allows gathering in one place all information relative to the piece.

key-words Conservation of contemporary art Documentation Alberto Carneiro Digital representation


A DOCUMENTAÇÃO DE ARTE EFÉMERA COMO FORMA DE PRESERVAÇÃO: O CASO DE ÁRVORE JOGO/LÚDICO EM 7 IMAGENS ESPELHADAS DE ALBERTO CARNEIRO RITA MACEDO Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humana, UNL CRISTINA OLIVEIRA Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa NUNO CORREIA Departamento de Informática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Centro de Investigação em Informática e Tecnologias da Informação (CITI), Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL RICARDO NOGUÊS Departamento de Informática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Centro de Investigação em Informática e Tecnologias da Informação (CITI), Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL

1 Ver a propósito o texto de Cornelia Weyer, “Resto-

ration Theory applied to installation art”, disponível em http://www.inside-insltalltions.org/OCMT/mydocs/WEYER_RestorationTheoryAppliedtoInstallationArt.pdf (último acesso em Dezembro de 2009).

Preservação de Arte Contemporânea: considerações sobre metodologia Um rápido olhar para a História da Arte do século XX é suficiente para identificarmos a necessidade de repensar a sua preservação. Ao contrário do que se passava nos séculos anteriores, a arte contemporânea, a partir da segunda metade do século XX, deixa de ser constituída por objectos únicos, passando a prevalecer obras com carácter conceptual, mas por vezes muito complexas, com recurso a diversos objectos e componentes. Em vez das peças de pintura e escultura dos séculos passados, encontramos acima de tudo obras que incluem múltiplos objectos, carácter performativo, e uma necessária, e muitas vezes específica, relação com o espaço (Constantine 1999, IX). A instalação e a media art ou arte tecnológica constituem bons exemplos desta situação. A preservação da maioria destas obras exige estratégias e métodos também diferentes daqueles que a arte tradicional implicava1. Uma das razões por que tal acontece prende-se com o facto de estas obras colocarem outros problemas para além dos de carácter material. William Real chama a atenção para a questão de o conservador ter tendência a olhar para os vários objectos de uma instalação como objectos originais, dignos da maior atenção do ponto de vista físico; contudo, afirma, em

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muitos casos esse cuidado é contraproducente e altamente dispendioso, propondo que se pense na conservação de instalação tendo em conta que esta é, na maior das vezes, mais um evento do que um objecto:

because of the performance aspect of many installations, conservators working with this medium will need to look beyond the material and consider that the ‘heart’ of a work might lie primarily in its less-tangible qualities. Preserving for the future something that is above all an experience might require conservators to take a more fluid view of what may or may not be changed about a work, challenging conventional notions of accuracy and authenticity (Real, 2001, 226) Os aspectos intangíveis, sempre ignorados no âmbito de uma conservação demasiado centrada nas questões materiais, pelo menos nas culturas ditas ocidentais, tornam-se, na arte contemporânea, fulcrais. Tal acontece sobretudo nas instalações que implicam, em cada uma das suas apresentações, recriação de versões ou reinterpretações do que foi feito originalmente e contêm frequentemente elementos efémeros, cuja esperança de vida é pensada para uma exposição. Assim, a sua preservação passa pela documentação, ou pela produção activa de registos documentais, antes inexistentes. Mais concretamente, a conservação destas obras implica, da parte de quem preserva, um trabalho de construção ou mesmo de criação. Refira-se a este respeito o projecto Inside Installations desenvolvido no âmbito de um projecto europeu liderado pelo Netherlands Institute for Cultural Heritage (ICN) entre 2004 e 2007, que implicou o estudo de 30 obras de arte, pertencentes a diversos museus europeus, pondo em marcha estratégias de preservação inovadoras e iniciando uma abordagem, do ponto de vista teórico, dos aspectos relacionados com a participação dos artistas no âmbito da conservação2. A metodologia de preservação destas obras implica diversos passos, sendo fundamental a participação do artista em entrevistas conduzidas com o objectivo de clarificar o seu processo criativo, identificando técnicas, materiais, semântica, bem como aspectos relacionados com eventuais sinais deterioração e envelhecimento das obras. É fundamental compreender que este trabalho implica muitas vezes lapsos temporais grandes entre o período de criação da obra e o do seu estudo, razão pela qual é preciso estar atento à possibilidade do artista insuflar novos significados em obras que não os tinham inicialmente. Mas o carácter particular destes estudos é ainda mais acentuado pelo facto de envolver entrevistadores e entrevistados, com o objectivo de produzir resultados o mais objectivos possível. Num trabalho recente, Vivian van Saaze afirma que esta metodologia apresenta semelhanças com a da Etnografia, dado que implica uma relação observador/participante e a eleição da entrevista como instrumento chave da investigação (Van Saaze 2009, 20). Neste texto não se pretende discutir a metodologia, mas antes fazer uso dela criticamente, com o objectivo de conservar a obra “Árvore Jogo Lúdico em 7 imagens espelhadas” de Alberto Carneiro”.

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2

Ver http://www.inside-installations.org/home/ index.php, (último acesso em Março de 2010).


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Em 2003 a obra foi instalada no âmbito de uma exposição antológica de Alberto Carneiro, comissariada por Alexandre Melo, no Museu de Arte Contemporânea da Fortaleza de S. Tiago, no Funchal, com canas colhidas na Ilha da Madeira e maior número do que nas versões anteriores, o que se justificava em função do espaço a ocupar. Informação cedida em entrevista presencial, com Rita Macedo, S. Mamede do Coronado, 13 de Junho de 2005. 4

Alberto Carneiro, em entrevista presencial com Rita Macedo, S. Mamede do Coronado, 13 de Junho de 2005.

Coleccionar a arte efémera de Alberto Carneiro Alberto Carneiro (n. 1937) trabalhou em meados da década de 60 a relação entre a arte e a natureza, considerada num sentido amplo, e sobre a sua obra têm-se escrito diversos artigos de natureza histórico-crítica, inspirados por esta e pelos numerosos textos que o autor escreveu em torno dela. As possíveis teias de significação que se podem tecer em volta das obras de Alberto Carneiro são múltiplas, mas pouco ou nada tem sido dito sobre a sua materialidade e a relação desta com os aspectos semânticos que a envolvem. No entanto estes parecem, como se verá, ter extraordinária importância na obra do escultor, sendo fundamentais para a sua preservação. Do ponto de vista material é possível dividir a obra de Alberto Carneiro em três fases que, naturalmente, estão relacionados com aspectos formais e conceptuais inerentes às mesmas. A primeira, de 1963 a 1968, relativa às obras em madeira, pedra e metal, em que o autor trabalha com as tecnologias tradicionais da escultura; a segunda de 1968 a 1980, época em que recusa pôr em prática essas mesmas tecnologias, evitando a acção da mão sobre o objecto; finalmente, as obras que cria a partir de 1980, em que “regressa” à manualidade. Em 1968 cria “O Canavial: memória metamorfose de um corpo ausente” em projecto, obra que só virá a materializar em 1973, na Galeria Quadrante, inaugurando assim a segunda fase, que muda radicalmente a orientação do trabalho do autor. A obra foi adquirida para a Colecção da Caixa Geral de Depósitos que, segundo esclarece o Alberto Carneiro, “tem um conjunto de elementos”, ou seja, a propriedade da obra. Esta consiste num conjunto de canas dispostas ascensionalmente, formando conjuntos de vários elementos, atados com ráfia, sendo cada cana individualizada com uma pequena cinta de cor, contendo um algarismo ou uma letra do alfabeto. As cintas são colocadas a níveis diferentes, conforme indicam os desenhos do projecto. O emaranhado de canas prevê a possibilidade do espectador poder circular dentro da instalação, aspecto considerado fundamental para o autor. No entanto, este explica que a materialização da peça não tem necessariamente de recorrer a estes elementos3. O projecto do “Canavial…”, de 1968, prevê um conjunto de canas de número variável em função do espaço de exposição a ocupar: “uma cana ou um milhão” afirma, Alberto Carneiro no próprio projecto, que consiste numa página com vários desenhos à mão, com cortes e plantas, para uma instalação da obra. O exemplo dado no projecto “é apenas um esquema, entre várias opções possíveis, até porque, segundo explica o autor, o material determina em certos momentos, consoante as situações e as posições, formas diferentes”4. Alberto Caneiro mostra-se optimista relativamente à possibilidade de outros virem a instalar as suas obras, embora tenha consciência de quem instala uma obra opera modificações que podem acabar por introduzir factores com critérios diferentes dos seus. No entanto, explica que entende a sua obra de forma aberta. Aliás, afirma

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“todas as poéticas, e a música é um exemplo cabal disso, são transformadas por cada percepção, seja de quem for (...). Na 9ª sinfonia de Beethoven estão lá os acordes quer seja a interpretação de um Karajan, de um Solti ou de um Bernstein, no entanto, variam as interpretações. Foi muito polémico, por exemplo, quando Richter fez a interpretação de uma das sonatas de Schubert, cujo primeiro andamento tocou tão lentamente que chegou a ter mais dez minutos do que a interpretação de Brendel”. Conclui contudo, que não deixa de ser Schubert, embora no plano da percepção seja outra coisa5. É sem dúvida inspiradora a defesa de Alberto Carneiro e podemos imaginar a partir do seu exemplo o curador ou o conservador como uma espécie de maestro a reinterpretar, no futuro, a obra do artista. A grande diferença em relação à música é que a arte não tem um sistema de notação objectivo, sistema esse que, reservando lugar para a expressão do intérprete, torna muito mais clara, para quem queira aprofundar, a relação entre interpretação e criação. Por outro lado, voltando à obra de Alberto Carneiro, importa lembrar que o autor raramente deixou de estar presente na instalação ou reinstalação de uma obra sua, até porque conforme reconhece, as suas obras alteram completamente o espaço em que se inserem, o que pode ser trabalhado em diversos sentidos. Os projectos que acompanham as suas obras mais complexas, hoje, na sua maioria, pertencentes à colecção da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD), foram criados também com o intuito de fornecerem uma base para a montagem das peças. Contudo, os museus continuam a não passar sem a ajuda do artista para a instalação das obras e concordam que é necessário iniciar um estudo sobre elas do ponto de vista museológico.

Árvore jogo/ lúdico em sete imagens espelhadas O caso que aqui apresentamos, Árvore jogo/ lúdico em sete imagens espelhadas, é um exemplo desta situação. A obra foi conceptualmente desenvolvida entre 1973 e 1975, tendo sido materializada pela primeira vez, em 1975, na Galeria Quadrum, em Lisboa. Viajou para Itália para participar na Bienal de Veneza de 1976, no entanto, não chegou a ser instalada devido às reduzidas dimensões do espaço que lhe havia sido reservado. Ao regressar a Portugal, a obra acabou por ser materialmente destruída pelo autor:

Naturalmente [os materiais] voltaram à natureza, transformaram-se em energia pela decomposição, ou combustão (…) Viajaram para Veneza e não foi possível mostrar a obra por falta de espaço. Ao regressarem não senti a necessidade de os conservar uma vez que quando precisasse de repor a obra recorreria à natureza e à loja de metais. Havia ainda o problema do espaço para guardar as coisas (…).

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5

Idem.


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6 Alberto

Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008.

Portanto, transformaram-se outra vez em matéria orgânica, que é a sua origem. É necessário, relativamente a esta questão, acentuar que o âmbito da arte contemporânea comporta esta transitoriedade…6

7 À excepção do estudo de Catarina Rosendo, 2007,

Alberto Carneiro, Os Primeiros anos (1963-1975), Lisboa: Edições Colibri, IHA – Estudos de Arte Contemporânea Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 8

Comissariada por Raquel Henriques da Silva, Ana Candeias e Ana Ruivo, e que esteve patente no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian (CAMJAP-FCG), entre 9 de Outubro de 2009 e 3 de Janeiro de 2010.

9 XXXVII exposição Bienal Internacional de Arte, Ve-

neza 1976, Lisboa: SEC, 1976. Evidentemente, as imagens não correspondem a uma instalação da obra por ocasião da exposição correspondente, mas sim da sua primeira exposição, na Galeria Quadrum 10

Alberto Carneiro, Alberto Carneiro, Galeria Quadrum, Lisboa, 1975.

Durante mais de três décadas, Árvore jogo/lúdico… não voltaria a ser exposta, acabando por cair num esquecimento generalizado7. Esta situação alterou-se em Outubro de 2009, quando, por ocasião da exposição Anos 70 - Atravessar fronteiras 8, foi pedido ao artista que a refizesse. Tal como acontece nos casos das restantes obras efémeras de Carneiro, a documentação existente, até então, acerca de Árvore jogo/ lúdico… era bastante escassa e claramente insuficiente. Neste caso, a situação agravava-se pelo facto de a obra ter sido exposta, pela última vez, na década de 1970, sendo da mesma época, as únicas imagens existentes desta instalação, publicadas no Catálogo da Bienal de Veneza de 19769. O projecto, realizado por Alberto Carneiro10, e o recente estudo de Catarina Rosendo (Rosendo, 2007) o único texto histórico-crítico que aborda Árvore jogo/lúdico... completam o conjunto da documentação existente acerca da obra (FIG. 1 e 2).

FIG. 1 - “Árvore Jogo/ Lúdico”, 1975, Galeria Quadrum, Lisboa.

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Como proceder à documentação de Árvore jogo/lúdico…? Após o levantamento das fontes e bibliografia existentes, foi fundamental o contacto directo com o artista, de forma a aprofundar o conhecimento acerca da obra em diversas vertentes, desde o processo criativo à posição do autor quanto à preservação da peça. Os dados recolhidos durante as entrevistas completaram-se com o acompanhamento do processo de instalação da obra por Alberto Carneiro para a exposição no CAMJAP-FCG, tendo sido feito o registo do mesmo através de fotografia e vídeo. Terminada a fase de investigação e recolha de dados acerca da obra, enfrentámos um novo desafio: Como organizar toda a informação? Na generalidade, os sistemas de documentação, utilizados a nível dos museus e outras instituições depositárias de património artístico, foram criados para a arte dita “tradicional” (pintura, escultura…). Por este motivo, não estão ajustados à complexidade apresentada por grande parte da produção artística da segunda metade do século XX, nem à importância que a documentação pode ter enquanto estratégia de preservação. Esta situação é confirmada por María Jesús Ávila que, partindo da sua experiência enquanto conservadora da colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea, afirma que o programa Matriz, utilizado na Rede Nacional de Museus, se tem verificado incompleto para a arte contemporânea11. Curiosamente, um dos exemplos referidos pela autora, de obras que não podem ser convenientemente registadas no Matriz é Um campo depois da colheita para deleite estético do nosso corpo (1973-1976), de Alberto Carneiro. Esta inclui-se na categoria de peças “conformadas total ou parcialmente com objectos substituíveis ou com elementos naturais, que exigem antes da montagem um processo prévio de produção, de maneira a adquirir ou construir os materiais restantes ou aqueles que se deterioraram ou preparar o seu crescimento com antecedência para poder obter os elementos naturais necessários”12. Nestes casos, o programa Matriz obriga a que grande parte das informações seja remetida para o vago campo das Observações. Torna-se, portanto, evidente a necessidade de criar novos campos de documentação, mais adequados a este tipo de obras e à sua complexidade. Nos capítulos seguintes, apresentamos os campos de documentação que, por serem essenciais para a preservação da arte efémera de A. Carneiro, deverão integrar a documentação destas obras. Depois de uma descrição generalista dos objectivos de cada um, completamos com as informações obtidas no âmbito do caso de estudo, para cada campo em particular.

Novos campos de documentação Processo criativo, materiais, técnicas e significação. Este campo compreende todo o processo que vai desde a ideia inicial à materialização

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FIG. 2 - projecto de “Árvore Jogo Lúdico”.

11

Maria Jesus Ávila, “A conservação da arte contemporânea: um novo desafio para os museus”, @pha: Boletim da Associação Portuguesa de Historiadores de Arte, nº5, 2007, http://www.apha.pt/boletim/boletim5/default.htm (último acesso em Março de 2010) 12Idem.


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13”Concept

Scenario Artists’ Interviews”, 1999, www.incca.org (último acesso em Março de 2010)

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Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008. 15 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009 16

Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial. S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008.

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Alberto Carneiro, 1968-71, O Caderno Preto, ed. do autor, Porto.

da obra. O processo criativo pode ser dividido em duas fases principais: na primeira – o desenvolvimento da ideia – importa perceber se o artista fez esboços, maquetas ou afins ou se a esta foi mentalmente desenvolvida sem qualquer suporte; na segunda fase, que se prende com a materialização, interessa por um lado, entender como decorreu o trabalho, ou seja, se foi efectuado pela mão do artista ou não, se estiveram envolvidos assistentes ou outros colaboradores, se se trata de um ready-made ou um objecto encontrado, qual a importância da assinatura ou outras inscrições e, por outro lado, quais os aspectos semânticos dos materiais (características sensoriais e carga conceptual ou simbólica que lhes estejam associadas)13. A criação de Árvore jogo/ lúdico… foi despoletada quando A. Carneiro passava por um campo de oliveiras desenraizadas, de entre as quais escolheu a árvore que originalmente integrou a obra14. Esta surge como produto da confluência entre este momento e as reflexões teóricas que o preocupavam na época.

…quando encontrei as oliveiras (…) tudo se foi desenvolvendo, tudo foi acontecendo. Se eu não tivesse encontrado as oliveiras, ou se, inclusivamente, tivesse encontrado outra árvore, de outra espécie, a obra podia ter uma feição equivalente mas, naturalmente, seria diferente15. Embora o autor assuma que Árvore jogo/ lúdico… poderia ter sido construída a partir de outra espécie, a oliveira acaba por ser assumida como uma parte essencial da obra, não admitindo uma variação da espécie de árvore, como acontece noutros trabalhos como, por exemplo, em Os quatro elementos (1968) (Macedo 2008, 243-248). A. Carneiro reconhece na oliveira um valor semântico determinante:

A oliveira tem uma grande carga simbólica, sob todos os aspectos. Como o feixe de vimes, que tem uma carga antropológica, se quisermos dar este sentido. Podemos pensar na oliveira sob vários aspectos ao longo da história humana particularmente no que diz respeito às culturas mediterrânicas do sul da Europa, do Norte de África e do Médio Oriente. Esta tem um papel fundamental na cultura sob todos os aspectos, não só na produção de azeite e dos derivados, da própria azeitona, mas também depois na função que ela representa, como ramo da paz, por exemplo.16 O projecto de Árvore jogo/lúdico… é o resultado de apontamentos feitos ao longo de todo o processo de criação da obra e ocupa uma única folha A4, abrangendo tanto aspectos conceptuais, como aspectos técnicos da sua construção. O documento reflecte o facto de este trabalho se integrar no campo conceptual iniciado n’O caderno preto17, na procura da transformação da natureza em arte. O projecto inclui ainda alguns desenhos de pormenor que mostram determinados aspectos técnicos da construção da obra. O artista encara a produção destas obras como um processo, motivo pelo qual têm duas datas – a data de início e a de final. Segundo A. Carneiro: “A ideia pode existir como motivadora de um processo e depois é trabalhada ao longo do mesmo,

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FIG. 3 – Árvore jogo/lúdico…, exposição Anos 70 – Atravessar Fronteiras, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro 2009.

podendo acontecer uma metamorfose tal que, aquilo que se obtém, tendo a ver na raiz do conceito com a ideia inicial, já não é isso”18. A produção da obra inicia-se com o seccionamento da árvore em fragmentos que têm uma relação numérica entre si. De acordo com o projecto, a secção que inclui a raiz da oliveira tem 1m de comprimento (na parte do tronco), ao passo que todas as outras têm 50 cm. No entanto, na exposição de 2009, verificou-se que o comprimento destas secções pode ser de 50 ou 70-75 cm. Segundo A. Carneiro, a aplicação dos diferentes comprimentos não obedece a nenhum critério especial, relacionando-se apenas com a própria anatomia da árvore. Estas secções espalham-se pelo chão do espaço de exposição de acordo com a sua ordem natural, dos ramos mais grossos para os mais finos da copa (ver FIG. 3). A árvore sofre um “processo de mutação”19 através da enxertia que une o fragmento que contém a raiz ao seguinte, sendo estes os únicos elementos da árvore que se mantêm verticais (ver FIG. 4). O elemento da enxertia tem, para A. Carneiro, uma forte carga simbólica:

A enxertia é algo que nós colocamos noutro corpo para que se desenvolva no sentido da nossa própria escolha. Uma enxertia também pode ser algo que colocamos, por exemplo, nas árvores, para obter do bravo alguma coisa suculenta (…). Há também uma questão que poderíamos colocar no âmbito do simbólico: a frutificação, o nascimento, a redenção, de todas as coisas. (…) Não se pode ler essas coisas numa obra de arte senão no plano simbólico, não há transcrição literal possível, nem há explicação objectivável; nós aproximamo-nos do quotidiano real e utili-

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18

Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009. 19 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008.

FIG. 4 – Árvore jogo/lúdico…, pormenor da enxertia, exposição Anos 70 – Atravessar Fronteiras, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro


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Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009. 21 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008 22

Idem.

zamo-lo para o transformar noutra coisa, que é a obra de arte, a qual transcende a própria realidade e cria um mundo metafórico de que precisamos20. Depois de transformar a oliveira, o autor procurou formas de tornar o real (a árvore) em virtual e de expandir o espaço. Para o efeito criou as “imagens espelhadas”: chapas metálicas espelhadas rectangulares, de 2x1m, que são suspensas em suportes construídos com canas que reflectem a árvore, criando imagens a partir do real (ver FIG. 5). Ao pousarem no chão, as placas curvam, o que resulta num reflexo côncavo ou convexo no qual as próprias imagens estão em transformação, em metamorfose. O conceito da metamorfose é recorrente no trabalho de A. Carneiro, sendo assumido por si como uma noção fundamental21. Por outro lado, as superfícies côncavas e convexas “chamam para dentro o que está fora e deitam para fora o que está dentro”22, multiplicando o espaço e, simultaneamente, criando uma fluidez espacial em que o interior e o exterior da obra se confundem. Do lado da raiz da árvore, duas imagens espelhadas (duas chapas metálicas suspensas) formam a “parede da terra”, do lado da copa, 4 imagens espelhadas (4 chapas metálicas suspensas) formam a “parede do céu”. Este rebatimento para a horizontal, do eixo que liga o céu à terra é, também, uma transformação da realidade em imagem. Na união das diagonais que ligam os cantos da “parede da terra” aos cantos opostos da “parede do céu” encontra-se o “coração da mandala”, um pedaço de barro (do

FIG. 5 – Árvore jogo/lúdico…, «imagens espelhadas» («parede do céu»), exposição Anos 70 – Atravessar Fronteiras, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro 2009.

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mesmo da enxertia) no qual são espetadas algumas secções da árvore, em número proporcional ao número de zonas de corte (1 por zona), depois de envolvidas em chapa de alumínio, (ver FIG. 6). Este processo tem como objectivo “criar um artifício, como o das chapas, metendo dentro do tronco, através do espelhamento da superfície, a envolvente, a realidade, em certo sentido, criar a ilusão do incorpóreo dos próprios troncos”23. Sob o “coração da mandala” encontra-se a “imagem espelhada do coração da mandala”, uma placa metálica espelhada igual às restantes.

23

Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009 24

Idem.

25

Idem.

A mandala atravessa, como representação simbólica, praticamente todas as culturas. Encontramo-la desde a antiguidade clássica, naturalmente, sem esta designação, que nos vem do tantrismo e da cultura Hindu. É uma figura que harmoniza e representa a relação entre o ser e o universo. Ela organiza-se não por uma fixação no centro, mas por energias geradas entre um centro e a sua extensão para fora, entre o que está dentro e o que está fora. Ela propicia a meditação e o fluir das energias numa relação entre o mais íntimo do ser e o cosmos, o que, aliás, corresponde à situação real da obra de arte. Toda a arte não é mais do que, no meu entendimento e no campo de percepção da pessoa que vai ao encontro dela, um processo de trocas, entre o espectador e ela mesma, nesse processo constante de descoberta. A obra de arte tem essa função, hoje mais do que nunca…24 Todos os elementos feitos com barro (a enxertia e o “coração da mandala”) exibem a “marca vigorosa do trabalho das mãos”, algo que está bem marcado no projecto. Para Alberto Carneiro, a marca das mãos no barro é um símbolo da presença do corpo:

Quando nós tocamos a matéria para a transformar em arte marcamos a nossa memória sobre ela. É por isso que eu digo insistentemente que toda a criação é, no domínio da arte, individual, e toda a criação é autobiográfica. Quando eu digo que é autobiográfica é nesse sentido da projecção do corpo para fora e da projecção da memória do corpo sobre a matéria.25

FIG. 7 - Esquema de Árvore jogo/lúdico e os seus diversos elementos.

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FIG. 6 – Árvore jogo/lúdico…, «coração da mandala», exposição Anos 70 – Atravessar Fronteiras, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro 2009.


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Idem.

27 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008.

Confrontado com a possibilidade de a obra vir a ser refeita por outra pessoa no futuro, deixando de exibir a sua marca, Alberto Carneiro retorque: “a autoria não é importante nesse sentido, as marcas das mãos são efectivamente as marcas das minhas mãos, mas seriam as marcas de qualquer pessoa que construísse a obra.”26.

Caracterização da obra O campo de caracterização da obra abrange aspectos diversos que vão desde os materiais que a constituem à interacção com o espectador. Começamos pelo inventário e caracterização dos materiais que constituem a obra. Neste campo descrevem-se os primeiros em termos de aspecto, medidas, quantidades e fornecedores e, quando pertinente, recorre-se a técnicas de exame e análise para caracterizações mais profundas. Mais do que uma análise exaustiva, pretende-se que esta secção, baseando-se no estudo já feito em processo criativo, materiais técnicas e significação, seja capaz de dar relevância aos aspectos indispensáveis para que os materiais cumpram a sua função, face ao sentido da obra. Efectivamente, embora uma análise exaustiva dos mesmos possa ter a sua utilidade, esta distinção entre os aspectos essenciais e os acessórios é fundamental. Por um lado, caso haja necessidade de substituir os materiais utilizados, permite que se tomem as decisões acertadas na eventualidade de não se encontrarem materiais exactamente iguais. Por outro lado, dá-nos uma referência através da qual poderemos avaliar os processos de envelhecimento e justificar a necessidade ou não de intervenção, já que permite perceber quais as características principais dos materiais que, ao não serem cumpridas, afectam o sentido da obra. Segue-se um inventário de partes, útil em todas as peças constituídas por mais do que um elemento. Nesta secção, pretende-se uma descrição detalhada de cada parte, devendo ser incluídos esquemas e/ou imagens que tornem a sua compreensão mais fácil. A caracterização da obra inclui ainda outros factores como a iluminação, critérios especiais que possam ser relevantes relativamente ao espaço de exposição (dimensão mínima, cor da sala, tecto ou chão, necessidade de insonorização, descrição de estruturas arquitectónicas que seja necessário construir…) e ainda som, movimento, interacção com o espectador, equipamento necessário, tecnológico ou de outra natureza, bem como outras características que possam ser importantes na obra. Embora num sistema de documentação estas secções devam surgir discriminadas, decidimos aqui juntá-las de forma a facilitar a leitura do texto. Alberto Carneiro não define critérios muito específicos na escolha dos materiais que constituem a obra. Quanto à árvore, requer que seja uma oliveira desenraizada por outrem para outro fim, que não o da elaboração da obra. O autor frisa que não mata nenhuma árvore para a produção das suas obras, nem consideraria a hipótese de desenraizar uma oliveira propositadamente para construir Árvore jogo/ lúdico…27. No projecto escreve: “procurar exemplar que se coadune com o espaço de arte esco-

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lhido”. Quando questionado acerca deste aspecto, refere, somente, que a árvore deverá ter uma dimensão adequada, não podendo ser muito pequena nem muito grande, com um tronco que tenha, na base, um diâmetro entre 40 e 50 cm28. Como foi referido, a secção de maior comprimento, que inclui a raiz da árvore, e a secção seguinte são unidas por uma simulação de enxertia. Na FIG. 8 encontramos um esquema da estrutura da enxertia, antes da aplicação do barro. No corte transversal de cada uma das secções, são feitos três furos, em triângulo equilátero. Nestes furos são encaixadas barras de ferro29, com cerca de 30 cm de comprimento e 1cm de diâmetro, ligando as duas secções. Depois de concluída esta fase, inicia-se o preenchimento com barro, tendo o cuidado de deixar, no final, a marca dos dedos. Alberto Carneiro não exige nenhum tipo de argila em particular. Na instalação de 2009 de “Árvore jogo/lúdico…”, foi utilizada uma argila que exibe um aspecto acastanhado antes da secagem, adquirindo um tom branco após secagem. As “imagens espelhadas” são constituídas por chapas metálicas que deverão ter um reflexo difuso, onde se lê a forma mas não o pormenor,30 e serem suficientemente finas para que façam uma curvatura natural ao pousarem no chão. Na primeira exposição da obra, o alumínio foi escolhido pela sua leveza, que permite este efeito31. Já em 2009, foram utilizadas placas de aço, uma vez que, segundo Alberto Carneiro, já não fabricam placas de alumínio espelhadas. Este dado confirma que o artista valoriza os materiais sobretudo pela sua função e estética, e não pelo tipo de material em si, uma vez que não hesitou em mudar aquele que foi originalmente utilizado, por outro cujo efeito final é semelhante. Este aspecto fica também muito claro nas suas palavras, em entrevista presencial: “Eu encontro e escolho os materiais em função daquilo que pretendo como processo de realização e comunicação dos conceitos”32. No topo das chapas metálicas são feitos furos a uma distância de 10cm por onde passa corda de sisal de forma a prendê-las aos suportes de canas (“suportes naturais das imagens espelhadas”). Carneiro refere que, caso não encontrasse corda de sisal, utilizaria o metal e não produtos à base de petróleo33. Os suportes de canas são compostos por duas ou 3 estruturas verticais (a “parede da terra” tem duas a “parede do céu” tem três) em tripé. Cada uma destas estruturas (ver FIG. 9) é constituída por três canas de 2,5m que se unem perto do topo, e com inclinação suficiente para que a sua união esteja a cerca de 1,90 do chão (de forma a que as chapas metálicas toquem no chão e se curvem). Alberto Carneiro não estabeleceu critérios objectivos para a iluminação da obra que, na exposição “Anos 70 – Atravessar Fronteiras”, foi feita já depois de concluída a instalação da mesma e na ausência do autor. As suas especificações foram no sentido de não haver iluminação directa sobre a peça, uma posição que adoptou em todas ou quase todas as suas obras, uma vez que considera que “uma luz manipulada altera a forma, altera a obra e altera as relações, desvirtuando-a”34. Embora Carneiro afirme que esta obra apresenta dimensões variáveis, aponta como mínimo as medidas 4 x 6 m, aproximando-se a um rectângulo de ouro35. Durante a instalação da obra, em 2009, tentámos perceber, junto do artista, qual o efeito

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Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009. 29

Segundo o autor.

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Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008. 31

Idem.

32

Idem.

33

Idem.

34

Idem.

35 Alberto Carneiro., Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009.


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FIG. 8 – Esquema da estrutura da enxertia, antes da aplicação do barro.

36 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008. 37 M. Grün, 2007, “Measurement of Installation Art. Methods and experience gained at Pinakothek der Moderne”, http://inside-installations.org/ OCMT/mydocs/Measurement_at_Pinakothek_de r_Moderne.pdf (último acesso em Março de 2010).

