Revista de História da Arte
Iconografia – Imagens e Interpretações
Edições Colibri
• Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa
Agradecemos a todas as individualidades e institutições que nos cederam os direitos de uso de imagens, nomeadamente Hubert Damisch, Pedro Cabrita Reis, Patricia Stirnemann Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra Biblioteca Nacional de Portugal Biblioteca Pública de Évora Câmara Municipal de Cascais Câmara Municipal de Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian Instituto Português de Museus Instituto Português do Património Arquitectónico Museu da Assembleia da República Warburg Institute
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ÍNDICE Editorial ................................................................................................................................................................
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Entrevista com Hubert Damish conduzida por Joana Cunha Leal ..........................................................................................................
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Entrevista com Patricia Stirnemann conduzida por Maria Adelaide Miranda ............................................................................................ 19 Imagens de Arquitecturas: Quadrata, Lacus e Laciculi nos santuários rupestres do período romano em Portugal M. Justino Maciel ............................................................................................................................................. 25 O labirinto no mosaico pavimental romano Francine Alves ................................................................................................................................................... 41 Opera Musiua: Uma breve reflexão sobre a origem, difusão e iconografia do mosaico romano Maria Teresa Caetano ................................................................................................................................. 53 Mosaicos da Villa Romana do Rabaçal, Penela, Portugal: Prelúdio de arte bizantina? Miguel Pessoa ................................................................................................................................................... 85 As cores das imagens – a propósito da cor na iluminura alcobacense dos séculos XIV e XV Horácio Peixeiro ............................................................................................................................................. 103 Rex musicus – Iconografia do salmo 80 nas bíblias francesas do século XIII Luís Correia de Sousa ................................................................................................................................ 131 Exemplos de Decorum: De rerum natura nos jardins barrocos portugueses Ana Duarte Rodrigues ................................................................................................................................ 153 Inquietações da Alma. Reflexões sobre o simbolismo presente nos temas coadjuvantes de núcleos azulejares portugueses Alexandre Pais .................................................................................................................................................. 183 Mitologia greco-romana nos azulejos da Casa Museu Verdades Faria Ana Paula Rebelo Correia ........................................................................................................................ 199 Ourivesaria popular: Arte, sociabilidade e património das gentes do Minho Gonçalo Vasconcelos e Sousa ................................................................................................................. 223 O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro: Uma iconologia de ambivalência Raquel Henriques da Silva ........................................................................................................................ 239 Vilegiatura balnear – Imagem ideal / Imagem real Graça Briz ........................................................................................................................................................... 255 Contributo para análise iconográfica de um vitral de Almada Negreiros Cátia Mourão .................................................................................................................................................... 269 A construção de mundos em Pedro Cabrita Reis Joana Cunha Leal ............................................................................................................................................ 281 Recensões Críticas ......................................................................................................................................... 293 Varia ....................................................................................................................................................................... 303
EDITORIAL De acordo com as linhas programáticas enunciadas nos números anteriores, o n.º 3 da Revista de História da Arte é dedicado ao tema do IX Curso Livre de História da Arte, promovido pelo nosso Instituto em 2005: Iconografia, Imagens e Interpretações. Deste modo, a organização da Revista partiu dos textos que nos foram facultados por alguns dos conferencistas daquele curso e alargou-se depois a outras participações, algumas por nós solicitadas, outras que nos foram propostas, pelos próprios autores e/ou outros membros do IHA. Esta dinâmica, generosa e qualificada, conduziu a que a Revista adquirisse, neste número, uma extensão inicialmente não prevista mas que resolvemos encarar como desafio para as próximas edições. E ainda assim, alguns artigos ficaram pelo caminho, nomeadamente pela dificuldade dos seus autores cumprirem os últimos prazos. Outro foi o caso da notável conferência de Eduardo Batarda (“Duas curiosidades iconográficas em desenhos do século XVI”) que, pela sua extensão e exigência de aparato documental, não se poderia integrar nas características da Revista. No entanto, em conjunto com o autor, estamos a procurar outras vias para a sua indispensável publicação. Como sempre, prezámos, tanto no Curso Livre como agora na Revista dois critérios caracterizadores do nosso projecto: percorrer todas as épocas históricas, da Arte Romana à Arte Contemporânea, passando por ciclos fundamentais da Idade Média e dos Classicismos; contemplar a máxima diversidade das tipologias artísticas, da arquitectura à instalação, da pintura e escultura ao azulejo e outras artes decorativas, incluindo um belo vitral de Almada Negreiros.Vasto campo de trabalho, ele é assumido quer por docentes do Departamento de História da Arte, quer por colegas de outras universidades, que
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particularmente saudamos, quer, sobretudo, por jovens investigadores, alguns nossos mestrandos e doutorandos, outros, profissionais reconhecidos que connosco continuam a colaborar. A Iconografia surge assim como estimulante território, não só de método mas de diversa conceptualização e apropriação, dando a ver a complexidade das referências teóricas, históricas e estéticas da História da Arte. Este lugar de questionação e indagação representa-se, de imediato, nas duas entrevistas que apresentamos: a Hubert Damisch, um firme anti-iconologista, e a Patrícia Stirnemann que, sobre os riquíssimos sistemas iconográficos da iluminura medieval, vai alargando o campo da arte até o fazer coincidir com dispositivos interdisciplinares. No entanto, apesar das imensas diferenças, há um largo domínio comum no labor destes historiadores de arte de referência que entendem a História da Arte como História da Cultura, e nós à sua semelhança, sabendo que os documentos artísticos possuem um fulgor de esclarecimento, mas, mais determinantemente, como afirma Damisch, de iluminação irresoluta do que, na produção humana, não tem definitivamente resposta, interrogando sem querer resolver. Não sendo possível, nem sequer desejável, sumarizar a riquíssima diversidade dos artigos que aqui apresentamos – uns, divulgando investigações mais ou menos cimentadas, outros, iniciando estudos ou questionando a sua ausência – preferimos destacar algumas novidades técnicas e formais deste n.º 3 da Revista. A primeira, mais visível, é a presença da cor, nas ilustrações do artigo de Horácio Peixeiro cujo tema é, precisamente “as cores das imagens”. Não se trata portanto de luxo de pobre mas de uma inevitabilidade… Aliás, o tema da Iconologia determinou que o número de ilustrações aumentasse muito significativamente, permitindo fazer História da Arte como sempre gostamos de a fazer: colada ao corpo físico dos objectos, independentemente da diversidade da matéria e da extensão. Nos próximos números veremos se o esforço financeiro a que a Iconografia nos obrigou pode ou não ser continuado. A segunda das novidades é a criação de um Conselho Científico Externo, composto por historiadores da arte não portugueses ou trabalhando vinculados a uma instituição não portuguesa. O leque das personalidades que, generosamente, acederam a colaborar connosco, percorre o essencial da cronologia da História da Arte europeia e, a partir do próximo número, será solicitado a elaborar pareceres sobre os artigos que o Conselho Científico e Editorial do IHA entender submeter-lhes. Procuramos, assim, não só dar cum-
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primento a um imperativo internacional em relação às publicações científicas, como contribuir para enriquecer o nosso próprio trabalho, através da crítica e reflexão de quem lida com outras situações, problemáticas e contextualizações. A terceira novidade diz respeito à presença de pequenos resumos em inglês de todos os artigos. Não se trata, também neste caso, de resolução mas de proposição. Sendo verdade que a História da Arte portuguesa está, quase sem excepção, mal representada nas bibliotecas internacionais de referência e que este é um campo determinante de trabalho para toda a ordem disciplinar, o IHA tem meios escassíssimos para actuar de forma decidida, nomeadamente por razões financeiras. Nos próximos números, vamos procurar uma solução complementar, procurando disponibilizar, via Internet, uma parte substancial dos conteúdos de cada Revista. Se o conseguirmos, com a cumplicidade dos autores procuraremos oferecê-los também integralmente em inglês. Pelo que fica dito e, sobretudo, pelo conjunto bastante qualificado de textos que aqui oferecemos, será legítimo pensar que a Revista de História da Arte está para ficar e para melhorar de número para número. Para que tal desejo coincida com a realidade, solicitamos críticas, observações, sugestões, dos públicos especializados e dos públicos em geral que amam as coisas da Arte. Precisamos também que todos os membros do IHA, cujo alargamento a diversas categorias de membros está a ocorrer com bastante sucesso, vivam esta Revista como coisa própria: lugar de criação, divulgação, questionação e partilha do que é o nosso ofício, cuja extraordinária polimorfia, conceptual, plástica e estética, o torna território incontornável da cultura contemporânea. Como sabemos, ela contém todos os passados que somos capazes de dar a ver e o magma das possibilidades do futuro. Resta agradecer formalmente aos autores, pela sua generosidade de colaboração gratuita; às diversas instituições que nos cederam direitos de reprodução de imagem, pelo seu sentido de serviço cultural; à Ana Paula Louro, pelo seu dedicadíssimo secretariado; ao Fernando Mão de Ferro, à Inês Mateus e Rita Medeiros, pelo empenho na melhoria da qualidade gráfica da revista; ao Conselho Científico e ao Conselho Directivo da FCSH, por continuarem a apoiar com eficácia o Instituto de História da Arte.
A Direcção do Instituto de História da Arte
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ENTREVISTA com Hubert Damisch conduzida por Joana Cunha Leal*
Na base desta entrevista esteve a (feliz) coincidência da vinda de Hubert Damisch a Lisboa para participar num ciclo de conferências organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian (Que Valores para este Tempo?, 25-27 Outubro de 2006), com a preparação do número actual da Revista de História da Arte. Hubert Damisch (1928) é, como se sabe, uma das grandes referências da cultura contemporânea, com trabalhos fundamentais no campo da estética, da teoria e da história da arte1 – fundou, aliás, o Centro de História e Teoria da Arte (CEHTA) da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Os seus escritos lançam uma perspectiva de análise e interpretação da produção artística e arquitectónica desde o Renascimento até aos nossos dias que, privilegiando tanto o confronto com a matéria sensível dos objectos quanto a sua problematização num horizonte histórico e teórico, tem um lugar central no panorama disciplinar da história da arte e dos estudos da cultura visual dos nossos dias. Fundamentada pelo compromisso com a semiologia e a psicanálise, essa perspectiva está nos antípodas do enfoque da iconografia/iconologia, combatendo duramente, como se verá, a crença no seu potencial descodificador. Este combate, que aqui especificamente nos interessa, ganhou particular visibilidade na obra de Damisch a partir de 1974. Primeiro, no texto apresentado ao colóquio de homenagem a P. Francastel organizado pelo Centre Pierre Francastel em Paris (no Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian),
* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 1 Entre as obras publicadas por H. Damisch podem destacar-se: Théorie du nuage. Pour une histoire de la peinture (1972), Ruptures/cultures (1976), Fenêtre jaune cadmium, ou les dessous de la peinture (1984), L’Origine de la perspective (1987), Le Jugement de Pâris (1992), Un Souvenir d’enfance par Piero della Francesca (1997), L’Amour m’expose. Le projet ‘Moves’ (2000), La Dénivelée. A l’épreuve de la photographie’ (2001), La Peinture en écharpe. Delacroix, la photographie (2001) e Voyage à Laversine (2004).
Entrevista com Hubert Damish
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cujas actas foram no imediato publicadas pela revista Colóquio Artes (nº18 e 19). Depois, na comunicação apresentada ao 1º Congresso da Associação Internacional para os Estudos Semióticos que decorreu em Milão em Junho desse mesmo ano. Publicado originalmente na revista Macula (N. 2 de 1977) com o título “Huit thèses pour (ou contre?) une semiologie de la peinture”, este texto voltou recentemente à ordem do dia por via do seu reaparecimento no número temático do Oxford Art Journal (Vol. 28, N.2 de Fev. 2005) dedicado a Hubert Damisch2. Manifestava-se, desse modo, a relevância e a actualidade do debate teórico-metodológico animado na década de 1970, incluindo a crítica à iconologia entendida, como propunha E. Panofsky, como uma “ciência da interpretação” (cf. H. Damisch, 2005 [1974]: 264). Damisch insiste particularmente na ideia de que, “à semelhança de qualquer outra disciplina de enfoque estritamente interpretativo”, a iconologia “permanece incapaz de dar conta da pintura considerada enquanto substância sensível, naquilo que é sua articulação estética propriamente dita, no sentido kantiano do termo.” (cf. Idem). Foi precisamente este enfoque crítico que motivou a ideia da entrevista que agora se apresenta (e que, com grande generosidade, H. Damisch acedeu dar-nos). Mais do que insistir na admissível insuficiência dos instrumentos da iconografia/iconologia afirma-se, através dela, a necessidade de abrir a reflexão desses campos disciplinares a horizontes não estritamente auto-referenciados. O Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa vai publicar um número da sua revista dedicado ao tema da iconografia. As leituras que fez, em 1974, sobre o estado crítico da historiografia da arte acentuaram particularmente as limitações da abordagem iconográfica. Gostava de o ouvir a esse propósito, na medida em que as suas teses de então me parecem de uma actualidade extraordinária.
Que entende hoje como iconografia? A iconografia procura atribuir um sentido a um objecto.
2 Esclarece Jon Bird na apresentação do número: “[…] Hubert then suggested that we republish ‘Eight Theses...’ as a text that he wished to have a current readership, and which would sit well within the context of the themes and issues that arose at the conference.” (a conferência mencionada teve lugar na Tate Britain em Outubro de 2003 e centrava-se já na discussão da obra de H. Damisch)
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Hubert Damisch. Ciclo de Conferências organizado pela FCG, Que Valores para este Tempo?, 25-27 de Outubro de 2006. © FCG. Fotografia de Orlando Teixeira.
O meu projecto é exactamente o inverso. É cada vez mais cortar com o sentido. Isto acontece porque eu trabalho em contacto com a arte contemporânea que tenta, justamente, cortar com a comunicação. Não é o sentido que vem em primeiro lugar. A arte não é necessariamente uma questão de sentido, pelo menos um sentido que possamos traduzir em termos linguísticos, em termos de narrativa, de descritivo ou do que se queira. A descrição de uma obra de arte não passa necessariamente por aquilo que significa. [Quanto ao artigo de 1974], devo dizer-lhe que, de então para cá, me afastei muito da discussão sobre a metodologia da história da arte. É uma questão que deixou de me interessar porque creio que falar de metodologia é uma maneira de escapar ao verdadeiro problema. O que me interessar é tomar os objectos e tentar ver o que posso fazer com eles; não tentar reduzi-los ou encontrar-lhes o suposto sentido, mas ver se esse exercício nos pode ajudar a pensar noutros problemas (que não aqueles que a iconografia trataria). Não se trata de uma simples questão de tradução de sentido, mas de saber como esse sentido funciona e o que procura.
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Mas essa sua abordagem corresponde também a uma perspectiva teórica e metodológica. Propõe outra coisa....
Não, não creio que tenha proposto outra coisa. Acho que a história da arte só tem hipótese de se desenvolver como um ramo das ciências ditas humanas, baseando-se por exemplo na Antropologia. A história da arte não é uma disciplina sui generis. É imprescindível que se aproxime das outras disciplinas. E esta é uma questão paradoxal, porque no princípio do século a história da arte foi uma das disciplinas chave. Quando Jakobsen e os fundadores da linguística estrutural – que foi a grande disciplina do início do século – começaram, interessaram-se fundamentalmente pela arte e pela história da arte. A história da arte era então uma disciplina-farol. Com Riegl?
Sim, Riegl. Esse poder perdeu-se completamente hoje. A história da arte já não é uma disciplina-farol, de modo nenhum. Há aqui, se quiser, um certo desgosto da minha parte. O que se fez desse potencial? O estruturalismo, de que se goza muito hoje em dia – estamos de acordo –, não é uma moda e também não é um método. É uma tentativa para compreender como as coisas funcionam. A frase de Levi-Strauss “o que me interessa não é o que as coisas, as obras representam, mas o que elas transformam”, não creio que seja um método. É uma constatação. E é assim que funciona. Uma obra de arte, antes de mais, transforma outras. Não se pode inventar o que isso seja nem atribuir-lhe um significado, qualquer que ele seja. Voltamos então ao ponto de partida, a uma espécie de nostalgia por um momento em que a história da arte foi uma disciplina de vanguarda e ligada à prática da arte contemporânea. Outra questão...
Mas eu creio que é sobre isto que devemos insistir! Que sentido teria a iconografia sobre a arte contemporânea? Não teria muito sentido! Nenhum sentido.
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Talvez até se possa falar de iconografia. Mas a verdadeira questão não é saber o que significam as imagens – supondo que estas significam qualquer coisa –, é saber como elas significam. É isto que é verdadeiramente interessante: não decifrar as imagens, como se tenta desde o século XVI, mas tentar perceber como elas o fazem. Para isso insiste muito na ideia de ver, VER as obras.
Há ver e VER. O meu grande amigo Daniel Arasse escreveu um livro muitíssimo bom sobre o pormenor3. Há coisas que não vemos e essas coisas que não vemos revelam-se determinantes para o sentido (já que não vemos as obras com o sentido). É muitas vezes aquilo que não vemos numa primeira abordagem que conta verdadeiramente. Trata-se de ir descobri-lo. Como vê não é evidente! Donde, pode descobrir-se mais do que um sentido.
É precisamente por isso que atrás me insurgia. Por exemplo, a ideia de Panofsky, de que há um sentido a encontrar e de que a obra não tem senão um sentido, pode ser uma opção, mas é absurda. Uma obra tem todos os sentidos que se queira e toda uma história que lhe pode ser atribuída. É interessante ver como ao longo da história foram atribuídos diferentes sentidos a uma mesma obra. E a obra funciona muito bem. Por exemplo, a famosa flagelação de Piero della Francesca foi alvo de interpretações completamente diferentes que remontam à obra de Montaigne. Ginzburg pretende que a interpretação tradicional surge por via do irmão do Duque de Montefeltro; trata-se de uma invenção recente que não é verdadeira. Montaigne refere-a durante a sua passagem por Urbino. Posteriormente surgiram outras interpretações, mas o quadro continua lá, tão misterioso como sempre. O que acontece é que podemos escrever todas as interpretações que quisermos porque iconografia não explica nada sobre o modo como o quadro funciona e nos fascina. É uma maneira de passar ao lado. O sentido é uma maneira de passar ao lado da obra de arte.
3 Le détail: pour une histoire rapprochée de la peinture. – Paris: Flammarion, 1992
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E a abordagem estruturalista? O que pode fazer uma abordagem estruturalista? Pergunto isto para os nossos alunos que vão ler a entrevista.
A abordagem estruturalista não é evidente porque consiste em perguntar... Apresenta também vários níveis. Pratiquei-a quando trabalhei as cidades ideais. Mas era um objecto talhado para uma abordagem desta natureza porque constituía – o que chamamos num estruturalismo meta-estrutural – um grupo de transformações. E eu tinha ali o grupo de transformações. Estava lá, existia.Tratei simplesmente de realçá-lo. Agora, quando analisamos obras isoladas não vejo à partida como podemos interpretá-las em termos de transformação. Mas é sempre o problema da transformação que está em primeiro plano. O modo como a arte transforma o mundo?
Não, não, atenção! Como é que um artista trabalha sobre um dado? Um artista trabalha sobre outras obras, outros artistas. Ele retoma esses dados e trasforma-os. Quanto à acção da arte sobre o mundo, não me pronuncio sobre essa questão. Parece-me muito ambiciosa. O que me interessa verdadeiramente é saber o que existe na arte que nos possa ocupar e que não nos pode ocupar na literatura ou na filosofia, porque a filosofia e a literatura não utilizam os mesmos meios da arte. O que nos traz a arte, utilizando os meios que tem, para o plano do pensamento? É isso que me interessa. E não é interrogando-nos sobre o suposto sentido iconográfico de uma obra que avançamos neste campo, nesta direcção. Gostava que nos falasse um pouco da sua ideia de objecto teórico. Será possível?
Sim. A ideia de objecto teórico constituiu matéria de um colóquio que tivemos em Urbino há 30 anos. Acabámos de fazer novamente um colóquio em Urbino com o grupo de todos os especialistas italianos em semiótica, Umberto Eco e outros. O objecto teórico, é um objecto…. Talvez começar por dizer que criei na École des Hautes Études um centro que se chama precisamente Centre d’Histoire et Théorie des Arts. A ideia é que não podemos fazer história se não fizermos um pouco de teoria e que não podemos fazer teoria se não fizermos
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um pouco de história, muita história. Creio que dissemos tudo ao afirmar isto. O objecto teórico é um objecto que provoca outros objectos. É um objecto que não pode ser estudado por si próprio. Para nos aproximarmos dele é necessário referir outros objectos. É aí que a análise estrutural começa: o que nos faz escolher os outros objectos que permitirão abordá-lo? Chegamos então ao que se pode designar como um método comparativo. Não há história da arte senão nesta perspectiva. Diria por isso que, mais do que estrutural, tudo é comparação. Como funciona isto? Questionando as diferentes maneiras de uma paisagem ser uma paisagem, as diferentes maneiras de um retrato ser um retrato, as diferentes maneiras de uma cena de batalha ser uma cena de batalha, de uma obra abstracta ser uma obra abstracta, etc. É a partir daqui que podemos perguntar o que se transforma. Outra questão. Numa entrevista recentemente publicada no Oxford Art Journal fala-nos do seu interesse pela deslocação dos conceitos (displacing concepts)4. É uma ideia que me interessou muito, pelo que gostava de lhe perguntar se acha que podemos deslocar conceitos como pintura ou escultura?
O problema não é saber se os podemos deslocar, mas saber o que esses conceitos deslocam, obrigando a que nós mesmos nos desloquemos. O que me interessa numa obra de arte é como ela me desloca. É isto mesmo. Não podemos ficar no mesmo sítio. Se uma obra nos ocupa verdadeiramente, temos de começar por nos deslocar para ir ao seu encontro, para tentar entrar nela. É já um modo de deslocamento mas, sabe, tem toda a tradição perspéctica completamente mítica. O mito não corresponde em nada à realidade. Ou seja, a ideia de que a perspectiva nos assinalou um ponto a partir do qual temos de olhar para um quadro não corresponde à realidade. Todo o meu trabalho sobre a perspectiva foi no sentido de demonstrar que esta ideia não se sustêm e que, para ver verdadeiramente um quadro em perspectiva, era necessário começarmos por nos deslocarmos, mas não para nos colocarmos no ponto putativamente preestabelecido para olhar. Os quadros em perspectiva bem construídos – é o problema da flagelação de Piero – são quadros em face dos quais não sabemos bem como e onde nos posicionamos. São 4 Cf.“Hubert Damisch and Stephen Bann: A conversation” in Oxford Art Journal (28 Fev. 2005: 155 e ss)
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quadros que nos obrigam a dar voltas… são quadros que nos obrigam a um exercício muito complexo para nos situarmos. E toda a arte moderna faz também com que nos desloquemos em permanência. Para o cubismo e o futurismo a grande descoberta do princípio do século foi esta. A grande questão do princípio do século foi esta, e encontramo-la sob formas inteiramente diferentes hoje em dia, na prática do vídeo, nas práticas da arte conceptual. Aí o deslocamento está no centro da questão. O centro que se desloca continuamente… Durante a conferência que fiz ontem na Gulbelkian, evoquei as teses de Freud sobre a beleza. A beleza é uma questão de deslocamento. Para ele tem uma origem sexual: desloca-se dos traços sexuais fundamentais até aos traços secundários. O deslocamento, que é um conceito freudiano, está em todo o lado. Ontem referiu igualmente a ideia de como a beleza foi substituída pela arte no século XIX. Pode falar-nos um pouco…
Quando Hegel se questiona sobre o belo, fá-lo em relação a um juízo de gosto. É um juízo que está comandado pelo prazer, mas que nem por isso deixa de ser um juízo. O que é um juízo comandado pelo prazer? É um juízo paradoxal porque é universal mas não é acompanhado por nenhum conceito. A época em que vivemos hoje, é uma época em que o belo deixou de ser universal, mas há apesar disso um conceito de belo que tem um valor geral. Já não temos desafios por conta do belo. A arte moderna obriga-nos a pensar. É uma arte que não tem pretensões universalistas, mas onde são necessários conceitos para que nela se possa penetrar um pouco melhor. Para isso é preciso fazer um pouco de teoria. O que se passou no século XIX, com Hegel essencialmente, foi que a questão da arte substituiu a do belo. A estética até Hegel é uma questão que incide sobre o belo e o belo ultrapassa em muito o campo da arte: há uma beleza natural, uma beleza física, há uma beleza gestual, há a beleza dos objectos, etc. que não são necessariamente beleza artística. Hegel pergunta antes qual é o destino da arte. Donde, a beleza artística substitui o belo como objecto de reflexão. Hegel pergunta no fundo qual é o presente o futuro da arte. Não é verdade que tenha introduzido a noção da morte da arte como nos fazem crer.
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Hegel não fala nunca da morte da arte. Diz simplesmente que a arte deixou de corresponder a uma necessidade. Já não tem a mesma função que tinha no passado (religiosa ou outra). Mas diz também que a arte não parará de se aperfeiçoar: a arte vai prosperar, aperfeiçoar-se, ainda que seja menos necessária. A substituição de que lhe falava teve consequências consideráveis no século XX.Toda a tradição de Marcel Duchamp é dizer “o que é a arte? A arte é apenas um nome? Posso pôr qualquer objecto no museu? Vai decretar-se que é uma forma de arte apenas porque assinei esse objecto?”. Poderíamos cair numa interpretação nominalista à qual me oponho inteiramente. O meu propósito é reintroduzir a questão do belo para perguntar o que funciona numa obra de arte. Ontem citei um texto de Marcel Mauss, o antropólogo, que para mim é verdadeiramente fundador – é neste sentido que dizia que a história da arte tem que se informar junto das outras ciências humanas. Mauss dá instruções aos etnógrafos aprendizes:“Quando se deslocarem a uma sociedade selvagem, primitiva – todas estas palavras que já não se empregam nos nossos dias – e quiserem saber o que entendem como arte, comecem por lhes perguntar quais, de entre os objectos que os rodeiam, lhes parecem belos.” Marcel Mauss confunde portanto arte e beleza. Retirou-se daqui um dogma puramente nominalista – arte é o que designam como arte –, mas o que nos diz Marcel Mauss é exactamente o contrário. Diz-nos que, a partir do que chamam arte, vamos poder perguntar qual o efeito que a arte tem sobre eles.Vamos interrogá-los sobre as sensações que experimentam, vamos tentar compreender como isso funciona. O que há na arte que nos afecta? Vamos, no fundo, fazer o que a iconografia não quer fazer. Voltamos às minhas primeiras palavras: interrogarmo-nos sobre o significado das obras não interessa porque não nos ensina nada sobre o seu funcionamento. Interrogarmo-nos sobre o modo como as obras de arte funcionam não é perguntar em que medida significam. É uma coisa completamente diferente. O que Mauss nos diz, e que é muito interessante, depois de ter feito essa introdução aparentemente nominalista, é que nas sociedades ditas primitivas o efeito dos objectos estéticos é enorme. Essas sociedades estavam bastante mais envolvidas pelos factos estéticos do que nós estamos hoje em dia. São sociedades impregnadas de estética, muito mais do que a nossa. Creio que
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temos de reflectir sobre isto. E é por isso que a questão da arte substitui a questão do belo, porque o belo nos envolve menos. Mas acredita que há um belo?
Não, não acredito que haja UM belo. É uma boa pergunta porque importa precisar que não se trata de uma questão de crença no belo, trata-se de sofrer ou beneficiar dos seus efeitos. Digo que sofremos os seus efeitos porque nem sempre são muito felizes. O belo pode ter efeitos infernais. Existem formas de beleza infernais, questões de beleza que não têm nada de apolíneo. São dionisíacas, não necessariamente agradáveis no sentido em que tendemos a conceber o prazer, como uma coisa sã. A leitura que faz do Déjeuner sur l’herbe e a Olympia de Manet no Jugement de Pâris pode ser associada com o que está agora a dizer? No sentido do desconforto que estas imagens provocaram à data da sua aparição.
O problema do Déjeuner sur l’herbe não fui eu que inventei. Estava já em discussão na época e Warburg tirou proveito disso. Há um texto famoso de Warburg sobre esta questão. É que o Déjeuner sur l’herbe de Manet retoma um fragmento de uma gravura feita a partir de uma obra de Rafael sobre o tema da escolha de Páris. O que é o julgamento de Páris? É um julgamento de gosto, pois tratava-se de saber qual era a mais bela entre três deusas. É pois um verdadeiro juízo estético, não há nada a fazer. O que me interessa aqui? Percebe-se que se pode fazer um pouco de iconografia, mas, bem entendido, isso não nos permite ir muito longe. É que, contextualizando a escolha de Páris na cultura europeia, verificamos que está na origem do que mais tarde designaremos como Europa, uma vez que a guerra de Tróia decorre dessa escolha. Ora, a guerra de Tróia termina com a disseminação dos heróis troianos que fundaram aquilo a que chamamos Europa. A escolha de Páris é, por conseguinte, um mito fundador. E a ideia que um julgamento de gosto possa ser árbitro no plano da história é algo verdadeiramente extraordinário. Foi isso que chamou a minha atenção. Ora, de certo modo, esta questão parte da iconografia, mas não se reduz à iconografia. A prova é que parti de um pormenor. E não comecei por me interrogar sobre qual seria o sentido desse pormenor. O ponto de partida da reflexão foi antes
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a existência desse pormenor numa gravura feita a partir de uma obra de Rafael. Já havia aí um deslocamento. Mas o que é extraordinário, e aí encontramos o sentido da minha análise, é o que Jacob Burkhardt, grande historiador da civilização no século XIX, nos disse a este respeito:“porque é que Páris escolhe Vénus? Porque ela se apresenta de frente e portanto dá-se a ver por inteiro”. É verdadeiramente extraordinário! Burkhardt era um senhor respeitável e foi o primeiro a reparar que Vénus não nos mostra nada, a nós espectadores, porque se vê de perfil, mas a Páris não. Páris está em frente dela e vê tudo, enquanto as outras se dissimulam mais ou menos. Isto é Freud. Está aqui a fonte do belo: a visão dos órgãos genitais. Não há nada a fazer. Depois, evidentemente, tudo se desloca imediatamente e o belo vai deslocar-se para objectos mais atractivos. Mas o problema está aqui. É um problema de deslocação, uma deslocação fundamental. Para terminar…
Insisto uma vez mais no facto de Burkhardt ter visto isto. Disse-o assim, sem chamar a atenção. Ninguém notou, mas a frase está lá: “ele vê tudo e por isso dá a palma [a Vénus]”. Para terminar a nossa entrevista, e pensando uma vez mais nos nossos alunos, gostaria que voltasse a falar da absoluta necessidade de fazer história da arte a partir da arte do presente.
Sabe, é o mesmo princípio da história geral. A história exige ser rescrita por cada geração, porque cada geração procura uma coisa diferente na sua relação com o passado. Cada geração tenta olhar para o passado de modo diferente, tirando outras lições. A única maneira de compreendermos algo no passado é perguntarmo-nos qual é a relação que mantemos com o presente. Parece-me uma evidência. Ignorar o presente é não compreender nada no passado. Não há outras vias de acesso ao passado a não ser formular questões… O que o nosso presente vê nas obras de arte que os nossos antecessores não viram? E acha que devemos continuar a perguntar o que é arte…?
Sim, sempre, de cada vez que estamos perante uma obra de arte.
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… porque a abordagem nominalista alterou a pergunta para quando é arte?
Eu não sou em nada nominalista. Mas, por exemplo, o facto de nos interrogarmos sobre isso, sobre o modo como funciona a arte é uma questão absolutamente moderna. É uma questão que foi formulada no início do século com os formalistas russos e os linguistas. O que conta – e aqui temos que fazer uma pequena incursão pela psicanálise – é o que Jacques Lacan chama o significante. O que conta não é o que algo significa, mas o facto de significar. Tentar traduzir o significado é, de certo modo, esquecer todos os problemas que coloca o efeito do significante. Os efeitos de significância não se analisam em termos de tradução. Não se trata de traduzir as obras, de dizer qual é o seu sentido numa linguagem articulada.Trata-se de saber qual o efeito que isso faz e como esse efeito se produz. E isto só pode ser feito a partir da arte contemporânea. Muito obrigada.
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Revista de História da Arte
ENTREVISTA com Patricia Stirnemann conduzida por Maria Adelaide Miranda*
A entrevista a Patricia Stirnemann surge neste volume dedicado ao tema Iconografia, pela importância que esta disciplina assumiu no percurso individual desta investigadora que tem uma carreira notável, centrada no estudo e divulgação dos manuscritos iluminados. Investigadora do Institut de recherches et d’histoire des textes, Patrícia Stirnemann é responsável pelas secções de Codicologia e Fontes Iconográficas. Colaborou em importantes exposições e catálogos, tendo-se debruçado especialmente sobre temáticas relacionadas com a biblioteca dos condes Patricia Stirnemann da Champagne. Nos últimos anos, a sua actividade estendeu-se à elaboração de Cdroms e DVDs, de que se destacam Les Très Riches heures du duc de Berry, Vie et Miracles de saint Maur e Trésors enluminés de Troyes. Foi, contudo, fundamentalmente a sua participação no projecto INITIALE, suporte das bases de dados Enluminures et Liber Floridus, que deu um contributo fundamental à iconografia contemporânea. Com uma longa tradição no estudo de manuscritos iluminados o Institut de Recherche et d’Histoire des Textes tem disponibilizado, a investigadores de iluminura medieval, imagens e informação pormenorizada sobre estas, resultado de um trabalho interdisciplinar em que participam equipas de especialistas de áreas diversificadas.
* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
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Como refere Patricia Stirnemann só um trabalho de equipa permite a preparação de theraurus, a datação rigorosa da obra, a sua localização e, sobretudo, a constituição de um contexto que permita uma “justa compreensão da imagem”, tal como os novos meios tecnológicos permitem a sua divulgação por públicos mais vastos. Quais são, no seu entender, os grandes momentos da iconografia ?
Existem, na minha opinião, três grandes períodos na evolução dos estudos iconográficos da arte da Idade Média, marcados pelas contribuições de dois grandes eruditos. Em primeiro, Emile Mâle, no princípio do século passado, estabeleceu, de modo magistral, uma história da iconografia religiosa na França do século XII até o século XVII, tendo em conta todas as técnicas da arte e insistindo na importância dos textos medievais e antigos. Depois, Erwin Panofsky ampliou a reflexão introduzindo o conceito de iconologia. Finalmente, aparece, durante a segunda metade do século XX, a publicação de vastas colectâneas de imagens e dicionários, tais como os trabalhos de Kaftal, Meiss, Degenhart e Schmitt, do Lexikon der christlichen Ikonographie, etc. Através de cada geração, vimos mais nitidamente a evolução cronológica das representações e, sobretudo, a importância da datação e da localização exactas desta ou daquela imagem, quer dizer, do seu contexto estilístico, literário e histórico, para a sua justa compreensão. Sabemos que teve um papel importante na construção das bases de dados Enluminures e Liber Floridus. Quais os objectivos que presidiram a essa construção e que etapas foram, no seu entender, as mais importantes ?
Dedicado ao estudo do manuscrito medieval, dos seus textos et da sua transmissão, o Institut de Recherche et d’Histoire des Textes foi fundado em 1937 e depois, anexado, ulteriormente, ao Centre National de la Recherche Scientifique (fundado em 1939). O Instituto evoluiu no decurso dos anos, acrescentando diversas secções linguísticas e temáticas, nomeadamente a Secção das Fontes Iconográficas, fundada em 1977. Naquela altura, o nosso serviço fotográfico, cuja missão essencial era microfilmar os manuscritos das bibliotecas municipais de França, alargou a sua tarefa para fazer diapositivos dos elementos iconográficos e decorativos de cada manuscrito. Durante muito tempo, o investigador
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devia deslocar-se até Orleães para visionar as centenas de bolsas de diapositivos para encontrar o que queria. Em 1990, e com a chegada da digitalização, a Secção das Fontes Iconográficas criou a base INITIALE, a fim de gerir as imagens, assim como as informações e a bibliografia recolhidas em cada manuscrito iluminado. As bases de dados Enluminures (bibliotecas municipais) e Liber Floridus (bibliotecas universitárias e fundos dependentes do Institut de France) apresentam extractos da base INITIALE, postas gratuitamente à disposição do público mundial na Internet. Que critérios orientaram a elaboração do thesaurus iconográfico destas bases de dados ?
Durante os anos 70 e 80, vários thesaurus foram elaborados na Europa e tiveram em conta não só as imagens, mas também os ornamentos. Nenhum é perfeito.Antes dos anos 90, os thesaurus foram concebidos como a linguagem verbal de suporte à leitura descritiva das iluminuras, destinadas a ser consultadas sem imagem, como o Índex de Arte Cristã em Princeton (USA). O do IRHT reúne as palavras-chaves por grandes domínios. Hoje, podemos repensar a situação porque a introdução da imagem permite, por um lado, uma indexação mais sucinta dos grandes temas e, por outro lado, oferece a possibilidade de uma rubrica ou uma citação explicativa, em vez de uma análise descritiva para as imagens com conteúdo histórico, literário, simbólico, teológico, etc., onde o contexto é essencial para a compreensão. A qualidade de uma base de dados depende, principalmente, da fiabilidade das identificações propostas – texto, datação, localização e proveniência do manuscrito –, assim como da constituição rigorosa de listas temáticas (nomes próprios, lugares e “assuntos” iconográficos). Para a constituição de uma equipa de trabalho que tem por objectivo a elaboração de uma base de dados desta importância, quais foram as especialidades exigidas e, mais particularmente, qual foi o papel atribuído ao historiador da arte no seio deste grupo ?
Uma boa equipa de trabalho é composta por historiadores da iluminura muito experientes (o catálogo fornecendo a melhor formação) e por latinistas que possuam uma boa cultura visual. Os historiadores da liturgia, da literatura, das ciências ou do direito podem, pontualmente, encontrar também aqui o seu lugar. De resto, é preciso conhecer e saber usar as possibilidades lógicas da
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informática. O papel do historiador da arte é, contudo, fulcral porque tudo se baseia numa boa leitura visual. No nosso percurso como investigadores na área da iconografia e construtores de bases de dados, somos confrontados com obstáculos, sobretudo no que diz respeito ao tempo gasto no processo de elaboração de protocolos com as instituições públicas que conservam os manuscritos e que, por isso, detêm os direitos sobre a imagem. Como conseguiram gerir e resolver este tipo de questões ?
O IRHT é uma instituição pública e os nossos parceiros na digitalização e na disponibilização on-line da nossa base de dados são a Direcção do Livro e da Leitura, no Ministério da Cultura, e a Subdirecção das Bibliotecas e da Informação Científica, no Ministério da Educação, que são igualmente os nossos interlocutores com as bibliotecas municipais, universitárias e com as do Institut de France. Em França, como noutros lugares, o estabelecimento de protocolos para cada projecto, a sua programação e a sua realização pedem sempre muito tempo, uma vez que os acordos têm de ser constantemente alterados, de acordo com a instituição, o número de manuscritos e a evolução tecnológica. Qual foi o impacto, do ponto de vista cultural e artístico, da difusão de um património até então mal conhecido do grande público devido ao seu acesso muito restrito ?
Em França, como noutros países, a “liberalização” do manuscrito iluminado atingiu todos os níveis do sistema educativo, desde o ensino primário até ao nível do doutoramento, e teve múltiplos efeitos, desde a sensibilização para a imagem medieval até às descobertas capitais que dizem respeito às obras-primas, desde o novo interesse pela produção do manuscrito e as respectivas técnicas até a renovação dos nossos conhecimentos sobre a história dos textos e a sua transmissão, a história da iluminura e a história das bibliotecas e da leitura. Em contrapartida, assistimos, neste momento, ao nascimento de bases de dados sobre a imagem, um pouco por todo o mundo, o que tem permitido a expansão do universo dos nossos conhecimentos. O que pensa das repercussões que estas bases de dados possam ter no domínio da investigação ?
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As novas bases de dados sobre a imagem, as bibliotecas virtuais e as ferramentas de pesquisa informatizadas (incipitários, textos, catálogos, bibliografias, arquivos de proveniência, etc.) revolucionaram a investigação. Para os historiadores da iluminura, duas novas vias se abrem pela primeira vez : o papel da cor na imagem e o contributo do ornamento para a história do livro e da iluminura. Os estudos tradicionais sobre a iconografia também se vão enriquecer profundamente através da acessibilidade, tornada cada vez mais completa, às imagens (iluminadas ou gravadas). Tendo as obras-primas da iluminura sido, na maioria, catalogadas, as pesquisas do futuro trarão conhecimentos muito mais seguros e exactos, por serem melhor contextualizados. Surgirão também novas identificações de artistas e de centros de produção, cronologias revistas e corrigidas e novos reagrupamentos de manuscritos e bibliotecas antigas. Em suma, a informática tem vindo a enriquecer todos os campos de investigação sobre o manuscrito medieval.
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Campa dos Mouros, Monte Fralães, Barcelos. © Fotografia do autor.
RESUMO ABSTRACT Interactions between meaning and image in sacred space of Antiquity. Temenos – pomoerium – sanctuarium and its relation with funeral scenes. The image of rectangular tanks excavated in rupestral context: sepulchres or ritual tanks of sacrifice, purification and initiation? Images of this reality in Portuguese territory as a transversal vision of a multiple significance of behaviour in the iconography of natives, Romans, mystery cults and of Christianity itself.
Interacções entre o sentido e a imagem do espaço sagrado na Antiguidade. Temenos – pomoerium – sanctuarium e sua relação com os ambientes funerários. A imagem de tanques rectangulares escavados em contextos rupestres: sepulcros ou tanques rituais de sacrifício, purificação e iniciação? Imagens desta realidade no território português como visão transversal de uma plurissignificante iconografia dos comportamentos indígenas, romanos, das religiões dos mistérios e do próprio cristianismo.
IMAGENS DE ARQUITECTURAS: Quadrata, Lacus e Laciculi nos santuários rupestres do período romano em Portugal M. Justino Maciel*
Surgem no território português, especialmente na sua parte norte, correspondente à área de influência céltica, grandes rochedos apresentando cavidades de diferentes tamanhos e formas, que não raramente remontam já a épocas pré-históricas, como o atestam a existência, nessas rochas ou noutras próximas, de covinhas, decorações esquemáticas, serpentiformes e astrais. A existência de tanques quadrangulares de vários tamanhos, que inscrições rupestres associadas classificam de quadrata1 (cavidades quadrangulares), lacus2 (tanques ou lagos) e laciculi3 (tanquinhos ou laguinhos), testemunham a romanização destes santuários em rochas ao ar livre e geram hoje interrogações sobre a imagem ou as imagens que temos deste tipo de arquitectura(s), no dinamismo interactivo de forma e função. Esta problemática prende-se com o conhecimento da própria evolução dos comportamentos civilizacionais, com a vivência do território e com as imagens que se vão formando empiricamente como representações numéricas e geométricas. Quando no mundo indo-europeu se define o pomoerium ou espaço sagrado dos povoados, tal acarreta a ideia de que há um fora e um dentro, com espaços organizados e funcionais de um e de outro lado. A sucessão dos contextos civilizacionais, verificado um distanciamento no tempo, dá lugar a um desfasamento entre a imagem da forma e a imagem da função dos espaços delimitados em contextos históricos muito afastados, sendo necessário o recurso à leitura diacrónica com apoio na História e na História da Arte, na documentação escrita, nas inscrições epigráficas e na arqueologia dos lugares para restabelecer o código de comunicação. * Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 1 Inscrição de Panóias:Ver nota nº. 24. 2 Inscrição de Panóias:Ver nota nº. 26. 3 Inscrição de Panóias:Ver nota nº. 24.
Quadrata, Lacus e Laciculi nos santuários rupestres do período romano em Portugal
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Como o adjectivo rupestre indica, estamos em presença de espaços sagrados caracterizados por se identificarem com grandes afloramentos rochosos, penedos ou fragas conotados com divindades veneradas pelos povos indígenas e que os romanos já encontraram como lugares de culto, entretanto celticizados, aceitando-os e englobando-os no processo de aculturação por eles provocado. Nestes espaços surgem com frequência covas de plano rectangular que os estudiosos classificam ora de sepulturas, ora de tanques sacrificiais. O entendimento claro da sua função pressupõe o conhecimento histórico dos comportamentos culturais e da sua evolução específica. Refiramos apenas que um tanque de perfeita planta quadrangular escavado num duro rochedo granítico pressupõe o conhecimento das técnicas de cantaria, no contexto do chamado opus quadratum, ou seja, com ângulos rectos verificados a esquadro e o uso de cinzel, instrumentos que só viriam a ser introduzidos pelos romanos no nosso território, embora se verificasse já o uso do ferro trazido pelos celtas de La Tène. Quer os celtas, quer os romanos, usavam a cremação dos cadáveres e sabemos histórica e arqueologicamente que não depositavam as cinzas em espaços escavados em rochedos. A prática da inumação, por sua vez, é incrementada por influência judeo-cristã e por outras religiões orientais e nunca era feita, respeitando as tradições indo-europeias, dentro do pomoerium ou espaço sagrado da cidade, do templo ou do santuário. Dada a indubitável localização temporal dos tanques rupestres na época celtico-romana, e paleocristã, deduzimos que eles não podem ser sepulturas mas outra coisa. Quando, de facto, o são, ou foram reutilizados numa época cristã já avançada ou foram talhados com feição antropomórfica num espaço sacralizado pela nova religião, associados a construções cristãs, como basílicas funerárias, capelas ou igrejas.Vejam-se os casos das sepulturas antropomórficas escavadas nas penedias de Donões (Montalegre), nas imediações do Castro do mesmo nome e tendo junto a Capela de Santo Amaro, assim como, na Freguesia de Montalegre, mas em lugar montanhoso, as que se encontram no adro da Capela de Santo Adrião. Mais a sul, idênticas sepulturas nos afloramentos xistosos do adro da Igreja pré-românica de Lourosa (Oliveira do Hospital), como exemplo entre muitos que poderíamos apontar4. 4 É possível aqui a reutilização de um local sagrado pré-cristão. Uma cavidade arredondada com sulcos envolventes e divergentes poderá ter sido adaptada a um pequeno baptistério, numa altura – época moçárabe – em que se ensaia a adaptação do baptismo de adultos à quase exclusiva
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Não havendo dúvidas de que estes tanques, reportados ao mundo celtico-romano, tinham uma função ritual, levanta-se a questão dos sanctuaria em que se integravam. Este termo é romano e deriva de sanctus, palavra que significava sagrado e inviolável. O sanctuarium era, assim, um lugar delimitado que tradicionalmente se associava à divindade. No território português essa localização do sagrado, como dissemos, remontava já a épocas anteriores ao domínio romano e os rituais aí observados sofreram uma complexificação de acordo com a evolução dos comportamentos sociais, culturais e religiosos desde a pré-história até ao advento do cristianismo. A ideia de sanctuarium associa-se à de temenos e à de templum. O temenos reporta-se mais ao contexto grego, significando a delimitação ou corte de um espaço que é reservado à relação do homem com a divindade. O templum acusa etimologicamente a mesma origem, mas o termo é já etruscoromano, significando inicialmente o recinto sagrado delimitado pelos áugures, seja para a sua actividade divinatória, seja para os rituais de sacrifício. Como este recinto era normalmente marcado pela construção de um edifício sagrado (aedes), metonimicamente a palavra templum passa a significar o edifício e não o espaço delimitado em que foi construído. Parece-nos importante clarificar estes conceitos, pois os santuários rupestres pré-romanos e romanos eram ao ar livre e notamos que no período romano se verificou uma tendência para os enquadrar dentro ou entre construções mais ou menos influenciadas pela arquitectura clássica. Por exemplo, a chamada Fonte do Ídolo, em Braga, santuário rupestre a uma ou duas divindades indígenas, foi romanizada não só através do tipo de inscrição que aí foi gravada mas também por ter sido esculpido no rochedo o frontispício de um templo romano5. O primeiro exemplo que gostaríamos de apresentar é o de um quadratum existente numa área com bastantes testemunhos da cultura dita castreja, designadamente um laconicum do tipo Pedra Formosa, em torno do chamado Monte da Saia, no concelho de Barcelos (ver figª. pág.24). Este tanque
aplicação deste ritual a crianças, concluída que foi a cristianização de toda a sociedade na época visigótica. Passa-se então da piscina profunda com degraus para imersão à pia baptismal de dimensões reduzidas. 5 A. Tranoy, A “Fonte do Ídolo”, in Loquuntur Saxa, Religiões da Lusitânia, Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002, pp. 31-32.
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ou lacus, conhecido como Campa dos Mouros6, encontra-se aberto ao centro de um grande rochedo, no sentido este-oeste, na Freguesia de Monte Fralães, com as dimensões de 230x72x55cm respectivamente de comprimento, largura e profundidade. Guarda em volta uma moldura de 9 cm para apoio de tampa. Para entendermos a funcionalidade deste tanque exige-se o conhecimento de outras situações idênticas. Na zona apareceu uma inscrição referindo um soldado romano chamado Aurelius7 e dois baixos-relevos representando um togado e uma figura de sacrificante segurando a cabeça de um touro8.
Pias dos Mouros, Argeriz, Valpaços. © Fotografia do autor.
O segundo exemplo são dois quadrata conhecidos como Pias dos Mouros, na freguesia de Argeriz, concelho de Valpaços, também relativamente
6 A Nossa Terra, Barcelos-Freguesias, Barcelos, 1999, p. 124, com fotografia. 7 M. Cardozo, Catálogo do Museu de Martins Sarmento, Secção de epigrafia latina e de escultura antiga, 3ª ed., Guimarães, 1985, p. 85. 8 Idem, p. 159. De Frende (Baião) é proveniente um baixo-relevo onde também se vê uma cena de procissão para um sacrifício: duas personagens, uma delas togada, conduzem um touro em atitude ritual (Idem, p. 150, cópia em gesso de original hoje no Museu Nacional de Arqueologia.Vd. J. L. Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, III, Lisboa, 1913, pp. 482-483, fig. 254). Outros dois baixos-relevos
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perto de um povoado pré-romano e romanizado, o chamado Castro de Ribas9. Aqui verifica-se a existência de dois tanques dispostos paralelamente, igualmente no sentido nascente-poente, um mais comprido do que o outro. O maior mede 250x62x30cm e o menor 202x60x33cm. Não se registam aqui molduras indiciadoras de aplicação de tampa mas, em contrapartida, o rochedo em que se encontram escavados apresenta aos lados, paralelamente, rebaixamentos cortados a cinzel. Estes têm sido interpretados como escadas de acesso10, mas na realidade serão encaixes para o apoio horizontal de opera quadrata, silhares cantariados de um aedes ou edifício sagrado que, na época romana, ali teria sido construído para melhor delimitação do templum ou temenos do santuário11. O terceiro exemplo que escolhemos por ordem de importância, significado e contributo para a percepção da funcionalidade destes lacus rupestres é o santuário da Mogueira, localizado numa alcantilada e rochosa colina sobranceira ao rio Douro, na freguesia de São Martinho de Mouros, concelho de Resende. Tem sido considerado um castro mas, de facto, todo o conjunto é um enorme locus sacer com entalhes, banquetas, degraus, altares, covas e covinhas, pequenos tanques e mesmo um túnel que leva a um espaço subterrâneo que lembra os antros de iniciação mitraicos. Parece tornar-se aqui Mogueira, São Martinho de Mouros, Resende. clara a evolução destes espaços sagrados Acesso a zona subterrânea. © Fotografia do autor. encontrados na mesma área de Frende mostram-nos uma dança ritual e uma cena de luta, sendo de aceitar que se enquadrem no mesmo contexto. Frende encontra-se na margem norte do rio Douro e não longe de santuários rupestres como é o caso do da Mogueira, de que falaremos abaixo, na margem sul do mesmo rio (J.L.Vasconcelos, op. cit., pp. 474-477, figs. 251 e 252). 9 A.M.Freitas, As pias dos Mouros, Argeriz, Carrazedo de Montenegro, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia (Porto) 23 (1978) 253-266. 10 A.Tranoy, Panóias ou les rochers des dieux, in Conimbriga (Coimbra) 43 (2004) 89. 11 A. Rodríguez Colmenero, Deorum Temene. Espacio sagrado y santuários rupestres en la Gallaecia romana. Un intento de clasificación, in Arqueologia da Antiguidade na Península Ibérica, Actas do III Congresso de Arqueologia Peninsular, VI, Porto, 2000, 167.
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desde a Pré-História até à Antiguidade Tardia, com o incremento das religiões indígenas, romanas e orientais. A informação do geógrafo grego Estrabão, nos inícios do séc. I da nossa era, de que eram sacrificadas hecatombes ao deus Ares/Marte pelos povos montanheses do Noroeste encontra aqui possível infra-estrutura material, dados os espaços alargados onde se talharam a picão banquetas, escoadouros e até argolas de pedra na rocha. Os tanques não são dominantes na Mogueira, mas são significativos e, pela sua forma não totalmente quadrata, indiciadores de uma romanização mais antiga, mas já apresentando indícios de molduras para tampa e entalhes para grelhas de queima nos sacrifícios. Uma entre outras inscrições rupestres do séc. I. d.C. informa-nos do culto local ao deus Cat(urus), que teria uma característica guerreira semelhante ao de Ares/Marte12. Na Mogueira, com efeito, parecem sentir-se os espaços do ritual seguido pelos povos castrejos do noroeste hispânico, de acordo com as palavras de Estrabão: Comem principalmente cabrito, e imolam a Ares um bode, assim como prisioneiros e cavalos. Fazem também hecatombes por cada espécie, à moda dos gregos, como diz Píndaro: sacrificar tudo às centenas13. Este autor identifica o deus Ares. A inscrição rupestre da Mogueira referirá o deus Caturus, divindade indígena com características idênticas. O elo de ligação estará na ancestralidade comum de celtas, gregos e romanos no mundo indo-europeu. A associação do deus romano Marte a divindades celtas verificou-se também nas Gálias. Júlio César diz-nos que os Gauleses sacrificavam animalia (seres vivos) a Marte14. Os sacrifícios de prisioneiros são também documentados em outros pontos do mundo celta, como aqueles que eram feitos a Esus/Marte15. No território transmontano, em Ousilhão (Vinhais), no contexto do castro local (Torre) está documentada uma ara ao deus Laesus16, nome cuja semelhança com Esus poderá, a nosso ver, enquadrar-se na mesma interpretatio. 12 V. Mantas, A inscrição rupestre da Estação Luso-Romana da Mogueira (Resende), in Revista de Guimarães (Guimarães) 94 (1984) 369. 13 F. Lasserre, Strabon, Géographie,Tome II (Livres III et IV), Paris, Les Belles-Lettres, 1966, p.57. Em nota, F. Lasserre sugere que Estrabão veicula aqui, ao pôr em paralelo costumes lusitânicos e gregos, informações provenientes de Asclepíades de Mirleia. Texto grego: Tragofagouæsi de; mavlista, kai; tw/æ ]Arei travgon quvousi kai; tou;ı aijcmalwvtouı kai; i{ppouı. poiouæsi de; kai; eJkatovmbaı eJkavstou gevnouı JEllhnikwæı, wJı kai; Pindarovı fhsi pavnta quvein eJkatovn (Trad. nossa). 14 De Bello Galico,VI, 17. 15 E. Thevenot, La pendaison sanglante des victimes offertes à Esus-Mars, in Hommages à Waldemar Deonna, Latomus (Bruxelles) 28 (1957) 442-449. 16 A. Redentor, Epigrafia romana da região de Bragança, Lisboa, 2002, pp. 56-57.
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Fragas de Panóias, Valnogueiras, Vila Real. Escadas de acesso ao Sanctuarium. © Fotografia do autor.
Todavia, o exemplo mais claro – e que nos ajuda a entender os já referidos, assim como outros menos estudados e conhecidos – é o das Fragas de Panóias, santuário rupestre existente na freguesia de Valnogueiras, Vila Real de Trás-os-Montes, não só pela convergência das imagens dos lacus com as informações veiculadas pelas inscrições existentes na própria rocha, como também por estas referirem explicitamente deuses indígenas, deuses romanos e um deus ligado às religiões orientais, Serápis, que mais não é do que uma versão helenística do deus egípcio Osíris17. Este santuário é já conhecido desde o século XVIII, através do Pároco local, António Rodrigues de Aguiar18 e do historiador Jerónimo Contador de Argote19, que nos deram conta das inscrições existentes junto a um conjunto impressionante de tanques com marcas de entalhes para escoadouros, colocação de tampas, montagem de grelhas e embasamento de construções ou templos (aedes). Parte dessas inscrições, em latim e em grego, ainda hoje se podem observar no local e dão-nos conta de que, existindo já há muito tempo este santuário, o mesmo 17 R.Turcan, Rome et ses dieux, Paris, 1998, p. 181. 18 A. R. Aguiar, Relação da Freguesia de São Pedro de Valnogueiras, 1721, Manuscrito da Biblioteca Nacional publicado por A. Rodríguez Colmenero, O santuário galaico-romano de Panóias (Vila Real, Portugal). Novos dados para a sua reinterpretação global, Santiago de Compostela, 1999. 19 J.C. Argote, Memórias para a história eclesiástica do arcebispado de Braga, I, Lisboa, 1732, pp. 352 ss.
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foi visitado nos finais do séc. II d.C. ou princípios do séc. III d.C., ou seja, já no dealbar da Antiguidade Tardia, por um legado imperial talvez deslocado à região para inspeccionar a produção mineira20. Este legado, chamado Caius C. Calpurnius Rufinus, reconhecendo a importância religiosa do local, mandou gravar nas penedias, com o seu nome, a descrição dos cerimoniais que ali tradicionalmente se cumpriam, tendo aprofundado a sua romanização através da clarificação e ordenação desses ritos, designadamente sob a nova égide dos deuses orientais e com possível construção de um ou mais edifícios sagrados (aedes), cobrindo o anterior santuário ao ar livre, como o parecem demonstrar algumas marcas escavadas na rocha.
Fragas de Panóias, Valnogueiras, Vila Real. Tanques do Sanctuarium. © Fotografia do autor.
As inscrições referem-se às divindades ali veneradas: os dii et deae, ou seja, os deuses e as deusas em geral e, depois, os numina ou divindades protectoras dos Lapíteas, entendendo-se estes como os povos indígenas da zona: Aos deuses, às deusas e a todos os numes dos Lapíteas, o claríssimo varão
20 A.Tranoy, op. cit, pp. 89-90.
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Gaio C. Calpúrnio Rufino consagrou, com este templo, um tanque eterno, no qual se queimam as vítimas em cumprimento de voto21. Noutra inscrição, em grego, mas assinada em latim com o nome do dedicante, refere-se Serápis, deus egípcio protector dos mortos, a quem é oferecida uma cavidade com grelha (gastra) para queima dos animais sacrificados: Gaio C. Calpúrnio Rufino, varão claríssimo, consagrou ao mui alto Serápis com uma cavidade e mistérios22. Uma terceira epígrafe refere os deuses severos, qualificação que dizia respeito aos também deuses infernais Plutão e Prosérpina: Gaio C. Calpúrnio Rufino, varão claríssimo, consagrou neste recinto um templo aos deuses severos aí colocados23. Ainda outra documenta-nos sobre o desenrolar do cerimonial, sendo o mais explícito texto sobre os ritos seguidos e sobre a funcionalidade dos vários tipos de tanques sacrificiais: Aos deuses e deusas deste espaço sagrado.As vítimas, que caem mortas, aqui são imoladas.As entranhas são queimadas dentro dos reservatórios quadrangulares (quadrata) que se encontram em frente. O sangue derrama-se sobre os pequenos lagos (laciculi) próximos. Gaio C. Calpúrnio Rufino24. Um quinta inscrição como que remata o fim do ritual ali cumprido, apontando para uma purificação dos iniciandos nos Mistérios que ali teriam lugar. No lacus próximo desta inscrição os sacrificantes lavavam-se e limpavam-se do fumo, do sangue e da gordura das vítimas25: Com este (templum) Gaio C. Calpúrnio Rufino, varão claríssimo, consagrou aos deuses um tanque (lacus) no qual, segundo o ritual, se faz a mistura26. Estas epígrafes, indiciando um caminho ou Via Sacra, com várias etapas para cumprimento de rituais, dão-nos conta do percurso seguido entre tanques no sanctuarium rupestre de Panóias. Dada a referência a Serápis, há mesmo 21 G. Alföldy, Die Mysterien von Panóias (Vila Real, Portugal), in Madrider Mitteilungen (Mainz) 38 (1997)176-246. G. Alföldy, Panóias: O santuário rupestre, in Loquuntur Saxa, Religiões da Lusitânia, Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002, p. 212: Diis deabusque aeternum lacum omnibusque numinibus et Lapitearum cum hoc templo sacravit G(aius) C(…) Calp(urnius) Rufinus u(ir) c(larissimus). In quo hostiae uoto cremantur. 22 Ibidem: JUyivstw/ Serav/pidi su;n gavst/ra/ kai; / musta/rivoiı G(aius) C(…) Calp(urnius) Rufinus u(ir) c(larissimus). 23 Ibidem: Diis Seve(r)is in hoc templo lo[ca]t[i]s aedem G(aius) [C(…) C]alp(urnius) Rufinus u(ir) [c(larissimus)]. 24 Ibidem: Diis deabusque templi huius. Hostiae, quae cadunt, hic immolantur. Exta intra quadrata contra cremantur. Sanguis laciculis iuxta superfunditur. [G(aius) C(…) Calp(urnius) Rufinus u(ir) c(larissimus)]. 25 Ibidem. 26 Ibidem: Diis cum hoc et lacum, quo uoto miscetur, G(aius) C(…) Calp(urnius) Rufinus u(ir) c(larissimus).