FIG. 9 – Esquema dos suportes em cana das imagens espelhadas. (a) cana com 2.50m; (b) cana com 0.75 m.

desejado na relação da mesma com o espaço de exposição. Este referiu apenas a necessidade de haver espaço de circulação em torno da obra e comentou que embora tivesse preferido que a obra ficasse centrada no espaço, tal não foi possível pelo facto de se tratar de uma zona de passagem para o resto da exposição. Apesar de na exposição de 2009, a quantidade de ramos que se espalham pelo chão possa fazer pensar o contrário, esta é, na intenção do artista, uma obra penetrável36.

Mapeamento da obra No caso de trabalhos que integrem partes com uma distribuição espacial que não varie consoante o espaço, ou que sejam site-specific, é importante a realização de um mapeamento da obra, no qual se assinale a posição de cada um dos elementos. Este pode ser feito manualmente, o que será bastante trabalhoso e demorado no caso de obras com muitos componentes, ou através de técnicas mais sofisticadas, como a utilização de medições geodésicas37. Em obras que variam a sua distribuição espacial, este tipo de documentação não deixa de ser útil, quando feita para cada apresentação em particular, uma vez que exemplifica o tipo de disposições que as peças podem adoptar consoante o espaço de exposição e, assim, serve como referência para futuras instalações. Árvore jogo/ lúdico… integra este segundo grupo. Depois da instalação da obra para a exposição “Anos 70 – Atravessar fronteiras” foi feito um mapeamento dos principais elementos que, em conjunto com as já referidas indicações do autor acerca da relação da peça com o espaço de exposição, poderá servir como referência para futuras apresentações.

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Manual de instalação

38 http://inside-installations.org/OCMT/mydocs/ Revolution3D.mov (último acesso em Março 2010). 39

O manual de instalação é essencial na documentação da obra. Neste se descreve todo o processo de montagem, com o máximo de pormenor possível. Poderá ser acompanhado por esquemas, vídeos da montagem, ou auxiliares mais sofisticados, como, por exemplo, modelos de animação 3D que mostram a sequência de montagem da obra, tal como foi feito para Revolution de Jeffrey Shaw, no âmbito do projecto Inside Installations…38. O manual de instalação deverá referir ainda aspectos de logística que sejam relevantes, por exemplo, o número de pessoas necessário para instalar a obra, ou o tempo aproximado de duração de todo processo. No caso de Árvore jogo/lúdico… este analisa, sobretudo, a construção das diversas partes que constituem a peça. O vídeo da instalação da obra foi editado como manual de instalação, podendo ser utilizado como tal. Na ficha da obra, construímos uma versão escrita do manual, recorrendo a esquemas e a imagens retiradas da filmagem. Pretende-se que no futuro estes dois tipos de informação se integrem39, ou seja, que o utilizador possa ler acerca da construção da enxertia por exemplo, vendo o vídeo correspondente. Na instalação de Árvore jogo/lúdico… para a exposição Anos 70 – Atravessar fronteiras, Carneiro contou com o auxílio de três funcionários da FCG. No total, a instalação da obra durou cerca de 7 horas, tendo sido feita ao longo de dois dias. Depois de explicar aos seus “assistentes temporários” o modo como se faziam os diversos elementos da obra, A. Carneiro deixou-os continuar o processo, limitando-se a orientar. No fim, foi o artista a dar um “toque final”, quer nos elementos que incluem barro (o “coração da mandala” e a enxertia) onde deixou a marca das suas mãos, quer na própria disposição das secções da árvore.

História da obra Na área da arte contemporânea e, sobretudo, no âmbito da instalação, a variação não só material mas também formal da obra é um fenómeno bastante frequente. Analisar a história da instalação e as diferenças entre as diversas apresentações, será essencial na determinação da latitude de variação da obra. Simultaneamente, permite estabelecer quais os aspectos mais relevantes, que se mantêm ao longo do tempo. Note-se que, por vezes, a variabilidade é tal que não possibilita o preenchimento de campos como caracterização da obra, manual de instalação ou mapeamento da obra de uma forma absoluta, aplicando-se a todas as suas apresentações. Nestas situações, estes dois campos deverão ser remetidos para a história da instalação, sendo repetidamente preenchidos a cada apresentação. Em vez de um manual de instala-

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Cf. Capítulo “Representação digital”.


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Cf. capítulo “Caracterização da obra”.

ção intemporal teríamos vários manuais correspondendo às diversas versões da obra e, mais uma vez, dando uma noção dos limites da sua variabilidade. No caso de Árvore jogo/lúdico… a variação dá-se, sobretudo ao nível das dimensões da obra e dos materiais. Na história da instalação são registadas as diferenças na distribuição espacial e as alterações nos materiais usados. No que diz respeito à distribuição espacial, embora não tenhamos termo de comparação relativamente à apresentação da obra em 1975, poderemos comparar futuras apresentações com a de Outubro de 2009, uma vez que para esta foi efectuado o mapeamento dos diversos elementos. No que diz respeito aos materiais, é assinalável a mudança a nível das “imagens espelhadas” de alumínio para aço40.

Representação digital – uma experiência em progresso

FIG. 10 – Exemplo do grafo de conceitos.

Como se pode constatar, a documentação da obra em estudo apresenta um volume de informação considerável, sendo que esta se encontra em diferentes formatos, desde o texto à fotografia, passando por meios como o desenho, o vídeo, o áudio, entre outros. Com o objectivo de reunir toda a documentação que diz respeito à obra trabalhámos em conjunto com o Departamento de Informática da FCT-UNL que iniciou o desenvolvimento de um sistema que permite reunir num só local toda a informação. A aplicação informática criada suporta a descrição da peça, com o objectivo de tornar o processo de documentação mais flexível, baseando-se num grafo de conceitos, que o utilizador pode manipular, adicionando e removendo nós (conceitos). (FIG. 10) É de realçar que este tipo de flexibilidade permite documentar obras de vários tipos. Existem, contudo, alguns problemas relacionados com esta abordagem. Por exemplo, o número de conceitos no grafo pode resultar numa visualização confusa se este crescer para além de certos limites. Para resolver este problema, a navegação no grafo faz-se visualizando subconjuntos do mapa de conceitos. Desta forma é mostrada menos informação ao utilizador facilitando-se o processo. Assim, o nó seleccionado pelo utilizador passa para o centro da visualização, sendo a transição entre os vários estados do grafo animada. A animação é utilizada com o intuito de reduzir ao máximo a potencial desorientação gerada pela navegação. Sendo as transições animadas, o utilizador pode habituar-se ao novo estado facilmente. (FIG. 11) Quando os grafos são grandes podem surgir questões como “Qual é o caminho que já percorri?” ou “De que conceito parti?”. Para resolver estas questões foi também realizado um histórico dos nós já percorridos durante a navegação. Desta forma, o caminho percorrido e os conceitos consultados até então ficam sempre disponíveis ao utilizador. Para além desta forma de documentação básica da obra, o sistema permite ainda juntar a cada nó elementos multimédia. Ou seja, cada nó pode conter vários destes elementos tais como vídeos, imagens, textos, referências para outras

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FIG. 11 - Identificação de elementos para hiperligação na representação fotográfica da obra.

páginas Web, áudio ou modelos tridimensionais. Para uma fácil consulta destes elementos, o utilizador tem na interface uma lista que contém toda a informação multimédia presente no sistema relativa à obra. De referir ainda que a ferramenta permite que se documentem várias obras numa mesma sessão de utilização, possibilitando assim a criação de um catálogo de obras documentadas. Na interface do sistema, o utilizador terá acesso a todas as obras abertas. Como cada peça tem associado um grafo de conceitos, quando um utilizador selecciona uma obra em particular a janela que contém o grafo é actualizada com a informação respeitante à nova selecção. Uma das características fundamentais deste sistema é a possibilidade da documentação da obra ser completada por um modelo tridimensional. Frequentemente, as instalações não estão fisicamente disponíveis, permanecendo durante muito tempo nas reservas dos museus, pelo que a visualização de uma representação tridimensional poderá contribuir para a minimizar este problema, funcionando como uma espécie de “experiência” da obra. Esta visualização torna-se particularmente útil com a adição de hiperligações, que possibilitam a chamada de atenção para uma área da obra em particular. A estas hiperligações podem ser adicionados também outros elementos multimédia já presentes no sistema. Para além disso, as hiperligações podem também ser adicionadas às imagens e aos vídeos, o que permite que, para além do grafo de conceitos, se crie outra rede de ligações entre os vários elementos multimédia. Reunindo na mesma aplicação uma forma de documentação mais abstracta, como o grafo de conceitos, e uma forma mais específica, como o modelo 3D, o sistema visa flexibilizar o processo de documentação de instalações. No entanto, a possibilidade de adição de outros elementos multimédia ajudará a completar e melhorar a documentação existente.

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Catálogos XXXVII exposição Bienal Internacional de Arte, Veneza 1976, Lisboa: SEC.

Entrevistas presenciais Alberto Carneiro, Rita Macedo, Lisboa, 5 de Junho de 2005 Alberto Carneiro, Rita Macedo, S. Mamede do Coronado, 13 de Junho de 2005 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 27 de Novembro de 2008 Alberto Carneiro, Cristina Oliveira, entrevista presencial, S. Mamede do Coronado, 10 de Março de 2009

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Resumo Em museologia e história da arte, o que acontece nos bastidores dos museus permanece relativamente oculto e é raramente discutido. De uma forma geral, nas artes, o que é considerado como irrelevante (por exemplo, no âmbito das práticas) está deliberadamente desligado do que realmente conta; teoria, discurso, conteúdo e significado. Até agora, actividades de bastidores, como práticas de conservação são apenas discutidas entre especialistas e técnicos de museus. Apenas os resultados destas discussões são por vezes, se é que alguma vez, comunicados explicitamente para um público maior. Estudos nas práticas da conservação da arte mostram que estas práticas ocultas desempenham um papel importante na manutenção de obras de arte contemporâneas não-tradicionais. O que acontece nos bastidores em termos de conservação tem, em várias medidas, efeitos importantes na manutenção destas obras de arte num contexto museológico. Práticas de conservação, no meu entender, deverão fazer parte da museologia e da história da arte. Como é que as práticas de trabalho dos conservadores se podem tornar mais visíveis e transparentes para uma diversidade de públicos, incluindo investigadores? E o que significa isto em termos de metodologia de investigação?

palavras-chave Apresentação e conservação de arte contemporânea Instalações Práticas museológicas Frente da cena / bastidores

Abstract In museum studies and history of art, what happens behind the scenes of museums stays relatively unseen and unspoken about. In the arts, generally speaking, what is dismissed as irrelevant (e.g. the realm of practices) is deliberately detached from what is thought to really matter; theory, discourse, content and meaning. Up till recently, backstage activities such as conservation practices are merely discussed among specialists and museum professionals. Only the outcomes of these discussions are sometimes – if at all – explicitly communicated to a larger public. Studies into the practices of contemporary art conservation however show that practices behind the scenes play an important role in the perpetuation of these artworks. What happens behind the scenes in terms of conservation has, in several ways, important effects on the ongoing life of these artworks in a museum context. Conservation practices, I argue, should therefore become a necessary part of museum studies and history of art. How can the working practices of conservators become more visible and transparent to a diversity of audiences, including researchers? And what does this mean in terms of research methodology?

key-words Presentation and conservation of contemporary art Installation artworks Museum practices Frontstage / backstage


GOING PUBLIC: CONSERVATION OF CONTEMPORARY ARTWORKS BETWEEN BACKSTAGE AND FRONTSTAGE IN CONTEMPORARY ART MUSEUMS VIVIAN VAN SAAZE Postdoctoral researcher Maastricht University Faculty of Arts and Social Sciences Department of Literature and Art

The next time you marvel – admiringly or not – at some oddity of contemporary art in a museum collection, know that it has probably passed through a cross fire of conversation among art professionals unheard by the public.

Kenneth Baker, San Francisco Chronicle

Introduction In history of art, museum studies and the museum gallery, what happens behind the scenes of museums in terms of contemporary art conservation practices stays relatively unseen and unspoken about. Generally speaking, only the outcomes of conservation discussions are sometimes – if at all – explicitly communicated to a larger public. Although understandable from the perspective of the history of museums and conservation – in the light of installation artworks and current developments in contemporary art conservation – a different approach seems appropriate as practices behind the scenes play an important role in the perpetuation of much contemporary art. This article explores recent developments in the conservation of installation artworks and suggests that, to avoid a reductive reading of installation artworks these backstage activities need to be acknowledged in art historical readings as well as museum displays. What happens behind the scenes in terms of conservation and decision-making has, in several ways, important consequences for the perpetuation and understanding of these artworks in a museum context. Through the discussion on conservation of installation art the article tries to demonstrate how installation artworks defy the museum to open up the spaces and practices behind the scenes of display.

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Backstage and Frontstage in Museums In museums, like in other production houses such as laboratories, daily practices involved with ‘the making of’ are mostly considered irrelevant to the public’s eye and stay sub rosa. The museum has a long history of maintaining authority by manufacturing certainty, presenting itself as well-structured, employing rational methods while concealing the messier, more contested part of behind the scenes practices. In this light, the museum can be characterised as being two-faced: a confident face that is directed outwards, and a less confident face that is directed inwards. The latter face dominates the process that evolves prior to each display but is hardly made visible to outsiders. From this perspective, museum practices of presentation and conservation can be understood in terms of Erving Goffman’s distinction between ‘front region’ (or frontstage) and ‘back region’ (or backstage).1 In his seminal The Presentation of Self in Everyday Life (1973, first published in 1959), Goffman develops a dramaturgical perspective in which social interaction is analyzed in terms of theatrical performance. In Goffman’s terminology, ‘front region’ actions are visible to the audience and are part of the performance. ‘Back region’ is applicable to the activities and behaviors of people when there is no audience present. Goffman:

I employ Muñoz Viñas’ (2005: 15) broad use of the term conservation as the sum of conservation activities including preservation (the activity that avoids alterations of something over time) and restoration.

Since the vital secrets of a show are visible backstage and since performers behave out of character while there, it is natural to expect that the passage from the front region to the back region will be kept closed to audience or that the entire back region will be kept hidden from them. (Goffman 1973: 113) In studying arts, generally speaking, what is dismissed as mundane and irrelevant (e.g. the realm of backstage practices) is deliberately detached from what is thought to really matter; theory, discourse, content and meaning. Front / back, theory / practice, text / context, content / practicalities, meaning /matter are treated as dichotomies; clearly separated from each other. It can be argued that, as a consequence of these persistent dichotomies, back region activities in museums such as conservation practices have long been deliberately concealed from the public eye. Moreover, the long history of conservation controversies demonstrates that conservation activities can be considered to be high-risk activities: they can lead to heated public debates, devaluation of monetary and felt value of artworks, and even to the expulsion from their profession of people held responsible for supposed mistakes. Needless to say, the fear for harmful rumors, controversies, scandals, loss of reputation and lawsuits may also encourage the strand of concealment and secrecy in conservation and reiterates the tendency to keep such activities and information behind closed doors. Another clarification for the persistent dichotomy between frontstage (presentation) and backstage (conservation and collection management) can be found in the politics of the museum and the per-

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FIG. 1 – Contemporary art conservator Evelyne Snijders at work on Papille, part of the installation Clamp (1995) by Franz West (1947) during the exhibition ‘Inside Installations’, Kröller-Müller Museum. Dimensions: variable. Collection: Kröller-Müller Museum, Otterlo, The Netherlands. Photo: Sanneke Stigter/KMM, 2006.


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2 The staging of conservation activities can be pla-

ced within a more general trend of increasing attention for ‘behind the scenes views’ of museums. Popular broadcastings are for instance BBC’s documentaries: ‘The Museum’ behind the scenes at the British Museum, and ‘Museum of Life’ giving the viewers an inside look at the Natural History Museum in London. ‘Behind the Scenes of the Smithsonian Institution's National Museum of Natural History’ is a Pod-cast series of similar fashion. 3 On view from September 21, 2002, through January 5, 2003. 4

The exhibition was on view from December 18, 2008, through June 1, 2009. The Getty website provides a thorough documentation of the exhibition including detailed information on several restorations. http://www.getty.edu/art/ exhibitions/fragment_to_vase/, accessed March 2010.

FIG. 2 - 1984 and beyond (2005-2007) by Gerard Byrne (1969). Video-installation. Dimensions: variable. Collection: Kröller-Müller Museum, Otterlo, The Netherlands. Photo: Cary Markerink.

sisting stereotyping of the conservation profession. Traditionally, and perhaps as a consequence of the dominance of the hands-off dictum, the profession has been burdened with a relentless image of the conservator as a passive custodian wearing white gloves and a white laboratory coat, tucked away in a conservation studio somewhere at the back of the museum. In its focus on the care for the material object, conservation, it has been argued ‘can end up as an expensive nuisance in the eyes of those trying to create exhibitions, run excavations, open museums etc.’ (Caple 2000: 183). However, if we take a look at museum display of traditional art, we see an increase of interest in behind the scenes activities of museums in general and conservation activities in particular.2 Especially painting restoration is increasingly becoming a topic considered worthwhile of gallery presentations. Without intending to be complete, it is useful to briefly mention some of these exhibitions. An example is Princeton University Art Museum’s exhibition ‘Beyond the Visible: A Conservator's Perspective’ which was devoted to the conservation of nine old master paintings from the museum collection.3 Another, more recent, example is the extensive exhibition ‘Fragment to Vase: Approaches to Ceramic Restoration’ at the Getty Villa in 2009. In the accompanying brochure it reads: ‘this exhibition explores historical and contemporary approaches to the restoration of classical vases and provides a behind-the-scenes look at how fragmentary vessels are reconstructed at the Getty Villa to reveal their original forms and painted designs.’ For the conservators of the Getty Villa, it was quite a novelty to prepare for an exhibition and to take on related tasks which are usually assigned to the curatorial staff.4 In these examples of conservation display, the act of conservation and restoration is depicted as an exhibition theme. In such thematic exhibits the art objects on display

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mainly function as illustrations to a broader narrative on, for example, the profession of restoration or scientific methodologies. The general aim of these exhibitions is to raise public awareness of restoration activities. Yet, it is also no longer uncommon for museums to provide some information on conservation treatment and technical research, for example on a display nearby the actual exhibit or through multimedia tours. In this type of presentation, the art object remains central and information on its (conservation) history and subsequent treatments are considered to be background educational information aiming to enhance the museum experience. Besides such staging in actual museum contexts, the topic of art conservation is also subject to other kinds of (media) attention outside of the museum walls. Especially internet is increasingly regarded as a compelling site to communicate about behind the scenes practices of conservation. A recent initiative, for example, is a public education website containing 100 conservation science stories ‘to increase knowledge of art conservation science among non-specialists, and improve attitudes towards the sciences among students and the general public.’5 These examples show that several legitimating reasons are addressed for making conservation accessible to a larger public: conservation is used to serve as a bridge between the arts and the sciences or displaying conservation is for example believed to increase public awareness for art historical and technical research. Whatever the reasons are, in general the profession of conservation is believed to arouse the public’s curiosity and thus attract more visitors. The online journal CEROART goes so far

FIG. 3 - 25 Caramboles and Variations. A Birthday Present for a 25 Year Old (1979) by Miguel-Ángel Cárdenas (1934). Video-installation. Dimensions: variable. Installed for the exhibition ‘30 years of Dutch Video-art’, Netherlands Media Art Institute (NIMk). Collection Stedelijk Museum, Amsterdam, The Netherlands. Photo: NIMk, 2003.

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Centre of Interdisciplinary Science for Art, Architecture and Archaeology at University of California San Diego. http://cisa3.calit2.net, accessed April 2010.


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See the announcement to the special issue on ‘restoration on the stage and behind the scenes’ of CEROART, issue 5, spring 2010. http://ceroart. .revues.org/, accessed March 2010.

as to describe the current heightened public attention for conservation activities as ‘a spectacularisation of the profession which is being mediatised, filmed, televised, podcast; it headlines magazines and programmes with a wide audience base, and has been accorded a specific type of prestige.’6 Of course, the effects of display will highly depend on the way conservation is displayed. In a recent article on the emergence of conservation exhibitions, Annlinn Kruger distinguishes at least two strategies: whether a conserved work appears as a player (a work of such significance that it causes the act of its conservation to be staged) or a prop (of only incidental significance to staging acts of conservation) (Kruger 2010: 4). Although the public familiarisation of conservation is sometimes met with scepticism, for museum educators, curators and conservators, these developments raise many interesting questions such as: to what extent should conservation information be considered as an integrated part of exhibition discourse? How does conservation information in the gallery influence the artwork’s experience and how to convey expert knowledge to a lay-audience? Perhaps one of the most important challenges of making conservation accessible to a larger audience lies in a meaningful bridging of backstage and frontstage. In the following section I will argue that dissolving the boundaries between conservation (backstage) and presentation (frontstage) is inherent to the accessioning of installation artworks into museum collections. Also, I will suggest that recognition of the blurring of boundaries between backstage and frontstage may provide insightful perspectives on the artworks involved and the museums in which they circulate.

FIG. 4 - A Virus of Sadness, the Virulence of Loneliness (1990) by Lydia Schouten (1949). Video-installation. Dimensions: 350 x 600 x 800 cm. Installed at the occasion of a pilot-study into the conservation of installation artworks, Netherlands Institute for Cultural Heritage (ICN). Collection: ICN, The Netherlands. Photo: Tim Koster/ICN, 2002.

FIG. 5 - A Virus of Sadness, the Virulence of Loneliness (1990) (detail) by Lydia Schouten (1949). Video-installation. Dimensions: 350 x 600 x 800 cm. Installed for the occasion of a pilot-study into the conservation of installation artworks, Netherlands Institute for Cultural Heritage (ICN). Collection: ICN, The Netherlands. Photo: Tim Koster/ICN, 2002.

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Towards a Public Face of Conservation of Installation Artworks Although the topic of conservation of contemporary art has been on the research agenda since the 1990s, and despite a growing body of literature as well as the many conferences on these topics, conservation issues and subsequent museum’s interventions are not often seriously addressed outside conservation literature. In general, deliberation processes and conservation treatments take place behind closed doors, cautiously concealing them from the museum public. In contemporary art museums installation artworks are usually presented as fixed and finished artworks, thereby neglecting the sometimes far-reaching physical changes of conservation decisions and successive installation moments. Although this is surprising considering installation’s paradoxical intertwinement with the contemporary art museum, it does show the firmness of the ideological and architectural boundaries between conservation and presentation: between backstage and frontstage. Despite the relatively low interest in the conservation of contemporary art outside of the conservation field, the last two decades have shown a heightened attention for its public side. However, press articles commenting on conservation of contemporary art show that public attention does not automatically lead to interesting debates on the subject. As soon as 1996, conservator Albert Albano showed himself particularly critical towards the ways conservation of contemporary art was addressed in the press: ‘Characteristic of many journalistic critiques is the tendency to incorporate

FIG. 6 - Draaiboek voor de Schatbewaarder (1996) by Honoré d’O (1961) during the exhibition ‘Inside Installations’, S.M.A.K., Mixed media, dimensions: variable. Collection: S.M.A.K., Ghent, Belgium. Photo: Dirk Pauwels, 2010.

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cynical polemics and undocumented anecdotes. These tales are chosen deliberately to favor those opinions that conform to an a priori theme of the author, which usually highlights the ephemeral physical qualities of an artwork’ (Albano 1996: 177). Indeed, many newspaper articles have the tendency to evolve around rare and extreme cases or focus on the amounts of money collectors pay in acquiring perishable contemporary artworks. Recent newspaper articles with headings such as: ‘Copy That! Wait, Don’t. Whitney Ponders Problem of Replication in Modern Art’ (The New York

FIG. 7 - Pilatus Transformator (1997) by Thomas Hirschhorn (1957) Mixed Media, dimensions: 200 x 385 x 85 cm, Collection Bonnefantenmuseum, Maastricht, The Netherlands. Photo: Peter Cox.

FIG. 8 - Pilatus Transformator (1997) (detail) by Thomas Hirschhorn (1957). Mixed Media, dimensions: 200 x 385 x 85 cm, Collection Bonnefantenmuseum, Maastricht, The Netherlands. Photo: Peter Cox.

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Observer, November 26, 2009) and ‘How to Conserve Art That Lives in a Lake (The New York Times, November 17, 2009) underscore Albano’s argument and illustrate the need for more serious conveyance of conservation deliberation processes. Besides in newspaper articles, conservation issues concerning contemporary art have recently also entered the frontstage of museums. Examples of exhibitions dedicated to the topic of contemporary art conservation and related decision-making are for example: ‘Seeing Double: Emulation in Theory and Practice’ at the Solomon R. Guggenheim Museum in New York (19.3.-16.5.2004) and various video-art exhibitions such as ‘Re-play. Anfänge international Medienkunst’, Generali Foundation, Vienna, Austria (5.12-8.6.2000), ‘40jahrevideokunst.de’ at ZKM Center for Art and Media Karlsruhe, Germany (3.25-5.21.2006) and ‘Reconstruction Swiss Video Art From the 1970s and 1980s’ at Museum of Art, Lucerne (15.03-2.5.2008). Whereas these research projects and related exhibitions specifically focused on the challenges of obsolete media-equipment, recent exhibitions emerging from the conservation research projects ‘Inside Installations. Preservation and Presentation of Installation Art’ (2004-2007) and ‘PRACTICs’ (2009-2011) are dealing with the conservation of installation art in a more general sense: ‘Inside Installations’ at the Kröller-Müller Museum in Otterlo, The Netherlands (25.10.2006-07.01.2007 and 21.03-03.06.2007), and ‘Inside Installations’ (05.06-27.03.2011) at S.M.A.K. in Ghent, Belgium.7 These exhibitions (often organized by the conservation department of the respective museum) explicitly addressed conservation issues of contemporary art in connection to the results of specific research projects. In that sense these displays can be considered as special projects, somewhat outside of the regular exhibition practice and are also announced as such.

7

For more information on these research projects visit www.inside-installations.org and www.icn.nl. See also: Scholte and ‘t Hoen (2008).

FIG. 9 - Overview solo exhibition ‘The Value of Void’ by Navid Nuur (1976) in Kunsthalle Fridericianum, Kassel, Germany. Photo: Cathleen Schuster and Marcel Dickhage, 2009.

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8 For a more thorough discussion on the history of

the term, see for example: Reiss (1999) and the special issue ‘On Installation’ of the Oxford Art Journal (Vol. 24, Issue 2, 2001).

Besides the more general goal of attracting visitors and enhancing public awareness for conservation activities, this recent tendency towards creating a public face of conservation of installation artworks could also be understood as a prerequisite of installation practices. In order to raise this point, I will first elaborate on the history of installation art and its entangled relation with the museum.

Installation Art: on the blurring of backstage and frontstage

FIG. 10 - ‘Untitled’ (2008-2009) (detail) by Navid Nuur (1976). Installation during the solo exhibition ‘The Value of Void’, Kunsthalle Fridericianum, Kassel, Germany. Courtesy: Galeria PLAN B, Berlin and Martin van Zomeren, Amsterdam. Photo: Cathleen Schuster and Marcel Dickhage, 2009.

As mentioned above, installation art has a paradoxical intertwinement with the contemporary art museum. Installation art has a long history and can be placed in the tradition of art movements such as action painting, dada, fluxus, minimalism, performance and conceptual art – movements which emphasise art as a process instead of the object-fini, and dethrone the autonomous and object-oriented character of art. Although the term ‘installation art’ is much contested and as such not easily defined, the term is nowadays generally used to describe works from the 1960s and onwards which share certain key characteristics such as: the creation of an event, site-specificity, the focus on the theatrical, on process, spectatorship and temporality.8 With the insight that the context in which an artwork is presented influences the experience and meaning of the work, the term ‘installation’ first became used in the 1970s. At first, the term was used in the context of exhibition displays. Art historian Julie Reiss (1999) describes how, in the 1970s, the verb ‘to install’ was used to describe a working process that freed itself from the artist’s studio and aimed for direct contact with the audience. The term ‘installation art’ was used in the context of an artistic practice that referred to, and criticised, the ideology of the (institutional) context: an art practice that appropriated the medium of exhibition but also tried to change it (Baetschmann 1998). Ephemeral and site-specific work became a strategy to break away from commercial mechanisms and temporality and site-specificity were regarded as signs of a critical attitude. Such works were aimed at escaping the boundaries of institutions and the pressure of the art market. Despite this critical attitude towards museums, in the late 1980s contemporary art was brought into the centre of museum activities and museums started to acquire installations for their collections. Although marginal at first, today installation-based art has become mainstream in contemporary art museums worldwide. However, due to their conceptual, unstable, variable or process-like character, installation-based artworks challenge the conventional object-oriented approach to collecting and conservation. Unlike with more traditional works of art, curators and conservators have to deal with reinstallation, obsolete technologies, ephemeral materials and other problems concerning the care and management of installation artworks. While traditionally, art conservation’s aim is defined as being faithful to the work’s origi-

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nal material condition and to intercept change, installation artworks upset the underlying values and principles of fine art conservation and challenge the very heart of the museum as a collector of fixed material objects. Arguably, one of the most significant recent developments in conservation theory and practice is the gradual acceptance of acknowledging change as an inherent characteristic of installation art. Allowing notions of variability and change into its conceptual framework has far reaching consequences for the notion of art as a ‘fixed’ material object as well as the role of museum professionals in reinstallation and the continuation of installation artworks within the museum context. In conservation theory and practice, it is increasingly acknowledged and accepted that contemporary artworks, and especially installation artworks, often require some kind of intervention by the museum to enable their continued display (Depocas 2003; Wharton 2005 and 2009; Laurenson 2006). As a result of re-installation, replacement of obsolete equipment, reconstruction, or other interventions, such works may alter in appearance when they are reinstalled in a different space and time context. Although some installations remain the same in successive iterations, others may change considerably. Needless to say, these alterations may have an effect on the meanings attributed to the artwork. How much can a work of art change before it becomes something else? A similar question was already addressed in one of the first articles about the conservation challenges of installation art by the head of conservation at the Guggenheim Museum in New York, Carol Stringari:

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Depocas et al. 2003; Wharton 2005; Irvin 2006; Laurenson 2006, van de Vall et al. 2009, van Saaze 2009.

‘The ambiguity of the artist may be reflected when the institution who purchased the piece attempts to contact the artist during a reinstallation and the artist wishes to conceive the work differently. This is not necessarily a problem, but if one of the museum’s goals is to preserve the integrity of the work it owns the question arises: can such works be mutable, or will each new conception be a new acquisition? What exactly, then, is being purchased when a museum acquires an installation?’ (Stringari 1999: 273) At present, the variability of installation art in terms of their physical constitution, is increasingly recognized as an inherent condition for their perpetuation in a museum context. The conservator of contemporary art is then to decide which changes are acceptable and which are not. Commonly these decisions-making processes take the form of a negotiation between the artist, the conservator and the curator. In the light of these developments, presentation and conservation of installation art is increasingly understood as encompassing a performative element: rather than the commonly accepted hands-off and minimal interventional approach of conservation of more traditional art forms, the perpetuation of installations asks for a more active and engaged approach from their caretakers.9 Some artists such as the Belgian artist Joëlle Tuerlinckx (b. Brussels, 1958) explicitly address the topic of perpetuation in their work. In Ensemble autour de MUR (1998) in

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FIG. 11 - Navid Nuur, ‘THRESHOLDER (ash pillar II)’ (2007-2010). Dimensions: 75 x 20 x 205 cm. Collection: Vehbi Koç Foundation, Contemporary Art Collection Istanbul, Turkey. Photo: Navid Nuur.


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Ensemble autour de MUR was a case study in the research project Inside Installations. Preservation and Presentation of Installation Art. The work is exhibited in the collection exhibition ‘Inside Installations’ at S.M.A.K. which is on show from 05.06-27.03.2011. The exhibition addresses the conservation challenges posed by installation artworks and also includes a documentation room in which various aspects of conservation and collection management are made accessible.