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quem pense estarmos em Panóias perante um templo a esta divindade, ou seja, perante um Serapeum27. Pelo menos, nisso o teria transformado o senador Gaio Calpúrnio Rufino no início da Antiguidade Tardia. A confirmar-se a existência de um túnel visível ainda no séc. XVIII, segundo o testemunho do Pároco de Valnogueiras28, seria mais clara a hipótese de aqui se terem celebrado iniciações aos mistérios serapaicos, assim como isíacos e mesmo mitraicos29. Os testemunhos de Panóias permitem-nos lançar um pouco mais de luz sobre o grande número de tanques de diferentes formas que nos surgem escavados nas penedias de vários pontos do nosso território desde o Minho e Trás-os-Montes até ao Alto Alentejo30. Lugares há em que não há tanques mas inscrições significativas que convergem com outras informações. Recordemos a inscrição rupestre do chamado Cabeço de Fráguas, Pousafoles, Sabugal: Uma cordeira para Trebopala e um porco para Laebus, uma vitela para Iccona Loimina, uma ovelha de um ano para Trebaruna e um touro de cobrição para Reva Tre…31. Nesta inscrição ressalta a correlação estreita entre os sacrifícios indígenas e a
27 S. Lambrino, Les divinités orientales en Lusitanie et le sanctuaire de Panóias, in Bulletin dês Études Portugaises et de l’Institut Français au Portugal (Coimbra)17 (1953) 108-115. A. Rodríguez Colmenero, Deorum Temene…, op. cit., pp. 188-189. G. Alföldy, Die Mysterien…, op. cit., 197-200. 28 Vd. nota 18. 29 A. Rodríguez Colmenero, op. cit., pp.191-194. 30 O ponto mais a sul do território português onde podemos observar a existência de lacus situa-se hoje, tanto quanto é do nosso conhecimento, nas margens da Barragem do Caia, na Herdade da Lentisca ou da Rocha, freguesia de Santa Eulália (Elvas), onde existe um tanque, também com rebordo para tampa e/ou para uso de grelha, a algumas dezenas de metros das ruínas da Capela de Santa Catarina (Fig. da pág. 36). Nestas ruínas, na zona do altar, foi encontrada uma ara com inscrição a Belona, dos princípios do séc. I d.C., que, a nosso ver, poderá relacionar-se com o ritual dos lacus (T.D.Maciel, M.J.Maciel e J. d’Encarnação, Ara a Belona, de Santa Eulália (Elvas), in Ficheiro Epigráfico (Coimbra) 46 (1994) 207. O dedicante desta ara, chamado Valgius, como denota o seu nome, é um indígena. Poderemos, pois, estar aqui também perante a continuidade de cultos préromanos. O culto à deusa da guerra Ma Belona, que não parece integrar-se nos rituais dos mistérios, encontra-se documentado na Península Ibérica praticamente apenas na região de Cáceres, sendo esta inscrição a primeira encontrada no território português a esta deusa, podendo dizerse que também foi encontrada próxima daquela região.Tem-se colocado igualmente a hipótese da sua associação a uma divindade indígena (J. Alvar, Cultos orientais e mistéricos na província da Lusitânia, in Loquuntur Saxa, Religiões da Lusitânia, Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002, p. 208. 31 F. P. Curado, A “ideologia tripartida dos Indoeuropeus” e as religiões de tradição paleohispânica no Ocidente Peninsular, in Loquuntur Saxa, Religiões da Lusitânia, Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002, p. 71: Oilam Trebopala indi porcom Laebo, comaiam Iccona Loiminna, oilam usseam Trebarune indi taurom ifadem Reue Tre…
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Penascrita, Vilar de Perdizes, Montalegre. Altar rupestre. © Fotografia do autor.
prática do suouetaurilium – sacrifício triplo de um porco, uma ovelha e um touro – por parte dos romanos, denotando o tronco comum indo-europeu. Igualmente significativa é a inscrição de Lamas de Moledo (Castro Daire, Viseu) em que se refere a oferta de um cordeiro e de um porco a uma divindade indígena32. Também poderíamos descortinar a proximidade de inscrições votivas em aras e altares dedicados a numes autóctones com a existência de santuários rupestres. O constatar de divindades conotadas com as montanhas, com as águas, fontes, rios e fragas também não raro se conota com santuários, como é o caso da chamada Penascrita, em Vilar de Perdizes (Montalegre), onde um altar rupestre com indícios de inscrições e pequenas cavidades se conotará com o deus da montanha local, Laraucus, que deu o nome à Serra do Larouco33. O culto das rochas e dos penedos é referido ainda numa fase adiantada da cristianização, no séc. VI, por São Martinho de Dume, que no seu De 32 Idem, p. 73. 33 A. Rodríguez Colmenero e A. L. Fontes, El culto a los montes entre los Galaico-romanos, in Actas do Seminário de Arqueologia do Noroeste Peninsular, III, Guimarães, 1980, pp. 21-35.
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Herdade da Lentisca ou da Rocha, Santa Eulália, Elvas. Tanque sacrificial possivelmente conotado com o culto a Belona. © Fotografia do autor.
Correctione Rusticorum critica os sacrifícios nos altos montes e nos bosques frondosos34, assim como a erecção de altares aos deuses onde lhes sacrificavam sangue, não só de animais como até de homens, acreditando presidirem aos rios, às fontes ou às florestas35. Diz-nos ainda este bispo do Norte de Portugal e
34 De Correctione Rusticorum, 7: Ut in excelsis montibus et in siluis frondosis sacrificia sibi offerrent. 35 Idem, 8: Et aras illis constituerent, in quibus non solum animalium sed etiam hominum sanguinem illis funderent. Praeter haec autem multi daemones ex illis qui de caelo expulsi sunt aut in mare aut in fluminibus aut in fontibus aut in siluis president…
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Apóstolo dos Suevos que, no seu tempo, se acendiam velas junto de penedos, de árvores, de fontes e nas encruzilhadas dos caminhos36.
Barragem do Caia, Santa Eulália, Elvas. Lacus possivelmente conotado com o culto a Belona, junto a estruturas romanas. © Fotografia do autor.
Poderíamos alargar esta nossa abordagem a outros locais e monumentos, nos quais constatamos in genere que os romanos já encontraram esta tipologia de temenos sagrado quando chegaram ao nosso território. A referência de Estrabão, no início da nossa era, às hecatombes como forma de sacrifício celebrada pelo povos do Noroeste ajuda-nos a enquadrar estes espaços, em paralelo com as informações provenientes da epigrafia, designadamente aquela que nos fala da imolação de porcos, ovelhas e touros, onde vemos a comum origem indoeuropeia de celtas, gregos e romanos. Permitemnos mesmo recuar mais um pouco no tempo e recordar a prática do Samain por parte dos povos celtas, festa contínua em honra do deus Cernunnus 36 Idem, 16: Nam ad petras et ad arbores et ad fontes et per triuia cereolos incendere, quid est aliud nisi cultura diaboli? (Texto e tradução in M.J.Maciel,Texto sobre crendices, ontem, por São Martinho de Dume, in Actas do III Encontro sobre História Dominicana, II, Arquivo Histórico Dominicano Português, IV/2, Porto, 1989, pp.309-320. Vd. M.J.Maciel, O “De Correctione Rusticorum” de São Martinho de Dume, Sep. de Bracara Augusta, Braga, 1980, p. 72.
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comemorando o solstício de Inverno com o abate e consumo da maioria das reses criadas durante o ano, deixando apenas aquelas que seriam necessárias ao renovamento dos rebanhos no ano seguinte37. Nesta festa que, praticamente, durava até à Primavera, eram venerados os deuses correspondentes à ideologia das três funções, adstritos respectivamente à religião, à defesa e à economia das populações. É possível associar deuses indígenas dos povos hispânicos, cujo nome nos chegou através da epigrafia da época romana, a cada uma destas funções. É neste contexto em evolução sob o domínio romano que nos surgem imagens de quadrata, lacus e laciculi que hoje necessitam de investigação para entendimento da correspondência entre a sua forma e a sua funcionalidade.
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37 M. J. Maciel, Da festa indo-europeia à festa transmontana: o uso da máscara na comemoração do solstício de Inverno, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Lisboa) 17 (2005) 183-208.
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Conímbriga, Casa dos Repuxos. Labirinto quadrado de quatro sectores, em trança, com corredor pela esquerda e com cabeça de Minotauro no centro – Le Décor, II, est. 323b In Mosaicos de Conímbriga, X Colóquio Internacional, Museu Monográfico de Conímbriga, 2005, p.13.
RESUMO ABSTRACT An image expresses, always, the vision of Man and the World in each historical context; recurrently used through time, the image of the maze, in Roman context – coherent with its cultural reference, the Greco-Roman mythology –, settles an apothropaic message.
«Uma imagem expressa, sempre, a visão do Homem e do Mundo em cada contexto histórico; recorrentemente utilizada ao longo dos tempos, a imagem do labirinto, no contexto romano – na coerência do seu referente cultural, a mitologia greco-romana – tem em vista uma mensagem apotropaica.»
O LABIRINTO NO MOSAICO PAVIMENTAL ROMANO Francine Alves*
No atrium/peristilado da chamada Casa dos Repuxos (Conímbriga), um dos painéis do tesselado1 pauimentum apresenta padronizada2 imagem do labirinto: em técnica branca e negra, o campo de representação está dividido em quatro sectores preenchidos por meandros. Esta fórmula iconográfica, tão querida da musivária da Antiguidade, configura a planta3 do labirinto – espaço estruturado por eixos ortogonais que geram a contínua subdivisão do espaço, com uma uniformidade que impede a orientação – e caracteriza-se pela pálida apetência decorativa, bem manifesta, no caso concreto, por comparação aos restantes painéis em opus tessellatum. Olhando o pavimental programa decorativo, torna-se claro que a adaptabilidade e facilidade de execução do modelo musivário não motivaram a escolha; por isso, a colocação de tal modelo, em contexto arquitectónico tão privilegiado, como o atrium4, revela uma intenção que se prende, necessariamente, com o conteúdo intrínseco da imagem representada. * Doutoranda em História da Arte da Antiguidade. 1 Na feitura do pauimentum (face visível da estrutura base do edifício) Vitrúvio recomendava duas técnicas alternativas: «supra nucleum exacta pauimenta struantur siue sectilia seu tesseris» (De architectura,VII,1,3); neste pavimento da Casa dos Repuxos optou-se pelas tesseras pequenas (opus tessellatum). 2 Cfr. A.PHILLIPS sobre «the standard scheme with four sections»; sem acompanharmos o entendimento de que a representação pavimental do tema do labirinto é determinada por intenção decorativa, relevamos, aqui, a sua observação de que «all the mazes occuring in antiquity are meander mazes» - A. PHILLIPS, 1992, The Topology of Roman Mosaic Mazes, in LEONARDO (Oxford) 25, pp.323 e 322. 3 Trata-se, pois, de uma imagem realista, um esquema realista: é um documento gráfico que projecta um limite horizontal do espaço, o chão. Plasma-se, aqui, a função comunicativa da arquitectura, por meio de um significante, a forma arquitectónica, cujo tratamento, pelo seu realismo, levaria Plínioo-Velho a dizer que o que se vê nos pavimentos em mosaico deve ser entendido como um espaço muito maior do que o representado. (Naturalis Historia, XXXVI, 85). 4 Esta denominação (diferentemente dos remotos tempos em que designava toda a casa, composta por um único compartimento sem janelas e com uma abertura no topo, para entrada de luz e saída de fumos) visa o espaço aberto em volta do qual se organizam os vários compartimentos da habitação.
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Tratando-se de uma imagem representativa de uma tipologia arquitectónica com existência real, um humani impendii opus5, no dizer de Plínio-o-Velho, ela remete para um dos quatro6 remotos labirintos elencados pelo naturalista romano, que encontrou a morte quando observava, de perto, os fenómenos vulcânicos que sepultariam Herculano e Pompeios... Dos labirintos mencionados por Plínio é o cretense que é sugerido, na fig. da pág. 40, pela temática e centralidade da figuração que, interrompendo a bicromia e o geometrismo, apresenta uma colorida7 cabeça animal, o Minotauro. De facto, o desorientador espaço agenciado em redor da figuração evoca o labirinto/palácio8 de Cnossos, onde inúmeras salas e múltiplos corredores, alguns sem saída, também se distribuíam em volta de extenso pátio, local do ritual sagrado do ‘salto do touro’9.
5 «Dicamus et labyrinthos, uel portentosissimum humani impendii opus, sed non, ut existimari potest, falsum» (NH 36, 84). 6 O labirinto de Heracleópolis (Egipto), o labirinto de Creta (construído por Dédalo com base no pioneiro modelo egípcio), o labirinto de Lemnos e o etrusco labirinto do rei Porsina (ibidem). 7 Após a fase do branco e negro que percorreu os pauimenta desde finais da República até finais do Principado, a policromia – essa «elaborata arte picturae ratione», no dizer de Plínio-o-Velho, (NH 36,184) – volta à musivária ocidental, retomando-se, assim, uma tradição helenística. O colorido ressurgimento ocorre, por via africana, em época severiana (192-235), dizendo J. M. BLÁZQUEZ: «La técnica del mosaico en color es de origen sirio y llegó a Hispania, quizà a travès del norte de África, a finales del siglo II… La introducciòn de la policromia en el mosaico igualmente se data en anos de crisis económica, como fueron los años de Marco Aurelio y de Commodo…» (1993, Mosaicos romanos de España, pp. 16-17). O regresso da cor, neste preciso período de crise, aponta para uma estreita relação com a expansão dos cultos orientais, motivada por «l’incertitude devant l’ avenir», e, se «Parler des cultes orientaux dans l’ Empire romain, c’est avant tout étudier leur développement dans la partie occidentale de l’ Empire et leur influence sur la societé …», importa ter em conta que «… ces cultes ont apporté quelque chose de nouveau: des liturgies associés à des émotions fortes par l’ utilisation de la musique et de la couleur…» J. P. MARTIN, 2001, Histoire Romaine, pp. 303 e 305. 8 A palaciana finalidade do labirinto corresponde, segundo F. G. ALONSO, ao «sistema palacial que se desarrolló en Mesopotamia y en el Proximo Oriente a partir del III milenio a.C. Alcanzó su maxima difusión a partir del 1400 a.C., y perduro hasta el desarrollo de las ciudades-estado fenicias entre los siglos X y VI» e, continua: «En las cultura minóica y micénica el palacio era el centro de la vida política, administrativa, económica y religiosa del Estado» referindo que «La sucesión de pasadizos y salas profusamente decoradas ejercia un efecto psicológico que la situaba en posición de inferioridad respecto al monarca o los habitantes del palacio, un recurso de la arquitectura monumental empleada como simbolo de prestigio del poder» – F. G. ALONSO, El laberinto del Minotauro – El palacio de Cnossos, in Historia-National Geographic (Barcelona) 25 (2006), pp. 58-69. 9 Vestígios de frescos do palácio dão testemunho desta cerimónia, sem derramamento de sangue, que consistia em um homem, ou mulher, agarrar o touro pela frente e saltar para o seu dorso.
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Registo histórico do ritual ficou na mitologia do povo grego, pela criação10 da lenda11 do Labirinto, lenda do Minotauro, formulação mítica da grega sujeição à dominação cretense, no período de governação dos soberanos da dinastia dos Minos (séc.16 a.C.). Na lenda, que reflecte os receios e anseios dos Gregos, merece relevo a sagaz associação entre duas figuras emblemáticas da civilização minóica, o touro sagrado e o soberano; a associação ganha toda a finura ao ter-se em conta que as variantes na configuração do emblema dos Minos têm como objecto de representação, não só o crescente lunar, ou o machado duplo (labrys12), mas também, os chifres de touro. Conta a lenda que Teseu, filho do rei de Atenas – no cumprimento da obrigação imposta à cidade de enviar jovens, com regularidade, ao soberano minóico, para o aprendizado dos costumes cretenses – foi a Cnossos para se iniciar na prova do ‘salto do touro’; a difícil prova foi superada pelo herói que, não só venceu e matou o Minotauro, o monstro humano com cabeça de touro, como conseguiu sair do labirinto, com a ajuda de um fio orientador que lhe fora dado por Ariadne, filha de Minos... Este conteúdo lendário identifica-se com o conteúdo das representações antigas do labirinto, mas só por si, não dá resposta cabal à questão, atrás enunciada, sobre a intenção que presidiu à colocação da imagem ilustrada na fig. da pág. 40, do atrium da Casa dos Repuxos, ou seja, no coração da casa, no peristilar corredor a que se acede, ultrapassado o ostium13 e atravessado o uestibulum14. A resposta encontra-se, coerentemente, na mitologia – referente cultural da Antiguidade – na personagem heróica da lenda do Labirinto; dos feitos e proezas de Teseu, merece relevo, aqui, a protecção que dava aos viajantes (livrando-os de monstros como Procustes), ou a hospitalidade que concedeu a Édipo, banido de Tebas, no fim da vida…
10 «Puede hablarse de una verdadera poética mitológica griega – en el sentido griego de poiesis como creación – que impregna aquí y allá toda su poesía épica y lírica, el drama o su mismo pensamiento filosófico, y es el fundamento de la mayoría de sus creaciones plásticas como la arquitectura, la escultura o la cerâmica», Ricardo OLMOS, 1997, Mitos y ritos en Grecia, p.5. 11 «O mythos é astúcia presente e evocação de acontecimentos passados», F. JESI, 1988, O Mito, p.21. 12 Alguns autores encontram aqui a origem do termo ‘labirinto’. 13 Entrada da casa, junto à rua. 14 Compartimento situado entre o ostium e o atrium e que servia – em alternativa do atrium – para o dominus receber a salutatio dos clientes e conceder-lhes a sportula.
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É este referente de boa hospitalidade, inerente ao lendário vencedor do Minotauro, que confere singular significado às representações do labirinto; na conotação heróica – que afasta alternativa leitura do labirinto como um espaço de reclusão, espaço de morte – filia-se a exclusiva e positiva significação de espaço de protecção, espaço de vida (enfaticamente expresso em representações de maior amplitude narrativa, por meio do tema da muralha, como se verá em duas ilustrações abaixo). Na identificação de tal significação com o conteúdo intrínseco da imagem do labirinto assenta a intenção que preside às suas representações; tal intenção – na coerência da mentalidade supersticiosa15 da Antiguidade – visa um fim profiláctico, apotropaico16, por meio da publicitação de importante e tranquilizadora mensagem que diz estar-se em espaço protegido, ao abrigo do mau olhado, espaço de hospitalidade; é, em suma, uma mensagem de boas vindas. Mensagem de boas vindas que se plasma na fig. da pág. 40, e, por isso, justifica a especial colocação com a inerente derrogação da intenção decorativa . É esta mensagem que vai determinar o acentuado acolhimento do lendário tema pela musivária de contexto romano; por isso, em Conímbriga como em outros lugares do Imperium, representações do tema do labirinto – em linguagem mais ou menos simplificada, vertida por imagens arquitectónicas – animariam os pauimenta, independentemente do uso do respectivo contexto espacial, como, p.ex., em termas. Igual mensagem apotropaica e profiláctica está vertida nesta representação do tema do labirinto, em mosaico de Conímbriga, de contexto arquitectónico desconhecido.
15 Relevada, p.ex., por M. RENARD, a propósito da representação do asarôton, celebrizada por Sosus, em Pérgamo. O tema consiste na representação de restos de alimentos (v.g., legumes, frutos, espinhas) no pavimento, e assenta na crença antiga que tinha por mau augúrio varrer o chão quando alguém terminava a refeição… Os antigos acreditavam na permanente presença da alma dos mortos na habitação, especialmente em redor da mesa para se alimentarem dos restos que caíam, por isso, procuravam não frustrar tão corpórea necessidade mantendo as almas alimentadas para, desse modo, atrair benfeitorias para os vivos e evitar temidas vinganças… Nesta crença assenta a poética da representação do tema do asarôtos oikos (sala não varrida) em pavimentos helenísticos ou romanos, e leva RENARD a concluir que, nos mosaicos: « certains détails ne sont pas dus au hasard ou à la fantaisie d’un artiste… le thème de l’asarôton…(est) riche en valeurs symboliques». (1956, ‘Pline l’Ancien et le motif de l’asarôtos oikos’, in Extrait de Hommages à Max Niedermann, pp. 307-314). 16 Termo de raíz grega, apotropein, significa fazer girar, obrigar a dar a volta. R OLMOS, op.cit., p.21.
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Conímbriga, Museu. Labirinto em Conímbriga - séc.II d.C. In A. M. Alarcão, Museu Monográfico de Conímbriga. Lisboa, IPM, 1994, p.58, estampa X.
Em técnica branca e negra, a composição acompanha o mesmo esquema padrão: o campo está dividido em quatro sectores com meandros e apresenta, no centro, a figuração de um busto de personagem híbrida, o Minotauro. A cabeça humana do Minotauro apresenta-se como um desvio da representação clássica, o que não altera a intenção da representação, o conteúdo da mensagem, dada a voluntária hibridez da personagem, expressamente mitológica17, coerente com a romanidade do seu contexto histórico, que a datação atribuída corrobora. Diferentemente da fig. anterior, esta composição de superfície rectangular é contornada, também em técnica bícroma, por uma cercadura geométrica que apresenta uma linha de torres e aparelho isódomo com merlões em T, configurando, deste modo, o tema da muralha. Desta variante da representação do tema do labirinto, frequente no Imperium, decorrem modelos simplificados, como o que se apresenta, também 17 A propósito de modelos iconográficos como este, R. OLMOS, op.cit., p.21, observa: «Tanto el mito como la iconografia del arcaísmo se muestram obsesionados por la antítesis de fuerzas que emergem de la naturaleza: se concibe el mundo poblado de démones, de monstruos, de seres fabulosos, mucha veces terroríficos y amenazantes. Pero también el mundo es una unidad de opuestos y estos seres fabulosos, como las esfinges, las sirenas, los centauros, las quimeras, mezclan y sintetizan en su compleja naturaleza diversos elementos del mundo animal y hasta humano. Pues el hombre es una parte más de esse universo de fuerzas contrapuestas».
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em Conímbriga18, na denominada Casa de Cantaber, onde a intenção apotropaica é expressa por linguagem mais concisa: a imagem arquitectónica reserva-se à moldura da composição de superfície preenchida com temática geométrica.
Conímbriga, Casa de Cantaber. A simplificação do tema do labirinto na Casa de Cantaber. Compartimento de função indeterminada. In Mosaicos de Conímbriga, X Colóquio Internacional. Museu Monográfico de Conímbriga, 2005, p.64.
Neste mosaico, a moldura arquitectónica, uma cortina de torres com muralha, expressa, igualmente mas por narrativa mais simplificada, a mensagem de espaço protegido inerente às representações do tema do labirinto. Tal significação decorre da estreita relação entre muralha e pomoerium (post murum), limite circundante do espaço urbano, espaço dos vivos; no exterior do pomoerium não só era vedada a tomada de auspícios da cidade como era o espaço reservado aos mortos. Esta representação e a coetânea ilustrada na fig. anterior, convergem no tratamento tendencialmente realista das suas torres, tratamento esse claramente desenvolvido na imagem da fig. seguinte. Trata-se de um mosaico tem por contexto de origem um compartimento do complexo residencial da Villa19 de Torre de Palma (Monforte), e inse18 A concentração, em Conímbriga, de mosaicos com a representação do labirinto é apontada por J. M. BAIRRAO OLEIRO, O tema do labirinto nos mosaicos portugueses, in VI Colóquio Internacional sobre Mosaico Antiguo (Palencia-Merida) (1990), p.273. 19 Não obstante o contexto rústico convém ter em conta que as «Villae romanas...revelam sempre a preocupação, por parte dos seus proprietários, e logo a partir do séc. II, de transplantar para o campo a magnificência da vida citadina, sobretudo nos aspectos arquitectónicos», J. MACIEL, 1999, A Antiguidade Tardia no «Ager» Olisiponense – O mausoléu de Odrinhas, p.47.
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Villa romana de Torre de Palma (Monforte). A representação inovadora do labirinto (Torre de Palma) – séc. IV d.C. In: J. Lancha, O Mosaico das Musas, Torre de Palma. Lisboa, MNA, 2002, p.38, estampa XI.
re-se como um painel da composição de superfície desenvolvida por esquema compartimentado e orientadamente figurado. Variante tardia da imagem do labirinto, mostra a evolução na representação de um alçado de edifício fortificado com merlões e seteiras e apresenta, em primeiro plano, a imagem de Teseu junto a um Minotauro que, em desvio da versão clássica, tem cabeça humana e corpo animal. A moldura da composição não segue fórmula de motivos de arquitectura militar, mas não rejeita a inspiração no ornatus arquitectural (dentículos) e, coerentemente, verte um discurso espacial que se traduz na delimitação do espaço de representação20. O conteúdo intrínseco da imagem do labirinto, ou seja, a sua significação, mantém-se, apesar da alteração do esquema visual: o intencional enquadramento do Minotauro na arquitectónica tipologia defensiva (o labirinto) evidencia um carácter apotropaico que sustenta, necessariamente, a tradicional mensagem profiláctica. Contudo, os mencionados desvios da representação clássica, mormente a opção pela verticalidade na representação espacial, em detrimento da tradicional horizontalidade, apontam para um contexto histórico de transição, confirmado na ilustração seguinte. 20 A funcionalidade deste tipo de cercadura é apontada por A. BALIL: «La orla de dentellones...es frequente en los mosaicos figurados, singularmente en todos aquellos cuya composición implica subdivisiones, durante el siglo III d.C., probablemente su utilización debió aparecer a fines del siglo II d.C., quizás en Africa, y es possible alcancen los primeros años del siglo IV d.C.» – Alberto BALIL e Tomas MAÑANES, ‘Estudios sobre mosaicos romanos’ VII, in Studia Archeologica (Valladolid) 59 (1980), p.8.
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Villa romana de Torre de Palma (Monforte). Mosaico dos Cavalos de Torre de Palma. O labirinto na inspiração ornamental. © Museu Nacional de Arqueologia, fotografia de José Pessoa, DDF-IMP, 1993.
O mosaico da fig. desta página, contemporâneo do anterior e pertencente a outro compartimento do mesmo complexo residencial da Villa de Torre de Palma, apresenta substancial divergência de tratamento: uma trança polícroma, de dois cordões em meandro fraccionado de suásticas de volta simples, enquadra21 rectângulos figurados. Claramente inspirado no labirinto, o esquema compositivo22 deste mosaico consubstancia uma metamorfose do conteúdo intencionalmente funcional em conteúdo ornamental, rejeitando a forma arquitectónica, a conotaçção espacial. Nesta rejeição da forma, do significante (a planta/alçado) dilui-se a respectiva conotação cultural (significado) e, omisso o referente (Teseu), perde-se a própria significação: mensagem apotropaica. Espelha-se, aqui, um Homem novo em busca de uma nova estética: afasta-se da mimesis, desse modo de representar quod est ou quod potest 21 Esta função de delimitação de espaços de representação é apontada por F. ACUÑA CASTROVIEJO a propósito de um mosaico de Tralhariz: «El tema base de todo el esquema compositivo es el doble trenzado o sogueado simple ... siendo su función primordial la de servir o bien de elemento de separación entre las distintas partes de la composición o bien como borde u orla de todo el conjunto» – F. ACUÑA CASTROVIEJO, Mosaicos Romanos de Hispania Citerior III Conventus Bracarensis, in Studia Archeologica (Santiago de Compostela) 35 (1974), p.44. 22 Note-se que é da divergência no tratamento de dois mosaicos coevos e contíguos que decorrem as opostas significações, sendo o «tema del trenzado, de gran amplitud geográfica y cronológica» F. ACUÑA CASTROVIEJO, op. cit., p.31.
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esse23 e vai a caminho do Sublime (altitude24), estética de «paixão com elevação», «exaltação generosa» que primazia a temática do divino, «tal como ele é e sem mistura», como afirma Longino25. O desejo de um caminho diferente já é manifesto na contemporânea e contígua fig. anterior: tal desejo imprime-se na quebra com a fórmula tradicional (planta), atitude nada coerente com o formalismo da mentalidade romana, bastante rígido na manutenção das fórmulas de representação26. A opção por um esquema visual novo (alçado) para significação antiga (mensagem apotropaica) expressa o desejo de um caminho diferente, mas feito sem rupturas e, com um sentido novo, plasmado na representação vertical da espacialidade labiríntica: caminho de elevação, caminho do Sublime. É, assim, sugerido um contexto histórico novo27 que a datação atribuída por J.LANCHA28 (295-330) clarifica ser o tempo de clivagem iniciado com Diocleciano (284-305), período de reorganização do Imperium, da tetrarquia, das reformas e das perseguições religiosas que terminariam na época constantiniana (312-337). Nesse dinâmico contexto, uma nova estética emerge29, sem rupturas, como o demonstra a tranquila convivência dos dois mosaicos de Torre de Palma: no primeiro, a composição revela a procura de um esquema visual novo, reformulando a forma mas mantendo-lhe a significação pela voluntária manutenção dos referentes mitológicos (Teseu e Minotauro); diferentemente, no segundo, apresenta outra linguagem com os mesmos vocábulos (meandros), em que 23 Vitrúvio, De architectura,VII, 5, 1. 24 Expressivo termo de J. PIGEAUD na introdução à sua tradução da obra denominada ‘Do Sublime’, cuja autoria (uexata quaestio) é atribuída a Longino – J. PIGEAUD, 1993, Longin, Du sublime, Paris, p.8. 25 Idem, pp. 62-66. 26 «On souligne toujours avec raison le formalisme pointilleux des pratiques religieuses et l’extraordinaire rigidité du respect des rites prescrits car on pensait que la divinité exigeait certaines formules», M. CÉBEILLAC-GERVASONI, 2001, Histoire Romaine, p.90. 27 Antiguidade Tardia. 28 J. LANCHA e P. ANDRÉ, 2000, A Villa de Torre de Palma, Lisboa, p. 143. 29 «A Arte revela-se, assim, de acordo com o contexto histórico em que surge. Ao afirmar-se mais o espírito que a matéria, ao sublinhar-se mais a alma que o corpo, ao falar-se mais de Deus que do Homem, os fenómenos artísticos revelarão paralelamente uma preocupação maior com o conteúdo do que com a forma, expressarão mais as sensibilidades do que os cânones, tenderão mais para o Absoluto do que para o concreto e o mensurável», M. JUSTINO MACIEL, 1996, Antiguidade Tardia e Paleocristianismo em Portugal, p.17.
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estes se secundarizam e tornam-se mero suporte do que querem evidenciar (o retrato). A rejeição ou subalternização da forma é a poética do Sublime, veja-se a teoria do Belo em Plotino, ao entender que a Beleza está na ideia, na alma, não tem forma30, teoria que paulatina mas determinadamente, irá impregnar a musivária tardia: os significantes (forma) perdem o significado (conteúdo) ou, ganham novos significados. A consciente desvinculação entre conteúdos e as formas convencionais ocorreria em época constantiniana31, tempo de liberalização da religião cristã, merecendo realce a tentativa de Constantino – apontada por A. GRABAR – de «criar uma iconografia religiosa original através do signo simbólico e não da imagem figurativa» corporizada no monograma XP, função de símbolo de Cristo, reproduzido no labarum32. Neste contexto tardio, tempo de crise, tempo de medo, o Homem procura a salvação: guiado pela religião cristã, o olhar procura o Sublime, olhar erguido como em retrato de Constantino… A arte paleocristã – onde o brilho das cores convida à paixão generosa, à exaltação com elevação – adquire a vocacional dimensão didáctica, bem patenteada nas representações do labirinto. Acompanhando a tendência de «maior inércia da forma e maior dinamismo de conteúdo33» a musivária tardia acolhe a forma tradicional34 e, por cristã interpretatio, dá-lhe nova significação: a (antiga) imagem do labirinto (expurgada dos referentes mitológicos) é a descrição de um caminho difícil, de meandros, caminho de trevas e de luz, mas caminho único da Salvação.
30 PLOTIN, Ennéades, texte établi et traduit par Émile BRÉHIER, 1997, Paris, Les Belles Lettres, tome I, p.97. 31 Afirma J. MACIEL: «A transparência da Arte Cristã torna-se formalmente e de modo progressivo clara e objectiva nos seus signos, à medida que a pax constantiniana vai permitindo a sua mais livre expressão. Consequentemente, vão-se formando tipologias artísticas em que a ideologia e a respectiva liturgia se definem como plenamente funcionais e condicionantes de novos comportamentos.», in Antiguidade Tardia..., op. cit., p. 17. 32 A. GRABAR, 1979, Les voies de la création en Iconographie Chrétienne, Paris, Flammarion, p. 40. 33 M. JUSTINO MACIEL, Antiguidade Tardia..., op. cit., p. 120. 34 Idem, op. cit., p.108: «Tendo a Arte Paleocristã surgido no primeiro contexto (romano) e sendo formalmente uma manifestação de Arte romana».
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RESUMO
ABSTRACT The present article consists in a brief reflection about Roman mosaics, not only in what concerns some elaborated considerations around origin, evolution and opera musiua repertory, but also about construction methods, approaching equally some hypothesis about its fabrics, organization and ateliers’ working method; of its itinerant character and diffusion of iconographic models. We approach, equally, questions about the social status of the mosaicist and we discuss mosaic, in Roman art context, interrogating also the fact that we might be in presence of a decorative industry of a quite widely spread diffusion.
O presente artigo consiste numa breve reflexão sobre o mosaico romano, não só no que concerne a algumas considerações elaboradas em torno da origem, evolução e repertório dos opera musiua, mas também sobre os métodos de construção, colocando-se tal-qualmente algumas hipóteses acerca do seu fabrico e organização e funcionamento das oficinas, do seu carácter itinerante e difusão dos modelos iconográficos. Colocam-se, igualmente, questões acerca do estatuto social do mosaísta e problematiza-se o mosaico, no contexto da arte romana, questionando-se também o facto de se poder estar perante uma indústria decorativa de ampla e variegada difusão.
OPERA MVSIVA: Uma breve reflexão sobre a origem, difusão e iconografia do mosaico romano Maria Teresa Caetano*
As ideias «façamo-las nossas, tornemos um grande número de ideias num organismo único, tal como numa adição juntamos parcelas diferentes para obter um único total. Que o nosso espírito faça a mesma coisa: mantenha ocultas as parcelas de que se serviu para exibir tão-somente o resultado obtido. Mesmo que seja visível em ti a semelhança com algum autor cuja admiração se gravou mais profundamente em ti, e que essa semelhança seja a de um filho, não de uma estátua: a estátua é um objecto morto». (Séneca, Cartas a Lucílio. L. 11, 84: 7 e 8, pp. 381-382)
O texto que ora apresentamos resulta, tão-somente, da reflexão que temos vindo a fazer acerca da origem e difusão do reportório do mosaico antigo, bem como sobre os próprios mosaístas. Por isso mesmo, os elementos que sujeitamos a escrutínio neste texto não constituem obra acabada, tratando-se apenas de meras hipóteses de trabalho e, como tal, sujeitas à crítica, carecendo inclusive, muitas delas, se possível, de ulterior confirmação ou infirmação. Assim, neste artigo, abandonamos, por agora, o entendimento do tesselado como mero objecto artístico-arqueológico, para centrarmos a nossa atenção também numa problemática muito mais vasta e indissociável, portanto, das questões subjacentes à História e à História da Arte, mas que nos parecem fundamentais para a apreensão global da própria iconografia do mosaico romano1. * Doutoranda em História da Arte da Antiguidade. 1 Não podemos deixar de expressar aqui o nosso público agradecimento à amiga Cátia Mourão, cujo incentivo, apoio e crítica se revelaram fundamentais para a construção deste texto.
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Desde o século II a. C. afluíram a Roma – para além de incontáveis escravos, artesãos e comerciantes – muitos artistas, filósofos e retóricos gregos que contribuíram, de modo inequívoco e continuado, para uma determinada helenização da sociedade e cultura romanas. Esta aculturação – como todos os fenómenos do género – não teve um único sentido nem ocorreu através de uma única via e, consequentemente, os romanos dotados de um grande pragmatismo e eficiência, tiveram suficiente engenho para promover uma simbiose entre aqueles distintos modos de estar, gerando, assim, um modelo novo, assente também nos seus próprios princípios teórico-práticos e – sem elidir, entre outros, o importante substrato etrusco – proporcionaram a criação de arquétipos mais evoluídos, cujas réplicas se multiplicaram por todo o império, sem resultar, todavia, na redundância e repetição quase absoluta dos modelos ancestrais que exauriram a arte grega. Por conseguinte, a praxis romana, ainda aqui traduzida pela sua capacidade em atingir, sem grandes delongas, determinado objectivo (de que constituem, entre muitos outros, os sobejamente conhecidos exemplos da organização dos seus exércitos, da construção de vias, de pontes e de aquedutos), concedeu-lhe, até, a capacidade de transmudar a arte em coisa exequível e funcional, dando origem a um processo singular de mudança de gosto – não ausente de acesas polémicas e confrontos entre o carácter austero da República e a ostentação por si mesma2 –, primeiro, através da orgulhosa exibição de peças gregas que acartaram para Roma como despojos de guerra, depois, pelo labor de artistas helénicos, pela interiorização e reinterpretação dos modelos, pela sua difusão e, não raras vezes, pela sua adaptação a realidades concretas, apenas perceptíveis a uma escala regional ou, até mesmo, local. As elites latinas, que, na sequência da expansão, deixaram o omphalus romano, e se fixaram nas principais cidades de província, onde desempenharam altos cargos no exército e na administração, promoveram, no âmbito de uma estratégia de forte cunho imperial, ampla e niveladora, a adopção de políticas transversais no sentido de, dominados os inúmeros e diferentes povos que constituíam os territórios subjugados à pax romana, se suceder ao processo de romanização, o qual, por vezes, precedeu a efectiva ocupação do território3. Por
2 Sobre esta matéria vide GARCIA Y BELLIDO, A. (1990, pp. 44-45). 3 SOUSA, É. M. (1996, p. 50), afirma, com base na análise de um significativo conjunto cerâmico de origem itálica e de imitação de fabrico localizado, que este território, mesmo antes da conquista
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conseguinte, a par de muitas outras medidas sobejamente conhecidas no sentido de se atingir um determinado grau de romanidade indispensável, aliás, à sobrevivência de um império imenso que reunia os mais distintos povos, procedeu-se ainda à fundação de cidades – como, por exemplo, Emerita Augusta, onde se instalaram os veteranos de Públio Carísio – e à renovação de muitos dos povoados já existentes – como Olisipo ou Conimbriga –, dotando-os dos cânones urbanísticos romanos, intentando-se assim a “urbanização” das diversas comunidades, muitas delas de feição tribal, pastoril ou rústica. Esta estratégia, contudo, veio a revelar-se insuficiente num império que, no máximo dos seus limites geográficos, atingiu os três milhões e meio de quilómetros4, deixando em aberto demasiados espaços intersticiais por onde, mais tarde – e apesar de, em 212, no seio das convulsões que definiram a chamada crise do século III, Caracala ter concedido a cidadania romana a todos os libertos –, acabaram por estrepitar ancianos substratos que a romanidade, enquanto ideia aplicada, foi, por múltiplas razões que não importa aqui nomear, incapaz de absorver. Posto isto, e acreditando que o conceito de romanidade plena constitui um mito, não podemos, ainda assim, deixar de considerar que as formas de difusão cultural, de entre as quais nos interessa particularmente o mosaico, foram factores de romanização e também de romanidade, decerto matizado como tantos outros elementos – fossem eles sociais, religiosos ou económicos –, mas cuja prolixidade terá acompanhado as elites latinas que, obviamente, transpuseram no espaço e no tempo o modus uiuendi que conheciam e que certa aristocracia indígena, ambicionando a cidadania e beneficiando da humanitas, não hesitou em deixar seduzir-se por aquele novo mundo, o qual, por sua vez, reacomodou à sua própria grandeza5. Neste sentido, não nos é, pois, possível entender também o mosaico como um valor absoluto, mas, antes pelo contrário, devemos procurar, dissecar as partes que o compõem, contextualizando-o no âmbito do seu próprio pro-
efectiva, iniciada em 218 a. C., «denuncia, para além da simples transacção comercial a si inerente, a grande proximidade existente entre as duas penínsulas». 4 VEYNE, P. (1992, p. 284). 5 Veja-se o exemplo de Lucius Iulius Maelo Caudicus, um indígena que ascendeu a altos cargos da magistratura olisiponense e, por volta do ano 20 d. C., já como flamen do Divino Augusto, fez erigir à sua custa, o monumental fontanário de Armês (Sintra), conforme epígrafe sobreposta ao tanque [RIBEIRO, J. C. (1982-1983, pp. 151-476)].
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cesso evolutivo, da sua morfologia e da sua função operativa, mas, sobretudo, decorativa, encontrando nele um privilegiado veículo transmissor de imagens, de ideias e de conceitos que, encadeados ao longo dos séculos – e, apesar de duvidarmos da sua proclamada universalidade, reconhecemos a existência de modelos continuados –, nos deixam apenas entrever, alguns breves instantes, o verdadeiro lugar dos opera musiua no Mundo Antigo. E, de facto, só assim se justifica a constatação de que existiram distintas correntes iconográficas que, consoante as épocas e os intervenientes, modelaram o prospecto musivo, recordando, só para citar alguns exemplos, que Blázquez referiu as excelentes oficinas emeritenses que irradiaram a sua influência, não só por toda a Lusitânia, mas também até ao pleno centro da Tarraconense6; assim como Bairrão Oleiro, que individualizou uma escola conimbricense7; e Licínia Nunes Correia que encontra uma certa unidade nos mosaicos da zona sul do conuentus pacensis e aproximação estilística aos de Itálica, justificando esta apropinquação pelo facto de esta região ter sido atravessada «por um importante eixo viário (…), o que facilitaria a relação entre oficinas»8; ou que – já fora da Península Ibérica –, Janine Lancha tenha constatado a singularidade dos pavimentos musivos de cariz geométrico de Vienne9 e que, de um modo geral, se fale de uma identidade própria dos mosaicos norte africanos ou do Mediterrâneo oriental.
1. Dos seixos rolados ao opus tessellatum Por conseguinte, sem enveredarmos, todavia, pelos mais longínquos caminhos em busca da origem do mosaico que nos conduziriam inevitavelmente às civilizações do Médio Oriente, atentemos, numa maior proximidade cronológica, aos pavimentos helenísticos, os quais influenciaram directamente os mosaicos romanos. O mosaico helénico – testemunhado na Grécia pelo menos desde o século V a. C., nos chamados mosaicos de seixos10 – era usado para revestimento dos principais espaços públicos ou privados. Constata-se, 6 BLÁZQUEZ, J. M. (1993, pp. 101-102). 7 Cfr., v. g., OLEIRO, J. M. B. (1992). 8 CORREIA, L. N. (2005, p. 84). 9 Cfr. LANCHA, J. (1977). 10 GARCIA Y BELLIDO, A. (1990, p. 156).
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porém, que, apenas dois séculos mais tarde, era já notória a importância do tesselado no mundo grego, destacando-se as composições figuradas, muitas delas inspiradas no repertório homérico. A sua evolução, no entanto, passou também pelos chamados mosaicos de opus Signinum, aos quais, pela sua morfologia e aparência, quase nos atreveríamos apelidar de “proto-tesselados”. Nestes pavimentos, mais resistentes e esmerilados, incrustavam-se pequenas tessellae, delineando os contornos ou preenchendo desenhos complexos, ou simples composições lineares, utilizando-se, frequentemente, motivos de origem helénica, tendo alguns deles – como adiante iremos ver –, perdurado muito para além do tempo romano. No século II a. C., os chamados mosaicos de opus Signinum – mesmo que compartidos com os não ainda totalmente abandonados peble mosaics, como os que se descobriram na coeva Casa de Dionísio (Chipre)11 – encontravam-se bastante difundidos pelas províncias, incluindo a Península Ibérica, como o comprovam os pavimentos de Andión (Navarra)12 e de Pamplona13. Coincidentemente, ou não, na época de Augusto, quando se inaugurou a figura do imperador e do sequente culto, generalizou-se também o uso do mármore14 e parece que o “proto-tesselado” cedeu definitivamente lugar ao opus tessellatum. A assumpção plena desta modernidade, já não no anterior contexto de imiscuição, mas como modelo político consciente e perfeitamente entendido, aliás, no âmbito das reformas augustanas, quer com objectivo de consolidar o fenómeno da romanidade, quer numa perspectiva evérgeta imperial, religiosa ou corporativa, depressa se expandiu também entre a aristocracia e as classes abastadas, sempre ávidas de novidades, mesmo que habitassem na província. Assim, num primeiro momento, a arte do tesselado terá sido divulgada e implementada por mosaístas oriundos da própria Península Itálica – lembrando, a propósito, Marion Blake que então a maioria dos mosaic-workers seria ainda de origem grega15 –, como o parece comprovar, a título de exemplo, a similitude entre os mosaicos ibéricos e os pavimentos ostienses, vastamente
11 NICOLAOU, K. (1983, pp. 219-220, figs. 3 e 4). 12 BLÁZQUEZ, J. M. e MESQUIRIZ, M. A. (1985, pp. 13-15, n.º 1, lám. 1). 13 BLÁZQUEZ, J. M. e MESQUIRIZ, M. A. (1985, pp. 58-59, n.º 40, lám. 37). 14 GRIMAL, P. (1988, p. 157). 15 BLAKE, M. E. (1930, p. 21).
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estudados, aliás, por Becatti16. Este género de pavimento, tão eficaz como o seu antecessor na função, permitiu, ainda que o mosaico romano assentasse em simples alternância bicromática, a criação de composições cada vez mais intrincadas e sugestivas ao olhar, desenvolvendo-se, também, o gosto pela representação figurativa, ainda que bastante arreigada a personagens e narrativas mitológicas. Vitrúvio, um executante do «ofício de arquitecto»17, escreveu e dedicou ao próprio Augusto um tratado de arquitectura esclarecendo, no texto, quais as fontes em que libou a sua obra teórica, autores gregos e romanos, acreditando Justino Maciel que Varrão – um contemporâneo seu – possa, de algum modo, ter influenciado parte da sua dissertação18.Tendo presente o De Architectura, é por demais evidente o entendimento lato que, nos finais do século I a. C., se tinha daquela disciplina que englobava também as chamadas belas-artes, a geografia, a climatologia, definições de engenharia (civil e militar), conceitos paisagísticos e modos tidos como de bem-fazer. Assim, conforme se pode ler no Livro VII, a manufactura do opus tessellatum, segundo aquele teórico, obedecia a regras específicas que contemplavam ainda o ordenamento das três camadas – statumen, rudus e nucleus – que subjazem também à aplicação do opus spicatum e do opus sectile: 3. «(…) em cima, espalhar-se-á um leito de pedras, sendo estas de tamanho suficiente para encher a palma da mão; se o cascalho argamassado a lançar sobre estes leitos de pedra for novo, a mistura será de uma parte de cal para três partes; se for reutilizado, a correspondência será de cinco para duas partes de cal. Lançar-se-á, pois, o cascalho argamassado e, com trancas de madeira, manejadas por grupos de dez homens, tornar-se-á compacto através de batimentos contínuos, de modo a que todo o pavimento, bem calcado, fique com uma espessura não menor do que três quartos de um pé. Por cima, aplicar-se-á um núcleo de três partes de tijolo cozido moído para uma de cal, com uma espessura não menor do que seis dedos. Sobre este núcleo, dispor-se-ão os pavimentos, com 16 Cfr. BECATTI, G. (1961). 17 VITRÚVIO (2006, p. 36). 18 VITRÚVIO (2006, p. 261, nota 3).
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auxílio de régua e de nível, sejam eles em placas recortadas, sejam em tesselas. 4. Quando estas coisas tiverem sido feitas e tiverem atingido o seu acabamento, os pavimentos serão polidos de tal modo que, se (…) forem aplicadas tesselas, que elas tenham todos os ângulos nivelados. Na realidade, quando estes não se patentearem igualmente planos, não será perfeito, como convém, o polimento (…)»19.
2. A construção do mosaico Para Vitrúvio, um outro dos aspectos fundamentais para a execução correcta de um pavimento prende-se com a qualidade da argamassa a assentar no solo depois de compactado20, tarefa que, segundo Janine Lancha21, deveria ser feita de uma só vez, de forma a garantir-se uma secagem uniforme, evitando-se, desse modo, o surgimento de fissuras ou irregularidades que eventualmente pudessem comprometer a execução do tesselado. As tessellae eram colocadas, ainda com base no tratadista romano, «com auxílio de régua e de nível», podendo acrescentar-se a esta sumária indicação, o compasso e o esquadro, socorrendo-se os mosaístas, também, de cravos e de cordões para estabelecer as coordenadas e os principais eixos da trama22. Para além dos preceitos considerados por Vitrúvio, a arqueologia tem evidenciado outros aspectos da construção de mosaicos, designadamente, a sinópia, ou seja, a transposição do desenho-guia por meio de gravação, através de um objecto metálico de ponta aguçada no nucleus, ou de pintura, com uma ou mais cores, dos contornos dos motivos escolhidos23. Depois de efectuada a sinópia ou definidos os principais pontos de orientação dos artífices, os pequenos cubos eram aplicados sobre uma estreita e fresca camada de robusta arga-
19 VITRÚVIO (2006, pp. 263-264). 20 VITRÚVIO (2006, p. 263). 21 LANCHA, J. (1994, p. 134). 22 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 17). 23 ROBOTTI, C. (1983, pp. 312-313); LANCHA, J. (1994, p. 133) e MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 1).
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massa de cal que seria, de modo a garantir-se a sua maleabilidade, espalhada ao ritmo da colocação das tessellae. E, desta técnica, são ainda hoje passíveis de observar, entre outros, vestígios num pavimento geométrico da casa de M. Fábio Rufo, em Pompeios, datado do século I24, no mosaico de Oceano, de Ossonoba, para o qual Janine Lancha atribui uma cronologia circunscrita aos finais do século II ou inícios do III25, mas Cátia Mourão propôs igualmente para este pavimento uma datação mais avançada, restringindo-a, portanto, ao segundo quartel do século III26 – e com a qual estamos, aliás, de acordo –, num mosaico também figurado de Rudston (Yorks), de inícios do século IV, no qual «two small areas of mosaic and traces of guide-lines in the underlining bedding-mortar are sufficient to permit a reconstruction»27 e num pavimento geométrico do século IV, de Cirencester, onde se reconhecem ainda as linhas vermelhas da sinópia, mas a colocação das tesselas revela que foi notória, afinal, a incapacidade dos tessellarii em seguir o desenho-guia, ostentando, por isso, inúmeras deformações28. Aqui aportados, importa referir que – tendo presente este último exemplo – e perante a evidência de que a argamassa cobriria parte da sinópia consoante o avanço do trabalho de assentamento das tessellae e que, dos milhares de mosaicos hoje conhecidos, aparentemente apenas um reduzido número ostentará vestígios do desenho-guia, podemos considerar duas hipóteses, ainda que meramente académicas: a primeira conjectura presume que a sinópia, na sequência da “industrialização” do processo de fabrico dos mosaicos, se tenha restringido – pela morosidade na execução do tesselado nestas condições –, sobretudo, aos emblemata, pseudo-emblemas, medalhões, pavimentos figurativos e/ou de desenho minucioso; a segunda suposição que lançamos à discussão, e para além das ferramentas e técnicas já descritas como utilizadas no fabrico do mosaico, assume-se pragmática e propõe que, dada a “massificação” do mosaico, os operários tenham passado a utilizar moldes de madeira pré-fabricados, de modo a compor, mais rapidamente, o tesselado, se não no seu todo, pelo menos em grande parte, aumentando o nível de produtividade
24 ROBOTTI, C. (1983 pp. 311-314); Idem (1983ª, p. 556, fig. 1). 25 LANCHA, J. (1985, pp. 151-175). 26 MOURÃO, C. (no prelo). 27 NEAL, D. S. (1981, pp. 95-97, n.º 68). 28 NEAL, D. S. (1981, p. 62, n.º 26).
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dos artesãos, reduzindo-se, em simultâneo, o custo total da obra. Na verdade, os moldes, tanto em positivo como em negativo, são ainda hoje utilizados pelos calceteiros, pelo que e sem termos a pretensão de estabelecer qualquer analogia, a qual, pelo seu próprio anacronismo, se encontraria à partida condenada ao fracasso, parece-nos que seria, no contexto “industrial” em que o mosaico progrediu, bem mais eficiente do que a prática continuada e exaustiva da sinópia. O assentamento das tésseras seguia o percurso em positivo, contornando o eventual molde, porquanto – como se deduz através da simples observação empírica dos mosaicos – se definiam primeiro os contornos e, só então, se preenchiam os vazios29. Depois, através da percussão obtida a partir do batimento com um martelo de madeira, os mosaístas fixavam e nivelavam as tesselas à base de sustentação, até formarem uma superfície plana, sobre a qual se vertia uma aguada (pó de mármore e/ou areia e cal), o que evitava o possível aparecimento de gretas e lhe emprestava a solidez necessária30. Finalmente, para remover os excessos da aguada, depois de seca, polia-se o tesselado com um raspador.
3. Opera musiua: uma indústria decorativa? Todavia, e apesar de suficientemente explicitado o modo de se executar os opera tessellata no De Architectura, cujos princípios teóricos, acreditamos, terem de algum modo transitado pelo império, não impediu Lavagne31 de concluir que somente alguns mosaicos – sobretudo na Itália Alto-Imperial – tenham cumprido os preceitos vitruvianos, porquanto estes obrigavam à realização de uma complexa e sólida infra-estrutura, o que, decerto, encareceria a obra ao ponto de aquela apenas ser exequível por uma coarctada fímbria da elite romana. Ora, e para melhor ancorar esta questão, não nos podemos esquecer que se o mosaico se tivesse mantido ao nível restrito da auto-repre-
29 Por vezes, a colocação mais ou menos cerrada das tesselas, bem como a argamassa que ia aflorando entre os pequenos cubos, contribuía para que algumas juntas intersticiais tivessem diferentes larguras, o que decerto justificará algumas das irregularidades observadas em muitos mosaicos [cfr. LAVAGNE, H. (1988, p. 469)]. 30 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 126). 31 LAVAGNE, H. (1988, p. 469).
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sentação do romano puro, jamais se teria interiorizado e difundido pelo império o gosto por tal artesanato, o qual, como já vimos, aliás, agiu também como veículo de romanização e de romanidade, tornando-se, nesta perspectiva, acessível a uma vasta plêiade de indivíduos que encontrou na sua adopção um caminho para a cidadania e, mutatis mutandis, com o decorrer do tempo, as técnicas de fabrico do mosaico simplificaram-se de modo a ganhar-se uma maior celeridade na sua execução, barateando o método e rentabilizando a oficina com a sua capacidade melhorada para responder à cada vez maior procura de mosaicos, já não só nas cidades, mas, depois da crise do século III e com o apego das classes abastadas às suas uillae, sobretudo nos agri. Neste sentido, ao longo do tempo, o mosaico foi agindo como catalizador social do seu proprietário ou ofertante, pelo que, ao ter-se atestado num processo de generalização, conduziu à criação – nas palavras de Garcia y Bellido – de um género «artistico-industrial»32. Assim, o mosaico tornou-se, tal como a cerâmica, o garum, o vinho, os cereais, o azeite, os cavalos e animais exóticos, a estatuária, etc., um produto exportável. Primeiro como conceito e, depois, como praxis adaptada às múltiplas realidades que, afinal, constituíam o mundo romano e, nesta medida, entende-se que também a fabricação do tesselado e do seu suporte se resolvia «de acuerdo a las técnicas caracteristicas del taller en cuéstion o en función (…) de los materiales disponibles»33. Neste âmbito, a mero título indicativo, recorde-se, que no perímetro urbano da antiga cidade de Olisipo se recolheram alguns troços de mosaicos, datáveis do século II, os quais, apesar de se tratar de uma amostragem fragmentária e ainda sem grande expressão, parecem indiciar uma aproximação (e não um cumprimento integral) aos preceitos supra nomeados, ou, no caso do mosaico adstrito ao frigidarium de um pequeno estabelecimento termal contíguo a uma unidade fabril de salga de peixe, verifica-se que o tesselado foi, na reforma ali levada a cabo nos meados do século III, aplicado directamente sobre anterior pavimento de opus Signinum34. Tal como, se constata no ager deste mesmo município, sobretudo na época Baixo-Imperial, a existência de mosaicos construídos directamente sobre solo argiloso bem compactado, como é o caso dos desco-
32 Ideia esta reforçada por DUNBABIN, K. (1999, p. 272) quando refere: «Under the Empire, and especially in the west, mosaic production was a large-scale business». 33 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 124). 34 CAETANO, M.T. (2001, pp. 61-82).
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bertos nas uillae de Santo André de Almoçageme35, da segunda metade do século III, e de Frielas36, datados da centúria seguinte. Arribados nesta questão, importa uma vez mais lembrar que foi na sequência da chamada crise do século III que o mosaico encetou tal-qualmente um processo de ruralização, porquanto os proprietários das uillae, quando ali se fixaram de modo consciente e assaz definitivo, transpuseram para o campo as comodidades a que se haviam acostumado nas suas domus urbanas, assim como pretenderam recriar, nas quintas, uma determinada vivência citadina, assumindo, pois, nesta micro-escala e perante a “sua” gente, o indiscutível estatuto de pater familias. Este fenómeno que teve a sua génese sobretudo em factores políticos e sócio-económicos foi, de certo modo, o motor para vulgarização do mosaico, o qual, para além da simplificação dos seus próprios processos construtivos, registou na Península Ibérica e no Norte de África, mercê também da abundância de calcários e de mármores, uma grande implantação, «por cuanto de abaratamiento del proceso supondria tal circunstancia»37. Na verdade, muitos autores insistem, ainda hoje, que os artífices apenas empregavam no fabrico das tesselas de pedra matérias-primas locais que procuravam nos arredores dos espaços a decorar38, como será o caso privilegiado da uilla de Rio Maior, onde se recolheram vestígios do estaleiro dos mosaístas junto à casa e cujas pedras terão sido apanhadas num raio de 2 a 3 km, mas a presença de lioz naqueles mosaicos pressupõe a aquisição de matéria-prima nos arredores de Olisipo39. Outros autores, ainda, afirmam que em determinadas situações, as pedras chegavam a ser granjeadas a mais de 100 Km do local da obra40. Não duvidamos de que – em situações de extrema penosidade – tal tenha sucedido, mas não nos parece, face ao contexto que temos vindo a evidenciar, em particular na época Baixo-Imperial, que fosse esse o procedimento normativo das oficinas, pelo menos das maiores e que, 35 CAETANO, M.T. (1997, pp. 92-117, n.os 19, 20, 21, 22, 23 e 24). 36 Mosaicos que, em colaboração com Ana Raquel Silva e Luís Carlos Reis, temos vindo a estudar e dos quais demos pública notícia no X Colóquio Internacional da AIEMA, realizado em Conímbriga (2005). 37 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 115). 38 LANCHA, J. (1994, p. 133). 39 Com base no estudo geológico realizado por Fernando Real (Apêndice I), in OLIVEIRA, C. F. (2003, p. 163). 40 RAMALLO ASENCIO, S. F. (1985, p. 195).