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On show from 16.01-02.05.2010.

12 Among others, though still exceptional, art historian Martha Buskirk (2003), philosopher Sherri Irvin (2005, 2006), and sociologist Albena Yaneva (2003ab) have explicitly addressed conservation and reinstallation work in their writings on installation artwork. Departing from different angles, they each explore the blurring of boundaries between backstage and frontstage in the context of installation art and arrive at insightful perspectives on the shaping of installations within a museum setting.

the collection of S.M.A.K., Ghent (Belgium), the passing of time and the variability of this ensemble is part of the conceptual framework and is manifested in the design of five different scenarios for installing her work. These different modes of installing the work were realised and documented in close cooperation between the artist and the museum staff in order for the museum to be able to reinstall the work in the future.10 In her article ‘On the Move’, art historian Deborah Cherry describes the different instances of Tracey Emin’s seminal My Bed (1998 to 1999) as it travelled from London to Tokyo and back again, re-routed through New York. While some items remain consistent, the repertory of objects changed according to its exhibition locations. A comparison of the successive installations shows that the physical constitution of this work is far from fixed, leading the author to question whether My Bed is ‘a singular piece solely comprised of the bed and its immediate objects or (…) is it constituted by its exhibition location, the assemblage taking part in the installations which include other artworks with which it interacts?’ (Cherry 2002: 141). In some cases artist’s production is being extended even after the death of the artist. Recently, this was acknowledged in the retrospective ‘Felix Gonzales-Torres Specific Objects without Specific Form’ at Wiels, Brussels (Belgium).11 The retrospective showed two different exhibitions of works by the American artist Felix Gonzales-Torres (Cuba 1957-1996). The first exhibition was installed by Elena Filipovic, and later reinstalled by artist Danh Vo. Not only did the retrospective show Gonzales-Torres’ works, by staging two different versions of the exhibition also a glimpse into exhibition and conservation practices related to such unstable and variable installation artworks, was provided. In the museum brochure it reads: ‘By offering two radically different versions of an exhibition devoted to Gonzalez-Torres’ iconic artworks, this retrospective insists that there is no correct, absolute, or singular way to present the oeuvre of an artist like Gonzalez-Torres whose entire practice insisted on both the fragility of the artwork and the questioning of authorities of all kinds.’ What these examples illustrate is that for many installation artworks, no clear line can be drawn between artwork and exhibition or museum practice as they shape each other. As the examples above show, keeping these practices backstage does not seem to be an option for such installation artworks as re-installation and events and decisions taken behind the scenes often have far-reaching consequences for the artworks’ constitution. In other words: backstage activities such as collection management and conservation often have a tremendous impact on how an installation is displayed frontstage. Addressing these activities and providing insight into the backstage practices of museum work, is a prerequisite for understanding installation art as it provides insight into artistic practices, the working practices of museums and the multiple strategies employed to ensure the continuation of these works. Considering the strong impact conservation activities have on installation artworks in museum collections it is surprising that these practices, few exceptions aside, are hardly explored outside the conservation field.12 Generally speaking, in art history writings, the installation artwork is considered as having a single paramount condi-

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tion, thereby neglecting the changes an installation may have undergone over time and overlooking the different iterations or re-installations of the work. Even most installation art anthologies employ such a reductive approach and hardly take the variability of many of these artworks into account. If addressed at all, conservation practices are often set aside as merely practicalities. Just as art historical readings of installation art rarely report on negotiations and discussions that go on behind the scenes, also museum studies rarely address these backstage practices. Sociologist Albena Yaneva (2003ab) and others have observed that museum studies also commonly place emphasis on the front end of the museum and maintain a strict division between what happens in front of and behind the scenes. Concrete practices and day-to-day work are rarely at the centre of museum studies. Yet, as this article suggests especially with installation artworks, it is of great importance to study these practices as installations cannot be understood separately from the museum practices in which they become. With installation artworks, interrelations between the work of art and museum context become so obviously intertwined that they can not be detached from each other without doing injustice to the practice of installation artworks. In order to encountering reductive reading of installation artworks, these processes need to be reframed as part of artistic prac-

FIG. 12 - Navid Nuur, ‘VEIN OF VENUS’ (2008-2009). Materials: overhead projector, ice cream, fridge, paper, Glassex, folding-table. Dimensions: variable. Installation at Gallery Martin van Zomeren, Amsterdam. Collection: S.M.A.K., Ghent, Belgium. Photo: Navid Nuur.

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13 See also Van Saaze (2009). The question of how

ethnographic writings could foster more openness and discussion in conservation as well as stimulate public awareness is also addressed in the research and activities of the research group New Strategies in the Conservation of Contemporary Art. www.newstrategiesinconservation.org. 14

‘Competing Commitments: A Discussion about Ethical Dilemmas in the Conservation of Modern and Contemporary Art.’ Newsletter from the Getty Conservation Institute 24.2, Fall 2009: http://www.getty.edu/conservation/publications/newsletters/24_2/dialogue.html, accessed March 2010.

tices. Rather than isolated and marginalised, these processes should be considered integral to artistic practices. Elsewhere, I have argued that in terms of studying conservation practices of contemporary art and the merging of back- and frontstage, anthropological writing on art works may provide a useful analytical model.13 Such research starts from the premises that things are not ‘things in and of themselves’, but are constructed in practices. Artworks in the museum seem autonomous, but their continued existence is the result of a lot of work and effort. To speak with the words of sociologist Howard Becker: art is not the product of an individual, but ‘the product of a collective work, the work that all these different people do, which, organized in one way or another, produces the result that is eventually taken to be the artwork itself’ (Becker et al. 2006:3). In terms of installation art, an interesting line of research for example would be to analyse the demarcation work of museums by exploring the passages between backstage to frontstage and the difficulties of persisting on this distinction. By studying what happens in art conservation practices from an empirical approach, empirical informed research in contemporary art museums adds to our understanding of installation artworks and the institute museum. Moreover, incorporating such empirical research on day-to-day museum work into art historical research could also play a fruitful role in the enhancement of the public awareness of conservation issues and backstage museum practices. Considering the substantial impact of conservation activities for the contemporary art, it is even more surprising that the conservation of contemporary art has up till recently – and besides some dedicated projects -deserved so little attention in the gallery space. Initiatives of communicating conservation issues within the museum gallery have up till now mainly sprung from the conservation community. However, a certain change in attitude is apparent as the blurring of boundaries between presentation and conservation is reflected in emerging collaboration models between curators, conservators and educators. Jill Sterrett, Director of Collections and Conservation at the San Francisco Museum of Modern Art, observes: ‘I’m extremely inspired by the way conservation efforts can and should connect with many other departments in the museum – how conservation can link with education efforts and how scholarship in the field is actually interesting to the general public. The motivations of an education department and a conservation department don’t have to be viewed as independent. The same can be said of our curatorial colleagues. We’re all noticing that these boundaries are not so hard and fast anymore.’14

Conclusion In this article I have particularly focused on museum practice, encouraging a public face of conservation and hinting towards the role empirical research could

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play in this development. Besides raising awareness on the issues connected to conservation and presentation of installation art, the article also explores how, triggered by the changes in artistic practice, related working practices of contemporary art conservators are increasingly made more visible and transparent to a diversity of audiences. Conservation of contemporary art has come a long way since the early 1990s, however there still seems much to gain in terms of a more general public awareness of this field. Although the topic of contemporary art conservation is nowadays increasingly addressed in exhibitions, until recently, not much attention was directed towards the inherent impact of museum intervention caused by matters of presentation and conservation. However, considering the impact of museum intervention on the display and perpetuation of installation artworks, museums are encouraged to be more communicative about the strategies they employ to deal with the tension between deciding on an artworks identity and allowing for its variability. This leads to a new set of questions such as: Whose task is it to engage conservation into a more public repertoire: curators, conservators, educators, artists, art historians, social scientists and what kind of medium should be used to open up these practices to different audiences: exhibitions, films, book, articles, documentation, podcasts in museums – or perhaps a multitude of media? Explorations in this area have just begun. In any event, they will change our understanding of the museum and enrich our understanding of installation artworks.

Acknowledgements I would like to thank my colleagues from the research group New Strategies in the Conservation of Contemporary Art: Renée van de Vall, Deborah Cherry, Tatja Scholte, IJsbrand Hummelen, Sanneke Stiger and Hanna Hölling for their helpful comments.

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Recensões Jorge Custódio: “Renascença artística” e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1.ª República. Tese de Doutoramento em Arquitectura. Universidade de Évora, 2009. [Texto policopiado]. A propósito de uma obra que fazia falta Joana Baião

Peter Goldie e Elisabeth Schellekens, Who’s Afraid of Conceptual Art?, Londres e Nova Iorque: Routledge, 2010 Miguel F. dos Santos


JORGE CUSTÓDIO: “RENASCENÇA ARTÍSTICA” E PRÁTICAS DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO ARQUITECTÓNICO EM PORTUGAL, DURANTE A 1.ª REPÚBLICA. TESE DE DOUTORAMENTO EM ARQUITECTURA. UNIVERSIDADE DE ÉVORA, 2009. [TEXTO POLICOPIADO]. JOANA BAIÃO Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de investigação Museum Studies Bolseira de Doutoramento da FCT (SFRH/BD/63045/2009)

A história do património cultural português, analisada a partir do entendimento das instituições e personalidades que contribuíram para a sua salvaguarda, estudo e divulgação, tem vindo a ser feita lentamente – na medida em que é uma área de investigação relativamente recente no nosso país –, o que acaba por repercutir-se na escassez de publicações e divulgação bibliográfica sobre esses assuntos. Contudo, nos últimos anos temos vindo a assistir a um incremento da investigação sobre esta temática, nomeadamente através de disciplinas como a História, História da Arte, Património, Museologia, Arquitectura ou Sociologia, tendo vindo a aumentar o número de trabalhos produzidos em contexto académico (teses, comunicações, recensões, por vezes publicados) que contribuem para a construção, a pouco e pouco, de uma história do património artístico português. Esses trabalhos são extremamente importantes quer por tratarem assuntos nunca ou fracamente estudados, quer por implicarem a divulgação e interpretação de materiais inéditos, quer ainda

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FIG. 1 – O arrolamento do tesouro da Sé de Lisboa (cliché de Joshua Benoliel). Ilustração Portuguesa, n.º 281, 10 de Julho de 1911, p. 60.

por enunciarem problemáticas que despertam o interesse de outros investigadores, fomentando novos projectos. Um dos grandes impulsionadores deste domínio de investigação é Jorge Custódio, que em 2009 defendeu na Universidade de Évora a sua tese de doutoramento, intitulada “Renascença artística” e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1.ª República. Jorge Custódio, professor, arqueólogo, historiador e museólogo, é uma das figuras incontornáveis no estudo da arqueologia e museologia industrial e tem vindo, ao longo da sua carreira, a dedicar grande atenção à história do património português. Actual director do Museu Nacional Ferroviário (Entroncamento), do seu vasto currículo destacam-se: a direcção do Convento de Cristo (Tomar), os trabalhos que estiveram na génese e constituição de vários museus industriais (Museu dos Lanifícios, Museu da Fábrica de Rolhas de Cortiça do Inglês, Museu do Cimento de Maceira-Liz, e o projecto do Museu do Tempo) e a autoria e colaboração em diversas publicações relacionadas com a investigação e divulgação destas áreas. Fruto de um trabalho continuado de muitos anos, a tese de doutoramento de Jorge Custódio fazia falta no contexto da investigação e divulgação das temáticas relacionadas com a história do património cultural português, como passaremos a justificar. As páginas de que dispomos não serão suficientes para resumir analiticamente e com o cuidado necessário o seu extenso trabalho; porém, não nos escusamos a chamar a atenção para a extrema importância desta que, cremos nós, é já uma obra de referência para qualquer investigador que pretenda estudar o contexto cultural e patrimonial português na transição do século XIX para o século XX. O cerne da tese consistiu no estudo, entendimento e fixação do papel dos agentes culturais da 1.ª República (as diversas instituições, públicas ou privadas, a sociedade civil) no domínio das práticas de conservação e restauro do património monumental, arquitectónico e artístico português. À partida, notamos logo dois méritos neste trabalho: o estudo aprofundado de um mega-tema que envolve reflexões sobre as disciplinas acima citadas; e a abordagem a um período cronológico ainda pouco estudado de forma sistemática, particularmente no que diz respeito aos assuntos patrimoniais (ainda que nos últimos anos tenha vindo a crescer o interesse pela 1.ª República, seja pelo distanciamento temporal que permite novas e renovadas leituras, seja pela conjuntura das comemorações do centenário da implantação da República em Portugal, que veio a dar azo a estudos, exposições e publicações sobre esse período – embora a ideia de “comemoração” implique, por vezes, algumas contaminações nos discursos criados…). Mas o trabalho apresentado por Jorge Custódio é muito mais rico do que à partida o título possa sugerir, uma vez que extravasa de modo positivo o tema e a cronologia propostos. Por um lado, apesar da fixação do estudo no período republicano – balizado entre 1910 e 1932 –, o autor assume a necessidade de estender essa barreira cronológica: para trás, para entender de que modo as instituições e protagonistas republicanos lidaram com os conceitos e ideias herdados do período

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oitocentista; e para a frente, para dar conta da continuidade e das rupturas institucionais e legislativas no novo enquadramento político, o Estado Novo. Por outro, mais do que se debruçar sobre as “práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal”, Jorge Custódio faz um exaustivo trabalho de levantamento dos conceitos, reflexões e políticas patrimoniais que estão por detrás dessas práticas. O estudo de Jorge Custódio está dividido em quatro grandes grupos. Os dois primeiros apresentam o enquadramento das problemáticas que propõe analisar, fixando conceitos fundamentais e observando com particular profundidade o contexto patrimonial português oitocentista. O autor faz o levantamento e a análise dos protagonistas e actividades relacionados com o património monumental português antes da implantação da República, abordando simultaneamente as questões patrimoniais no contexto internacional, «com a finalidade de conhecer os conceitos e as práticas que têm uma matriz comum e ecoam pela Europa» (CUSTÓDIO 2009: 26). De destacar que Jorge Custódio dedica em todo o trabalho particular atenção ao enquadramento internacional das concepções e práticas patrimoniais, de modo a entender as suas premissas e influências em Portugal, construindo então a sua investigação «seguindo as orientações historiográficas de carácter internacional» (ibidem: 29). Os dois grupos iniciais formam, portanto, no seu conjunto, quase uma tese introdutória da tese em si, tal a profundidade com que o autor os desenvolve. De facto, a necessidade de «esclarecer aspectos essenciais da história do património português daquele período» (idem: 1334) e o acesso a materiais inéditos ou muito pouco estudados permitiram ao autor «reescrever» (a expressão é do próprio) a história do património durante a Monarquia Constitucional. Jorge Custódio chama a atenção para o facto de o país sofrer, durante todo o período da Monarquia Constitucional (1820-1910), os efeitos culturais decorrentes da extinção das ordens religiosas e da deslocação do seu património para a tutela do Estado, exigindo uma séria reorganização patrimonial. Refere então as sucessivas tentativas de organização e reformas dos serviços relacionados com o património, a partir das estruturas públicas (tuteladas pelo Ministério do Reino e Ministério das Obras Públicas) e de estruturas associativas (por exemplo, a Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses), concluindo que, apesar da não existência, de facto, de uma política patrimonial (devido ao clima de instabilidade económica e social que caracterizou as últimas décadas da Monarquia Constitucional), houve uma tentativa de gestão, «de alguma forma», dos problemas relacionados com os monumentos nacionais, bem como uma preocupação patrimonial, que estiveram na génese da constituição e desenvolvimento dos primeiros museus do Estado (ibidem: 1336). Logo, os anos que antecederam a implantação da República em Portugal foram marcados pelas sucessivas tentativas de implementação de reformas patrimoniais e pela acção de um conjunto de pessoas que, enquadradas nas diversas instituições, estiveram na base de um movimento de consciencialização do património enquanto bem da nação, contribuindo para um efectivo crescimento do prestígio público dos serviços relacionados com os monumentos e com o património.

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FIG. 2 – A comissão arroladora do Paço Patriarcal de S. Vicente (cliché de Joshua Benoliel). Ilustração Portuguesa, n.º 309, 22 de Janeiro de 1912, p.110.


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A primeira década do século XX é referida como aquela em que «a questão dos monumentos assumiu uma escala nacional, como nunca tinha atingido até então», o que terá sido potenciado pelo processo de classificação dos monumentos históricos, que constituiria, na opinião de Custódio, «um dos aspectos essenciais e mais duradouros do sistema do património desenvolvido no final da monarquia constitucional» (ibidem: 1337). Após demorada análise das estratégias de classificação dos monumentos seguidas no nosso país, o autor conclui que esse processo de classificação, apesar de importante, acabou por se revelar bastante débil como base para a estratégia de salvaguarda e conservação do património – quer no período monárquico, quer já no republicano – uma vez que o novo enquadramento dos monumentos não foi acompanhado de soluções estruturais para a sua salvaguarda e protecção. Os terceiro e quarto grupos em que se estrutura a tese constituem o âmago do trabalho, na medida em que se centram no tema central proposto pelo autor: em primeiro lugar são apresentadas as concepções da política e cultura patrimonialistas e suas relações com a sociedade; em seguida, faz-se o levantamento e estudo analítico das práticas de conservação e restauro do património arquitectónico durante o período analisado, com recurso a exemplos concretos (intervenções realizadas por todo o país, o seu enquadramento político, cultural e social, a nível central e local, os protagonistas individuais e colectivos). O autor caracteriza o ambiente político, económico, social, cultural português no período de transição da Monarquia Constitucional para a 1.ª República, dando particular enfoque ao clima de “crise cultural” que assolava o país. É nesse clima que Jorge Custódio enquadra o conceito de “renascença” artística que dá título à tese. A ideia de “renascença” aparece associada aos conceitos de “ressurgimento”, “renascimento” ou “regeneração”, proclamados em contextos de movimentos revolucionários, em climas de mudança: neste sentido, a “renascença” artística é entendida como um «movimento» com raízes culturais no ideário da geração de 1870, ideologicamente marcado por um carácter regeneracionista e nacionalista, e que se manifestou em diferentes momentos: na crítica à Monarquia Constitucional, na génese do movimento republicano, na crítica ao clima de instabilidade do final da 1.ª República ou nos fundamentos da política da Ditadura Militar e do Estado Novo. Por outro lado, há um associar da ideia de “renascença” artística ao interesse historiográfico e aos discursos surgidos no final do século XIX e no início do século XX relativos a um “portuguesismo” na arte, num contexto de exaltação de uma arte que reflectisse uma identidade pátria, uma tradição nacional – a «renascença portuguesa (…) na sua relação com o “património da nação”» (ibidem: 665-666). Custódio centra-se particularmente na obra de duas figuras centrais da cultura portuguesa no virar do século: Joaquim de Vasconcelos, que «representa a corrente científica dos fundamentos originais ou primitivos da arte portuguesa» e Ramalho Ortigão, representante da «corrente da crítica artística, que anos de observação da sociedade portuguesa contemporânea lhe proporcionaram» (ibidem: 666 e seg.).

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Na conclusão Custódio sintetiza a sua ideia de “renascença” artística portuguesa, referindo então a sua importância «como forma de articulação das tradições artísticas do povo com as características e os valores da “terra portuguesa” e com a dinâmica social e cultural contemporânea» (ibidem: 1341), e salientando que, na sua opinião, terá sido esse conceito o «elemento aglutinador da reforma republicana», na medida em que «era em nome da “renascença” artística que as academias e escolas de Belas-Artes deviam ser reformadas, os museus existentes “restaurados” (…) e os pensionatos artísticos regulamentados para produzirem artistas, conservadores de museus e restauradores das obras de arte» (ibidem: 1342). Centrada nesta ideia de “renascença” artística, a 1.ª República é, pois, entendida por Jorge Custódio como o período da grande mudança de paradigma perante o património artístico, defendendo o autor que aquele regime « foi responsável pelo desenvolvimento de instituições, criação de conceitos, classificação de imóveis e realização de restauros, definição de estratégias de salvaguarda e de conservação de bens culturais móveis e imóveis que a enobreceram na história do património em Portugal», o que lhe confere «um lugar à parte da modernização das correntes patrimoniais e nos horizontes da transmissão intergeracional do legado cultural» (ibidem: 1346). Estas palavras levam a crer que a 1.ª República terá sido, enquanto regime, a grande fomentadora do desenvolvimento das acções patrimoniais (públicas e privadas) do nosso país, marcando uma ruptura com a linha que vinha a ser seguida durante os anos da Monarquia Constitucional, e preparando terreno para a actividade que seria desenvolvida durante o Estado Novo. No entanto, o próprio autor acaba por confirmar a continuidade de algumas reformas e ideias no contexto de mudança de regimes e instituições. Podem, então, detectar-se ligeiras contradições internas nas considerações de Jorge Custódio na análise dos períodos de transição, sobretudo no da Monarquia para a República (nomeadamente em relação à importância e qualidade de acção patrimonial desenvolvida em cada regime), talvez por alguma afectação de ideário, mas sem prejuízo geral do excelente trabalho de levantamento e estudo das fontes e do domínio das ferramentas de interpretação histórica que caracterizam o seu trabalho. Fica por fazer um exercício de reflexão que o distanciamento histórico e os conhecimentos do autor permitiriam certamente desenvolver com particular interesse: até que ponto determinadas mudanças e actualizações nas políticas patrimoniais não seriam inevitáveis com o simples decorrer do tempo, independentemente do regime político, e tendo em conta as influências vindas do estrangeiro? Não viriam, independentemente dos regimes, a maioria dos protagonistas do contexto cultural e patrimonial português a ser os mesmos (ainda que com outros graus de importância e actividade) e a defender as mesmas ideias, dada a pequenez do país e o número reduzido de pessoas com formação e com interesse por estes assuntos? Terminamos as nossas breves considerações sobre o trabalho de Jorge Custódio chamando a atenção para o facto da sua tese ser bem mais complexa do que o que aqui pôde ficar expresso. Extravasando a ideia inicial de analisar o processo de salva-

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RECENSÕES · “RENASCENÇA ARTÍSTICA” E PRÁTICAS DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO ARQUITECTÓNICO EM PORTUGAL, DURANTE A 1.ª REPÚBLICA

guarda e conservação do património arquitectónico monumental durante a 1.ª República, o autor acabou por traçar efectivamente o até agora mais completo quadro das movimentações políticas e institucionais em torno do património artístico português entre 1875 e 1932: a) fixando a história de instituições que era urgente estudar (Comissão dos Monumentos Nacionais, Concelho dos Monumentos Nacionais, Concelhos de Arte e Arqueologia); b) fazendo o levantamento e estudo das inúmeras associações da sociedade civil ligadas à defesa do património (entre outros, a Liga dos Amigos do Castelo de Leiria, a Comissão de Salvamento dos Monumentos Antigos de Santarém, a União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo, o Grupo Pró-Évora, a Sociedade Martins Sarmento); c) elencando os protagonistas e suas acções e relações durante todo o período estudado, a nível central e local (por exemplo, Ramalho Ortigão, Gabriel Pereira, Augusto Fuschini, Joaquim de Vasconcelos, António Augusto Gonçalves, José de Figueiredo, Luciano Freire, José Marques da Silva, Francisco Garcez Teixeira, António Couto); d) analisando as principais reformas, processos e intervenções patrimoniais (o processo de classificação dos monumentos nacionais; a reorganização dos serviços artísticos e arqueológicos; as consequências da lei de separação da Igreja e do Estado no património artístico português; as intervenções de conservação e restauro dos monumentos; o papel dos museus nacionais e regionais); e) inventariando as intervenções que foram feitas em monumentos de todo o país, explorando os conceitos e práticas que estiveram na sua base; f) estudando as políticas de salvaguarda dos bens culturais numa perspectiva europeia (legislação, reuniões e recomendações internacionais e sua recepção em Portugal). Não podemos deixar de fazer, por fim, uma referência à exposição comissariada por Jorge Custódio, 100 anos de património: memória e identidade – Portugal 1910-2010, patente na Galeria de Pintura do Rei D. Luís (Palácio Nacional da Ajuda) entre 30 de Setembro e 21 de Dezembro de 2010,, onde se pretende traçar a evolução dos conceitos e práticas patrimoniais em Portugal, desde os antecedentes pré-republicanos até à actualidade. Exposição extensa, os primeiros núcleos (até ao Estado Novo) são construídos tendo como base a tese daquele autor e, embora partilhem com ela um certo comprometimento ideológico, são os mais consistentes e mais bem conseguidos museograficamente. A partir do núcleo 4 (“Depois da Carta de Veneza (1964-1980)”), notamos uma progressiva fragilidade quer ao nível do discurso, quer ao nível expositivo, talvez pela complexidade e quantidade de informação implicada. Ficamos no entanto a aguardar o catálogo, que no momento em que escrevemos (Out. 2010) não está ainda publicado.

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PETER GOLDIE E ELISABETH SCHELLEKENS, WHO’S AFRAID OF CONCEPTUAL ART?, LONDRES E NOVA IORQUE: ROUTLEDGE, 2010 MIGUEL F. DOS SANTOS Departamentos de Filosofia Universidade de St. Andrews

Who’s Afraid of Conceptual Art?, de Peter Goldie (Professor Catedrático de Filosofia na Universidade de Manchester e sobretudo conhecido pelo seu trabalho em filosofia da emoção) e Elisabeth Schellekens (Professora Auxiliar de Filosofia na Universidade de Durham e directora-adjunta do prestigiado British Journal of Aesthetics), não é apenas mais um livro a acrescentar à já vasta bibliografia sobre a arte conceptual. Juntamente com Philosophy and Conceptual Art – uma colectânea de ensaios de alguns dos mais destacados filósofos da arte contemporâneos organizada por Goldie e Schellekens, em 2007, para a Oxford University Press –, o livro representa um virar de página no que diz respeito ao estudo da arte conceptual. Por duas razões: primeiro, porque se trata, clara e assumidamente, de um livro de filosofia e não de um livro de história ou crítica de arte; e, segundo, porque a tradição filosófica em que se insere, a chamada ‘filosofia analítica’, está nos antípodas daquela com que a (esmagadora) maioria dos historiadores e críticos de arte contemporâneos, sobretudo sob influência dos Octoberists (Rosalind Krauss, Hal Foster, Yves-Alain Bois, Benjamin Buchloh, etc.), está familiarizado – a tradição que dá pelo nome genérico de ‘filosofia continental’ (que inclui movimentos como a fenomenologia, o pós-estruturalismo, a teoria crítica, entre outros). Mas o que é a filosofia analítica? A filosofia analítica é a tradição filosófica predominante nos países de língua inglesa. A expressão ‘filosofia analítica’ não se refere a qualquer doutrina filosófica que seja aceite pela maioria dos filósofos analíticos, mas, antes, a um estilo particular de fazer filosofia, o qual tem como características, muito genericamente, a clareza, a precisão e o rigor. Clareza no modo como se procura veicular ideias abstractas numa linguagem o mais transparente possível e defender teses e argumentos explicitamente formulados. Precisão no modo como se define

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RECENSÕES · WHO’S AFRAID OF CONCEPTUAL ART?

os termos cruciais das teses e argumentos avançados. E rigor no modo como se faz sistematicamente uso dos instrumentos da lógica formal e informal. Por estas e outras razões que não cabe aqui discutir, a filosofia analítica é encarada por muitos dos seus praticantes como estando mais próxima de áreas científicas como a matemática do que de qualquer área das humanidades. Who’s Afraid of Conceptual Art? não pode ser entendido nem devidamente avaliado, assim, sem se ter em conta o contexto filosófico no qual se insere. Mas também não o pode ser se se confundir filosofia (analítica) da arte com história, crítica ou até mesmo teoria (no sentido amplo em que diversos historiadores e críticos entendem o termo) da arte. Por exemplo: aqueles que esperam encontrar no livro de Goldie e Schellekens uma nova interpretação de uma qualquer obra de Duchamp, Joseph Kosuth ou Robert Barry, não têm consciência de onde é que acaba a história ou crítica de arte e começa a filosofia. Aos filósofos da arte não cabe interpretar obras de arte, mas, sim, responder a questões de segunda ordem que se colocam se se reflectir sobre a actividade dos historiadores e críticos de arte quando interpretam uma obra: será que a interpretação correcta de uma obra consiste em determinar a intenção do autor dessa mesma obra? Haverá apenas uma única interpretação correcta de uma obra ou será que cada obra admite uma pluralidade de interpretações igualmente correctas? O que é, afinal, a interpretação em arte? Dividida em cinco capítulos, a obra de Goldie e Schellekens é uma introdução aos problemas filosóficos colocados pela arte conceptual, não pressupondo qualquer conhecimento prévio de filosofia analítica da arte por parte do leitor. Neste sentido, Who’s Afraid of Conceptual Art? não é livro técnico dirigido primeiramente a filósofos analíticos, mas, antes, um livro de carácter mais introdutório dirigido a um público mais alargado, como o da história da arte. No primeiro capítulo, intitulado ‘O Desafio da Arte Conceptual’, Goldie e Schellekens começam por esclarecer que entendem a expressão ‘arte conceptual’ num sentido amplo, de modo a abranger não apenas as obras do movimento histórico dos anos 60 e 70, mas também aquelas que os historiadores da arte apelidam de proto-conceptuais, como as de Duchamp, e neo-conceptuais, como as de Santiago Sierra. Esclarecido isto, o objectivo do capítulo é duplo. Primeiro, Goldie e Schellekens pretendem explorar preliminarmente algumas das características comummente associadas à arte conceptual, de entre as quais merecem destaque (pela importância que têm em capítulos subsequentes) aquelas que se referem à arte conceptual como indo contra a concepção tradicional de arte (anti-definição), de medium (anti-medium) e do estético (anti-estética). E, segundo, pretendem deixar claro que a principal tese do livro é que a ideia tem um papel central na definição, ontologia, epistemologia e estética da arte conceptual. O segundo e terceiro capítulos lidam com alguns dos problemas de definição (‘Será a arte conceptual mesmo arte?’), ontológicos (‘Que tipo de coisa é uma obra de arte conceptual?’) e epistemológicos (‘Como é que a arte conceptual deve ser apreciada?’) colocados pela arte conceptual. No que diz respeito aos problemas do pri-

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meiro tipo, Goldie e Schellekens discutem algumas influentes teorias sobre o problema da definição da arte desenvolvidas sobretudo em resposta aos desafios colocados pela arte conceptual, nomeadamente, a teoria, inspirada por Wittgenstein, de que a arte não pode ser definida, a teoria institucional (sobretudo associada a George Dickie) e a teoria funcional. Como seria expectável (dada a natureza mais geral do problema no contexto da filosofia analítica da arte), aqui a discussão de Goldie e Schellekens é mais expositória do que argumentativa, já que o seu objectivo não é tomar posição sobre qual a teoria mais adequada. A diferença entre os problemas ontológicos e epistemológicos colocados pela arte conceptual é rudimentarmente ilustrada por Goldie e Schellekens (no primeiro capítulo) recorrendo a Following Piece (1969), obra de Vito Acconci, documentada em quatro fotografias, que obedecia ao seguinte plano: diariamente, por um período de vinte e três dias, Acconci escolhia aleatoriamente uma pessoa na rua e seguia-a até que esta entrasse num local privado. A questão ontológica que se coloca perante Following Piece é esta: ‘O que é que é – e onde é que está – neste caso a obra de arte?’ (p. 22). A questão epistemológica, por seu turno, é a seguinte: ‘como é que podemos saber o que é a “obra de arte” e como é que temos acesso a ela de maneira a apreciá-la?’ (ibid.). Contraste-se Following Piece com O Nascimento de Vénus de Botticelli: neste caso, não há dúvidas, primeiro, de que a obra de arte é a própria pintura (o fio de arame em que a mesma está pendurada, por exemplo, não faz parte da obra) e, segundo, que a forma adequada de a apreciar é percepcioná-la directamente na Galeria Uffizi em Florença (ler sobre a pintura num livro de história da arte do renascimento, por exemplo, não é a forma adequada de apreciá-la). Uma possível resposta à questão ontológica (e que, se correcta, permitiria imediatamente responder à questão epistemológica) seria dizer que Following Piece é uma obra de fotografia ou, em alternativa, que se trata de uma performance. Mas Goldie e Schellekens recusam ambas estas hipóteses com base, por um lado, na intuição de que a qualidade tanto das fotografias como da performance de Acconci parece irrelevante para a apreciação da obra e, por outro, na distinção entre medium e meios. De acordo com Goldie e Schellekens, numa arte tradicional como a pintura ou a escultura, medium físico e meios coincidem: Tradicionalmente, os artistas são ensinados a desenvolver as suas competências para trabalhar num medium específico [pintura a óleo, escultura em bronze, etc.], se bem que alguns estejam habilitados, claro, a trabalhar em mais do que um. A ideia de um medium sugere algum tipo de mediação ou comunicação. Em arte, tradicionalmente, o artista utiliza um medium físico – a tinta, a tela e assim por diante [...] – como um meio para comunicar aquilo que pretende; e, correlativamente, este medium é o meio através do qual a nossa apreciação da afirmação artística do artista é mediada (pp. 53-54).

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Mas na arte conceptual, argumentam, não há medium físico: o medium da arte conceptual são ideias e estas, por definição, não são objectos com localização espácio-temporal. Mais: tudo o que há de presença física – por exemplo, as fotografias e a performance de Acconci em Following Piece – é meramente o meio através do qual o artista nos permite aceder às suas ideias. Assim, a resposta (parcial, pelo menos) à questão ontológica que fica implícita pela argumentação de Goldie e Schellekens no segundo e terceiro capítulos é que a obra de arte é a ideia. (Esta tese é radical, contra-intuitiva e não é de maneira alguma original [Kosuth e Sol LeWitt já a haviam proposto nos seus manifestos da arte conceptual]. Mas não irei aqui discutir as objecções que se lhe podem colocar.) No que se refere à resposta (pelo menos parcial) à questão epistemológica, esta é que, se uma obra de arte é conceptual, então a forma correcta de a apreciar é encarar a ideia como o medium e tudo aquilo que é físico como um mero meio para aceder à ideia. O quarto e quinto capítulos exploram a problemática relação entre a arte conceptual e o estético. No quarto capítulo, especificamente, Goldie e Schellekens discutem a difundida afirmação entre historiadores, críticos e artistas conceptuais de que a arte conceptual é anti-estética ao considerarem algumas abordagens ao problema de saber se arte conceptual, por oposição a outras formas de arte, não admite realmente propriedades estéticas e experiência estética. Das três abordagens consideradas, o ‘Idealismo Estético’ é a única que questiona a tese de que a arte conceptual rejeita o estético, uma vez que defende – assumindo aquilo por que Goldie e Schellekens argumentam nos capítulos anteriores (que a ideia está no âmago da arte conceptual) – que as ideias podem ter valor estético. No quinto e último capítulo discute-se que outras ausências – para além da que é abordada no capítulo anterior, que não existe prazer estético no sentido tradicional da expressão – se interpõem na nossa apreciação da arte conceptual, sendo que a proposta avançada por Goldie e Schellekens para suprir essas ausências é consistente com o Idealismo Estético e o papel da ideia: a arte conceptual tem valor cognitivo.

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Varia O Conde Athanasius Raczynski e a Historiografia da Arte em Portugal Paulo Simões Rodrigues

José Rodrigues e o Cego Rabequista Afonso Ramos

Encontros Perdidos: objectos surrealistas destruídos María Jesús Ávila

n Fontes para a História dos Museus de Arte em Portugal Raquel Henriques da Silva

Documentação de Arte Contemporânea Lúcia Almeida Matos

História, Materiais e Técnicas de pintores portugueses, 1850-1918: Romantismo, Naturalismo e Modernismo Maria João Melo


O CONDE ATHANASIUS RACZYNSKI E A HISTORIOGRAFIA DA ARTE EM PORTUGAL PAULO SIMÕES RODRIGUES Universidade de Évora

Dos muitos viajantes que nos visitaram entre a segunda metade do século XVIII e os primeiros anos do século XIX, conhecemos sobretudo aqueles que publicaram as suas impressões sobre Portugal, os autores de uma literatura de viagens que inventariou, descreveu e divulgou as principais características geográficas, humanas e culturais do nosso país, nomeadamente aquelas que, na sua perspectiva, melhor distinguiam Portugal das outras nações europeias. Foi com esta intenção que procuraram dar a conhecer, aos seus leitores, as particularidades que melhor identificavam a nossa paisagem, a nossa compleição física, os nossos costumes, o nosso passado e a nossa arte. A reflexão que aqui nos propomos fazer prende-se, precisamente, com os dois últimos enunciados, os discursos destes “viajantes-escritores” sobre o nosso passado e a nossa arte. Dentro dos limites do nosso trabalho, o destaque vai para um autor que não se limitou a dar a conhecer os exemplos mais representativos da nosso património artístico, mas tentou estabelecer uma metodologia que fundamentasse a nossa história da arte em bases mais sólidas: o conde polaco Athanasius Raczynski (1788-1874). Como era habitual entre os estrangeiros que nos visitaram durante o século XIX, foram razões políticas que trouxeram Athanasius Raczynski até Portugal1. Em concreto, foi para exercer a função de ministro do rei da Prússia na corte portuguesa que o conde desembarcou em Lisboa no dia 13 de Maio de 1842. Derivava essa sua condição de diplomata do facto da sua cidade natal, Poznan, localizada na actual Polónia, ter ficado sob o domínio da Prússia na sequência do Congresso de Viena de 1815, que estabeleceu as novas fronteiras da Europa pós-napoleónica. De resto, a instabilidade geo-política que marcou a Europa Central na primeira metade do século XIX pauta toda a sua biografia: de 1804 a 1806, estudou em Frankfurt (Oder), Berlim e Dresden; de 1807 a 1809, pertenceu ao exército patriótico polaco ao serviço de Napoleão, em que se alistou voluntariamente; de 1811 a 1815, foi camareiro e

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Sousa, M. L. M. de (1997), p. 574.

FIG. 1 – Auguste Roquemont, Retrato do Conde Athanasius Raczynski, 1845, Museu Nacional Soares dos Reis. © José Pessoa, DDF/IMC.


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Nerlich, F. (2009), f. 1.

3 Polychronopoulou, O.; Archéologues sur les Pays

d’ Homére, s.l., Noêsis, 1999, p. 26. 4 São publicados trechos traduzidos para inglês e sínteses desta obra no The Foreign Quarterly Review (Londres, vol. XVIII, 1836-1837), no The Monthly Review (Londres, vol. III, Setembro-Dezembro, 1844) e no The New York Review (Nova Iorque, n.º XX, Abril, 1842). 5

Vasconcelos, J. (1875), pp. 23-27.

6 Em 1883, aquando da concretização da decisão do imperador da Alemanha unificada de construir o Reischtag no mesmo local do palácio Raczynski, a colecção foi entregue à guarda provisória do Museu Nacional de Berlim pelo filho do conde. Em 1903, a cidade de Poznan conseguiu que a colecção fosse transferida para o museu local. Ainda em Poznan, existe uma janela geminada renascentista, integrada numa parede do edifício da Câmara Municipal, que terá sido levada da Batalha por Raczynski. Vasconcelos, J. (1875), pp. 32 e 33; FRANÇA, J. A. (1993), pp. 77 e 78; Nerlich, F. (2009), ff. 2 e 3. 7 Depois de Lisboa, Raczynski ainda será embaixador da Prússia em Madrid, entre 1848 e 1852, reformando-se do serviço ao Estado em 1858. Nerlich, F. (2009), f. 4.

FIG. 2 – Tomás Fonseca e/ou João José dos Santos, Calvário de Vasco Fernandes, in Raczynski, Athanasius, Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal, 1847.

conselheiro diplomático do rei de Saxe, chegando a integrar a delegação saxónica em Copenhaga e Paris; regressou a Copenhaga em 1830, onde permaneceu até 1834, mas agora já na qualidade de representante do governo da Prússia2. Também a erudição e o gosto pelas antiguidades, pelas expedições educativas, pela história local e pela arte são traços de personalidade que Raczynski partilhava com a maioria dos viajantes estrangeiros que escreveram sobre Portugal3. Mas é sobretudo a paixão pela arte que melhor define o percurso pessoal de Raczynski: criado no seio de uma família aristocrática amante das artes, ele foi o autor de uma História da Arte Moderna na Alemanha (1836-1841), de divulgação transcontinental4, bem como o proprietário de uma colecção de arte com cerca de 190 obras. Da colecção do Conde Raczynski faziam parte pinturas de Bassano, Canaletto, Veronese, Botticelli, Domenichino, Bronzino, Cranach, Metsys, Suyders, Miguard, Velasquez, Zurbaran, um tríptico atribuído a Cristovão de Figueiredo, duas predelas de possível autoria de Gregório Lopes, o seu retrato pintado por Auguste Roquemont (FIG. 1), um desenho de Rubens e esculturas de Thorvaldsen. Parte significativa deste acervo foi adquirido durante as viagens que realizou, entre 1816 e 1839, à Alemanha, França, Suiça e Itália, assim como nos países onde exerceu funções diplomáticas (Portugal e Espanha)5. Para albergar e expor publicamente todas estas obras de arte, planeou construir um palácio-museu em Poznan (1826), seguindo o exemplo do seu irmão, que tinha doado uma vasta biblioteca à mesma cidade, berço da família Raczynski. No entanto, tendo-se estabelecido definitivamente em Berlim no ano de 1836, instalou a sua galeria naquela cidade, na sua casa particular, reformada para o efeito pelo arquitecto Karl Friedrich Schinkel, que abriu ao público. Acabou por edificar um palácio-galeria no centro de Berlim (1842-1848, com obras de ampliação em 1866), projectado por Johann Heinrich Strack, que compreendia uma residência de artistas (onde Peter von Cornelius chegou a habitar) e as instalações da Sociedade Artística de Berlim6. É no contexto destas suas actividades de historiador e coleccionador de arte que se deve entender a incumbência que Raczynski recebeu da Sociedade Artística e Científica de Berlim aquando da sua nomeação para a corte portuguesa: estudar as artes em Portugal, missão que cumprirá enviando regularmente as suas sínteses por carta até 1 de Agosto de 1845, apesar de permanecer no nosso país até 18487. Essa correspondência acabou por ser publicada em volume no ano de 1846, com edições simultâneas em francês e inglês. A edição francesa, a que nos serviu de fonte, recebeu o título de Les Arts en Portugal-Léttres adrésses a la Societé Artistique et Scientifique de Berlin et accompagnés de documents. No ano seguinte, em 1847, seguiu-se-lhe um outro volume que pretendia dar a conhecer os nomes mais relevantes da história e da arte portuguesas, referimo-nos ao Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal. O conde Raczynski planearia ainda redigir um terceiro volume que corresponderia a uma síntese do Les Arts en Portugal, mas sem as contradições e as imprecisões de um registo epistolar condicionado pela periocidade do envio das cartas para Berlim e pelas circunstâncias do acesso e da recepção da informação. Uma terceira publicação facultaria a margem

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temporal necessária para a revisão e a reavaliação das impressões e conclusões transmitidas na sua correspondência. Numa carta dirigida a Ferdinand Denis, enviada de Lisboa a 3 de Julho de 1846, Raczynski afirma que se no primeiro volume não havia feito mais do que penetrar no caos, o segundo já apresentava alguma ordem. Este segundo volume será o Dictionnaire..., uma compilação de nomes de artistas, arquitectos, arqueólogos, escritores e eruditos portugueses ou de alguma maneira relacionados com Portugal, com frequentes remissões para o Les Arts en Portugal 8. A confirmá-lo uma outra carta dirigida ao mesmo correspondente, de datação anterior à supracitada (3 de Junho de 1844), em que Raczynski solicita a indicação de alguém que soubesse fazer gravuras em madeira e estivesse disponível para vir a Portugal9. Ora, a primeira edição francesa do Dictionnaire... integra três litografias que reproduzem a Crucificação (FIG. 2) e o S. Pedro (FIG. 3) de Vasco Fernandes ou Grão Vasco e o desenho de um castelo do denominado Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas (1507) (FIG. 4)10. A litografias, contudo, não estariam previstas na planificação inicial da edição do Dictionnaire..., estariam destinadas a um terceiro volume: “Mes lecteurs pourront juger du mérite du Calvaire par un contour très fidèle qui accompagnera mon troisième volume”11. Segundo o próprio Raczynski, a publicação do Dictionnaire... deveria ter sido acompanhada pela de um Resumo ou Quadro Geral das Artes, com base no conteúdo das cartas editadas no Les Arts en Portugal, também ilustrado com litografias: “À parte do desejo, que eu sinto, de corrigir no meu Dicionário e no meu Resumo os erros, que se acham nas minhas cartas, e que são sem dúvida muito numerosos, tenho ainda outros motivos para atrasar a publicação. O livro não está ainda completo, além disso é preciso, para poder fazer as referências aos documentos, que dizem respeito aos artistas, que as páginas correspondentes estejam definitivamente limitadas, também é preciso dar tempo até que as lâminas estejam preparadas”12. A não publicação deste Resumo deveu-se, conforme declaração de Raczynski a Joaquim de Vasconcelos, quando o historiador português o visitou na sua galeria de arte no Outono de 1872, às ameaças, às calúnias e aos dissabores que os seus primeiros trabalhos lhe valeram em artigos de jornal e bilhetes anónimos, por parte de portugueses descontentes com as suas opiniões acerca das artes nacionais13. As informações que as missivas de Raczynski remeteram para Berlim tiveram origem em algumas das personalidades mais relevantes da cultura portuguesa da época e numa série de peregrinações pelas principais cidades do país, realizadas pelo conde entre 1841 e 1844. Dos colaboradores mais vezes citados por Raczynski, destacamos os nomes do historiador e escritor Alexandre Herculano, do Visconde de Juromenha (D. António de Lemos Pereira de Lacerda), autor da monografia Cintra Pinturesca ou Memória da Villa de Cintra, Collares e seus arredores (1838), de Vasco Pinto de Balsemão (irmão do Visconde de Balsemão), conservador da Biblioteca de Lisboa, de Francisco de Assis Rodrigues, professor de escultura da Academia de Belas Artes, de Francisco de Sousa Loureiro, director da Academia de Belas Artes de Lisboa, de Ferdinand Denis, jornalista e director da Biblioteca de Saint Geneviéve, e do pintor Auguste Roquemont. Tendo em conta que todos eles estavam de algum modo rela-

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Lima, H.de C. F. (1932), p. 44.

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Lima, H. de C. F. (1932), p. 30. Acabou por contratar um português, João José dos Santos, gravador da Academia, que o acompanhou nas viagens que efectuou à província, que o assistiu nas suas pesquisas e executou, a seu pedido, desenhos e muitas gravuras. Raczynski, A. (1847), pp. 258 e 259.

10 Raczynski, A. (1847), pp.VI, VII, 74, 75, 92 e 93. 11

As reproduções foram desenhadas por Tomás Fonseca, filho do pintor António Manuel da Fonseca ou Mestre Fonseca, e pelo gravador João José dos Santos,. Raczynski, A. (1847), pp. 95, 99 e 100; Raczynski, A. (1846), pp. 365 e 393.

12

Raczynski, Le Comte A. (1846), pp. 15 e 16.

13

Vasconcelos, J. (1875), pp. 19 e 20.

FIG. 3 – Tomás Fonseca e/ou João José dos Santos, São Pedro de Vasco Fernandes, in Raczynski, Athanasius, Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal, 1847.


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França, J.-A. (1990), p. 255.

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Um dos escritos traduzidos era da autoria do próprio Auguste Roquemont (1804-1854), proferida no dia 27 de Dezembro de 1844, cuja temática abordava a história da arquitectura portuguesa. O texto está transcrito na 21ª carta, datada de 12 de Janeiro de 1845. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 410 e 411.

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Na terceira carta (de 15 de Dezembro de 1843) foram fornecidas algumas informações históricas sobre a biografia e os textos de Francisco de Holanda. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 5-73 e 75-77. 17

González Garcia, A. (1983), pp. XIV e XV.

18 Sobre as aguarelas e os desenhos com imagens do nosso país feitos Raczynski, ver Zielinska, M. D. (1981), pp. 51-70.

FIG. 4 – Tomás Fonseca Tomás Fonseca e/ou João José dos Santos, Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas, in Raczynski, Athanasius, Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal, 1847.

cionados com a história e as artes de Portugal, com as suas bibliotecas e arquivos, outra das suas funções era rever os textos escritos pelo aristocrata polaco, de modo a evitar qualquer tipo de erro. De resto, os textos foram redigidos em francês porque, na sua maioria, os colaboradores portugueses não sabiam ler alemão. O pintor Roquemont representou a excepção, pois era filho natural do príncipe Frederico de Hesse-Dardmsdat e veio para Portugal, em busca de trabalho, depois de ter conhecido o Infante D. Miguel em Viena14. Coube a Roquemont a tradução para a língua francesa da maioria dos textos escritos por autores nacionais que o conde incluiu na sua correspondência com os académicos berlinenses15. Das traduções realizadas por Roquemont, destacam-se as dos textos de Francisco de Holanda. Efectivamente, a segunda carta enviada por Raczynski para a Sociedade Artística e Científica de Berlim (a 19 de Dezembro de 1843) é preenchida pela tradução para francês de trechos dos manuscritos Da Pintura Antiga (1549) e Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa (1571) – De la Peinture Ancienne e Des Monuments qui Manquent a la Ville de Lisbonne – de Francisco de Holanda (1517-1584), depositados no Convento de Jesus da capital16. Embora a qualidade das traduções de Roquemont e os critérios da edição dos dois manuscritos por Raczynski possam merecer reparos e críticas – houve quem considerasse a tradução realizada atropeladamente e a edição manchada por disparates, mutilações e correcções tendenciosas –, é de salientar que a partir da publicação de Les Arts en Portugal, os textos de Francisco de Holanda se tornaram numa fonte frequentemente citada nos estudos sobre Miguel Ângelo, Vittoria Colonna e os círculos artísticos romanos do século XVI17. Sobre o percurso que Raczynski efectuou dentro do território nacional, parece-nos ter seleccionado localidades cuja importância histórica era demonstrada por relevantes monumentos arquitectónicos. Este critério levou-o a conhecer o Mosteiro dos Jerónimos, o Palácio de Sintra e o Convento de Mafra, na área de Lisboa e arredores; a fazer um esquisso do arruinado Castelo de Óbidos; e um desenho do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, onde permaneceu dois dias, seguindo depois para a Batalha. Em Coimbra, cidade que o albergou durante cinco dias, pintou uma aguarela da Sé Velha e visitou o Mosteiro de Santa Clara. Ainda no centro do país, reproduziu as ruínas do Castelo de Leiria. Seguiram-se as ruínas do Castelo de Montemor; a Igreja de Nossa Senhora da Conceição na Golegã; o Convento de Cristo, onde copiou minuciosamente o pórtico manuelino, e a Igreja de São João Baptista, que também desenhou, em Tomar. Na cidade de Santarém, concentrou-se nas igrejas de São João do Alporão e de Nossa Senhora da Piedade. Finalmente, em 1844, a sua deslocação a Évora fica marcada pela visita à Igreja de São Brás e à porta do Rossio, edificada no reinado de D. João II18. Quer o itinerário quer a reprodução dos monumentos não constituíram, todavia, novidade no âmbito da literatura de viagens sobre Portugal. Desde o século XVIII que a falta de acomodações decentes e a inexistência de boas estradas tinham limitado a circulação dos cidadãos europeus, ingleses e franceses na sua maioria, ao centro do país. Lisboa e Sintra eram os pólos aglutinadores, os mais curiosos avançavam até Coimbra, Alcobaça e Batalha, mas raramente ultrapassavam a linha do Mondego, para

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Norte, ou a do Tejo, para Sul – quando tal acontecia, Porto e Évora eram os destinos mais frequentes. Os trajectos acabavam por determinar os monumentos a ver, embora não fosse necessário ir mais longe para encontrar quatro dos edifícios mais representativos da história da arquitectura em Portugal, que eram também os mais procurados: o Mosteiro dos Jerónimos em Belém, o Mosteiro de Alcobaça, o Mosteiro da Batalha e o Convento de Mafra19. Quanto ao costume de os reproduzir graficamente, são numerosos os exemplos de obras sobre Portugal, a começar pelos guias de viagem, que apresentam ilustrações dos principais monumentos históricos. Basta lembrar o levantamento gráfico pormenorizado que o arquitecto irlandês James Murphy (1760-1814) fez do Mosteiro da Batalha, publicado no seu estudo Plans, elevations, sections and views of the Church of Batalha (1795)20. Talvez porque a arquitectura era dos temas mais constantes nos livros de viagens, em Les Arts en Portugal não encontramos, no que respeita à história dos edifícios aí referenciados, qualquer novidade em relação às teorias vigentes. Por outro lado, a chegada de Raczynski coincidiu com o apogeu de um amplo movimento de defesa e divulgação dos monumentos portugueses. De facto, no século XIX, os primeiros anos da década de 40 foram marcados pelo aparecimento de periódicos que incluíam pequenos textos ou até trabalhos de caracter mais erudito acerca dos edifícios considerados como os mais significativos da história da arquitectura portuguesa21. Nos mesmos jornais e nas mesmas revistas, outro dos meios encontrados para difundir o conhecimento do nosso património construído, entre um público que se desejava mais alargado, foi a sua reprodução gráfica, normalmente através da gravura. É o caso da revista O Panorama (1837-1847)22, na qual podemos encontrar, logo no primeiro número, um artigo em que Alexandre Herculano (1810-1877), o director da publicação, faz o elogio do estilo gótico e dos seus dois melhores exemplares em Portugal, o Mosteiro da Batalha e o Convento do Carmo (em Lisboa)23. As cartas de Raczynski acompanham Herculano na valorização da arquitectura gótica e, em particular, do Mosteiro da Batalha. Para ambos os autores, em Portugal, até ao reinado de D. João I, a arquitectura pouco acompanhou o progresso e o desenvolvimento internacionais, não apresentando exemplares dignos de relevo24. O facto de existirem elementos arquitectónicos com evidente qualidade artística e construções de grandes dimensões datados de antes do século XIV não era relevante25 porque, segundo Raczynski, até à Batalha, ainda não estamos perante um estilo arquitectónico, isto é, uma forma de construir própria de determinado tempo ou de determinado lugar26. De datação posterior ao século XIV, a arquitectura portuguesa apresenta um caracter pouco monumental – eram construções mais ou menos vastas, mais ou menos regulares –, concentrando-se a sua relevância estética nos elementos arquitectónicos. Também não lhe agradava o hibridismo estílistico de alguns dos monumentos portugueses, como o da igreja do Mosteiro de Alcobaça, cuja fachada barroca constratava com o interior puramente gótico. Numa primeira leitura, parece-nos claro que Raczynski foi bastante influenciado pelas teses de Herculano sobre o estilo gótico. Desde a década de 30 que o historiador por-

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Sobre a temática da literatura de viagens ver também Chaves, C. B. (1977). 20

Ver Neto, M. J. Q. L. B. (1997).

21 Dos periódicos publicados desde 1835 a 1845, podemos destacar os seguintes títulos: O Archivo Popular (1837-1843), Universo Pittoresco (1839-1844), Museu Portuense, Jornal de História, Artes, Sciencias Industriais e Bellas Letras (1838-1839), Museu Pittoresco (1840-1842), Jornal das Belas-Artes (1843-1844) e A Ilustração (1845-1846). 22 A publicação d’ O Panorama é retomada em 1852 e novamente interrompida no ano de 1858. A terceira e derradeira fase da revista decorre de 1866 a 1868. 23 Ver Alexandre

Herculano; “A Arquitectura Gótica”, in O Panorama, nº 1, 6 de Maio de 1837. O Panorama publicará ainda uma descrição do Mosteiro da Batalha em 1840, nos números 141, 142 e 143. 24 De resto, Raczynski considerava que, salvo algumas excepções, a arquitectura em Portugal não apresentava um carácter monumental. Raczynski, Le C. A. (1846), p. 330. 25

Le C. A. (1846); op. cit., pp. 407 e 408.

26

Germann, G. (1978), p. 21.


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Ver HERCULANO, Alexandre; “Duas Épochas e Dous Monumentos ou A Granja Real de Mafra”, in Opúsculos. Controvérsias e Estudos Históricos, volume VI, tomo III, Lisboa, José Bastos & Cª., s.d. (1ª edição de 1843), pp. 1-20. 28

Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 330, 336 e 337.

29 Raczynski achava estranho ainda existirem polémicas sobre a identidade do arquitecto que desenhou o projecto e iniciou a construção do Mosteiro da Batalha. Pois, parece-lhe perfeitamente aceitável o nome indicado por James Murphy, o de Stephan Stephenson, arquitecto inglês que teria vindo no séquito de D. Filipa de Lencastre, mulher de D. João I e neta de Eduardo III de Inglaterra. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 331 e 334. 30 Ainda antes de chegar a Portugal, o diplomata tinha já comparado os dois edifícios através das gravuras publicadas no livro sobre o Mosteiro da Batalha de James Murphy. Impressão que foi depois confirmada com a visita ao monumento. Outra das fontes bibliográficas sobre a Batalha a que Raczynski recorreu foi a Memória histórica sobre as obras do real mosteiro de Santa Maria da Victória, vulgarmente chamado da Batalha do Cardeal Saraiva, Frei Francisco de São Luís, publicada em 1827. Considera exagerada a importância que lhe foi concedida enquanto exemplar do estilo gótico. Também informou os seus correspondentes sobre a decadência material de algumas parcelas do Mosteiro da Batalha, salvaguardando, contudo, que estava a ser restaurado – sabemos que desde 1840, sob a direcção do engenheiro Luís Mousinho de Albuquerque. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 336 e 456-460. 31

Em 1851, no conto A Abóbada, narrativa que decorre durante a construção do Mosteiro da Batalha, Alexandre Herculano identifica Afonso Domingues como o principal responsável pela concepção e desenho de toda a obra, principalmente pela famosa abóbada que fecha a Sala do Capítulo. Mestre Huguet, arquitecto inglês que alguns autores consideravam ser o verdadeiro construtor da Batalha, daí a comparação com o gótico inglês, é relegado para segundo plano e apresentado de modo pouco favorável. Herculano, A., (1988), pp. 163-211.

tuguês vinha estabelecendo uma relação identitária entre a arte e o momento histórico da sua criação, na qual a arquitectura, porque era fruto do seu próprio tempo, materializava os condicionalismos políticos, económicos e sócio-culturais de cada época. Assim, se o progresso das nações levava ao desenvolvimento das arquitecturas nacionais, também a decadência produzia, por oposição, monumentos decadentes. Para comprovar as suas afirmações, Herculano exemplificava com dois edifícios fundamentais da história da arquitectura portuguesa, o Mosteiro da Batalha e o Convento de Mafra. O primeiro, em estilo gótico, tinha sido levantado por uma época dourada da nossa história, o reinado de D. João I (1385-1433), monarca que venceu os espanhóis em Aljubarrota (1385) e consolidou a independência nacional. O gótico flamejante da Batalha coroava não só a independência de Portugal, mas também as liberdades cívicas que os primeiros monarcas portugueses tinham supostamente concedido aos seus súbditos, promovendo a descentralização do poder27. O segundo, edificado por ordem de D. João V, evidenciava, no seu classicismo abstracto e sem nacionalidade, no desenho geométrico e monótono, o obscurantismo decadente do absolutismo monárquico. Representava o despotismo do século precedente que a geração de Herculano tinha combatido e vencido. Deste modo, no contexto da cultura romântica, a catedral e o mosteiro da Idade Média foram apropriados como símbolos de um passado exemplar, berço de liberdades individuais e nacionais cuja recuperação justificava a instauração do jovem regime liberal. Se compararmos os textos do escritor português com a correspondência de Raczynski, verificaremos que o conde polaco prestou pouca atenção ao possível significado ideológico da arquitectura. Daí o seu agrado pelo palácio-convento de Mafra, que definiu como um grande monumento regular e harmonioso de proporções e cores28. Este seu distanciamento em relação a algumas das teses de Herculano manifestou-se, por exemplo, quando considerou que o autor do projecto do Mosteiro da Batalha teria sido, muito provavelmente, um arquitecto inglês29. As analogias formais que o diplomata tinha verificado existirem entre o gótico da Batalha e o da Catedral de York, depois de comparar os dois edifícios, levaram-no a concluir que ambos os monumentos tinham a mesma origem, independentemente do seu arquitecto ter sido inglês ou português30. Opinião que contrariava as convicções dos mais nacionalistas, como Herculano, que entendiam ser mais lógico atribuir a autoria do mais emblemático dos monumentos nacionais a um arquitecto português: Afonso Domingues31. Acrescente-se ainda que apesar de Raczynski considerar muito acertada a afirmação proferida por Alexandre Herculano sobre a arquitectura da época do reinado de D. Manuel no artigo "A Escola Politécnica e o Monumento”, publicado na Revista Universal Lisbonense no ano de 1843 (Vol. 2, n.º 38) – “C’est la résistance du style gothique contre le style de François I”, acrescentando de Bramante e Rafael –, quando alude concretamente ao estilo de D. Manuel, como o designa, é a definição de estilo manuelino introduzida por Francisco Adolfo Varnhagen no léxico artístico português com o artigo Notícia Histórica e Descritiva do Mosteiro de Belém (FIG. 5), publicado em O Panorama entre Fevereiro e Abril 1842, que está subjacente32. Certamente que Raczynski conhe-

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ceria a teoria de Varnhagen, pois enviou uma comunicação deste autor acerca da arquitectura portuguesa entre os séculos XII e XVI para Berlim. Alude ainda ao estilo de D. Manuel quando categoriza a fachada da igreja e a janela da sala do capítulo do Convento de Cristo em Tomar como os seus mais belos exemplares. Considerando-o muito original, muito português e muito próprio do reinado daquele monarca, viaja até Sevilha para verificar se a sua origem seria o estilo plateresco espanhol33. Raczynski concluí que os dois estilos eram distintos, mas a possibilidade de contaminação estética que levantou mostra que esta foi uma hipótese tida em consideração ainda antes do historiador Joaquim de Vasconcelos a ter colocado na sua conferência Da Arquitectura Manuelina, publicada em 1885. Embora fosse um cosmopolita, por via das suas viagens pela Europa e da sua carreira diplomática, Raczynski, possivelmente mercê da sua condição de artistocrata polaco católico, não era um liberal. Conservador política e artisticamente34, a perspectiva historicista da sua teoria da arte não se cruzou com a necessidade de legitimar uma nova ordem política, sendo herdeira directa de doutrinadores como Winckelmann, Chateaubriand, Schlegel ou Hegel, dos primeiros a capacitarem-se da relatividade dos ideais estéticos. Mas é de Winckelmann que Raczynski se aproxima mais, sobretudo quando considera que existe uma correlação entre as características do ambiente natural, os costumes, a forma de governo e o progresso artístico35. A par desta identificação da arte com o seu contexto histórico-geográfico, a beleza continua a estar na harmonia dos diferentes elementos que compõem uma obra. O que não é uma contradição, antes pelo contrário, verificando-se a harmonização das condições naturais, culturais e materiais que circunscrevem a produção artística, os objectos daí procedentes des-

FIG. 5 – José da Costa Sequeira, Claustro dos Jerónimos, séc. XIX, Museu Nacional da Arte Antiga. © José Pessoa, DDF/IMC.