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porventura, à semelhança de que sucedeu relativamente a outras actividades produtivas, tivessem também as suas filiais espalhadas por várias províncias, até porque, e tendo presente o exemplo lusitano, parece que as oficinas regionais estariam, de algum modo, ligadas «a escolas ou oficinas de grandes centros exteriores ao território português»41. A arqueologia, de facto, tem desenterrado quantidades imensas de objectos que nos revelam um esqueleto sobretudo agrícola, mas também industrial e comercial que regulava, então, a vida de milhões de indivíduos. Por conseguinte – entre muitos outros exemplos que poderíamos trazer à colação – sabe-se que a cerâmica sigillata “aretina” tinha dependências na Gália e que os moldes destinados ao fabrico de peças decoradas eram comprados a outras oficinas42, que à Lusitânia aportavam sarcófagos provenientes da Península Itálica e de outras províncias43 e que no ager olisiponense se extraía e exportava lioz. Pelo que, nesta perspectiva, custa-nos ver arredada desta ossatura, enquanto valor sócio-económico, cultural e artístico, a “indústria” decorativa do mosaico. E aqui chegados, podemos, também a título de exemplo, citar o caso da Gália, onde a escassez de materiais adequados ao fabrico de tesselas obrigava à sua importação44. Mas que tipo de produto era veiculado? (a) Seriam umas pedras recolhidas, aqui e além, que eram metidas em barcos (talvez como lastro) e que se descarregavam num porto e dali se carreavam até ao local da obra, onde os tessellarii pacientemente as talhavam; (b) seriam fragmentos pétreos, resultantes do desbaste de grandes blocos, adquiridos numa oficina de escultura; (c) ou seriam tessellae pré-fabricadas – como as de pasta vítrea45 – mais fáceis, portanto, de acomodar e de transportar, fosse por via marítima, fluvial ou terrestre. 41 CORREIA, L. N. (2005, p. 86). 42 MOREL, J.-P. (1992, pp. 194-195). 43 Cfr., v.g., MATOS, J. L. (2002, pp. 311-315). 44 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p.116). 45 As tesselas de pasta de vidro – obtidas a partir da mistura, em estado líquido, de resinas e óxidos metálicos –, dada a sua complexidade, obrigavam à existência de verdadeiras oficinas destinadas ao seu fabrico e, sequentemente, a uma eficiente rede de comercialização (tal como terá sucedido em relação a algumas qualidades de mármore e às pedras semipreciosas que foram aplicados em mosaicos). Nesse sentido, a aquisição destas tesselas, mais frágeis do que as de pedra, deveria importar elevados custos, pelo que eram sobretudo empregues nos revestimentos de paredes e abóbadas, na elaboração de emblemas e para realçar alguns pormenores compositivos.
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Parece-nos, pois, que esta última sugestão – e relembrando, uma vez mais, que este texto resulta tão-somente de uma reflexão pessoal –, será a mais consistente no contexto que temos vindo a evidenciar, uma vez que para a elaboração de qualquer pavimento de opus tessellatum eram empregues significativas quantidades de tesselas, sobretudo calcárias, das mais diversas cores (sendo as mais vulgares as brancas, as pretas, as encarnadas, as amarelas e as cinzentas), quer na composição do desenho, quer no preenchimento dos fundos e, como se sabe, uma equipa de três ou quatro mosaístas apenas conseguiria cobrir uma área tesselada de 2 a 3 m2 por dia46. Neste âmbito, quer o processo de simplificação da construção do suporte, quer o fornecimento de tesselas pré-fabricadas – nem que fosse apenas nas composições geométricas ou em meros preenchimentos de fundos nos mosaicos figurativos –, reduziriam bastante o tempo empregue na execução de um mosaico47, tendo como consequência imediata o abaixamento do preço da obra musiva. Ora, sucede, todavia, que os indícios relativos a esta questão são quase inexistentes, mas, ainda assim, poderemos considerar outras hipóteses de trabalho. Por conseguinte, e para além de termos presente um achado em Córdova, onde se recolheram vestígios tardios, passíveis de identificar com uma oficina de corte e afeiçoamento de tessellae48, temos o caso – bem mais próximo –, do singular achado de largos milhares de tesselas brancas com as arestas muito vivas na área da pars rustica da uilla da Granja dos Serrões (Sintra)49. A estas acresceram-se, em 1994 e no seguimento dos trabalhos arqueológicos, outras tantas tesselas, juntamente com blocos de calcário por cortar e pequenas lascas resultantes do desbaste da pedra, tendo-se ainda detectado e recolhido um escopro em razoável estado de conservação, tudo isto retirado do interior de um compartimento selado por derrube coetâneo, constituindo, portanto, elementos que, de per si, nos permitem admitir que ali funcionou uma oficina de canteiro, provavelmente entre os séculos III e IV50. 46 LAVAGNE, H. (1988, p. 473). 47 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 123). 48 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, pp. 122 e 123). 49 Opinião esta que BORGES, F. (1986, p. 108), contrariou, afirmando, então, que as «razões apresentadas não parecem suficientes para concluir da existência de uma oficina de corte de tesselas». 50 Por outro lado, as evidências resultantes desta campanha arqueológica, parecem comprovar, em traços gerais, a hipótese que entretanto havíamos lançado [CAETANO, M.T. (2006, p. 31)], mas que ora tratamos mais aprofundadamente.Todavia, estamos conscientes de que somente a continuação dos trabalhos arqueológicos nos poderá esclarecer melhor quanto à organização e estrutura desta provável oficina.
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Neste contexto, e atendendo ainda ao caso da Granja dos Serrões, que melhor conhecemos, pensamos poder estar perante um fenómeno estritamente económico assente, quanto a nós, em duas vertentes: a primeira, como resultado da abundância de matéria-prima na região, assumindo-se, talvez, como uma outra faceta da “indústria da pedra”, a par com aquela que seria a principal actividade da uilla da Granja dos Serrões, ou seja, a sua extracção ou transformação em grande escala, uma vez que o proprietário daquela uilla «exploraria uma pedreira local e/ou possuiria uma oficina de corte e afeiçoamento de pedra»51, podendo-se, neste contexto, recorrer – sem prejuízo –, tanto ao aproveitamento de monólitos defeituosos, como aos sobejos; a segunda, prende-se, eventualmente, com a utilização de uma rota já estabelecida para escoamento e comercialização da pedra, visando também a comercialização das tessellae junto das oficinas olisiponenses, ou até mesmo exportando-as para outras regiões. E, na verdade, a descoberta junto às ilhas Berlengas, em contexto de naufrágio de navio romano (do qual se recolheram igualmente cepos de âncora), de algumas tessellae, bem como várias outras plaquetas de pedra já aparelhadas para o fabrico de pequenos cubos – hoje conservados no Museu do Mar, em Cascais –, parecem corroborar, ainda que no caso vertente não tenha sido possível apurar a origem dos referidos materiais pétreos, a existência, como temos defendido, aliás, de um comércio de tesseras pré-fabricadas, provavelmente em larga escala52.
51 RIBEIRO, J. C. (1982-1983, p. 398). De facto, ambos os contextos que enunciámos não são, de todo, congruentes com outras situações já estudadas, como, por exemplo, a de Pont d’Ancy, onde se constatou, de forma inequívoca, que os mosaístas abandonaram apressadamente a obra em curso, pois foram encontradas, na pars urbana daquela uilla, ferramentas junto a uma grande cuba com cal e enormes pilhas de tesselas [LAVAGNE, H. (1988, p. 470) e DUNBABIN, K. (1999, p. 288)]. Ou, noutra dimensão, registe-se o caso da Maison du Triomphe de Neptune, em Acholla (Tunísia), onde foram detectados desperdícios resultantes do fabrico do mosaico, uma vez que ali se patenteavam pedras das mais diversificadas cores: «On trouve d’assez gros morceaux de calcaire blanc grège; leur dimension: 2,2 cm de longueur sur une section carrée de 1,2 x 1,2 ou 3 cm sur 1,3 x 1,3, montre qu’ils étaient destinés à être dédités en deux ou trois tesselles» [GOZLAN, S. (1992, p. 267)]. E, quem sabe, se aquelas plaquetas de calcário que sobejaram, e atendendo à complexidade do mosaico em causa, se destinariam afinal à execução local de tessellae de configuração diversa, de molde a compor-se a intricada teia de onde emerge a figura de Neptuno? 52 A informação acerca destas tesselas descobertas no mar foi-nos gentilmente cedida pelo Dr. António Carvalho e pela Dra. Catarina Coelho, a quem demonstramos o nosso público agradecimento.
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4. Os tessellarii: artistas ou artesãos? Se por um lado, o estudo morfológico dos mosaicos não oferece grandes dificuldades, por outro, a figura do mosaísta é, dada a escassez de informação disponível, deficientemente conhecida, pois, apesar da importância do mosaico enquanto veículo transmissor de conceitos, de ideias e, sobretudo, de iconografia, eles foram quase completamente ignorados pelos escritores clássicos, «quizá como fruto del profundo desprecio nacido en el ambiente áulico por todo lo que estuviera relacionado con el trabajo y los trabajadores»53. De facto, Jean-Paul Morel considera – citando Cícero: «todos os artesãos praticam um ofício vil» – que o artesanato foi subestimado no mundo antigo e que, neste sentido, os artífices e todos aqueles que laboravam com as mãos (incluindo os próprios técnicos e artistas plásticos) e auferiam salário, eram tidos como subhomens ou, quando muito, cidadãos de segunda classe54, pois, para os romanos a verdadeira dignidade centrava-se na posse da terra. Este facto, todavia, não impediu muitos aristocratas de possuírem – a par das propriedades agrícolas que exploravam com zelo –, e justificando deste modo o “proto-capitalismo” vigente, fábricas, ou dedicando-se igualmente ao comércio, porquanto os negócios eram um complemento seguro ao rendimento incerto da agricultura. Estes negócios eram frequentemente administrados por escravos ou por libertos, o que proporcionou a ascensão de uma certa burguesia impaciente também em mostrar o seu estatuto, à semelhança da antiga aristocracia, e, sobretudo, o seu poderio económico. De um modo geral, o artesão constituía a plebe urbana, pois era na cidade que a maioria trabalhava, não apenas os que se dedicavam à conservação do próprio burgo, mas ainda os que laboravam nas grandes indústrias ali instaladas, por isso, era socialmente irrelevante, excepto quando se organizava em colégios profissionais. Então, sim, os artífices detinham e ostentavam o poder da sua classe, conforme se poderá, a título de exemplo, aferir da leitura da legenda patente no já referido mosaico de Oceano (Faro), datável do segundo quartel do século III, e onde Janine Lancha encontra razões para considerar, entre outras hipóteses, que os três encomendantes seriam membros de um grémio profissional55. 53 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 126). 54 Cfr. MOREL, J.-P. (1992, p. 181). 55 Cfr., v.g., LANCHA, J. (1985, p. 151-175).
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Neste contexto – e apesar de então se apreciar a arte enquanto objecto de fruição sensorial, mas também como produto de ostentação – a figura do artista/artesão, esvai-se na penumbra do tempo e deles, enquanto criadores, pouco mais nos sobejou do que resquícios das suas obras. De facto, para o romano, o verdadeiro autor de um produto, fosse ele escultórico, arquitectónico ou musivo, era o seu encomendante, entendendo-se, neste âmbito específico, o obreiro como mero executador, pois a sua própria obra regia-se pelos cânones do gosto do proprietário ou ofertante pro bono publico (mesmo quando era o colégio profissional o patrocinador). Deste modo se justificará ainda, e um pouco à semelhança das divindades protectoras dos homens, a importância do evérgeta na sociedade antiga. Assim, face ao exposto – e enquadrando o mosaico na actividade «artístico-industrial» –, podemos concluir que o mosaísta era, afinal, um artesão e carreava consigo o genoma do mais profundo substrato social romano (o indivíduo de baixa condição, o escravo e o liberto)56. Por isso se justifica, na vasta plêiade de mosaicos hoje conhecidos, que subsistam tão poucas alusões, quer aos mosaístas, quer às respectivas oficinas. Estas referências, contudo, tornamse relativamente frequentes a partir dos finais do século III57, fenómeno compreensível, aliás, no âmbito das consequências do tempo novo que se inaugurara na época dos Severos. Será, pois, neste sentido que se enquadrará, por exemplo, a magnífica uilla de Carranque, datada de cerca de meados do século IV, onde existem provas concretas que várias oficinas laboraram em simultâneo: «De estos talleres es posible identificar dos com seguridad: el primeiro, de um tal MAS(cellin?)VS, levou a cabo los mosaicos del cubículo del proprietario y del oecus de la casa; el segundo, de um tal IV(L.PRV)D, realizaria el mosaico del triclinio, el de la fontana y el de la sala que lo antecede»58. Precedia a entrada do quarto principal a seguinte legenda, inscrita numa cartela: EX OFICINA MAS (_)NI/ PINGIT HIRINVS/ VTERE FELIX MATERNE/ HVNC CVBICVLVM. Inscrições estas que, contrariando o anonimato clássico, assumem com inusitado orgulho, talvez também como consequência de um nivelamento social que se foi materializando ao longo do tempo, as suas obras de arte59. 56 Cfr. a propósito LAVAGNE, H. (1988, p. 473) e LANCHA, J. (1994, p. 136). 57 LANCHA, J. (1994, p. 128). 58 FERNÁNDEZ-GALIANO, D., PATÓN LORCA, B. e BATALLA CARCHENILLA, C. M. (1994, p. 322). 59 Subsistem, entretanto, vários outros testemunhos afins – os quais na parte ocidental do Império, quando expressos em genitivo, se referiam ao mosaísta, chefe ou “proprietário” da oficina e não ao
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A transformação estrutural subjacente à própria contextualização operária das oficinas de mosaico, em parte patrocinada pela redução efectiva do número de escravos e pela concessão da cidadania aos libertos em 212, revelou-se também naquela época de profunda crise económica, política e social, provocada, designadamente, pelas revoltas dos bárbaros e dos Bagaudas na Gália, pela deserção de Carausius na Bretanha, pelos tumultos no Egipto e pela pressão persa nas fronteiras do Oriente, através da promulgação do Edictum de Pretiis, de Diocleciano (245-313). De facto, este documento estabeleceu que um pictor imaginarius auferia 150 denários por cada jornada de trabalho, enquanto que um tessellarius recebia apenas 50 60, tanto como um padeiro ou um ferreiro, pelo que a manutenção de um pintor no grupo, ou de artesãos especializados em tarefas absolutamente exclusivas, deveria ser muito onerosa, em particular nas pequenas oficinas de tipo familiar, tendo-se em atenção ao facto de os «mosaicists were in reality artisans, working from models given to them but seldom iniating anything themselves»61. Mais tarde, no código de Teodósio II (redigido entre 429 e 436) referenciaram-se estas oficinas caseiras, assinalando-se – numa medida que se nos afigura consentânea com uma tentativa de se evitar a completa desagregação do tecido sócio-económico do império ocidental – que os mosaístas que transmitissem o ofício aos filhos obteriam benefícios fiscais e gozariam de protecção corporativa62. Os artesãos, desde sempre relegados para os níveis inferiores da sociedade, foram, então, pela poderosa máquina burocrática, definitivamente amarrados aos seus ofícios63. E a arte, como expressão da alma humana, não ficou imune a tal existencialismo, muito mais inseguro do que nos tempos clássicos, mas tal-qualmente, renovado pelas influências das religiões orientais – dentre elas o Cristianismo – e pela explosão de fenómenos indígenas, cujas materializações plásticas, segundo Justino Maciel, «apresentam-sepintor [LANCHA, J. (1994, p. 130) e DUNBABIN, K. (1999, p. 271)], bem como se encontram algumas menções explícitas às oficinas – ex officina –, as quais se patenteiam apenas na Península Ibérica, em África e na Gália [GUARDIA PONS, M. (1992, p. 426)]. 60 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 129). 61 BLAKE, M. E. (1930, p. 21). 62 LAVAGNE, H. (1988, p. 473). Sobre estas pequenas oficinas familiares vide também DUNBABIN, K. (1999, p. 269). 63 Sobre esta matéria, vide LOT, F. (1985, pp. 97-119), defendendo este historiador que «se o regime de castas imposto ao mundo romano conseguiu retardar a sua decomposição, revelou-se contudo, impotente para lhe restituir o vigor e a juventude perdidos».
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nos na ambiguidade característica do uso comum dos mesmos instrumentos para a expressão de mensagens não necessariamente convergentes»64.
5. Organização funcional, itinerância e difusão dos modelos iconográficos No âmbito das oficinas, importa ainda mencionar a problemática subjacente à sua organização e funcionamento, pois, alguns dos seus aspectos têm vindo a ser alvo de diversa – e por vezes – contraditória abordagem. Assim, com base nos escassos testemunhos que nos foram legados, tem-se procurado esclarecer as questões mais obscuras relacionadas com a actividade dos mosaístas, nomeadamente acerca da organização funcional dos ateliers e a sua eventual itinerância e utilização de modelos como base para a concepção dos mosaicos. Na verdade, tem-se defendido que as oficinas eram constituídas por grupos de artesãos com tarefas bem definidas: o pictor imaginarius (responsável pela transposição do desenho); o tessellarius (encarregado pela colocação das tesselas); e o musiuarius (que realizava mosaicos parietais e de abóbada)65. Mas, ainda que consideremos o tessellarius – e, de certa forma, o pictor imaginarius – como o fundamento básico caracterizador de um atelier musivo, não cremos, no entanto, e ao contrário do que afirmam diversos investigadores, que existisse, sobretudo nas pequenas e médias oficinas, uma hierarquização rigorosa na distribuição de tarefas. Por conseguinte, muitas das actividades relacionadas com o fabrico de um mosaico, incluindo a construção do suporte e o assentamento das tesselas, poderiam ser realizadas, sem distinção, por todos os elementos de uma equipa, ou seja, apesar de cada membro ter a seu cargo uma função ou funções explícita(s), deveria colaborar nas várias fases de construção de um pavimento musivo66. Por outro lado, acreditamos também na possibilidade de muitas das pequenas e médias oficinas não contarem com a presença – pelo menos permanente – de um pictor imaginarius, sendo a sua função desempenhada pelo artífice mais habilidoso do grupo, sobretudo no que respeita aos mosaicos geométricos ou de cariz geometrizante. O facto de um dos mosaicos da já referida uilla de Carranque ter sido assinado pelo pintor juntamente com a 64 MACIEL, M. J. (1995, p. 105). 65 BRUNEAU, P. (1987, p. 152). 66 Opinião que partilhamos com GUARDIA PONS, M. (1992, p. 429).
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oficina, leva-nos a acreditar na notabilidade do desenho ou no carácter excepcional da sua participação na obra musiva67. Neste sentido, note-se que os pintores eram particularmente requeridos para o desenho de mosaicos figurados, nos quais, muitas das vezes, não se limitavam a inspirar-se na pintura ou a copiar os chamados cartões de modelos, mas eram capazes de improvisar um tema, de adaptá-lo de acordo com o próprio gosto ou à planta do espaço que tinham para pavimentar68, referindo, ainda a este propósito, Licínia Nunes Correia, que no que concerne à decoração fitomórfica dos mosaicos lusos – e apesar de aquela ter seguido o léxico generalizado – se constata uma certa liberdade criativa das oficinas locais69. Outro aspecto a salientar prende-se com o carácter fixo ou itinerante das oficinas musivárias, e, neste contexto, cremos que a transposição vivencial operada a partir do século III passou também pelo revestimento a mosaico dos principais espaços de uma uilla, o que terá contribuído para a proliferação de pequenas oficinas itinerantes. Na verdade, parece que existiram oficinas estabelecidas num local e outras que enveredaram pela itinerância num determinado raio geográfico, cuja amplitude não se encontra ainda esclarecida70, subsistindo, ainda, a hipótese de algumas oficinas terem tido a sua base em cidades e «desde allí acudían a los lugares desde que eran llamados»71, numa itinerância de carácter excepcional. Um dos problemas mais debatidos – e controversos – prende-se com a existência ou não de cartões, de livros ou de cadernos de modelos que formariam, enfim, o repertório do mosaísta, isto na medida em que os modelos seriam necessários para a fixação de um repetitivo, mas vastíssimo programa iconográfico, que, para além de servirem de base para compor a decoração do mosaico, seriam também um elemento fundamental para o cliente escolher os motivos que melhor se adaptavam ao seu gosto, pretensões sociais, culturais ou religiosas72. De facto, Clarke, após ter estudado quatro mosaicos a preto e 67 68 69 70
GUARDIA PONS, M. (1992, p. 427). LANCHA, J. (1994, p. 129). CORREIA, L. N. (2005, p. 82). LANCHA, J. (1994, p. 132). Sobre esta problemática CERRILLO CÁCERES e FERNÁNDEZ CORRALES (1981) realizaram para a Lusitânia uma análise de âmbito geográfico, na qual tentaram estabelecer relações entre a densidade/dispersão dos mosaicos e a sua eventual conexão com as cidades que lhes estão mais próximas. 71 GUARDIA PONS, M. (1992, p. 430). Opinião também defendida por BRUNEAU, P. (1987, p. 157). 72 LAVAGNE, H. (1988, p. 472).
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branco de Neptuno e a sua quadriga (Óstia, Risaro, Otricoli e Arezzo), concluiu que os artífices usaram um único modelo, mas, pelas diferenças notadas, não o aplicaram na escala de um para um como na técnica usada nos frescos do Renascimento, pelo que finaliza a sua interpretação considerando que, apesar, de as imagens terem sido «perhaps collected in albums or pattern books, that could be reproduced more or less accurately to suit a particular space»73. Estes cadernos, todavia, não teriam a forma de verdadeiros “catálogos ilustrados” (um produto de luxo, passível de ser possuído apenas por uma reduzida elite). Seriam, antes pelo contrário, conjuntos de apontamentos e desenhos74 – talvez delineados em placas de cera e/ou pintados em tabuinhas – que se comercializavam e/ou copiavam de outros mosaicos e de pinturas, que eram arrecadados dos ornatos cerâmicos, da escultura e fruto da própria imaginação que as equipas iam acumulando75, de acordo também com as modas e as épocas. Neste sentido, e se se considerar viável a hipótese que colocámos de terem existido grandes oficinas com sucursais dispersas um pouco por todo o Império, aquelas, nessa eventualidade, teriam contribuído também para a difusão do léxico musivo, ganhando-se, assim, uma aparente universalidade plástica, porque, e de acordo com Philippe Bruneau, seria impossível fixar num único instante toda a imaginária da Antiguidade76. De facto, não chegaram, até nós, quaisquer notícias (ou vestígios) de tais cadernos77 que, no entanto, acreditamos terem existido, não no sentido global que também Bruneau recusa, mas esses cadernos – ou, no nosso particular 73 CLARKE, J. R. (1994, p. 309). 74 GUARDIA PONS, M. (1992, p. 429). 75 Para LANCHA, J. (1994, p. 131), seria a tal «source commune d’information» a todos os artesãos. 76 Para este autor trata-se de uma falsa questão, pois, os cadernos «ne pouvaient rassembler toute l’imagerie de l’Antiquité. Quant à moi, cependant, je ne puis y adhérer (…): personne n’a jamais vu de chaier de modèles et aucun texte ni image n’en atteste l’existence. Ils n’ont donc d’autre réalité que celle d’hypothèse servant à expliquer ce qu’on observe; or, il me semble qu’un modèle, supposé, n’a rien d’autre à expliquer que l’étroite similitude, qui ne peut être fortuit, d’au moins deux copies identiques entre elles. Et justement, c’est ce qu’on ne constate jamais! Quand on rapproche des images mosaïques de même sujet, elles sont toujours beaucoup trop différents pour dériver d’um même modèle, même quand il s’agit d’un sujet très majoritairement, presque exclusivement mosaïstique comme Lycurgue et Ambrosia. (…) je ne crois donc pas que les mosaïstes transportaient des cahiers de modèles» [BRUNEAU, P. (1987, pp. 156-157)]. 77 Para NEAL, D. S. (1981, pp. 21 e 22), os mosaístas possuíam dois tipos de cartões: um seria uma espécie de mostruário, onde se patenteavam os desenhos que constituíam o repertório da oficina, e a partir do qual o cliente escolhia os motivos do seu agrado; enquanto que o outro seria um verdadeiro manual de execução.
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entendimento, essas tabuinhas – eram transmitidos de geração em geração e a sua continuada reedição permitiu que, desde que se utilizaram como temas recorrentes, tomassem parte da tradição artística do mundo romano, porquanto cada oficina terá constituído o seu próprio repertório. Mesmo na posse de um repertório específico, tal não deverá ser entendido como estático, pois, ao introduzirem ou retirarem elementos, ou alterando os existentes78, os mosaístas (e/ou os encomendantes) iam, afinal, criando novas composições, muitas das vezes combinando motivos de distintas proveniências, fenómeno bem patente, aliás, na Antiguidade Tardia, quando, a par da assunção de um certo naturalismo descritivo, o horror uacui se impôs na decoração musiva.
6. Breves apontamentos sobre a iconografia do mosaico Foi, igualmente a partir do século II da Era, que muitas oficinas instaladas nas províncias começaram, por conseguinte, a incorporar artífices locais (e/ou de outras proveniências), pelo que, na continuação temporal, se foram esbatendo as influências itálicas, criando espaços por onde empeçaram a «desarrollarse corrientes y matices regionales, algo que en caso peninsular se constata con mayor fuerza que en otras zonas del Imperio»79. Esta transversalidade dos opera musiua, ainda que matizada por factores regionais e idiossincráticos, mas de extrema importância para a compreensão da evolução da iconografia do mosaico romano – aos quais teremos, indubitavelmente, aduzir a generalização do uso da policromia a partir dos finais do século II –, contribuiu, de modo inequívoco e continuado, para o enriquecimento do catálogo temático que se abeberara já, entre muitos outros motivos, de algumas das formas geométricas que aqui referimos a título meramente indicativo, tais como a trança de dois cabos, com raiz no cordão helenístico e percursora de formas mais evoluídas, como o entrançado de três ou mais pontas, vulgarizadas a partir do século III. A suástica, atestada já no VI milénio a. C., mas cuja semasiologia lhe foi ditando, consoante o tempo e o espaço, diferentes interpretações, tendo-se revestido, na época em análise, de 78 Este facto encontra-se testemunhado, a título de exemplo, no Mosaico de Neptuno (Italica), no qual os artífices terão usado livremente os cartões, mudando alguns dos atributos normalmente associados ao motivo representado [BLÁZQUEZ, J. M. (1993, p. 96)]. 79 MORENO GONZÁLEZ, M. F. (1995, p. 121).
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determinado cariz protector e de fortuna, ao qual se terá aduzido – para além da vulgarizada associação ao Nó de Salomão80 – uma relação com o cantharus, com testemunho, entre outros, no recentemente descoberto e ainda inédito exemplar de Frielas, datado do século IV, numa eventual conexão ao culto dionisíaco, podendo-se encontrar neste facto um «reforço de modo a tornar, certamente, a protecção mais eficaz»81. Ou o Nó de Salomão, um atributo da união e da aliança, que nascendo pagão na época de Augusto82 está ainda presente num tesselado muçulmano em Mahdia (Tunísia), do século X83, e tornou-se património comum do mundo antigo, porquanto, apesar de ter mantido a integridade no que respeita ao seu próprio desenho evoluiu também noutro sentido, pois, «Sta di fatto che particolari fogge di nodi salomonici a scudo li vedremo ricorrere com frequenza a partire dal tardo III secolo sino a tutta l’età paleocristiana»84. Ou, ainda, um capacete com suástica, como o descoberto em Herculaneum, o qual – dada a delicada localização geográfica daquela cidade – poderá ser entendido num contexto de protecção85, tal como em inúmeros mosaicos baixo-imperiais se encontram crísmons apelando à boa-vontade de Cristo. Aspas, heras, letras, legendas, círculos, labirintos, quadrados, animais e muitas outras formas comuns no léxico musivário podem também, em determinados contextos, possuir significados de benfeitoria. Mas se, na verdade, não cremos na transversalidade valorativa dos elementos que se patenteiam nos mosaicos, parece-nos sensato optar-se – ainda na esteira de Sheila Campbell – por algum cuidado na tentação, por vezes apetecível, de classificar todo e qualquer motivo, ou composição mais estrambótica, como símbolo de protecção e/ou de boa-sorte. Na verdade, acreditamos que a universalidade da linguagem, ou melhor, das linguagens musivas, não encontrou – mercê dos fenómenos que temos vindo a explicitar – uma única tradução, pelo que, dependendo do tempo e do lugar, as mesmas formas podem figurar apenas como simples motivos decorativos, por vezes repetidos até aos limites da extenuação86. Ou mesmo 80 Fenómeno já atestado num fragmento de mosaico de Pompeios [cfr. SANSONI, U. (1998, p. 30)]. 81 COIMBRA, F. A. (1999, p. 87). 82 Cfr. SANSONI, U. (1998ª, p. 4). 83 ENNAÏFER (1994, pp. 315-318, fig. 9). 84 Cfr. SANSONI, U. (1998, p. 31). 85 CAMPBELL, S. (1994, pp. 295-296). 86 Vide no mesmo sentido, COIMBRA, F. A. (1999, p. 82).
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ressurgindo das profundezas dos tempos, como seja o quadrilóbulo entrançado – motivo já assinalado em plena proto-história87 – mas que marca presença na Península Ibérica no século IV88 e, com idêntica ou cronologia mais avançada, noutras províncias. Se as formas geométricas, no contexto de apreciação objectiva, surgem mais difusas, como por exemplo, quadrilóbulo entrançado, os modelos vegetalistas, que na Lusitânia ocidental costumam surgir associados a motivos geométricos, distanciam-se iconograficamente do “estilo florido” «de alguns mosaicos africanos, ou do rendilhado vegetal dos Hospitalia da Villa Adriana»89. Ainda assim patenteiam-se, em alguns mosaicos, aproximações às correntes africanas. Esta última perspectiva, no entanto, tem sido – quanto a nós – de algum modo empolgada, uma vez que, na Península Ibérica, porquanto, nem todas as figurações mais ou menos exóticas podem reclamar esse estatuto, ainda que seja inequívoca a comparência de ateliers africanos neste território. A existência, por exemplo, de animais estranhos – se exceptuarmos, entre muitas outras, as ditas representações nilóticas – não indiciará forçosamente uma filiação a uma oficina ou a mosaístas de origem africana. Na verdade, existia um conhecimento efectivo acerca desses animais, mercê da sua importação e sequente chacina nas ensanguentadas areias das arenas para gáudio das multidões – panem et circenses – e simultâneo respeito pela heroicidade dos animais em luta90. 87 VASCONCELLOS, J. L. (1913, pp. 82-83, fig. 44). 88 O quadrilóbulo entrançado – quatro círculos contíguos dispostos de modo a formar um quadrado ou, em variante próxima, desenvolvido a partir da intersecção de dois ss –, motivo de aparente origem tardia, balizando-se a sua aplicação entre os séculos IV e V, e com escassos exemplos referenciados na bibliografia compulsada, apresenta, apesar de tudo, uma alargada dispersão geográfica, designadamente, em Roglit, Israel [OVADIAH, R. e OVADIAH, A. (1987, p. 124, n.º 210, pl. CXXXVII)], em Aphrodisias, nos mosaicos da House 2 e do North Temenos Complex, Turquia [CAMPBELL, 1991, pp. 20-21, n.º 7, pl. 73 e pp. 2-4, n.º 3, pls. 9 e 11)], em Aquileia, Itália [ORANGE, H. P. L.’ e NORDHAGEN, P. J. (1960, pp. 47-48, est. 41)] e em Montmaurin, França [BALMELLE, C. (1980, pp. 81-83, n.º 75, pls. XXX e XXXI)]. A maior concentração do quadrilóbulo entrançado, todavia, encontra-se na Península Ibérica, em Talavera de la Reina [BLÁZQUEZ, J. M. (1982, pp. 43-46, n.º 31, fig. 21)], na capital da Lusitânia e, nas suas imediações, na uilla de El Hinojal, no mosaico com caçador de javali [BLANCO FREIJEIRO, A. (1978, pp. 33-34, n.º 14, láms. 24-25 e p. 52, n.º 65, fig. 11)] e, no ocidente da Península, no mosaico de Oeiras, datável do século IV [BORGES, F. (1986, pp. 91-106, n.º 24, ests. XIX-XX]; GOMES, M.V., CARDOSO, J. L. e ANDRÉ, M. C., 1996, p. 404, no entanto, apontam para este mosaico uma cronologia circunscrita aos finais do século II/inícios do III. Em São Miguel de Odrinhas [CAETANO, M.T. (1997, pp. 63-70, n.º 12)]; e na uilla de Rio Maior [C. F. OLIVEIRA (2003, pp. 61-79, n.º 3, des. 2), autora que aponta ainda, para além destes, outros mosaicos onde se patenteia o quadrilóbulo entrançado]. 89 CORREIA, L. N. (2005,p. 81). 90 Sobre esta matéria, em concreto, veja-se NOGALES BASARRATE,T. (2000).
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As representações de índole religiosa e/ou mitológica, de cariz pictórico, foram, por outro lado, alvo de uma cristalização prematura, segundo cânones iconográficos há muito estabelecidos que lhe definiram a essência. Isto, independentemente da melhor ou pior execução dos desenhos, da adição ou subtracção de uma ou várias personagens secundárias, do acrescento ou da omissão de um ou outro pormenor, como se patenteia, aliás, nos mosaicos alusivos a Dioniso. Neste contexto, nota-se que a divindade, por norma, surge de pé num carro tirado por dois tigres (da esquerda para a direita, no plano do observador), acompanhado, ou não, por um séquito de composição variável. Assim, apenas ao nível da Península Ibérica – mas com consciência de que este modelo se repetiu um pouco por todo o Império – destaca-se, no que concerne ao Triunfo de Dioniso, a iconografia simplificada do mosaico de Andión, de cronologia indeterminada, mas circunscrita ao Alto-Império91, ou a complexidade do pavimento de Caesaraugusta, datado da época dos Antoninos92; de época tardia, refira-se o mosaico da uilla de Torre de Palma, de boa qualidade na sua lavra, datado da transição do século III para o IV93, e o de Tarraco, que apesar de se manter a representação canónica, aduziu-se uma extemporânea figura alada, considerando Milagros Guardia Pons a hipótese de se estar perante uma associação de Dioniso com Hélios-Mithras94, ou seja, um indício da miscigenação de diversas correntes de pensamento religioso-simbólico. E, finalmente, em Emerita Augusta, o mosaico assinado EX OFFICINA ANNI PONI, datado cerca de 400, cuja representação báquica – neste caso uma descrição do mito de Ariadne – flutua num espaço desordenado, mas despojado do seu vazio pela inclusão, entre outros, de cruzes e de florões inscritos em círculos95, revelando, já nesta época tardia, a quase total desagregação de uma iconografia teocrática, outrora bastante estandardizada96.
91 DURÁN, M. (1993, pp. 276-279, n.º 81, fig. 46, lám. XLIV). 92 BLÁZQUEZ, J. M. et alii (1989, pp. 51-57, n.º 35, lám. 48) e DURÁN, M. (1993, pp. 274-276, n.º 80, lám. XLIII). 93 LANCHA, J. e ANDRÉ, P. (2000, pp. 157-213, n.º 2, est. LXV). 94 GUARDIA PONS, M. (1992, pp. 35-37, lám. 1). 95 BLANCO FREIJEIRO, A. (1978 p. 34, n.º 15, láms. 26-27 A). 96 Seja como for, esta bricolage de imagens conduziu, em última instância, quer à recriação livre de temas concretos, quer à contaminação [LAVAGNE, H. (1988, p. 472)] dos mesmos, ou seja, a inclusão num único mosaico de representações completamente antagónicas, desproporcionadas e erradas.
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Esta evolução iconográfica coincidiu, também ela, com o processo de ruralização da sociedade e economia e resultou, igualmente, desse mesmo processo. Desta forma, os temas de tradição greco-romana foram sendo substituídos por representações mais telúricas e narrativas. Surgiram, então, sobretudo nas uillae, as suas próprias representações, bem como dos trabalhos de lavoura; as apreciadas cenas de circo, as corridas de quadrigas, os cavalos vitoriosos e os aurigas laureados, tendo Justino Maciel realizado, a propósito do mosaico de Conimbriga, um interessante esquema de interpretação real e simbólica em que, entre outros paralelos observados, destacamos a convergência do auriga com Apolo conduzindo o carro do Sol97; as passagens cinegéticas – e a caça era tida como um acto heróico – revelam-se no caçador que ataca frontalmente o javali e que se assume como um guerreiro vitorioso; ou dos cavaleiros que perseguem e espetam, com as suas compridas lanças, veados, e também, apelando à glória suprema, panteras e outros animais ferozes. Mas, por outro lado, o mosaico, de finais do século III ou de inícios do IV, proveniente de uma uilla situada nos limítrofes da cidade de Córdova, e onde se representa um cavaleiro em desenfreado galope, precedido pelos seus galgos que correm atrás de uma lebre, cujas legendas, a primeira sob o ginete, THALAS/ SIUS QUI UENATOR, e as outras duas nomeando os cães LATERAS – talvez por Latras – e NIMBUS98, poderão, pela modéstia da cena retratada, revelar uma certa ambiguidade entre a necessidade de Talásio se auto-representar engrandecido pelo acto de caçar (ainda que no caso vertente se trate de um pequeno e inofensivo coelho), e o reflexo da abertura do homem à mãe natura, como nos mostra, afinal, o prosaico elogio patente na uilla de Cardílio:VIVENTES/ CARDILIVM/ ET AVITAM/ FELIX TURRE99. O primado da natureza entranhou-se na vida campesina, reflectindo-se este facto também na ars musiva, porquanto na sua iconografia se foram talqualmente esvanecendo os contornos da mitologia pagã. E, na verdade, esta constatação está bem presente no fragmento de mosaico de Puerta Oscura (Málaga), no qual a figuração do mito de Belerofonte a matar a Quimera se integra, com a maior ingenuidade, numa vulgar cena de caça, inclusive com cão e caçador apeado atrás de um cervídeo, sendo apenas tal narrativa identificada 97 MACIEL, J. (1996, p. 133). 98 GÓMEZ PALLARÈS (2005, pp. 275-277). 99 MACIEL, J. (1996, p. 155).
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pelo facto de se terem introduzido legendas, uma sobre o ginete e respectivo montador – [PEGA]SVS e BELLEREFONS – e a outra, dividida em três linhas, junto do leão – QV/ME/RA100. Enquanto que noutros casos se pode encontrar naquela mesma cena uma leitura de simbólica cristã (São Miguel Arcanjo a trespassar o dragão), assim como em alguns quadros de Orfeu que Clemente de Alexandria comparou, pela sua inusitada capacidade em sujeitar os animais, a Jesus Cristo. Mas uma das melhores sínteses do que temos vindo a evidenciar sobre esta interpretatio christiana na iconografia do mosaico encontra-se testemunhada na abóbada de Centecelles, onde se distribuem, em círculos concêntricos a apontar na direcção do Céu, cenas cinegéticas, a pé e a cavalo; trechos bíblicos; as Quatro Estações101; os retratos dos Augustos Magnêncio e Constâncio II e dos Césares Vetrânio e Decêncio; e, no topo da cúpula, algumas outras personagens não identificáveis102. Finalmente, e a encerrar esta síntese acerca da iconografia, atentemos ao singular mosaico de Mértola com cena de caça, de influência bizantina e com cronologia circunscrita aos finais do século V ou inícios do VI103, ainda que Justino Maciel, em recente recensão ao estudo de Virgílio Lopes e alicerçando-se em distintos argumentos, empurre aquela datação já para o século VI ou VII104. Neste tesselado, o cavaleiro, com luva calçada na mão esquerda, segura um falcão remetendo-nos para um universo medieval, cuja abrangência deveras extravasa o âmbito desta nossa breve reflexão acerca da origem, difusão e iconografia do mosaico romano. Isto, apesar de ali conviver pacificamente uma quimera, retratada segundo o cânone clássico, constituindo também ela inequívoca prova de que o antigo substrato cultural estava ainda bem presente, assim como se manteve latente por muito mais tempo. E embora o Império, que anteriormente estivera ameaçado, ir caminhando, nas palavras de Ward-Perkins, de uma Antiguidade Tardia para uma New Age105 (após as invasões do século V que decapitaram Roma e tombaram 100 BLÁSQUEZ, J. M. (1981, pp. 77-78, n.º 53, lám. 61A). 101 Aqui, e ainda na tradição da Antiguidade Clássica, as estações estão representadas através de bustos masculinos, mas a tendência normativa desta representação no âmbito da Antiguidade Tardia, conduziu à adopção do perfil feminino [MACIEL, J. (1996, p. 155)]. 102 HAUSCHILD,T. e ARBEITER, A. (1993 pp. 49-94). 103 LOPES,V. (2003, pp. 110-114, 5.1.10). 104 MACIEL, J. (2005, pp. 324-325) 105 WARD-PERKINS, B. (2006, p.234).
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a pars ocidentalis do Império), passaram, para a população em geral, a ser despiciendas muitas das vontades antigas, exceptuando-se, obviamente, a nova elite política e a Igreja Católica que se acercaram deste universo e o reestruturaram em sentido diverso. Assim se compreenderá o relato de Prisco, um diplomata romano que, em 449, quando aguardava ser recebido por Átila, foi surpreendido por um antigo mercador grego, com aspecto bárbaro, e que lhe confessou que, afinal, vivia melhor entre os hunos do que no meio dos romanos. Ou o texto de Salviano – também citado por Andrea Giardina –, no qual se afirma que muitos romanos debandavam para junto dos godos e dos celtas sublevados porque «‘preferem viver livres sob a aparência de prisão a viverem prisioneiros sob a aparência da liberdade’, e que procuram entre os bárbaros a humanitas Romana porque ‘não podem suportar a bárbara desumanidade que existe entre os Romanos’»106.
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RESUMO ABSTRACT The mosaics in the Roman Villa of Rabaçal are of great artistic merit, especially the Seasons of the Year figures. Their incorporation in an architectural structure of outstanding quality is exemplary, and they are a fine illustration of the kind of work produced in a peripheral zone at the western edge of the Atlantic coast, in the middle of the 4th century. They reflect a style, a technical skill and an exquisite interpretation of models whose distant parallels suggest the presence of a travelling workshop with eastern affinities, which we may find in the future, in other creations, and their corresponding itinerary and influences. And so, this work, influenced by artists from the imperial court in Constantinople, the new capital of the Roman Empire, in the second third of the 4th century stands, at the present stage of our research, as a rare example of proto-Byzantine art in Portugal.
Os mosaicos da Villa romana do Rabaçal, em particular as figuras das Estações do Ano, são reveladores de um alto valor artístico. Exemplarmente integrados numa arquitectura de extraordinária qualidade, ilustram bem um tipo de trabalho de uma oficina numa zona periférica no extremo ocidental da costa atlântica, em meados do século IV. Reflectem um estilo, capacidade técnica e uma boa interpretação de modelos cujos paralelos longínquos sugerem a presença de uma oficina itinerante de afinidades orientais, da qual talvez venhamos a conhecer no futuro outras criações, bem como o correspondente itinerário de influências. Assim sendo, esta obra influenciada pelos artistas da corte imperial instalada em Constantinopla, a nova capital do império romano no segundo terço do século IV, constitui-se, no actual estado da nossa investigação, como um raro exemplo de arte proto-bizantina em Portugal.
MOSAICOS DA VILLA ROMANA DO RABAÇAL, PENELA, PORTUGAL: Prelúdio de arte bizantina? Miguel Pessoa*
Introdução A Villa romana do Rabaçal é designada pelo nome da actual povoação do Rabaçal, na ausência de qualquer testemunho epigráfico ou textual. Foi implantada, conforme as recomendações de Columella (De re rustica, I, 4-6), numa meia encosta, com exposição privilegiada, entre uma cumeada com arvoredo e um pequeno riacho. Do seu lado nascente, a escassas centenas de metros, do outro lado do vale, encontra-se a antiga estrada romana principal
Vista aérea da Villa romana do Rabaçal: pars urbana, balneário, pars rustica. © Fotografia de Delfim Ferreira. Primavera. 1994.
* Arqueólogo / museólogo. Conímbriga, Instituto Português de Museus. Coordenador dos Trabalhos Arqueológicos da Villa Romana do Rabaçal, Município de Penela, Rede Portuguesa de Museus. Doutorando em História da Arte da Antiguidade.
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que ligava Olisipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga), passando por Sellium (Tomar) e Conimbriga. Estava situada no território da ciuitas de Conimbriga, no Conventus Scallabitanus, província da Lusitânia, hoje no distrito de Coimbra e município de Penela. Os trabalhos arqueológicos em curso desde 1984 prolongam-se na actualidade. Foram entretanto descobertos a área residencial (pars urbana), o balneário (balneum), a casa agrícola e anexos de produção (pars rustica e frumentaria), bem como a zona de captação de água. A construção da residência senhorial (pars urbana) está datada de meados do séc. IV com base em provas numismáticas. Os pavimentos de mosaico identificados na pars urbana cobrem uma superfície estimada em cerca de 200 m2, o que corresponde a menos de metade do inicialmente existente (c. 500 m2), numa área construída de aproximadamente 1032 m2.
Planta e alçado Sul da área residencial (pars urbana) da Villa romana do Rabaçal. Identificação dos compartimentos com pavimento de mosaico parcialmente conservado (a cinzento escuro) e desaparecido (a cinzento claro). Desenho de José Luís Madeira. 1993.
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Apesar das vicissitudes que ocorreram quer em época antiga (restauros, cortes), quer em tempos mais recentes (covas de oliveiras, trabalhos agrícolas), observados nos vários momentos da descoberta entre 1984 e 1992, conservam-se ainda alguns elementos decorativos nos mosaicos que possibilitam uma análise detalhada dos motivos geométricos, vegetalistas e figurativos. Estes pavimentos estão integrados num conjunto arquitectónico que se desenvolve à volta de um átrio octogonal (peristylum) orientado segundo a rosa-dos-ventos. Adjacente a este pórtico central (h, i, k, l, m, s, x, u, g) de 24 colunas, desenvolve-se, uma construção radial onde, a partir de 27 espaços diferenciados, estão definidas 4 áreas funcionais: entrada (b), compartimentos de apoio (c, e, f, j), vestíbulo (a) e torre de belver (d), a sul; espaço de aproveitamento de luz e prolongamento visual sobre o horizonte (i, k, l), a nascente; área ligada a serviços (n, o, p), a norte; zona nobre com salas de aparato (t, v, y), onde se destaca o oecus (v) e o triclinium (y), compartimentos de apoio (q, w, w´, z) e, provavelmente, uma estrutura basilical (r), a poente (Pessoa, 1998, p. 14-44).
Descrição e análise comparativa de elementos de decoração geométrica, vegetalista e figurativa Procuremos então analisar os elementos decorativos dos mosaicos do Rabaçal, distinguindo o que vem de fora, identificado como não sendo fruto de escolas regionais. Quais os que são passíveis de serem inseridos na tradição helenístico-oriental? Quais são os que fazem parte de um novo conjunto de composições? Reconhece-se neles uma diferente abordagem da temática figurada própria da arte tardo-romano-bizantina? Onde estão os seus elos de ligação? Observemos a colorida decoração de grega em meandro policromo de suásticas e quadrados em perspectiva oblíqua, sobre fundo negro (cf. Répertoire 269; Décor I 42d), que envolve os painéis das Estações do Ano, no corredor oeste do peristylum; a exótica cer- Cercadura com decoração de grega composta de meandro policromo de suásticas e quadrados em perspectiva oblíqua, sobre fundo negro. cadura de “vasos dourados e Pormenor do mosaico do corredor oeste do peristylum, da Villa romana açucenas” (cf. Décor I 93, 94, do Rabaçal. © Fotografia de Delfim Ferreira. 1987.
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250; Décor II p. 48, 51), do painel da Quadriga Vencedora, no centro do mesmo corredor (cf. Décor II 420a); a elaborada cercadura de enrolamentos de folhas de acanto e flor de crisântemo (cf. Répertoire 121, 302) e Estações do Ano (Pessoa, 2005, p. 6-18), do mosaico do centro do triclinium. Lembram exemplares de Morgantina (grega), na Sicília, do século III a C. (Darmon, 1976, p. 29, fig. 2), de Pella (cercadura de enrolamentos), na Grécia, do século IV a. C. (Bruneau, 1976, p. 20-21, fig. 4), da Villa de Piazza Armerina (moldura da Cena da Grande Caçada), Sicília, do século III, IV d.C. (Capizzi, Galati, 2003, p. 82), do Mausoléu de Galla Placídia (grega do intradorso), em Ravena, de 425-430 d. C. (Bustacchini, 2000, p. 24), Leptis Magna, na cercadura de meandro de suásticas em perspectiva oblíqua, que envolve o mosaico figurado com cena que assinala a vitória de um gladiador. Note-se que a cercadura com candelabros e composição em orthostatae, do mosaico de Narciso, na Casa do mosaico da “Mesa com buffet”, em Antioquia, na Turquia, do século III d. C. (Levi, 1949, p. 136, Pl. XXIIIc), é semelhante à composição que se encontra no centro do corredor oeste do Cercadura de vasos e açucenas. Pormenor do mosaico do corredor peristylum da villa do Rabaçal. oeste do peristylum da Villa romana do Rabaçal. São ainda assinaláveis gregas © Fotografia de Delfim Ferreira. 1987. semelhantes na Península Ibérica, por exemplo, na Villa de Maternus, Carranque, Toledo, na moldura de meandro de suásticas e caixotões policromos em perspectiva que envolve o “Mosaico de Briseida, Aquiles e Ulisses” (Patón Lorca, 1992, p. 31), e na cercadura (também dita de labirinto contínuo em perspectiva axionométrica) que emoldura o do emblema da “Despedida de Adónis”, no centro do espaço rectangular do mosaico do oecus da Villa de Arellano (Navarra), datado do 2º terço do século IV (Mesquíriz Irujo, Unzu Urmeneta, 2005, p. 990), moldura esta semelhante à do mosaico de “Gê, Aion e Prometeu”, de Shaba-Philippopolis, na Síria, datado da 2ª metade do século III (Balty, 1977, p. 28). Na villa do Rabaçal são evidentes procedimentos de tradição helenística na procura de efeitos volumétricos. Alguns destes motivos encontramo-los repetidos nos baixorelevos que decoravam as paredes do triclinium e dos corredores do peristylum (Pessoa, Rodrigo, Santos, 2004, p. 24, nº 17; idem, p. 27, nº 25; ibidem, p. 28, nº 28) (cf. Répertoire 261, 121, 252).
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Observemos, por outro lado, a introdução de novos elementos ornamentais nos mosaicos do Rabaçal na criação do entrelaço e entrecruzado, baseado no reper- Cercadura decorada com enrolamento de folhas de acanto, gavinhas, tório geométrico romano espigas e crisântemos, no mosaico do centro do triclinium da Villa romana do Rabaçal. © Fotografia de Delfim Ferreira. 1990. tradicional, evoluindo aqui para uma elaboração mais complexa. São exemplo disso a composição de octógonos irregulares flanqueados de quadriláteros (cf. Répertoire 348; Décor I 182b), no mosaico do fundo do triclinium , sala contígua ao corredor oeste do peristylum. A decoração apresenta quadrado e círculo ligados por quatro entrelaços, cruz e círculo entrelaçado, quadrado enlaçado de trinta e duas voltas, quatro lóbulos ligados em cruz por oito entrelaços, quadrado com nós de dois entrelaços a meio dos lados, escudo de escamas radiantes em crescendo (cf. Décor II 331d), roda de armação em umbela e dois quadrados entrecruzados, círculo, cruz e fusos entrelaçados (cf. Répertoire 89; Décor II p. 39, 41, 43 e 304b, 331b, 359a/b).
Cercadura decorada com elementos vegetalistas e composição tipo “candelabro”, no mosaico do corredor oeste do peristylum da Villa romana do Rabaçal, Penela, Portugal, do séc. IV d. C.
Outro exemplo é a composição de quadrados, decorados com cruz e círculos entrelaçados e cabo ondeado de oito arcos e dois círculos concêntricos, entrelaços de quatro nós e cabo ondeado de oito arcos (cf. Répertoire 67,69), integrados no labirinto da larga cercadura do pavimento do oecus, sala contígua ao corredor sudoeste do peristylum.Veja-se, ainda, a decoração do losango do tapete de entrada do vestíbulo com cabo ondeado de vinte e quatro arcos
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(Pessoa, 1998, fig. 51) (cf. Répertoire 67; Décor II 300b). Este desenho complexo aponta para centros de criação determinados. Conhecem-se exemplos da mesma época em Tessalónica e Apameia donde seriam exportados. Daí não serem tidos como o resultado de um processo autónomo de criação regional (Fernandez-Galiano, 1984, p. 427). O mosaico do centro do oecus, sala contígua ao corredor sudoeste do peristilo, apresenta um grande círculo (cf. Décor II 399c), inscrito num quadrado. A composição interior é constituída por dois quadrados de linhas entrecruzadas de pontas radiantes, entrelaçadas por um cabo ondeado formando dezasseis arcos (Pessoa, 1998, p. 26-29). Este desenho tem paralelos num e noutro extremo do Mediterrâneo, nomeadamente em La Almunia de Doña Godina, Saragoça (Aragão) e em pavimentos de basílicas paleocristãs da Grécia (Ermione e Cós) e da Palestina (Belém) (Fernandez-Galiano, 1984, p. 424-426). Ainda, no mesmo mosaico do Rabaçal, a decoração de cântaros, de cujas bocas saem, em simetria, cabos ondulantes com volutas, revela estarmos perante uma execução de sombreados de carácter pictural.Vemos aqui semelhanças com um mosaico de Daragoleja (Granada), que Fernandez-Galiano (1984, p.427) relaciona com mosaicos da Síria, nomeadamente de Dafne, Antioquia e Apameia, nos quais são apresentados animais afrontando um cântaro, do qual brotam enrolamentos vegetais, segundo modelos orientais usados nos têxteis. Os golfinhos representados nos mosaicos dos cantos sudeste/sul, sudoeste/oeste e noroeste/oeste, dos corredores do peristylum da villa do Rabaçal denotam o mesmo tipo de organização formal (Pessoa, 1998, p. 23, 25, fig. 51). Observemos de seguida as Estações do Ano da Villa do Rabaçal, em particular as que se conservam no corredor oeste (x) do peristylum no que diz respeito à ambivalência das imagens. A uma certa uniformização das quatro figuras (bustos de frente, voltados a 3/4, olhar na Baixo-relevo decorado com mesma direcção, exibindo jóias, penteados e rico motivos vegetalistas tipo candelabro, formando vestuário, de cores auspiciosas, em sinal de pertença a alto orthostatae. Mármore. estrato social, atributos vegetais simétricos), que enconVilla romana do Rabaçal. tramos como característica de alguns mosaicos tardios, Provém do triclinium. (Idem, p. 27, nº 25). como acontece nas Estações do Ano de Piazza Armerina,
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Sicília, do século III/IV d.C. (Capizzi, Galati, 2003, p. 86-87) e nos mosaicos bizantinos (veja-se em comparação o mosaico do “Cortejo das Virgens”, na Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena) (Bustacchini 2000, p. 123), contrapõe-se o retrato individualizado, porventura de mulheres da mesma família, com diferentes idades, adornadas com um mostruário de peças de ourivesaria e símbolos sazonais, alguns deles fora do comum. À expressão de figuras de convite (oferecendo presentes – xenia – aos convidados), acrescentase o decorativismo das molduras (cf. Répertoire 183, 229, 287, 300; Décor I 2a, 2d, 23m, 51d, 91b; Décor II p.48 e 225d). Também as figuras do mosaico dito dos Orantes da cúpula da Rotunda de S. Jorge, em Tessalónica, datada cerca de 400 d. C., a par de algum hieratismo, estão tomadas de expressão e traços individuais, segundo a tradição helenística e romana do retrato, continuando a representar personagens contemporâneas num estilo realista (Papahatzis, Niconanos, 2000, p. 58-59). A desenvoltura artística revelada no conjunto dos mosaicos do Rabaçal parece sofrer, no entanto, as limitações próprias de um programa de imagens muito definido. De facto a repetição das Estações do Ano, no corredor oeste do peristylum e no centro do triclinium, poderá ser o reflexo da renovação do uso das alegorias. Veja-se o exemplo coevo do mosaico de Soteria, a Salvação, nas termas de Apolausos, em Antioquia (Bertelli, 1993, p. 33). A utilização nas artes de alegorias, então em voga, não ofende nem o lado pagão nem o cristão. Esta diversidade de propostas ornamentais presente na Villa do Rabaçal está também patente na decoração parietal de baixo-relevos em mármore Estremoz – Vila Viçosa. De facto “o reconhecimento oficial do cristianismo deu lugar a um declínio da escultura de vulto redondo, na medida em que a nova religião não escolheu recorrer a estátuas do culto de Cristo, da Virgem e dos Santos. A grande estatuária – dedicada aos ídolos – possuía uma conotação evidente”. “O baixo-relevo desenvolveu-se ainda mais livremente dado corresponder plenamente a uma tradição decorativa sem ameaçar o novo culto” (Sodini, 1992, p. 30-31). As placas decorativas parietais em mármore recolhidas no Rabaçal apresentam motivos geométricos, arquitectónicos (que não guardam as devidas proporções entre os elementos) (Pessoa, Rodrigo, Santos, 2004, p. 19, nº 1) e vegetalistas, por exemplo, em frisos com suástica (Idem, p. 24, nº 17), em cornijas jónicas (Idem, p. 22, nº 15), em caixotões de projecção oblíqua (Idem, p. 28, nº 28) e em quadrados enlaçados (Idem, p. 31, nº 35) (cf. Répertoire 67), que decoravam o triclinium e os corredores do
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peristylum. Nelas se evidencia, ainda, uma tradição helenística mas já com a introdução de novas formas. Encontramos semelhanças deste tipo decorativo no conjunto de baixo-relevos, da mesma época, descobertos em Paphos, Kourion, Amathouse e Hagios Philon, em Chipre (Boyd, 1999, p. 49-62). De assinalar a presença de um exemplar deste tipo de placa decorativa (Inv. A. 3524) na vizinha Conimbriga, em ConRepresentação da Primavera no mosaico deixa-a-Velha, concelho de Condeixa-a-Nova, e das Quatro Estações, no corredor oeste do peristylum da Villa romana do Rabaçal. na Villa de S. Cucufate, Vidigueira, no sul de © Fotografia de Delfim Ferreira. 1990. Portugal (Alarcão, Etienne, Mayet, 1990, p. 264265, Pl. CX, nº 6 ), datada do início do século V d. C. Estas composições denotam alguma perda do sentido espacial volumétrico, ausência de qualquer referência paisagística, despreocupação pelos cânones métricos, perda de simbolismo e tendência para o progressivo desaparecimento de representações figurativas mitológicas. “Nasce destas transformações uma arte nova, que preludia brilhantemente a arte bizantina e que vai centrar-se na decoração de ambientes cristãos, para o que precisa, logicamente, de uma iconografia diversa, adaptando os motivos da tradição clássica ou criando outros para satisfazer as novas necessidades” (Fernandez-Galiano, 1984, p. 420).Vejamos, como exemplo desta transformação, a similitude de pose da figura sentada no centro do triclinium do Rabaçal com a figura da Virgem sentada no mosaico dito da Anunciação, no arco do triunfo da Igreja de Santa Maria Maior, em Roma (432-440 d. C.), e a exuberância de jóias (diademas, brincos, colares e peitorais), vestuário e penteados das Estações do Ano do Rabaçal e das “Virgens em Procissão”, no mosaico parietal da Igreja de Santo Apolinário Novo, em Ravena, datado da 2ª metade do século VI d. C. De notar a semelhança da representação deste tipo de adereços nas figuras do mosaico da Imperatriz Teodora e do seu séquito, na parede lateral do altar-mor da Basílica de S. Vital, em Ravena, datado de cerca de 547 d. C. (Bustacchini, 2000, p. 55-56), bem como o pormenor do peitoral com pendentes da figura do Outono do Rabaçal e do seu congénere exibido por uma das aias (a terceira à direita da Imperatriz) do referido mosaico. De facto,“o talhe do ouro de maneira a formar uma decoração geométrica ou floral, comummente chamado de Opus interrasile, introduzido no século III na
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ourivesaria romana, conhece uma grande predilecção até ao século VI ou mesmo no começo do século VII. A procura de efeitos coloridos foi nitidamente acentuada através da junção de pérolas e de pedras semi-preciosas. A decoração gravada em nigela e esmalte são outros exemplos do gosto pela policromia” (Baratte, Metzger, 1992, p. 103). Também os discos que ladeiam, de um lado e outro, a cúpula em concha, sobre a Representação da Inverno no mosaico das Imperatriz Teodora, em S.Vital, têm semelhan- Quatro Estações, no corredor oeste do ças com os representados nos mosaicos do peristylum da Villa romana do Rabaçal. Rabaçal (Bustacchini, 2000, p. 55-56), motivo © Fotografia de Delfim Ferreira. 1990. aliás muito utilizado, em Ravena, nos frisos. Estes discos estão presentes no mosaico do Redentor, alternando com S’s afrontados e candelabros, no mosaico que decora o centro do escudo com monograma de Cristo, à frente dos militares do séquito de Justiniano, e no mosaico a meio do extradorso absidal, no qual dois anjos seguram um disco cromático com o símbolo a, integrando todos a abside daquela basílica de Ravena (Bustacchini, 2000, p. 48-57). As molduras das figuras das Estações do Ano dos mosaicos do Rabaçal, de inspira- Representação do Outono no mosaico das Quatro Estações, no corredor oeste do ção clássica, exibem também óvulos e dardos, peristylum da Villa romana do Rabaçal. S’s afrontados e cruzes de pontas triangulares, © Fotografia de Delfim Ferreira. 1990. pérolas e fusos dourados, sobre fundo vermelho, negro e dourado, característico dos mosaicos bizantinos (especialmente em Roma, Tessalónica, Istambul e Veneza). Estas formas e cores podem ser observadas na moldura superior do mosaico dito dos Orantes, sobre um fundo de arquitectura cenográfica do género da pintura mural de Pompeia, no ângulo baixo da cúpula da basílica conhecida por Rotunda de S. Jorge, em Tessalónica, datada dos fins do século IV d. C. (Papahatzis, Niconanos, 2000, p. 52-52) e no mosaico da Cúpula de Centcelles, em Tarragona, de meados do séc. IV d.C..