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Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 331 e 483.

33. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 455, 483, 488 e 519. 34

Assim como avaliava com cepticismo os movimentos constitucionalistas, as utopias e os ideais de liberdade e igualdade que despontaram no século XIX, também prefiria, contemporaneamente, o pendor historicista do movimento dos nazarenos à modernidade do naturalismo francês, ou, historicamente, a serenidade de Rafael ao ímpeto colorista de Ticiano e Rubens. Nerlich, F. (2009), f. 5.

35

Quando, em 1764, na obra História da Arte na Antiguidade, o arqueólogo e historiador germânico Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) teorizou sobre a supremacia artística da Grécia Antiga, explicou-a pela conjunção dos seguintes factores: o clima ameno, a perfeição da natureza, o costumes e as instituições político-educativas da democracia ateniense. A impossibilidade destas condições voltarem a ocorrer, segundo o arqueólogo, torna o grau de beleza e perfeição alcançado pelos gregos inatingível a homens de outros tempos e lugares. Resta-lhes tomar a arte clássica como um modelo ideal, gerador de valores plásticos adequados às mais variadas circunstâncias. Deste modo, Winckelmann estabeleceu os fundamentos teóricos do ideal clássico e, simultaneamente, diferenciou, a partir da referência antiga, as épocas históricas. Assunto, Rosario, (1973), pp. 38, 39 e 86-95.


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Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 129-137 e 171-178. 37

Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 117, 119 e 121.

38 Num apêndice à 10ª carta é publicado um ensaio da autoria do Visconde de Juromenha intitulado Notas sobre alguns artistas portugueses, pintores, arquitectos, escultores, etc., precedido de uma curta história da pintura em Portugal, desde a sua origem até ao reinado de D. João III. Os dois ensaios foram traduzidos para francês para Roquemont. Raczynski, Le C. A. (1846), pp. 191-257, 365-373 e 374. 39 Por exemplo, José da Cunha Taborda refere-se a um Vasco apelidado de Grão Vasco sobre quem se especulava ter sido aluno de Pietro Perugino e que também poderia ser um iluminador activo no ano de 1455. Ora, Perugino viveu entre 1450 e 1523, logo o Vasco iluminador, activo em 1455, nunca poderia ter sido seu aluno. TABORDA, J. da C. (1815), pp. 146 e 147. 40

Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 153-158 e 187.

41

Raczynski, Le C. A., (1846), p. 373.

FIG. 6 – Visconde de Balsemão, Lista dos quadros atribuídos a Grão Vasco, que se encontram espalhados por todo o Portugal, in Raczynski, Athanasius, Les Arts en Portugal, 1846, p. 154.

tacar-se-ão pela homogeneidade das suas formas, ou seja, pela pureza do seu estilo artístico. Estes princípios teóricos proporcionaram-lhe um método de abordagem das obras de arte que consistia num cruzamento da análise formal com a investigação documental, a crítica das fontes e a aplicação da dúvida metódica a todas as tradições historiográficas. Foi com base neste método de avaliação artística que Raczynski conseguiu estabelecer, pela primeira vez, um núcleo pictórico coerente atribuível a um dos mitos da história da pintura portuguesa, Grão Vasco. De acordo com a 7ª e a 8ª cartas (17 e 26 de Fevereiro de 1844), terá sido o Visconde de Juromenha (1807-1887) a facultar o conhecimento da existência de Grão Vasco a Raczynski36. O Visconde de Juromenha fê-lo através dos autores que o referiram nos seus escritos entre os séculos XVI e XIX, nomeadamente Frei Manuel do Cenáculo, Francisco Dias Gomes, Frei Bernardo de Brito, Francisco Xavier Lobo, Lavanha, Figueiroa, Fernandez e Salazar de Castro, João da Cunha Taborda37. A partir daí, a definição da figura do pintor Grão Vasco passa a dominar as cartas de Raczynski, ocupando ainda a 10ª (1 Junho de 1844), a 12ª (7 de Junho de 1844), a 16ª (28 de Julho de 1844) e a 17ª (29 de Julho de 1844)38. Porquê esta atracção de Raczynski por Grão Vasco? Porque a dar crédito à tradição literária e à convicção predominante no senso comum, toda a pintura do início do século XVI produzida em Portugal seria da autoria de Grão Vasco ou de uma sua pressuposta Escola, o que era cronologicamente impossível em virtude da distância temporal que separava a realização de muitas das obras em causa39, para além de formalmente pouco provável, mercê das diferenças estilísticas que distinguiam muitos dos quadros entre si. Raczynski chega a apresentar esquematicamente, organizada num quadro analítico realizado pelo Visconde de Balsemão, a lista dos quadros imputados a Grão Vasco que se encontravam dispersos por todo o país (FIG. 6). Eram, ao todo, mais de 200 obras, embora sem contar com as classificadas como pertencentes à sua Escola desde o século XVI40. É de salvaguardar, no entanto, que embora Raczynski dê entender que o mito da omnipresença de Grão Vasco na pintura portuguesa do século XVI se mantinha como um dos cânones da cultura artística nacional, este seria já encarado com cepticismo pelos principais arqueólogos e eruditos activos em Portugal na década de 1840, na medida em que foram alguns deles a fornecer-lhe as referências documentais que lhe permitiram iniciar o processo de apuramento da obra do pintor de Viseu. Esse processo desenvolveu-se por três frentes de abordagem: selecção de um conjunto de pinturas estilisticamente coerentes entre sí atribuíveis a Grão Vasco; identificação dos quadros que definitivamente não poderiam ter sido pintados por Grão Vasco ou ser integrados numa sua presumível Escola (de cuja existência Raczynski não encontrou qualquer prova41); levantamento da documentação histórica fiável que atestasse a existência do pintor e balizasse a cronologia da sua vida. Baseando-se em textos dos séculos XVII e XVIII publicados por Frei Agostinho de Santa Maria no tomo V do Santuário Mariano em 1716 e no manuscrito Diálogos Morais, Históricos e Políticos (1630) do visiense Ribeiro Pereira, Raczynski começou por identificar Grão Vasco como Vasco Fernandes Casal, pintor activo durante os rei-

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nados de D. Manuel I e D. João III, autor do grande retábulo da capela-mor e do São Pedro (c. 1529) (FIG. 7) da catedral de Viseu – actualmente expostos no Museu Grão Vasco. A elevada qualidade pictórica dos panejamentos deste S. Pedro permitem-lhe considerar que o seu autor não podia ser o mesmo das obras que se encontravam depositadas na Academia de Belas Artes de Lisboa42. A sua alusão à Academia devia-se ao facto desta instituição acolher nas suas instalações, no convento de S. Francisco, o mais importante núcleo histórico de pintura portuguesa. Este núcleo era constituído pelos retábulos e quadros retirados dos conventos, mosteiros e templos extintos em 1834, após a vitória do liberalismo. A lista de registo destes quadros con-

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42 Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 122, 175 e 176.

FIG. 7 – Vasco Fernandes (Grão Vasco), colab. Gaspar Vaz, S. Pedro, c. 1529, Museu de Grão Vasco. © José Pessoa, DDF/IMC.


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convicção de Raczynski de que este grupo de tábuas não resultou da mão de Vasco Fernandes não resulta apenas da análise formal dos quadros em causa. O conde polaco afirma ter conseguido decifrar uma inscrição na boca do vaso representado ao centro da tábua dedicada ao tema da Anunciação. Lê nessa inscrição o nome Abraham Prim, interpretado por ele como o autor do retábulo, possivelmente um dos muitos pintores flamengos que, segundo os registos históricos, terão vindo trabalhar para Portugal durante os reinados de D. Manuel I e D. João III. Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 122 e 123.

tabilizava, segundo Raczynski, 41 obras atribuídas a Grão Vasco e 53 à sua Escola. Deste modo, voltando-se para as obras depositadas na Academia, determinou a impossibilidade do autor do São Pedro de Viseu ter também pintado as quatro tábuas do Retábulo do Convento de S. Bento alusivas à vida de Cristo (c. 1524) – actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga e atribuídas a Gregório Lopes e Jorge Afonso – e os oito quadros dedicados à vida da Virgem do retábulo do Convento do Paraíso43 – foram-no provavelmente por Gregório Lopes, por volta de 1527. Seguidamente, dos quadros registados no catálogo da Academia como sendo da autoria de Grão Vasco ou entendidos informalmente como tal e que ele achava terem sido pintados por outros autores, menciona uma obra oriunda do Convento do Espinheiro, nos arredores de Évora, com a data de 1529 inscrita – deveria ser a Aparição de Cristo à Virgem que actualmente está no Museu Nacional de Arte Antiga e é tido como sendo de Frei Carlos ou da denominada Escola do Espinheiro; quatro grandes pinturas pertencentes à charola do Convento de Cristo em Tomar, actualmente dados como sendo trabalhos de Jorge Afonso – Raczynski crê reconhecer neles a influência de Albrecht Dürer; o retábulo quinhentista da Igreja de Jesus de Setúbal, atribuído à oficina de Jorge Afonso; e quatro quadros da sacristia da igreja do Convento da Madre de Deus (Lisboa), pertencentes ao retábulo de Santa Auta, de acordo com a enunciação que Raczysnki faz da cena representada num deles, o qual ainda lhe facultou uma proposta de datação.

FIG. 8 – Vasco Fernandes (Grão Vasco), colab. Gaspar Vaz, Calvário, 1530-1535, Museu de Grão Vasco. © Arnaldo Soares, DDF/IMC.

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Raczynski refere que um destes últimos quadros representava a entrada das relíquias de Santa Auta no Convento da Madre de Deus, acontecimento sucedido em 1518. Logo, o retábulo teve de ser pintado em data posterior a esse ano. Curiosamente, o mesmo método condu-lo a uma conclusão pouco rigorosa. Noutro quadro do retábulo de Santa Auta, Raczynski viu o que lhe pareceu ser a representação de um casamento real, talvez de D. Manuel I e de D. Leonor, a sua última mulher, ou do futuro D. João III e de D. Catarina de Austria, o que apontava para que a sua produção não pudesse ser posterior a 1525. No entanto, a cena aludida não é o registo de qualquer casamento real, mas uma figuração do encontro de Santa Úrsula com o Príncipe Conan44. Entre Fevereiro e Maio de 1844, chega ao seu conhecimento uma notícia que se revelará fundamental. Em Viseu, um erudito e historiador local, o padre José de Oliveira Berardo (1805-1862), havia achado o registo do baptismo de Vasco Fernandes nos arquivos da Sé daquela cidade, o qual demonstrava que ele nascera em 1552. Embora Raczynski expresse inicialmente algum cepticismo em relação a esta notícia – a ser verdadeira significava que Vasco Fernandes só poderia ter começado a pintar por volta de 1570 –, acaba por aceitá-la e por incluir dois artigos de José de Oliveira Berardo e a transcrição do documento do baptismo nas suas cartas45. Assim, na 16ª carta, revogando tudo o que dissera sobre o assunto que entrasse em contradição com o que ia escrever a seguir, Raczynski sintetizou as suas conclusões finais acerca de Vasco Fernandes, apelidado de Grão Vasco: nascido em Viseu no ano de 1552, era filho do pintor Francisco Fernandes e exerceu o seu ofício artístico nos últimos anos do reinado de D. Sebastião e na primeira metade da dinastia filipina. Tomando a composição do Calvário (FIG. 8) que se encontrava na Sé de Viseu (na capela de Jesus) como referência de comparação, entende ser razoável atribuir mais 17 quadros da mesma catedral (localizados na sacristia) à autoria de Vasco Fernandes: Pentecostes, S. Pedro, Baptismo de Cristo, Martírio de S. Sebastião e 13 tábuas de tamanho médio figurando meias figuras de diferentes santos. Aproveitou para reafirmar a distinta qualidade do S. Pedro, afirmando que nenhum dos outros quadros era mais grandioso que este. A postura da figura, os paramentos, a composição, o desenho, a pincelada, o colorido, a arquitectura, os acessórios, a paisagem e as pequenas figuras no último plano, tudo era belo e irrepreensível. Nenhuma das restantes obras estava isenta de defeitos, incluíndo o referencial Calvário, de grande mérito, mas mal conservado. Parecia-lhe, inclusivamente, mais antigo que 1570, ano indicativo do início da actividade pictórica de Grão Vasco, tendo em conta a data de nascimento, 1552: “mais enfin les documents sont une plus forte autorité que mês impressions”. Concluiu declarando “Pour moi la question est décidée”46. Conquanto afirme a autoridade do documento sobre as suas impressões, e por impressões deve entender-se uma apreciação formal do objecto artístico, o contributo mais inovador de Athanasius Raczynski para a história da arte portuguesa foi distanciá-la do seu pesado teor nacionalista, aplicando-lhe uma análise formalista que não se ficou pela categorização estilística das obras de arte, em que simplesmente se fazia corresponder um certo padrão figurativo a uma determinada época,

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Raczynski menciona ainda, como não podendo ser atribuídos à autoria de Vasco Fernandes, uns quadros da colecção do Duque de Palmela e da Igreja de São João de Tomar. Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 125-128. 45 Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 297, 298, 300-308 e 374. 46

Raczynski, Le C. A., (1846), pp. 365-370.


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funcionando também como intrumento crítico de avaliação qualitativa da sua relevância e especificidade estéticas, que lhe permitiu identificar de um modo mais concreto datações, atribuições e conjunturas artísticas.

Bibliografia ASSUNTO, R. (1973), La Antigüedad como futuro. Estudio sobre la estética del neoclasicismo europeo, s.l., Visor. CHAVES, C. BRANCO (1977), Os livros de viagens em Portugal no século XVIII e a sua projecção europeia, Lisboa, Instituto da Cultura Portuguesa – Biblioteca Breve. DESWARTE-ROSA, S. (2008), Luz e Sombra. Athanasius Raczynski au Portugal, 1842-1848, in V Encontro de História da Arte – IFCH / UNICAMP, 2008, pp. 426-505. FRANÇA, J.-A. (1990), A Arte em Portugal no Século XIX, Primeiro Volume, Venda Nova, Bertrand Editora (3ª ed.), FRANÇA, J.-A. (1993), Raczynski revisitado, in Quinhentos Folhetins, s.l., Imprensa Nacional – Casa da Moeda. GERMANN, G. (1978), Gothic Revival in Europe and Britain: Sources, Influemces and Ideas, Cambridge, The MIT Press. GONZÁLEZ GARCIA, A. (1983), Introdução, in HOLANDA, Francisco de, Da Pintura Antiga. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda. HERCULANO, A. (1998), A Abóbada, in Lendas e Narrativas, Lisboa, Ulisseia. HERCULANO, A. (1837), A Arquitectura Gótica, in O Panorama, nº 1, 6 de Maio. LIMA, H. de C. FERREIRA, Cartas dirigidas pelo Conde Raczynsky a Ferdinand Denis. Separata da Revista História, Lisboa, 1932. NERLICH, F. (2009) – Raczynski, Athanase (cont), in Dictionnaire critique des historiens de l’art actifs en France de la Revólution à la Prémiére Guerre Mondiale, dir. SÉNÉCHAL, P., BARBILLON, C.: Paris. NETO, M. J. QUINTAS LOPES BAPTISTA (1997), James Murphy e o restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XIX, Lisboa, Editorial Estampa. POLYCHRONOPOULOU, O. (1999), Archéologues sur les Pays d’Homére, s.l., Noêsis. RACZYNSKI, A. (1847) – Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal. Paris: Jules Renouard et Cª, Librairies-Éditeurs. RACZYNSKI, Le C. A. (1846), Les Arts en Portugal, Paris, Jules Renouard et Cª Libraires-Éditeurs. SOUSA, M. L. MACHADO de, Viajantes Românticos em Portugal, in Dicionário do Romantismo Literário, coord. de Helena CARVALHÃO BUESCU, Lisboa, Caminho. TABORDA, J. da CUNHA (1815) – Regras da Arte da Pintura, com breves reflexões críticas sobre os caracteres distinctivos de suas Escolas, Vidas e Quadros dos seus mais célebres Professores escritos na Língua Italiana por Michael Angelo Prunenti, Lisboa, Imprensa Régia. VASCONCELOS, J. de (1875), Conde de Raczynski (Athanasius). Esboço biográfico por Joaquim de Vasconcelos, Lisboa, Imprensa Portuguesa. ZIELINSKA, M. D. (1981), Atanázio Raczynski- 1788-1874. Um historiador de arte portuguesa, in Belas Artes, 3ª série, nº 3, pp. 51-70.

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JOSÉ RODRIGUES E O CEGO RABEQUISTA 1 AFONSO RAMOS Investigador em História da Arte

“Há pedintes cegos de inspiradas frontes, Com estrelas n’alma, com visões mentais, Que atravessam rios, que vão dar com fontes, Que andam por agrestes, solitários montes, Sem errar a estrada, sem cair jamais!...” “In Pulvis” in Os Simples, Guerra Junqueiro.2

1

O presente artigo foi inicialmente submetido em Janeiro de 2008 como um dos trabalhos finais da cadeira de História da Arte dos Séculos XIX e XX em Portugal, leccionada pela Professora Raquel Henriques da Silva, na licenciatura de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

2

Às primeiras linhas do influente tratado crítico Le Peintre de la Vie Moderne [1859], Charles Baudelaire elogia o seu tempo por ter começado a resgatar artistas que o grande público desconhecia:

Par bonheur se présentent de temps en temps des redresseurs de torts, des critiques, des amateurs, des curieux qui affirment que tout n’est pas dans Raphaël, que tout n’est pas dans Racine, que les poetæ minores ont du bon, du solide et du délicieux; et, enfin, que pour tant aimer la beauté générale, qui est exprimée par les poëtes et les artistes classiques, on n’en a pas moins tort de négliger la beauté particulière, la beauté de circonstance et le trait de mœurs. Je dois dire que le monde, depuis plusieurs années, s’est un peu corrigé. Tal declaração lembra a importância capital de olhar aqueles que ocupam um lugar menor no cânone, pois tal como escreveria Joel Serrão, os “pequenos poetas, como se fossem espelhos planos, reflectem em si as circunstâncias peculiares da sua temporalidade e da sua própria experiência de modo, – digamos, – passivo”, por oposição ao espelho convexo e côncavo que os grandes poetas usam activamente. Torna-se, com

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Junqueiro, Guerra, Os Simples, Porto, Lello & Irmão Editores, s. d., p. 48.


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Júlio Castilho, o filho do célebre literato do ultra-romantismo, António Feliciano Castilho, que foi também um dos retratados por José Rodrigues num “émouvant portrait d’aveugle”, como escreveu um crítico parisiense coevo. (Castilho, 1909:84). 4 “Pego hoje na penna para commemorar um filho

illustre da Arte nacional (…) É indispensável fazel-o lembrado, visto como estas gerações ultimas quasi lhe esqueceram o nome, e desconhecem as pesadas tarefas que lhe absorveram a existência (…) A própria reputação de José Rodrigues, tão intensa outr’ora, esmoreceu e descorou; injustiça inconsciente, que é necessário reparar” (Castilho, 1909: 11) Castilho, Júlio, José Rodrigues, pintor portuguez: studos artísticos e biographicos, Lisboa, Moderna, 1909. 5 Diz o Archivo Universal de 1859 que: “Como pintor de retratos, continua a ser o snr. José Rodrigues o artista mais acreditado entre nós. Nas exposições públicas todos teem visto e notado a sua grande tendencia para este genero de pintura tão apreciavel.”

efeito, possível que os artistas menores, esses que “vivem e morrem com o seu tempo, constituam documentação histórica mais segura e mais valiosa do que os maiores.” (Serrão 1980, 36) Eis o lugar de José Rodrigues (1828-1887) na pintura nacional. Se foi outrora um dos mais respeitados e fecundos produtores de imagens do país, as centenas de obras que deixou caíram no olvido geral – e o paradeiro da maioria delas é hoje incerto. Em socorro da sua memória, Júlio Castilho3 dedicou-lhe uma notável monografia – a única disponível até hoje –, logo em 19094. Nela lemos o percurso simples e modesto da sua vida, sem datas excepcionais, entre o seu nascimento e morte na Rua dos Bacalhoeiros em Lisboa. As origens humildes obrigaram-no a satisfazer um grande número de encomendas que não lhe interessavam, mas que não podia recusar por simples motivos financeiros. Numa postura profundamente avessa ao mito do artista romântico, o pintor vivia “agrilhoado (e Deus sabia por quanto tempo) á tarefa diaria, inglória, e obscura de reproduzir as feições de uma população anonyma de Lisboa, do Maranhão, ou do Rio de Janeiro” (Castilho 1909, 27) – acrescente-se também a de Luanda, de Lourenço Marques, ou mesmo a de Liverpool -, muitas vezes apenas com base em daguerreótipos que lhe chegavam pelo correio. Todavia, se o retrato “não fora a sua vocação, o certo é ter sido nessa especialidade que ganhara notoriedade” (Castilho 1909, 80). Foi, durante bastantes anos, o pintor de retratos mais solicitado em Portugal5, tendo cumprido mais de duas centenas de encomendas, quase sempre oriundas de meios oficiais ou de burgueses endinheirados. A clientela era, na sua maior parte, inculta e pomposa, com ideias intransigentes sobre o que queria dos quadros, restringindo tanto quanto podia as liberdades criativas do artesão, e exigia prazos reduzidos de tempo a troco de uma remunerações mínima. Se acrescentarmos a estes duzentos retratos, os mais de quarenta quadros que pintou, entre paisagens, naturezas-mortas e alegorias histórico-religiosas, entendemos o ritmo da sua produção. Segundo os cálculos de Júlio Castilho, o artista concluía duas pinturas por mês, para além do tempo que dedicava a fazer gravura e desenho, a leccionar em escolas (no Colégio do Bom Sucesso e no de S. Domingos de Benfica) e a dar aulas particulares a várias senhoras. Terá sido, para dizer o mínimo, uma “carreira espinhosa e arida [que] deveu doer muito” (Castilho 1909, 27). (FIG. 1) Para ilustrar o conflito da sua vida artística, Júlio Castilho chama-o piedosamente de “águia engaiolada” (Castilho 1909, 96). Mas em vez de nos determos sobre o seu fardo de Sísifo, centremo-nos antes na sua obra-prima, O Cego Rabequista, que foi o que de mais próximo teve de um golpe d’asa, ou, pelo menos, assim o vem entendendo a historiografia nacional que a destaca repetidamente como obra maior do Romantismo em Portugal. Se este quadro, como defende Armando de Lucena, “define o pintor”, a nível artístico, técnico e biográfico (Lucena 1943, 79), as suas singularidades raramente são notadas, ou porque se torna vítima do sociologismo, ou porque integra narrativas maiores que a usam como ilustração da miséria e melodrama nacional. Rodrigo Paganino havia escrito no Jornal de Belas Artes sobre a filosofia enunciada pelo quadro, mas é Manuel Maria Bordalo Pinheiro quem lhe dedica um artigo, discu-

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tindo o seu valor pictórico “de um verdadeiro merecimento artístico, digno de pôr-se a par de alguns quadros de Velasquez” (Pinheiro 1860, 30). A obra foi concluída em 1855, e apresentada no ano seguinte na Sociedade Nacional de Belas Artes e na Exposição Universal de Paris, ocasião da única saída de Rodrigues do país (a acreditar em Macedo, acaba aqui “o interesse da sua biografia [...] arrastando a existência triste até ao dia da sua morte” (Macedo 1961, 80)). Dez anos mais tarde, em 1865, obteve a segunda medalha na Exposição Internacional do Porto. O conhecido coleccionador Príncipe Consorte D. Fernando de Saxe-Coburgo (D. Fernando II), não perdeu opor-

FIG. 1 - José Rodrigues – O Cego Rabequista, 1855. Óleo sobre tela, 170 x 122 cm. Museu do Chiado – MNAC, inv. 515. © José Pessoa, DDF/IMC.

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6 Veja-se

inclusivamente um quadro deste último, Festa na Aldeia, onde um rabequista anima uma cena popular. 7

Vide Junqueiro, Guerra, Contos para a infância, Lisboa, Typographia Universal, 1877. 8

Cf. William Wordsworth, “The Power of Music”.

tunidade de comprar a obra quando foi reexibida no Grémio Artístico de 1898. Posteriormente, seria adquirida pelo Conde do Ameal, e finalmente pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), em cujo acervo permanece desde então. Em dois anos apenas, 1855 e 1856, o romantismo plástico português via concluídas quatro das suas obras mais significativas. Além do quadro que nos ocupa, o Só Deus! de Francisco Metrass, A Cólera Morbus de Vítor Bastos, e por último, Cinco Artistas em Sintra de Cristino da Silva, onde figuram todos estes artistas (França 1999). Mas este é um grupo heterogéneo, e José Rodrigues distancia-se cada vez mais do género de pintura paisagística, aderindo a um novo modo de representação, inaugurado pelo pintor suíço Auguste Roquemont, que procurava mostrar os costumes populares e os valores castiços do país, com um empenho algo etnográfico e de vincada preocupação social. Entre os protagonistas, – e note-se que alguns deles provinham de um meio popular – contam-se António Alves Teixeira, Francisco José Resende, António José Patrício, Leonel Marques Pereira6, cujas obras alcançaram então “considerável sucesso público” (Silva 1995, 332). José Rodrigues necessitava assim de um tema apropriado ao sentimentalismo romântico que procurava apresentar. Encontrou-o, habilmente, na figura do violinista cego que transitava, de aldeia em aldeia, à procura de esmola, e que conseguia ser simultaneamente popular, religioso, romântico e miserável, como a tela pedia. Este tema, repetidamente utilizado na pintura ocidental, de Georges la Tour ou Bruegel a David Wilkie, é atravessado de um forte moralismo, uma vez que tem na sua origem uma fundação bíblica, enunciada numa célebre parábola aos fariseus (Mateus 15:14), onde se defende que não são os olhos mas sim a fé que pode oferecer a verdadeira visão. Na literatura oitocentista portuguesa são também vários os exemplos que testemunham a entrada desta figura para o imaginário popular. Além de personagens menores em Camilo ou Feliciano de Castilho, refira-se sobretudo o “rebequista d’aldea” de Luís Augusto Palmeirim, ou, em paralelo ao dramatismo de Rodrigues, o conto infantil “O Rabequista”, escolhido por Guerra Junqueiro numa selecta popular para crianças7. Esta ligação ao universo literário ajuda-nos a perceber a construção destas personagens, uma vez que nos reportamos a uma cultura com “escassos hábitos de visualização, propondo-lhe quadros como se de romances populares se tratasse” (Silva 1997, 47). Facto pelo qual, aliás, J.-A. França aproxima este quadro de um certo “sentimentalismo social que o palco do teatro de D. Maria II de boa mente debitava (França 1999, 355). A escolha premeditada do rabequista, enquanto símbolo eloquente da pobreza, é nesta tela o principal de vários mecanismos de identificação de um povo muito pobre, sofredor, porventura fatalista, que se revê e enaltece no miserabilismo desta trindade. A eficácia desta figura tinha sido aliás confirmada por William Wordsworth, em 1807, quando compôs um dos seus poemas mais arrebatadores depois de ter assistido ao poder encantatório de um cego violinista perante uma multidão de Londres, e logo equiparado a uma espécie de Orfeu moderno que era capaz de aliviar o sofrimento das classes oprimidas8. Eis que o pintor dos burgueses e aristocratas oferece um retrato aos anónimos, uma “obra trespassada de ardente amor pelos humildes, que a geração

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romântica contemplou com lágrimas nos olhos” (Pamplona 1987, 82). Transformar-se-ia rapidamente numa dessas imagens que se insinua na consciência comum nacional, e que “por uma razão ou por outra alcançaram uma espécie de estatuto mítico, pela voga, autoridade e irradiação que tiveram ou continuam a ter”, pertencendo, por direito próprio, a uma possível imagologia portuguesa (Lourenço 2007, 18). Em 1855, Lisboa era uma cidade arruinada. Na primeira metade do século tinha sido palco de uma série de acontecimentos trágicos, com as invasões francesas, o domínio inglês, a revolução de 1820, e as revoltas e contra-revoltas entre 1834 e 1851. Para mais, com o fim do império brasileiro e do seu comércio, os sinais de decadência eram evidentes, com muitas ruínas e prédios inacabados, epidemias frequentes (cólera, tifo, febre-amarela) e custos de vida que encareciam seriamente. Uma nova geração de intelectuais portugueses ficava alertada para os problemas sociais que se colocavam e que eram urgentes resolver, antes que se constituísse uma grave questão social como a que agitava a França, a Inglaterra e a Alemanha. Em verdade, era tanta a miséria que, para tentar diminuir os casos frequentes de assalto, o Governo iniciou em 1847 a distribuição diária de 2500 pães e criou a Sopa Económica. (Santos, 1979) A causa destes conflitos constantes estava, segundo Herculano, na pobreza do país, e só o fomento material poderia resolver tais problemas. Fontes Pereira de Melo põe em marcha estas ideias, tentando reduzir a sensação de periferia europeia – que também pairava sobre as artes, com uma Academia que não conseguia cumprir a promessa de financiar várias estadias de artistas no estrangeiro –, com inusitadas campanhas económicas que exigiam dos cidadãos um esforço sem paralelo. Todavia, O Cego Rabequista oferece uma incisiva observação realista deste panorama, ao expor “os mitos e fracassos do Portugal da Regeneração” (Silva 1997, 47), e configurando, de certo modo, um despertar político do longo idílio romântico. Tanto como agente activo do seu tempo, representando uma população que, face à escassa protecção social, apenas podia viver da caridade pública nas ruas da capital, e como agente passivo, simultaneamente, dado que, como notou J-A. França, evidencia a renitência da arte portuguesa em acompanhar o ritmo internacional e integrar a cena de género no contexto da cidade, onde estas cenas seriam então recorrentes, preferindo imaginar e encenar uma gruta inserida na paisagem, “sintetizando assim costumes urbanos e sítios rústicos num suburbanismo em que a cidade portuguesa se define” em Oitocentos. (França 1980, 15) O quadro desvia-se da cena típica de costumes populares, ao afirmar-se antes como uma celebração dos humildes, equivalente pictórico de um Os Simples de Guerra Junqueiro, numa profunda reverência pela vivência humilde, pela situação de desprotegimento, por uma pobreza confrangedora, que aborda em múltiplos quadros, a saber: “Velho Militar Mendigando”, “O Rapaz Pedinte”, “O Pobre da Púcara”, “O Sapateiro”, “O Mendigo”, etc. Longe da ideologia realista que Courbet semeara em Paris, o pobre pintor português inspirar-se-ia porventura naquilo que tinha mais por perto: as imagens de género e as gravuras populares com que lidava diariamente. José Rodrigues, que não pudera estu-

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Foram vários os artistas que no princípio do século XX utilizaram o violino como motivo central das suas obras. Entre eles, refira-se o nome de Picasso, Manet, Degas, Chagall, Braque, Matisse, Juan Gris, Amadeo de Souza-Cardoso ou Almada Negreiros.