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Este tipo de friso composto de óvulos e dardos encontramo-lo representado, de forma muito semelhante, a limitar a parte superior do mosaico da Imperatriz Teodora, na parede lateral da abside de S. Vital, em Ravena, datado de cerca de 547 d. C., e na moldura do medalhão do mosaico do centro da cúpula do Baptistério Neoniana dos Ortodoxos, também em Ravena, datado de entre 449 e 452 d. C. (Bustacchini, 2000, p. 89-90). O motivo de S’s afrontados encontramo-lo ainda nas molduras que limitam o mosaico com Cruz inscrita num círculo azul, na abóbada de berço, por baixo do coro da Igreja de Santa Sofia, em Tessalónica, datada entre 690-730 d. C. (Papahatzis, Niconanos, 2000, p. 108-109). Este motivo encontra-se representado na Península Ibérica, por exemplo, na moldura do mosaico de “Marte,Vénus e Adonis”, no oecus da Villa de Maternus, Carranque,Toledo (Patón Lorca, 1992, p. 34) e no de “Eros e Psique”, da Villa de Fraga (Saragoça), datada da 2ª metade do século IV d. C. , de reconhecida influência oriental (Fernandez-Galiano, 1984, p. 420-421).
Mosaico da Imperatriz Teodora e o seu séquito, na abside do altar-mor da basílica de S. Vital, em Ravena (BUSTACCHINI, 2000, p. 55-56). O peitoral de pendentes de uma das aias (a terceira da direita) é semelhante ao representado no mosaico da Estação do Outono da Villa romana do Rabaçal.
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Novos Materiais e apuro técnico Lembremos agora alguns aspectos técnicos dos mosaicos tardios em algumas obras e lugares próximos na província da Lusitânia. Segundo Theodor Haushild (1995, p. 380), a abóbada do santuário aquático da Villa de Milreu (Faro) foi decorada com mosaico de fundo de ouro, datado da 1ª metade do século IV d.C., constituindo um sinal de que foram sendo introduzidas, nesta extremidade ocidental do império, novas e apuradas técnicas decorativas de carácter oriental. De assinalar, na villa do Rabaçal, o aparecimento da técnica de disposição em escamas de tesselas brancas (cf. Décor I 215a) no fundo da representação da figura sentada no centro do triclinium, comum em mosaicos tardios. O uso desta técnica, da qual não existem provas seguras de se tratar de algo caracteristicamente oriental, impõe-se em vários mosaicos de Antioquia e da Cilícia durante o século V d. C. (Fernadez-Galiano, 1984, p. 422). É também nos finais do século III e início do IV que aumenta significativamente o uso de tesselas em pasta de vidro tanto no campo, como acontece no Rabaçal (Pessoa, 1998, p. 40), Torre de Palma (Lancha, 2003, p. 281-298) e Rio Maior (Oliveira, 2003, p. 147-152), como na capital de província, Mérida, em particular no Mosaico Cosmológico (Arce, 2004, p. 117-136). A partir do século V d. C., no oriente e no ocidente bizantinos, as tesselas de vidro irão ser, a par com as que integram vidrado com folha de ouro, quase exclusivas dos mosaicos parietais. O mosaico de pavimento foi então sendo abandonado em favor do mural. As tesselas em material pétreo ou cerâmico dão lugar rapidamente à pasta vítrea, o que permite uma maior riqueza cromática, conferindo ao mosaico características estéticas próximas do vitral. De igual modo os fundos azuis dos mosaicos de Ravena do século V d. C. darão lugar aos fundos de ouro bizantinos do século VI d. C.
Considerações Os mosaicos da Villa romana do Rabaçal não parecem ter nada a ver com os descobertos em Conímbriga até ao presente momento de investigação. São um sinal da generalização dos pavimentos em mosaico das uillae tardias e da procura de diferentes representações. A receptividade dos encomendadores revela o bom momento da economia regional no século IV d. C.
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O facto dos mosaicos do Rabaçal não serem comparáveis com outros de Portugal e da Lusitânia, mas sim com obras orientais, leva-nos a colocar a hipótese de estarmos perante a adopção de um novo estilo por parte das oficinas regionais. Os elementos definidores deste novo estilo e seu desenvolvimento necessitam de ser englobados no conjunto dos mosaicos tardios já descobertos na sua zona de influência. De facto existem algumas similitudes estilísticas nos mosaicos do Rabaçal (Penela) (cf. Répertoire 429v; Décor I 177e; Décor II 399c), Santiago da Guarda (Ansião) (cf. Répertoire 429v; Décor I 176c; Décor II 399c) e S. Simão (Penela) (cf. Répertoire 330; Décor I 168b; Décor II p.40, 398a) (Pessoa, 2005, p. 365, fig. 1, nº 18, 19, 20), recentemente descobertos, o que demonstra que as criações orientais se desenvolveram com rapidez e intensidade em zonas geograficamente distantes da sua origem. Estas três uillae apresentam elementos decorativos de características orientais que lhes conferem uma certa unidade. O significativo número de mosaicos tardios assinalados em Portugal fazem parte de um processo de predomínio do mundo rural sobre o urbano, em franca decadência. De facto a maior parte dos mosaicos desta época foram achados em uillae, construídas ou reconstruídas em fins do século III e durante a centúria seguinte. A falta de paralelos para as figuras das Estações do Ano e para a cercadura de vasos e açucenas do painel da Quadriga Vencedora (cf. Décor I 93d, 93g, 94h e 250), no corredor oeste do peristylum da Villa do Rabaçal (cf. Décor II 420a), leva-nos a crer estarmos perante obra de mosaicistas formados nos centros do oriente helenístico ou de artistas em contacto com eles. Os elementos inovadores mais característicos destes mosaicos, vinculam-se muito mais estreitamente à tradição clássica das oficinas da parte oriental do Império do que às obras contemporâneas da Hispânia. O mesmo se passa com os baixo-relevos cujos paralelos estão assinalados em vários pontos da ilha de Chipre (Paphos, Kourion, Amathous e Hagios Philon) datados do início do século V (Boyd, 1999, p. 49-62). Este facto não invalida o contributo de escolas que operam na região, como mostram muitos dos motivos que se integram no panorama regional mais ou menos alargado ao conjunto da província. “No período em que Bizâncio se tornou Constantinopla, a partir de 330 d. C., os imperadores, resplandecentes em ouro e jóias, dominavam os cortesãos cuja categoria era assinalada pela grandiosidade dos seus trajes. Na ver-
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dade, todos os tecidos que só tinham sido vistos na Ásia até essa altura foram combinados com o traje greco-romano” (Racinet, 1994, p. 130). Estaremos de facto perante o momento de adopção de elementos de um novo estilo? Hippolyte Taine, crítico de arte da segunda metade do século XIX, ao comparar o tipo de obras artísticas de Pompeios e de Ravena, diz-nos que neste intervalo de quinhentos anos tudo muda: “Vêem-se desaparecer os costumes pagãos, os hábitos da palestra, o gosto da nudez sublime. Já não se ostenta o corpo, que se esconde debaixo de complicados vestuários e de um aparato de bordados, de púrpuras, de magnificências orientais ... Pouco depois apenas se copiam cópias de cópias e assim por diante; e cada geração se afasta um grau do original. ... Os Doutores declaram que o artista nada inventa, que transcreve delineamentos indicados pela tradição e aceites pela autoridade. Esta separação do artista e do modelo conduz a Arte ao estado em que a encontramos em Ravena. Ao fim de cinco séculos, já não se sabe representar o homem a não ser sentado ou de pé; as outras atitudes são demasiado difíceis; o artista já não pode criá-las. As mãos e os pés são rígidos e têm um ar debilitado; as dobras dos trajos são de pau, as personagens lembram manequins, os olhos invadem toda a cabeça” (Taine, 1940, p. 23).
Epílogo O vazio de obras em mosaico a partir dos finais do século VI d. C. é antecedido, no actual território de Portugal, pelos conjuntos de mosaicos da basílica de Mértola (Beja), do século V-VI d. C. (Lopes, 2003, p. 98-125 e Maciel, 2005, p. 324-325), de Tongóbriga, ao que tudo indica da mesma época (S. Sebastião do Freixo, Marco de Canaveses) (Dias, Lima, no prelo), de Montinho das Laranjeiras (Alcoutim), do século VI-VII d. C. (Maciel, 1996, p. 97), de S. Martinho de Dume (Braga), relacionado com a produção de Ravena, de meados do século VI d. C. (Fontes, 1992, p. 234). De assinalar, ainda em contexto religioso, o mosaico tumular de Frende (Baião), do século V d. C. (Oleiro, 1986, p. 127) e, ao que tudo indica, com este aparentado, o desaparecido mosaico de Covelinhas (Régua) (Oleiro, 1986, p. 118). Os exemplos em Portugal, anteriormente enumerados (Mértola, Frende, Covelinhas, Montinho das Laranjeiras, S. Sebastião do Freixo, S. Martinho de
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Dume), são testemunhos da mudança que temos vindo a falar. Este grupo corresponde a um momento em que “a nova estética, forjada fundamentalmente no Oriente, um século antes, já está definitivamente estabelecida e afecta aos diversos enclaves cristãos do Mediterrâneo que continuam a conservar a sua capacidade criativa depois da queda do Império Romano do Ocidente” (Fernandez-Galiano, 1984, p. 277). Mas a chamada 1ª Idade de Ouro da Arte Bizantina, correspondente ao reinado de Justiniano (527-565 d. C.), vai ser exclusiva do Império Romano do Oriente, do qual esta região se começa a afastar desde o início do século V d.C. A pompa e circunstância dos monumentos religiosos imperiais de Constantinopla, Tessalónica, Atenas, Veneza, Ravena e Roma, para só falar dos mais conhecidos (com prolongamento, por exemplo, à arte islâmica e aos templos ortodoxos de Kiev e Moscovo) durará até ao fim do Império Romano do Oriente, na 2ª metade do século XV. A Villa romana do Rabaçal é uma obra unitária de arquitectura, escultura e mosaico e um exemplo de arte de feição imperial, integrando símbolos de renovação cósmica e de louvor à civilização romana. O carácter jubiloso das alegorias das Estações do Ano da Villa do Rabaçal prenuncia a arte bizantina. Ao concentrarem a atenção do espectador no rosto do modelo, convocam-no para uma aproximação não isenta de fascínio e de cumplicidade. A sua integração num programa arquitectónico unitário sugere o ambiente de um palácio imperial do oriente onde era seguida rigorosamente a chamada “etiqueta”, herdada do Antigo Império Romano: o silêncio na presença do Imperador e o uso das suas vestes exclusivas (clâmide, sapatos púrpura e o diadema cingido à cabeça). Próximos da periférica costa atlântica portuguesa, fronteira do modelo de Império, cujo centro é já Constantinopla e não Roma, os mosaicos da Villa romana do Rabaçal são o testemunho de um tempo de mudança imensa na arte, na religião e na política. Um novo ciclo de magnificência vai começar, mas não aqui.
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Nota: Este artigo é parte de versão em língua portuguesa da comunicação apresentada, em inglês, ao X Colóquio Internacional de Mosaicos, da AIEMA, o qual teve lugar em Conímbriga entre 29 de Outubro e 04 de Novembro de 2005.
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RESUMO ABSTRACT We take as a point of depart the colour used in Acobaça’s scriptorium, during the fourteenth and fifteenth centuries, to look at it as a specific aspect of Mary’s iconography, considered, by then, as a structural element of interpretation. The Alcobaça codices conserved in the Biblioteca Nacional, from the fourteenth and fifteenth centuries, present a pour ornate and modest colour, intending not only to facilitate reading, but also to orientate it, that is to say, to dispose and to build into a structure the page and the composition. In the examples studied, informed by the thought of St. Bernardo, for whom nothing is more important than word, the image follows the rules of legibility, being, therefore treated as a text. That’s why colour becomes tolerated, as well as image: despite a strict meaning, it stands at the fundamental level of the comprehension auxiliary structure.
Parte-se da cor utilizada no scriptorium de Alcobaça durante os séculos XIV e XV para olhá-la, depois, como um aspecto particular da iconografia mariana e, portanto, considerando-a como um elemento estruturante da significação. Os códices do fundo alcobacense da Biblioteca Nacional, datáveis dos séculos XIV e XV, apresentam, para lá dum ornato pobre, uma cor modesta visando não apenas tornar agradável a leitura, mas antes orientá-la, isto é, ordenar e estruturar a página e a composição. Nos exemplos estudados, informados pelo pensamento de S. Bernardo para quem nada é mais importante que a palavra, a imagem segue as regras da legibilidade, sendo, portanto, tratada como um texto. Percebe-se, por isso, porque é que a cor vai sendo tolerada, a par da imagem: despida dum significado estrito, situa-se ao nível fundamental da estrutura auxiliar da compreensão.
AS CORES DAS IMAGENS A propósito da cor na iluminura alcobacense dos séculos XIV e XV Horácio Augusto Peixeiro*
Nota Esta reflexão tem como base um estudo, há já algum tempo iniciado, em que foi ensaiada uma investigação laboratorial sobre a cor, os seus materiais constituintes e as técnicas da sua aplicação, num conjunto de códices dos séculos XIV e XV, entre os quais um pequeno núcleo do fundo alcobacense.1 O tema que vamos abordar parte desta análise da cor utilizada no scriptorium alcobacense durante os séculos XIV e XV para olhá-la, depois, como um aspecto particular da iconografia, em especial da iconografia mariana. Estamos hoje longe das interpretações iconológicas a preto e branco, sendo a cor um elemento estruturante da significação. Tentaremos reflectir sobre o modo cisterciense de utilizar a cor, eminentemente funcional, auxiliar da leitura e, por conseguinte, da compreensão da palavra, isto é, do essencial. Quantifiquemos, em primeiro lugar, a presença da cor e do ornato em Alcobaça.
* Professor Coordenador, Departamento de Conservação e Restauro, Instituto Politécnico de Tomar 1 Cf. Luísa Maria P. A. Alves, “Alguns aspectos relativos ao estudo dos materiais que entram na composição de alguns códices iluminados dos séculos XIV e XV”, In 2.º Congresso Nacional de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas. Coimbra, Liv. Minerva, 1987, p. 439-465. O contributo das ciências experimentais no campo da história da arte, se é hoje uma metodologia corrente no nosso meio científico, isso se deve, em boa medida, a um conjunto de pessoas, entre as quais uma muito especial para mim, que já não está entre nós. Aqui fica uma singela homenagem justa porque a ela se deve, em grande parte, este trabalho. Este tema foi apresentado, pela primeira vez, com título e assunto semelhantes, em Alcobaça, nas comemorações dos 750 anos da sagração da igreja do mosteiro de Alcobaça.
As cores das imagens
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1. Os dados Os códices alcobacenses dos séculos XIV e XV apresentam-nos, para lá dum ornato pobre, uma cor modesta. As razões desta pobreza, que não tem equivalência com a riqueza intrínseca da livraria de Alcobaça, alimentada com a produção dum scriptorium bem organizado, terão a ver, em boa medida, com a estética cisterciense. O magro colorido, o pequeno ornato, a filigrana, a estrutura e organização da página, não funcionam como elementos decorativos, antes servem para clarificar o pensamento e orientar a leitura. Este fundo da Biblioteca Nacional de Lisboa, revela-nos um conjunto “com uma identidade singular, com alguns dados significativos para a história do livro manuscrito da Idade Média europeia”2. O número de códices actualmente existente, próximo do inventário mais tardio, sugere a sua conservação sem grandes perdas relativamente à antiga livraria. Aires do Nascimento faz as contas ao total das existências para os séculos XII a XV e conclui que, à excepção do elevado número atribuído ao século XIII (139), tempo de prosperidade na vida do mosteiro, os séculos XIV e XV mantêm um ritmo contínuo de produção semelhante ao do período anterior3. (A pobreza da cor e do ornato não corresponde, pois, a uma quebra da produção) Se o scriptorium continuou a abastecer a livraria com os livros necessários, satisfazendo, provavelmente, também alguma encomenda destinada a mosteiros filiais da Ordem4, o certo é que a qualidade material dos códices do período gótico se distancia da boa produção anterior. Na verdade, cerca de 30% possuem apenas iniciais coloridas; cerca de 45% apresenta, para lá destas, iniciais filigranadas; cerca de 12% têm, ainda, iniciais pintadas ou ornadas a ouro; cerca de 9% são ornados mais ricamente com iniciais fitomórficas, animais fantásticos, cercaduras; finalmente, apenas 4% têm alguma figuração desenhada, em geral, à pena, ou, mais raramente, pintada em iniciais historiadas. Note-se, ainda, que um bom número de códices possui apenas ornada a inicial do incipit e que a filigrana é, maioritariamente, muito simples e rudimentar. A mais
2 Cf. Aires A. do NASCIMENTO, “Comentário”, Nos Confins da Idade Média. Porto, 1992, p. 152. 3 Ibidem. A pobreza da cor e do ornato não corresponde, pois, a uma quebra da produção. 4 Ao mosteriro de Seiça pertencia o Alc. 62, um “Ordinário do Ofício Divino da Ordem de Cister”, de 1475, como se comprova pela notícia do fl. 1r., produzido “sendo abade de Alcobaça D. Fernando de Quental” (fl. 3v.).
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abundante é a singela inicial colorida, sem outros elementos distintivos além do tamanho e da cor. Aparece, em mais de metade dos códices do período, em cores alternadas de vermelho e azul, por vezes em vermelho e verde e, no século XV, em vermelho e violeta. Notável é a existência, em cerca de um quarto dos códices, de iniciais coloridas a uma só cor – o vermelho –, utilizando um menor número – cerca de um quinto –, a alternância de três cores: vermelho, azul e verde, ou vermelho, azul e violeta. Vemos, pois, que, na maioria dos códices, a inicial colorida, na sua forma mais simples, despida de qualquer valor decorativo, serve apenas para marcar o texto, usando frequentemente a lei da alternância. Por outro lado, é assinalável a presença dominante do vermelho. Por fim, os códices iluminados, em que pode notar-se, ainda que timidamente e nunca com exuberância, a presença de qualquer ornato mais nobre, como sejam as iniciais pintadas ou douradas, as iniciais fitomórficas, os animais fantásticos, as cercaduras, alguma imagem desenhada nas letras ou à margem e as iniciais historiadas, representam apenas um quarto do total.
2. A Cor Relativamente à cor, importa estudar não apenas a sua materialidade, mas também a sua função e o significado da sua utilização. O valor anagógico da cor límpida, sem matizes e sombreados e, portanto, luminosa, anda associado à luz em todo o pensamento medieval. Não é, pois, gratuito o emprego das cores, ainda que pareça ser pouco importante, nos séculos XIV e XV alcobacenses, o seu antigo valor simbólico. Contudo, fruto de saberes aprendidos em receituários que configuram uma longa tradição, as cores não visam apenas tornar agradável a leitura, mas também orientá-la, isto é, a seu modo, ordenam e estruturam a página e a composição. No trabalho, referido atrás, em que foi ensaiado um estudo laboratorial dos materiais constituintes das cores e das técnicas da sua aplicação num conjunto de códices dos séculos XIV e XV, verificámos, no fundo alcobacense5, 5 Ver a nossa dissertação de mestrado, inédita, Missais iluminados dos séculos XIV e XV – Contribuição para o estudo da iluminura em Portugal. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1986. Aí se utilizaram os estudos efectuados no Laboratório Central do Instituto José de Figueiredo, depois publicados por Luísa Maria P. A. ALVES, O.c., nota 1.ª.
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a pobreza da paleta, a coincidência das fórmulas e dos processos utilizados com receituários de pintura coevos, a constância na utilização de determinados pigmentos de fácil obtenção e de processos pouco elaborados, como, por exemplo, a douradura. 6 Recorrendo ainda a esse trabalho, vejamos algumas das cores mais frequentemente utilizadas em Alcobaça: Em primeiro lugar, o vermelho, sem dúvida a cor mais abundante em todo o fundo (fig. 1). Nos exemplos estudados, também em Santa Cruz de Coimbra e em Lorvão, o pigmento que entra quase sempre na sua composição é aquele que é conhecido por vermelhão, que, por vezes, se designa por minium. O nome minium foi atribuído a diferentes composições, atendendo, muitas vezes, mais à sua cor que à composição química. Os clássicos chamavam minium ao cinábrio, ou vermiculum (o vermelhão – sulfureto vermelho de mercúrio), enquanto que chamavam minium secundarium ou cerusa usta ao óxido salino de chumbo que tanto o monge Teófilo como o autor anónimo do “De arte illuminandi”, bem como Cennino Cennini e a maior parte dos tratadistas, tendem a considerar como minium propriamente dito7. Em O livro de como se fazem as cores (das Fig. 1 – O vermelho. Regra – s. XV. Alc. 44, fl.15r. tintas todas pera aluminar os livros), tal como no Mappae Clavicula, surge-nos aquela receita de vermelhão que vemos utilizada na iluminura portuguesa e na rubricação, desde, pelo menos, o Apocalipse de Lorvão, dos finais do século XII, 6 A douradura alcobacense é muito deficiente quanto à preparação e quanto aos efeitos finais alcançados. Pode, pois, pensar-se que nesse scriptorium pouca atenção se prestava a este processo, dispensável na notação dum texto, ao contrário dos receituários tais como o Mappae Clavicula ou O Livro de como se fazem as cores que dedicam um largo conjunto de receitas a este processo. 7 Cf. Franco BRUNELLO, De arte illuminandi e altri trattati sulla tecnica della miniatura medievale. Vicenza, Neri Pozza Editore, 1992, pp. 211-212 e 234-235.
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aos códices alcobacenses dos séculos XIV e XV8. A interessante coincidência entre os dois receituários revela-nos uma tradição que poderá ter sido desenvolvida em Santa Cruz de Coimbra, onde o Mappae Clavicula é referido num rol de livros emprestados, do primeiro quartel do século XIII (1218), transcrito no códice St.ª Cruz 34/439, ainda que em Alcobaça não se encontre qualquer menção de receituários da pintura, assunto que não mereceu a atenção da sua Livraria, podendo significar a pouca relevância que a cor aí tinha e também um modo de produzir as cores e de as aplicar de acordo com uma tradição local. Esta tradição do vermelhão para escrever pode seguir-se, mais tarde, no Breve Tratado de Illuminação, escrito por um freire da Ordem de Cristo, e no seu contemporâneo, Arte da Pintura Symmetria e Perspectiva, de 1615, escrito pelo dominicano Filipe Nunes10. O vermelho, centro do antigo sistema ternário das cores, que tem como pólos o branco e o preto, é tido em todo o Ocidente, desde a Pré-História até ao século XIX, como a primeira das cores, a cor por excelência11. A importância dada a esta cor em Alcobaça poderá representar a permanência do sistema antigo das cores que, segundo Michel Pastoureau, começa a decompor-se entre os séculos XI e XIII, dando lugar à gama mais linear que ainda hoje seguimos12. 8 Veja-se O livro de como se fazem as cores, cap. XV (Revista da Faculdade de Letras. Lisboa, S. 3 (4), 1960) e o Mappae Clavicula, logo a primeira receita: de vermiculo. (Thomas Phillips, Mappae Clavicula; manuscript traetise on tha preparation of pigments, and on various processes of the decorative arts practised during da Middle Ages. London, 1847).Veja-se também o nosso estudo Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão. Dissertação para concurso de provas públicas a apresentar no Instituto Politécnico de Tomar. O estudo sobre a cor, aí desenvolvido, é, também, baseado na análise laboratorial levada a cabo por Luisa Maria P. A. Alves. 9 Ver António CRUZ, Santa Cruz de Coimbra na cultura portuguesa da Idade Média. Porto, 1964, p. 203. 10 Breve Tratado de Ilvminação composto por hum religioso da ordem de Xp.º (...). Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Col. Jardim Histórico, vol XXXVII, ms. n.º 344.Veja-se o cap. IX, 1.ª parte. Pela escrita e pelas referências aos pintores Morales e El Greco, deverá o tratado ser situado no século XVII, próximo do de Filipe NUNES, Arte da Pintura Symetria e Perspectiva. Composto por Philippe Nunes natural de Vila Real. Ed. Fac-similada da ed. De 1615, com introdução de Leontina Ventura. Porto, Ed. Paisagem, 1982.Vejam-se, aqui, os fls. 65 e 66. 11 O último dos Vitorinos,Tomás de Verceil, na sua teoria mística da cor, define Deus como branco e vermelho, Luz e Calor: “Indicibiliter se candidum et rubicundum ostendit (Deus) ... ita ut nihil aliud sit sua luciditas quam sua igneitas, nec minus igneitas quam luciditas” Cit. Por E. de BRUYNE, La estética en la Edad Media. Madrid,Visor, 1994, p. 130. Em Português continuam a utilizar-se as palavras corar e corado (coloratus) para indicar a acção de atintar ou de ficar corado ou algo tingido de vermelho, vestígios da importância do vermelho como cor, a cor por excelência. 12 Cf. M. PASTOUREAU, Couleurs, images et symboles – Études d`histoire et anthropologie. Paris, Le Léopard D’Or (1988), p. 23.
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Outra cor utilizada com frequência é o verde mais azulado e, por vezes, escurecido (fig. 2). Aparece por todo o lado, desde as palmetas e os entrelaçados românicos às iniciais filigranadas, mas é especialmente abundante nas iniciais mais simples, apenas coloridas ou com pequenos ornatos. Este verde arti- Fig.2 – O verde. Colectânea – s. Xv. Il. 210, fl. 99v.-100r. ficial, virede hispanicum ou viride graecum, conhecido entre nós como verdete e azinhavre e entre os modernos como verdigris13, é obtido facilmente por meio do cobre e do vinagre. Os métodos de preparação descritos desde a Antiguidade não diferem substancialmente dos processos medievais. Assim, em O livro de como se fazem as cores pode ler-se uma receita “pera fazer azinhavre mui fino” em que se utilizam folhas de cobre e “vinagre quente e mui forte”, distinguindo-se apenas das três que aparecem no Mappae Clavicula pelo tempo de infusão e sistema de aquecimento14. É igualmente interessante verificar a coincidência entre a forma de fazer a tinta verde e a maneira indicada naquele tratado judaico-português. Efectivamente, as análises laboratoriais revelaram que a tinta verde, composta de verdigris, era aglutinada com gema de ovo e goma15, tal como se propõe 13 Cf. M. MERRIFIELD, Original treatises, dating from the XIIth to XVIIIth centuries in the arts of painting in oil, miniature, mosaic, and glass; of gilding, dyeing, and the preparation of colours and artificials gems; preceded by a general introducion with translations, prefaces and notes. London, John Murray, 1849, vol. I, p.CCXVII. 14 No tratado português, a panela em que se faz a infusão deverá estar soterrada no “esterco de bestas grandes” durante trinta e um dias (cap. XI); no Mappae Clavicula, a composição designada por iarin, um dos nomes por que é conhecido o verdigris, é a seguinte:“De compositione iarin: tolles petalam mundissimam de eramine, et suspende super acetum acerrimum: pone ad solem immobiliter per xiiij dies: et aperies et tolles ipsam petalam, colliges florem; facies iarin mundissimum” (cap.cvi); as outras receitas, muito semelhantes, são o “viride grecum” e o “viride rotomagense (de Ruão)”. (Th. Phillips, p. 8, receitas 5 e 6). 15 Ver na nossa dissertação de Mestrado, atrás referida, os quadros correspondentes ao resultado das análises laboratoriais efectuadas (p. 527-535).
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naquele receituário para “destemperar o verde”: “as três partes sejam do verde e a quarta da gema. E se o melhor quixeres fazer, deita-lhe da agua gomada e destempera-o com ela.”16 Esta cor, de acidez elevada, para lá de se apresentar, por vezes, enegrecida, desprende-se e provoca, até, a corrosão do suporte. O verdigris é conhecido desde há muito como um pigmento que ataca o pergaminho. O processo medieval de melhoramento da cor, através da adição de vinagre ao aglutinante, dá ao pigmento um poder ainda mais agressivo17. Teófilo, descrevendo, embora, esta receita entre as cores para os livros, apressase a dizer que o seu uso não é bom para eles18. Cennino Cennini louva a beleza deste verde intenso, porém observa que “é belo para os olhos, mas não dura”19. O mesmo diria, ainda, no século XVII, o autor do Breve tratado de illuminação não recomendando o azinhavre “pera illuminadores; pode porem servir para campos com pincel e pena”20. De facto, verificámos que o verde destinado a trabalhos mais nobres, pintura de letras historiadas (Alc. 26) e, no século XV, de letras e cercaduras fitomórficas (Alc. 459 – antigo Casa Forte 119 – e Alc. 62) é composto à base de malaquite, gema de ovo e cola, pigmento mais duradouro mas também mais dispendioso, raramente referido nas receitas medievais, preparado com vinagre, o que pode explicar uma acção de degradação semelhante à provocada pelo verdete21. Vemos, assim, que, quer o vermelhão, quer o verdigris, são pigmentos de fácil obtenção a partir de materiais relativamente abundantes e, portanto acessíveis e económicos, pelo que o seu uso é tão generalizado, a tal ponto que o vermelhão substitui o minium propriamente dito não só na iluminura como na própria rubricação. Quanto ao azul, cor carregada de simbolismo a partir do século XII, nos exemplos estudados verificou-se a utilização da azurite, pigmento bastante mais
16 O livro de como se fazem as cores, cap. XXVIII. 17 Cf. Robert FUCHS, Doris OLTROGGE,“Utilisation d’un livre de modèles pour la reconstitution de la peinture de manuscrits – Aspects historiques et physico-chimiques”. In Pigments et colorants de l’Antiquité et du Moyen Âge. Paris, CNRS, 1990, pp. 320-322. 18 “Viride salsum non valet in libro”. (Theófilo, De diversis artibus, Livro I, cap. XXXII.) O viride salsum é uma das variantes do verdigris. 19 “Della natura d’un verde che si chiama verderame (...) È bello all’ochio, ma non dura”.(Cennino Cennini, Il libro dell’arte. Cap. LVI) 20 “Breve Tratado de Illuminação”, parte 1.ª, cap.VIII. 21 Cf. R. FUCHS, D. OLTOGGE, O. c., pp. 315 – 318.
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dispendioso e, portanto, utilizado com moderação, quer em alternância com o vermelho, quer em iniciais de maior destaque, quer na figuração. Tal como aconteceu nos finais do século XII em Lorvão, período de crise para o mosteiro, também o século XIV alcobacense é extremamente pobre na paleta, limitando-se às cores fundamentais, contrastando com a maior riqueza cromática e decorativa do próspero século XIII. Durante o século XV não há uma alteração significativa, se bem que, para o seu final se possam apontar alguns exemplos duma maior diversidade. Relativamente à técnica de aplicação da cor, revelou-se muito elementar, aproximando-se, para as matizaturas, dos ensinamentos referidos no Mappae Clavicula e em O livro de como se fazem as cores e para definir as lumina e o tractus, dos processos mais elaborados referidos por Teófilo. O termo matizar, utilizado no tratado português, parece que se refere mais à mistura de cores, quer seja para aclarar quer para escurecer, que à sua sobreposição em camadas22. O Mappae Clavicula usa dois termos: matizare, quando a cor sobreposta é mais clara que o fundo, e incidere, quando é mais escura, sendo o fundo duma só cor uniforme ou de mistura homogénea.Teófilo, no De Diversis Artibus, descreve o processo de claro-escuro por sobreposição de sucessivas camadas, partindo duma mais fina a que sobrepõe outra mais densa sobre que se aplicam as lumina, as sombras e os contornos (tractus)23. Vejamos como se define a estrutura e técnica da pintura no exemplo mais significativo para o século XIV, o Missal Cisterciense, Alc. 26: Dum modo geral, sobre uma aguada de tinta uniforme, é executado o desenho a sépia, contornado no final a preto, aplicando-se, depois, as luzes com branco e sombreando com pinceladas de aglutinante e cor mais escura. Atentemos no modo de tratar os diferentes elementos da figuração (fig. 3 e restantes do Alc. 26): 22 Nomeadamente, no cap. XXXIV refere-se uma forma de matizar o azul: “Filha do azul e destempera-o com agua gomada o com gema de ovo e deita sobre el para matiza-lho carmin o do brasil”, entendendo-se, pois, como mistura de cores. No cap. XXXV, depois de parecer referir-se à sobreposição de camadas, termina dizendo que todas as cores se podem matizar com negro, pressupondo, assim, que se trata de mistura:“Se quixeres colorar com azul branco, matiza com azul puro. E se quixeres colorar com carmim, matiza com carmin ou com brasil ou com vermelhon. E se quixeres colorar indio alvo, matiza en el com verde puro. E se quixeres colorar com azarcon, matiza sobre el carmin o brasil e vermelhon. E se quixeres colorar com vermelhon, matiza com brasil o com carmin. Pero as cores todas se podem matizar com negro.” Como escreve no cap. XLI, referindo-se à receita para fazer ocre, o preto serve para escurecer a mistura: “E se vires que é muito colorado, mete um poco de negro e sera bôo”. 23 “Omnes colores bis ponendi sunt in libro, in primis tenuissime, deinde spessius: in literas vero semel”. (De Diversis Artibus, I, XXXII).
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– Os cabelos, os rostos, os pés e as mãos são desenhados a preto, a pincel, sobre uma aguada branca ou de aglutinante a servir de base. As maçãs de rosto e os lábios são realçados com uma pincelada de vermelho. – Os panejamentos azuis são dados com uma camada azul uniforme, sobre a qual se lançam as sombras com azul mais forte (azurite de grão mais grosso) e as luzes com traço ou aguada de branco, obtendo, com os traços a preto, o efeito de pregueado. As formas são, depois, contornadas por uma linha preta, traçada a pincel, com realces a branco. Os panejamentos de azul mais claro utilizam uma mistura de azurite de Fig. 3 – Aplicação da cor. 1.º Domingo do Advento. grão fino e de branco de chumbo. Missal Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 5r. – Em panejamentos brancos e noutras zonas claras, o iluminador lança uma simples aguada branca ou aproveita a cor do pergaminho, limitando-se a desenhar os contornos a traço preto. As sombras são dadas por pinceladas de aglutinante e as luzes avivadas com traço branco fino. – Os verdes, pouco utilizados, à base de malaquite aglutinada com gema de ovo e goma, são dados com uma mancha uniforme, com as luzes avivadas a traço fino e os contornos a preto. – Os vermelhos, em especial nos panejamentos, formam uma camada uniforme sobre a qual são apostas o pregueado a traço preto e manchas largas de aglutinante; nestas é visível uma fina rede de estalados. Os contornos são igualmente feitos a preto. O vermelho mais intenso é obtido com uma camada de tinta composta de vermelhão sombreada com pinceladas largas de garança. – Por fim, o processo de douradura dos fundos consta da aplicação de folha de ouro sobre um bólus à base de ocre e cola, sendo os pequenos ornatos dourados com pó de ouro aglutinado com cola. Em resumo, a estrutura da pintura é definida por uma base de cor uniforme sobre a qual são aplicadas pinceladas de aglutinante e de cor mais
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clara ou mais escura, revelando uma elementar noção do valor formante dos matizes. O iluminador deverá ter seguido um modelo, não apenas para a iconografia, mas também para o processo de aplicação das cores e do ouro. Na verdade, a forma de matizar o azul e o vermelhão, bem como a técnica da douradura, à base de ocre e cola, assemelha-se às receitas descritas em O Livro de como se fazem as cores, capítulos XXXV e III, respectivamente. É claro que o iluminador não conhecia o tratado, provavelmente posterior, nem havia em Alcobaça uma tradição do tratamento da figuração. Contudo, as coincidências com os receituários conhecidos permitem-nos supor uma tradição local, como atrás se disse. Outro Missal Cisterciense, o Alc. 458 (antigo C.F. 119), mostra, para o século XV, uma ligeira evolução da paleta, com o regresso do amarelo (de estanho e de chumbo), mas principalmente um aperfeiçoamento dos processos, criando um maior cromatismo (fig. 4). Na pintura das letras fitomórficas e nas folhagens das cercaduras, sobre desenho, possivelmente a plumbagina, o iluminador aplica um tom geral de base sobre o motivo, introduzindo-lhe, depois os matizes. Para obter as sombras, sobre o vermelho (ocre vermelho), pinta os contornos com um traço grosso mais escuro de garança; sobre o rosa (garança e branco de chumbo) acentua o desenho com pinceladas acastanhadas de garança e ocre; sobre o azul claro (azurite e branco de chumbo), os contornos são dados a azul escuro de azurite; sobre o verde (malaquite), aplica um traço grosso verde amarelado (verdigris); sobre o amarelo aplica verniz, resultando Fig. 4 – Missal Cisterciense – s. xv. Alc. 458, fl 1r. daí os contornos mais escuros. Para obter efeitos de luz, aplica aguadas de branco de chumbo, sobre o vermelho, rosa e azul e aguadas ou traços finos de amarelo sobre o verde. A técnica da douradura utiliza uma preparação de um bólus muito espesso, cuidadosamente brunido e contornado a preto.
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A segunda metade do século XV mostra, pois, uma maior liberdade na utilização da cor, utilizada como elemento formante, nas luzes, nas sombras, num incipiente modelado, deixando de usar o preto como contorno para definir as formas, assinalando-se, como reparou José de Figueiredo, as influências do “estilo franco-burguinhão” e flamengo. Alcobaça, ainda que com poucos exemplos, regressa, assim a uma cor mais europeia e menos cisterciense.
3. A cor nas representações da Virgem A cor, tal como o ornato, embora simples, contribui para estruturar, e organizar visualmente a página em ordem a orientar a leitura. É a funcionalidade, imposta pela norma cisterciense, que faz com que, em Alcobaça, se conjuguem a simplicidade e o apuro construtivo. Acentuando, acima de tudo, a estrutura, nem por isso a organização da página se deve deixar de entender enquanto espaço equilibrado.24 Quer dizer que a lógica dessa organização não é meramente funcional mas transporta consigo uma lógica visual. Por isso, é no rigor construtivo que o iluminador aplica os seus conhecimentos de geometria, utilizando a régua e o compasso, tanto na empaginação como na construção das letras iniciais que se tornam, no livro alcobacense, o principal ornamento.25 A inicial simplesmente colorida a uma só cor, o vermelho, como se viu, é a regra em obras de uso corrente: tratados, costumeiros, regras, ordinários, saltérios, vidas de santos, etc. A filigrana é o substituto eficaz da cor em mancha uniforme. Com poucos recursos, rápida e economicamente, consegue-se obter a diversificação adequada das iniciais. Não admira, pois, que apareça em todo o género de códices, ainda que, no geral, se apresente muito simples. Se a filigrana é regra, o ornato mais elaborado e mais colorido das iniciais folheadas ou historiadas é verdadeiramente excepcional nos códices alcobacenses. De feição 24 Por vezes o esforço por clarificar a página duma forma harmoniosa parece até sacrificar os interesses da rapidez da leitura, como pode inferir-se da singela organização das pequenas iniciais do Saltério abreviado, Alc. 8: Dispostas numa sequência vertical, ocupam o meio do intercolúnio sem atender à necessidade de aproximação da coluna da direita a fim de facilitar a leitura. A leitura ou o canto salmódicos estão aí bem sugeridos na cadência necessária. 25 O esforço por aproximar o registo escrito da palavra proferida, ideal nunca atingido, tem sido o motor das transformações operadas ao longo da história do livro fazendo com que ele fosse sempre mais do que uma mera “máquina” para ler. O cheio e o vazio, a cor e o ornato subentendem a voz e o silêncio, o ritmo da leitura e o brilho do discurso.
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singela, assimilando, de forma um tanto ingénua, as influências estrangeiras, a iluminura de Alcobaça dos séculos XIV e XV, cujos exemplos mais notáveis e praticamente únicos são o Missal Cisterciense, Alc. 26, possivelmente contemporâneo e da mesma mão do Compendium Theologice Veritates, Alc. 376, saído da pena de Fr. João (de Paredes), em 133226, distancia-se dos esquemas penetrados de naturalismo que o século XIV anuncia e o gótico internacional do século XV divulga. É aqui, num códice litúrgico e num livro de estudo, que encontramos um conjunto de imagens, excepcionais no scriptorium alcobacense, representando cenas da vida da Virgem, e que iremos analisar, tentando vê-las com os olhos do monge alcobacense, informado pelo espírito de Cister. Na verdade, a imagem pode ser considerada como um fenómeno lógico, cuja organização é inteligível dentro dum determinado sistema,27 e é nessa medida que, para entender as estruturas e as funções da imagem medieval se deverá atender ao sistema lógico em que foi gerada. É sabido que S. Bernardo tinha uma atitude de desconfiança em relação à imagem e, tal como os Libri Carolini, onde se afirma que “é nos livros e não nas imagens que nós adquirimos a erudição e a doutrina espiritual”28, também o Doutor Melífluo preferia a palavra escrita, proferida na lectio ou proclamada na pregação. É que, se as imagens falam aos olhos, para que estes as entendam, não podem prescindir do contributo da Palavra. Para ver e entender é preciso primeiro escutar. O mesmo poderemos dizer relativamente à cor que São Bernardo vê, tal como os místicos, como sendo uma realidade espiritual, uma luz captada pelos sentidos interiores da alma; mas é o Verbo que ilumina esse sentido. Num dos sermões sobre o Cântico dos Cânticos (LXXIV, 5-6), diz: “O Verbo não entra certamente pelos olhos porque não é uma cor”. É apenas pelos sentidos interiores que ele se dá a entender. A sua presença faz com que tudo o que é obscuro se aclare, se ilumine. Quem não tem este sentido interior não consegue ver, pois que é em vão que a cor e a luz iluminam os olhos do cego. Portanto, só o olhar purificado, elucidado pela palavra, pode captar a presença do símbolo e perceber-lhe o significado. Daí a prioridade da audição 26 Cf. H. A. PEIXEIRO, O.c., p. 32, 241 e 253. Ver, também, IDEM,“O missal Alc. 26 e as representações da Virgem e de S. Bernardo”. Sep. IX Centenário do Nascimento de S. Bernardo – Encontros de Alcobaça e Simpósio de Lisboa. Braga, 1991, p. 195-218. 27 WIRTH, Jean, L’image médiévale – naissance et dévelopements (VIe-VIe siècles). Paris, Mèridiens Klincksieck, 1989, p. 7. 28 L.C. III, 16, col. 1146. WIRTH, 109-166.
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sobre a visão, pois que, como afirma no Sermão XXVIII sobre o Cântico dos Cânticos, os olhos mortais são fonte de ilusão e de pecado: “A aparência enganou os olhos e a verdade entrou pelos ouvidos”29. As cores representam o lado perigoso, ambíguo, demasiadamente sedutor da beleza. Assim é que S. Bernardo associa as cores ao conceito de venustas e não ao conceito mais plástico de formositas ou mais geral de pulchritudo. Daí a sua hostilidade à presença das cores no hábito dos monges, nas igrejas, nos livros. Daí que “é preciso que os olhos que devem ver a Deus sejam purificados pela fé.”30 Isto é, para ver a Cristo, é preciso escutar antes o que Ele diz a fim de que possa ser reconhecido.31 É, pois, uma visão interior aquela que o monge, acima de tudo, deve procurar, porque a verdadeira beleza reside na limpidez da alma do justo, que é branca, isto é, bela, embora possa parecer exteriormente, como Cristo na Cruz, negra, isto é, como um verme e não um homem.32 É esta cor, tornada linguagem simbólica, que o monge consegue compreender pela ascese dos sentidos, ou que apenas lhe interessa ver como auxiliar da leitura. A beleza exterior, que apenas deleita e excita os sentidos, fonte de engano, é condenável como um “excessus”33. É por isso que o belo sensível se opõe não apenas ao bem mas também ao que é útil34. A este critério de utilidade, de funcionalidade e de simplicidade não poderiam escapar os livros, objectos cujo valor formal, material e artístico havia estado sempre em consonância com o seu conteúdo doutrinal35. Estruturalmente organizados de modo 29 “Oculum species fefellit, auris veritas se infudit” Cc. In Cantica, Sermo XXVIII, 5, vol. II, tomo IV, p. 285. Ed latina: Sancti Bernardi Abbatis Primi Clarae-vallensis Opera Omnia.Veneza, 1719. 30 “Dignum quidem fuerat per superiores occulorum fenestras veritatem intrare ad animam; sed hoc nobis, o anima, servatur in posterum, cum vidibimus facie ad faciem. Nunc, autem, unde irrepsit morbus, inde remedium intret (...). Auris prima mortis ianua, prima aperiatur et vitae (...). Porro fide oportet mundari oculum Qui videat Deum (...).” In Cantica, Sermo XXVIII, 5, vol II, tomo IV, p. 285. 31 Videre desideras Christum? Oportet te prius audire eum, audire de eo, ut dicas cum videris; ‘Sicut audivimus, sic vidimus.” (In Cantica, Sermo XXVIII, 7, vol. II,Tomo IV, p. 285). 32 Cf. In Cantica, Sermo XXV, 5, vol. II, tomo IV, p. 278, e ainda o n.º 9 do mesmo sermão: “Nigra plane, cui non erat species neque decor: niger, quia ‘vermis et non homo, opprobrium hominum, et abjectio plebis (...)’. Ergo, formosus in Se, niger propter te”. 33 “Merito proinde omnis cura sanctorum, spreto ornato cultuque superfluo exterioris sui hominis, Qui certe corrumpitur, omni si diligentia praebet et occupat et excolenda ac decorando interiori illi, Qui ad imaginem Dei est, et renovatur de die in diem”. (In Cantica, Sermo XXV, 7, vol. II, tomo IV, p. 278). 34 Por isso S. Bernardo critica os monges que procuram a beleza e a macieza do tecido mais para satisfazer a vaidade que para se proteger do frio: Quaeritur induendum, non quod utilius, sed quod subtilius unveniatur; non quod repelat frigus, sed quod superbire compellat; non denique iuxta Regulam, quod vilius comparari potest, sed quod venustius. Immo vanius ostentari”. (In Apologia ad Guillelmum S.Theoderici abbatem, cap. XII, n.º 30, vol. I, tomo II, p. 238).
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a corresponderem eficazmente à sua função, devem ser desprovidos de iniciais “depictae” e de várias cores, a fim de não constituírem um peso excessivo para a economia nem se tornarem motivo de perturbação para a vida do claustro, ao dispensarem a presença do artista iluminador, muitas vezes exterior ao mosteiro36. Ao limitar o uso da cor e da imagem como ornamentos, S. Bernardo põe o acento sobre o luxo, o excesso, deixando aberta a porta para as transformações que se avizinhavam. De facto, é “na pobreza mais radical das fraternidades mendicantes” que a imagem vai reaparecer como exigência, como auxiliar indispensável da pregação37. A cor, por seu lado, adquire cada vez mais importância, não apenas como código vestimentário e social mas no interior do próprio templo, lugar por excelência da cor onde quase tudo é colorido.38 É esta mudança de discurso e de gosto que estes dois exemplares alcobacenses timidamente deixam vislumbrar. Há já algum tempo iniciámos o estudo das imagens do Alc. 26 relacionadas com as representações da Virgem e de S. Bernardo. Para entender as imagens como “instâncias dialécticas”39, que estão para lá do enunciado da sua função, que desvendam, ao mesmo tempo que ocultam, que, mais que decorativas, elas desempenhavam uma função didáctica, demonstrativa e interpre-
35 Na tradição clássica e dos Padres da Igreja, em especial Santo Agostinho, S. Gregório Magno e Santo Isidoro, o Bem (Bonum) divide-se em Honestum e Utile, o Belo (Decor) em Pulchrum e Aptum. O Belo (Decorum) é aquilo que concorda com o ideal absoluto ou que pressupõe a consonância das partes integrantes e deleita pela sua essência, enquanto que Honestum e Utile é o que atrai pelo seu proveito e utilidade. É o conceito de utilidade que fundamenta o carácter didáctico da imagem, não completamente afastado por S. Bernardo, já definido pelos antigos rectóricos que consideravam a forma material, sensível, das estátuas dos deuses um meio de levar o espírito à contemplação das verdades imateriais. É isto que vemos em Santo Agostinho e, principalmente, em S. Gregório Magno para quem, o mesmo que os sábios entendem pela leitura dos caracteres da escrita, artificiais e esquemáticos, é compreendido pelos ignorantes ao contemplar as imagens materiais e imitativas. (Cf. também Edgar de BRUYNE, L’esthétique du Moyen Âge. 1974 (Trad. espanh. La estética de la Edad Media. Madrid,Visor, 1994, p. 18-21). 36 Cf. ZALOUSKA,Yolanta, L’enluminure et le scriptorium de Citeaux au XIIe siècle. Citeaux, 1989, p. 149. 37 Cf. DUBY, Georges, Saint Bernard – L’art Cistercien. Paris, Flammarion, 1979, p. 179. 38 Cf. PASTOUREAU, Michel, O.c., p. 63. 39 Cf. Georges DID-HUBERMAN, “Imitation, représentation, fonction. Remarques sur un mythe épistémologique.” In L’Image – Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris, Le Léopard d’Or, 1996, pp. 59-86.
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tativa, tornava-se necessário, para compreender esta experiência figurativa em Alcobaça, situá-la na confluência de várias tradições. Procurou, então, provar-se que, sendo embora a imagem alheia ao espírito cisterciense, o artista alcobacense da primeira metade do século XIV, havia interpretado o pensamento de S. Bernardo, expresso no seu sermonário, trabalhando com pouca mestria, mas atendendo, sobretudo, ao sentido espiritual, procurado na palavra. O mesmo não se poderá dizer da cor, uma vez que, ao contrário dos seus contemporâneos, S. Bernardo parece ser cego às cores consideradas como ornamento inútil. Mas, tentemos perceber como é que no scriptorium acobacense se via a imagem e a cor. Espantar-nos-íamos que, mesmo excepcionalmente, Alcobaça se distanciasse do espírito da norma. Vamos limitar a nossa análise às imagens dos Alc. 26 e 376, em que a Virgem seja representada, seguindo a ordem como aparecem no missal Alc. 26, isto é, a sequência do curso do ano litúrgico, primeiro o Temporal, depois o Santoral. As iniciais historiadas, assinaladas com letras de aviso, aparecem na antífona do Intróito de algumas festividades do Próprio do Tempo e do Santoral, associadas a uma cercadura irregular e incompleta. São inscritas num rectângulo ou num quadrado ora rosa, ora azul, alternando as mesmas cores no corpo da letra, sobre as quais são delineados ornatos simples a branco. A figuração situa-se no interior do espaço da letra, servindo-lhe ora de moldura, ora entrando como elemento constitutivo da composição, articulando-se os espaços disponíveis, definidos geometricamente, com as necessidades da representação e utilizando, por vezes, a divisão em registos sobrepostos como forma narrativa e uma linguagem convencional descritiva da imagem, em especial a gestualidade, maneira tão peculiar de comunicação entre os cistercienses.
3.ª missa de Natal: O presépio – fl. 19r. (fig. 5) A inicial historiada faz parte do intróito da 3.ª missa do Natal: “Puer Natus est nobis”. Perfeitamente enquadrada na barriga da letra P, a cena dividese em dois registos cuidadosamente construídos a compasso, com preocupação de simetria. Em fundo de ouro, no registo inferior, vemos a Virgem Maria reclinada, com véu branco e largo manto rosado, e no superior o Menino enfaixado, deitado na manjedoura, ladeado pelas figuras benfazejas do boi e do
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burro. A representação da Maternidade, com a Virgem reclinada, do tipo sírio, só irá modificar-se no século XV, aparecendo Maria de joelhos. A construção, que se adapta à forma da letra, é utilizada para induzir um subtil significado que sugere as metáforas marianas de fonte e de aqueduto usadas por S. Bernardo. Cristo é a fonte de água viva que brota de Maria e que, através d’Ela chega até nós, alimentando os nossos corações ressequidos40. Por isso, o Presépio, assente numa coluna, imagem cultual, sugere a forma dum altar fonte, que nasce de Maria. Aí vemos o Menino, reclinado e envolto na pobreza e na simplicidade exemplares de panos brancos, ao gosto Fig. 5 – Natal – O presépio. Missal Cisterciense – s. XIV. cisterciense.41 A cor do manto da Virgem, Alc. 26, fl. 19 r. rosa pálido, parece corresponder às necessidades da lei da alternância programada para as iniciais vermelhas e azuis deste códice, e que pode observar-se, também, nas cores atribuídas ao boi – vermelho – e ao burro – azul. Esta cor branca rosada aparece noutras cenas com figuras reclinadas como na festa da Natividade da Virgem, que veremos mais à frente, e na inicial do Intróito do primeiro domingo do Advento, onde a alma do justo é, também, branca e sem mácula. 40 «(...) Sed fons est Qui nunquam poterit exhaurire. Fons nobis est Christus Dominus unde lavemur, sicut scriptum est: “Qui dilexit nos, et lavit nos a peccatis nostris” Veruntamen non iste salus aquarum est usus, nec tantum sordes abluunt, sed et sitim extingunt.“Beatus vero”, ait Sapiens,“qui in Sapientia morabitur, et qui iustitia meditabitur”; et post pauca: “Aqua”, inquit, “Sapientiae salutaris potabit illum (...)”». (In Nativitate – Sermo Primus – “De fontibus Salvatoris”, vol. II. Tomo III, n.º 5, p. 27.) E ainda, “Quis vero fons vitae, nisi Christus Dominus? (...) Derivatus est fons usque ad nos, in plateis derivati sunt aquae, licet non bibet alienus ex eis. Descendit per aquae-ductum vene ille coelestis, non tamen fontibus exibens copiam, sed stillicidia gratias arentibus cordibus nostris infundens (...).Advertistis jam, ni fallor, quem vellim dicere aquae-ductum (...). Nostis enim cui dictum sit: Ave gratia plena”. (In Nativitate B. Mariae – De Aquae-ductu, vol II,Tomo III, p. 128). 41 «Hieme natus est, nocte natus est Christus, cujus in arbitrio erat quodcumque vellet eligere tempus, ellegit quod molestius est, presertim parvulo, et pauperis matris filio, quae vix pannos haberet ad involvendum, praesepe ad reclinandum. (...) Quid ergo stabulum eligit? Plane ut reprobet gloriam mundi, damnet saeculi vanitatem.» (In Nativitate Domini – Sermo Tertius, Vol. II, tomo III, 1 e 2, p. 28).
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A festa da Epifania: Adoração dos Reis Magos – fl. 24r. (fig. 6) A inicial iluminada é a do Intróito da Epifania: “Ecce adveniet dominator dominus et regnum in manu eius et potestas et imperium”. A composição inserese num círculo, formado pela letra E, e esta num quadrado, organizada em dois registos sobrepostos separados pela haste transversal da letra. No nível inferior representam-se com alguma minúcia os três Reis Magos: o de meia-idade oferece os seus presentes, o novo aponta para o alto, na direcção da estrela orientadora, não representada, e o velho coloca a mão sobre o peito, sinal de que acredita no que vê e dá testemunho; no nível superior, o celeste, vemos a Virgem-Mãe coroada e o Menino, com o nimbo cruciforme, levanta as duas mãos para a Mãe que pousa a mão direita no seu ombro, gestos de ternura que sugerem a evolução da representação no século XIV. Maria é a Sedes Sapientiae, simbolizada pela maçã que, no Cântico dos Cânticos, tão abundantemente comentado por S. Bernardo, é símbolo da fecundidade do Verbo divino, o seu sabor e o seu odor: “O perfume da Fig. 6 – Epifania. Missal Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 24v. tua boca é como o odor das maçãs” (Cânt.VI,7). A Virgem, coroada como rainha, veste túnica azul e véu branco. Os magos alternam a mesma cor com vermelho ou rosa. Esta é verdadeiramente uma cor de reis: A rainha do céu e o seu Filho e os Magos que lhes prestam tributo.
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Missa do Domingo de Pentecostes – Descida do Espírito Santo – fl. 125r. (fig. 7) A inicial historiada é a do intróito da Missa do dia de Pentecostes: “Spiritus Domini replevit orbem terrarum...”. O S, redutível a um círculo inscrito num quadrado, divide a cena em dois níveis: no inferior a Virgem Maria, rodeada pelos Apóstolos, ocupa o centro e reproduz o gesto da Anunciação, mãos abertas junto ao peito, significando disponibilidade e aceitação, tal como os Apóstolos que, convergindo para Maria, colocam uma mão sobre o peito. No nível superior, rompendo da nuvem, lugar do sobrenatural, a pomba do Espírito Santo lança línguas de fogo sobre as cabeças da Virgem e dos discípulos. Véu branco, túnica rosa e manto dum azul intenso, Maria destaca-se, ainda, dos restantes apóstolos, pela auréola vermelha mas principalmente pela posição, sendo esta verdadeiramente significaFig. 7 – Pentecostes. Missal Cisterciense – s. XIV. tiva. Maria como centro, é um tema que S. Alc. 26, fl. 125r. Bernardo glosa nos sermões do Pente42 costes . Iconograficamente Ela estava muitas vezes ausente na época românica, mas regressa no período gótico, “ao seu lugar de honra, desta vez definitivamente, assimilada à Igreja na sua existência terrestre”43. São evidentes as equivalências com a cena da Anunciação, pois que é o mesmo Espírito Santo, que cobriu Maria com a Sua Sombra, “que reveste os Apóstolos das virtudes do alto, isto é, da mais ardente caridade”44. 42 “Et tunc iam operabatur salutem nostram in medio terrae, in utero videlicet Mariae, quae mirabili proprietate terrae medium apellatur. Ad illam enim, sicut ad medium, sicut ad arcam (...) respiciunt (...) Merito in te respiciunt oculi totius creaturae, Qui in te, et per te, et de te benigna manus Omnipotentis quicquid creaverat recreavit”, ( S. Bernardo, In festo Pentecostes – Sermo Secundus, vol. II, tomo III, 5, p. 93). 43 J WIRTH, O.c., p.260. 44 “Ipse est Qui Virginem obumbravit, Apostolos roboravit, ut et virgineo corpori temperaret deitatis accessum, et Apostolos indueret virtute ex alto ferventissime scilicet charitate” (S. Bernardo, In festo Pentecostes – Sermo Tertius, vol. II, tomo III, 1, 93).
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“In purificationi Sancte Marie” – fol.189r. (fig. 8) A inicial iluminada é a do intróito da Festa da Purificação: “Suscepimus Deus misericordiam tuam in medio templi tui (...)”. A cena, em fundo de ouro, está em parte desenquadrada. A sua construção obedece, contudo, a um esquema geométrico sendo Cristo a figura central ligeiramente mais elevada. À sua volta, Maria que O apresenta ao velho Simeão. Fora do enquadramento da letra, São José, transportando um cesto com duas rolas ou duas pombas e uma vela acesa. Os seus pés sugerem movimento. Esta representação de S. José não é Fig. 8 – Apresentação no Templo. Missal um simples estratagema para resolver o Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 189r. problema da composição, mas tem a ver com o seu papel nos mistérios da vida de Cristo e da Virgem. Dispensado na representação do presépio, quando aparece em cena, como aqui, fica sempre afastado do grupo central, a Virgem e o Menino. Os sermões de S. Bernardo para o dia da Purificação ajudam a entender melhor esta representação: “Hoje, uma Virgem Mãe leva o Senhor do Templo ao Templo do Senhor e José vem oferecer a Deus não o seu Filho, de José, mas o próprio filho de Deus”. Depois descreve esta primeira procissão que, em seguida, devia ser objecto de uma festa jubilosa. Aí está o movimento sugerido pelos pés de S. José com o círio aceso e pelas restantes figuras a três quartos. A cor dominante é o azul: o manto da Virgem com uma bordadura feita com traço e ponteado brancos; as túnicas do Menino e de S. José, com um azul intenso semelhante ao pano que recobre o altar; o véu de Simeão num azul desbotado. As cores da Virgem são as habituais – véu branco, túnica rosa, manto azul; as dos outros personagens seguem a lógica da alternância: S. José, túnica azul, manto rosa; Simeão, véu azul e túnica vermelha. Este esquema aplica-se igualmente à cor das auréolas: azul da Virgem combinando com branco; vermelho no Menino e em Simeão alternando com o azul das vestes. A cor não interfere, pois, com a significação, excepto se considerarmos o azul desbotado,
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utilizado no véu do velho Simeão, como um sinal de inferioridade e da “espera (penitente) da consolação de Israel”, do tempo pré-messiânico.
Fig. 9 – Anunciação. Missal Cisterciense – s. XIV - Alc. 26, fl. 199r. Compendium theologicae veritatis – 1332 – copista Fr. Foão (de Paredes). – Alc. 376 – fl. 66 v.
Anunciação - fol. 199r. (fig. 9) A inicial iluminada é a do intróito da festa da Anunciação: “Rorate coeli desuper(...)”. A figura do anjo Gabriel surge pela esquerda, mão direita levantada, argumentando, e na outra o volume desenrolado, atributo dos anjos, dos profetas e do próprio Deus, isto é, de quem pode falar com autoridade. A Virgem, de pé, segurando o códice, sinal de que conhece a “Sacra Página” e nela medita, responde aceitando os desígnios de Deus. A Anunciação do Alcobacense 376 repete este modelo. A cena ilustra o assunto do livro quarto – De incarnatione Christi (fl. 66v.). A inicial S do primeiro capítulo,“De salutatione angelica”, enquadra-a de forma deficiente, sobrepondose às figuras na zona intermédia. Repete a mesma composição do Alc. 26, invertendo, apenas a alternância das cores azul e rosa. É uma cena depurada, sóbria de elementos significantes. Não aparecem, nomeadamente, o Espírito Santo (a pomba) e a flor-de-lis, utilizada na simbólica bernardina – “inviolabile castitatis lilium” –, símbolo da tríplice virgindade de Maria – “Virgo ante partum, in partu, post partum” –; regista apenas o essencial
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para veicular a mensagem com exactidão no seu conteúdo mais espiritual de transmissão e aceitação da palavra.Também aqui a contenção cisterciense está patente, exigida pela transcendência do mistério representado. Na verdade, Maria, no dizer do Doutor Melífluo, é um tesouro oculto pela humildade, que apenas é visível a Deus. O livro, porém, que revela a Palavra, é branco e vermelho, porque é luz e calor, força e sabedoria do Espírito Divino.45
Assunção de Nossa Senhora – fol 256r. (fig. 10) A inicial iluminada é a do intróito da Festa da Assunção: “Gaudeamus”. A letra G presta-se á construção da cena, redutível a um círculo que se inscreve num quadrado. No registo inferior, um leito sustentado por três colunas, provavelmente símbolo das três virtudes teologais, elevadas ao mais alto grau pela Virgem, e do culto à Mãe de Deus, é ladeado por dois apóstolos com o códice numa das mãos e a outra levantada indicando a direcção para cima. A fé na “dormitio” da Virgem, aqui sem registo da dúvida de S. Tomé, está bem expressa por Fig. 10 – Assunção. Missal Cisterciense – s. XIV. estes elementos. Elevada ao céu por dois Alc. 26, fl. 256r. anjos, mãos juntas em acção de graças, antecipando a sua entrada no Paraíso, vêmo-la já coroada como “rainha dos céus, uma rainha de misericórdia”, segundo S. Bernardo, que enaltece assim a padroeira principal de Cister. O tema da coroação, um dos temas góticos mais populares, condiz bem com um dos principais comentadores do Cântico dos Cânticos. As cores da Virgem – véu branco, túnica rosa e manto azul, alternam com as dos dois apóstolos. Aos anjos, criaturas celestes, corresponde a cor azul que se pode ver nas nuvens que representam o céu. O dragão da cercadura, como mais tarde a lua sob os pés da mulher com uma coroa de doze estrelas, introduz a simbólica apocalíptica. A sua cor, em parte azul, é meramente compositiva, relacionando-se com a letra não apenas na cor, como também no ornato. 45 Ver nota 11.
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Festa de S. Bernardo. A Lactação – fol. 258v. (fig. 11) Esta é a única representação conhecida de S. Bernardo nos manuscritos alcobacenses, associada à Virgem. Podem ver-se outras duas, no Missal Cisterciense de Lorvão (ANTT, CF 154), obra do início do século XIV, de certa proveniência italiana, e no luxuoso Colectário de S. João de Tarouca (Il. 155), iluminado por Frei Tomás de Aquino em 1735. Aqui, a ornar a inicial do intróito da Missa de S. Bernardo, “In medio Ecclesiae [...]”, vemos uma cena em fundo de ouro de temática bem conhecida: S. Bernardo, de joelhos, mãos juntas em oração, perante a Virgem Maria coroada, de pé, segurando e pressionando com a mão esquerda o seu seio nu, que jorra leite na direcção da boca do santo monge. O Menino, abençoando, é a figura central da cena, construída em rectângulo esguio, como pede a inicial I. O santo reza:“monstra te esse matrem[...]” Fig. 11 – Lactação de S. Bernardo. Missal Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 258v. e a Virgem Mãe corresponde com o gesto maternal. O leite da Virgem representa a Sabedoria com a qual S. Bernardo e outros foram gratificados, mas também o pão eucarístico, corpo alvo de Cristo, alimentado pelo leite imaculado de Maria.46 46 O tema do aleitamento de S. Bernardo nasceu na Península Ibérica, nos finais do século XIII, pelo que esta representação, situada antes dos meados do século seguinte, é, de certo, bem primitiva. Notícia da existência duma tradição iconográfica da Lactação lê-se no texto duma Visitação a Alcobaça de Frei Pedro Serrano, abade de Santa Maria da Pedra, como delegado do abade de Claraval, entre 1484 e 1487. Depois de mencionar o estado deplorável dos vitrais da igreja e das outras dependências, mandou que se fizessem também vitrais para as três janelas da sala do Capítulo: para a do centro, Cristo atado à coluna; para a da direita, S. Bento revolvendo-se nos espinhos; para a da esquerda, a lactação de S. Bernardo juntamente com os monges da fundação de Alcobaça e o rei fundador. Que foram feitos e existiam ainda no século XVIII prova-o a Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça..., de Frei Manuel dos Santos.
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A cor vermelha com listras brancas do manto da Virgem é postulada pelo azul da letra, mas adquire um impacto visual ainda não observado, pelo estiramento da figura e pelo contraponto da túnica azul do Menino, igualmente listrada, e do hábito branco de S. Bernardo. A cor com manchas ou outro tipo de decoração, como esta, pode sofrer uma inversão de significação negativa, como acontece no Sacramentário de Admont, pertencente à F.C. Gulbenkian47, em que os atributos da figura da Sinagoga são reforçados com uma veste colorida e listrada. A opulência no vestir e a fantasia decorativa da cor contrasta fortemente com a simplicidade cisterciense, e, provavelmente, foi o maior exagero do artista alcobacense.
A Natividade de Nossa Senhora – fol. 266r. (fig. 12) A inicial iluminada é a do intróito da Festa da Natividade de Santa Maria: “Gaudeamus[...]”. A inicial G tem tratamento semelhante à da Festa da Assunção. A construção da cena obedece a um esquema circular, em que o centro é ocupado pela Virgem e Santa Ana. Dois anjos, um abençoando, o outro incensando, transformam esta figurinha nua, branca, nimbada e coroada, na nova Eva, sem mácula. O seu nascimento antecipa, assim, a sua gloriosa Assunção e Coroação. Por isso, S. Bernardo incita os monges no sermão da festa da Natividade a louvar Maria porque Ela é, desde o seu nascimento, advogada junto de Deus: “[...] Quereis ter uma advogada junto d’Ele? Ide a Maria”.
Fig. 12 – Natividade de Santa Maria. Missal Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 266r.
47 Ver o texto que escrevemos para a exposição, A Imagem do Tempo – livros manuscritos ocidentais, Lisboa, F.C.G., 2000, p. 384.
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Em resumo, as cores que o artista alcobacense utilizou nas representações da Virgem Maria são o azul, o vermelho, e o branco. O azul, feito à base de azurite, de grãos finos ou grosseiros, como vimos, começa, a partir do século XII, a conquistar o Ocidente. “O século XIII europeu é o século do azul”48, afirma Michel Pastoureau. O vermelho, a cor que até aí tinha sido a cor principal, vai perder a primazia para o azul luminoso e saturado que se torna a cor da Virgem e da função real. Foram as novas técnicas de tingimento dos tecidos que permitiram obter esse azul vivo, aquele que, sendo raro, era o mais apreciado. É este que é escolhido, em geral, para o manto ou a túnica da Virgem. O azul desmaiado, acinzentado, é considerado uma cor diferente, desvalori- Fig. 13 – Festa de Santa Maria Madalena. zado, e aparece ligado a categorias sociais Missal Cisterciense – s. XIV. Alc. 26, fl. 137r. inferiores e também a atitudes de penitência como pode ver-se na representação da Madalena aos pés de Cristo (Alc. 26. fl. 237r.) (fig. 13). O vermelho, cor fácil de obter, que, provavelmente por essa razão, continua a ser abundantemente utilizado em Alcobaça, como vimos, alterna com o azul, como vermelhão ou matizado com branco, segundo receituário que vem desde o monge Teófilo. O branco, considerado cor na Idade Média, tal como o preto, é a cor pascal por excelência, a primeira das cores utilizadas na liturgia. Anda associado ao brilho e, portanto à divindade. Na Transfiguração Jesus aparece com as vestes brancas como a neve; os eleitos, os que lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro e que o seguem para onde vá, estão vestidos de branco (tal como o seu vigário na terra). É por esta associação com a candura, a pureza, que simboliza a castidade e a tríplice virgindade de Maria. É, pois, uma cor da Virgem, mas também a cor de Cister, onde começa a ser utilizada no início do século 48 M. Pastoureau, Figures, Couleurs, p. 37.
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XII, em primeiro lugar como reacção contra o negro cluniacense. Já vimos que S. Bernardo considera a cor como um artifício inútil e dispendioso. Nos comentários ao Cântico dos Cânticos as cores branca e preta são entendidas como analogias espirituais. Vendo Cristo sofredor, explica que os sentidos informam-nos que é negro, mas a fé testemunha que é branco. Uma coisa é o que vemos outra o que cremos.49 Por isso, nem tudo o que é negro é feio; por exemplo, o negro da menina dos olhos, das pedras preciosas, dos cabelos sobre uma pele branca. A alma pode ser negra por fora e bela (branca) por dentro.50 Este entendimento do branco e do preto, mostra-nos que o significado das cores não é unívoco; depende, em grande parte, como se disse, do contexto significante em que são utilizadas. Contudo, há acordo, para a Idade Média, relativamente a uma constância de significação. No Apocalipse de Lorvão, dos finais do século XII51, pode conferir-se, de facto, de forma rigorosa, esta constância. Aí, dada a gama limitada de cores, reduzidas ao antigo sistema ternário – branco ou amarelo, vermelho e preto – o brilho, a saturação, a intensidade formam uma relação mais importante que o espectro. A cor bela é a cor pura, sem manchas, sinais de impureza, de vício, de ferocidade. A saturação é utilizada para significar a luz ou a opacidade. É neste sentido que S. Bernardo afirma que a cor é um artifício inútil, um obstáculo à divindade. A cor é o denso e o denso é o obscuro, o inferno. O sistema que vemos utilizar nestes exemplares alcobacenses é cromaticamente mais variado, mais linear, mais hierarquizado, em que todas as cores adquirem lugar. Por isso as relações de significação não são tão rígidas e uniformes. Daí que a forma seja iconograficamente mais importante do que a cor. De facto, embora tivéssemos encontrado aquelas três cores como as cores utilizadas na representação da Virgem, não pudémos verificar uma coerência no seu uso. Diferentes personagens, com funções diversas utilizam as mesmas cores, até o dragão marginal da festa da Assunção (fig. 10). A lógica, que fomos assinalando, tem a ver não tanto com o significado mas com a construção funcional da página, sendo uma das formas da sua clarificação a alternância das cores das letras e dos ornatos, prática verificável
49 In Cantica. Sermo XXVIII. 50 In Cantica. Sermo XXV. 51 Ver o meu estudo: Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão. Tomar 1998. Tese inédita, apresentada em provas públicas de concurso para Professor Coordenador.
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Fig. 14 – Antifonário – s. XIII – Arouca, ms. D - Assunção, fl. 62v. - Natividade, fl 74v.
em obras cistercienses anteriores.52 (fig. 14) Esta organização funcional é um auxiliar importante da leitura e, portanto, necessária para o entendimento da palavra. Nestes códices cistercienses, a imagem segue as regras da legibilidade, sendo, portanto, tratada como um texto. Como se disse, no pensamento de S. Bernardo, nada é mais importante que a palavra. Por isso pode ser identificado o seu discurso na produção e no pensamento plástico cistercienses. Percebe-se, também, porque é que a cor vai sendo tolerada, a par da imagem: É que ela é despida de significado e situa-se ao nível fundamental da estrutura auxiliar da compreensão. Então, as cores da Virgem Maria não são exclusivamente suas, mas integram-se num sistema construtivo e lógico que, quando pode ser, é monocolor. Vejamos, para terminar, uma última ilustração desta ideia. (fig. 15) Não é uma representação da Virgem Maria, mas uma rara imagem da igreja que lhe foi dedicada. Esta imagem de Santa Maria de Alcobaça, a preto e branco, resume, de certa forma, o espírito alcobacense: É um desenho à pena, pouco elaborado, que representa S. Bento com as insígnias abaciais, de pé, abençoando um monge
52 Este estratagema semelhante de tratar a imagem e o texto, podemos conferi-lo, mais de cem anos antes, nos Antifonários cistercienses de Arouca, ms. 22 e 23 - (s. XIII), provenientes, provavelmente, do mosteiro de Las Huelgas, Burgos.
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branco, ajoelhado a seus pés (Alc. 44). Pouco interesse teria esta medíocre representação, não fora poder estar aí uma imagem, talvez a primeira, do mosteiro de Alcobaça. Na verdade, o lugar da cena parece ser o claustro, de um só andar, que, tal como no actual edifício, fica contíguo à parede Norte da igreja, ameada, sem torres, com uma correnteza de janelas semelhantes às que ainda se podem ver; construído entre 1308 e 1311, só após 1484 se lhe acrescentaria a galeria superior. Bem podia, pois, o artista querer darnos uma imagem, ainda que idealizada, da sua igreja, continuamente presente no seu espírito porque sempre diante dos seus olhos, não apenas enquanto se passeava na Fig. 15 – Regra – s. XV. Alc. 44, fl. 12 quadra, mas também durante o árduo trabalho que lhe tinha sido confiado de lançar os textos e de ajustar o ornato nas páginas, executado próximo daquele ponto, onde se tem visto situado o scriptorium. Não encontrou melhor lugar do que o livro das Regras, nem processo mais adequado do que a sua vulgar tinta de escrever. Julgo que esta é a imagem da produção de Alcobaça. Tal como a nave luminosa e clara da grande igreja, onde ressoava a palavra e o canto litúrgico, entoado com a sonoridade viril, como mandava S. Bernardo, resplandece acima de tudo pela sua estrutura, também o códice, ritmado pela cadência da cor essencial e do modesto ornato, lugar da palavra, manifesta a simplicidade formal e a beleza que lhe advém duma estrutura depurada e funcional. É neste sentido que as cores da Virgem e aquelas imagens se dirigem mais ao coração que aos olhos, segundo os ensinamentos de S. Bernardo.
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RESUMO
ABSTRACT In the midst of Christian civilization, music had a main importance in practices associated with the cult, namely singing, as support of word. Erudite music was heir of Antique traditions, mostly in a theoretical field, which conjugated with musical Jewish tradition. This cultural heritage will reflect in musical domain and others, such as Philosophy or Fine Arts. This study aims to sustain the idea that some musicals concepts of Antiquity were transposed by medieval culture, showing clearly the way how they were incorporated and rendered visible in an iconographic specific theme: the musicus, the one who knows the “laws” which rule the macrocosms, by the same mathematics principles of Ars musica.
No seio da civilização cristã Ocidental a música teve uma importância preponderante no domínio das práticas associadas ao culto, nomeadamente o canto, como suporte da palavra. A música erudita, podemos afirmar, foi herdeira de tradições da Antiguidade, sobretudo no domínio teórico, que se conjugaram com tradições musicais da sinagoga judaica. Esta herança cultural reflectir-se-á no domínio musical e noutros, tão distintos como a filosofia, ou as artes plásticas. Este estudo procura ser mais uma achega para a sustentação da ideia de que alguns conceitos musicais da Antiguidade foram transpostos pela cultura medieval, evidenciando o modo como foram incorporados e tornados visíveis num tema iconográfico específico, a figura do musicus, o que conhece as “leis” que regem o macrocosmos, segundo os mesmos princípios matemáticos da Ars musica.
REX MUSICUS Iconografia do salmo 80 nas bíblias francesas do século XIII* Luís Correia de Sousa**
No seio da civilização cristã Ocidental a música teve uma importância preponderante no domínio das práticas associadas ao culto, nomeadamente o canto, como suporte da palavra. A música dita erudita foi herdeira de tradições da Antiguidade Clássica, sobretudo no domínio teórico, que se conjugaram com tradições da prática musical da sinagoga judaica. Esta herança cultural não se irá reflectir apenas no domínio musical mas estender-se a outros como a filosofia, a teologia ou as artes plásticas. Este estudo procura ser mais uma achega para a sustentação da ideia de que alguns conceitos musicais da tradição erudita da Antiguidade foram absorvidos e transpostos pela cultura do Ocidente medieval evidenciando o modo como foram incorporados e tornados visíveis num tema iconográfico, a figura do musicus, o que conhece as “leis” que regem o macrocosmos, segundo os mesmos princípios matemáticos da Ars musica. Em concreto, iremos abordar a iconografia davídica nas iluminuras do salmo 80, O rei David a tocar um pequeno carrilhão de sinos, presente em manuscritos franceses do século XIII, produzidos nos ateliers de Paris ou da sua influência. Os indícios encontrados num conjunto de manuscritos iluminados existentes nas nossas bibliotecas e arquivos, nomeadamente a presença da iconografia referida, apontam para uma estreita relação entre o sentido da representação e as tradições da Escola Pitagórica relativamente às relações entre os números e as proporções numéricas aplicadas, desde a Antiguidade, à teoria musical e trazidas de novo à colação na época. O contexto cultural e académico parisiense terá estado na origem do aparecimento desta nova forma, que se terá firmado num concreto tema iconográfico sistematicamente introduzido no saltério. * Comunicação apresentada no âmbito do colóquio: O visível e o invisível Em torno da História Cultural e das Mentalidades. Lisboa, F.C. S. H – UNL, 14 e 15 de Novembro de 2006. ** Instituto de Estudos Medievais. Bolseiro de Doutoramento da FCT.
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O campo de estudo foi um conjunto de cento e dezassete manuscritos iluminados, maioritariamente Bíblias (89), mas também Breviários (9), Saltérios (8) e Comentários aos Salmos (6). Doze destes pertencem a bibliotecas e arquivos portugueses e os restantes a instituições francesas. Impõe-se então traçar uma linha de continuidade ou, pelo menos, fixar alguns pontos de contacto no domínio da música erudita, desde a Antiguidade até ao período em questão. Procuraremos explicitar o modo como se conjugam as teorias musicais com princípios estéticos e filosóficos e como dessa conjugação terá sido sintetizado o referido tema iconográfico destinado a estes manuscritos em concreto, assim como referiremos alguns aspectos relevantes relacionados com o aparecimento e condições de produção dos novos manuscritos.
Música e mitos musicais na Antiguidade De entre todas as formas de arte, a música assume características especiais pela sua imaterialidade. A sua principal diferença relativamente às outras expressões artísticas é que ela ocorre no tempo, enquanto as outras formas ocorrem no espaço. É, portanto, uma forma de expressão invisível, apreendida pelo ouvido e não pela vista.Talvez por isso, desde os tempos mais remotos tem sido utilizada como mediadora entre os homens e os seus deuses, sendo-lhe reconhecidos poderes mágicos ou, pelo menos, algo transcendentes, devido ao modo como actuam e interferem sobre os sentidos ou pela capacidade de comover os afectos. Da Antiguidade, essa herança chega-nos sobretudo por duas vias: pela mitologia e pela de teoria musical, sistematizada por filósofos. No âmbito da mitologia poderíamos referir vários mitos onde a arte dos sons é protagonista, sendo provavelmente a referência mais conhecida o mito de Orfeu, que transitou, através da arte, da Grécia para Roma e depois para toda a cultura Ocidental, abordado por artistas de diferentes áreas, como a música, a poesia ou as artes plásticas. Não menos importante é o que nos foi legado no domínio dos conceitos teóricos e do papel da música no ensino e formação. A música que iremos apresentar é a que é referida como a “Ars Musica”, abordada a partir dos seus princípios teóricos e pertencente ao domínio da especulação filosófica. Destacaremos também o modo como as suas “leis” são continuadamente abordadas e assumem especial importância no pensamento medieval, como se relacionam
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e são transpostas para as artes visuais, neste caso para um tema da iluminura, com um significado específico, de acordo com a visão da época. A Ars Musica era uma das disciplinas do conjunto das Sete Artes Liberais que viria a constituir um pilar basilar do sistema de ensino medieval. Este conjunto de disciplinas estava dividido em dois ramos ou ciclos: o Trivium e o Quadrivium. Do primeiro faziam parte a Gramática a Retórica e a Dialéctica e do segundo a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música, consideradas todas estas do domínio da Matemática. O conjunto destes sete domínios de estudo constituía o principal corpo de conhecimentos ensinados nas Universidades aquando do seu aparecimento e ainda durante bastante tempo depois. No domínio da Ars Musica, sendo da área da Matemática, a sua abordagem fazia-se a partir das relações entre os números e as proporções numéricas, extrapolando-se essas “leis” para outros domínios completamente distintos, como a Astronomia. A ideia de associar a teoria musical à estrutura do Universo é muito antiga, devendo-se à escola pitagórica a designada teoria da harmonia das esferas. Autores da Antiguidade, como Platão (428/27-347 a.C.), Cícero (106-43 a.C.) e Plínio (23-79), voltam a recorrer a esta ideia, que vai encontrar acolhimento na época medieval, a partir de Martianus Capella, embora assumindo um novo sentido. É normalmente atribuído a Pitágoras (c.570/80 – c.496 a.C.) o estudo das propriedades dos sons enquanto domínio científico. A tradição refere que Pitágoras terá verificado a relação existente entre pesos, números e sons ao passar junto a uma forja de ferreiro, sendo surpreendido pelos sons produzidos pelos martelos de diferentes tamanhos ao percutirem a bigorna. Com quatro deles pôde comprovar que os seus pesos apresentavam relações de proporção 12, 9, 8 e 6; o maior (12), com o dobro do peso do mais pequeno (6), produzia um som mais baixo uma oitava que o pequeno. O peso dos martelos intermédios (9 e 8) correspondia à média aritmética e harmónica dos outros (12 e 6), pelo que deduziu que produziriam as outras notas da escala. A sua experiência terá conduzido à definição de algumas dessas relações (intervalos), aceites como harmoniosas, e consideradas consonâncias perfeitas e que foram traduzidas por fracções matemáticas: os intervalos de 8ª (relação de 1/2), 5ª (relação de 2/3) e 4ª (relação de 3/4). Embora a experiência da forja atribuída a Pitágoras tenha tido, mais tarde, uma demonstração da sua invalidade, as noções de proporcionalidade e
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relações numéricas mantiveram-se válidas como a base matemática da música durante toda a Idade Média, sendo usadas como ponto de partida para estudos posteriores de outros teóricos. A certa altura a tradição Antiga mistura-se com fontes bíblicas como em Vincent de Beauvais (c.1190-1264), que no seu Speculum Doctrinale, atribui a descoberta das “leis” da música a uma personagem bíblica, Jubal (Gen. 4, 21) em contraponto com a tradição da Antiguidade que a atribuía a Pitágoras (Verdier, 1969: 330), como se pode observar nesta ilustração do Theorica Musicae de Gafurius, de finais do século XV (fig.1). O que importa frisar é que a Ars Musica nunca deixou de constituir um domínio de grande interesse para a especulação filosófica e reflexão teológica, sendo abordada por várias figuras do pensamento cristão ao longo de toda a Idade Média.
Princípios musicais e pensamento cristão Um dos problemas que se colocou aos Padres da Igreja, nos primeiros tempos da nova religião, foi o modo como conciliar uma herança greco-romana, onde as manifestações musicais estavam associadas a ritos pagãos, com as práticas musicais herdadas da tradição da sinagoga judaica, como o canto litúrgico, praticado nas primitivas comunidades cristãs (Fubini (1992: 81). O caminho foi a abordagem da música a partir dos seus princípios teóricos. Estes, oriunFig. 1 – A experiência de Pitágoras sobre proporções e dos, como referido, da cultura grega consonâncias. antiga encontram eco na cultura Franchinus Gafurius, Theorica musicæ, 1492 Ocidental logo desde os primeiros séculos do cristianismo. Marcianus Capella (360/80 – 429), na sua obra De Nuptiis Mercurii et Philologiae, Livro VII, sintetiza e reintroduz o antigo conjunto das Sete Artes Liberais, tratando na última parte a Musica (De harmonia), consi-
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derada como a mais alta expressão das relações harmoniosas entre o Homem e o Universo. Este conjunto de disciplinas irá constituir a base do ensino nas escolas monásticas carolíngias e até ao Renascimento. O domínio da Ars Musica será enriquecido sobretudo com os contributos de Boécio (c.480-c.525) e Cassiodoro (c.485-c.580). É a Boécio que se deve a transmissão das ideias da escola pitagórica, nomeadamente a teoria das proporções, para a teoria musical da Idade Média. Na sua obra De Institutione musicae define uma hierarquia para os três tipos de música que considera existir (fig. 2): “mundana”, a que rege todo o Universo, que regula os movimentos das esferas celestes segundo as leis matemáticas traduzidas nas suas relações numéricas, portanto uma música inaudível e puramente especulativa; “humana”, a que rege as relações entre alma e corpo, e explica a estrutura harmoniosa e os movimentos deste, também um conceito puramente teórico; a “instrumentalis”, a menos considerada das três, aquela que diz respeito aos aspectos relacionados com os instrumentos e o canto e com os sons por eles emitidos, e as relações numéricas entre sons diferentes (Le Goff, 1998: 8). Ars Musica abarcava então o campo da especulação filosófica, mas também aspectos técnicos referentes à composição musical e à sua apreciação, enquanto processo. É fundamental ter em conta que todo o sistema de ensino e as suas instituições gravitam em torno da Igreja e que o ensino se fundamenta nos princípios da doutrina da mesma. Será também no seu seio, no quadro da sua liturgia, que as práticas musicais eruditas irão sobreviver e evoluir na Europa Ocidental (Nery, 1991: 11). Algumas das reflexões mais conhecidas sobre Música são proferidas por figuras basilares de todo o pensamento medieval e da Igreja, como Santo Agostinho (354-430) ou Isidoro de Sevilha (c.560-636). Em Santo Fig. 2 – Música mundana, humana e Agostinho transparecem duas ideias contra- instrumentalis. Florença, Biblioteca Laurenziana, ditórias: por um lado há o receio do dema- Ms. pl. 29. Séc. XIII
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siado envolvimento dos sentidos, da satisfação sensorial, do efeito dos sons no ouvinte, numa clara rejeição do passado pagão associado à música instrumental, em concreto (S. Agostinho, 1977, 10:33), por outro reconhece-lhe a capacidade de preparação do indivíduo para aceder à “beleza” suprema, ao “concerto de todo o universo”. Numa alusão ao conceito de ordem (De Ordine, I, 1,2. citado em Guy-H. Allard, 1969: 481), reconhece que tem a capacidade de, através do sensível, conduzir ao inteligível divino. É possível apreender o Mundo como um todo, uno e harmonioso, identificar a sua estrutura interna, reconhecer que é regido pela ordem harmoniosa dos números.
Teóricos franceses na Paris do século XIII As reflexões referentes à Ars Musica mantêm-se na discussão teológica e filosófica ao longo do período medieval, com especial importância no período aqui referido, o século XIII, nos meios intelectuais parisienses. A partir de meados do século XII verificou-se uma assinalável actividade intelectual em torno da catedral de Notre Dame. Essa actividade desenvolvida pelas várias gerações de músicos, formando a designada Escola de Notre Dame (11601230-50), abre caminho para a evolução das práticas musicais eruditas e para o aprofundamento da discussão teórica. No que diz respeito aos estudos musicais, a capital francesa é, neste período, o principal centro musical europeu, com importantes consequências na prática e composição musicais, assim como na teoria, em concreto no domínio da notação musical. A principal questão em debate coloca-se no sentido da sistematização de uma escrita musical rigorosa, concretamente em relação ao ritmo, ou seja a divisão do tempo em partes relacionáveis entre si. Na última metade do século XIII algumas questões teóricas colocam-se com premência e o assunto é abordado com grande empenhamento, devido às necessidades inerentes à evolução das formas musicais e ao desenvolvimento da polifonia. Neste quadro surgiram vários tratados, entre 1260 e 1280, em que o assunto é exposto, vindo a culminar, na primeira década do século XIV, com a chamada Ars Nova, designação derivada do tratado com o mesmo nome de Philippe de Vitry (c.1320). Não se trata apenas de uma evolução natural no domínio da música erudita mas um dos momentos mais marcantes na história da música ocidental, não só pela amplitude das suas
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consequências mas pelo esforço de racionalização que se começa a afirmar abrindo caminho para a consolidação do movimento escolástico que se verificará naquele século. Os principais nomes associados à discussão em torno da música são: Franco de Colónia, activo na segunda metade do século XIII, pensa-se que terá pertencido à ordem dos Cavaleiros de São João de Jerusalém e terá ensinado em Paris; Jean de Garlande, activo na cidade em meados do século XIII, terá sido mestre da Universidade; Jérôme de Morávia, também activo em Paris na segunda metade do século XIII, frade dominicano, teórico musical, ter-se-á dedicado ao ensino musical no convento de Saint-Jacques e na Sorbonne. Jean de Muris (1290-1351), astrónomo, matemático e teórico musical que, já na primeira metade do século XIV, acentua as bases matemáticas da música, foi mestre na Sorbonne. Jérôme de Morávia é considerado o primeiro teórico a interessar-se pelos instrumentos e sua afinação. Pelo seu Tractatus de musica (c. 1270), pode ter-se uma ideia precisa do que era ensinado nesta disciplina, no Studium generale dos Dominicanos em Paris (Meyer, 1992: 108). É também em torno da Escola de Notre Dame que devemos procurar as origens da Universidade de Paris. O prestígio que rapidamente adquiriu fez com que em meados do século XIII recebesse estudantes e mestres de toda a Europa (Hamel, 1986: 128). Foi também neste período que se generalizou o fenómeno da “urbanização” das ordens mendicantes, provocando um grande incremento à discussão teológica e ideológica. Assim, além da Universidade e de Notre Dame, em 1229, instalam-se na cidade os Dominicanos, com a sua Escola Geral de Teologia em S. Jacques e, pouco tempo depois, em 1231, os Franciscanos. Foram precisamente estas ordens mendicantes, que dominaram o ensino na Universidade. Entre os seus mestres mais famosos contam-se, Alexander de Halles (c.1185-1245), da ordem dos Franciscanos, professor de Teologia; São Boaventura, também franciscano e professor de Teologia em Paris, discípulo de Halles; Alberto Magno (c.1193-1280), frade Dominicano, mestre de Teologia na Universidade e São Tomás de Aquino (1227-1274), seu aluno e posteriormente mestre. A presença de reputados mestres atrai numerosos estudantes à cidade, proporcionando o desenvolvimento de vários pólos de erudição. O ensino musical assumiu grande importância na conhecida Escola de Notre Dame, no mosteiro de Saint-Victor e nas escolas do Monte de Sainte-Geneviève, mas também no seio da sua Universidade e no convento de Saint-Jacques. O domínio
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especulativo da Ars musica, era praticado pelos clérigos intelectuais formados na Universidade, no seio do conjunto das artes liberais, fazendo parte do Quadrivium (Weber, 1987: 8-9). No plano curricular dos estudos de Filosofia, constava aquela disciplina, tendo como base o tratado de Boécio, Institutione musica (Steenberghen, 1966: 125). O ensino da disciplina principiava com uma abordagem às propriedades dos números, de acordo com o exposto no De institutione arithmetica de Boécio; para as proporções recorria-se a um outro tratado do mesmo autor, De instituitione musica (Meyer, 1992: 109). O estudo das propriedades dos números e das proporções numéricas tem uma importância fundamental no aprofundamento da teoria musical. Os teóricos continuam a ir “beber” às teorias da escola pitagórica e às obras dos pensadores cristãos acima referenciados para elaborarem as novas propostas. Os elementos fundamentais continuam a ser o número e as proporções numéricas:“Musica est scientia de numero relato ad sonum” (A Música é a ciências dos números, transferida aos sons) – definição proposta por Johannes de Garlandia na sua reflexão sobre ciência do seu tratado De mensurabili musica (E. Reimer, Johannes de Garlandia: De mensurabili musica, Wiesbaden, 1972; Beihefte zum Archiv für Musikwissenchaft, 10 – 11, vol. 1 p. 4, citado in Meyer, 1992: 109). De facto, é inegável que a discussão em torno das relações numéricas, matemáticas, aplicadas à teoria musical esteve na ordem do dia nos meios intelectuais parisienses na segunda metade do século XIII e nas primeiras décadas do seguinte, tanto a nível das técnicas de composição como da procura de formalização de um sistema de notação, de que são resultado os trabalhos de Jean de Muris, notitia artis musicae e o tratado de Philippe de Vitry. Importa frisar que toda esta discussão se passa no seio das instituições eclesiásticas, fazendo parte de uma cultura e mentalidade que se organiza em torno do ideal cristão de procurar uma constante atitude de louvor divino, ao mesmo tempo que busca aprofundar a sua reflexão sobre a natureza humana, à semelhança do que vem perseguindo a Filosofia desde a Antiguidade. O Homem, ponto de encontro do universo espiritual com o universo material, é tido como um microcosmos de estranha complexidade. De sublinhar também que a rápida circulação de ideias que operam em cada domínio de estudo terá aberto o caminho para a aplicação de princípios comuns a áreas diferentes. Chegados a este ponto não parece difícil perceber as conexões entre as teorias Antigas, veiculadas pelos pensadores cristãos e a linha de pensamento que se delineia no século XIII. As “leis” musicais, como princípios de ordem
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universal, aplicados desde a Antiguidade ao macrocosmos, ao mundo celeste, transpostos para o pensamento cristão, são revisitadas e renovadas com nova visão e novas consequências. A imagem do Universo criado por Deus segundo numerus, pondus e mensura, conforme referido no Livro da Sabedoria (Sb. 11, 20), é ponto de partida para a elaboração de várias categorias estéticas que os escolásticos, segundo Umberto Eco, procuram sistematizar com rigor filosófico (Eco, 1989: 31). Podemos dizer que a iconografia aqui em análise é uma imagem síntese do pensamento escolástico, relativamente à relação do Homem com o Universo, aos conceitos de beleza e harmonia medievais, de origem bíblica conjugada com concepções platónicas, que encontra um suporte privilegiado que a acolhe – o novo livro portátil, ferramenta essencial para a discussão teológica.
Texto e imagem – o manuscrito iluminado A criação e desenvolvimento das Universidades provocaram o aparecimento e florescimento das profissões relacionadas com a produção e comércio de livros. Até aqui a produção de manuscritos era assegurada pelos scriptoria eclesiásticos, que procuravam suprir as necessidades da sua própria comunidade, não fazendo comércio de livros. Com o aumento da procura e as necessidades específicas de utilização dos livros verificou-se uma autêntica revolução na sua produção e comércio. Surgiram ateliers laicos dedicados à produção de cópias manuscritas e novas formas de organização do trabalho dos copistas e iluminadores, que procuravam satisfazer uma cada vez maior procura de livros. A produção de manuscritos iluminados em quantidade requereu a participação de grande número de especialistas neste domínio: escribas profissionais, que poderiam ser clérigos ou estudantes que copiavam os textos, rubricadores que inseriam as iniciais e iluminadores para as imagens. Clérigos e estudantes participavam neste trabalho e, com o crescimento das escolas, em S. Victor e na catedral, tornaram-se mais numerosos e mais expeditos na produção de manuscritos. Copistas profissionais existiam também na cidade e por vezes encontravam trabalho nas instituições eclesiásticas. Não era surpresa encontrar em S.Victor homens estranhos ao mosteiro a copiar textos, e iluminadores da cidade para os iluminar (Branner, 1977: 8) O aumento das necessidades resulta num acréscimo da procura e maior pressão sobre os ateliers livreiros, factor que terá sido determinante na orgni-
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zação do trabalho sob a forma de partilha entre vários ateliers. Foram implantadas verdadeiras cadeias de produção onde participavam copistas, iluminadores entre outros. O processo de trabalho era complexo, passava por várias fases e pelas mãos de diferentes artesãos. Depois do manuscrito estar no atelier eram feitas as marcas e os esboços, sobretudo nos espaços das iniciais destinados às iluminuras, de modo a ficarem prontos a serem pintados. Em muitos casos era o chefe do atelier a fazer um esboço, indicando ao pintor a cena a ser representada (Branner, 1977: 15). Este trabalho decorria sob a orientação e superintendência dos mestres da Universidade ou das instituições monásticas, que vigiavam os preços do trabalho e asseguravam a correcta implantação dos modelos propostos (Muzerelle, 1988: 68). Saint-Victor, por exemplo, teve originalmente regras elaboradas para a produção dos livros sob a jurisdição do seu cantor. Forneceu os modelos que poderiam ser utilizados para escrever o livro, com materiais e textos e supervisionou as cópias e as correcções (Branner, 1977: 14). Eram os “agentes” monásticos que escolhiam os iluminadores e apenas eles poderiam chamar um novo pintor para ajudar numa produção ou substituir outro (Branner, 1977: 10-11). O livro fundamental no meio parisiense, onde os estudos de Teologia assumiam especial prestígio, era a Bíblia que, em meados do século, era também o livro mais frequentemente iluminado (Branner, 1977: 14). Até aqui, com poucas excepções, a Bíblia era composta de diversos volumes separados, geralmente de grandes dimensões. Para o seu estudo recorria-se aos Comentários cujo formato era muitas vezes de vinte ou mais volumes (Hamel, 1986: 111). Neste mesmo século assistiu-se a uma das mais importantes alterações na aparência e dimensão física deste livro, que foi a reunião de todos os livros bíblicos num único volume. A ordem dos livros e os seus nomes foram estandardizados, os textos foram meticulosamente revistos, sendo cuidadosamente divididos em capítulos numerados, como ainda hoje se apresentam. Os copistas usaram o velino, um tipo de pergaminho muito fino; as páginas tornaram-se extremamente pequenas, sendo usada uma escrita microscópica e o texto organizado em duas colunas. Empregaram-se títulos no alto de cada página, iniciais a vermelho e azul nos títulos, em todo o texto, para marcar o começo de cada capítulo (Hamel, 1986: 118). Os novos processos de trabalho, tendo em vista a produção em quantidade, assim como as reduzidas dimensões e a inserção de numerosas iniciais iluminadas, devem ter contribuído para a fixação de rotinas na execução das
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tarefas. Em termos de iconografia, certamente que se buscaram soluções simples de aplicar e passíveis de serem repetidas sistematicamente. Um exemplo significativo pode ser o dos programas iconográficos dos saltérios, onde se verifica uma interessante regularidade, mesmo para manuscritos provenientes de ateliers diferentes. Pode-se inferir daí que existiam indicações precisas sobre os programas e que muito provavelmente existiam modelos aos quais os iluminadores recorriam para efectuar o seu trabalho. Dependendo, certamente, do número de efectivos a trabalhar numa determinado oficina, poderiam existir mais do que um livro modelo ou imagens soltas que eram copiadas pelos iluminadores. Os Dominicanos tiveram um papel activo na revisão dos textos para publicação, de acordo com a sua postura e determinação, clarificada pelo fundador da Ordem dos Pregadores, Domingos de Gusmão (1170-1221), em 1216, com o objectivo inicial de ensinar e de confirmar verdades fundamentais a fim resistir à heresia e educar intelectuais numa linha mais ortodoxa. Sendo que os estudos bíblicos constituíam o motivo central do seu ensino em Saint-Jacques, merece uma referência especial a importância que esta ordem religiosa concedia ao livro, enquanto material de base para a sua acção de pregadores, considerando-o como “a sua arma”. As vantagens da produção da Bíblia num único manuscrito, de reduzidas dimensões, por isso fácil de transportar, permitiu aos dominicanos, frades pregadores, tê-la sempre à mão, o que não era possível com os antigos formatos. As Ordens mendicantes estiveram também directamente relacionadas com a produção de manuscritos, quer na fase de preparação quer na conclusão do processo, em contacto com o copista e iluminadores, a quem davam indicações, possuindo mesmo ateliers para a sua produção. Numa deliberação do Conselho Geral dos Franciscanos, de 1260, proibiu-se mesmo a produção de manuscritos para venda, pela perigosidade dos proveitos que daí advinham, sendo eles frades que seguiam voto de pobreza (Hamel, 1986:123). Será igualmente no seio das ordens mendicantes que os novos manuscritos irão ter uma reconhecida utilidade, servindo de base aos seus sermões de apelo ao arrependimento, que faziam apelo a uma mudança espiritual, procurando passar do estado de tristeza para a alegria, comparando-a a uma mudança de “canção” (Connolly, 1993: 60). Claro que a passagem da tristeza à alegria é uma figura alegórica que significa a passagem do pecado ao estado de graça, usando para tal discurso referências musicais. A Teologia é assumida
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como ciência, no sentido aristotélico, como um encadeamento de proposições. Como referia S.Tomás d’Aquino «proceder por comparações diversas e por imagens é próprio da poesia, que é o último de todos os meios de ensinar» (Genest, 1988:103) É, pois, neste meio intelectual que se produzem os manuscritos onde se insere a iconografia aqui em análise, não podendo a mesma ficar desligada dos conceitos musicais em discussão sendo estas as mesmas instituições que acolhiam os responsáveis pelo surgimento do novo tipo de manuscrito e pelos estudos em torno da música erudita. Os programas iconográficos não são alheios ao pensamento que se desenvolve nos meios intelectuais e aqueles, como já referido, não eram deixados à livre fantasia dos iluminadores. A iconografia é regulada como um dogma, a “arte” tinha um papel de relevo “conduz as almas, pelo meio de coisas materiais, ao imaterial”, como frisava Suger, abade de Saint-Denis. As imagens, quer sejam as pequenas iluminuras ou o grande complexo que é uma catedral, espelham o pensamento explicitado pelos principais intelectuais da época. As obras pensadas e elaboradas neste contexto destinam-se mais à razão que à emoção e abrangem tanto o colectivo dos fiéis como cada um em particular. As consequências do desenvolvimento de um pensamento racional, também aplicado à música, com ênfase no simbolismo numérico e as relações numéricas herdadas da Antiguidade, ir-se-ão reflectir a nível das estruturas do texto poético das composições musicais e nas próprias formas músicas como demonstrou um estudo de Manuel Pedro Ferreira (1998) sobre motetes do período anterior à obra de Vitry. Após a análise do vasto conjunto de imagens aqui referidas, é nossa convicção de que algo semelhante se passou em relação ao tema iconográfico aqui em questão.
A imagem e o texto – a figura de David no salmo 80. A figura do Rei David, uma das figuras maiores do Antigo Testamento, é um tema recorrente na iconografia medieval, geralmente associado aos Salmos, tendo na iluminura uma expressão muito significativa. Relativamente a temas musicais, tanto no Antigo Testamento como no Novo, se encontram referências a práticas que se podem constituir como
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temas para as representações. No entanto é o Saltério aquele que mais vezes apresenta iconografia musical e, também, o único que tem sido ilustrado, continuamente, desde o século VIII (Marchesin, 2000:3). Sabemos que a continuada produção se deve ao papel que este livro tinha na liturgia, na pedagogia e espiritualidade da época. O conjunto dos salmos constituía a base da Liturgia das Horas, fixada pela regra de São Bento, (480-547) e era pelo Saltério que se fazia a aprendizagem da leitura, da escrita e do canto, nas instituições da época. Livro eminentemente profético, constitui o suporte espiritual e moral do cristão. A localização das imagens nos manuscritos apresenta poucas variantes derivando estas do maior ou menor número a inserir e também da tipologia da obra (Saltério, Breviário ou Bíblia). Em geral surge uma inicial iluminada no início de cada conjunto de salmos. Na nossa investigação, a divisão que encontrámos mais frequentemente foi a octopartida, com iniciais iluminadas nos salmos 1, 26, 38, 52, 68, 80, 97 e 109, ocupando a figura do rei David um lugar de destaque nas representações figuradas. Em termos de iconografia musical, as referências sistemáticas surgem na inicial B(eatus) do salmo 1, com a representação de David a tocar ou a afinar um instrumento de cordas, quase sempre a harpa; na inicial E(xultate) do salmo 80, com a mesma personagem a tocar um pequeno carrilhão de sinos e no salmo 97, inicial C(antate), com um grupo de cantores. A iconografia do salmo 1, «O salmo da tranquilidade ao espírito, limita a desordem e o tumulto dos pensamentos, pois acalma as paixões do espírito e modera os seus desequilíbrios», como referia S. Basílio (c.329-c.379) num discurso sobre este salmo, (citado em Fubini, 1992: 83), assume especial importância no sentido em que “abre” todo o Saltério, funcionando quase como introdução ao livro, mantendo também uma ligação com o conteúdo do texto. A figura de David como salmista, considerando que tenha sido o autor de alguns dos salmos, está na maioria das vezes associado à música, aos seus poderes terapêuticos e profiláticos, numa referência aos episódios de David com o rei Saúl onde o jovem músico desempenha uma acção de temperança – o poder que a música pode exercer sobre a alma humana – como frisa Isidoro de Sevilha: “A música apazigua as almas excitadas, tal como podemos observar pela lira de David que, pela arte da sua modulação arranca Saúl aos maus espíritos. A música faz igualmente aproximar as bestas selvagens mas também as serpentes, os pássaros, os golfinhos, logo que eles ouvem as modulações” (Isidoro de Sevilla,
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Etymologiae, lib. III, Pl. 82, col.164, citado em Marchesin, 2000: 21). Pode encontrar-se aqui uma clara referência a toda a tradição mitológica associada à música, nomeadamente ao mito de Orfeu. Através deste mito se transpõem os seus benéficos efeitos e virtudes para o saltério cantado, por um cantor bíblico, em contraponto com a personagem pagã, sublinhando assim o papel e a primazia dos instrumentos de corda sobre todos os outros, nomeadamente os de sopro, que mantinham ainda raízes na tradição dionisíaca. No grupo de manuscritos aqui abordados, a imagem de David com harpa aparece em 89 % dos exemplares, (104 vezes). A representação do carrilhão de sinos associado a este personagem bíblico, encontra-se presente em todos os manuscritos reunidos para este estudo, de acordo com o critério inicial, ele surge sempre na inicial do salmo 80 (fig. 3). É de realçar que é unicamente nesta localização que aparece este tipo de representação. David aparece sistematicamente a tocar um pequeno instrumento, como Musicus, como erudito, aquele que conhece as regras que governam o mundo, como a ele se refere Santo Agostinho: “Era David homem erudito na arte do canto e amava a harmonia musical, não por deleite vulgar, mas por sentimento religioso, servindo nela a seu Deus, o verdadeiro Fig. 3 – David a tocar um carrilhão de sinos. Inicial do salmo 80. Deus, em transporte místico Bíblia francesa, séc. XIII. Coimbra, BGUC – Cofre 3, f. 210v de uma grande realidade. Porque o concerto apropriado e moderado dos diversos sons manifesta com a sua harmoniosa variedade a unidade una de uma cidade bem ordenada” (Santo Agostinho, De Civitate Dei, XVII, XIV: 379).
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Como Musicus também o podemos observar nesta Bíblia do século XI (fig. 4), com a aparência de um respeitável ancião, com um monocórdio sobre os joelhos, um instrumento mais científico que musical, usado no seio das escolas monásticas e catedralícias para o estudo de teoria musical e para demonstrações e experiências com os sons, nomeadamente para definição dos intervalos musicais. O cordofone possuía um cavalete móvel que permitia definir os diversos comprimentos da corda, produzindo, consequentemente, sons diferentes. A primeira referência escrita a este instrumento é atribuída a Boécio (séc.VI d.C.) no re- Fig. 4 – Rei David. Segunda Bíblia de Coblence, Renânia, finais do séc. XI. Landeshauptarchiv, 710, n.º 111, f.153v lato sobre as experiências de Pitágoras. Aqui surge como autor dos salmos, por inspiração divina, como refere a inscrição na imagem (psalmigraphus in tactu spiritus), encantado pelas esferas (corpos celestes – macrocosmos), pelos seus sons suaves, e encantando os corações pelas palavras (sfera dulcisonis demulcens pectora verbis). Não é pois novidade, no século XIII, a representação de David como elemento de ligação às “leis” musicais que regem o Mundo. A representação do carrilhão de sinos também não é uma novidade na iconografia davídica; já em períodos anteriores conjuntos de pequenos sinos são representados, mas sempre juntamente com outros instrumentos, sendo o representante dos instrumentos de percussão. Também como instrumento de ciência, à imagem do monocórdio, o conjunto de pequenos sinos havia sido já anteriormente utilizado (Marchesin, 2000: 27). Na edição de De Musica, de
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Boécio (fig. 5), é representado este instrumento, numa clara alusão às experiências de Pitágoras, tido como o modelo do pedagogo, neste domínio. Aquela imagem, associando a figura de Boécio com Pitágoras, assume um significado especial ao associar a teoria musical medieval, representada por Boécio, com a tradição da Antiguidade, através do filósofo grego. O monocórdio tem então o seu equivalente no conjunto de sinos. Será no contexto da produção de manuscritos iluminados que a nova iconografia irá encontrar as condições para se afirmar. Nas bíblias portáteis francesas do século XIII, é implementado um programa iconográfico onde é representado o pequeno carrilhão de sinos, de forma isolada, tocado pelo Boécio e Pitágoras rei David. A primeira leitura De Musica, Boethius, c. 1130 que nos parece pertinente (Cambridge, University Lib. Ms. Ii.3. 12, f. 61v) acentuar é a relação da imagem com o conteúdo do salmo que apela a uma atitude de louvor, expressa através do canto dos salmos, numa procura de “diálogo”, de “comunhão” com o divino. No entanto, uma outra, mais elaborada e complexa, parece emergir daquela forma. Se considerarmos apenas o apelo à música enquanto instrumento de louvor, a imagem poderia acolher a representação de um vasto leque de instrumentos musicais ou de situações de prática musical, nomeadamente o canto, pois era este o suporte privilegiado para a música no seio da Igreja. Tal não acontece, pois é sistematicamente representado apenas um pequeno carrilhão de sinos. Defendemos então a ideia de que a representação remete para outros domínios, assumindo o significado que tinha a representação do monocórdio, como instrumento científico, numa clara referência aos fundamentos teóricos da Música, enquanto domínio da ciência e passível de apropriação pela razão. Poderemos encontrar nesta imagem o elo de ligação entre o conceito de ordem universal regida pelas “leis” musicais, herança do pensamento Antigo, da escola pitagórica em concreto, e os conceitos, do domínio da teoria musical, em discussão nos meios académicos parisienses,
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nomeadamente nos campos filosóficos, teológicos e da própria música, como anteriormente referido. Ao conceito de ordem associado ao Cosmos, das suas forças em movimento dinâmico, equilibrado e harmónico, contrapõe-se também um “movimento” da alma, que se procura que seja harmónico. A riqueza iconográfica desta imagem está então na transposição de uma beleza exterior, um estado de “consonância”, para uma beleza interior, neste caso uma participação na “relação harmónica” com a divindade. Neste sentido, a imagem não representa algo, mas é ponto de partida para um exercício de inteligência, para o acesso racional à realidade superior; é o suporte que conduz o espírito a reconhecer numa realidade exterior, numa experiência sensorial, a própria harmonia interior. Este contraponto entre beleza exterior e interior é hoje sobejamente reconhecido como uma das discussões mais pertinentes e comuns da estética medieval. O recurso sistemático à figura de David prende-se com a ideia de modelo moral para os cristãos, tem um sentido anagógico; o primeiro a cantar e louvar a Deus, como referido no texto do livro do Apocalipse, no final dos tempos! A figura de David (prefiguração de Cristo) torna acessíveis as proporções divinas, sendo a música perceptível pelos sentidos e pela razão. O tema iconográfico sublinha essa ideia de ordem, conferida por Deus a nível quer do macrocosmo (sob as “leis“ da Ars musica), de todo o Universo, quer do microcosmo, do próprio homem, possível de obter através da palavra, materializada no salmo, que o crente deve invocar através da oração cantada do salmo, exercendo a música (som + palavra), o seu poder sobre a alma humana. Certamente sob a orientação dos escolásticos, e a partir das fontes literárias disponíveis, os iluminadores procuram dar uma base de racionalidade às suas imagens com conteúdo musical. Para tal recorrem à teoria musical da Antiguidade, nomeadamente às relações numéricas que traduzem os intervalos musicais, em aceso debate naquele período, nos mesmos meios académicos que proporcionam a cópia e iluminação dos manuscritos. Os sinos possuem e evidenciam uma característica que o monocórdio não tem; neste instrumento, as diferentes alturas (notas) são obtidas através de uma acção mecânica (a movimentação de um cavalete móvel), enquanto que os sinos têm intrinsecamente a sua afinação, obtida aquando da sua construção, através, também, das leis das proporções numéricas, marca indelével de uma racionalidade. Visualmente a presença dos diferentes corpos (sinos) facilita a compreensão e assimilação do conceito de harmonia, tão grato aos pitagóricos,
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Fig. 6 – David a tocar carrilhão de sinos. Inicial do salmo 80. Bíblia francesa, Paris, séc. XIII. Évora, BPE – Cod. CXXIV/1-7, f.s/n.
Fig. 7 – David a tocar carrilhão de sinos. Inicial do salmo 80. Bíblia francesa, Paris, séc. XIII. Évora, BPE – Cod. CXXIV/1-1, f. 288v.
resultante, precisamente da capacidade de encontro de equilíbrios entre entidades diferentes (fig. 6 e 7). O sino, mais do que qualquer outro instrumento musical, pelas suas qualidades acústicas é, na cultura Ocidental, um meio de transmissão de mensagens; neste caso o meio ideal de irradiação da beleza intrínseca das relações numéricas, da harmonia entre os diversos sons. Relações que, como já referimos, regulam o próprio Universo, tido como a mais bela de todas as
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coisas e reflexo da “beleza” ideal, de acordo com o conceito de origem platónica (Eco, 1989: 28). O recurso à matemática, através das “leis” musicais, tanto na discussão teórica como nas aplicações práticas, configura um princípio de racionalização ao serviço da fé cristã, característica fundamental do movimento escolástico. A representação destes idiofones (sinos) não deixa de constituir uma referência ao pensamento da Escola Pitagórica, revisitada nesta época, e aos poderes da música sobre o Homem, agora numa perspectiva cristã. Podemos dizer que esta iconografia do salmo 80 constitui uma síntese no pensamento filosófico da época. Para terminar, também a jeito de síntese, voltamos a S. Agostinho: “As vossas perfeições invisíveis percebem-se por meio das coisas criadas” (Confissões, Livro VII, 20) (S. Agostinho, 1977: 179).
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RESUMO
ABSTRACT This article takes as a point of departure Gombrich’s approach to decorum. What gardening treatises had said about this matter and how was applied in Portuguese baroque gardens was the main aim of this research. By analysing literary and graphic sources of gods related to nature such as Venus, Diana, Ceres, Flora, Pomona, Pan, and Neptune, or personifications such as rivers and seasons located in gardens of palaces and ville in the seventeenth and eighteenth century in Portugal, we concluded that there was artistic license employed when drawing on the sources of Antiquity
Este artigo toma como ponto de partida a abordagem de Gombrich ao princípio de decorum. O que os tratados sobre a arte dos jardins disseram sobre o assunto e como ele foi aplicado nos jardins portugueses barrocos foram os principais objectivos desta investigação. Analisando fontes literárias e gráficas das representações divinas relacionadas com a natureza, como Vénus, Diana, Ceres, Flora, Pomona, Pan e Neptuno, ou personificações, como Rios e Estações localizados em jardins de palácios e quintas dos séculos XVII e XVIII em Portugal, concluímos pela liberdade dos artistas ao trabalharem sobre as fontes da Antiguidade e as mitografias.