10 Poema “Geografia” de Sophia de Mello Breyner.

dar fora do país, revela um “estilo esforçado”, hesitante e ecléctico, a que corresponde uma “execução muito ingenuísta”, que tolhe os intentos realistas da obra. (Silva 1997, 47). A aparência geral da obra é na verdade oleográfica, algo que aproxima muito esta tela de uma gravura, como reparou J-A. França (1966, 270). No entanto, é possível reconhecer uma influência dominante de duas escolas de pintura, a italiana e a espanhola. Associa-se frequentemente a esta obra o nome de Giacomo Ceruti (1698-1767), pela sua predilecção por temas de mendigos na rua, mas também pela organização das figuras e sobretudo considerando o fundo de paisagem que se vislumbra do lado direito. Todavia, porventura mais do que a “transparente inspiração italiana” que J-A. França encontra nesta obra, as suas fontes imagéticas parecem localizar-se sobretudo na pintura espanhola (França, 1966 : 270). Manuel Maria Bordalo Pinheiro havia declarado, aliás, que, “o merito deste quadro só pode ser bem avaliado por aquelle que conhecer a eschola espanhola” (Pinheiro 1860, 30). Na linha directa do tenebrismo da pintura barroca espanhola, o claro-escuro reforça aqui o realismo das figuras, ao mesmo tempo que as dramatiza e empola. A referência central será o artista sevilhano Bartolomé Esteban Murillo (1618-1682), cujas pinturas de género haviam circulado com bastante popularidade pela Europa do século XVII. Note-se a clara semelhança com a imagem dos Rapazes Pedintes Comendo Uvas e Melão (c. 1645/46), a partir da qual José Rodrigues parece reutilizar o espaço cenográfico obscuro, espécie de gruta para instalar a trindade de misérables, em tudo conveniente à ambiência que pretende criar – e que também utilizou, por exemplo, nos seus Pescadores Cantando e Tocando n’uma Gruta ao Rez da Praia ou em Os Salteadores na Caverna. Contra a escuridão do fundo, ambos os pintores destacam o primeiro plano através de predominantes ocres amarelos e castanhos, esmaecidos quanto o espírito das figuras, dentro de uma rígida esquematização construída pelo desenho, técnica cuja mestria de Rodrigues era repetidamente elogiada pelos jornais da capital. (FIG. 2) Ao colocar estrategicamente o violino no ponto focal da tela, o artista demonstra-se consciente do poder poético e trágico deste símbolo, à semelhança da geração vanguardista que lhe sucede9. Para além da união geométrica e anímica das figuras em função do som agudo, a representação do instrumento permite também traçar duas linhas oblíquas que dividem o quadro em partes iguais, através do arco e do violino. Mas mais importante, no centro da composição, é a personagem do cego, andrajoso e ascético. Diversos sinais, cuidadosamente explorados (e exagerados), atestam a miséria da sua condição: o pé que já não cabe no sapato coçado, a barba rala, dedos rudes, calças remendadas e a camisa suja; e, no entanto, toda a figura é majestosa. A religiosidade com que toca o violino, e o lenço escarlate que lhe coroa a cabeça, são pequenos motivos nobilitantes que lhe salvaguardam a dignidade, mesmo quando as condições de vida não podiam ser piores. Rodrigues parece ter captado essa mítica ambivalência do povo português, que a poetisa cantaria um século depois: “Esta gente cujo rosto / Às vezes luminoso / E outras vezes tosco / Ora me lembra escravos / Ora me lembra reis”10.

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No seu cotovelo direito, uma sombra faz pressupor outra figura que não vemos. Em baixo, uma manta enrugada e o pote de barro que acompanha tradicionalmente a figura ambulante do violinista. Contudo, estes pormenores são diminuídos quando postos ao lado da rapariga angelical, que nos encara directamente nos olhos, com uma mão terna sobre o velho para apoiar a cabeça, e a outra esticada em súplica. Em nenhuma das outras figuras o desespero é tão evidente. De joelhos no chão, com pés descalços, depende da sua expressão persuasiva a subsistência do grupo. A sua fragilidade surge reforçada pela perna robusta onde se apoia, e na sua beleza casta encontramos o contraponto ao estado lastimoso do cego, como se o pintor pretendesse avisar-nos da urgência em ajudá-la. Todavia, o grande enigma do quadro levanta-se, quanto a nós, com a figura do rapaz por detrás do cego. Os sinais de indigência são incertos, note-se que ambos os pés e as mãos estão vedados ao observador. Para mais, como explicar a ausência de luz, que banha o cego e a rapariga, votando o rapaz a um lugar sombrio, distanciado do drama

FIG. 2 - Bartolomé Esteban Murillo – Rapazes Pedintes Comendo Uvas e Melão, 1645/46. Óleo sobre tela, 146 x 104 cm. Alte Pinakothek, Munique – inv. 605. © Blauel/Gnamm/ARTOTHEK.

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principal? J-A. França considera que este “volta para nós um olhar triste” (França, 1999: 352), mas, em verdade, não vemos senão uma cara plácida, cujos olhos esfíngicos fixam o vazio. Como explicar então esta terceira figura, algo marginal na homília dos pobres? Eis, cremos, a importância de olhar de perto a pintura – e logo esta, que tão pouco tem sido olhada e para cujo fim o criador investiu todos os recursos de que dispunha -, e de lhe estudar o detalhe que aqui, tal e qual escreveu Daniel Arasse, “le détail se manifestait alors comme un écart ou une résistance par rapport à l’ensemble du tableau ; il semblait avoir pour fonction de transmettre une information parcellaire, différente du message global de l’œuvre – ou indifférente à celui-ci.” (Arasse 1996, 6-7) Ora, esse desacordo da figura com o espírito da obra, tem uma origem reconhecível – embora não inteiramente explicável. Percorrendo as poucas reproduções disponíveis das obras do artista, encontrámos um notável auto-retrato seu feito a grafite, com dezanove anos de idade, que porventura nos pode fornecer informações importantes (FIG. 3 e 4). Veja-se (apesar das reproduções desvirtuosas) o enquadramento da cara a três quartos, olhando pelo mesmo lado, o manto, o queixo no mesmo ponto, as linhas idênticas do rosto (com, talvez, a pequena excepção das bochechas mais insufladas,

FIG. 3 - Auto-retrato com 19 anos. (proprietário desconhecido). In Júlio Castilho. 1909. José Rodrigues, pintor portuguez: studos artisticos e biographicos, Lisboa: Moderna.

FIG. 4 - Sobreposição de auto-retrato com 19 anos com pormenor de O Cego Rabequista. © Afonso Ramos.

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talvez como forma de retirar alguns anos ao rapaz). Se por um lado reafirma o seu virtuosismo no desenho, e recupera um exercício académico de mérito, por outro, a auto-representação de José Rodrigues vem trazer ainda uma maior estranheza e atracção à terceira figura que é por natureza inquietante. Como o coro na tragédia grega, esta terceira figura parece ser o espectador ideal que se responsabiliza pelo equilíbrio das emoções e pela moderação dos discursos, reforçando o diálogo intenso que é estabelecido com o espectador. Deixa de ser claro quem é observado e quem é observador. O velho toca para si próprio, isolado do mundo, enquanto a rapariga olha directamente o observador, e o rapaz, alheio ao resto, observa o espaço dentro da tela, de tal modo que o observador hesita entre olhar e ser olhado, perante uma cena que tanto procura como evita. Com o velho a ditar a acção, a rapariga a exigir uma reacção, e o miúdo a estudar serenamente os intervenientes da cena, como se um espectador do próprio quadro, José Rodrigues construiu um monopólio psicológico do olhar que justifica ser esta a obra máxima entre as centenas que deixou. Tudo isto está concebido para comover, espantar, perturbar – e tudo é hipérbole. Apesar da falta de estudo a que este quadro tem sido sujeito, já se levantou a hipótese destas crianças serem filhas do cego. Embora nenhum documento o ateste ou refute, e a natureza da situação o faça supor, este apontamento é relevante na medida em que comprova a competência do pintor em criar uma intensidade anímica e sentimentalista fora do comum. As personagens surgem envoltas numa dimensão épica que, de modo premonitório, só voltaremos a encontrar alguns cinquenta anos mais tarde nas obras emblemáticas de José Malhoa. Após ter concluído esta obra que lhe pusera medalhas ao peito, o levara a Paris e o firmara na historiografia artística nacional, todos os relatos da época concluem que Rodrigues consome os restantes anos da sua vida cansado, doente e amargurado. O criador de O Cego Rabequista “morre antes de morrer” (Castilho 1909, 84), e o seu derradeiro panegírico já havia sido expresso pela pena do seu amigo e fiel admirador Manuel Maria Bordalo Pinheiro: “O sr. Rodrigues conhecerá o que vale quando sahir de Portugal, e quando vir, a par das bellezas d’arte que elle saberá aproveitar, o apreço que se dá a trabalhos que talvez não apresentam nem a originalidade nem a força do colorido da sua obra”. (Pinheiro 1860, 30) Cento e cinquenta anos depois, o desfecho da sua ida a Paris continua incerto – e até mesmo, se ela aconteceu de verdade11 – e são portanto desconhecidas as conclusões que tirou das belezas da arte estrangeira. Contudo, se lembrarmos que na Exposição Universal de Paris em 1855 o seu óleo ocupava o mesmo espaço dos de Rousseau, Millet, Courbet, Rossetti ou Whistler, a distância temporal apenas parece garantir-nos que O Cego Rabequista exprimia de modo exemplar a arritmia nacional face à evolução artística das principais nações europeias.

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11 Note-se, curiosamente, que no registo oficial da

Exposição Universal de Paris feito por Portugal em Paris, não vem mencionada nenhuma obra de José Rodrigues. (Cf. Relatorio do Commisario Regio junto Á Commissão Imperial da Exposição Universal de Paris, Tomo Primeiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857). Contudo, num relatório francês refere-se que esteve exposto, com o número 1672, um quadro chamado “Moeurs portugaises”, da autoria de “RODRIGUES (JOSÉ), Ancien élève de l’Académie de Lisbonne – Calcada de S-.Crispim”. Contudo, é incerto se este nome fora atribuído a O Cego Rabequista ou se foi outra qualquer tela desconhecida. [Cf. Exposition universelle de 1855. Explication des ouvrages de peinture, sculpture, gravure, lithographie et architecture des artistes vivants étrangers et français exposés au Palais de Beaux-Arts le mai 1855, Paris, Panis, Vinchon, 1855, p. 173.]


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ENCONTROS PERDIDOS: OBJECTOS SURREALISTAS DESTRUÍDOS 1 MARÍA JESÚS ÁVILA Coordenadora do Centro de Artes Visuales, Fundación Helga de Alvear, Cáceres (Espanha).

1. Introdução Os surrealistas deixaram-nos um completo e complexo legado de produções artísticas que mostram a riqueza e o interesse das preocupações estéticas que os ocuparam. No entanto, não podemos deixar de considerá-lo incompleto se encararmos todas as obras que ficaram pelo caminho, destruídas pelos acasos da vida e da história, ou silenciadas, deliberadamente ou por ignorância, no fundo das gavetas dos seus proprietários. Mas há também que lembrar as obras que não viram a sua execução final e ficaram em projecto – palavra que hoje, após toda uma tradição conceptual, adquire novos sentidos artísticos. Em relação às primeiras, citem-se, como exemplos, as pinturas destruídas durante o incêndio havido no atelier de António Pedro, quando ocupado por António Dacosta, ou como 4 das 5 colagens que O’Neill expôs na 1ª Exposição Surrealista e as fotomontagens que realizou para ilustrar O corpo visível de Mário Cesariny.. Sempre penosas estas perdas, nalguns casos tornam-se especialmente dramáticas pois acarretaram o desaparecimento de conjuntos quase completos sobre determinados suportes, como é o caso do cinema e do objecto surrealista. Só alguns testemunhos, documentos fotográficos, referências em catálogos ou desenhos, permitem hoje conhecer alguns destes objectos e reconstruir o universo poético e simbólico que enforma a arte surrealista produzida em Portugal entre finais da década de quarenta e princípios de cinquenta. Completar, através do estudo do objecto, este panorama de acasos, encontros, deslocações e assemblages em que o desejo, a beleza convulsiva, o maravilhoso e o inconsciente se materializam é o objectivo deste texto. As incursões na prática objectual foram frequentes para grande parte dos artistas, de Vespeira a Mário Henrique Leiria, passando por Cesariny, Lemos ou António Pedro, e nela se aventuraram também os escritores, como Fernando Alves dos Santos, Pedro Oom ou José-Augusto França. Mas foi sempre uma produção pontual nas trajectórias destes autores, à excepção de Cruzeiro Seixas. Como resultado, existem dezassete objectos documentados fotograficamente no exíguo registo que na altura

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Artigo realizado a partir da conferência com o mesmo título, apresentada em 2009 no Núcleo de Arte Contemporânea de Tomar, no contexto das comemorações dos sessenta anos da 1ª Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa.


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Não incluo neste levantamento, por razões estéticas e cronológicas, os dois objectos realizados por António Pedro em 1935 e Une cuisse (1948) de Cruzeiro Seixas. Ficam também de fora os dois objectos projectados por Pedro e França para a 1ª Exposição Surrealista e o esboceto de uma obra de Cesariny, por não saber com segurança se chegaram a ser executados. Ainda em catálogos de exposição são referidos três objectos de Leiria, não contabilizados por desconhecer se são coincidentes com os que estão documentados fotograficamente. 3 A dificuldade de os transportar, segundo referiram alguns dos artistas nas entrevistas realizadas no processo de documentação da exposição Surrealismo em Portugal, 1936-1952 (Badajoz, Lisboa e Madrid, 2001-2002), é a principal razão para deixá-los atrás.

se fez das obras e das exposições colectivas realizadas entre 1949 e 19522. De todos eles, só se conservam dois. Os quinze restantes e as relações entre objecto e fotografia serão o assunto central deste texto. Vários foram os motivos do desaparecimento e o principal reside na própria fragilidade das obras. Anos de carências económicas determinaram o uso frequente de materiais perecíveis que haviam de conduzir à sua posterior desagregação ou deterioração. O seu carácter tridimensional aumenta o risco de perda ao dificultar a sua conservação por parte dos próprios artistas3. Por vezes, a efemeridade com que foram concebidos contém, à nascença, a causa de destruição, sendo este o caso dos manequins ou dos Teatros de Atelier. Finalmente, a indiferença da crítica para com os mesmos em nada contribuiu para a sua conservação.

2. O objecto na estética surrealista O papel do objecto na estética surrealista é fundamental ao favorecer, em palavras de Breton, “a descoberta da maravilhosa vida simbólica dos objectos absolutamente comuns”, constituindo “um intermédio entre o sensível e o racional” e abrindo a possibilidade de materializar as palabras e o sentimento (Breton 1992). À diferença do ready-made, que não é estranho (no sentido freudiano do termo) nem se alimenta da obsolescência, não está investido de energia psíquica sexual nem, portanto, se expressa como fetiche, o objecto surrealista materializa as pulsões do artista (Foster 2008). Nele, a deslocação e a disrupção entre estética e utilidade permite ao espectador ampliar os limites do entendimento dos objectos do mundo e expandir os seus sentidos, estabelecendo cadeias de associações contaminantes de sentido. O objecto constitui-se como metáfora, como complexo sistema de significações que surge quando a metáfora se estabelece. Os elementos integrantes mostram encobertamente o que significam e os significados não são produto mas efeito de uma relação de significantes. Dizia Breton em A situação surrealista do objecto (1935) que “a sua inutilidade e a sua capacidade de evocação convertem-os em objectos poéticos, que permitem ao espectador conhecer a maravilhosa precipitação do desejo”. A ambiguidade visual que possuem instala neles o enigma; um enigma que o nosso desejo é impelido a resolver na tentativa de ver para além daquilo que é visto. Assim, estabelece-se uma nova relação entre sujeito e objecto: o objecto adopta a função de emissor energético e espiritual, e o sujeito interpreta e amplia os sinais. Mas estes objectos surrealistas têm sido lidos também de outro ponto de vista,, apontado por Barthes (1973) e aprofundado por Foster (1993). Para Barthes,, o objecto é o mediador entre o homem e o mundo. Etimologicamente “objecto” é “uma coisa que está situada diante, à frente de nós”, sendo também produto do fluxo industrial de produção e das transformações e manipulações das mãos e da mente do homem. Por isso ele é, em definitivo, “a assinatura do nosso mundo”. E os objec-

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tos surrealistas são registos de todas as forças de produção que, na época surrealista, surgem como registo artístico perante a concepção capitalista do objecto. Os objectos estão sob o domínio de quem os utiliza, existem para servir-nos, para que as suas funções substituam algumas das nossas como sujeitos e, na modernidade do séc. XX (nas sociedades europeias liberais), surge uma nova objetualidade, entendida como a relação de prazer que suscita no sujeito a possessão de um objecto: através dos objectos é possível analisar as tentativas mediante as quais os sujeitos procuram satisfazer o desejo. Neste sentido, o objecto emerge como o campo de acção artística em que podem ser conciliados os aspectos políticos e psicanalíticos da teoria surrealista. O momento áureo dos objectos, em termos de exposição, ocorreu em 1936, na Galerie Charles Ratton, onde foram dispostos como se fossem mercadorias para suscitar essa ideia de desejo, aproximando a alta cultura e o consumo, e fazendo coincidir nos objectos fantasias colectivas e individuais.

3. Antecedentes em Portugal Em Portugal, o introdutor da prática objectual foi António Pedro. Em 1935, já tinha objectualizado os seus poemas no conhecido Aparelho metafísico de meditação. Um poema dimensional que adquire carácter objectual. Nele o conceito abstracto é representado simbolicamente como forma geométrica, o círculo, com palavras inscritas que solicitam a acção directa do espectador para pôr em funcionamento as possibilidades combinatórias da linguagem, acentuando assim a potencialidade cognitiva da obra4. Outros interpretaram-no como um dispositivo destruidor da metafísica, um aparelho de meditação que abstrai tempo e espaço, desmonta o monolinguísmo do Outro e antecipa assim a condição acefálica da enciclopedia Da Costa. Le mémento universel (1948)5. Semelhante acção de combinação linguística é desenvolvida no objecto Poema das quatro faces (1935). No entanto, a sonoridade e capacidade evocativa do poema possuem outras implicações poéticas e, sobretudo, os elementos iconográficos utilizados antecipam formalmente as mãos-asas que, posteriormente, povoarão as pinturas surrealistas do artista. Mas estes primeiros objectos não podem ser enquadrados numa poética surrealista, pois unidos a questões próprias do dimensionismo, não participam das teorias do acaso, do desejo ou do maravilhoso, sendo inclusive considerados pelo artista experiências falhadas, na sua dimensão poética e sensível, pelo excesso de potencialidades cognitivas. Também não tem orientação surrealista o primeiro objecto realizado por um dos artistas portugueses que com mais consistência se afirmou neste género artístico: Une cuisse (1948), de Cruzeiro Seixas. Constituído por um cartão recortado com forma de coxa de frango, com o seu nome inscrito, espetada por um garfo, apoiava-se numa base de madeira com a legenda em papel colado “Uma coxa para matar a fome dos neo-realistas”. Destruída na sua configuração original, conserva-se uma versão posterior em que a coxa de frango – provavelmente a original, mas repintada – é devolvida a uma

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4 Lapa, P. (1990). A Linha a Palavra O Espaço. António Pedro Desenhos. Lisboa: IPM/Museu do Chiado, 13-14; Ávila, M. J. (2007). Arte Moderno en Portugal en la colección del Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado. Salamanca: Caja Duero, 43, 140. 5

Antelo, R. (2004). António Pedro e a condição acefálica. Revista Semear, nº 9. Rio de Janeiro, 161-194.


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6 Sirva de exemplo o caso de R. Krauss, acusada de manter um ponto de vista masculino e de encarnar misógenas estruturas patriarcais.

configuração bidimensional, apresentando-se colada sobre uma cartolina verde. Em ambas as versões é curioso observar como, utilizando na perfeição todos os preceitos surrealistas do encontro de objectos, o objecto reduz-se a uma ferramenta ilustradora da crítica ao Neo-realismo, sem nenhum indício da inquietação própria do Surrealismo.

4. Portugal, 1948-1952 Seguindo a dinâmica internacional das décadas de 20 e 30, em Portugal a prática objectual conheceu entre 1948-1952 uma efémera, mas produtiva, explosão. Para nos podermos orientar na grande diversidade de abordagens utilizarei algumas das tipologias que Breton instituiu quando – devido a essa universalização – se produziu o que ele definiu como “crise do objecto”.

a. O acaso objectivo Uma das vias principais para aceder ao maravilhoso é a operação de dépaysement, entendida como o desenraizamento de objectos e figuras familiares e a sua inserção num contexto novo que não lhes é próprio, que choca e surpreende. O objectivo desta reunião arbitrária é, para além de desestabilizar o princípio da identidade e questionar o conceito de autor, provocar a estranheza e revelar, por meio dela, relações inconscientes que de outro modo não se manifestariam. Significados que têm interpretação individual e, ao memso tempo, colectiva. No conjunto regido por estes princípios situam-se os manequins. Começo por eles, pois ocupam quase uma sub-categoria própria e constituem a primeira apresentação pública do objecto em Portugal em 1949, na 1ª Exposição Surrealista.

O manequim como expressão do maravilhoso O manequim constitui uma das melhores expressões do maravilhoso, segundo a própria definição de Breton no Primeiro Manifesto Surrealista (1924): “o maravilhoso participa obscuramente de certa classe de revelação geral de que tão só percebemos os pormenores; estes são as ruínas românticas, o manequim moderno, ou qualquer outro símbolo susceptível de comover a sensiblidade humana durante certo tempo” (Breton, 1992). As relações que os surrealistas mantiveram com as mulheres foram complexas e contraditórias. Deslumbrados e atraídos por elas como objectos de desejo ou figuras de fertilidade e vida, também as olharam como personagens de carga negativa e terrífica ou como objecto do sadismo mais extremo. Prova disso é que a interpretação das formas de representação da mulher foi um ponto de discórdia entre os estudiosos do Surrealismo6. Se,, como dizia o Breton “O encontro inesperado tende sempre, explicitamente ou não, a tomar a forma de uma mulher...” (1973, 139), a união dos domínios do psi-

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cológico e do físico tende a dar-se preferencialmente no corpo feminino. O corpo da mulher é, por excelência, o campo de acção onde a beleza e o desejo se materializam, mas já não é a imagem sublimada do belo, como acontecera na arte tradicional, mas o sítio dessublimado do sublime, o teatro da luta entre Eros e Tánatos (Foster 2008, 106). Dentro deste universo, o manequim veio abrir novas possibilidades para a sua representação oferecendo um novo campo de acção onde era possível proceder às operações de desmembramento, fragmentação, erotização, profanação ou exaltação necessárias para que todos os domínios relativos ao prazer e à morte pudessem adquirir uma realidade objectiva. Já o disse Dalí no artigo “As novas cores do sex-appeal espectral”, publicado em 1934 na revista Minotaure: “A mulher espectral será a mulher desmontável”, o novo atractivo sexual das mulheres virá da sua possível dissociação, a mulher tornar-se-á espectral pela desarticulação do seu corpo (San Martín 2004, 40). O manequim não é modelado pelo artista nem é uma escultura no sentido tradicional. É representação pré-existente do corpo humano, feminino, que vive independentemente do uso que os surrealistas lhe dão. É uma representação da representação de um corpo, uma projecção da figura usada pelos surrealistas para tematizar relações entre representação, mediação e percepção. O manequim era pensado como se fosse dotado de vida, é uma representação da mulher que permite ao artista aproximar-se do Criador, uma figura que pode ser trazida para a vida através do amor/projecção; mas também pode ser uma fuga da “mulher real” concebida como o Outro; ou então, como o amor pelo mesmo (de si mesmo). Não surpreende que Freud utilizasse a relação de Nathaniel com a boneca Olympia, na historia Der Sandmann (O Homem de Areia), de E.T.A. Hoffmann, para a sua teoria do estranho (unheimlich)7. Para Freud, o estranho implicava o retorno de algum fenómeno familiar (uma imagem ou objecto, uma pessoa ou evento) tornado estranho através da repressão. Esse retorno do reprimido gera ansiedade no sujeito, tornando ambíguo o fenómeno, e essa ambiguidade ansiosa é responsável pelos principais efeitos do estranho: falta de distinção entre o real e o imaginado – o princípio mais básico do Surrealismo, segundo a definição que Breton recolhe nos dois manifestos –; confusão entre o animado e inanimado, entre o humano e inumano – do qual os manequins, tal como as bonecas, as figuras de cera e os autómatos, são claros exemplos –; e a usurpação do referente pelo signo ou da realidade física pela psíquica. Hal Foster (2008, 62) apoiará e aprofundará esta leitura considerando que os manequims constituem na sua união de real/imaginado e animado/inanimado um dos melhores exemplos do uncanny. No manequim predomina a sugestão geral de submissão aos desejos masculinos. O papel da mulher é passivo e aparece sempre como resposta a um criador masculino, uma mulher domesticada, aquiescente e silenciosa, dócil, feita à imagem do desejo do homem. A aproximação surrealista do corpo feminino como simples objecto para manipular à vontade, para cumprir ou fazer surgir as obsessões do artista, atinge o grau máximo no fascínio pelo manequim. Sempre, uma pulsão violenta e de morte

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Hoffmann, E. T. A. (1993). O homem da areia. Contos fantásticos. Rio de Janeiro: Imago.


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subjaz à conversão do corpo em objecto. E, neles, é tão forte o desejo de dominar estas figuras como o temor de cair na sua servidão. Para Foster, esta objectualização através de manequins arrancados das montras, figuras intermutáveis com as suas mudas irmãs comerciais, gera uma associação entre desejo e consumo, uma imagem de reificação capitalista. O autor encontra assim nos manequins objectivos críticos sociais e políticos (Foster 2008, 217-28, Astorga 2009). Para tal, explica como nos manequins não existem corpos físicos mas ausências que são resolvidas em presenças simuladas para reflectir medos ocultos, o medo a desvanecer-se dentro de uma espécie de imagem colectiva. Os manequins são imagens que reflectem os nossos próprios medos. Segundo alguns, são mesmo imagem da geração surgida após da 1ª Guerra Mundial e que T. S. Eliot descreveu em 1925 no seu poema The Hollow Men: “Contornos sem forma, sombras sem cor / Força paralizada, gesto sem movimento”. Deixando de lado o uso que do manequim fez Dadá, numerosos são os antecedentes do uso do manequim, partindo das pinturas de De Chirico, a boneca-manequim de Bellmer, as fotografias de pessoas que pelos seus actos repetitivos podem ser considerados autómatos, publicadas no Minotauro Magazine, ou o interesse de Man Ray pela comparação fotográfica de máscaras, bonecos e figuras humanas. O manequim como tal será usado nas figuras-manequins reproduzidas com o nome de fétiches, no Varietés (1929), nas montras desenhadas por Marcel Vertes ou por Dalí para a Bonwit Teller’s, em Nova York (1936), ou nas fotografias de Wols dos manequins do Pavilhão da Elegância na Exposição Universal de Paris (1937). Mas o grande trunfo do manequim surrealista tem lugar na Exposição Internacional do Surrealismo, Paris, em 1938. Esta exposição, organizada por Breton, Elouard e Duchamp, marca uma mudança ao abandonar a instalação convencional, expandir a natureza do objecto surrealista ao espaço de exposição e reclamar um papel activo para o espectador. Na exposição, o luxuoso interior do séc. XVII é transformado num obscuro subterrâneo que anula toda a possibilidade de uma arte erudita. À entrada encontrava-se Taxi chuvoso de Dalí, recoberto de trepadeiras e encharcado pela chuva, em cujo interior se encontravam dois manequins: um masculino com um esqueleto de tubarão e óculos escuros e um feminino, coberto de caracóis vivos. A seguir, antes de entrar na exposição, era preciso atravessar a Rua dos Manequins, onde um total de 16 manequins, todos alugados num centro comercial de Paris, se alinhavam junto de placas com nomes de ruas e outras obras de arte, como as fotos de Bellmer. Pela sua disposição como mercadoria, era inevitável a evocação da prostituição. Cada manequim foi realizado por um artista: Masson, Duchamp, Domínguez, Ernst, Miró, Man Ray, Maurice Henry, Arp, Dalí, Seligmann, Paalen, M. Jean ou Mosse. Todos como pigmaliões pessoais a que os artistas tentaram dar vida. Tudo estava às escuras, sendo necessário percorrer a exposição com lanternas que o próprio Man Ray entregava à entrada. Este facto colocava o espectador numa posição semi-lasciva e voyeurista. Finalmente, acedia-se ao espaço principal: o chão estava coberto de folhas secas, musgo e terra, no centro havia um tanque rodeado de fetos e, nos cantos, uma cama

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de casal com lençóis de seda. No tecto, estavam pendurados 1000 sacos de carvão, vazíos, mas muito sujos, e no chão um aquecedor-lareira. À volta ressoavam risos histéricos e, no dia da inauguração, Dalí contratou uma dançarina que interpretou uma simulação da histeria, com o título “O acto não consumado”8. Em Portugal, o manequim aparece pela primeira vez em 1949, na 1ª Exposição Surrealista (FIG. 1). Os artistas, sem autoria concreta, apropriam-se de um manequim existente no atelier da Rua Nova da Trindade. Tratava-se de um grosseiro corpo de mulher, acéfala, que parece feito de esponja cosida nas articulações, de maneira a permitir diferentes posturas. Este manequim, um modelo que participa da obsolescência tão cara aos surrealistas, movimentava-se pelo espaço de exposição, partilhando com os artistas e os visitantes as suas experiências, num convívio inocente e de camaradagem, tal como as fotografias registam. Não apresenta nenhuma intervenção artística, para além do próprio acto de deslocação e desfuncionalização, nem as implicações eróticas que habitualmente o acompanham. Mas não deixa de ser uma figura passiva que se submete aos desejos dos artistas, actua como eles determinam, e, neste sentido, manifesta essa dimensão domesticada que define a mulher-manequim. Em 1952, na Casa Jalco, Azevedo, Lemos e Vespeira realizaram uma importante exposição, onde, por entre pinturas, fotografias e ocultações, habitavam quatro manequins que foram encontrados na própria loja. Neles, nada havia desses esbeltos e elegantes manequins de Paris, cinturas de vespa, seios turgentes e olhos que devolvem o olhar. Aquí os manequins correspondem a um modelo mais antiquado,

FIG. 1 - 1ª Exposição Surrealista, Lisboa, 1949. © Cortesia IMC/MNAC-Museu do Chiado, Espólio José-Augusto França.

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8 Para consultar aspectos relacionados com as mon-

tagens de exposições e dispositivos públicos surrealistas, ver Kachur, L. (2001). Displaying the Marvelous. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.

FIG. 2 - Fernando de Azevedo, Manequim, 1949. © Fotografia de Fernando Lemos.


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Edição de luxo do catálogo da exposiçao «Le surréalisme en 1947».