EXEMPLOS DE DECORUM: De rerum natura nos jardins barrocos portugueses Ana Duarte Rodrigues1
O facto de ter pedido emprestado o título De rerum natura ao livro de Lucretius2 (c. 94 a. C. – 49 a. C.) para evocar o conjunto de deuses de alguma forma relacionados com o ciclo da natureza presentes nos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal não significa mais do que isso mesmo: utilizar a mesma expressão para definir uma nova realidade, sem que isso implique relação com a fonte utilizada para o efeito. Neste artigo propomo-nos a reavaliar a existência, ou não, de um programa iconográfico nos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal e a analisá-los sob o olhar de um novo inquérito. A História da Arte deslumbrada com a erudição das intricadas explicações iconológicas, tendeu a sobre-ver interpretações e significados nas obras de arte em geral. Os jardins barrocos em contexto particular, enquanto cenário privilegiado para acolher representações de deuses da Mitologia Clássica e personificações, criadas à sua imagem e semelhança, encontram-se entre as maiores vítimas destas construções historiográficas efabuladas. Concordamos que a obra de 1 Mestre em História da Arte e membro do IHA / FCSH / UNL. Doutoranda em História da Arte da Idade Moderna na FCSH / UNL, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (POCTI, do Quadro Comunitário de apoio III 2000-2006, com fundos comunitários FSE e nacionais) para apoio à dissertação de Doutoramento sobre Escultura de Jardim das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal a defender na FCSH / UNL. Este artigo foi escrito durante um trimestre enquanto Ph.D occasional student no Warburg Institute. Neste sentido, cumpre-me salientar a importância das aulas do Professor Charles Hope e da Professor Elizabeth McGrath sobre Iconografia para a redacção do mesmo, assim como o apoio do Doutor Rembrandt Duits no trabalho realizado na Photographic Collection. Este texto apresenta a investigação realizada até agora sobre iconografia relacionada com o ciclo da natureza nos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal. Desejamos ainda justificar que nem todas as obras mencionadas no texto serão reproduzidas na revista por limitações editoriais quanto ao número de imagens. 2 Cf. LUCRETIUS, De rerum natura. Florentiae: sumptibus P. Juntae, 1512. Vide a tradução portuguesa A natureza das cousas: poema de Tito Lucrecio Cato; trad. Por António José de Lima Leitão. Lisboa:Typ. Jorge Ferreira de Matos:Typ. A. J. F. Lopes, 1851-1853.
EXEMPLOS DE DECORUM: De rerum natura nos jardins barrocos portugueses
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arte é aberta, e portanto, terreno livre para aí lermos o que entendermos, mas, então, impõe-se destrinçar que tipo de interpretação estamos a realizar. Neste trabalho preliminar sobre a iconografia dos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal – concentrando-nos na que se relaciona com o ciclo da natureza – inquirimos o que significavam aquelas esculturas para os encomendantes; o que os levara a comprá-las; porque as queriam nos seus jardins e o que esperavam obter com isso. Pois só assim, se pode esperar descobrir que tipos de interpretação podem ser apropriadamente aplicados a estas esculturas. Por outro lado, uma vez que se tratavam de jardins privados e que as pessoas que os visitavam eram, para além das pessoas da casa, os convidados, seus pares e na mesma hierarquia social, geralmente com o mesmo nível sócio-cultural, visitámos igualmente os textos que alguns destes visitantes nos deixaram. Nas variadas descrições de jardins portugueses realizadas por nacionais e estrangeiros sente-se uma constante admiração pelos dispositivos com água, casas de fresco, e pelas qualidades odoríferas e cromáticas das laranjeiras e limoeiros e, ao invés, revelam pouco interesse pela identificação das esculturas. O estrangeiro Alexis Collotes de Jantillet, que visita os jardins do Palácio Fronteira em finais do século XVII, enumera os sete planetas e Marsias e Apolo3 da Galeria das Artes; a escultura fontenária de Vénus4; e a estátua de Mercúrio sobre as torres que ladeiam a Galeria dos Reis5. O autor refere-se muito brevemente aos bustos dos reis portugueses6 e descreve o conjunto de esculturas de chumbo espalhadas pelos canteiros do jardim de buxo como
3 Cf.“compreendem sete figuras de alabastro de planetas referentes a deuses entre os quais Apolo; próximo estão estátuas excelentes de Marsyas, este despojado da pele que arrancou ao adversário”, in Alexis Collotes de JANTILLET – Alexii Collotis de Jantillet Horae subsecivae, Ulyssipone: ex typographia Joannis a Costa, 1697. Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO – Tratado da Grandeza dos Jardins em Portugal ou da originalidade e desaires desta arte. Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 110. 4 Cf.“uma fonte chamada de Vénus ocupa o espaço entre os canteiros, porque a deusa, feita de mármore polidíssimo, apertando a base do seio, espreme água numa concha redonda que lhe fica inferior; sustentam esta três delfins, reunindo as caudas num nó, com as cabeças colocadas sobre três tartarugas, as quais derramam água em um taça amplíssima”, in Alexis Collotes de JANTILLET, ob. cit.Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 111. 5 Cf. “Mercúrio provido de chapéu, asas talares e caduceu, apoia-se na ponta do pé esquerdo e estende o outro como que prestes a voar”, in Alexis Collotes de JANTILLET, ob. cit. Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 110. 6 Cf. “bustos dos reis lusitanos construídos de ónix”, in Alexis Collotes de JANTILLET, ob. cit.Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 110.
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“estátuas de homens e mulheres, de pé, colocadas em pedestais”7, não dando qualquer indicação sobre o que representam. Tal como acontece com o mais tarde apelidado “Ninfeu de Mignard” por Teresa Leonor do Vale8. A identificação das esculturas dos jardins do Palácio Fronteira também não despertou a atenção de Corsini, que contabiliza as fontes do jardim de buxo e refere-se de passagem à existência de estátuas e baixos-relevos de qualidade mediana9. Da mesma maneira, o padre António Carvalho da Costa descreve as doze estátuas de tamanho natural dos jardins do Conde de Castelo Melhor como “estátuas do tamanho natural, feytas em Itália, e as distâncias, que concorrem de nicho a nicho, estão azulejos de brutesco”10 e a fonte de Neptuno que estava no Palácio da Anunciada dos condes da Ericeira, e actualmente se encontra nos jardins do Palácio de Queluz, como “huma fonte feyta por Berino, que se tem pela melhor de Espanha”11, destacando o escultor, Bernini, de reputação internacional, mas sem mencionar o tema da escultura (fig. 1). A incompreensão face ao que se encontrava representado está patente nas palavras de Giuseppe Gorani, que visita os jardins do Palácio de Belém na década de sessenta do século XVIII: “Os jardins deste Palácio, de singular apenas possuíam dois grupos que vieram de Roma. Um representava uma rapariga amamentando o pai e o segundo uma mulher que desmaia nos braços de outra”12. Por
7 In Alexis Collotes de JANTILLET, ob. cit.Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 110. 8 Cf. “Nos quatro cantos do lago outras tantas estátuas apoiam-se em balaústres de mármore e lançam para o ar com grande ímpeto água que cai no lago com estrépito não desagradável. Marginam este, dum lado e doutro lado, grades de mármore sobre as quais vasos cheios de flores e figuras de ninfas estão colocados em intervalos iguais”, in Alexis Collotes de JANTILLET, ob. cit.Transcrito em Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 110. Vide Teresa Leonor do VALE,“O Ninfeu de Mignard. Um conjunto escultórico francês nos jardins”, in Monumentos, nº 7, Setembro 1997, pp. 24-29. 9 Cf. “statue e bassirilievi, ma assai ordinari, ci sono cinque fontane grandi, et altre piccole in varie altezze distribuite per l’inegualianza del sitio”, in Lorenzo MAGALOTTI – Viaje de Cosme de Medicis por Espana y Portugal: (1668-1669) / edicion y notas por Angel Sanchez Rivero y Ângela Mariutti de Sánchez Rivero, Madrid: Sucesores de Rivadeneyra, [1933]. In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 83. 10 Cf. António Carvalho da COSTA – Corografia Portugueza e descripçam topográfica do famoso reyno de Portugal…, Lisboa: na Off. De Valentim da Costa Deslandes, 1706-1712, p. 306. 11 Id., ibidem. In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 77. 12 Cf. Giuseppe GORANI – Portugal, A Corte e o País nos anos de 1765 a 1767, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, p. 140.
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aqui percebemos que o autor não fazia a mínima ideia que estava perante representações da Caridade Romana (1737) e de Cleópatra e a Aia (1717). “Belas estátuas de porfiro”13 foi a expressão utilizada por João Baptista de Castro para descrever as esculturas dos jardins do Paço Episcopal de Castelo Branco, ressaltando a sua beleza e o material em que foram realizadas, mas mais uma vez desprezando a identificação das mesmas. Facto que no presente caso nem constituía nenhum desafio, uma vez que apresentam inscrições14. Descortinar o que estava representado não era o objectivo das esculturas de jardim que não se destinavam a ser mistérios para Fig. 1 – Fonte do Neptuno. Lorenzo Bernini e Ercole Ferrrata; os que as usufruíam, uma vez estátua de pedra; tamanho maior do que o natural; Queluz; que, geralmente, se encontravam Palácio Nacional de Queluz; parque. © IPPAR representados num jardim, possíveis dum reportório relacionado com o próprio cenário e familiar daqueles que o frequentavam. Mais tarde, Júlio de Castilho transcreve uma descrição sobre os jardins de Alcântara que apenas nos informa sobre o número de esculturas, “sete nichos com figuras de Relevo”, e mais à frente “oito figuras de Relevo”15.
13 Cf. João Baptista de CASTRO – Mappa de Portugal antigo e moderno. 2ª ed. Lisboa: na Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1762-1763, p. 452. 14 O princípio de que cada escultura devia ter uma inscrição data do século XIV, mas reportava-se sobretudo a iconografia religiosa, conhecido como o do Sínodo de Trier (1310). 15 Cf. Júlio de CASTILHO – Ribeira de Lisboa: descrição histórica da margem do Tejo desde a Madre de Deus até Santos-o-Velho, 3ª ed., vol. III, Lisboa: Câmara Municipal, 1948 –. In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 96 e 99.
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Em documentos oficiais, a situação não melhora, sendo, muitas vezes, quase impossível compreender a que esculturas efectivamente se referem, facilitando a perda patrimonial que se tem verificado. Através da Carta Padrão da venda do Palácio de Belém16, consegue-se identificar o grupo escultórico de Hércules dominando a Hidra de sete cabeças, mas uma série de referências a fontes com figuras de jaspe, ou de mármore, revela a pouca importância do aspecto iconográfico das mesmas. No tombo de 1673 dos bens dos Marqueses de Fronteira acontece o mesmo. Os sete planetas e Apolo e Mársias da Galeria das Artes são simplesmente enumerados como “nove feguras de jaspe”17; as fontes do jardim de buxo são descritas como “sinco fontes de pedraria de estremos toda laureada Com quatro figuras de meninos Com tronbetas na boca doiradas tem mais doze figuras de negros Com as Cabesas doiradas”; a gruta no muro contra o tanque com Apolo, as Musas e o cavalo Pégaso é identificada com o Monte Parnaso18 e só a escultura fontenária de Vénus se encontra claramente identificada19. Curiosamente, a referência ao material encontra-se sempre presente. Mesmo nas cartas diplomáticas trocadas para concretizar a compra das estátuas realizadas por John Cheere para os jardins do Palácio de Queluz são as expressões “figuras de chumbo” ou “oitenta e nove figuras”20 as utilizadas para as nomear. Face ao exposto, não podemos saber se os frequentadores destes jardins barrocos se encontravam habilitados21, ou não, a identificar as esculturas, mas com certeza não era com isso que estariam mais preocupados. O jogo e a surpresa que as esculturas iam criando à medida que o espectador descobria 16 Carta Padrão de Venda do Palácio de Belém, realizada pelo 3º conde de Aveiras D. João de Silva Tello a El-Rei D. João V em 1726. Arquivo Histórico da Cidade de Lisboa. Parcialmente transcrito por Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 96 e 99. 17 In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 88. 18 Cf. “e no Arco do mejo hum Monte pamaso / Com figuras de jaspe que são noue / de quatro palmos cada huma e hum / Caualo en sima de jaspe”. In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 108. 19 Cf. “…e no mesmo jardim huma fonte octavada Com a fegura de Vénus e sua pia tudo de jaspe”. In Hélder CARITA e Homem CARDOSO, ob. cit., p. 108. 20 In Caldeira PIRES – História do Palácio de Queluz, vol. I, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925, p. 49. 21 A verdade é que mesmo com uma educação cuidada o acesso ao conhecimento detalhado da mitologia clássica encontrava-se muito condicionado. Vide Malcolm BULL – The Mirror of the Gods – Classical Mythology in Renaissance Art, Londres: Penguin Books, 2006, p. 33.
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os vários espaços do jardim era o que o encomendante desejava obter com a compra destas esculturas – cujo custo geralmente ascendia a uma grande quantia, contribuindo também por isso para a representação de um certo status –, e fazer do seu jardim um locus amoenus onde podia descansar e reflectir mas sobretudo divertir-se e entreter-se. Por outro lado, a própria construção dos jardins problematiza a existência de um programa iconográfico pré-definido e intencional. Desde logo, o facto dos jardins serem muitas vezes projectados por arquitectos, interessados sobretudo em espaços e vistas, que seleccionavam as esculturas por “catálogo”, escolhidas entre um número de modelos disponíveis que os escultores realizavam, como no caso da encomenda de estátuas de chumbo ao atelier de John Cheere22 em Hyde Park Corner para os jardins do Palácio de Queluz. Para além disso, torna-se difícil aceitar que esculturas compradas em datas muito díspares fizessem parte do mesmo programa. Quando deparamos com estes casos, poderíamos justificar falta de orçamento para completar a encomenda, mas na realidade o que acontecia quando o orçamento acabava, ou o encomendante falecia, é que terminava a encomenda, que por vezes ficava incompleta, como no caso dos jardins do Paço Episcopal de Castelo Branco23. A título de exemplo, recordemos a Cascata dos Poetas nos jardins do palácio do marquês de Pombal em Oeiras24. Quando os bustos dos poetas foram encomendados a Joaquim Machado de Castro (1731-1822) já existia a cascata onde se encontra o rio Nilo. É difícil aceitar a existência de um programa iconográfico global quando a escolha do rio Nilo para colocar na gruta não tem nada a ver com a encomenda posterior dos bustos dos poetas (1776)(fig. 2). Efectivamente, a presença de representações escultóricas das divindades Vénus, Diana, Ceres, Flora, Pomona, ninfas, Pan, Príapo, Fauno, Baco, Neptuno ou das personificações das Quatro Estações e dos Rios no contexto do universo supra referido, limita-se, na maioria das vezes, a observar o princípio de decorum. A 22 Cf. Documento nº 4,“Liste de Figures faites par le Sr. Jean Cheere a Londres”, in Maria João Baptista NETO e Fernando GRILO, “O restauro dos jardins do Palácio de Queluz”. In Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 4, Lisboa, 2005, p. 482-483. Esta lista evidencia o que o mercado artístico tinha para oferecer: figuras e não histórias. 23 Cf. João RIBEIRO e Leonel AZEVEDO – Os Jardins do Paço Episcopal de Castelo Branco. Castelo Branco: Edição da Câmara Municipal de Castelo Branco, 2001, p. 119. 24 Vide Ana Duarte RODRIGUES – A escultura de vulto figurativa do Laboratorio de Joaquim Machado de Castro (1771-1822): produção, morfologia, iconografia, fontes e significado, dissertação de Mestrado apresentada à FCSH / UNL, Lisboa, 2004, pp. 209-210.
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Fig. 2 – Rio Nilo. Estátua de pedra; c. 1760; tamanho maior do que o natural; Oeiras; Palácio do marquês de Pombal; Cascata dos Poetas. © Fotografia de José Viriato
teoria de que a cada contexto correspondem certas temáticas apropriadas, iconografias convenientes, já foi explorada por Erwin Gombrich25, denominando de princípio de intersecção a selecção de determinados temas adequados às propriedades do local a preencher. Remontando ao tratado De Architectura da autoria de Vitrúvio26 (séc. I a. C.), o decorum apresentado como um dos princípios da Arquitectura prevê a utilização de um diferente tipo de ordem arquitectónica consoante a divindade a que o templo era dedicado; a obediência ao costume do acordo entre as entradas e os interiores do mesmo edifício; assim, como estabelece a necessidade de conseguir essa conveniência de modo natural, ou seja, atendendo ao local e à orientação da luz própria para determinado fim. Retomado no Renascimento por Alberti (1406–1472), no livro II do De Pictura27, o autor ensina a expressar o apropriado de acordo com a função, aspecto e dignidade. Contudo, mais interessante para este estudo revela-se o enunciado em De re aedificatoria, no qual Alberti distingue claramente entre os temas convenientes para um palácio urbano ou para uma villa rústica – local 25 Vide Erwin GOMBRICH – Gombrich on the Renaissance – Symbolic Images, vol. II, Londres: Phaidon Press Limited, 2000, 3ª ed., pp. 7-11. 26 Cf. Vitrúvio – Tratado de Arquitectura, tradução do latim, introdução e notas por M. Justino MACIEL, Lisboa: IST Press, [2006], pp. 38-39. 27 Cf. Leon Battista ALBERTI – De la pintura y otros escritos sobre arte, trad., introdução e notas por Rócio de la VILLA. Madrid: Editorial Tecnos, S. A., 1999, pp. 100-101.
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onde os temas mais lúdicos e licenciosos são permitidos e adequados –, tal como entre as representações lícitas para um edifício público e um rústico, neste incluídos jardins e casas de prazer. Encontramos estes preceitos mais detalhadamente explicados no Trattato dell’Arte della Pittura, scultura ed architettura28 da autoria de Gian Paolo Lomazzo (1538-1600), publicado em Milão no ano de 1584. Neste tratado, Gombrich29 destaca o facto de Lomazzo estabelecer uma correspondência entre histórias dos amores dos deuses em cenários bucólicos onde abundam árvores e água e o contexto de fontes e jardins. Dois anos após a primeira edição do tratado de Lomazzo, no livro III do De Veri Precetti della Pittura30 da autoria de Armenini (1533-1609), sobre “Della distintione, & convenienza delle pitture, secondo i luoghi, & le qualità delle per one: com che ragione elle si sanno fra se diverse, & com quali avertimenti, & giudicio si deve governare il Pittore intorno ad esse” encontramos referências às temáticas mitológicas adequadas aos jardins. Após mencionar com que temas se devem ornamentar as bibliotecas, os refeitórios, as celas dos religiosos e dos monges, apresenta-nos o que convém aos palácios de pessoas impor tantes31, desenvolvendo o apropriado às diferentes divisões32, até chegar ao capítulo sobre as pinturas oportunas para os jardins e casas das ville, no qual explora quais as melhores matérias para os diversos locais33. A primeira chamada de atenção destina-se à qualidade do lugar – que deve, neste caso, sobrepor-se à da pessoa a quem se destina a obra –; destacando-se de seguida as histórias poéticas onde abundassem representações de belas mulheres, jovens, putti, camponeses e animais34. Para as áreas mais espaçosas, como o muro em volta do jardim, os portais, as loggie, as fontes, com tribunas e estátuas à volta, Armenini 28 Cf. LOMAZZO – Trattato dell’Arte della Pittura, scultura ed architettura, liv. 6, cap. 23. Roma: Presso S. Del-Monte, 1844 (1ª ed. Milão, 1584). 29 Cf. GOMBRICH, ob. cit., pp. 7-10. 30 Cf. G. B. ARMENINI – De’ veri precetti della pittura. Ravenna: Appresso Francesco Tebaldini, 1587, p. 148 e ss. Apesar deste livro e do tratado de Lomazzo terem traduzido ideias que circulavam entre os encomendadores e os artistas do século XVI em diante, sendo assaz conhecidos, até à presente data não encontrámos nenhuns exemplares nos fundos das nossas bibliotecas. 31 Id., ibidem, p. 167 e ss. 32 Nas salas, por exemplo, refere a representação de personalidades importantes da história de Roma, de Rómulo a Numa Pompilio. Cf. ARMENINI, ob. cit., p. 178. 33 Cf. ARMENINI, ob. cit., pp. 197-201. 34 Cf. ARMENINI, ob. cit., pp. 197-198.
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evidencia a necessidade de coisas alegres e divertidas, como jogos de pastores, ninfas, faunos, sátiros, silvanos, centauros, monstros marinhos, com outros elementos aquáticos e selvagens, sem qualquer alusão melancólica ou fatídica que ofereça confusão35. O autor ressalta ainda alguns exemplos de jardins, entre os quais um com estátuas antigas e modernas em torno do muro contando uma história com bacantes, sátiros e faunos, que aludiam às memórias da Antiguidade36. Desde o século XVI que, mesmo em tratados generalistas sobre pin37 tura , se encontrava estabelecido que os jardins das ville constituíam o cenário ideal para acolher os deuses da mitologia clássica, sobretudo os que habitavam na Arcádia. A despeito de todo o fascínio que o mundo pagão da Antiguidade despoletou nos homens do Renascimento, a grande maioria das encomendas artísticas permaneceram sobre iconografia religiosa. Curiosamente os jardins surgem como a casa ideal para receber os deuses da Antiguidade, primeiro porque as esculturas de grande porte reveladas pelas escavações arqueológicas aí foram colocadas e, segundo, porque estes retiros privados dos senhores destinados ao ócio e prazer pareciam o habitat natural destas divindades. Nos tratados sobre a arte dos jardins ou jardinagem do século XVIII constata-se a propagação do princípio do decorum e a sua aplicação aos mais específicos detalhes desta arte. Para caracterizar a paisagem que as rodeia e as construções perto das quais se encontram, despertarem os sentidos e inspirarem o espectador, as esculturas de jardim devem ser claras obedecendo aos princípios de conveniência e simplicidade; contribuírem para o efeito das cenas naturais; e relacionarem-se com o carácter de um jardim. Le Blond após sublinhar a necessidade de escolher divindades e personagens da Antiguidade que se adequassem aos jardins, quando avança com exemplos esquece as personalidades da Antiguidade e frisa que se devem colocar as divindades relacionadas com a água, como naíades, rios, tritões, no meio de fontes e lagos, e as divindades dos bosques, como silvanos, faunos, dríades, nas zonas verdes38. 35 Cf. ARMENINI, ob. cit., p. 198. 36 Cf. ARMENINI, ob. cit., p. 200. 37 O que não faz diferença para o caso, pois à falta de tratados sobre Escultura, e uma vez que algumas das questões abordadas são problemas comuns às duas artes, os escultores também conheciam e utilizavam os tratados de Pintura. 38 Cf. Alexandre Le BLOND – La Theorie et la pratique du Jardinage ou l’on traite a fond des beaux jardins appelés communément les jardins de plaisance et de properté contenant plusieurs plans et
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Hirschfeld critica a presença das estátuas de Júpiter, de Neptuno, de Marte, de Hércules, de Juno, de Minerva, e de muitas outras divindades neste contexto, porque as rebuscadas histórias da mitologia encontram-se muito distantes da natureza e do propósito dos jardins39. O autor faz considerações sobre as divindades iconograficamente adequadas aos jardins e sobre a respectiva distribuição topográfica das mesmas. Assim, aceita como adequadas uma Flora num canteiro de flores, uma Pomona num pomar, uma Diana num pequeno bosque, ou uma Vénus acompanhada de ninfas a banharem-se num local com água – como um lago ou uma cascata –, e das figuras mitológicas masculinas destaca como convenientes um Baco para colocar sob uma latada ou um Fauno dançante para um bosque rústico40. Hirschfeld aponta ainda como resultado de interpretação desvirtuada do significado destas divindades colocar um Neptuno numa alameda e Vulcano numa fonte41. Escrito posteriormente, mas seguindo a mesma linha de pensamento, o guia prático de Siebeck42, sublinha a importância da localização das esculturas num jardim, enumerando como adequadas para bosques as Três Graças, uma ninfa perto de uma fonte ou uma Flora ao meio de um canteiro de flores. No princípio do decorum reside a razão pela qual as representações da Vénus no lago do jardim do Palácio Palhavã; da Flora, Pomona, Ceres e Príapo sobre a balaustrada que contorna o jardim Pênsil do Palácio Queluz; da Flora Farnesio e da Ceres numa alameda do jardim de buxo da Quinta Real de Caxias, só para mencionar alguns exemplos, aí se encontram ou encontraram (no caso das estátuas referidas da Quinta Real de Caxias). A mesma leitura aplica-se aos dispositions générales de Jardins ; nouveaux Desseins de Parterres, de Bosquets, de Boulingrins, Labyrinthes, salles, galeries, portiques & cabinets de Treillages, Terrasses, Escaliers, & autres ornements servant à la Décoration & à l’Embélissement. Avec la maniere de dresser un terrain, d’inventer des desseins selon le lieu, & de les tracer & éxécuter, suivant les Principes de la Géométrie ; la Méthode d’élever en peu de temns tous les Plants qui conviennent aux beaux Jardins ; avec un Traité plus ample sur les Fleurs, les Orangers, les Figuiers, &. Comme aussi des moiens pour trouver les Eaux, pour les conduire, pour construire des Bassins, des Fontaines, des Cascades, des Horloges, des Flageolets, & des Orgues d’eau ; enfin, pour faire chanter des Oiseaux, & mouvoir diverses Figures par le moien de l’eau & de l’air, Nouvelle Editions. 3ª ed., Paris : Chez Jean Martin Husson, 1739, p. 95. 39 Cf. HIRSCHFELD – Théorie de l´Art des Jardins, (tradução francesa), vol. I. Leipzig: [s. n.], 1779, pp. 145-146. 40 Cf. HIRSCHFELD, ob. cit., vol. I, p. 148. 41 Id., ibidem, p. 146. 42 Cf. SIEBECK, R. – Guide Pratique du Jardinier-Paysagiste ou l’art du jardinier paysagiste, Paris: J. Rothschild, Éditeur, Libraire de la société botanique de France 43, rue Saint- André-des-Arts, 43, 1870, p. 34.
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Neptunos actualmente no Jardim Pênsil e no parque do Palácio de Queluz; ao rio Nilo na cascata dos poetas na quinta do marquês de Pombal em Oeiras; e ao Fauno e Rio nas grutas no jardim e na tapada do Palácio das Necessidades. Para pressupor a existência de programa iconográfico que traduzisse obras literárias há que conhecer o teor das mesmas e averiguar se a composição de cada escultura e a sua relação com as que a rodeiam alude à história. Impõe-se, igualmente, avaliar o grau de intelectualidade do encomendante e do artista em causa, em que línguas existiam edições disponíveis em Portugal e em que línguas os envolvidos no processo liam. Apesar de termos encontrado a justificação da presença das esculturas relacionadas com o ciclo da natureza nos nossos jardins na tratadística da respectiva disciplina, não deixámos de explorar com Homero (c. 850 a. C.), Vírgilio (70 –19 a. C.), Horácio (65 – 8 a. C.) e Ovídio (43 a. C. – 17 ou 18 d. C.) os montes da Arcádia, por entre bosques sombrios e grutas húmidas, e interrogar os deuses tutelares da natureza que aí viviam. Navegámos por rios e mares azuis onde reina Neptuno e levados num voo audacioso pelo Olimpo procurámos incessantemente momentos, episódios, narrativas das vidas dessas divindades. Contudo, as estátuas de Ceres do Palácio de Queluz e da Quinta Real de Caxias, com os seus molhos de espigas de trigo não parecem ensinar os homens a transformar a terra com o ferro43, nem evocarem o episódio que envolve Ceres com a sua filha Proserpina44, tão apropriado ao ciclo da natureza com a transformação operada pela mudança das estações. A partir de uma estátua de Ceres isolada situada ao longo de uma alameda ou sobre uma balaustrada não se pode inferir qualquer relação com estas narrativas. Sabemos que não traduzem fábulas, que não participam de nenhum programa complexo, que a sua presença neste contexto se deve ao princípio do decorum, mas, então, qual é a fonte para a sua iconografia? A Ceres Pacifica sobre a balaustrada Oeste do Jardim Pênsil e voltada para o mesmo, apresenta o tronco desnudo e segura ao alto, sobre o lado esquerdo do corpo, um molho de espigas de trigo com os dois braços enquanto a Ceres da Quinta Real de Caxias apresenta o molho de espigas de trigo no braço direito. Não reconhe43 Cf. VIRGÍLIO – Eclogues Georgics Aeneid I-VI, with an english translation by H. Rushton Fairclough, vol. I. London: William Heinemann New York: G. P. Putnam’s sons, 1940, p. 91. 44 Cf. OVÍDIO – Metamorphoses, Ovid’s metamorphoses Englished /trad. George Sandys, liv.V (325-388). Nova Iorque; Londres: Garland, 1976.
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cemos qualquer destas composições no livro Icones de Francini45, nem na Ceres que segura uma foice ao alto de Agostino Veneziano46, nem na de J. Bink47 que segura igualmente uma foice com a mão direita, mas virada para baixo, e com espigas na cabeça, cujo desenho inspira a Ceres nos jardins do Quirinal em Roma. O atributo utilizado nas variadas estátuas de Ceres que se encontram nos nossos jardins é o mais comum para o tipo iconográfico e divulgado pelos principais livros de mitografia, por isso o artista pode ter seguido essas referências e realizado adaptações sobre as suas memórias visuais e plásticas da escultura da Antiguidade, e não só, que lhe chegassem ao conhecimento através de desenhos, gravuras ou gessos48. Muito venerada entre os romanos, a atraente e jovem Flora, deusa romana das flores e da Primavera, que nunca encontrámos nos bosques da Arcádia gregos – apesar de Ovídio a identificar com a ninfa Cloris49 – parece uma deusa sem histórias na literatura grega, mas largamente descrita, tal como o seu festival – a Floralia –, por Ovídio nos Fasti50. A sua beleza garantiu-lhe um lugar de destaque nas Belas Artes e, desde o Renascimento, que a sua figura isolada se encontra representada com frequência na pintura e na escultura de jardim. Mas, também vamos encontrá-la protagonista de composições complexas da autoria de Poussin nos quadros Triunfo de Flora de c.1627, conservado no Louvre, e O Reino de Flora de 1631. Não obstante, mesmo nestes casos Thomas Worthen51 provou que as fontes do pintor eram visuais e não literárias, contrariamente a toda a teoria Ut Pictura Poesis. 45 Cf. Girolamo FRANCINI – Templa de Romae dicata, et sanctis eius/ Hieronymi Franzini. Roma: H. Franzini, 1596. Cópia do Warburg Institute. 46 In Bartsch, XIV, 399-577. 47 In Bartsch,VIII, 274.39. 48 Vide Salomon REINACH – Répertoire de la statuaire grecque et romaine. Paris: E. Leroux, 1920-1930, 6 vols.; Francis HASKELL e Nicholas PENNY – El gusto y el arte de la Antiguedad, El atractivo de la escultura clásica (1500-1900). [s. l.]Alianza Editorial, 1993; Phyllis Pray BOBER & Ruth RUBINSTEIN – Renaissance Artists & Antiqúe Sculpture – A handbook of sources. London: Harvey Miller Publishers, 1986. Vide igualmente o catálogo da Galleria degli Uffizi; Le sculture/ [catalogo di] Guido A. Mansuelli. Roma: Istituto poligrafico dello Stato, Libreria dello Stato, 1958, onde se encontram a maioria destas esculturas da Antiguidade. 49 Não aparece nem no Libellus nem nas Metamorfoses, apesar de Ovidio a identificar com a ninfa grega Chloris no Fasti. 50 Cf. OVÍDIO – Ovid’s Fasti, with na English translation by Sir James George Frazer. Londres: W. Heinemann, Ltd; Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons, 1931. 51 Cf.Thomas WORTHEN,“Poussin’s Paintings of Flora”. In Art Bulletin, vol. 61, nº 4 (Dezembro, 1979), pp. 575-588.
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A presença de Flora nos jardins é muito frequente porque esta constituía um tema estabelecido para jardins e, neste sentido, não é mais do que parece ser, uma representação da antiga deusa das flores em contexto adequado ao seu significado. Entre as Floras com mais sucesso encontra-se a Flora Farnesio da Antiguidade, conservada no Palazzo Farnese e reproduzida em diversos cadernos de artistas e antologias52.
Fig. 3 – Flora Farnesio, in Girolamo Franzini, Icones, 1599, B8. © Warburg Institute
Fig. 4 – Flora Farnesio, in Rossi-Maffei, Raccolta di statue antiche e moderne, 1704, tav. LI. © Warburg Institute
Fig. 5 – Flora Farnesio. Laboratorio de Joaquim Machado de Castro; estátua de pedra; tamanho maior que o natural; Lisboa; Jardim do MNAA. © IPM
52 Encontramos diferentes versões de Flora reproduzidas em FRANCINI, ob. cit., B8; CAVALIERII, I-II, pl. 32; ROSSI-MAFFEI, Raccolta di statue antiche e moderne, 1704, tav. LI.
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Nos jardins barrocos portugueses encontramos duas cópias da Flora Farnesio, que ostenta o atributo mais comum de Flora – a coroa de flores –, uma no jardim da Quinta Real de Caxias, outra, actualmente no jardim do Museu Nacional de Arte Antiga53. Diferentes versões de Flora são igualmente divulgadas através dos cadernos de artistas de Cavalieri54 e de Charles Le Brun55 e da Raccolta di statue antiche e moderne de Rossi-Maffei56, contudo em nenhum deles se encontram as fontes para as restantes Floras dos jardins barrocos portugueses. Em Queluz existem várias Floras, uma denominada Flora Lupa – com o cesto de frutos contra a anca –, assemelha-se a uma Pomona. Outra Flora encontra-se, tal como a anterior, sobre a balaustrada que fecha o Jardim Pênsil. Ou seja, acontece termos o mesmo tema iconográfico repetido numa determinada área do jardim, separadas entre elas por vários habitantes da Arcádia, como Baco, Erecina, Ciques, Pastor, Vesta, Bible. O que nos leva a questionar se o princípio do decorum foi justamente aplicado nos jardins do Palácio de Queluz. Como vimos anteriormente, este não se baseava na escolha de determinadas temáticas para o contexto dos jardins, no qual Flora se incluía, mas também em colocá-la em local apropriado – neste caso, um canteiro de flores, por exemplo. Não obstante, deparamo-nos com a existência de duas Floras num mesmo espaço e colocadas sobre a balaustrada. As estátuas isoladas de Pomona, deusa dos frutos e dos jardins – como, por exemplo, a da autoria de Pietro Francavilla, anteriormente na Villa Bracci e actualmente no castelo de Windsor57 – podem ser inspiradas na estátua da Antiguidade, conservada na Galeria Uffizi em Florença, que foi desenhada por vários artistas, como Cavalieri58, e divulgada através dos seus cadernos de esboços. Mas a Pomona que encontramos nos jardins de Queluz apresenta o atributo próprio, mas em termos compositivos não é fiel a esta escultura pois
53 Vide Ana Duarte RODRIGUES, ob. cit., p. 227. 54 Cf. CAVALIERII, I-II, pl. 33. 55 Cf. Paris, Bibliothèque Nationale, Ms, Fr. 17.217, f. 21. Cópia do Warburg Institute. 56 Cf. ROSSI-MAFFEI, ob. cit., tav. CXXXIII. 57 Vide A. H. Scott-Elliot, “The statues by Francavilla in the Royal Collection”. In Burlington Magazine, nº 636, vol. XCVIII, Março, 1956. 58 Cf. Antiquarum Statuarum Urbis Romae, Primus et Secundus Liber, Ludovico Madrucio SRE – Card. Amplíssimo DIC Io Baptista de Cavalleriis Authore, 1585, III-IV, fig. 54, conservado na British Library. Cópia do Warburg Institute.
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apresenta um cesto de frutos sustentado pelo braço esquerdo, em vez de no regaço sustentados pela própria túnica. A redobrada atenção obriga-nos Pomona, quando acompanhada de Vertumno, deus das Estações e seu par amoroso. Nas edições ilustradas das
Fig. 6 – Vertumno e Pomona, in Ovídio, P. Ouidij Nasonis… Metamorphosis, Das is von der wunderbarlicher Verenderung der Gestalten der Menschen, Thier, und anderer Creaturen: Etwan durch den Wolgelerten M. Alberechten von Halberstat inn Reime weiss verteutscht, Jetz erstlich gebessert und mit Figuren der Fabeln gezirt, durch Georg Wickram ... Epimythium, Das ist Der lüstigen Fabeln .. Auszlegung, jederman kürtzweilig, vornemlich aber allen liebhabern der Edeln Poesi stadtlich zu lesen Gerhardi Lorichij. Mainz: Juo Schoeffer, 1545, fig. 45. © Warburg Institute
Fig. 7 – Vertumno e Pomona, in Ovídio, Pub. Ovidii Nasonis Metamorphoseon libri XV / ex postrema Iacobi Micylii recognitione ; et recensione nova Gregorii Bersmani, cum eiusdem notationibus ; et singularum fabularum argumentis, partime veteribus, partime recentibus. Leipzig: Imprimebat Ioannes Steinman, 1582, p. 573. © Warburg Institute
Fig. 8 – Pomona e Vertumno. John Cheere; grupo escultórico de chumbo; tamanho natural; Queluz; Palácio Nacional de Queluz. © IPPAR
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Metamorfoses de Ovídio59 encontramos, sistematicamente, representadas num jardim uma velha (Vertumno assim se disfarçava para se aproximar de Pomona) e uma jovem a conversarem60, gravuras estas que serviram de modelo para inúmeras pinturas e tapeçarias. No entanto, nas representações escultóricas, sobretudo as destinadas a jardins, optou-se por um grupo escultórico de um par de jovens, no qual a máscara na mão do jovem sintetiza toda a história do disfarce de Vertumno, como o bronze de Robert Le Lorrain (1666-1743), conservado no Hermitage; ou como o de Laurent Delvaux (1696-1778), conservado no Victoria & Albert Museum; ou como o da autoria de Jean Baptiste Lemoyne (1704-1778) de 1760, que apresenta Louis XV e Mdme de Pompadour como Vertumno e Pomona. Nestes casos, a primeira vez que um artista decidiu representar um episódio de maneira diferente das anteriores memórias plásticas sobre o mesmo, podemos deduzir que terá sido uma interpretação pessoal da história, estabelecendo um novo tipo para a mesma iconografia que entretanto é seguida por outros. Curiosamente John Cheere, tal como Laurent Delvaux trabalhavam no mesmo círculo londrino na feitura de escultura de jardim em bronze e em estuque, apresentando as suas composições vários pontos comuns, como a posição pedestre do jovem Vertumno despido; Pomona sedente com um panejamento a envolver-lhe as pernas acompanhada por um putto, que em Delvaux ainda se encontra sentado, mas em John Cheere, numa posição mais ousada, voa ligando-se ao grupo só pelo seu lado esquerdo. Infelizmente, o estado actual da investigação ainda não nos permite identificar de forma segura a fonte para estas composições. Por outro lado, nos jardins do Palácio de Queluz, não há inconformidade em apresentar o grupo escultórico de Vertumno e Pomona ao lado do de Melea-
59 Para uma abordagem geral sobre as edições ilustradas de Ovídio vide George DUPLEISS, Essai bibliographique sur les différentes éditions des œuvres d’Ovide : ornées de planches publiées aux XVe et XVIe siècles. Paris: Vve L. Techener, 1889. 60 Cf. OVÍDIO – P. Ouidij Nasonis… Metamorphosis, Das is von der wunderbarlicher Verenderung der Gestalten der Menschen,Thier, und anderer Creaturen: Etwan durch den Wolgelerten M. Alberechten von Halberstat inn Reime weiss verteutscht, Jetz erstlich gebessert und mit Figuren der Fabeln gezirt, durch Georg Wickram ... Epimythium, Das ist Der lüstigen Fabeln .. Auszlegung, jederman kürtzweilig, vornemlich aber allen liebhabern der Edeln Poesi stadtlich zu lesen Gerhardi Lorichij. Meinz: Juo Schoeffer, 1545, das quais algumas ilustrações foram reproduzidas em Evamarie BLATTNER, Holzchnittfolgen zu den Metamorphosen des Ovid: Venedig 1497 und Mainz 1545, Munchen: Scaneg, 1998; Pub. Ovidii Nasonis Metamorphoseon libri XV / ex postrema Iacobi Micylii recognitione; et recensione nova Gregorii Bersmani, cum eiusdem notationibus; et singularum fabularum argumentis, partime veteribus, partime recentibus. Lipsiae: Imprimebat Ioannes Steinman, 1582, p. 573.
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gro, Atalanta e Cupido, que nada têm a ver com a sua história, porque nunca houve intenção de que fossem lidas como fazendo parte do mesmo ciclo de histórias. Vénus, a deusa do amor e par de distintas divindades masculinas, protagonista de inúmeros episódios amorosos da mitologia clássica e senhora de um jardim descrito por Giovanni Boccaccio61 (1313-1375), parece reunir todas as condições para presidir nos jardins de prazer. Contudo, a rara presença de Vénus nos jardins barrocos portugueses não traduz nenhuma narrativa literária, e por vezes alude ao seu significado mais antigo de deusa da fertilidade62, como a Vénus do Palácio Fronteira – de cujos seios brotava água –, em vez de evocar o amor, como quando é representada com algum dos seus pares – a título de exemplo, Vénus, Adónis e Cupido nos jardins do Palácio Queluz –, ou a beleza, como o fazem melhor as sensuais Vénus Capiglia e Vénus a banhar-se. Duas esculturas de Diana do Laboratorio de Joaquim Machado de Castro nos jardins portugueses, uma sobre a balaustrada do jardim de buxo do Palácio de Belém e a outra no sopé da cascata da Quinta Real de Caxias, patenteiam de forma exemplar duas situações que entendemos diferenciar neste texto. Diana, deusa da caça, é, tal como Vénus, uma das deusas do Olimpo com mais sucesso na literatura. Encontramos Diana ao lado do seu irmão a vingar a ofensa feita por Níobe à sua mãe; Diana a surpreender Calisto que se deixara seduzir por Júpiter63; Diana a banhar-se com o seu séquito de ninfas e Diana a castigar Actéon, por este a ter expiado durante o banho, transformando-o no cervo que seria devorado pelos seus próprios cães64; Diana a caçar65, etc. A Diana dos jardins do Palácio de Belém, apesar de se encontrar ao lado do seu irmão Apolo, não traduz a vingança encetada pelos dois irmãos contra Níobe, nem nenhum outro episódio narrado na literatura. Constitui, simplesmente, uma adaptação da escultura de Diana da Antiguidade. 61 Cf. BOCCACCIO – Genealogia deorum gentilium, Consultada a versão francesa: La généalogie des dieux païens = Genealogia deorum gentilium. Livres XIV et XV: un manifeste pour la poésie / Giovanni Boccacio; traduit, présenté et annoté par Yves Delègue. Strasbourg: Presses universitaires de Strasbourg, 2001. 62 Desde a Antiguidade que estátuas de Vénus se encontram no seio da natureza, mas com uma função religiosa, enquanto divindades tutelares de um tholos. Vide Georgina MASSON – Italian gardens, Londres:Thames and Hudson, 1966, p. 12 e ss. 63 Cf. OVÍDIO, ob. cit., Livro II (553-625). 64 Cf. OVÍDIO, ob. cit., Livro III. 65 Cf. Diana’s Hunt, Caccia di Diana, Boccaccio’s First Fiction, CASSEL, Anthony K. e KIRKHAM,Victoria, (ed. e trad.) Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1991.
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Fig. 9 – Diana e as duas ninfas Joaquim Machado de Castro; 1782-1796; modelo de barro cozido; Lisboa; MNAA, inv. 97 Esc. © IPM
A Diana no sopé da cascata da Quinta Real de Caxias constitui um caso muito mais complexo. Neste caso, olhar para a narrativa de Ovídio é uma forma de perceber a autonomia do escultor, mesmo num período onde os escultores eram cada vez mais encorajados a seguir os poetas. Machado de Castro possuía na sua biblioteca várias mitografias66 em edições vernaculares e ilustradas, como várias edições da Iconologia de Cesare Ripa67, não tão interessantes para esta análise uma vez que se tratam de deuses 66 Vide Jean SEZNEC – The Survival of the pagan gods, Princeton: Princeton University Press, 1972. 67 Uma de 1669, já muito conhecida e utilizada, pois encontra-se conservada na Biblioteca Nacional e está assinada pelo próprio, também inclusa no inventário, como se pode ler:“Iconologia di Cesare Ripa Venetia mil e Seis Centos e Sesenta e nove / duzentos e quarenta Reis Com que Sesahe $240 / 1 Tombo”, in INA / TT, Inventário Orfanológico, Fl. 75v. A outra é a de 1603, primeira edição ilustrada de Cesare RIPA, Iconologia, overo Descrittione di diverse imagini cauate dall’antichità, & di propria inuentione/trouate, & dichiarate da Cesare Ripa…; Di nuouo reuista, Roma: Appresso Lépido Facij., 1603, que consultámos na biblioteca do Warburg Institute. Cf. “Iconologia o Discrittioni de/ de diverse Imagine Loccatte (sic) dall Antichitta Roma mil e seis Centos e tres “duzentos e quarenta Reis Com que Sesahe $240/1 Tombo”, in INA / TT, Inventário Orfanológico, fl. 70 e 70v.
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e não personificações; mas também a edição das Metamorfoses de Ovídio, traduzida para francês por Pierre Du Ryer (1605-1658) publicada em Paris no ano de 166068; o livro de Cartari69 de 1674; a mitografia de Giovanni Mário Vendizzotti70; a Emblemeta de Alciato71; e ainda um “Livro de Reprezentaçam dos Deoses e antiguidades todos de Estampas com alguma danificasam / Seis Centos Reys Com que Sesahe $600 / 1 Tombo”72 (fig. 10). Interessa-nos para analisar o conjunto da Quinta Real de Caxias as Metamorfoses de Ovídio na posse de Joaquim Machado de Castro, tendo em conta que as ilustrações diferem bastante de umas edições para outras. O momento em que Diana se encontra no banho rodeada de ninfas e é surpreendida por Actéon é traduzido nas edições ilustradas das Metamorfoses de Ovídio com três figuras femininas despidas dentro de um tanque quadrado das quais se aproxima um ser com corpo de homem e cabeça de cervo73. 68 Cf. “Obras de Ovide Paris mil e seis centos e sesenta, quinhentos Reis Com que Sesahe $500 / 1 Tombo”, in IAN/TT, Inventário Orfanológico, fl. 85v. A edição de 1660 existe na Bibliothèque Nationale de France, mas dado que não nos foi possível consultá-la até à presente data, e não existe na British Library, nem na biblioteca do Warburg Institute, recorremos à edição existente neste último: Les Metamorphoses d’Ovide, traduites en François, par Mr. Du Ryer, De l’ Academie Françoise avec de Nouvelles Explications à la fin de chaque Fable. Enrichies de Figures en taille douce, A la Haye: Chez P. Gosse & J. Neaulme, 1728. 69 Cf. “Imagine delli Ley de Gl’Antichi de Vicenzo Cartari Rigiano /Riggiano Veniza mil e Seis Centos e Setenta e quatro. Duzentos Reys Com que Sesahe $200/1 Tombo”, in IAN/TT, Inventário Orfanológico, fl. 70v. e 71. Consultámos a exacta edição biblioteca do Warburg Institute:Vincenzo CARTARI – Imagini delli dei de gl’antichi di Vicenzo Cartari Reggiano: Ridotte da capo à piedi alle loro reali, & non più per l adietro osseruate simiglianze. Cauate da’marmi, bronzi, medaglie, gioie, & altre memorie antiche...da Lorenzo Pignoria Padoano / Aggionteui le annotationi del medesimo sopra tutta l opera, & vn Discorso intorno le deità dell Indie orientali, & occidentali...Con le allegorie sopra le imagini di Cesare Malfatti Padoano, migliorate, & accresciute nouamente. Et vn Catalogo di cento più famosi dei della gentilità. Con l’aggiunta d’vn’altro Catalogo de’gl’autori antichi, & moderni, che hanno trattato questa materia, ordinato, & raccolto dal medesimo Pignoria, che hà accresciute le annotationi, & aggiunte molte imagini. Venetia: Appresso Nicolò Pezzana, 1674. 70 Cf.“Conta Ravola e Morali de Antichi Grici e Latini por Medizati /Vedizote Venezia mil e quinhentos e Setenta e sinco.Trezentos Reis Com que Sesahe $300/1 Tombo”, in IAN/TT, Inventário Orfanológico, fl. 75 e 75v. Trata-se deste livro: Giovanni Mário Vendizzotti, Cento favole morali de i piu illustri antichi, & moderni autori greci, & latini /scielte, & trattate in varie maniere di versi volgari da Gio. Mário Verdizotti. Nellequali, oltra l’ornamento di varie e belle figure, si contengono molti precetti pertinenti alla prudenza della vita virtuosa & civile: com la tavola di ciascuna favola, Venetia: Appresso Giordano Ziletti, 1577. 71 Cf. “Emblemas e Alciato Nigera mil e Seis Centos e quinze. Duzentos e quarenta Reis Com que Sesahe $200/1 Tombo”, in IAN/TT, Inventário Orfanológico, fl. 75v. Edição, até à data, não encontrada. 72 Cf. IAN/TT, Inventário Orfanológico, fl. 76. 73 Como nesta edição em italiano destinada ao uso de artistas, OVÍDIO – Del Metamorphoseo Abbreviato, con la Rinovatione, d’alcune stanze, libro Decimoquinto, con figurato, Lione, 1559, p. 54, fig. 42.
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Fig. 10 – Diana, in Cartari, Imagini dei de Gl’ Antichi di Vincenzo Cartari Reggiano. Veneza: Appresso Nicolo Pezzana,1674, p. 53. © Warburg Institute
O segundo momento da história, quando Actéon, já transformado em cervo, é atacado pelos seus próprios cães é o mais comum nas edições ilustradas de Ovídio74 – e em Alciato é utilizada como o emblema 52 “Contra os que protegem assassinos”75 –, não obstante o momento da metamorfose – quando Diana despida no banho com as ninfas acusa Actéon e neste, ainda com forma humana, já se vêm hastes de cervo – também se encontrar representado76. 74 Cf. Pub. Ovidii Nasonis Metamorphoseon libri XV /…, ob. cit., 1582, p. 127; e o livro só com imagens e legendas, destinado ao uso de artistas de Antonio TEMPESTA, Metamorphoseon sive Transformationum Ovidianarum libri quindecim, aeneis formis ab Antonio Tempesta Florentino incisi, et in pictorum, antiquitatisque studiosorum gratiam nunc primum exquisitissimis sumptibus a Petro de Iode Antverpiano in lucem editi, liv. III. [Antuérpia]: Petrus de lode excudit, 1606, fl. 25. 75 In Andrea ALCIATI – Emblematum Liber, nº 52. 76 Cf. Antonio TEMPESTA, ob. cit., fl. 198.
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Fig. 11 – Actéon transformado em cervo por Diana, in Ovídio, Metamorphoses. Lyon, 1559, p. 54. © Warburg Institute
Fig. 12 – Diana e Actéon, in Ovídio, Metamorphoses d’Ovide en rondeaux / imprimez et enrichis de figures par ordre de Sa Majesté et dediez à monseigneur le dauphin. Amsterdam : Chez Abraham Wolfgang, 1679, p. 62. © Warburg Institute
O conjunto escultórico da cascata da Quinta Real de Caxias inclui estas duas cenas, mas de forma alguma se pode afirmar que Joaquim Machado de Castro se terá inspirado nas composições apresentadas nestes livros. Mesmo da edição utilizada por Machado de Castro, que inclui imagens completamente diferentes, só reconhecemos Actéon agachado nuns montes com corpo de homem e cabeça de cervo, como o modelo para o da Quinta Real de Caxias. Fig. 13 – Actéon, in Ovídio, Les Metamorphoses d’Ovide, traduites en François, par Mr. Du Ryer, De l’Academie Françoise. Avec de Nouvelles explications à la fin de chaque fable, tomo I. Haye: Chez P. Gosse & J. Neaulme, 1728, fig. 33. © Warburg Institute
Fig. 14 – Actéon, Laboratorio de Joaquim Machado de Castro; 1782-1796; estátua de barro cozido policromado; tamanho maior que o natural; Caxias; Quinta Real de Caxias. © DGEMN
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Fig. 15 – Fonte de Diana e Actéon. Tommaso Solari, Paolo Persico, Pietro Solari e Angelo Brunelli e Andrea Violani; 1785-1789; grupo escultórico de pedra; tamanho maior do que o natural; Caserta; Reggia di Caserta. © Fotografia do autor
Fig. 16 – Diana e as ninfas. Tommaso Solari, Paolo Persico, Pietro Solari e Angelo Brunelli e Andrea Violani; 1785-1789; grupo escultórico de pedra; tamanho maior do que o natural; Caserta; Reggia di Caserta. © Fotografia do autor
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Nem copiará tão pouco o conjunto escultórico do Palazzo Reale di Caserta, como já foi apontado, porque ainda que se trate da mesma temática representada na base de uma cascata e estejamos, em ambos os casos, perante talking statues, a composição de Machado de Castro difere completamente da que se encontra na Reggia di Caserta, não sendo de descartar que Machado de Castro tenha desta tido conhecimento através de algum viajante ou livro de viagens. Em Caxias, as esculturas adaptam-se perfeitamente ao local a que se destinavam, o que constituía de facto o principal desafio para o artista: encontrar soluções compositivas e plásticas. Visitámos jardins, dos quais uma suave fragrância de flores de açafrão se desprendia, guardados por Príapo, que trazia tomilho e louro selvagem das altas montanhas para plantar as suas sementes em torno das suas casas77. O exemplar da estátua de Príapo visível sobre a balaustrada que contorna o jardim Pênsil do Palácio de Queluz também não traduz esta narrativa. A presença de estátuas de Príapo na natureza data da Antiga Grécia quando ainda detinha uma função religiosa e os montes do Peloponeso eram locais privilegiados para acolher divindades tutelares da fertilidade e da caça. A sua presença na natureza, ainda que artificial, continua acesa nos jardins italianos e franceses, mas não em Portugal. Pan também não é muito frequente nos nossos jardins e os exemplares que temos, sejam considerados Pans ou faunos, como em Caxias, têm sempre uma expressão menos agressiva do que a das esculturas de Pan e Olimpo da Antiguidade que lhe serviram de exemplo e divulgadas através de ilustrações78. As composições mais comuns de Pan são aquelas em que este se faz acompanhar por Olimpo, como já referimos, por Cupido79, por Apolo, por Syrinx ou 77 Cf.VIRGÍLIO – Georgics, liv. IV, pp. 203 e 205 e 207. 78 Pan e Olimpo in António LAFRERI – Speculum Romanae magnificentiae, 1573-1577. Cópia do Warburg Institute realizada a partir da edição fac-simile da Chicago University; CAVALIERII, ob. cit., I-II, p. 22; FRANCINI, ob. cit., pl. AA4; e ROSSI-MAFFEI, ob. cit., tav. LXIV. 79 Apesar de apresentarem composições todas diferentes entre si, o tipo iconográfico de várias edições de Cartari é sempre o mesmo: Pan e Cupido. Cf.Vincenzo CARTARI – Le imagini de i dei de gli antichi : nelle quali si contengono gl’idoli, riti, ceremonie, & altre cose appartenenti alla religione de gli antichi / racolte dal sig.Vincenzo Cartari, con la loro espositione, & con bellissime & accommodate figure nouamente ristampate : et con esservi citati i luoghi de gli auttori stessi, di donde molte cose sono state cavate, con molta diligentia riviste, & corrette. Lione : Bartholomeo Honorati, 1581; Le vere e nove imagini de gli dei delli antichi di Vicenzo Cartari Reggiano : Ridotte da capo a piedi in questa nouissima impressione alle loro reali, & non piu per l’adietro ossuerate simiglianze. Cauate da’ marmi, bronzi, medaglie, gioie, & altre memorie antiche; con esquisito studio, & particolare diligenza da Lorenzo Pignoria
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outras ninfas, ou por Pitys80, ao contrário dos poucos exemplares existentes nos jardins portugueses, em que surge isolado. A sua imagem é, propriamente, utilizada por Alciato81 para o emblema 98 que representa a Natureza. Entre as divindades relacionadas com o universo aquático da mãe natureza, Neptuno, deus do mar, ocupa um lugar proeminente. Filho de Saturno, e irmão de Plutão e Júpiter – com quem dividia o governo do mundo, ficando os Céus para Júpiter e o submundo para Plutão –, o deus dos mares e o seu casamento com Anfitrite e os filhos por eles gerados – Tritões e bestas – nunca ganhou a atenção na literatura reclamada por Júpiter, com os seus romances com belas donzelas e descendência de heróis. Contudo, fora um dos deuses mais venerados durante a Antiguidade clássica, com vários templos nas proximidades do mar, como o do istmo de Corinto, no qual a sua estátua se encontrava perto da de Anfitrite. Se na pintura, Júpiter ofuscou qualquer dos seus outros irmãos, na escultura decorativa de fontes e lagos nenhuma outra divindade teve tanto sucesso quanto Neptuno. Desde a fonte pública com o Neptuno da autoria de Bartolomeo Ammannati (1511-1592) na Piazza della Signoria em Florença, realizada entre 1563 e 1565, que evocava o poder da República de Florença sobre os mares, que a associação da figura de Neptuno a uma fonte ficou estabelecida – de que são exemplos a Fonte do Neptuno (1576), segundo desenho de Giacomo della Porta, na Piazza Navona em Roma e a de Joaquim Machado de Castro (1771) para o Largo do Loreto, hoje, no Largo da Estefânia –, tendo invadido depois domínios privados – como, por exemplo, a Fonte do Neptuno nos jardins Boboli, em Florença. Nos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal, encontramos desde simples fontes com espaldar a que se faz alusão a Neptuno através de uma inscrição, como no caso da fonte (1612) nos jardins da Casa do Arrabalde, perto de Ponte de Lima, até fontes monumentais com uma
Padovano... Con le allegorie sopra le imagini di Cesare Malfatti Padouano, migliorate, & accresciute nouamente. Et un catalogo del medesimo di cento piu famosi dei della gentilità. Il tutto ridotto a somma prefettione, come si può facilmente vedere nella prefatione al lettore. Padoua: P. P.Tozzi, 1615, p. 458; e CARTARI, ob. cit., 1674, 250. 80 In Achille BOCCHI, Achillis Bocchii Bonon. Symbolicarum quaestionum, de universo genere, quasserio Ludebat, libri quinque, Bononiae: Apud Societatem Typographiaae Bononiensis, 1574. 81 Cf. Andrea ALCIATI, Emblematum Liber, nº 98.
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Fig. 17 – Neptuno. Stoldo Lorenzi; 1565-1568; estátua de bronze; tamanho maior do que o natural; Florença; Jardins Boboli; por trás do Palazzo Pitti. © Fotografia do autor
Fig. 18 – Neptuno Modelo de Joaquim Machado de Castro; 1771; executada em Itália; estátua de pedra; tamanho maior do que o natural; Lisboa; Praça do Saldanha. © Fotografia do autor
Fig. 19 – Neptuno Stoldo Lorenzi; 1565-1568; estátua de bronze; tamanho maior do que o natural; Florença; Jardins Boboli; por trás do Palazzo Pitti. © Fotografia do autor
Fig. 20 – Neptuno John Cheere; grupo escultórico de chumbo; tamanho natural; Queluz; Palácio Nacional de Queluz; Jardim Pênsil. © IPPAR
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estátua de vulto perfeito de Neptuno da autoria de Lorenzo Bernini e Ercole Ferrata82, actualmente nos jardins do Palácio de Queluz. De Norte a Sul do nosso país encontramos representações de maior ou menor qualidade em fontes e lagos dos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII, como o Neptuno ao centro do lago na Quinta do Carmo em Estremoz ou o Neptuno ao centro sobre o espaldar de um tanque da Quinta do Assade em Braga. Ainda mais abundante é a presença de Tritões e pequenos Tritões enquanto figuras principais ou secundárias da composição de fontes, lagos e espaldares de tanques. Muitas vezes esculturas fontenárias, concorrem com golfinhos ou cães de água – mais invulgarmente, como no Lago dos SS nos jardins do Palácio Fronteira –, na função de bica destas estruturas. Apesar do putto sobre golfinho ser um tipo iconográfico bastante comum, que já aparece em moedas de prata do século V a.C. e em mosaicos de Delos, e portanto, familiar das memórias visuais de qualquer artista, o putto sobre um golfinho dos jardins do palácio Fronteira pode vir do livro de Cartari83, apesar de apresentar uma torção diferente. As imagens dos próprios deuses, entre outras, são também utilizadas para traduzir conceitos. Através das imprese84 – relação entre imagem e palavra – Flora passa a representar a Primavera e Ceres o Verão, por exemplo. Procurámos em várias edições ilustradas de Ripa85, Alciato86, fontes para as personificações relacionadas com o ciclo da natureza encontradas nos nossos jardins barrocos, como o rio Nilo reclinado numa gruta na Quinta do marquês em Oeiras, ou como, por exemplo, o rio de pé na gruta na Tapada das Necessidades, sem sucesso. Desde que Bramante colocou no centro do Belvedere dois enormes homens de mármore, duas muito antigas fontes, que rios passaram a ser encomendados para outras ville que se queriam émulas do jardim do papa.
82 Vide Angela DELAFORCE, Jennifer MONTAGU, Paulo Varela GOMES e Miguel SOROMENHO, “Uma fonte de Gianlorenzo Bernini e Ercole Ferrata em Portugal”. In Revista Património – Estudos, nº5, Lisboa: IPPAR, 2003. 83 Cf.Vincenzo CARTARI, ob. cit., 1615, p. 534. 84 Vide Mario PRAZ – Studies in seventeenth-century imagery, Londres: The Warburg Institute, 19391947. 85 Cf. Cesare RIPA – Iconologia, Roma: Appresso Lépido Faeij, 1603; Iconologie, ou explication nouvelle de plusieures images, emblemes, et autres figures…Moralisées par Baudoin, Paris: Chez Mathieu Guillemt, 1644. 86 Cf. ALCIATO – Emblemata, Lyons, 1550.Trad. Por Betty I. Knott, intr. De John Manning.
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Os deuses rios ganharam, assim, uma nova vida, como partes elegantes da composição escultórica dos jardins, actuando como símbolos de rios locais mais do que como os grandes rios do mito e da história, ainda que muitas vezes o rio Nilo e o Tibre sejam os mais comuns. E passamos a encontrar deuses rios em Fontainebleau, em França, no palácio de Greenwich, em Inglaterra, no qual a figura do rio se associa a uma gruta, tal como no Palácio do marquês de Pombal em Oeiras. Pela segunda metade do século XVII, os deuses rios tornaram-se um cliché dos jardins barrocos. Geralmente localizam-se perto da água porque surgem como a fonte da mesma. Diferentemente das esculturas de Neptuno, de pleno vulto e observadas por todos os lados, as estátuas de rios encontramse geralmente inseridas em grutas. A distinção principal entre as divindades representadas nos locais centrais, não é um problema de função, mas de composição e de iconografia. Um cenário de água num espaço aberto obrigava a uma composição de maior dimensão e que se pudesse ver de todos lados, que fosse interessante ver de todos os lados, por isso os grupos com Neptuno adequam-se melhor, até porque geralmente os rios são representados em posição reclinada, enquanto Neptuno de pé com o seu tridente, parece dominar o cenário. As Quatro Estações encontram-se várias vezes representadas nos nossos jardins – na quinta do marquês de Pombal em Oeiras, na Quinta Real de Caxias, no Palácio de Queluz, no Paço Episcopal de Castelo Branco, só para mencionar alguns exemplos –, exigindo diferentes tipos de leitura iconográfica. Por vezes, encontram-se representadas apenas duas das estações – como o Verão e a Primavera colocadas em nichos no pátio do Palácio das Laranjeiras – ou só uma das estações isolada, como a Fonte da Primavera da Quinta de Canas. As Quatro Estações relacionam-se obviamente com o ciclo da natureza e, na maioria dos casos, a sua presença nos jardins barrocos justifica-se com a aplicação do princípio do decorum. Mas, o caso dos jardins do Paço Episcopal de Castelo Branco, quando a leitura se cruza com os quatro elementos e as quatro partes do mundo87, a probabilidade para ter existido um programa iconográfico aumenta.
87 Vide Maria João Lynce Costa Pais de FREITAS – Iconografia da memória na azulejaria do século XVIII: quatro estações, quatro elementos, quatro partes do mundo, dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à FCSH/UNL, Lisboa, 1994.
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As acções e actitudes com que as esculturas de jardim eram representadas e os atributos, geralmente retirados das mitografias, qualquer destes factores essenciais para a sua futura identificação, encontrava-se totalmente a cargo dos artistas. A encomenda de modelos de John Cheere é bastante elucidativa a este respeito, pois só foram escolhidas as temáticas mediante uma lista de possíveis modelos, desprovida de quaisquer instruções quanto à composição, aos atributos, aos gestos e aos detalhes decorativos. Conclui-se que havia um grande grau de liberdade para os artistas abordarem temas mitológicos. A questão coloca-se de forma diferente do que antes se supusera: não há programa no sentido de que o encomendante ou o artista andaram com a Eneida88 ou A Ilíada de Homero na mão e o quiseram ver traduzido nos seus jardins, mas existe uma espécie de temáticas próprias para colocar no jardim explanadas em vários tratados desde o século XVI e na posse, ou conhecidos, de artistas, encomendantes e público cultivado. Inquirir vários episódios biográficos destas divindades é um exercício que, não obstante ser muito interessante, não é o local próprio para procurar a fonte para a iconografia destes deuses no contexto dos jardins das quintas e palácios dos séculos XVII e XVIII em Portugal, e poderia adiantar que no resto da Europa, com raríssimas excepções. Não há provas de que os encomendantes quando compravam estátuas de deuses relacionados com o ciclo da natureza para os seus jardins quisessem traduzir textos da Antiguidade Clássica. Não se encontram aqui porque o encomendante previu dar um significado particular ao seu jardim, nem porque fazem parte de um programa que incluísse estas personificações e estas representações de deuses, mas tout court, porque são as temáticas adequadas ao local, obedecem ao princípio do decorum. O encomendante desejava que as esculturas divertissem, embelezassem e enriquecessem o local a que se destinavam. O que era melhor conseguido com belas imagens de homens e mulheres do que com imagens com subtis alusões literárias. E a tida como melhor fonte de inspiração para a criação
88 A título de exemplo, Malcolm Kelsall desmonta a interpretação dos jardins de Stourhead como tradução da Eneida. Vide Malcolm KELSALL, “The Iconography of Stourhead”. In Journal of the Warburg and Courtauld Institutes,Volume 46, 1983, pp. 133-143.
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de belas estátuas mitológicas era, para além das edições ilustradas das mitografias, a memória da Antiguidade, divulgada por desenhos, gravuras, cópias em gesso das esculturas da Antiguidade.
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RESUMO ABSTRACT Research on portuguese tiles tend to be oriented towards the understanding of large narrative themes, in detriment of other representations that are thought to be less important, such as: ‘albarradas’, flowering pots, hunting scenes and hermit figures, amongst other motives that cover the wall panels of churches and convents. This paper aims to reflect on the symbolic meaning of these figurative images that are common to the tile work pictorial production of the first half of the 18th century, and presents some interpretative thoughts based on the crossed readings of the Bible and its documented testimony from mystical men and commentators. We also try to reflect on the reasons that led to the application of these themes on the wall panels of two convents in Lisboa: Madre de Deus and São Pedro de Alcântara, with the intent of contributing to define a global interpretation that may explain their repetitive presence in religious environments.
Os estudos da azulejaria portuguesa tendem a ser orientados para a compreensão dos grandes núcleos narrativos, em detrimento das representações consideradas secundárias, como: as albarradas e os vasos floridos, as caçadas e os eremitas, de entre as muitas outras figurações que forram os panos murários de igrejas e conventos. Neste artigo procurar-se-á abordar a temática simbólica destas figurações, comuns na produção azulejar da primeira metade do século XVIII, e apresentar algumas propostas interpretativas a partir da leitura cruzada da Bíblia com o testemunho escrito que dela fizeram místicos e comentadores. O presente artigo procura, pois, reflectir sobre os motivos que conduziram à escolha e colocação destes temas nos panos murários de dois conventos de Lisboa: o da Madre de Deus e o de São Pedro de Alcântara, procurando contribuir, eventualmente, para definir uma interpretação global que possa explicar a sua presença repetitiva em espaços religiosos.
INQUIETAÇÕES DA ALMA Reflexões sobre o simbolismo presente nos temas coadjuvantes de núcleos azulejares portugueses Alexandre Pais*
Os estudos da azulejaria portuguesa tendem a ser orientados para a compreensão dos grandes núcleos narrativos, em detrimento das representações consideradas secundárias. Inserem-se nesta categoria de temas secundários as albarradas e os vasos floridos, as caçadas e os eremitas, de entre as muitas outras figurações que forram os panos murários de igrejas e conventos. A subvalorização do estudo destes temas parece, no entanto, algo paradoxal, uma vez que a riqueza da linguagem simbólica presente na azulejaria portuguesa – uma das manifestações mais características da sensibilidade artística nacional – e o fascínio que ela exerce sobre os observadores mais atentos pode, por vezes, determinar alguns excessos interpretativos. Neste artigo procurar-se-á abordar a temática simbólica destas figurações, comuns na produção azulejar da primeira metade do século XVIII, e apresentar algumas propostas interpretativas a partir da leitura de fontes consideradas relevantes. As propostas iconológicas que, em seguida, se apresentam decorrem da leitura cruzada da Bíblia com o testemunho escrito que dela fizeram místicos e comentadores. A consulta destas fontes decorre da convicção de que a figuração temática existente em muitos núcleos azulejares tem origem no manancial simbólico presente nesses textos sagrados, o que a torna tão apropriada à decoração dos espaços religiosos. Partindo deste pressuposto, é lícito considerar que as representações secundárias, tais como vasos floridos, ou cenas tumultuosas, como as caçadas, encerram em si um sentido que extravasa a sua função meramente decorativa. O presente artigo procura, pois, reflectir sobre os motivos que conduziram à escolha e colocação destes temas (albarradas, caçadas e eremitas) nos panos murários de dois conventos de Lisboa: o da Madre de Deus e o de São Pedro de Alcântara, procurando contribuir, even-
* Investigador do quadro do Instituto Português de Conservação e Restauro.
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tualmente, para definir uma interpretação global que possa explicar a sua presença repetitiva em espaços religiosos.
Albarradas e vasos floridos No interior de conventos, igrejas e claustros1, silhares de azulejos repetem pequenos motivos denominados albarradas - jarras caprichosamente ornamentadas – ou vasos floridos. Estes elementos pintados como se estivessem assentes em pequenos socos de cantaria e encimados por arcos e festões, animavam, na sua simplicidade, espaços que se pretendiam austeros e simples. Se as albarrabas, os vasos ou os cestos com flores, constituem uma presença forte, embora discreta e quase ignorada pelo olhar dos que hoje ainda passam neste locais, é bem provável que a sua presença fosse determinada por uma intencionalidade simbólica. O seu significado deverá ter estado relacionado com a tradição das Naturezas Mortas, uma alegoria à plenitude da criação divina e, apesar da aparente contradição, uma celebração da vida. Tal como as imagens nas representações cerâmicas, também estas figurações temáticas tendem a ser consideradas pouco interessantes e repetitivas, embora o seu significado possa ser enganador2. É este ponto que se procurará, em seguida, demonstrar. Na iconografia cristã, as plantas e flores surgem, quase sempre, associadas aos santos3 – a rosa à Virgem, o lírio dos tintureiros a São Filipe, o crisântemo a São João.... – e, através dos escritos dos Padres da Igreja, foram empregues por gerações de artistas na construção de discursos intrincados, quer visuais, quer textuais. Essa concepção tornou mais rico o sentido iconográfico das representações dos mártires e santos, complementou os seus atributos e enriqueceu a linguagem simbólica, compondo uma forma de dissertação visual acessível aos fiéis. O sentido simbólico era facilmente compreensível quando as flores presentes nas figurações eram identificadas, mas, na representação 1 Cfr. MECO, José – O azulejo em Portugal. Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p.151-156. 2 Cfr. LANGMUIR, Erika – Still Life. The Pocket Guide series. The National Gallery. London, Yale University Press, 2001, p.60-66. 3 De notar que a mais antiga recolha de narrativas hagiográficas, datada do século XII, é designada por Flores Sanctorum Multicolores. Cfr. DUBOIS, Jacques – Sources et methods de l’hagiographie médiévale. Les editions du Cerf, Paris, 1993, p. 33.
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azulejar, as imagens não eram tratadas de modo tão realista4 pelo que, o sentido da sua presença na decoração dos espaços sagrados, pode ter sido outro5. Se, na maioria dos locais, a presença destes elementos pode parecer casual há, no entanto, um espaço onde a representação de cestos floridos demonstra uma clara intencionalidade. Na nave da igreja de São Pedro de Alcântara, inserem-se, lateralmente, dois grupos de confessionários em seis vãos rectangulares. Estes nichos preenchidos com azulejos, lateral e frontalmente, associam motivos de figura avulsa, registos e albarradas do segundo quartel do século XVIII. A conjugação de todos estes elementos revela um propósito que é reforçado pela própria função do local. Na base da composição, em cada um dos confessionários, encontra-se um cesto florido ladeado por azulejos de figura avulsa de temática vegetalista. Esta Vasos floridos, nave da igreja de São Pedro de Alcântara. Foto do autor. abundância de elementos florais sugeria, tal como o reverendo padre “(...) Charles Cahier soulignait que les fleurs sont généralement l’embléme des vertus et des richesses spirituelles. (…)”6. Assim, nestes espaços, a pintura de 4 Para o olhar do século XXI as flores representadas nestas superfícies cerâmicas parecem difíceis de associar aos exemplares que hoje conhecemos. Será necessário um botânico com conhecimentos de evolução histórica das espécies debruçar-se nestas representações para um dia podermos afirmar, de forma mais rigorosa, a sua veracidade. 5 Nos vasos floridos que integravam a decoração do convento da Esperança, datados do 3º quartel do séc. XVII têm uma intenção específica para o espaço a que se destinavam, compondo as flores que neles se reconhecem um discurso específico associado à própria invocação do convento. Cf. MONTEIRO, João Pedro – «O frontal de altar da capela de Nossa Senhora da Piedade, Jabotão, Pernambuco», Oceanos.– Azulejos Portugal/Brasil, nº 36-37 (1998-1999), p.173. 6
“(...) Les plantes prises dans leurs sens symbolique furent utilisées par les Pères de l’Église afin de signifier des vertus particulières. (...) Les auteurs chrétiens ainsi que les symbolistes chrétiens vont user et abuser de ce langage pour conférer aux représentations des saints et saintes une lecture plus en profondeur grâce à la fleur. Son symbolisme sera complémentaire des attributes relatifs aux martyrs qui caractérisent les saints. (…)”. DARCHEVILLE, Patrick – La flore des cathedrals, le symbolisme floral dans l’architecture religieuse, Paris, Éditions Dervy, 1998, p. 132.
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flores deveria servir, intencionalmente, duas funções simbólicas: por um lado, a evocação das virtudes necessárias ao bom cristão; por outro, uma defesa “perfumada” contra o “odor” do pecado. Quando colocadas em espaços conventuais com outra funcionalidade, a transitoriedade e a beleza das flores insertas nas albarradas podia remeter para outra asserção: a Vanitas, a fragilidade da matéria face à destruição do tempo. Nesta perspectiva, estas composições azulejares podem ser consideradas metáforas bíblicas7 bem explícitas: “O Homem nascido da mulher tem vida curta e cheia de misérias. É como uma flor que desabrocha e murcha…” (Job. 14, 2). Não obstante o seu real significado, o certo é que a significação polissémica destas figurações, propiciando diversas possibilidades de leitura, serviam um propósito específico: a meditação. A presença de imagens nos espaços sagrados votados a esta superior actividade introspectiva foi, eloquentemente, expressa por David Freedberg ao referir que “(...) la experiencia del hecho milagroso procede directamente de la piadosa atención de quien contempla la imagen. «Atención» no significa aquí ningún encauzamiento de la miente hacia la imagen, sino un «estar atento» particularizado y basado en la experiencia intima del espectador. En otras palabras, no es que el espectador simplemente se concentre en la imagen (o en su tema) sino que dirija sus meditaciones a los aspectos más capaces de producirle un fuerte sentimiento de fragilidad o de tragedia.(...)”8.
Caçadas A presença de cenas de caçada na decoração de claustros ou de espaços adjacentes nos conventos e igrejas, pode causar alguma surpresa pois a escolha desta temática, para o preenchimento de grandes espaços murários, parece pouco adequada ao espírito cristão destes locais. No entanto, as representações alegóricas de caçadas remontam ao período medieval, e eram vistas como uma imagem simbólica de Cristo e dos apóstolos, na sua incansável demanda das almas dos homens. Esta leitura pode ser associada ao Sermão 51 de Santo Agostinho, em que Jesus é comparado a um caçador
7 Cfr. FISHER, Celia – Flowers & Fruit. London, The National Gallery. Yale University Press, 1998. The Pocket Guide series. 8 FREEDBERG, David – El poder de las imágenes. Madrid: Cátedra, 1992, p. 201-202.
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incansável9 o qual, por vezes, capturava as almas com um propósito salvífico, mesmo que, para elas, isso representasse um processo doloroso. Nesta óptica, os animais mansos representavam os espíritos piedosos e os animais selvagens, as almas pecadoras que urgia caçar. Uma outra interpretação, no entanto, torna a sua presença ainda mais pertinente: elas permitiam um contraponto da vivência profana, face ao quotidiano religioso que se vivia nestes espaços. Daí que nestas figurações seja comum encontrar, no segundo plano da composição, um frade a meditar ou a ler um livro, sempre alheado da agitação que o rodeia. Uma terceira leitura, mais próxima da invocada por Santo Agostinho, e com carácter mais profundo, pode, também, adequar-se a estas figurações. Desde o período merovíngio que surgiam representações de “perseguições alegóricas ao cervo”. As mais antigas remontam ao século V, em França, e mostram o animal a ser perseguido por cães e a fugir na direcção de uma cruz da qual pende uma palma. De acordo com os estudos de Louis Charbonneau-Lassay, esta representação simboliza a alma humana fugindo das tentações e dos vícios, ideia que tomou forma a partir da frase atribuída ao Rei David: “Os meus inimigos rodearam-me como uma matilha de cães enfurecidos” (Salm. 22, 17). As caçadas ao veado que preenchem os espaços religiosos – muitas delas retiradas de gravuras de Joannes Stradanus e de Philip Galle10 ou de António Tempesta11 – relatam cenas similares, envolvendo homens e animais. Na sua passagem para o azulejo, o conteúdo religioso parece ter ficado ausente, mas, nos eremitas que pontuam, por vezes, estes espaços, pode encontrar-se esse mesmo sentido. De certo modo, podemos encarar todas estas representações como detentoras de uma intenção onírica, tal como se as caçadas simbolizassem sonhos dos eremitas e, também, uma simplificação da ideia presente nas Tentações de Santo Antão (c.1500), de Jeronimus Bosh, onde o mundo fantástico, ilusório, serve para sublinhar a angústia e a inquietação do santo. 9 CHARBONNEAU-LASSAY, L. – El Bestiario de Cristo. El simbolismo animal en la Antiguedad y la Edad Media, 2ª ed. Barcelona: Sophia Perennis, 1997, vol. 44, p. 295. 10 Muitas imagens de caçadas que preenchem através dos azulejos os panos murários de edifícios religiosos e profanos em Portugal, são baseadas numa das obras mais divulgadas sobre este tema: Venationes Ferarum, Avium, Piscium, de cerca de 1578 e cujos temas foram desenhados por Joannes Stradanus (1523-1605) e incisos por Philip Galle (1537-1612). 11 Cfr. PAIS, Alexandre – «O espólio azulejar nos palácios e conventos da Misericórdia de Lisboa» in Património Arquitectónio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa, Santa Casa da Misericórdia, 2006, vol. 1, p.157-159.
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Nesta perspectiva, as caçadas seriam manifestações de dilemas que atormentam a alma, pelo que a presença de temas mundanos e violentos parece ter um enquadramento lógico no espaço conventual e uma mensagem bem mais complexa do que se supõe. A simbólica da caçada também parece apresentar variantes interpretativas em função do animal caçado. A caçada ao cervo, por exemplo, pode constituir uma imagem da luta contra a heresia, simbolizada pelos cães e pelos caçadores. Esta ideia foi defendida por Tertuliano (150-225), no De coron. Milit. I. Para este autor, o cristão prudente não devia fugir do martírio, evitando renegar a verdadeira fé12, mas, antes, seguir o exemplo do cervo que sabia morrer dignamente perante os que o perseguiam. Nestes temas de caçadas também surgia, por vezes, uma corça, a qual apresenta um simbolismo mais complexo e associável à Pia Desideria, obra do jesuíta Hugo Hermann. A primeira edição desta obra foi publicada em Antuérpia, em 1624, com gravuras de Boetius Van Blomswert13 e, na tradição dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, incluía inúmeras citações bíblicas do Cântico dos Cânticos, dos Salmos e do Livro de Job. As gravuras ilustravam uma série de provas a que se submetiam duas figuras: uma feminina (a Alma humana) e a outra, um anjo aureolado (o Amor Divino, por vezes assimilado a Cristo). Estas imagens foram empregues em alguns núcleos azulejares, nomeadamente na Casa do Capítulo do antigo Convento de Santa Marta e na Casa da Irmandade da Igreja de Santa Cruz, da Ribeira de Santarém14. Outra fonte de inspiração para a mesma temática foi a obra de Benedictus Van Haeften, Regia via sanctae crucis, publicada em Antuérpia, em 163515. Na azulejaria portuguesa esta figuração surge intercalada com caçadas e ermitas, no claustro do convento da Madre de Deus16. 12 MARTIGNY, Joseph-Alexandre – Dictionnaire des Antiquités chrétiennes, Paris, Hachette, 2002, p.136 13 Esta obra foi considerada por Santiago Sebastián como um dos livros de devoção mais importantes da Contra-Reforma. Cfr. SEBASTIÁN, Santiago – Contrareforma y Barroco, 2ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1985, p. 65. 14 Estes conjuntos foram estudados por MONTEIRO, João Pedro – Os “Pia Desideria”, uma fonte iconográfica da azulejaria portuguesa do século XVIII. Azulejo nº3/7, 1995/1999, p.61-70. 15 SEBASTIÁN, 1985, p. 322-327. 16 De uma outra obra do mesmo Van Haeften, Schola cordis, encontram-se neste núcleo elementos, identificados por João Pedro Monteiro, mas que apesar de provenientes de outra fonte de inspiração coincidem na preocupação simbólica, o caminho e as provas que a Alma humana tem de percorrer, sempre acompanhada pelo seu Esposo divino, Cristo. Cfr. .MONTEIRO, 1995-1999, p.69.
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Caçadas e eremitas, claustro do convento da Madre de Deus. Foto do autor.
Também a cena de caçada ao gamo e à corça deverá ter um significado semelhante ao destes emblemas: uma imagem do Divino, simbolicamente transfigurado pelo imaginário dos místicos medievais. A corça, normalmente de cor branca, está associada a numerosas narrativas cristãs, em momentos onde é patente a intervenção de Deus. Deste modo, os dois animais perseguidos são a alma humana (gamo) e o seu esposo divino (corça) e, tal como na Pia Desideria, no Regia via sanctae crucis e no Schola Cordis, ambos são sujeitos a numerosas provas conducentes à sua união. Outros animais são, também, representados em cenas de caçada nos espaços conventuais. Um dos mais comuns é o javali ou porco selvagem, cujo significado deverá ser diverso do das perseguições ao gamo ou à corça. O porco e o javali eram considerados animais impuros, pois revolvem-se na lama e, por isso, eram usados como símbolo dos pecadores ou daqueles que não eram puros de espírito. O javali possuía, ainda, um outro significado associado à violência, pois é um animal selvagem que devasta a terra17. Nesta perspectiva, a caçada representava a luta que o homem devia travar contra os vícios da ira, da luxúria e da gula. Associando os diversos elementos, podemos ver na perseguição do javali uma parábola moralizadora sobre a qual podiam meditar os eremitas, em que Cristo e os anjos (os cavaleiros), auxiliados pela palavra dos homens piedosos (cães)18, lutavam contra os vícios do homem (javali ou porco). 17 Cfr. Salm. 80, 14 e BARBER, Richard – Bestiary. Woodbridge,The Boydell Press, 1999, p.84-87. 18 Aqui, o cão é associado aos pregadores, pois acreditava-se que a língua deste animal curava as feridas, tal como a palavra dos homens piedosos, pelos seus avisos e exemplos, expunha as emboscadas do demónio e cicatrizava as feridas expostas em confissão. Cfr. BARBER, 1999, p.76.
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No âmbito desta temática, só muito raramente surge o leão, embora este seja o animal mencionado mais vezes nas Escrituras.Tal como no caso do gamo ou da corça, o seu simbolismo pode divergir do que se associa à caçada ao porco selvagem ou javali. O leão é um animal muitas vezes associado a Cristo pois, tal como Ele, também o felino dorme vigilante. É esta a conotação alegórica que se pode estabelecer com a seguinte passagem do Cântico dos Cânticos:“Eu durmo, mas o meu coração permanece desperto” (Cant. 5, 2). De acordo com esta interpretação, a caçada ao leão poderá, de igual modo, associar-se à Ressurreição de Cristo, cuja imagem mais divulgada se encontra presente no tema da luta entre Sansão (a humanidade) e o leão (Cristo)19. Nesta narrativa, justamente considerada uma metáfora da Eucarístia, o cadáver do leão serviu à fixação de uma colmeia, cuja produção de mel alimentou o próprio Sansão. No entanto, a ambiguidade da linguagem simbólica também permite definir outra leitura. Pela sua ferocidade, o leão era visto como uma encarnação do mal contra o qual exortava S. Pedro: “Sede sóbrios e vigiai, pois o vosso adversário, o diabo, como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar (1 Pe. 5,8). A mesma ambivalência simbólica pode ser vista na representação da caçada ao touro. Em S. Mateus este animal pode simbolizar a força de Cristo e do Seu sacrifício, tal como se depreende da leitura do seu Evangelho: “Vede o meu banquete está preparado, abatidos os meus novilhos e animais cevados” (Mt. 22,4). De acordo com esta interpretação, as caçadas a este animal que surgem representadas em espaços religiosos, poderão significar o sacrifício de Jesus. Contudo, se atentarmos na simbólica dos Salmos, o touro também pode representar os inimigos do Homem e, nessa perspectiva, a luta da alma contra
19 CHARBONNEAU-LASSAY, 1997, p. 40. 20 A presença de caçadas não se circunscreve nos espaços religiosos a representações azulejares, encontra-se igualmente em presépios, como o do convento das Necessidades, o do Palácio Nacional de Queluz ou o do Museu de Arte Sacra e Etnologia de Fátima.Também numa colecção particular se encontram duas caçadas, sendo uma delas à avestruz, tema que, por vezes, surge nas representações azulejares. A sua integração no contexto do presépio português do século XVIII não deverá corresponder, simplesmente, a uma questão de moda ou gosto. Parece óbvio que indicia um sentido, uma intenção, próximos das interpretações propostas para os núcleos cerâmicos parietais que preenchem os espaços murários de igrejas e conventos. Também a interpretação avançada acerca do paralelismo entre a caça ao leão e a luta de Sansão tem lugar nos presépios portugueses. Esta presença é assinalada no presépio do convento dos Carmelitas Descalços do Buçaco e tam-
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o vício20: “Rodeiam-me touros em manada; cercam-me touros ferozes de Basan” (Salm. 22,13).
Eremitas Dos temas abordados no presente texto, o mais simples de compreender e mais fácil de enquadrar, simbolicamente, no espaço religioso, é o das representações de eremitas. O significado do tema não parece oferecer dificuldade interpretativa. O eremita ou o religioso que, afastado da comunidade, lê, medita ou contempla, demonstra um comportamento assimilável à conduta no interior do convento21. As representações de religiosos eremitas que surgem nestes espaços costumam estar associadas a figuras que desenvolvem actividades comuns, circunstância que estabelece um contraponto entre duas formas de vida: a religiosa e a profana. São numerosos os exemplos desta temática dual, tal como os existentes nos conventos da Madre de Deus e de São Pedro de Alcântara, em Lisboa22. As figurações de eremitas existentes em painéis azulejares inspiravam-se em gravuras, mas, em relação à identificação das personagens retiradas das fontes gravadas, depois de transpostas para o azulejo, elas mantinham-se no anonimato. As raras excepções que se podem encontrar, são por exemplo, a Igreja da Misericórdia, em Évora, onde as representações das santas Maria Egipcíaca e Taís, aí surgem, inequivocamente, assinaladas. Quando as representações não são identificadas, a questão que se coloca é saber se, a sua integração em programas iconográficos, decorria da importância da figura propriamente dita ou de aspectos estéticos que lhe estavam associados. A esta questão dificilmente se poderá responder hoje e, por esse motivo, ela deverá ser equacionada à medida que se forem identificando fontes subjacentes a núcleos azulejares que documentem a sua aplicação na arquitectura. bém na colecção particular anteriormente referida, parece determinar a existência de uma linguagem simbólica complexa. 21 Acerca do tema dos eremitas cfr. ALMEIDA, Patrícia Roque de –«Apontamentos sobre a iconografia dos Eremitas na azulejaria seiscentista no Entre Douro e Minho». Ciências e Técnicas do Património, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Iª série, vol IV, 2005, p. 261-279. 22 Para o tema dos atributos dos eremitas, cfr. ALMEIDA, 2005 e PAIS, 2006, p.148-150; CARVALHO, Rosa Salema – «A vida gloriosa de São Pedro de Alcântara». Olisipo, Boletim do grupo “Amigos de Lisboa”, II série, nº 20/21, Janeiro/Dezembro 2004, p.60-72.
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Como matéria de reflexão é particularmente eloquente o conjunto que forra os panos murários da Capela de Santo António, no convento da Madre de Deus. De realçar que as mesmas fontes gravadas foram empregues em silhares na escadaria de acesso ao coro da Igreja de Santos-o-Velho, pese embora, sem o mesmo impacto. Dos oito painéis que integram o espaço do convento da Madre de Deus, identificaram-se grande parte das gravuras que lhes serviram de modelo23. Datadas de cerca de 1585-1586, o seu autor foi Johan Sadeler I24 tendo, algumas, a inscrição Marten de Vos inventor. De Raphael Sadeler I são as duas gravuras, datadas de 1598, utilizadas no painel de maiores dimensões que se encontra no local e que representam os Santos Palemon e Simeão Estilita.Todas têm uma legenda na base, mencionando os aspectos não só da representação, mas da própria hagiografia, informações estas que não figuram no revestimento azulejar que forra o espaço, datado do segundo quartel do séc. XVIII. Podemos, assim, identificar a quase totalidade do programa iconográfico e, a partir dele, procurar conhecer a intenção da sua presença no local.
Santo Alfério
Porta da enfermaria
Santo Abraão, o Pobre
Acesso ao claustrim
São João
Santo Henrique
Sala do Presépio
Capela de Santo António
Altar
Santo António São Teodoro
Acesso ao Coro Alto
São Palemon, São Simeão Estilita, São Teobaldo
Acesso ao clausto
Não identificado
23 Não foi possível identificar a gravura que serviu de inspiração ao painel localizado na parede em face ao de São João, contíguo à entrada para a Sala do Presépio. Ainda que nas duas colecções de imagens a que tivemos acesso não surja a que serviu de base à pintura cerâmica, há uma figura retratada de modo semelhante. Assim, poderemos estar perante a representação de Origines. 24 Cfr. The illustrated Bartsch, Johan Sadeler I, 70, Pt. 2, Suppl. New York: Abaris Books, 2003
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Partindo da esquerda, da Sala do Presépio, eixo do espaço articulado em face com o altar de São Francisco de Assis, surge um painel com São João do Egipto, celebrado a 27 de Março25, uma das figuras ascéticas mais proeminentes do seu tempo e que terminou a vida na cavidade rochosa de uma montanha suportando, com sobriedade e estoicismo, a fúria dos elementos. Segue-se Santo Abraão, o Pobre, celebrado a 27 de Outubro, que “com coragem enfrentou a adversidade da fortuna, obediente à Vontade Divina”. Este santo, surge na gravura acompanhado da sobrinha, Maria, também eremita, mas esta personagem não figura na representação azulejar. A última figura, nesta parede, é Santo Alfério, nascido em Itália e celebrado a 12 de Abril. Professou em Cluny e fundou o mosteiro da Trindade de La Cava o qual, rapidamente se tornou uma importante referência monacal na Itália do Sul e na Sicília. Não se trata, portanto, de um eremita, no sentido estrito da palavra, sendo enfatizado, na legenda que acompanha a gravura de Sadeler, o seu papel civilizador, “uma vitória da passagem efémera do astro”, expressão alegórica da grandiosidade que se pode atingir na dimensão fugaz da existência humana. Ladeando o altar, surge Santo Henrique Suso, celebrado a 23 de Janeiro. Deste santo, a legenda da gravura enfatiza as extremas austeridades a que se submeteu, tendo usado durante 16 anos uma cota de malha “de ferro sob o corpo nu”. A figura que dá nome à Capela e cuja hagiografia se encontra reproduzida no revestimento do tecto está, igualmente, presente nos painéis de azulejos que ladeiam o altar dedicado a São Francisco: Santo António, celebrado a 13 de Junho, surge referido como um arauto da virtude cujas obras foram como a “abundância de Deus nos frutos da terra”. Segue-se São Teodoro de Sikion, celebrado a 22 de Abril, profundamente devoto de São Jorge, o qual, como forma de suplício, vestiu uma couraça directamente sobre a pele, usou grilhetas nos pulsos e tornozelos, e transportou por muito tempo uma cruz. Esta iconografia está reproduzida tanto na gravura como nestes azulejos. No painel de maiores dimensões que se encontra neste espaço duas das figuras pertencem a uma série diferente de gravuras, publicadas em 1698, e que integram o Trophaeum Vitae Solitarae. O eremita da direita, encostado a uma árvore, é São Palemon, que na fonte gravada surge acompanhado do seu
25 Uma possível via de investigação será tentar estabelecer uma relação directa entre as datas comemorativas das figuras (5, 11 e 23 de Janeiro; 27 de Março; 12 e 22 de Abril; 13 e 30 de Junho; 27 de Outubro) e celebrações específicas desta casa conventual.
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Santo António, capela de Santo António, convento da Madre de Deus. Fotografia do autor.
discípulo, São Pacómio. É venerado a 11 de Janeiro. Segue-se São Simeão Estilita, celebrado a 5 de Janeiro, na sua cela de pedra. Este foi o único elemento transferido da gravura de Raphael Sadeler I, tendo sido preteridas a figura do sacerdote Bassus, que o alimentou, e a sua representação num dos altos pilares no cimo dos quais viveu longos anos.26. Dos três eremitas principais, somente o da esquerda, São Teobaldo de Provins, ajoelhado junto de um pequeno oratório, foi inspirado numa das gravuras de Johan Sadeler, de 1585-1586 . Filho do Conde Arnoul de Champagne, deixou a vida militar para se tornar eremita em Salanigo, próximo de Vicenza, na Itália, tendo vivido longo tempo “sob as estrelas”. É cele26 Ainda que nas duas colecções de imagens a que tivemos acesso não surja a que serviu de base à pinturas cerâmicas, há uma figura retratada de modo semelhante à do painel de azulejos. Assim, poderemos estar perante a representação de Origines.
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Santos Palemon, Simeão Estilita e Teobaldo, capela de Santo António, convento da Madre de Deus. Fotografia do autor.
São Palemon, Raphael Sadeler I, 1598.
São Simeão Estilita, Raphael Sadeler I, 1598.
São Teobaldo, Johan Sadelr I e Raphael Sadeler I, 1585-1586.
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brado a 30 de Junho.Todos os painéis apresentam uma reserva, na base, onde se encontram imagens associadas à Vanitas (caveira e ampulheta) e às Virtudes: cilícios (humildade); penitências (castidade); látegos (diligência); cruz (paciência), grilhetas (obediência) e livro de oração (liberalidade)27. A presença destas figuras no espaço contíguo ao Coro Alto, na clausura de um convento feminino permite-nos ponderar várias hipóteses. Uma questão que se coloca é o motivo porque não foram escolhidas representações de santas eremitas, pois delas existiam fontes gravadas28 as quais foram empregues noutros conventos, tais como a mencionada Misericórdia de Évora29. Uma hipótese faz depender a escolha das figuras masculinas de aspectos que não se encontravam na iconografia das suas congéneres femininas. Eventualmente poder-se-á determinar um denominador comum às figuras, para além do facto de, na sua maioria, elas serem eremitas, como o misticismo e a profecia associados a São João do Egipto, Santo Henrique, São Teodoro e Santo António. O espaço da capela de Santo António era o local eleito pela comunidade para celebração do Natal, reuniões que aí ocorriam, aparentemente, desde finais do séc. XVI30. O carácter místico desta festa pode ter estado associado à escolha das figuras representadas, mas, o que parece definir mais a existência de um propósito específico na sua selecção é a presença de Santo António, frade franciscano e orago da capela, junto ao altar, pelo lado do Evangelho, e cuja vida é detalhadamente narrada na cobertura deste espaço31.
27 Cfr. ESTEBAN LORENTE, Juan Francisco – Tratado de iconografia. Madrid, Istmo, 1990. (Colección Fundamentos), p. 412. 28 No seu artigo Patrícia Roque de Almeida refere as gravuras de Boetius Adam Bolswert, representando Santa Maria Madalena, Santa Taís, Santa Eufrásia, Santa Eufrosina e Santa Maria Egipcíaca, publicadas sob o título de Silva Anachoretica, em 1612, das quais as duas primeiras foram utilizadas na Misericórdia de Évora. Cfr. ALMEIDA, 2005, p.271. 29 Na igreja de Santa Catarina de Monte Sinai, em Lisboa, as figuras de santas eremitas surgem representadas em pinturas, no transepto, e a sua fonte de inspiração foram as imagens da Sylva Anachoretica Aegypti et Palaestinae de Boetius Adams Bolswert, datada de 1619. Cfr. Igreja dos Paulistas ou de Santa Catarina. Lisboa, Câmara Municipal, 2005. 30 Cfr. PAIS, Alexandre – «Dionísio e António Ferreira e o presépio da Madre de Deus», in O Presépio da Madre de Deus, Lisboa, IPM, 2003, p.33. 31 Também com um propósito definido são as figuras femininas que se encontram no Coro Alto, imagens de mulheres do Antigo Testamento (Ester, Rute, Judite, Raquel, Abigail, Rebeca, Mical) que surgem como prefigurações da Virgem, orago do convento. Sobre a relação dos azulejos com o local Cfr. CAMPOS,Teresa – «Prefigurações marianas no convento da Madre de Deus, em Lisboa». Azulejo nº3/7, 1995/1999, p. 109-116.
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Ainda que não seja possível, em definitivo, estabelecer uma relação directa entre as figuras e o local, parece evidente a existência de uma intencionalidade na sua selecção. Mesmo que, noutras igrejas e conventos, as imagens de eremitas não possuam a ênfase dada às representações que integram a capela de Santo António, no convento de clarissas da Madre de Deus, em Lisboa, importa, ainda assim, reflectir sobre os motivos da sua presença, pois vários níveis de leitura podem ser encontrados nessas imagens. A identificação de outros núcleos azulejares com este tema permitirá conhecer melhor o discurso iconológico subjacente e tornará possível definir o sentido global que presidia a estas representações, permitindo traçar um quadro mais objectivo da mentalidade coeva. O significado dos assuntos tratados não se limita à identificação do seu conteúdo, mas ainda que a interpretação das imagens vá mais além da materialidade dos objectos representados, estes não se esgotam em simples e breves explicações. A este propósito Johannes Molanus, no De picturis et imaginibus sacris liber unus, publicado em 1570, refere acerca das Metáforas e símbolos na arte sacra: “(...) el pueblo no es tan rudo como para no captar el sentido metafórico y traslaticio; capta muchas de esas figuras, aunque ningún doctor le explique su significación. Y si se dan algunas que no comprende y no tiene cerca a algún maestro que se las explique, de ellas habría que determinar lo mismo que de los libros. Porque unos libros se escriben para gente sencilla, y otros para los más instruidos. (...) Y eso ocurre con la mayoría de las imágenes, de modo que lo que constituye su principal significación el pueblo rudo lo comprende o lo puede comprender; en cambio en las cosas accesorias habrá muchas que se añaden más por razón de los más doctos y capaces que por razón de los más rudos. (...)32.
32 Cit. por PLAZAOLA, Juan – Historia y sentido del arte cristiano, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1996, p. 844.
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RESUMO
ABSTRACT Built in 1919-20 to Jorge O’Neil by Raul Lino, the Casa Museu Verdades Faria which stands on Monte Estoril, assembles an interesting range of baroque ashlar-work majolica that illustrate themes of Greek and Roman mythology. This tiles, from unknown origin, stands on several spaces of the building without any concern of iconographic coherence. Some panels, proceeding from the same cycle, were cut and adapted to the various mural spaces. In part due to this “dispersion” the thematic kept unknown till nowadays. The study here developed allowed us to identify several of the episodes represented, most of them from the Metamorphoses by Ovid, as well as to constitute anew one of them, totally destitute and employed on two rooms of the house.
Construída nos anos 1919-20 por Raul Lino para Jorge O’Neil, a Casa Museu Verdades Faria, situada no Monte Estoril, reúne um interessantíssimo conjunto de azulejos barrocos, formando silhares e ilustrando temas da mitologia greco-romana. Estes azulejos, de origem desconhecida, foram colocados em vários espaços do edifício sem qualquer preocupação de coerência iconográfica. Alguns painéis, provenientes de um mesmo conjunto, foram cortados e adaptados aos vários espaços das paredes. Em parte devido a esta “dispersão”, a temática dos azulejos manteve-se desconhecida até aos nossos dias. O estudo aqui desenvolvido permitiu identificar os vários episódios representados, na sua maioria temas das Metamorfoses de Ovídio, bem como reconstituir um dos conjuntos, totalmente desmembrado e aplicado em duas das salas do edifício.
Mitologia greco-romana nos azulejos da Casa Museu Verdades Faria Ana Paula Rebelo Correia*
Construída nos anos 1919-20 por Raul Lino para Jorge O’Neil, a Casa Museu Verdades Faria, hoje Museu da Música1, situada no Monte Estoril, reúne um interessante conjunto de azulejos barrocos, formando silhares e ilustrando temas da mitologia greco-romana. De origem irlandesa, O’Neil idealizou uma casa que evocasse as suas raízes mas que, ao mesmo tempo, se identificasse com o espírito do país em que residia. Tentando responder ao desejo do encomendador, Raul Lino constrói uma casa adossada a uma torre de pedra – Torre de Saint Patrick –, reminiscência das fortificações irlandesas, e utiliza como principal elemento decorativo nos espaços interiores da casa, bem como nalguns revestimentos exteriores, o azulejo, de padrão e de composição figurativa narrativa, criando uma atmosfera de carácter inequivocamente português. Apesar da importância do encomendador da obra e do arquitecto que a construiu, sobre a origem dos azulejos, de finais do séc. XVII até meados do séc. XVIII, nada se sabe, tendo sido, muito provavelmente, retirados de edifícios demolidos. Entre os vários painéis, figurando temática profana e religiosa, destaca-se um conjunto de silhares, de proveniência diversa, colocado em quatro das salas do edifício e ilustrando, como já foi referido, temas da mitologia greco-romana, mais precisamente episódios das Metamorfoses de Ovídio. Durante anos, estes painéis foram observados apenas como um interessante revestimento cerâmico de forte impacto decorativo, inerente à própria textura e policromia cerâmica associada às várias histórias que, como numa banda desenhada, se desenrolam ao longo dos silhares. Nunca houve nenhuma * Investigadora bolseira, FCT. 1 Em 1950 a casa é comprada por Enrique Mantero Belard, que aí vive com a mulher, Gertrudes Verdades de Faria. Em 1974, por testamento, Enrique Mantero Belard deixa a casa à Câmara Municipal de Cascais, para que esta seja utilizada como museu, mantendo o nome de Verdades de Faria. Em 1988, a Câmara Municipal de Cascais instala no edifício o Museu de Música Regional Portuguesa. O edifício é conhecido por Casa Museu Verdades Faria.
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interrogação relativamente à sua temática e ao que realmente representavam. Não tendo sido objecto de qualquer estudo, a sua iconografia permaneceu desconhecida2. Os vários painéis situam-se na parede do patamar da escada do rés-do-chão, na sala dita “das fontes”, igualmente no rés-do-chão, e em duas das salas do 2º andar. Estes azulejos parecem pertencer a cinco conjuntos diferentes que o arquitecto adaptou às paredes da casa segundo a sua imaginação.A maior parte dos painéis foi aplicada sem qualquer coerência iconográfica, muitos deles sendo alvo de vários recortes, para se adaptarem à superfície mural como se se tratasse de papel de parede. Os azulejos mais antigos, realizados nos últimos anos do séc. XVII, início do séc. XVIII, revestem as paredes de uma das salas do 2º andar. Todos eles pertenciam a uma mesma série, formando provavelmente um silhar de grandes dimensões que foi cortado para se adaptar às dimensões do novo espaço. Na outra sala, igualmente no 2º andar, foram colocados painéis provenientes de dois conjuntos, realizados já nos anos 20 do séc. XVIII. Na parede da escadaria os painéis provêm nitidamente de três conjuntos distintos, realizados ao longo do primeiro quartel do séc. XVIII. O interesse por estes azulejos, que conduziu ao seu estudo sistemático, surgiu numa visita ocasional ao edifício, cujo acesso se faz pela sala “das fontes”. Totalmente revestida de azulejos representando fontes de temática mitológica, enquadradas por cercaduras, esta sala revela claramente uma montagem posterior, na qual se “seleccionou” um tema – a fonte – que se utilizou em painéis dispostos uns a seguir aos outros, revestindo as paredes até um terço da sua altura. Num dos painéis, logo à entrada da sala, no espaço que envolve a fonte, vêem-se duas figuras que ilustram um episódio das Metamorfoses: a história de Salmacis e Hermafrodite. Sendo um tema pouco comum, não era por acaso que estas figuras ali surgiam. A sua disposição mostrava que, inequivocamente, faziam parte integrante do painel. De imediato surgiu a questão da existência ou não de figuras mitológicas rodeando as outras fontes, levando-nos a comparar os painéis com fontes e os painéis das outras salas. Esta primeira 2 Estes painéis foram estudados pela primeira vez no âmbito da tese de doutoramento realizada pela autora deste artigo, intitulada Histoires en azulejos: Miroir et mémoire de la gravura européenne. Azulejos baroques à thème mythologique dans l’architecture civile de Lisbonne. Iconographie et sources d’inspiration. Tese de doutoramento, Departamento de Arqueologia et História da Arte, Faculté de Philosophie et Lettres, Université Catholique de Louvain, Outubro 2005.
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abordagem revelou que a maior parte dos painéis que revestem actualmente a sala dita “das fontes” e uma das salas do 2º andar, constituíam um único conjunto, desmembrado para ser readaptado às novas salas a que se destinava.
Azulejos de finais do séc. XVII, início do séc. XVIII O mais antigo conjunto de azulejos de temática mitológica encontra-se, como já foi referido, numa das salas do 2º andar, antiga biblioteca, e hoje uma das salas de exposição do museu. Realizado muito provavelmente nos últimos anos do séc. XVII, estes azulejos são já em monocromia, azul em fundo branco, e formam silhares de 10 azulejos de altura (cercadura incluída). Delimitados por cercadura de dois azulejos, com motivos ornamentais vegetalistas, tendo ao centro um coração, na cercadura horizontal, e representando figuras femininas com uma concha à cabeça, na cercadura vertical, são azulejos de pintura ingénua mas muito expressiva. O artista trabalha essencialmente por pequenas pinceladas, com as quais constrói as formas, joga com claros e escuros para traduzir a textura dos drapeados e evoca as paisagens através de pequenos traços alusivos ao ar e às nuvens, ou conjuntos de folhas que representam os arbustos e árvores. As caras das figuras têm o mesmo tratamento ingénuo, os olhos e boca são apenas evocados por pequeninas pinceladas de azul mais escuro, sendo no entanto expressivos, traduzindo o sentimento próprio de cada uma das situações. Os painéis das quatro paredes ilustram episódios da mitologia greco-romana, quatro dos quais provenientes das Metamorfoses. Os espaços entre portas e janelas foram preenchidos com painéis representando paisagens, provenientes de um outro conjunto sem qualquer relação com os painéis de figuração mitológica. No primeiro silhar, na parede à esquerda de quem entra na sala, vê-se o pastor Páris, sentado, encostado a uma árvore, e recebendo das mãos de Mercúrio uma maçã3. Mercúrio é representado com as habituais asas nos pés e no chapéu, e segura na mão direita o caduceu. Numa árvore, um pássaro parece presenciar a cena. É uma representação do momento em que Mercúrio dá a Páris a maçã da discórdia, episódio que precede o “Julgamento de Páris” e que está na origem da guerra de Tróia. Páris, príncipe troiano, é abandonado 3 Nesta parede, 10 x 18 azulejos.
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Mercúrio e Páris. Painel de azulejos, final séc. XVII Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria - Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
à nascença no monte Ida, porque uma profecia previa que ele seria a causa da queda de Tróia. Acolhido por pastores, Páris torna-se também pastor, desconhecendo a sua verdadeira origem. Por ocasião do casamento de Tétis e Peleu, Éris, deusa da discórdia, zangada por não ter sido convidada, envia uma maçã de ouro e anuncia que a maçã se destina à mais bela das deusas. Júpiter, que não quer ser responsável pela decisão, escolhe o pastor Páris para entregar a maçã. Mercúrio, mensageiro dos deuses, é encarregue de entregar a Páris o fruto de ouro e de levar até ao pastor as três deusas que pretendiam ser escolhidas. Todas prometem recompensar Páris se este as escolher: Minerva promete-lhe glória e sabedoria, Juno oferece-lhe poder e riqueza e Vénus propõe-lhe o amor da mais bela das mulheres, Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta. Páris escolhe o amor da mais bela das mulheres, dá a maçã de ouro a Vénus, rapta Helena e, cumprindo-se a profecia, provoca a guerra de Tróia, durante a qual Juno e Minerva vão apoiar os Gregos contra os Troianos. Este episódio não é contado por Ovídio nas suas Metamorfoses. Faz parte do Diálogo dos Deuses de Luciano de Samósata4, e é minuciosamente 4 Luciano de Samósata, escritor grego do séc. II d.C.
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descrito por Baltasar da Vitoria no seu Theatro dos Dioses de la Gentilidad5. A história do pastor Páris que recebe a maçã de ouro das mãos de Mercúrio e a entrega à mais bela das deusas provocando a guerra de Tróia é um dos episódios da mitologia greco-romana frequentemente representado nas artes plásticas durante o período barroco. Em Portugal, durante os séc. XVII e XVIII, não há praticamente pintura de cavalete de temática mitológica, mas a mitologia está presente na decoração de espaços interiores da arquitectura civil residencial – nos azulejos, estuques e pintura de tectos – bem como em manifestações de carácter efémero. Por exemplo, o episódio do Julgamento de Páris é recuperado quando das manifestações públicas realizadas por ocasião do casamento de D. Pedro II e de Maria Sofia de Neubourg. Representado no arco triunfal realizado pelos ourives, o pastor Páris tem como missão entregar a maçã à mais bela das deusas, que não é Vénus, mas sim a própria princesa Maria Sofia, perante a qual as três deusas se mostravão ali reverentes e obsequiosas reconhecendo as soberanas vantagens que havia da Real pessoa de Sua Magestade6. Com o objectivo de explicar e divulgar o sentido dos episódios representados neste arco, Pascoal Ribeiro Coutinho publica, no mesmo ano (1687) um texto no qual explica a história de Páris e o programa iconográfico do arco triunfal7. No painel de azulejos que reveste a parede em estudo, apenas se vê Páris e Mercúrio. As três deusas não estão presentes. Na realidade, Raul Lino, ou por desconhecer a iconografia, ou por já ter recuperado o conjunto em fragmentos, ou por outros motivos por enquanto desconhecidos, colocou Páris e Mercúrio numa parede e as três deusas na parede em frente, retirando ao conjunto todo
5 VITORIA, Padre Baltazar da – Teatro de los dioses de la gentilidad, Madrid: Imprenta Real, 1673. 6 Sobre estas festas existe um manuscrito ilustrado, conservado na Biblioteca da Ajuda que é uma espécie de “caderno de rascunho” dos preparativos para as festas, reunindo desenhos dos arcos triunfais e outras decorações:TINOCO, Luís Nunes – A Phenix de Portugal Prodigioza em seus nomes D: Maria Sofia Isabel Raynha Sereníssima, & Senhora Nossa Em cuja Augustissima Entrada Por Artes Liberaes Em curiozos Anagrammas Se mostra felizmente renovada a Idade de Ouro do anno de 1687. Ao muito Alto & muito Poderozo Snor. D. Pedro II. Rey de Portugal O. C. Luís Nunez Tinoco Ulyssiponense. Ver CORREIA, Ana Paula Rebelo, texto nº 25 do Catálogo Arte Efémera em Portugal (…) p. 87-94. Consultar igualmente: BRAZÃO, Eduardo – O casamento de D. Pedro II com a princeza de Neuburg (documentos diplomáticos), Coimbra: Coimbra Editora, 1936. BORGES, Nelson Correia – A Arte nas festas do casamento de D. Pedro II, Porto: Paisagem Editora, 1984. 7 COUTINHO, Pascoal Ribeiro – Arco Triunfal, Idea e Allegoria sobre a Fabula de Paris em o Monte Ida, cuja ficçam há de servir para o Arco Triunfal que a Rua dos Ourives do Ouro celebra, em applauso dos felicíssimos Desposórios das Augustas & Lusitanas Magestades, Lisboa, 1687
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Vénus, Minerva e Juno. Painel de azulejos, final séc. XVII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria - Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
o seu significado narrativo. Não há dúvida alguma de que as três figuras femininas faziam parte deste painel e completavam o episódio do “Julgamento de Páris”. No levantamento que estamos actualmente a realizar8, encontrámos num tecto de finais do séc. XVII, início do séc. XVIII, uma representação idêntica, revelando a existência de uma fonte gráfica comum, utilizada pelo autor dos azulejos e pelo autor da pintura do tecto. Nesta pintura vê-se Páris e Mercúrio acompanhados pelas três deusas que, nos painéis de azulejos, foram separadas do grupo e colocadas noutra parede. A comparação de temas em suportes diferentes mas realizados na mesma época é muito importante para o estudo das iconografias. Os painéis de azulejo, que, pela sua própria estrutura, permitem, como um puzzle, várias reconstituições, adaptações, mutilações, têm sido alvo das mais diversas adaptações. Se o conhecimento dos temas se perder ao longo dos tempos, o que é o caso para a mitologia, os painéis acabam por ser fragmentados e as várias figuras que compõem um episódio surgem em painéis isolados, perdendo-se 8 No âmbito do pós-doutoramento está a ser feito o levantamento e estudo da mitologia greco-romana no património integrado – estuque – azulejo – pintura – na arquitectura civil residencial barroca.
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totalmente a noção de “espaço narrativo” que presidia à concepção de origem do painel. Este facto será menos frequente no caso de painéis de temática religiosa cristã, que ilustram episódios facilmente identificáveis e presentes no imaginário do espectador. Por exemplo, é pouco provável que numa representação da “Adoração dos Magos” se separem os Magos do resto da composição para se colocarem isolados numa parede. No caso de episódios de temática mitológica este fenómeno de separação dos vários protagonistas de uma história é mais frequente e está particularmente bem representado nos azulejos colocados na casa Verdades Faria. Relativamente às “tipologias iconográficas” é importante não esquecer que, embora circulem centenas de gravuras entre os séc. XVI e XVII, muitos dos textos que vão ser ilustrados por essas imagens foram, na sua génese, inspirados por outras imagens. Tanto Ovídio como Luciano de Samósata não inventaram de raiz as histórias que contam, inspirando-se também no imaginário visual que os rodeava. No caso do Julgamento de Páris, as gravuras que serviram de modelo tanto ao painel de azulejos referido como à pintura do tecto, perpetuam um modelo já milenário, presente num mosaico romano do séc. II d.C.9, no qual Páris é representado sentado numa pedra, encostado a uma árvore, tendo de um lado Mercúrio, que lhe traz a maçã da discórdia, e vendo-se em frente as três deusas, Juno, Minerva e Vénus. Continuando nesta sala, o segundo painel, a seguir ao “Julgamento de Páris”, representa uma figura masculina segurando um dardo, e uma figura feminina que, com um gesto das mãos, parece chamá-la.10. Duas figuras infantis aladas, personificações do amor, completam o grupo. É uma representação de Vénus impedindo Adónis de partir para a caça, um dos episódios das Metamorfoses de Ovídio (Met. X, 519-559). Ovídio conta que, tendo sido atingida pela seta de Cupido,Vénus apaixona-se por Adónis. Com medo que este corra perigo na floresta,Vénus protege-o dos animais selvagens, e tenta impedi-lo de ir caçar. Adónis não cede e acabará por morrer atacado por um javali. Este episódio é abundantemente ilustrado na pintura durante os séculos XVII e XVIII. Jean Lepautre realiza uma série de gravuras alusivas a episódios das Metamorfoses de Ovídio, que serviram de modelo para o interessante conjunto de painéis de temática mitológica do Palácio do Marquês de Tancos, em Lisboa, 9 Proveniente de uma casa na Turquia, actualmente conservado no Museu do Louvre. 10 10 x 16 azulejos.
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Vénus impedindo Adónis de partir para a caça. Painel de azulejos, final séc. XVII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria - Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
atribuídos a António de Oliveira Bernardes11, e entre os quais se destaca justamente o episódio de Vénus impedindo Adónis de partir para a caça12. A parede seguinte ilustra dois episódios igualmente provenientes das Metamorfoses: Céfalo dá a Prócris o dardo que lhe será fatal (Met.VII, 795-866) e Apolo perseguindo Dafné (Met. I, 452-524)13. Num fundo de paisagem evocado de modo quase gráfico por alguns arbustos, Prócris, vestida com uma ampla túnica, de peito descoberto, oferece a Céfalo um dardo e um cão de caça. Simbolizando a união entre os dois, uma figura infantil alada segura sobre ambas as cabeças duas coroas de louro. Ovídio conta que o caçador Céfalo recebe de Prócris dois presentes que esta recebera de Diana: um cão mais rápido que todos os outros e um dardo que nunca falhava o alvo. Mas Prócris é informada por um fauno de que Céfalo lhe era infiel. Segue-o às escondidas e esconde-se atrás de um arbusto para o observar. Ouvindo um barulho, Cé11 MECO, José “Há que preservar os azulejos do Palácio do Marquês de Tancos”, in História, Março, 1981. 12 CORREIA, Ana Paula Rebelo - “Palácios, Azulejos e Metamorfoses”, in Oceanos, Azulejos Portugal e Brasil, nº 36/37, Outubro 1998/Março 1999, p. 179-208. 13 10 x 24 azulejos.