FIG. 3 - Fernando Lemos, Manequim, 1949. © Fotografia de Fernando Lemos.

material demodé de que os artistas se apropriam e sobre os quais podem intervir com total liberdade, explorando o potencial perturbador destes fantasmas articulados da figura humana, agora acéfalos e todos – menos um – femininos. Feminilidade que é sexualizada ainda mais, convertendo-a no elemento central da visualização. Alguns aspectos da sua configuração devem ser olhados no contexto de conveniência, oportunidade e economia de tempo e dinheiro. Actuando sobre manequins que unicamente tinham torso (sem cabeça, nem pernas), os artistas optaram por ocultar a metade inferior sob um tecido adamascado – excepto no caso de Lemos, que coloca o manequim sobre um plinto – e ocupar a zona da cabeça com este mesmo tecido, como se a cabeça permanecesse oculta – excepto no caso de Azevedo. Se os manequins de Paris foram transformados fundamentalmente por adição, sem alterar as suas características – até porque deviam ser restituídos aos armazéns onde foram alugados – aqui, mercê do seu carácter excedentário, puderam ser radicalmente transformados por acções de assemblage mas também por actos de extrema violência, que indiciam que algo de terrível ocorreu, transformando-os em cenários de sexo e sacrifício onde sexualidade e morte estão ligados. Neles parece tomar forma a afirmação de Hal Foster: a destruição psíquica (a identidade convulsiva) do sujeito masculino pode depender da destruição física (a beleza convulsiva) da imagem feminina, o êxtase de um pode depender da dispersão do outro. Com a parte inferior tapada com tecido adamascado que esconde a ausência de sexo, o manequim acéfalo de Fernando Azevedo é assumido como tal: a representação de uma figura humana sem cabeça, cujo lugar é ocupado por uma espiral em fita de aço, provavelmente procedente de um uso industrial (similar à que usara Óscar Domínguez na exposição de Paris), pudendo o resultado ser considerado uma expressão do informe surrealista, da anulação de categorias (FIG. 2). O manequim é objecto de uma agressão brutal, rasgada, ferida perto do ombro e no umbigo, lugares onde Azevedo espeta arpões e vidros. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se como uma ameaça, pois as pontas afiadas dos arpões revelam-se um perigo para quem se aproximar muito dele. No centro do peito é-lhe brutalmente aberto um pequeno rectângulo, como se fosse um nicho onde aflora uma doce cabeça de boneca que espreita. O rosto feminino é rodeado de uma madeixa de lã ou corda, como se fosse cabelo, moldura de um cenário ou fio de pesca com que ela aguarda, ameaçadora, que alguém seja atraído pelo seu isco, ou, talvez, seja uma medusa, cuja simbologia se associa à cegueira e esta pela sua vez ao trauma da castração? Fernando Lemos recobriu com tecido uma cabeça inexistente, criando assim um manequim espectral que foi objecto de igual violência e sensualidade, mas, neste caso, muito mais erotizada (FIG. 3). Lemos arrancou-lhe uma tira de “pele” de alto a baixo, deixando à mostra o seu interior. Com as mãos impregnadas de pintura apalpou rudemente todo o corpo do manequim: os seios, as ancas..., nada escapou às marcas brutais. Assim configurado, oferece-se ao espectador, como Duchamp fizera ao livro-objecto Prière de toucher (É favor tocar), 19479. O mais perturbador, é que o nosso desejo é despertado para continuar a acção sádica.

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A capacidade de acordar experiências anteriores, memórias de infância que movem todo o desejo, é muitas vezes despoletada na obra de Vespeira através de objectos como as redes-gaiola ou os búzios, a luz e a noite. Estes elementos servem para referir e reiterar as suas fantasias pessoais, que geralmente se concretizam nesse desejo insistente, criador e destruidor, que afirma a fertilidade do corpo materno, pensa o mistério da origem e expressa o medo da incompletude. Do conjunto destas obras, a mais conhecida é o manequim de Marcelino Vespeira O menino imperativo, mas o artista realizou outro: “Eu fiz outro manequim todo com espirais, espirais nos seios, no ventre, tinha uns tecidos magníficos, parecia uma espanhola, mas foi desmanchado. Eu gostava muito de construir objectos, sempre tive um fascínio pelos objectos encontrados que eu associava uns aos outros e às vezes davam coisas espantosas,...”10. Neste manequim, em que mais uma vez a inexistência do rosto é transformada em ocultação, Vespeira sublinha as suas capacidades eróticas, pintando-lhe arabescos em espirais nos seios e no ventre e pendurando-lhe búzios. Ambos os motivos possuem uma longa tradição simbólica e remetem para a espiral como representação do feminino (FIG. 4). Mas esta “espanhola” – figura que, no imaginário do Vespeira e de outros portugueses dessa e anteriores gerações era uma forte presença – não era só festiva e apeladora de prazeres sexuais inócuos: um pau parecia sair do seu peito e atravessá-la no

10 Todas as citações de Vespeira procedem de Cruz,

M. M. A. (1999). Corpo-desejo-corpo na obra do pintor surrealista Vespeira. Dissertação de Mestrado [texto policopiado]. Lisboa: Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

FIG. 5 - Marcelino Vespeira, O menino imperativo, 1952. © Fotografia Fernando Lemos, O menino imperativo, 1952.

FIG. 4 - Marcelino Vespeira, Manequim, 1952. © Fotografia Fernando Lemos, Visita estranha, 1952.

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FIG. 6 - Mário Henrique Leiria, Poema-objecto, 1949.

ventre, no centro da espiral, voltando a ressurgir para, definitivamente, se ocultar no sexo. Trata-se de uma clara metáfora da fecundação e da dor inerente ao prazer que Vespeira anos antes ilustrara em Carne vegetal: “Há um movimento em espiral, movimento da água, e é como se a ponta do chifre penetrasse na água e provocasse o movimento. O perfil é inter é dentro da pele... talvez seja o perfil dela ... Profilo Mater. A ponta é o sémen que começa a fecundar, começa a espiralar-se. Carne Vegetal é ao mesmo tempo carne–semente–fruto”. Esta metáfora do acto de fecundação foi evocada por Vespeira numa memória da infância de elevado conteúdo simbólico: “O meu pai era anfíbio, vivía da terra e do mar. Pescava à mão, punha a mão dentro da água e apanhava peixes sem ver, isto tem a ver com o corpo que se apalpa à noite e não se vê”. A cena é continuamente repetida nos fundos escuros dos seus quadros, onde as gaiolas-armadilhas encerram figuras femininas ou as parcialidades corporais que as substituem, numa clara alegoria do acto sexual, da cena primitiva da infância, ao luar. O menino imperativo é o único dos quatro manequins presentes na exposição que se conserva e também o único que não representa uma mulher. É uma figura infantil e, pelas suas botas e compleição, é uma criança de género masculino. No entanto, a sua identidade é mais complexa pois reúne em si, através de fetiches, a representação simbólica das outras personagens que participam na cena primordial: a mãe e o pai. Para além do carácter antiquado, que já comentámos, é também uma figura acéfala. O lugar da cabeça é ocupado por um búzio, um símbolo da corrente feminina que atravessa e conforma o universo, princípio de Vida. O búzio evoca as águas e a espiral interna que o conforma remete para o orgão sexual feminino pela sua profundidade interior. A disposição do búzio permite que, olhado de frente, o seu per-

FIG. 7 - Exposição d’Os Surrealistas, Lisboa, 1949. No primeiro plano podem apreciar-se A gaiola (sem autor), A mala, de Fernando Alves dos Santos, e O guarda-chuva, de Cruzeiro Seixas.

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fil desenhe um seio (situação mais evidente evidente quando a cera não cobria inteiramente o búzio) (FIG. 5). Com o búzio, o feminino entra na imagem e, já que dele escorregava a cera pelo corpo do manequim, o feminino transformava-se na origem dessa dor, dessa agressão: da mãe para o filho? Mas, sobre os ombros, duas velas revelam-se como o verdadeiro agente provocador. O fogo está associado ao masculino e ao Sol, princípio masculino de paternidade e autoridade com capacidade de engendrar, e a verticalidade do manequim acentua a natureza fálica da sua presença. Portanto, o menino torna-se também masculino, ou mais exactamente, um masculino que na consumação do prazer agride o feminino. Actualmente, o menino dispõe-se no alto de uma escadaria coberta com alcatifa vermelha, figura de um altar iluminado por velas. Um lugar sacro profanado pelo própio culto, destruído por ele. A luz e a noite possuem uma presença constante na obra plástica de Vespeira, quer nas pinturas, quer nos seus relatos sobre elas. A luz, presente no manequim, converte-se, nos relatos do artista, em desfecho de fantásticas histórias, consequência ou agente despoletador que resolve os episódios dos seus sonhos e memórias, como aquela sobre “Uma menina que nasceu com um quarto lunar na cabeça e felicíssima viveu, [...] um dia violou os aposentos do seu pai e viu uma máquina medonha e nela tocou [...] chegou o dia em que Seu pai morrera [...] E os seus olhos brilharam tanto que reproduziram a sua imagem e viu que a lua desaparecera. Foi a sua última visão [...] Ficou cega! E na escuridão a procurou...Procurou-a até morrer!” (Vespeira, 1949). Ou aquele sobre a Simumis: “Ainda hoje danço em sonhos com a Simumis, há dias sonhei que andava a dançar com ela, puxei-lhe o carapuço e a luz saltou e o sonho acabou inundado de cegueira de luz . É como o meu poema... amar a onda branca de cegar e cegamente saber continuar...”. Também para Mário Henrique Leiria o manequim foi um elemento recorrente, quer dos seus poemas “... Eu sei que há / um lugar por descobrir / um lugar / tenebroso e cantante / como / uma ponte / de velhos manequins...”, quer dos objectos, onde habitualmente são integrados como parcialidade. Assim aparecem em Objecto e no desaparecido Poema-objecto, ambos de 1949. Poema-objecto era conformado pelo encontro de três elementos: uma ferramenta agrícola ou industrial aberta, de cujo interior emerge o braço de um manequim e um olho de vidro (FIG. 6). O primeiro é um objecto utilitário que se encontra aqui desfuncionalizado, mas que mantém a memória da sua acção, triturar, e também a força que lhe transmite o material com que está elaborado, o ferro. Domina, portanto, a sugestão que esse braço corre o risco de ser destroçado, despedaçado, engolido pela ferramenta. E, se considerarmos que essa parcialidade ocupa o lugar do todo, terá o resto do corpo sofrido a anunciada ameaça? Emerge a sugestão de carne desfeita, de corpo violentado, ferido, mutilado. Na palma da mão, um olho de vidro – símbolo da sabedoria mediúnica que, nas fantasias de Breton, se atribui às mulheres e que guarda uma estreita relação com as bonecas da infância – interpela-nos directamente, devolve-nos o olhar e, deste modo, não só o objecto é visto pelo espectador, como este é visto pelo objecto, jogo habitual no Surrealismo.

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Cesariny, M. (1966). A intervenção surrealista. Lisboa: Ed. Ulisseia, 46-47 [reed. em 1997, Lisboa: Assírio & Alvim].

Objectos encontrados No âmbito do acaso objectivo, a par dos manequins, encontramos objectos que se baseiam na apropriação, desfuncionalização e deslocação, no mais puro estilo dos relatos de Breton no Mercado das Pulgas. Na Exposição d’Os Surrealistas, 1949, foram apresentados a maior parte dos que se produziram em Portugal (FIG. 7). Cruzeiro Seixas apropriou-se dum objecto do quotidiano mais banal, um guarda-chuva. Despojado da sua funcionalidade, ao ser-lhe retirado o tecido que protege da água, é privado também da capa de inocuidade que o revestia e, deslocado para o espaço de exposição, é investido de um novo sentido ao ser pendurado do tecto como uma ave fantástica, poderosa; uma ave fénix que renasce da sua deterioração. Deste modo, transforma-se num novo e poético ser, triunfal e ameaçador a um tempo. Na mesma exposição encontrava-se A Gaiola, cuja autoria não foi possível determinar. Pendurada do tecto exibia no seu interior o mais absoluto vazío. As suas referências são claras e têm longa linhagem no imaginário surrealista, como haverá ocasião de salientar. No contexto da exposição, jogava um produtivo, e provavelmente involuntário, diálogo com o guarda-chuva de Cruzeiro Seixas, esse pássaro impossível fugido de uma gaiola também ela desfuncionalizada. A Mala, da autoria de Fernando Alves dos Santos, provém igualmente deste universo de encontros fortuitos. Segundo alguns testemunhos não tinha intervenção alguma, segundo outros estava recoberta por uma camada de tinta cinzenta. A esta tipologia pertenceriam também os dois objectos pensados para integrar a 1ª Exposição Surrealista, 1949, mas que ficaram em projecto: Luta de classes, de António Pedro: dois sapatos de homem e de mulher defrontados, unidos pela sola, e Aparelho telefónico ou Homenagem a Lamarck, de José-Augusto França, reutilizando um telefone antigo.

b. Objectos manufacturados Esta categoria apresenta-se em Portugal com nome próprio: Cruzeiro Seixas que realizou, c. 1947-1949, um conjunto de objectos que conservam uma forte componente artesanal. Antes de os comentar, gostaria de fazer uma referência à datação dos mesmos. Estes objectos estão documentados por fotografias que aparecem assinadas e datadas de 1943, datas que Mário Cesariny parece confirmar na enumeração de acontecimentos e atitudes à volta do Café Hermínius publicada no livro A intervenção surrealista11. No entanto, as assinaturas das fotografias, os troncos de pinheiro que servem de plinto e as próprias datas referidas pelo artista como início do seu interesse pela arte (1945), em geral, e pelo Surrealismo (1947), em particular, apontam para uma data posterior, que dificilmente pode recuar além de 1947.

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Nesta série acontece exactamente o processo contrário ao que vimos em Une cuisse, onde as operações surrealistas serviam para ilustrar uma narrativa. Aqui, embora estejam manufacturados e tenham um carácter artesanal, os objectos estão imbuídos da inquietação e de registos do estranho (uncanny) próprios da poética surrealista. Formas com esqueleto de arame recobertas de cartão, como se fossem trabalhos de origami que lembram pássaros ou animais fantásticos, animados por penas de papel ou intervencionadas pictoricamente, na descrição de pormenores. Mas todos sem referente na realidade. A memória figurativa domina nesse pássaro ou naquela figura com a inscrição na base: Odeio-te meu amor, e remete para formas monstruosas e perturbantes. Uma, com a cabeça alçada e o bico aberto, parece engolir tudo, conectando assim a ideia de comida e canibalismo erótico proclamada por alguns surrealistas, em especial Dalí. Outra, uma figura-cabeça, junção de animal-mulher, reduz o humano ao animal numa das versões características do informe. (FIG. 8) Mais perturbantes apresentam-se os dois objectos realizados com meias. Novamente sobre plinto e moldados com barbas de baleia, são desta vez recobertos com meias de mulher esticadas. Nelas, estão incrustadas cascas de ovos pintadas ou lâmpadas, sugerindo múltiplos olhos. Ambos partilham formalmente uma natureza de figura humana metamorfoseada em monstro, altamente inquietante. No primeiro, a figura humana eleva-se gigante e inclina o seu rosto grotesco. Mas os limites não são claros. Este rosto apresenta-se como se fossem seios, duas formas triangulares destacadas nas quais se situam esses ovos/lâmpadas em que o olhar convoca, como na História do olho de Bataille, os seus substitutos metafóricos,

FIG. 8 - Cruzeiro Seixas, Objecto, c. 1948-1949.

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FIG. 9 - Cruzeiro Seixas, Objecto, c. 1948-1949.


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olhos-seios. Ao centro, outro ovo ocupa o lugar do sexo. O ovo, como princípio de vida, remete estas figuras para o feminino maternal. As meias que os revestem são um poderoso fetiche e cumprem a sua função: substituir o todo, a mulher, por uma parcialidade que a memória fixou no momento da cena primordial da castração. Reafirma-se assim a presença do olhar (ovo) que representa a ameaça da castração. Para além disto, as meias, como material de protecção, aludem à pele do corpo feminino que mantem o corpo unido, impedindo a sua desagregação fragmentária. No segundo objecto (FIG. 9), a natureza feminina do monstro é reafirmada. A forma adquire uma natureza quase totémica (relação com o ritual e com o fetiche), com os braços abertos e, no lugar da cabeça, uma lâmpada, cuja presença se repete no que poderíamos denominar por braço. Estas duas formas brancas, lisas, ultrafinas trazem novamente os seios, entre os quais se situa um vazio de referência claramente sexual. Ainda este fetiche, perturbador, é completado por pontas que se dispõem à volta desse orifício, sugerindo pêlos púbicos ameaçadores, mas também pontas fálicas, capazes de ferir, agressivas. Dor e sofrimento associados ao prazer, na mais pura estirpe do Bataille, que se repetem nessa espécie de braços. Oferece-se de braços abertos, mas é agressivo: um objecto em que convergem desejos em conflito. Como o objecto anterior, esta figura, associada ao feminino, é dolorosamente feita de meias; dolorosamente, porque elas estão esticadas, parecendo não só uma pele, mas uma prisão dessa feminilidade. Mas a sua configuração sugere também uma figura fálica, totem da autoridade patriarcal. Assistimos então à indiferenciação de identidade sexual que é uma das formas típicas do informe surrealista.

c. Funcionamento simbólico ou real

FIG. 10 - Pedro Oom, Musiques érotiques, 1949.

Para além dos objectos manufacturados e dos resultantes de acasos, encontramos outros que sugerem a possibilidade de movimento ou que possuem uma capacidade real de activar-se mecânica ou manualmente, conhecidos como objectos de funcionamento simbólico ou real. Pouco adequados para funcionar mecanicamente, eles baseiam-se na objectivação de desejos, por substituição ou metaforicamente. A sua realização simbólica constitui um processo de perversão sexual, similar ao processo de elaboração poética, e não possuem preocupações formais (como acontecia com a Boule souspendeu, de Giacometti, 1931), só dependendo da imaginação amorosa de cada um. Em Portugal foram artistas do Grupo Os Surrealistas que experimentaram as suas possibilidades poéticas. Musiques érotiques, de Pedro Oom (FIG. 10) dispõe-se sobre um tronco de pinheiro que parece ter papéis com inscrições à sua volta. A impossibilidade de conhecer o conteúdo destes textos impede uma aproximação completa ao objecto, mas podemos tentar aproximarmo-nos dos restantes elementos constituintes. Compreendia uma galena, mineral receptor que, em contacto com outros elementos, pode converter-se num rádio que supostamente traria música para o interior do objecto. O título consolida esta hipótese que também parece confirmarda pelo cabo que sobe por trás

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do objecto, possívelmente a antena da galena. Se fosse assim, estaríamos perante a primeira peça que tentou incorporar o som na arte portuguesa. Sobre a galena, uma mamadeira que inevitavelmente nos remete para Freud e para o campo da castração e do fetiche, através de uma das cenas primeiras: o amamentar como símbolo da união entre a criança e a mãe, no momento anterior à separação. Esta interpretação é reforçada pela presença de outro elemento: as madeixas de cabelo que funcionam como esse fetiche fixando a última coisa vista, antes da experiência traumática de perceber a castração da mulher. Ambos os símbolos, seios e cabelo, aparecem reunidos também em A notícia violentada, de Vespeira (1948). Acrescente-se que os cabelos referem-se ao corpo mas não à carne, pois retirada a sua associação à vida quando arrancados do lugar onde cresceram, eles permanecem como relíquia dessa presença, mas ao mesmo tempo, estão mortos, remetem para uma vida ausente. Se entendermos todos estes elementos como objectivação de uma metáfora, em que o artista substitui e compara as significações dos objectos reunidos, devemos supor que o desejo é aqui materializado por um mecanismo de substituição, próprio do fetichismo, e pelo encadeamento das relações metonímicas entre eles: uso de uma parte pelo todo: cabelos e mamadeira/mulher; rádio-galena/em funcionamento contínuo, indicaria o carácter obsessivo, a perpetuação de uma situação que não se quer perder. Segundo a documentação reunida, sabemos que Mário Henrique Leiria realizou Torre dialéctico-cefálica de Gilles de Rais e Poema-objecto. O primeiro (FIG. 11) centra-se num nome que partilha, juntamente com o Marquês de Sade os altares dos surrealistas. Nele confluem alguns comportamentos (violência, sexualidade, alquimia, ritual, magia, necrofilia, morte) que o convertem numa figura do excesso e do poder do inconsciente, do animal humano, como muito bem é analisado em Le procès de Gilles de Rais, de Georges Bataille12. No título, portanto, estão já implícitas uma série de conotações para este objecto que poderíamos descrever como uma pequena maquete de cartão, com adição de elementos metálicos e fragmentos do quotidiano. Formas de memória arquitectónica, com diferentes acessos e escadas que parecem aludir ao castelo onde os violentos crimes foram perpetrados pelo outrora valente militar. Nessa ideia de difícil e progressivo percurso, transporta um sentido ritual e de segredo. A natureza arquitectónica permite uma relação com o objecto de Giacometti, The Palace at 4 p. m. (1932) e, como nele, o cenário substitui simbolicamente os actos violentos nele perpetrados. Infelizmente, a visão parcial que oferece esta única fotografia impede-nos de identificar a forma circular ou o elemento suspenso de uma corda central – que novamente confere um sentido dinâmico no objecto, mais enigmático do que prático. Afirma-se assim um carácter obsessivo e libidinal, impossibilitando uma interpretação do objecto. Poema-objecto (FIG. 12) é composto por um crânio de tigre com lâmpadas no lugar dos olhos e outra no maxilar inferior, apoiado numa base com três pés (base essa possívelmente utilizada para colocar vasos de flores ou para o lume do lar) de onde aparece uma chave pendurada por uma corda. Mais uma vez os fantasmas eróticos do

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Bataille, G. (1979). Le procès de Gilles de Rais. Paris: Pauvert.

FIG. 11 - Mário Henrique Leiria, Torre dialéctico-cefálica de Gilles de Rais, 1949.


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Sobre este assunto ver: Ries, M. (2002). André Masson: Surrealism, and his discontents. Art Journal. vol. 61, inverno. http://users.erols.com/ries/ /article2002AM.htm, consultado dia 1/07/2009. 14 Magritte, R. (ed. Blavier, André) (1979). Écrits complets de René Magritte, Paris: Flammarion; Paquet, M. (1994). Magritte. Madrid: Editorial Taschen, 26.

FIG. 12 - Mário Henrique Leiria, Poema-objecto, 1949.

espectador são activados pela junção das significações de que são portadores os diferentes objectos reunidos, ao tempo que a perturbação e o enigma se instalam. Deste modo, a sobrecodificação organiza este objecto cujo referente formal é inevitavelmente Boule souspendeu (1931), de Giacometti. As formas masculino-femininas moldadas de Giacometti são substituídas por uma chave. Um claro símbolo de acesso, mas a quê? Talvez as lâmpadas ocupando o lugar da visão e da fala, da imagem e da palavra, ofereçam a chave: o acesso a um novo entendimento, a um olhar e poética novos, libertos de tradições e convenções. Este assunto foi muito grato aos surrealistas e contou com cenas simbólicas tão emblemáticas como a navalha que secciona o olho no filme de Buñuel, Un chien andalou (1929). No entanto, a agressividade que o objecto veicula remete para o mundo do inconsciente, para o retorno do reprimido, para a familiaridade tornada estranha pelo efeito da repressão, em suma, para o estranho (uncanny). As lâmpadas estão apagadas, o que poderia ser entendido como um símbolo de cegueira que, na tradição surrealista, alude ao medo da castração. Esta leitura é reforçada pelo crânio de boca aberta e dentada que, claramente, podemos identificar com a vagina dentada que era obsessiva para André Masson e é motivo central de obras como Pygmalion (1938) ou Gradiva (1939)13. Pelo seu lado, a gaiola é outro símbolo recorrente no Surrealismo. Começa com o episódio descrito por René Magritte que julgou ver, quando olhava uma gaiola, um ovo no lugar do pássaro14 e que traspôs na obra Les affinités électives (1933), mas tem o seu mais emblemático antecedente na obra Boule souspendeu, de Giacometti, assim como em desenhos deste autor ou na gaiola que Jean-Michel Frank realizou para a loja de Elsa Schiaparelli em 1937. O uso simbólico da gaiola teve continuidade entre os surrealistas até 1974, quando Max Ernst realizou a Cama Gaiola. Em Portugal a gaiola aparece profusamente no imaginário poético de Cruzeiro Seixas e de Vespeira, neste fundida e confundida com redes, como é possível observar em todas as gaiolas que, desde as saias de Pescadores das Berlengas, passam para as pinturas de 1949-1950. Conhecimento, sexo, identidade sexual, regresso à existência intrauterina? Em qualquer caso, a chave não interage com nenhum objecto, nada depende ou se altera com o seu movimento ou imobilidade, parece estar aí colocada como possibilidade de acesso, decidida e furiosamente vigiada pelo símbolo feminino situado por cima. Outro autor que se interessou pelos objectos com capacidade de movimento real ou sugerida foi Mário Cesariny. Dele conhecemos Objecto de funcionamento real e um desenho para um dispositivo voyeurista. O primeiro apresenta possibilidades reais de movimento (FIG. 13). O espectador poderia fazer funcionar a peça ao manipular as manivelas de duas máquinas de picar carne. O movimento seria infinito e circular e faría vibrar a superfície basculante que suporta o conjunto. Uma imagem que não conseguimos identificar situa-se no centro, coberta por um emaranhado de linha preta por entre a qual espreitam uns negrinhos em barro, que não se vêem com clareza, e a efígie do Tom Mix, que segura uma corda real nas suas mãos. É curioso ver como as memórias da infância são trazidas por esta persona-

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gem, um dos primeiros grandes cowboys do cinema, protagonista de centenas de westerns de série B do cinema mudo e sonoro, dono de um circo e muito popular por uma série radiofónica emitida entre os anos 30-40. Muitas crianças cresceram com ele, era o herói, defensor dos maus,... talvez o lado benévolo da figura paterna? As máquinas de picar carne fazem o feminino participar no objecto, não morfologicamente mas alegoricamente: expressão de angústia e terror de ser aniquilado ou devorado pela mãe ou como expoente da violência implícita no prazer que os surrealistas consideram inseparável da morte, como alegoria da fusão sentida no climax sexual ou componente antropofágica, comum a outros artistas, como Dalí ou Matta, atormentado nos seus pesadelos por uma mulher faminta. O emaranhado da linha preta actua como fetiche e remete para uma vida ausente, prenúncio de morte. Será então este objecto um gigantesco e ameaçador sexo feminino que tudo devora? Ou será aquele lugar do qual não se deseja a separação? A configuração de Projecto de cabine é a de uma cabine telefónica, com as mesmas dimensões que as reais e com um guichet à frente. Fechada na parte superior, no interior estaria recoberta por vidros e espelhos iluminados, em cujo centro se situaria um manequim feminino, de costas, segundo o projecto. Mas, no desenho, pare-

FIG. 13 - Mário Cesariny, Objecto de funcionamento real, 1949.

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cem existir, nos espelhos, setas indicadoras de movimento, sugerindo a possibilidade de que o manequim girasse e se reflectisse ao passar por eles. Outros objectos apropriados do quotidiano (um tinteiro, um pente, bilhetes de cinema e um garfo espetado) estariam na cabine. No esboceto, ainda podemos lêr: Realidade Objectiva Mítica Delirante. O estádio de esboceto do desenho e a inexistência de outra documentação dificultam a compreensão das suas implicações poéticas.

d. Relação entre Fotografia e Objecto As relações entre a fotografia e o objecto apresentam-se complexas e diversificadas e podem adoptar a forma de fotografia da obra de um autor por outro, de transformação pelo próprio autor através da intervenção pictórica no objecto fotografado ou de criação de uma nova obra a partir da colaboração entre dois autores. A primeira modalidade arranca internacionalmente em 1924, quando é publicada em La Revolution Surréaliste uma fotografia de um objecto de Man Ray como obra autónoma, L'enigme d'Isidore Ducasse (1920), e a elas seguiram as numerosas fotografias deste mesmo autor. Este tipo de fotografias obedecem à pulsão surrealista:: o objecto criado por um artista serve de base para outro artista produzir novos sentidos aproveitando a capacidade da fotografia de imprimir vida aos objectos inanimados. Assim devem ser entendidas algumas das fotografias de Fernando Lemos, como Visita estranha I e II ou O menino imperativo, 1952 (ver FIG. 4 e 5): são objectos surrealistas, embora despojados de sentido objectual. A fotografia nesta junção do animado/inanimado é um dos melhores expoentes do estranho. Além da carga poética pertencente a cada manequim, Lemos põe em funcionamento outras simbologias, associações, encontros, atmosferas, que sobrepõem diferentes camadas de fantasias individuais sobre uma mesma obra: aquelas que Azevedo, Vespeira ou ele próprio desataram no arranjo dos manequins e outras que ele, através da sobreposição ou da encenação despoletou. Acrescente-se que a mediação da lente deixa um testemunho de veracidade, por vezes assistido por um halo de teatralidade em que participam jogos de luzes e sombras, composição, encenação, sobreimpressões, que conferem vida a estes doppelgangers, a estes duplos trazidos para a vida. Em Visita estranha II, os manequins passam de figuras maravilhosas, desmontáveis, duplos, a presenças fantasmáticas, espectrais, como diria Dalí. Estes duplos duplicam-se a si próprios por sobreposição ou reflexos, misturam-se com o que os rodeia ou desvanecem-se, conferindo à totalidade do espaço esse carácter fantasmal e imprimindo a estas imagens impossíveis uma natureza de sonho. Em O menino imperativo, esse manequim que se apresenta desvalido, objecto de uma acção violenta, predominantemente feminino na sua passividade, criança aterrada perante a castração, transforma-se, na fotografia de Lemos, em sujeito da acção, em figura poderosa que emerge das sombras numa presença acentuadamente fálica, símbolo de autoridade patriarcal.

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Uma segunda abordagem de relação entre fotografía e objecto encontra-se nas fotografias repintadas por Cruzeiro Seixas dos objectos realizados c. 1947-1949. Neles, a fotografia documental é transformada pela intervenção pictórica com a finalidade de atribuir novos sentidos ao objecto, centrados na sua transmutação em gigantesco monstro que domina sobre a paisagem. Para tal, o artista recobre tudo quanto se encontra por trás do objecto com uma camada de tinta negra que se converte assim num fundo neutro, em noite ameaçadora. Ao mesmo tempo, a base onde apoia o objecto é transformada numa paisagem. A sua largura é visivelmente recortada – chegando a seccionar a base rectangular do objecto e dando-lhe uma nova e irregular forma – de maneira a criar uma linha do horizonte muito baixa. Engrandece assim o objecto, que passa a ocupar a quase totalidade da paisagem e projecta sobre ela a sua feroz sombra. Num dos casos, inclusive, introduz duas minúsculas e frágeis figuras humanas (ver FIG. 8). A segunda fase desta intervenção opera sobre o próprio objecto, sobre a sua configuração formal, pintando sombras que remarcam os ângulos das formas para os tornar mais ameaçadores. Até é possível que alguns pormenores destes objectos não sejam originários, mas pintados posteriormente sobre a fotografia. Como nas fotografias de Lemos, esta nova leitura transforma as fotografias em novos objectos surrealistas. Os Surrealistas entenderam também a fotografia como veículo do estranho (uncanny), como meio para trazer manequins e bonecas para a vida, mediante a reprodução técnica. São fotografias encenadas. Já não se trata de criar a partir de obras existentes, trata-se de confeccioná-las, encená-las para serem exactamente o alvo da objectiva, objectos efémeros, que duram só o instante em que são alvo da objectiva fotográfica, momento a partir do qual só existem fotográfica e não objectualmente. Este é o caso da série de obras nascida da colaboração entre Lemos e Vespeira, e conhecida como Teatros de atelier (1950). Esta série mantém uma clara filiação com as fotografias realizadas por Man Ray, em que idêntico manequim protagoniza diferentes cenas, sozinho, entre outros manequins e mesmo com rostos humanos, como em Lydia et les manequins (1932). Pensados para a sua existência fotográfica, nos Teatros de Atelier de Lemos e Vespeira existe uma encenação previamente preparada, com algum material que serve de fundo, de pano de cena, e outros objectos que, como os manequins, podem ser actor-sujeito destas acções ou então objecto. Entre eles, ovos, conchas, búzios, cuja capacidade simbólica analisámos anteriormente, que dão origem a imagens que, automaticamente, evocam e revelam cenas primordiais ou um conteúdo erótico, anulando as categorias de feminino-masculino ou fazendo-as coincidir como expressão do informe. Fernando Lemos realizaria ainda um magnífico retrato, testemunho da contribuição de Vespeira para estes Teatros de Atelier e chave para a leitura destas obras, em particular, e do trabalho do Vespeira, em geral. Nele, o pintor por efeito de uma sobreposição, segura na mão simultaneamente o manequim feminino e um crânio: Eros e Tanatos, prazer e morte.

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Bibliografia ANTELO, R. (2004). António Pedro e a condição acefálica. Revista Semear, nº 9. Rio de Janeiro, 161-194 ÁVILA, M. J. (2001). Artes Plásticas. Surrealismo em Portugal. 1936-1952. Lisboa/Badajoz: IPM-Museu do Chiado/Junta da Extremadura-MEIAC. ÁVILA, M. J. (2007). Arte Moderno en Portugal en la colección del Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado. Salamanca: Caja Duero. ÁVILA, M.J.; LAPA, P. (1990). António Pedro Desenhos. Lisboa: IPM/Museu do Chiado. BATAILLE, G. (1979). Le procès de Gilles de Rais. Paris: Pauvert BRETON, A. (1992). Manifiestos del Surrealismo. Madrid: Ed. Labor. BRETON, A. (1973). Entretiens. Paris: Gallimard. ASTORGA, C. (2009). Signo y objeto surrealista. Una revisión sobre la estructura del signo y sus significantes en provecho del objeto como instrumento de representación. http://carlosastorga.blogspot.com/ /2009/04/sigo-y-objeto-surrealista-una-revision.html consultado dia 30/06/2009 BARTHES, R. (1973). Elementos de semiología. Madrid: Ed. A. Corazón CESARINY, M. (1966). A intervenção surrealista. Lisboa: Ed. Ulisseia [reed. em 1997, Lisboa: Assírio & Alvim]. CIRLOT, J.-E. (1986). El mundo del objeto a la luz del Surrealismo. Barcelona: Ed. Anthropos. CRUZ, M. M. A. (1999). Corpo-desejo-corpo na obra do pintor surrealista Vespeira. Dissertação de Mestrado [texto policopiado]. Lisboa: Instituto Superior de Psicologia Aplicada FOSTER, H. (1993). Compulsive Beauty. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press (trad. Belleza compulsiva. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2008) HOFFMANN, E. T. A. (1993). O homem da areia. Contos fantásticos. Rio de Janeiro: Imago. KACHUR, L. (2001). Displaying the Marvelous. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. KACHUR, L. (2001). Surrealism and the Cyborg: Mannequins and Body Doubles. http://artlab23.net/ issue1vol1/LewisKachur.hyml consultado dia 30/06/2009. KRAUSS, R. (1997). El inconsciente óptico. Madrid: Ed. Akal. MAGRITTE, R. (ed. BLAVIER, André) (1979). Écrits complets de René Magritte, Paris: Flammarion; PAQUET, M.(1994). Magritte. España. Editorial Taschen, RIES, M. (2002). André Masson: Surrealism, and his discontents. Art Journal. vol. 61, inverno. http://users.erols.com/ries/article2002AM.htm, consultado dia 1/07/2009. SAN MARTÍN, F. J. (2004). La mujer desmontable. Dalí-Duchamp: una fraternidad oculta. Madrid: Alianza Editorial, S. A. SCHADE, S. (s.d.). The Media/Games of the Doll [1] – From Model to Cyborg. Contemporary Artist Interest in Surrealism. http://medienkunstnetz.de/themes/cyborg_bodies/doll_bodies/consultado dia 30/ /06/2009.

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notícia

n

Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda, fotografia de Maria do Rosário Jardim.

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Fontes para a História dos Museus de Arte em Portugal Este projecto, coordenado por Raquel Henriques da Silva, foi delineado a partir das necessidades de investigação de um conjunto de doutoramentos que estão a ser realizados na FCSH/UNL, sob orientação, ou co-orientação, da mesma professora. Apesar das respectivas especificidades, a maioria desses doutoramentos têm, como traço comum, o trabalho sistemático sobre fundos documentais e arquivísticos da Academia Nacional de Belas-Artes (ANBA), do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e do Palácio Nacional da Ajuda (PNA), este último centrado nos Arrolamentos dos Paços Reais. A partir destes fundos estudar-se-ão a Galeria Nacional de Pintura da Academia de Belas-Artes (tema de doutoramento de Hugo Xavier), a musealização dos palácios reais (Maria de Jesus Monge), o percurso biográfico de José

de Figueiredo (Joana Baião), e a colecção de escultura do Comandante Ernesto Vilhena (Maria João Vilhena). Neste contexto, a principal área de investimento deste Projecto – iniciado em Março de 2010 – determinou a abertura de concurso para três bolseiros de investigação em História da Arte (dois para o MNAA, um para o PNA) com a instalação de três postos de trabalho, equipados com meios informáticos, para classificar os fundos referidos (através do programa DIGITARQ) e, parcialmente, os digitalizar e divulgar através do site do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC). Este trabalho é coordenado por uma equipa inter-institucional, envolvendo técnicos das respectivas entidades (Celina Bastos, no MNAA; Maria do Rosário Jardim, no PNA; Maria Amélia Fernandes do IMC) e tem a coordenação global, do ponto de vista arquivístico, de Leonor Calvão Borges. Infelizmente, não foi possível associar a ANBA, como inicialmente fora previsto, mas as necessidades do nosso projecto tiveram, mesmo assim, uma consequência positiva: por generosidade do Arquivo Nacional/Torre do Tombo (ANTT) foram digitalizados e disponibilizados os Livros de Actas e de Correspondência da Academia que, em relação ao século XIX, são instrumentos cruciais para se estudar em profundidade as origens do MNAA e das suas colecções. Outra linha de inventariação, estudo e divulgação abrange o arquivo fotográfico do MNAA, sob responsabilidade de Paulo Oliveira Ramos, Sandra Leandro e Emília Ferreira, todos eles membros integrados do IHA. O Projecto comporta uma vertente de cronologia mais recente, sedeada na


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Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga, fotografia de Celina Bastos.

Fundação Calouste Gulbenkian, nossa parceira para o estudo sistemático das exposições de artes plásticas de 1957 e 1961 (tema de doutoramento de Leonor Oliveira) que foram decisivas para a modernização dos conceitos de exposição e de procedimentos museológicos em Portugal, bem como para o arranque das políticas de valorização das artes plásticas contemporâneas. Neste caso, as articulações com os relevantes arquivos do Serviço de Belas-Artes beneficiam do seu tratamento arquivístico que tem vindo a ser coordenado por Ana Paula Gordo. Já depois de aprovado o Projecto, abriram-se, com novos doutoramentos, o estudo do projecto museológico do Museu Calouste Gulbenkian (Sofia Lapa) e direcção de Diogo Macedo no Museu Nacional de Arte Contemporânea (Isabel Falcão). No conjunto, este Projecto envolveu à partida quatro projectos de doutoramento (três deles com bolsas individuais

da FCT) mas, poucos meses depois do seu início, já conta com mais três, igualmente apoiados por bolsas individuais. Este número considerável de doutorandos, juntamente com os quatro investigadores doutorados associados, a arquivista, os três bolseiros de investigação e os generosíssimos técnicos associados das instituições envolvidas, configuram um excepcional ambiente de trabalho cujos resultados irão de facto contribuir para uma ampla divulgação de fontes inéditas e/ou de difícil acesso, fundamentais para a história dos museus de arte em Portugal, mas também para a história da museologia, da museografia, do coleccionismo e de importantes sectores da história da arte, confrontados com os ciclos da sua apresentação pública, no espaço de exposição.

Raquel Henriques da Silva Instituto de História da Arte

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Documentação de Arte Contemporânea O projecto, coordenado por Lúcia Almeida Matos, foi preparado conjuntamente com Rita Macedo, e enquadra investigação presentemente em curso no âmbito de teses de doutoramento (quatro com bolsas individuais da FCT) e dissertações de mestrado orientadas ou co-orientadas pelas mesmas professoras, na Universidade do Porto e na Uni-

versidade Nova de Lisboa. O projecto propõe-se contribuir para a preservação de obras de arte contemporânea portuguesa, em colecções museológicas públicas e privadas em Portugal e Espanha. A estratégia da documentação (inspirada nas metodologias da História da Arte, da Antropologia e da Conservação) tem vindo a ser adoptada, internacionalmente, como a mais apropriada e eficiente tendo em conta a especificidade dos problemas colocados, às instituições museológicas, pelas práticas artísticas

Susanne Themlitz “Oh la la,… oh la balançoire/Microcosmos Tentacular” 2004-2005 © SusanneThemlitz. Colecção CGD.

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contemporâneas. Trata-se de obras caracterizadas pela frequente utilização de materiais perecíveis, por diversos componentes, por uma relação específica com o espaço que ocupam, pelo ênfase no conceito e não no objecto, pelo recurso a tecnologias como filme, vídeo e outros media, baseados no tempo. Partindo de iniciativas piloto já concretizadas, o projecto propõe uma escala mais ambiciosa e consistente. Reúne investigadores, profissionais de museus e artistas em torno de obras em colecções


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de referência com o objectivo de contribuir, de forma sustentável, para a sobrevivência e divulgação da arte contemporânea portuguesa através da definição de metodologias e de boas práticas, tentando estabelecer modelos de documentação que possam a ser utilizados pelos museus. Este projecto apresenta-se inovador, não apenas pela metodologia eminentemente transdisciplinar que utiliza mas também pelo carácter representativo do seu âmbito propondo-se documentar obras de três gerações de artistas portugueses, os mais velhos nascidos entre 1935-1940, os mais novos entre 1965-1975. A selecção de obras privilegia instalações que para além de uma dimensão intangível integram múltiplos objectos, materiais não convencionais e equipamento tecnológico (Fig.) e obras de arte com imagens em movimento, incluindo filme, vídeo e projecção de slides, sensíveis à obsolescência da tecnologia e exigindo condições particulares de conservação e exposição. Obras nas colecções da Fundação Caixa Geral de Depósitos – Culturgest (FCGDC), da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), da Fundação de Serralves (FS) e do Museo Extremeño Ibero-Americano de Arte Contemporânea (MEIAC) serão objecto de investigação e documentação que envolverá, entre outros aspectos, o levantamento e análise crítica de material publicado e não publicado, incluindo arquivos dos próprios artistas; entrevistas aos artistas, seus colaboradores ou assistentes; registo em vídeo da obra em estudo, instalada para o efeito com a colaboração dos autores e de outros agentes envolvidos na sua produção ou primeira apre-

sentação; a organização de dossiers, com todas as informações obtidas, a disponibilizar às instituições proprietárias das obras de modo a responder a necessidades de conservação, restauro, apresentação ou re-instalação. O conhecimento produzido será disponibilizado nas plataformas digitais internacionalmente utilizadas, apresentado em reuniões científicas e debatido em encontros internacionais. Estes veículos de partilha e disseminação não só irão promover a integração de investigadores portugueses no debate em curso a nível mundial, acerca da definição de estratégias e boas práticas museológicas no que respeita à arte contemporânea, como também trará uma maior visibilidade aos artistas portugueses contemporâneos, cuja obra é objecto desta investigação. O arranque oficial do projecto, que tem a duração de 30 meses, está previsto para o início de 2011.

Lúcia Almeida Matos Instituto de História da Arte FCSH/UNL, linha de Museum Studies Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto

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Crossing Borders. História, Materiais e Técnicas na Pintura Portuguesa do Romantismo, Naturalismo e Modernismo: 1850-1918 Crossing Borders. História, Materiais e Técnicas na Pintura Portuguesa do Romantismo, Naturalismo e Modernismo: 1850-1918 é um projecto de carácter interdisciplinar que promove a colaboração entre disciplinas das áreas da ciência e da arte. Financiado recentemente pela FCT-MCTES (PTDC/EAT-EAT/113612/2009), contribuirá para estabelecer uma caracterização mais precisa da prática artística de mestres portugueses. Historiadores de arte, curadores, conservadores, cientistas da conservação e da informática colaborarão no estudo de obras seleccionadas das colecções da Casa Museu Anastácio Gonçalves, do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado. A investigação permitirá discriminar os traços distintivos e comuns na prática artística portuguesa quando comparada com a vanguarda europeia, e assim perspectivar os artistas estudados num contexto histórico e social. Contribuirá ainda para um melhor conhecimento dos mecanismos de envelhecimento dos materiais da obra de arte, com o objectivo de

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desenvolver estratégias de conservação mais adequadas à sua preservação. Os principais temas incluem o estudo da "paleta molecular" e a caracterização da “mão” do artista na obra. Recentemente, a análise computacional provou ser um instrumento importante para estabelecer diferenças entre práticas artísticas e, no âmbito deste projecto, procuraremos desenvolver as suas potencialidades, testando-a com artistas como Amadeo de Souza-Cardoso. Paralelamente a esta análise dos materiais e técnicas na obra, será efectuada pesquisa histórica, que incluirá informação sobre onde os artistas adquiriam os seus materiais, a sua formação, os manuais e livros que consultavam e ainda pesquisa nos arquivos das casas fornecedoras, nomeadamente o arquivo da Winsor & Newton. Os artistas seleccionados são Miguel Lupi, Cristino da Silva e Tomás de Anunciação; Silva Porto, Marques de Oliveira, Columbano e Artur Loureiro; Amadeo de Souza-Cardoso e Eduardo Viana. Com base no número de investigadores que integram a equipa e nos actuais estudantes de doutoramento (Ana Margarida Silva, Cristina Montagner, Diogo Sanches e Margarida Elias, bolsas FCT-MCTES) prevê-se que serão analisadas, de forma completa, um total de 70 obras. Foram submetidas 3 novas candidaturas a bolsas de doutoramento bem como uma de pós-doutoramento, de que se aguarda resposta. No âmbito do projecto, serão ainda contratados 3 bolseiros de investigação. Neste contexto multidisciplinar, será discutido e implementado o design experimental mais eficaz. Será estimulada a formação de jovens investigadores, constituindo-se um primeiro grupo mul-

tidisciplinar para o estudo da prática artística de criadores portugueses, envolvendo especialistas dos museus e da universidade. A equipa trabalhará para transformar a experiência adquirida em ferramentas úteis a serem utilizadas pela Polícia Judiciária nos processos de investigação criminal e/ou em tribunal (consultores Leonor Sá e João Alves de Oliveira). Será dedicada atenção especial à divulgação dos conhecimentos adquiridos, nomeadamente à elaboração de monografias dedicadas à história, materiais e técnicas dos movimentos artísticos estudados, seguindo o paradigma da colecção "Art in the making" editada pela National Gallery-London. Estas monografias interessarão tanto a especialistas em áreas como a história da arte, museologia e conservação como o público em geral. Será também disponibilizada uma base de dados detalhada dos materiais e técnicas artísticas. Finalmente, para divulgação científica junto do público em geral e sob orientação de Inês Fonseca Santos e Pedro Macedo, será elaborada uma proposta para uma série documental a transmitir na RTP2 e um documentário. A investigação em história da arte é coordenada por Raquel Henriques da Silva e Rita Macedo, em colaboração com Maria de Aires Silveira, Adelaide Ginga, Helena de Freitas, Ana Vasconcelos, José Alberto Ribeiro; os estudos dos materiais e técnicas artísticas serão conduzidos por Leslie Carlyle, Márcia Vilarigues e Maria João Melo; a análise computacional de imagem por Nuno Correia e Rui Jesus.

Maria João Melo


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As cores de Tomás da Anunciação serão desvendadas por uma multiplicidade de olhares, incluindo este que aqui se mostra com a Vista da Amora (1852): a espectrometria de fluorescência de raios-X dispersiva de energias, de sua sigla XRF.

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LINHA DE MUSEUM STUDIES: DISSERTAÇÕES DE MESTRADO E TESES DE DOUTORAMENTO EM MUSEOLOGIA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS E FACULDADE DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES DA UNIVERSIDADE DO PORTO

Dissertações de Mestrado 2008 AFONSO, Lígia Filipa Dias – Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea: programar para descentralizar, políticas culturais, autarquia e comunidades. Lisboa: FCSH/UNL, 2008. ALFARO, Catarina – Investigação em contexto museológico Amadeo de Souza-Cardoso: catálogo Raisonné. Lisboa: FCSH/UNL, 2008. AZEVEDO, Teresa – Espaço de exposição como espaço de (re)criação: exposições para a Casa de Serralves. Porto: FBA/UP, 2008. GARRADAS, Cláudia – A Colecção de Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto: génese e história de uma colecção universitária. Porto: FBA/UP, 2008. DIAS, Carla Sofia Ribeiro – Leituras contemporâneas de Colecções Históricas como estratégia de comunicação dos Museus. Porto: FBA/UP, 2008. OLIVEIRA, Leonor de – Os Antecedentes do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Lisboa: FCSH/UNL, 2008. BAIÃO, Joana – “Museus de museus”, uma reflexão. Proposta para uma definição. Lisboa: FCSH/UNL, 2009. FERRAZ, Ângela – O olhar sobre a metamorfose. Efeitos do estado de conservação na interpretação da pintura. Lisboa: FCSH/UNL, 2009. FIGUEIREDO, Frederic – Whitebox. Porto: FBA/UP, 2009. LAPA, Sofia Boino de Azevedo – Para que (nos) serve o museu? A génese do Museu Calouste Gulbenkian. Lisboa: FCSH/UNL, 2009. MARQUES, Luísa – Desenvolvimento da actividade turística em Lamego: cidade e museu, uma relação necessária. Porto: FBA/UP, 2009. OLIVEIRA, Cristina Barros – A Preservação da Arte Efémera de Alberto Carneiro com Aplicação ao Caso de Ávore Jogo/Lúdico em 7 Imagens Espelhadas. Lisboa: FCT/UNL, 2009. XAVIER, Hugo – Galeria de Pintura no Real Paço da Ajuda. Lisboa: FCSH/UNL, 2009. GUERRA, Aida - Sá Nogueira: ensinar desenho. Porto: FBA/UP, 2010. MONTEIRO, Joana Maria Nunes de Carvalho D'Oliva – A Galeria de Exposições Temporárias do Mosteiro de Alcobaça – reflexões e contributos na óptica do discurso expositivo. Lisboa: FCSH/UNL, 2010. PENALVA, LUÍSA – Reflexões para uma musealização da joalharia contemporânea Portuguesa (1960-2008). Lisboa: FCSH/UNL, 2010.

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RIBEIRO, Ana Cristina Rasteiro, Living and Growing Within a Museum: Recreating Video Art for Conservation. Lisboa: FCT-UNL, 2010. ROCHA, António José Évora, - A Conservação Material e Documental da Obra “Instalação 191093, parte 1”. Lisboa: FCT-UNL, 2010. SOARES, Luís Filipe da Silva – Palácio Nacional de Sintra. Circuito expositivo. Análise da sua evolução. Lisboa: FCSH/UNL, 2010.

Teses de Doutoramento concluídas LEANDRO, Sandra - Joaquim de Vasconcelos (1849-1936). Historiador. Crítico de Arte e Museólogo. Lisboa: FCSH/UNL, 2009. CASTRO,Laura - Exposições de arte contemporânea na paisagem-antecedentes, problemática e práticas. Porto: FBA/UP, 2010. FERREIRA, Emília - Lisboa em Festa: A Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, 1882 - Antecedentes e Materialização. Lisboa: FCSH/UNL, 2011.

Teses de Doutoramento em curso BAIÃO, Joana – José de Figueiredo (1872-1937). Sua acção e contributos no panorama historiográfico, museológico e patrimonialista em Portugal. Lisboa: FCSH/UNL BARÃO, Ana Luísa – Crítica de Arte em Portugal na segunda metade do século XX. Modelos e práticas. Porto, FBA/UP DUARTE, Adelaide – O coleccionismo privado e os museus de arte contemporânea. Contributos para a história da museologia em Portugal. Porto, FBA/UP LAPA, Sofia – 40 anos em exposição permanente no museu Calouste Gulbenkian. Contributos para uma crítica do objecto museológico. Lisboa: FCSH/UNL MAGALHÃES, Andreia – A disseminação da imagem em movimento nos museus de arte: da análise da história e musealização à planificação de uma colecção (de filmes e vídeos de artistas). Porto, FBA/UP MARQUES, Susana Lourenço – Singularidade fotográfica e objecto histórico: circulação, exposição e historiografia da imagem fotográfica nas décadas de 1980 e 1990. Lisboa: FCSH/UNL MONGE, Maria de Jesus – Palácios e as colecções reais portugueses 1910?1960: A memória da monarquia em tempo de República. Lisboa: FCSH/UNL OLIVEIRA, Leonor – Fundação Calouste Gulbenkian: As exposições de artes plásticas e estratégias de apoio e internacionalização da arte portuguesa, 1957-1969. Lisboa: FCSH/UNL PINTO, Carla Alferes – A colecção de arte colonial do patriarcado de Lisboa. Propostas de estudo e musealização. Lisboa: FCSH/UNL VILHENA, João – A colecção de escultura do comandante Ernesto Vilhena: A constituição de uma colecção nacional. Lisboa: FCSH/UNL XAVIER, Hugo – A Galeria Nacional de Pintura da Academia de Belas Artes de Lisboa: da formação do acervo à criação do Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia (1834-1884). Lisboa: FCSH/UNL

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NORMAS DE REDACÇÃO

REGULATIONS IN THE WRITING

Normas de redacção de artigos/recensões

Regulations in the writing of articles/critiques

01. OBJECTIVOS

01. AIMS

A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.

Due to the sheer diversity of authors that contribute with their articles to the magazine, we find that it is necessary to have rules and regulations to maintain a sort of consistency of the contents of each publication. Thus it is imperative that these regulations are followed in regards to the documents produced so as to contribute to the quality of the information and documentation.

0 2 . P U B L I C A Ç Ã O D E A RT I G O S

0 2 . P U B L I S H I N G O F A RT I C L E S

0 2 . 1 F O R M ATA Ç Ã O

0 2 . 1 F O R M AT

APLICAÇÃO: Microsoft Office Word TIPO DE LETRA: Times New Roman; tamanho 12 pt. NUMERAÇÃO DAS PÁGINAS: Sequencial NOTAS DE RODAPÉ: Numeração automática PARÁGRAFOS: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados.

APPLICATION: Microsoft Office WORD FONT: Times New Roman; font size 12 pt. PAGE NUMBERING: Sequential FOOTNOTES: Automatic numbering PARAGRAPH: Left side alignment with double spacing, no indentation.

0 2 . 2 TA M A N H O

02.2 SIZE

Não deve exceder as 5000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços).

Should not exceed 5000 words or about 30 000 characters (with spaces).

02.3 LÍNGUA

02.3 LANGUAGE

Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.

We accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.

0 2 . 4 T Í T U LO

02.4 TITLE

Claro e sintético em maiúsculas.

Clear and concise in capital letters.

0 2 . 5 S U BT Í T U LO

02.5 SUBTITLE

Opcional.

Optional.

02.6 RESUMO

02.6 ABSTRACT

Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca de 7500 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês.

Abstracts to the articles should not exceed 1 200 words, or around 7 500 characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.

0 2 . 7 PA L AV R A S C H AV E

02.7 KEYWORDS

Para cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave.

For each article a maximum of 5 keywords should be selected.

0 2 . 8 N O TA B I O G R Á F I C A S O B R E O A U T O R

02.8 SMALL BIOGRAPHY OF THE AUTHOR(S)

• Assinatura a acompanhar o artigo • Afiliação Institucional • Contacto de email (opcional)

• A signature to go with the article • Institutional affiliation • Email contact (optional)

0 2 . 9 C I TA Ç Õ E S

02.9 QUOTES

Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por: (apelido do autor, data de edição da obra citada, nº da página).

Should be presented between quotation marks and accompanied by: (Author’s last name, date of edition of the quoted text, page number).

0 2 . 1 0 S I S T E M A A B R E V I A D O A U T O R - D ATA

0 2 . 1 0 A B B R E V I AT E D S Y S T E M A U T H O R - D AT E

As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página). Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47). No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas.

The references in the text will follow the Chicago abbreviated system (author date, page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt e Arbeiter 1993,47). In case of two or more authors the use of et al is applicable. (Laumann et al. 1994, 262). News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes, rather than in abbreviated bibliographical references.

02.11 BIBLIOGRAFIA

02.11 BIBLIOGRAPHY

Toda a bibliografia segue as seguintes normas: exemplos (Monografias): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Artigos de publicação em série. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org

All bibliography should abide by the following rules: examples (Monographs): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Articles published in series. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. In cases not considered by these examples, the authors should consult the rules of publication at the site: www.chicagomanualofstyle.org

02.12 ILUSTRAÇÕES

02.12 IMAGES

• Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em papel ou digitalizadas a 300 dpi’s, em formato jpg ou tif, com o máximo de 28x22 cm; • Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro; • Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda; • No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, do seguinte modo: fig.1; fig.2; etc.; • Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, legendas, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Souza-Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

• Photos, drawings, tables, graphs and maps should be give either in paper format or digitalised in 300 dpi’s, in jpg or tif format, with a maximum of 28x22 cm; • Each digital image should be saved in a different file; • All non-digitalised images should be handed in on paper, sequentially numbered and accompanied by an inscription; • The text should mention the exact location where the image is to be inserted in the following manner: fig.1; fig.2; etc.; • A distinct file should be handed in with the relations between all the images, the respective inscriptions and files that contain the images. exemple: Fig. 1 > Amadeo de Souza-Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

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02.13 CRÉDITOS DA S ILUSTRAÇÕES

02.13 CREDIT FOR THE IMAGES

No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir os seus eventuais encargos. No entanto, excepcionalmente, e a analisar caso a caso, o IHA pode intervir no pedido de autorização assumindo os custos. Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright.

If the authors include any material which involves the authorization of others, it is their responsibility to obtain a writing authorization and to take on the costs that it may imply. However, in certain situations to be analysed case-by-case, the IHA may intervene in the authorization by taking on the costs. Credit should be given for each image by this order: author, date, copyright.

03. PUBLISHING CRITIQUES 03. PUBLICAÇÃO DE RECENSÕES

03.1 REVIEWED WORK

Deverá ser identificada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora. A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto.

Should be identified in the following way: Author, date of publication, title, place of publication and publisher. Quotations from other works, besides the one reviewed, should be done in the text.

0 3 . 2 TA M A N H O

03.2 SIZE

As recensões não devem exceder as 1000 palavras (aprox. 6500 carac. com espaços).

All critiques should not exceed 1000 words (around 6 500 characters with spaces).

03.3 OUTRAS REGRAS

03.3 OTHER RULES

As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

The critiques should follow the aforementioned regulations, namely: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

0 4 . D I R E I TO S D E A U TO R

04. AUTHOR’S RIGHTS

No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.

In case the authors include any material involving a third party, it is entirely his or her own responsibility to acquire its authorization in writing and to assume any costs. However, in exceptional situations to be analysed case-by-case, the Institute of History of Art may intervene in the authorization by taking on the costs.

03.1 OBRA RECENSEADA

05. PROOFREADING 0 5 . R E V I S Õ E S D E P R O VA S

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O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão final a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Editorial, que garante a reprodução fidedigna dos textos.

The author will receive proofs of his or her article to guarantee that the final draft to be published coincides with the article submitted, as substantial alterations are not permitted. The final proofreading is entirely the responsibility of the Publishing Committee, who will guarantee that the reproduction of the texts is faithful to the original.

06. ENVIO DOS TRABALHOS

0 6 . D E L I V E RY O F A RT I C L E S

0 6 . 1 M AT E R I A L E M F O R M AT O D I G I TA L

0 6 . 1 M AT E R I A L I N D I G I TA L F O R M AT

Todo o material digital deverá ser enviado para: iha@fcsh.unl.pt

All digital material should be sent to the following email: iha@fcsh.unl.pt

0 6 . 2 M AT E R I A L E M F O R M AT O N Ã O D I G I TA L

0 6 . 2 M AT E R I A L I N N O N - D I G I TA L F O R M AT

Todo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para: Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

All non-digital material should be signed and sent to: Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

0 7 . S E L E CÇ ÃO E P U B L I C AÇ ÃO D E A RT I G O S / R E C E N S Õ E S

07. SELECTION AND PUBLICATION OF ARTICLES/CRITIQUES

07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário, recorrer ao seu conselho de referees, solicitando parecer científico. Em qualquer dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver Anexo 1).

07.1 All articles/critiques applied for publication in Revista de História da Arte will undergo an appreciation of the Publishing Committee, upon whose judgement the decision of publication will be based. If necessary, it may resort to its referees committee, which will provide a scientific analysis. In any case, an evaluation sheet (see Appendix 1) must always be filled out.

07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia dos artigos propostos para publicação, a sua originalidade científica.

07.2 During evaluation the Publishing Committee will always favour articles for their scientific uniqueness.

07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto.

07.3 The Publishing Committee and Board of the Revista de História da Arte are entitled to proceed with the uniformity of bibliographical references, bibliography and formal alterations, considered essential, as long as they do not change the meaning of the text.

07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à: • reprodução, qualquer que seja o suporte • colocação à disposição do público universitário ou outros • divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites... • distribuição e venda de exemplares da obra

07.4 The Publishing Committee and the Board of the Revista de História da Arte are entitled to: • reproduce the work, regardless of format • place the work at the disposal of the academic community and others • disseminate the work, in various ways: digital networks, sites... • distribute and sell copies of the work

07.5 Os autores serão informados no prazo de 3 meses, qual a data da publicação.

07.5 Authors will be informed of the date of publication in the space of 3 months.

07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista. Para os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos. •

07.6 After publication, each author will receive a copy of the magazine. Authors of articles will receive 30 addendums of their article. •

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ANEXO 1

APPENDIX 1

Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de Referees internacional, em face das respectivas especialidades.

Evaluation sheet for any proposal of articles to be filled out by the members of the Publishing Committee and/or the International Referees Committee, in regards to their respective specialities.

T Í T U LO D O A R T I G O

T I T L E O F A RT I C L E

RECEPÇÃO DO ORIGINAL

RECEPTION OF THE ORIGINAL

ENVIO AO REFEREE

S E N T TO R E F E R E E

CÓDIGO DE REFEREE

REFEREE CODE

01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte centrado nas questões metodológicas? Sim Não

01. Does the article fall under a number of the Revista de História da Arte, focusing on the methodological questions? Yes No

02. O artigo parece-lhe: Publicável na forma actual Publicável com ligeiras modificações Publicável se for refeito Não publicável

02. Does the article seem: Publishable in its current form Publishable with some minor modifications Publishable if it is rewritten Not publishable

03. O artigo é: Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Apropriado

03. The article is: Too long (indicate where it can be shortened) Too short (indicate where it should be more elaborated) Appropriate

04. Apresentação do artigo: Estrutura Bibliografia

04. Article’s presentation Structure Bibliography

05. Conteúdo do artigo (utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es), recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes): • Tema, novidade, pertinência • Revisão do estado da questão • Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização, profundidade, etc.) • Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos, tratamento de dados,desenvolvimento da análise, fundamentação das conclusões, etc.) • Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada) • Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão) • Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original)

05. Article’s content (use a sheet as attachment and insert suggestions to the author(s), by using some of the following topics if necessary): • Theme, novelty, relevance • Review of the state of the theme • Theory (the author’s grasp of the subject, theoretical confrontation, questioning, depth, etc.) • Methodology (problem formulation, object delimitation, models, hypothesis, investigative strategies, procedures, definition of concepts, treatment of data, development of the analysis, validity of the conclusions, etc.) • Empirical data (analysis support, sources, selective information) • Exposition (plans, balance, sequences, conciseness) • Suggestions (written in pencil on the original text)

06. Comentários (não assinados)

06. Remarks (not signed)

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FICHA DE ASSINATURA REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE Assinatura 1 ano (2 números) = 25¤

Para receber em casa as duas próximas edições da Revista de História da Arte, preencha este formulário com os seus dados e junte um cheque* no valor total de 25¤**. ENVIAR PARA INSTITUTO DE HISTÓRIA DA ARTE FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS AVENIDA DE BERNA, 26 C 1069-061 LISBOA · PORTUGAL

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Instituto de Hist贸ria da Arte Faculdade de Ci锚ncias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa


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