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Céfalo dá a Prócris o dardo que lhe será fatal Painel de azulejos, final séc. XVII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
Apolo perseguindo Dafné. Painel de azulejos, final séc. XVII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
falo lança o dardo e de imediato mata Prócris. Este episódio, revelando a influência das gravuras de Jean Lepautre, é separado do seguinte por uma fonte, ingenuamente representada. Numa paisagem igualmente simples, Apolo, de braços esticados e capa ao vento, corre atrás de Dafné, parcialmente metamorfoseada em loureiro: as mãos e os cabelos são ramos cheios de folhas. Segundo Ovídio, Cupido é o responsável por este amor, uma vez que lançou uma seta de ouro a Apolo, tornando-o um apaixonado, e uma seta de chumbo a Dafné, destinada a recusar qualquer amor. Deste modo, Dafné tenta fugir mas, sentindo que perde forças, pede auxílio ao pai, divindade fluvial, que a transforma em loureiro. O episódio dos amores de Apolo e Dafné, contado por Ovídio com grande diversidade e minúcia de pormenores, vai ter um grande impacto junto dos artistas, sendo um tema corrente na poesia, pintura e escultura e particularmente apreciado nos séc. XVII e XVIII. A história, na evocação da paixão entre deuses e humanos e na fantasia na transformação de um humano em vegetal, é um tema que se presta a uma tradução visual curiosa e dinâmica, com Dafné progressivamente transformada em árvore, fugindo a Apolo. Em 1714, no convento de Santa Clara, a eleição da abadessa Margarida de Portugal é festejada com uma peça de teatro na qual se conjugam alegorias cristãs e episódios da fábula ovidiana, entre os quais a história de amor de Apolo e Dafné. A descrição do cenário é minuciosa, especificando que “…se há de ir llebantando debaxo de
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los pies de Dafne, muy dispacio un laurel, y le há de hir encubriendo pouco a pouco de modo que pueda dizir las coplas que se le siguem sin estar de todo formado en laurel.”14 Na última parede, frente ao painel representando Mercúrio e Páris, encontra-se o fragmento do Julgamento de Páris, representando as três deusas, Juno, Minerva e Vénus, já referidas15. Os azulejos colocados nesta sala foram muito provavelmente realizados entre 1690 e 1700. Constituíam na origem um conjunto importante, posteriormente mutilado e disperso, e do qual alguns painéis foram recuperados e adaptados a um novo espaço nos anos 1919-20, sendo deste modo preservados. É um núcleo do maior interesse porque são raros os painéis de temática mitológica do período de transição séc. XVII-XVIII que chegaram aos nossos dias. O terramoto de 1755 destruiu grande parte das casas nobres, onde o azulejo tinha um papel preponderante como elemento decorativo dos espaços interiores, e muitas vezes exteriores (muretes de jardim, floreiras, lagos e fontes, etc). O estudo da mitologia-greco romana, e sobretudo dos episódios das Metamorfoses de Ovídio nos programas decorativos destinados à arquitectura civil residencial barroca, tem vindo a revelar-se fértil, podendo já afirmar-se, sem dúvida alguma, que as representações mitológicas são um dos temas bem presentes nos revestimentos de azulejos da época16. Se, no século XVII, temos alguns exemplos dispersos de temática mitológica, destacando-se o notável conjunto azulejar do Palácio Fronteira, cujos painéis permanecem no local para o qual foram concebidos17, é sobretudo no início do século XVIII que se desenvolvem programas decorativos coerentes iconograficamente. Os silhares de azulejo são dispostos em séries temáticas relacionadas com os espaços que revestem: a música para a sala da música, cenas galantes e de refeição na sala de jantar, mitologia na sala de estar ou no salão nobre, entre outros. Quase todos os conjuntos ilustrando temática mitológica que chegaram aos nossos 14 Fiesta da Zarzuela com que el Real convento de Santa Clara de Lisboa celebra a felis election de su excelentíssima Prelada Margarita de Portugal, Lisboa, of. de Miguel de Menescal, 1716. Uma nota manuscrita na folha de rosto indica que o autor da peça é Diego Correa de Sá,Visconde de Asseca. 15 10 x 18,5 azulejos. 16 Veja-se CORREIA, Ana Paula Rebelo – Histoires en azulejos, mémoire e miroir de la gravure européenne (…). 17 Idem, Ibidem, p. 123-162, cap. «Les panneaux à thème mythologique du Palais Fronteira».
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dias foram realizados a partir de 1720, o que levaria a pensar que é nessa altura que o gosto pela mitologia se desenvolve especificamente. Na realidade, nos azulejos conservados nesta sala da Casa Verdades Faria, encontramos já esta temática, com episódios das Metamorfoses de Ovídio exactamente iguais aos que, cerca de 20 anos mais tarde, vamos encontrar noutros edifícios, como o Palácio dos condes de Óbidos, onde vemos uma representação idêntica do episódio de Prócris dando a Céfalo o dardo fatal, episódio que, cerca de 1740, é novamente reproduzido num dos painéis do Palácio Belmonte. Do mesmo modo, o “Apolo e Dafné” da Casa Verdades Faria, foi realizado a partir da mesma fonte gráfica que servirá de modelo, anos mais tarde, às representações de “Apolo e Dafné” visíveis nos azulejos do palácio dos condes de Óbidos, do palácio Centeno, ou do palácio do marquês de Olhão18.
Céfalo dá a Prócris o dardo que lhe será fatal Painel de azulejos, 1º quartel séc. XVIII Palácio do Conde de Óbidos – Lisboa
Céfalo dá a Prócris o dardo que lhe será fatal Painel de azulejos, meados séc. XVIII Palácio Belmonte - Lisboa
Graças à preservação do conjunto azulejar seiscentista da casa Verdades Faria, cuja origem permanece desconhecida, sabe-se não só que a partir de finais do séc. XVII já havia programas iconográficos de temática mitológica, mas também que até cerca de 1740 as mesmas gravuras circulam nas oficinas de azulejaria, servindo de modelo para os pintores que as adaptam ao gosto da época, nomeadamente através da gramática ornamental das cercaduras. 18 Idem, Ibidem. p.
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Um outro conjunto de azulejos de grande interesse, contemporâneo dos azulejos aqui em estudo, e igualmente importante para o conhecimento dos programas iconográficos de temática mitológica no período de transição séc. XVII-XVIII, encontra-se na escadaria do palácio do duque de Lafões (Lisboa). Reúne vários painéis seiscentistas, da autoria de Gabriel del Barco, ilustrando igualmente episódios da mitologia greco-romana. Também de origem desconhecida, estes azulejos foram colocados nas paredes da escada já no séc. XIX, o que permitiu a sua preservação. Realizados em finais do século XVII, reproduzem gravuras ilustrando vários episódios da história de Diana, representados cerca de 25 anos mais tarde no revestimento de azulejos do palácio dos condes de Óbidos em Lisboa19.
Azulejos do primeiro quartel do séc. XVIII Nas outras salas da casa Museu Verdades Faria, foram colocados, como já se referiu, vários painéis que representam igualmente episódios das Metamorfoses. Escritas por Publius Ovidus Nasão no início da nossa era, as Metamorfoses são uma compilação de fábulas organizada em quinze livros que contam duzentas e trinta e uma histórias de metamorfoses nas quais deuses, homens e elementos da natureza convivem e se transformam, numa harmonia cósmica própria ao pensamento clássico. O livro começa com a criação do mundo e termina na época em que Ovídio viveu, o século de Augusto, com a transformação do próprio imperador em astro. Durante a Idade Média, o texto de Ovídio é copiado e por vezes ilustrado, nos conventos, permanecendo uma obra acessível apenas a um grupo restrito de letrados. Ao longo dos séculos, a fábula ovidiana presta-se a vários tipos de leitura alegórica. Recuperada ao longo da Idade Média20, lida, comentada, moralizada21, traduzida em várias línguas e ilustrada, a partir do século XV 19 CORREIA, Ana Paula Rebelo – Histoires en azulejos, mémoire e miroir de la gravure européenne (…), pp. 170-198. 20 Ver sobre este assunto LECOCQ, Françoise – “Europe ‘moralisée’ imitation et allégorisation” in D’Europe à Europe, le mythe d’Europe dans l’Art et la culture de l’Antiquité au XVIIIème siècle, Actes du Colloque, Collection Caesarodunum XXXIbis, Tours, Centre de Recherches A. Pigagniol, 1998, p. 263-276. 21 Ibidem, p.263-264. A obra intitulada Ovide moralisé, é um texto anónimo, redigido provavelmente no início do séc. XIV por um monge da Borgonha.
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a obra Metamorfoses tem uma divulgação à escala europeia graças à circulação de obras impressas, que rapidamente são enriquecidas pela ilustração22. Deste modo, sai de uma esfera elitista, torna-se acessível aos artistas, impondo-se rapidamente como verdadeiro manual do saber mitológico. As histórias de amor entre deuses e humanos, implicando paixões, raptos e todo o tipo de metamorfoses, satisfazem a sensibilidade humana e são interpretadas segundo a mentalidade das épocas. A imagem que ilustra os textos constitui-se a pouco e pouco como uma tradução visual da versão escrita. Para além dos livros ilustrados surgem colecções de estampas soltas que representam vários episódios das Metamorfoses, sendo rapidamente utilizadas como modelo de trabalho para os artistas. Em 1557, é impressa em Lion, na oficina de Jean de Tournes, uma edição intitulada Métamorphose d’Ovide Figurée, ilustrada por Bernard Salomon. Esta edição, cujo sucesso será enorme, vai ser o ponto de partida para a divulgação à escala europeia de diversas versões ilustradas das Metamorfoses. As estampas de Salomon vão circular e ser copiadas por outros artistas, nomeadamente Virgil Solis, não só como ilustração de outras edições das Metamorfoses, mas também como ilustração de outras obras23. Estas primeiras edições vão fornecer dezenas de imagens, estabelecendo uma imagem paradigmática de cada um dos episódios das Metamorfoses. No séc. XVI, em Itália, os pintores de majólica recorrem às gravuras de Salomon como modelo para a decoração das suas peças.24 Até ao início do século XVIII, circulam na Europa centenas de gravuras, soltas ou como ilustração, de diversos artistas que ilustram episódios das Metamorfoses. Em Portugal, desde finais do século XVII são conhecidas as gravuras de Goltzius, Jean Lepautre, de Passe, entre muitos outros, servindo de modelo para a representação destes temas nos painéis de azulejo25. Para abordarmos agora os painéis de temática mitológica da segunda sala do 2º andar, temos de regressar ao rés-do-chão, à actual sala de entrada, 22 Entre 1497 e 1800 foram impressas na Europa cerca de trezentas edições ilustradas, reunindo trinta mil gravuras sobre madeira, cobre ou água-forte. Veja-se HUBER-REBENICH, Gerlinde, «L’iconographie de l’Enlèvement d’Europe, d’après les éditions des Métamorphoses d’Ovide parues jusqu’en 1800» in D’Europe à l’Europe, (…), p.163-172. 23 Por exemplo, a Emblemata de Nicolas Reusner, impressa em 1581, recupera várias gravuras da edição Bernard Salomon. 24 JESTAZ, Bertrand – «Les modèles de la majolique historiée. Bilan d’une enquête», in Gazette des Beaux-Arts, VI, T. LXXIX, Abril 1991, p.215-240. 25 CORREIA, Ana Paula Rebelo – Histoires en azulejos, mémoire e miroir de la gravure européenne (…).
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Sala dita “das fontes”. Revestimento de azulejos, 1º quartel séc. XVIII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria - Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
totalmente revestida com painéis representando fontes variadas, todas elas representando temas da mitologia. Este conjunto azulejar, hoje essencialmente decorativo, constituía na sua origem um espaço narrativo ilustrando vários episódios das Metamorfoses. Como já foi referido, os painéis foram cortados, e as fontes foram separadas de todos os episódios figurativos que o arquitecto colocou numa das salas do segundo andar. Iconograficamente este conjunto é muito interessante, e não se conhece actualmente nenhum revestimento colocado no local de origem com uma concepção tão rica, conjugando de modo tão coerente o tema da representação – episódios da mitologia – com elementos de carácter decorativo escolhidos dentro da mesma temática – as fontes – todas elas ilustrando episódios alusivos ao mundo dos deuses. O autor deste conjunto, realizado por volta de 1720, baseou-se integralmente em gravuras, quase todas do séc. XVII, havendo algumas do séc. XVI. Apesar de utilizar modelos gráficos, conseguiu “inventar” uma composição verdadeiramente original, inserindo os protagonistas dos vários episódios das Metamorfoses num enquadramento de fontes, todas elas representado cenas mitológicas, e constituindo um elemento que separa os episódios uns dos outros e, ao mesmo tempo, assegura a sua continuidade. Para a realização das fontes, o pintor copiou minuciosamente duas séries de gravuras da autoria de Jean Lepautre,
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reunindo cada uma seis peças, intituladas Fontaines publiques et jets d’eau, e Fontaines et jets d’eau à l’italienne26. O primeiro painel, à esquerda de quem entra na sala, representa duas figuras sentadas à beira de um lago, no meio do qual se destaca uma fonte imponente, constituída por divindades marinhas e tendo como elemento central uma representação de Leda e o cisne. As duas figuras sentadas à beira do lago são, como já foi referido, uma representação de Salmacis e Hermafrodite, já em fase de metamorfose (Met., IV, 285-388). As duas têm apenas três pernas, simbolizando a sua fusão num só corpo. Este painel, cuja iconografia era totalmente desconhecida, foi restaurado nos anos 20 (séc. XX), inventando-se um novo rosto para Hermafrodite. Como o restaurador desconhecia a história, deduziu que duas figuras abraçadas só podiam ser um homem e uma mulher, refazendo a cabeça de Hermafrodite com um “visual” masculino e moderno, completamente despropositado no âmbito da sua verdadeira iconografia. Hermafrodite é um jovem, filho de Hermes e de Afrodite (Mercúrio e Vénus). Um dia banhase num rio onde vivia Salmacis, uma das ninfas de Diana, que de imediato se apaixona por ele. Salmacis aproxima-se do jovem e abraça-o com tal intensidade que ambos os corpos se fundem num só, dando origem a um ser de sexo indefinido. O painel foi realizado a partir de duas gravuras: uma gravura de Virgil Solis, ilustração de uma edição das Metamorfoses publicada em 1563, da qual o pintor copiou Salmacis e Hermafrodite, e uma gravura de Jean Lepautre representando a fonte com Leda e o cisne. À direita de quem entra na sala, um outro painel tem igualmente um episódio das Metamorfoses: Apolo e Coronis. Neste painel vê-se Apolo, em pé, segurando um arco e uma flecha. Aos pés tem um dos seus atributos, a lira. Apolo vira a cabeça para um pássaro que parece falar-lhe. No chão jaz o corpo de Coronis, com uma seta espetada no peito. É uma ilustração do momento em que uma gralha branca diz a Apolo que a princesa Coronis lhe é infiel. Furioso, Apolo amaldiçoa a gralha transformandoa num pássaro negro, pega no arco e mata Coronis (Met., II, 606-620). Este episódio não foi separado da fonte que fazia a ligação com o episódio seguinte. É uma fonte representando Neptuno, deus dos mares, em pé, de tridente na mão, em cima de uma taça, simbolizando o carro marinho puxado por cavalos 26 PRÉAUD, Maxime – Inventaire du Fonds Français. Graveurs du XVIIème siècle, Jean Lepautre, t. 12, Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1999. Estas gravuras foram igualmente reproduzidas nas fontes dos painéis de azulejo do Palácio Centeno (Lisboa) e nas fontes dos painéis de azulejo de uma das salas do Palácio do marquês de Olhão (Lisboa), conjuntos azulejares realizados cerca de 1720.
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Sálmacis e Hermafrodito: Painel de azulejos, 1º quartel séc. XVIII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
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SĂĄlmacis e Hermafrodito. Gravura de Bernard Salomon, 1563
Fonte representando Leda e o cisne. Gravura de Jean Lepautre, sĂŠc. XVII
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Apolo e Coronis. Painel de azulejos, 1º quartel séc. XVIII Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril.© Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
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que constituem o suporte da fonte. O painel foi adaptado ao espaço, de modo a revestir o canto arredondado da parede, e os azulejos com a representação da fonte foram recortados em tiras para poderem revestir a superfície arredondada. Mais uma vez o pintor ceramista recorreu a uma gravura quinhentista, da edição de Virgil Solis, representando Apolo e Coronis e a uma gravura de Jean Lepautre, modelo para a realização da fonte de Neptuno. Voltando novamente ao 2º andar, podemos imaginar o que seria na origem este monumental conjunto iconográfico de episódios das Metamorfoses separados uns dos outros por reproduções das fontes de Jean Lepautre. O pintor revela um domínio perfeito da pintura cerâmica, não só na facilidade com que utiliza diferentes imagens para realizar uma nova composição, mas também no modo como transpõe a gravura para a pintura cerâmica adaptando pequenas gravuras às dimensões da arquitectura. Os silhares desta sala têm 12 azulejos de altura, e ilustram dois episódios da fábula ovidiana: a história de Píramo e Tisbe; e o encontro de Mercúrio e Herse.
Píramo e Tisbe. Painel de azulejos, 1º quartel séc. XVIII. Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
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Ocupando duas paredes, e passando de uma para a outra como se fosse um revestimento de papel mural, vêem-se dois momentos da história de Píramo e Tisbe (Met., IV, 55-166). Perto de uma fonte um leão bebe água. Uma figura feminina, Tisbe, vestida com uma túnica ampla, parece fugir. Na cena seguinte, num fundo de paisagem simples,Tisbe, sentada, espeta uma espada no peito e aponta com a mão esquerda para uma árvore. A seus pés jaz o corpo de Píramo, apenas coberto por um pano. Duas figuras infantis aladas assistem à cena e choram, manifestando a sua tristeza. Uma delas segura na mão um lençol. Segundo Ovídio, as famílias de Píramo e Tisbe opunham-se ao amor entre os jovens que apenas se encontravam às escondidas. Tendo combinado encontrar-se fora dos muros da cidade, perto da fonte. Tisbe chega em primeiro lugar e enquanto espera vê um leão que procura água para beber. Assustada, foge e esconde-se atrás de um arbusto, sem se aperceber que um pedaço do seu véu ficara preso num ramo. Ao chegar, Píramo encontra o tecido no chão e vê o leão a fugir. Convencido de que o animal matara Tisbe, Píramo, desesperado, mata-se. Entretando Tisbe sai do seu esconderijo, regressa ao local do encontro e vê o corpo de Píramo. Pega na espada espeta-a no peito e morre. A representação aqui ilustrada reproduz uma gravura que segue fielmente o texto de Ovídio segundo o qual, antes de morrer,Tisbe fala com a árvore, uma amoreira branca, e diz-lhe que a partir daquele momento a árvore vai conservar para sempre a memória do acontecimento, dando frutos vermelho escuro, da cor do sangue dos amantes. É, segundo Ovídio, a explicação para a cor escura das amoras. Este texto, dos mais sentimentais e intensos da fábula ovidiana, inspirou ao longo dos séculos escritores, poetas e pintores. É nele que Shakespeare vai buscar a sua história Romeu e Julieta, bem como a inspiração para o Sonho de uma noite de verão. Do mesmo modo, Lope da Vega (1562-1635), uma das fontes constantemente citadas por Baltazar da Vitória no seu Teatro de los Deoses de la Gentilidad, consagra-lhe um dos seus sonetos27 e em 1618, D. Luís de Gongora escreve a sua Fabula de Píramo y Tysbe, publicada em 1636 por Christoval Salazar Mardones28. No palácio dos condes de Óbidos, em Lisboa, um dos painéis ilustra igualmente o amor trágico de Píramo e Tisbe. Reproduzindo uma mesma gravura, o painel é idêntico ao da Casa Museu Verdades Faria. 27 VEGA, Lope Félix da – Rimas de Lope de Vega Carpio. Aora de nuevo añadidas. Com el nuevo arte de hazer comedias deste tiempo. Madrid, 1609, p. 9. 28 MARDONES, Christoval Salazar – Illustration e defensa de la Fabula de Piramo y Tysbe, Imp. Real, 1636.
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Na parede seguinte, fazendo parte do mesmo conjunto que integrava fontes e episódios das Metamorfoses, está representada a história de Mercúrio e Herse (Met. II, 708-832), realizada a partir de uma gravura da edição quinhentista de Virgil Solis. Por último, ainda na mesma sala, foram colocados, como silhar, dois painéis representando Vénus com um espelho e Vénus punindo o amor. São fragmentos de uma representação mais vasta e é difícil saber se integravam uma cena narrativa ou não. Não faziam parte do conjunto em estudo, ilustrando episódios das Metamorfoses. Nas paredes do primeiro patamar da escada (rés-do-chão), foram colocados três painéis com cenas da fábula ovidiana, provenientes de três conjuntos distintos e todos eles revelando artistas diferentes. O painel mais interessante, pela iconografia e dimensões, é a representação do Rapto de Europa29 (Met., II, 836-875). Num fundo de paisagem marítima, a princesa Europa é representada em amazona, sentada no dorso do touro. Com a mão direita segura o chifre do animal, com a mão esquerda acena para as amigas que ficaram na margem. Europa é representada de cabelo comprido, com um vestido de drapeado amplo, cujo decote é pontuado ao centro por uma jóia. À volta do peito tem uma grinalda de flores que se prolonga para o pescoço e cabeça do touro. Na margem, as amigas assistem à cena. Indicando que se trata de uma história de amor, figuras infantis aladas, pequenos cúpidos de arco e flecha na mão, integram o cortejo. Segundo Rapto de Europa (pormenor). Painel de azulejos, final séc. XVII. Ovídio, Júpiter apaixona-se pela Proveniência desconhecida. Casa Museu Verdades Faria – Estoril. jovem Europa, filha do rei Agenor. © Câmara Municipal de Cascais. Fotografia de Carlos Sá.
29 Sobre o Rapto de Europa veja-se D’Europe à l’Europe, le Mythe d’Europe dans l’Art et la Culture de l’Antiquité au XVIIIème siècle. Actas do colóquio realizado no ENS, Paris, em 1997. Paris, Centre de Recherches Piganiol, 1998.
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A fim de a seduzir, metamorfoseia-se em touro branco, conseguindo deste modo raptá-la. Este painel é muito provavelmente ainda de finais do século XVII e reproduz a tipologia iconográfica divulgada pelas edições ilustradas por Bernard Salomon e conhecida em Portugal nas oficinas dos pintores de azulejo. Um dos alegretes da quinta da Bacalhoa, em Azeitão, representa, no seu revestimento de azulejos quinhentistas, o Rapto de Europa, realizado a partir de uma gravura de Salomon30. No século XVIII este episódio é dos mais representados no âmbito dos temas mitológicos. Encontramos painéis praticamente idênticos, realizados cerca de 1715-20, em várias casas nobres de Lisboa: na Casa dos Caracóis da Esperança, no palácio dos condes de Óbidos, no palácio do marquês de Tancos, ou ainda no palácio Centeno31. Todos estes painéis são realizados a partir do mesmo modelo gráfico. Os outros dois painéis representam respectivamente Diana e Calisto (Met., II, 442-453) e Mercúrio preparando-se para matar Argus, o gigante dos cem olhos (Met., I, 668-721). A representação de Diana sentada, ao lado de Callisto, é na realidade uma representação de Júpiter, metamorfoseado em Diana, a fim de poder aproximar-se e seduzir uma das suas ninfas, Callisto. A gravidez de Callisto é descoberta por Diana que, furiosa, transforma a ninfa em ursa. É um tema que encontramos representado noutros painéis de azulejo, do primeiro quartel do séc. XVIII, nomeadamente no palácio dos condes de Óbidos e no palácio do marquês de Olhão. O último painel de temática mitológica deste conjunto preservado na casa Museu Verdades Faria, é um fragmento de um episódio de Mercúrio e Argus. Apenas se conservou a figura de Mercúrio, representado de costas, com uma capa e um chapéu e segurando um punhal de grandes dimensões. Ao lado, adormecido contra uma àrvore, vêse Argus com o corpo coberto de olhos que, segundo a lenda, nunca se fechavam todos ao mesmo tempo. Mercúrio é encarregue de libertar Io, uma ninfa que Juno transformara em vitelo e pusera à guarda de Argus. Mercúrio consegue adormecer o gigante com a música da sua flauta aproveitando para o decapitar.
30 CORREIA, Ana Paula Rebelo, “Contribution à l’étude des sources d’inspiration des peintres d’azulejos portugais du XVIème siècle” in Revue des Archéologues et Historiens d’Art de Louvain, T. XXV, 1992. 31 CORREIA, Ana Paula Rebelo – “Palácios, azulejos e Metamorfoses” (…).
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A identificação dos temas destes painéis reveste o maior interesse, no âmbito do estudo da temática mitológica como decoração dos espaços interiores da arquitectura civil barroca. Ao restituir a um conjunto de azulejos dispersos a sua coerência iconográfica e a sua função de origem de espaço narrativo, estamos a descobrir a existência de iconografias até então desconhecidas e reveladores do gosto e mentalidade da época em que foram realizadas. Esta recuperação de conjuntos dispersos permite também contrariar uma tendência para se pensar que aquilo que não chegou aos nossos dias e que por esse motivo desconhecemos, pura e simplesmente não existiu, tirando muitas vezes conclusões erradas. Na realidade, e o azulejo é disso um excelente exemplo, muitos revestimentos desapareceram, foram retirados do local de origem, colocados posteriormente em espaços totalmente diferentes, sofrendo amputações e adaptações diversas, o que torna praticamente impossível restituir a realidade dos revestimentos azulejares em determinadas épocas. Temas como a mitologia, pouco presentes no conhecimento e memória, foram no século XX frequentemente ignorados e, por esse motivo, dispersos. No caso específico dos azulejos colocados na Casa Verdades Faria, se apenas se tivessem conservado os painéis representando fontes, nunca se poderia ter reconstituído o importante núcleo de azulejaria barroca de temática mitológica aqui apresentado, e perceber que os azulejos hoje na sala do rés-do-chão e os azulejos de uma das salas do 2º andar, formavam, na origem um só conjunto, talvez dos mais preenchidos do ponto de vista iconográfico e decorativo que chegaram aos nossos dias. Os elementos aqui apresentados não abrangem a globalidade da investigação, sendo apenas um dos patamares de um estudo mais vasto. O interesse pela mitologia greco-romana e pelas edições das Metamorfoses, e a sua “tradução” nas artes decorativas aplicadas ao património integrado, tem ser entendido numa abrangência mais extensa, inscrevendo-se no contexto sóciocultural da época em que se insere.
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RESUMO
ABSTRACT Portuguese jewellery reaches, in the nineteenth century, one of its periods simultaneously more diversified and, still, less studied. In this field, portrait has a relevant role, mostly because of the corporal use of the jewel. It constitutes an echo of elite distinct fashions, being much more sumptuous and differentiated in feminine representations, from Oporto, Lisbon as well as from the countryside. From Royal Family iconography to commons, the jewel assumes an important transversality. Element of social-economic status recognition, the jewel incorporates equally, in the nineteenth century, a clear esthetical message. If, in the third of the century, we assist to a permanence of neoclassic decorative motifs, soon emerge romantic tendencies, which recuperate enamels and reuse new precious stones and other materials.
A joalharia portuguesa alcança, no séc. XIX, um dos seus períodos simultaneamente mais diversificados e ainda menos estudados. No contexto da investigação desta área temática, o retrato possui um papel relevante, sobretudo atendendo à utilização corporal da jóia. Constitui um eco das distintas modas das elites, sendo mais aparatoso e diferenciado no caso das representações femininas, tando de personagens portuenses, lisboetas como até da província. Da iconografia da Família Real à dos estamentos populares, a jóia assume uma transversalidade social digna de nota. Elemento de afirmação de um estatuto social e económico, a jóia incorpora igualmente, no século XIX, uma clara mensagem estética. Se, no primeiro terço da centúria, se assiste a uma persistência dos motivos decorativos neoclássicos, logo emergem as tendências românticas, que recuperam os esmaltes e reutilizam em força novas gemas e outros materiais.
OURIVESARIA POPULAR: Arte, sociabilidade e património das gentes do Minho1 Gonçalo de Vasconcelos e Sousa*
À memória de Pedro Homem de Mello
A realidade do universo rural minhoto é indissociável de algumas manifestações culturais que lhe são muito características. As festas e romarias, os cantares e as danças, bem como as feiras, transportam-nos para um povo em festa, tendo por pano de fundo uma sensibilidade religiosa apurada, forma – ou uma das formas – de que o povo minhoto se socorreu para exorcizar as agruras de uma labuta de sol-a-sol. O traje e a ourivesaria fornecem o tónus a esta realidade, e com as suas cores garridas inundam de alegria esta região do País, em que o verde da paisagem remata este forte ciclo cromático. É neste quadro bucólico, mas simultaneamente de festa, que devemos enquadrar o uso do ouro pelas gentes minhotas, sendo especialmente de salientar as jóias femininas. As peças de ouro marcam o quotidiano das mulheres desta região de uma forma permanente, sendo indissociáveis também dos grandes momentos das suas vidas, nomeadamente os de cariz religioso. Antoninho pede à mãe Relógio d’ouro p’ró bolso, Qu’eu também peço à minha Cordão d’ouro pr’ó pescoço2
* Professor Auxiliar com agregação da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa; Agregado na especialidade de História da Arte pelo Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1 Este texto resulta da comunicação apresentada em 18 de Janeiro de 2006, na Academia Portuguesa da História. 2 Quadra popular, publicada em COQUET, Eduarda – Cadeira d’ouro. [S.l.: s.n.], 1994, p. 31.
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Estes hábitos arreigaram-se nos usos e costumes do Minho, mas também, de uma forma geral, na grande faixa litoral a norte de Aveiro, prolongando-se pela Galiza. Neste universo geográfico, destaca-se o Alto Minho, estando igualmente muito presentes na região do Douro Litoral. Os ranchos folclóricos encarregaram-se de manter vivas estas tradições, mas a comunidade científica encontra-se particularmente carente de estudos que sistematizem e referenciem, em termos antropossociológicos e artísticos, os contornos do uso das jóias pelas mulheres destas regiões, nomeadamente do Alto Minho3. Tem sido menos fácil encontrar elementos – nomeadamente iconográficos – para o estudo destas práticas no período anterior ao final do século XIX, época em que as norteadas românticas começaram a valorizar, registando, estas vertentes comportamentais das gentes do Minho. De 1904 data a publicação do texto do etnógrafo Rocha Peixoto referente às Filigranas4, trabalho de investigação e de registo de grande qualidade, ainda no presente um verdadeiro paradigma dos estudos científicos nestes domínios.
1 – FUNÇÕES DA JÓIA Para se perceber a importância da peça de ouro na realidade minhota, importa primeiramente registar algumas das distintas funções que a jóia pode alcançar5, salientando-se:
3 Neste momento (Dez. 2006), a Dr.ª Rosa Maria dos Santos Mota encontra-se já a realizar pesquisas para a sua dissertação de Mestrado em Artes Decorativas na Universidade Católica Portuguesa, sob nossa orientação e subordinada ao tema do uso do ouro e à sua conjugação com o traje no Alto Minho, nomeadamente na região da Ribeira Lima. 4 Vd. PEIXOTO, Rocha – As filigranas. In PEIXOTO, Rocha – Obras. [S.l.]: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1967, vol. 1, pp. 262-312. 5 Vd., sobre este item, COSTA, Amadeu; FREITAS, Manuel Rodrigues de – Ouro. Cadernos Vianenses. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo. 32 (2002), pp. 181-191; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia feminina e o seu significado social e económico em Portugal. Museu. Porto: Círculo Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 13 (2004), pp. 17-20; SOUSA, Gonçalo Mesquita da Silveira de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal no século XIX. Porto: [s.n.], 2006. Plano de aula apresentado no âmbito das provas de habilitação ao título de agregado, na especialidade de História da Arte, pelo Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. pp. 5-7.
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1.1. – Reserva de valor Em épocas de grande oscilação monetária e em que era importante possuir algo seguro, a aquisição de peças em ouro constituía uma forma de reserva de valor, passível de ser utilizada em alturas de maiores dificuldades financeiras. Registe-se igualmente que não são apenas os estamentos populares aqueles que empenhavam as jóias por motivos económicos; as grandes casas da nobreza do reino também o faziam – aliando-as às peças de prataria –, sendo esta situação especialmente visível no século XIX, no que nos foi dado estudar6. Em toda a zona norte de Portugal, aliás como em todo o País, os bens em ouro eram igualmente transmissíveis por morte, pelo que os podemos ver indicados em testamentos7 e nos inventários de personagens femininas8, e não só9. 6 A generalidade das grandes casas da nobreza do reino encontrava-se em permanente situação de dificuldade económica, especialmente no fim do Antigo Regime (MONTEIRO, Nuno Gonçalo – O crepúsculo dos Grandes (1750-1832). [S.l.]: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,1998). Nas distintas ocasiões em que tivemos oportunidade de pesquisar por entre papéis relacionados com objectos móveis, pertencentes aos seus arquivos particulares (vd., a propósito, SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia portuguesa dos séculos XVIII e XIX à luz da documentação. Museu. Porto: Círculo Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 3 (1995), pp. 115-186), pudemos observar como era relativamente comum empenharem peças de joalharia de grande valor económico, de forma a poderem suprir necessidades mais ou menos prolongadas de cabedais. 7 No seu testamento (11 de Outubro de 1872), Maria Soares de Mesquita, lavradeira, moradora no lugar de Bouças, freguesia de Darque,Viana do Castelo, lega à sobrinha Maria, filha da irmã Rosa de Mesquita, da freguesia de Darque, «(…) e um cordão d’ouro que ella testadora tem do vallor de quinze mil reis» e «(…) deixa a dicta sua sobrinha Joanna, o seu cordão de ouro do vallor de vinte e quatro mil reis = (…) e mais à sobrinha Ana, filha do irmão Manuel, «um fio de contas d’ouro e uma estrela do mesmo metal de que ella testadora faz uso (…)».Vd. Arquivo Distrital de Viana do Castelo, Registo de Testamentos, L.º 63, f. 36-38. 8 Nos bens de Joana Maria, falecida sem testamento em 5 de Fevereiro de 1793 e moradora no lugar de Rãns, freguesia de Refontoura, concelho de Felgueiras, encontra-se presente uma certidão assinada por António Luís de Andrade (f. 7), «perante mim apareceo Manuel Pereira do lugar das Rais freguesia de Refonteira deste concelho de Felgueiras a pezar húm houro cuijo he o seguinte hum par de botois douro que pezam novecentos e oitenta 980 / húm par de brincos douro piquenos que pezam mil e sesenta_____160».Vd. Arquivo Distrital do Porto, Judicial, Cota: ADP/JUD/TCFLG/442. 9 Na avaliação dos bens de João Sampaio, da freguesia de Idães, concelho de Felgueiras, que morreu em 26 de Abril de 1793, surge presente a seguinte avaliação: «Pezão húns brincos de ouro e hú par de botois de ouro – e hú fio de contas miúdas e lizas e hú laço tudo peza seis mil e coatro centos e coarenta reis____ 6440/ Joze Vieira (?)». Vd. Arquivo Distrital do Porto, Judicial, cota: ADP/JUD/TCFLG/556, f. 8; ou nos bens deixados por António Ferreira Mendes, morador no lugar do Souto, freguesia de S.Vicente, Felgueiras, que morreu em 3 de Junho de 1794, «Ouro/Item dice o inventariante ficou do defunto em poder d’Anna Custodia sobrinha da mulher deste hum laço d’ouro com pedras que o mesmo defunto lhe emprestou/Item hum cordão também d’ouro/Item hum par de brincos do mesmo mandei o fizesse pezar e juntase certidão» (não surge certidão). Vd. Arquivo Distrital do Porto, Judicial, cota: ADP/JUD/TCFLG/441, f. 9.
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1.2. – Função simbólica – o poder social Nas comunidades rurais – e mesmo urbanas de matriz rural – do Minho, o proprietário agrícola não exteriorizava apenas as suas posses através da quantidade de carros de milho, de pipas de vinho que produzia ou dos caseiros que lavravam as suas terras; as mulheres da sua família teriam de reflectir a pujança das suas propriedades e a realidade dos seus rendimentos. Nesse sentido, as peças de ouro desempenhavam um papel matricial na representatividade social e económica local, exteriorizada principalmente em festas ou reuniões públicas, em que a população em geral podia constatar, através da visualização dos objectos preciosos, a medida da respectiva matriz socioeconómica. Em festas, procissões e romarias, em que os trajes regionais se misturavam com ladainhas, pais-nossos e avé-marias, o olho dos fregueses reverenciava a pujança das posses da lavradeira rica, ou até da mulher remediada. As mordomas simbolizavam este espírito na sua expressão mais veemente, hoje talvez exacerbada por ocasião das Festas da Senhora da Agonia, que em Agosto trazem arrobas de ouro pelas ruas de Viana do Castelo.
1.3. — Função estética e artística Conquanto o trabalho do ouro popular das lavradeiras minhotas não se possa considerar como de extraordinária qualidade – ou seja, não se trata de jóias eruditas –, as peças de ouro chegam a transmitir uma linguagem tipológica e decorativa antiga, com raízes nos trabalhos realizados neste metal na época proto-histórica10. Os elementos gravados e relevados são maioritariamente de natureza fitomórfica, o que é compreensível, não somente por tal constituir um tema recorrente na ourivesaria portuguesa, como igualmente por representar elementos do quotidiano. Aliás, os elementos vegetalistas possuem uma dimensão plástica e uma tal variedade que muito favorece a sua utilização em superfícies metálicas de maior ou menor dimensão.
10 Tal se pretendeu demonstrar in MACEDO, M. Fátima – Raízes do ouro popular do noroeste português. Porto: Instituto Português de Museus; Museu Nacional de Soares dos Reis, 1993. Vd. o exaustivo estudo das jóias castrejas efectuado por SILVA, Armando Coelho Ferreira da – A Cultura Castreja no Noroeste de Portugal. Paços de Ferreira: Citânia de Sanfins, 1987.
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3 – CARACTERÍSTICAS DA OURIVESARIA POPULAR A partir da segunda metade do século XIX, a realidade da ourivesaria popular passa a ser alvo de investigação por parte de etnógrafos e estudiosos da cultura portuguesa.Tal sucedeu com Joaquim de Vasconcelos, que, em 1908, a propósito da presença portuguesa na Exposição Nacional do Rio de Janeiro, alude a estudos que havia feito em 1879 e 1880 para a elaboração de um livro sobre trajes populares, para o qual tinha realizado diversas fotografias de peças de ourivesaria. No texto que escreve, realiza algumas anotações já numa perspectiva memorialista, aludindo a técnicas quase abandonadas11. As fotografias dos exemplares publicados referenciam «Os oiros das mulheres do Minho», apresentando tipologias como a dos grilhões, argolas e brincos, borboleta12, coração e cruz de Malta. Menciona igualmente um broche, que era «usado ainda em 1879, indistintamente por homens e mulheres»13.
3.1. – As peças de aparato e as outras jóias Na ourivesaria minhota, o balanço do uso de peças de ouro faz-se entre peças de grande porte, ou peças de aparato, e os exemplares de menor dimensão ou então de uso quotidiano. Ambas se afirmam em distintos momentos do ano ou da vida da mulher, obedecendo a diferenciações sociais e económicas verificadas nos próprios estamentos populares, e marcando a importância das peças em ouro enquanto factor social. As peças de vulto implicavam mais alguns recursos económicos, conquanto a sua expressão visual era apenas de aparato, visto pesarem relativa-
11 Por exemplo, «N.º 13 Grilhão mais grosso que o n.º 7, com medalha pendente, e ao centro um Senhor pregado na cruz; dos lados a Virgem e S. João; o fundo era folheta metálica luzente, cor de purpura./A parte superior, espécie de sobreceu tinha ao centro Nossa Senhora da Conceição e rematava com a coroa real./A technica d’esta peça, já difficil de encontrar em 1879, apresenta o lavor de piorrinhas, variante preciosa da filigrana popular, que tem ido desapparecendo das peças de ouro e de prata, pois é muito mais difficultoso do que a filigrana de fio tirado, puramente.».Vd.VASCONCELOS, Joaquim de – Notas sobre Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1908, p. 206. Agradeço a menção deste trabalho ao Dr. Manuel Engrácia Antunes. 12 A propósito da borboleta, afirma «(…) de filigrana (também as vi antes de 1879, de folha de ouro, orlada so de filigrana) que se usava pendente de um cordão fino. A borboleta é apenas, na forma, um coração invertido; e, como tal, tem significação symbolica.».Vd. Idem, Ibidem, p. 236. 13 Vd. Idem, Ibidem, p. 236.
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mente pouco14. De facto, com esta máxima se concretiza a velha intenção portuguesa de com poucos recursos fazer parecer muito, situação igualmente aplicável noutros casos da joalharia portuguesa – nomeadamente a dos séculos XVIII/XIX, com pedras brancas e outras fazendo parecer jóias de grande valor –, da talha e do azulejo. De entre estes exemplares de grandes dimensões, salientaríamos as grandes cruzes de Malta15, pendendo de grossos grilhões de uma ou mais voltas, as cruzes de canevão de grandes dimensões16, os corações filigranados, as Nossas Senhoras da Conceição, também conhecidas como Nossas Senhoras do Caneco, ou ainda as grandes gramalheiras com colar de malha muito leve, especialidade das oficinas gondomarenses. A visualização destas peças de invulgares dimensões era de grande impacto, aliás como ainda hoje, quando usadas em manifestações públicas. Existem também, dentro da tipologia do vulgar cordão, os exemplares de grande dimensões e formados por elos um pouco maiores; mesmo esses, apesar de ocos, não deixariam de fornecer uma imagem dos fortes recursos económicos da lavradeira. Nas peças femininas de menor dimensão, poderíamos aludir às diversas zonas corporais ou funções a que se destinam, referenciando algumas das tipologias utilizadas17:
14 Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [s.d.], p. 38. 15 Como a publicada no nosso trabalho SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A cruz de Malta na joalharia portuguesa. Filermo. Porto: Assembleia Portuguesa dos Cavaleiros da Ordem Soberana e Militar de Malta. 5-6 (1996-1997), pp. 114. 16 Apesar de não ser relativo ao Minho, referenciamos um postal referente a lavradeiras de Ul, em Oliveira de Azeméis, com grandes cruzes de canevão, que trazem ao peito. Vd. a sua reprodução in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – ob. cit., p. 40. 17 Para as tipologias e sua visualização, vd. COSTA, Amadeu; FREITAS, Manuel Rodrigues de – Ouro popular português. Porto: Lello & Irmão, 1992; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, dir. – Reais jóias no Norte de Portugal. Porto: [s. n.], 1995, secção de imagens; SOUSA, Ana Cristina – Ourivesaria estampada e lavrada: uma técnica milenar numa oficina de Gondomar. Porto: [s.n.], 1997. 2 vols. Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.Vol. 2 (apêndice iconográfico); COSTA, Amadeu; FREITAS, Manuel Rodrigues de; ABREU, Alberto A. – Ouro de Viana: Exposição. 2.ª ed. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2002.
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a)
Objectos para as orelhas, com brincos à Rei e à Rainha; argolas carniceiras; argolas circulares ou em crescente; arrecadas de bolota ou de cacho de uva; brincos de chapola; brincos compridos com cachos de uva ou bolotas; brincos de chapa com motivos fitomórficos ou com âncora, entre outros;
b)
Objectos para o colo: cordão, grilhão, trancelim; pendentes em coração de chapa ou filigranado; pendente em libra; figas; Nossas Senhoras da Conceição; pendentes em cruz barroca, de Malta ou de canevão; pendente em borboleta, pendente em sequilé e em laço ou laça; gramalheiras; etc.
c)
Objectos para braços, nomeadamente pulseiras;
d)
Anéis.
Estas peças eram provenientes essencialmente de três núcleos de produção: Porto18 e progressivamente Gondomar19; e Póvoa de Lanhoso, com as oficinas das freguesias de Travassos20, Sobradelo da Goma e Oliveira. Não é despiciendo, ainda nos séculos XIX e XX, contabilizar os núcleos de Guimarães21 e de Braga, que contavam ainda com diversas oficinas, para além de outras de menor dimensão dispersas por algumas terras do Minho e Douro Litoral.
18 Vd., por exemplo, SOUSA, Ana Cristina – ob. cit. O grande espólio de moldes desta oficina, apesar de se encontrar em Gondomar, é proveniente de uma oficina do Porto, segundo informações dos actuais proprietários. 19 Vd. PEIXOTO, Rocha – ob. cit.; 1.ª Exposição de ourivesaria artesanal: Gondomar. [S.l.: s.n., 1973]; OLIVEIRA, Camilo – O concelho de Gondomar: apontamentos monográficos. Porto: Livraria Avis, 1979, vol. 4, pp. 103-158; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Ourivesaria em Gondomar: elementos para a sua História nos séculos XVIII e XIX. O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 22 (11) (Nov. 2003), pp. 337-340; Idem, Aspectos da Ourivesaria de Gondomar no século XX: subsídios para o estudo de uma arte em renovação. O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 23 (7) (Jul. 2004), pp. 199-202. 20 O Museu do Ouro de Travassos tem feito uma grande esforço de chamada de atenção para as ancestrais técnicas, destacando-se, por exemplo, o estudo de SOUSA, Maria José Costa de Carvalho e – Museu da Ourivesaria de Travassos – Valorização de uma actividade artesanal. In I Colóquio Português de Ourivesaria: actas. Porto: Círculo Dr. José de Figueiredo, 1999, pp. 249-262. 21 Vd. CARVALHO, A. L. de - Os mesteres de Guimarães. [S.l.: s.n.], 1939. Vol. 1, nomeadamente pp. 113-124.
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Retrato de senhora da família dos marqueses de Alorna, apresentando jóias em pérolas e pedraria e com um medalhão oval preso ao vestido, finais do séc. XVIII (vendido na leileoira Palácio do Correio-Velho, em Dezembro de 1996).
Retrato representando D. Ana Correia Leite de Almada, dos Condes da Azenha, pintado por Roquemont (in Júlio Brandão, O pintor Roquemont, extratexto entre pp. 20-21).
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Retrato, a óleo sobre tela, representando a viscondessa de Menezes, D Carlota Emília de Mac-Mahon Pereira Guimarães, pintado em 1859 por seu filho, o pintor visconde de Meneses. A titular apresenta o retrato de seu marido, o 1.º Visconde, ao peito (antiga colecção do Dr. Ricardo do Espírito Santo Silva, vendido na leiloeira Palácio do Correio-Velho, em 6 de Dezembro, s/ind. ano).
Retrato de casal desconhecido atribuído a Roquemont, década de 1840 (colecção particular).
No Alto Minho, e atendendo aos dados de que dispomos, era especialmente apreciada a ourivesaria de Travassos, sobretudo em Viana, onde não havia, praticamente, ourives feitores. Contudo, outros núcleos produtores estariam sempre representados no quotidiano das gentes minhotas através do fenómeno das feiras. Conquanto não se possua um conhecimento muito preciso e detalhado sobre a realidade dos ourives feirantes, estes desempenharam um importante papel na circulação dos objectos de prata e de ouro. Em relação a estes últimos, ainda há poucas décadas os seus vendedores eram uma presença muito expressiva nas feiras portuguesas. E a explicação era perceptível, visto a feira ser, por excelência, o local de venda de produtos agrícolas e animais. Com o dinheiro fresco e a perspectiva de entesouramento em mente – e adorno, também –, logo os homens e as mulheres estariam receptivos para o seu dispêndio nos objectos de ouro.
3.2. – Técnicas, metais e outros materiais Os trabalhos metálicos em análise são habitualmente em ouro, recorrendo a diversas técnicas de decoração, como as da filigrana (uso de fio, trabalhado em Portugal de forma algo distinta em Gondomar e em Travassos22), da esmaltagem (esmaltes são substâncias vitrificáveis, de diferentes tonalidades cromáticas e com distintas formas de aplicação, podendo também ser usadas, tal como a anterior, na prataria), da estampagem (com processo manual ou mecânico); ou técnicas de feitura, como a de embutir (obtenção de formas ocas e abauladas), a de canevão (obtenção de uma estrutura oca) ou a de fundição de areia (transfurar uma chapa utilizando cinzéis ou buris, seguindo um desenho previamente elaborado no metal)23. Em termos de pedraria, assistimos ao recurso a gemas de pouca importância, como as turquesas, quase sempre substituídas pelos vidros azuis-claros ou os vermelhos, a fazer lembrar rubis. As jóias eram contudo, na sua maioria, quase apenas de ouro, numa ideia de pureza de materiais. Esta ideia contrabalançava uma certa oposição à jóia erudita, destinando-se aos estamentos
22 Sobre as distintas terminologias referenciadas em Travassos e Gondomar relativamente à filigrana, cfr. PEIXOTO, ob. cit., pp. 262-312. 23 Sobre estas técnicas, vd. SOUSA, Ana Cristina – Metamorfoses do ouro e da prata: a ourivesaria tradicional no Noroeste de Portugal. Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 2000.
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mais elevados da população – a nobreza e a burguesia. A cor, fundamental em algumas peças, era possibilitada pelo uso do esmalte, com os brancos, os azuis de diversos tipos – mais escuros ou mais claros – e o preto. Encontramos referência ao uso do verde, mas em termos muito menos significativos. A qualidade dos esmaltes era também diferenciada, chegando, em algumas peças, a ser quase ingénua e de fraca qualidade. No entanto, era importante para dar vida às peças de ouro, quebrando a monotonia do amarelo do metal.
4 – ANTROPOSSOCIOLOGIA DA OURIVESARIA POPULAR DO MINHO 4.1. – Por terras da Ribeira Lima24 Terras fartas, ricas produções agrícolas, boas cabeças de gado e, nos aglomerados populacionais de maior monta, o comércio, permitiram que a sociedade civil e religiosa das diversas terras do Vale do Lima encontrasse nos metais preciosos, materializados nas mais diversas tipologias de peças de ourivesaria, uma forma de expressão de poder. Os tesouros das pratas e jóias desta região, de cariz privado no espírito da sua constituição e acumulação, e de dimensão pública aquando da exteriorização ocasional que lhes é conferida pelos seus fruidores, concorrem para a missão da ourivesaria enquanto agente do fausto e actriz das sensibilidades sociais. Todos os estamentos sociais participam desta dimensão do «precioso», se bem que com cambiantes distintas. De facto, a posse das jóias é apanágio dos diversos grupos da população, pelo papel sociológico do ouro enquanto representação simbólica dos vários ciclos naturais e sociais da vida. Ao evocarmos as regiões de Portugal tradicionalmente associadas ao uso de jóias nos trajes populares, a zona de Viana e o Vale do Lima não poderiam ser esquecidos. A partir do ouro exibido pelas mordomas nas festas populares, até às ricas peças que adorna(ra)m as senhoras das casas nobres da
24 Extraído, com adaptações, de SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Tesouros da Ourivesaria no Vale do Lima: breve esboço. In AFONSO, José Ferrão, coord. – Vale do Lima: Memória, sentimento, situação. Ponte de Lima:Valima, 2002, pp. 47-51.
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Miniatura da viscondessa da Regaleira, D. Ermelinda Allen Monteiro de Almeida (1768-?), com diversas jóias em diamantes (colecção da Casa de Vilar d’Allen, Porto).
Pormenor do retrato de D. Lucrécia Júlia Doroteia Teixeira de Figueiredo, pintada por Almeida Santos, em 1848 (colecção da Casa do Casal de S. Nicolau, em Cabeceiras de Basto).
Retrato de Manuel de Freitas do Amaral, senhor da Casa de Sezim, em Guimarães, com destaque particular para o alfinete de gravata em flor (colecção particular).
Retrato do conde da Estrela, Joaquim Manuel Monteiro, com diversas insígnias e corrente, com pendente (paradeiro desconhecido).
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região, poderíamos elencar uma plêiade de tipologias de jóias demonstrativas da importância da zona no cômputo da joalharia de Viana25. As referências ao «ouro de Viana» justificam-se mais pela riqueza do uso na zona do que propriamente pela produção local, já que estamos convencidos que seriam os centros produtores do Porto, Braga, Guimarães e sobretudo Travassos a abastecer as concorridas feiras da região, como se aludiu supra. Fatos de namorar, de Mordoma, de domingar são expressões reveladoras da importância de uma conjugação sociológica entre o traje e as peças de ouro26. A afirmação da riqueza da mulher minhota, com particular destaque para a da região de Viana, evidencia esta ligação secular e acentua a importância deste metal na região. Cordões, trancelins, gramalheiras, grilhões, contas redondas ou ameloadas enfiadas em algodão, servem de suporte a uma larga variedade de pendentes, sejam eles pendentes-relicários, corações, cruzes de canevão, laços (ou «laças», na versão popular), pendentes em forma de cruz de Malta ou de libra emoldurada , borboletas e Senhoras do Caneco, formam um conjunto que pende gloriosamente dos peitos das mulheres de posses da região. Brincos à Rei e à Rainha, argolas ou brincos de chapa complementam o cenário aurífero, assumindo simbologias próprias, que os séculos foram sedimentando e o devir dos tempos poderá dar, aos poucos, um destino diferente. A jóia assume, nesta região, uma importante missão social e um significado particular consoante a época da vida da mulher. Existe uma grande preocupação em brindar momentos especiais com peças de ouro. A jóia adquire, pois, um papel igualmente simbólico a nível dos sentimentos e da própria essência da mulher; envolvem-se aqui perspectivas artísticas, sociológicas e psicossociológicas, que conferem a esta realidade uma densidade digna de nota. Cenário particularmente espectacular do uso da jóia no vale do Lima tem lugar nas Festas da Senhora da Agonia, em Viana do Castelo. O sol de Agosto convida à alegria dos trajes, reforçados pela presença, quase à compita, do ouro das lavradeiras. O tesouro vem ao peito; por vezes, juntam-se os oiros de várias pessoas, em jeito de representação de uma Família. Como recorda o escritor da Ribeira Lima, Conde de Aurora, em 1948, na revista Ourivesaria Portuguesa: 25 Vd. o elenco estabelecido em COSTA, Amadeu; FREITAS, Manuel Rodrigues de – Ouro. Cadernos Vianenses. ob. cit, pp. 181-191. 26 Sobre este assunto, vd. COSTA, Amadeu; FREITAS, Manuel Rodrigues de – Trajar e ourar. Cadernos Vianenses.Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo. 32 (2002), pp. 171-179.
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«Deus vos salve, artistas, artistas da terra, de Gondomar e de Famalicão, da Póvoa de Lanhoso, de todo o Entre-Douro-e-Minho, do grande empório do Porto e suas cercanias! E a vós também, Senhoras, lindas mulheres do alfoz de Viana (...), mulheres do mais deslumbrante trajo da terra, Senhoras Conservadoras do mais lindo e rico Museu do Trajo Popular do Entre-Douro-e-Minho, do mais belo e opulento Museu de Arte da Ourivesaria: Mulheres de Viana!». Quem quiser observar a riqueza das mulheres da região, basta deslocar-se às festas e romarias que, de Junho a Setembro, inundam cidades, vilas e lugarejos da Ribeira Lima e, de resto, um pouco por todo o Alto Minho – e não só; ao peito, trazem a riqueza de suas avós e os acrescentos que os tempos foram possibilitando às mulheres locais. E, no acto de ourar, as mulheres assumem a plenitude das tradições das suas maiores, facto que os ranchos folclóricos ajudam a manter em plena vigência na actualidade.
4.2. – Uma leitura do uso do ouro no baixo Minho Um dos estudos mais interessantes da antropossociologia do ouro alguma vez publicado em Portugal pode ser encontrado no trabalho de Eduarda Coquet «Cadeia d’ouro», reportando-se a uma recolha de depoimentos sobre diversos aspectos relacionados com a utilização de peças de ouro pelas mulheres no baixo Minho. Nele se tratam temas como os motivos para a compra e a venda das jóias, os modos de dádiva e de devolução de peças, a situação económica das utilizadoras de jóias, os momentos e rituais para a respectiva oferta e uso, bem como a importância, para a mulher, do recurso aos objectos preciosos de adorno27. É neste enquadramento que se valorizam os testemunhos vivos, aludindo a estas várias questões. Por exemplo, no que diz respeito a peças de ouro muito utilizadas, como os brincos: «Ouro nunca tibe não senhora. (…). Isto de brincos é costume antigo, são irgolas, tinha umas maores mas troquei-as porque andaba sempre cum elas, eram muito pesadas e cumprei estas mais pequeninas», dizia Teresa, 71 anos28. Ou, segundo Maria Vieira, 69 anos, «as argolas… mas
27 Vd. COQUET, Eduarda ob. cit, 1994. 28 Id., ibidem, p. 28
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óspois era mais tarde q’and’elas fossem aí nos 10 anos ou p’ra cima, 15 e que quem tibesse posses cumpraba e punha-los, quem num tibesse posses andaba cum o que tibesse… quem resorbe tudo é a mãe». Para Rosa Fernandes, 81 anos29, «Sempre tibe estes brincos à marchanta desde qu’era moça, ganhei-os eu a serbir na laboura» Outra tipologia fundamental para as mulheres minhotas era o cordão, apresentando-se relatos sobre as circunstâncias do seu uso. Segundo Teresa de Sousa, 48 anos, «A mais noba quando casar leba este cordão que ela ó domingo já me pede sempre p’ra lebar. À semana ando eu cum ele po dentro»30; ou para a supra referida Maria Vieira, «…e a minha mais belha tem o cordão que le deu o pai e depois ela era muito bideira pedia-me p’ra deixá-la criar coelhos ou ia comprar coelhos e ia bender e despois do dinheirinho que juntasse, cumprou tamém uma gargantilha e uma pulseira e anéis e eu lá le deixaba criar e ela cumprou essas coisas»31. A propósito do uso do traje e do cordão, esta última acrescenta ainda «Tinha um lenço de merino cor de laranja e às felores, tamém ao domingo gostaba sempre de o trazer, trazia o lenço, uma belusa branca, e depois trazia os cordões da minha mãe, punha-os todos pelo peito, ocupam o peito. Ora tinha uma peça, ora tinha uma estrelinha, uma estrelinha tamém grandinha, ora eu punha os cordões todos, com o lenço de merino, uma saia preta, ora já sabemos, eu era fraca, qu’inda hoje sou, mas qu’ando punha o ouro todo, chamabam-me rainha, aí bem’a rainha… intraba por a igreja a dentro…»32. O cordão não era apenas um elemento de adorno; representava igualmente, como se foi aludindo ao longo desta comunicação, uma forma de reserva de valor, que podia ser empenhado, como refere Rosa Esteves, 82 anos: «A minha mãe tinha ouro, cordões tinha dois, mas depois precisou e impenhou um numa mulherzita e ela despois fugiu e a minha mãe ficou sem o cordão, ficou só c’o outro que tinha uma medalhita»33; ou então ser vendido perante dificuldades surgidas pelas agruras da vida, como menciona Maria Josefa, 68 anos: «Este cordão qu’a minha mãe tinha, gastou-o comigo q’ando meu aleijei, queimei-me, e o
29 Vd. COQUET, Eduardo, ob. cit., p. 31. 30 Id., ibidem, p. 33. 31 Id., ibidem, p. 34. 32 Id., ibidem, p. 45. Chama-se a atenção para a confirmação, através deste depoimento, da importância do ouro como facto de expressão social e da relevância que se dava ao uso dos objectos de ouro. 33 Id., ibidem, p. 59.
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meu pai tamém se aleijou num braço. A minha mãe era tecedeira, teciamos pano e depois eu queimei-me na lareira. E nessa altura bibia-mos muito mal, e dá-se o caso qui ela num tinha, e a minha mãe bendeu o que tinha. Ela trouxe sete saotes ós q’adrados de castorina e trouxe muita roupa do enxoval boa, e bendeu tudo e o cordão foi igual, bendeu p’ra me tratar…»34; facto a que também se refere Antónia Leite, 76 anos, cuj’ «(…) o cordão, a minha mãe bendeu p’ra sustento do corpo dos bibos»35. Mais afortunada se revelou Amélia Fernandes, 81 anos, que «Nunca empenhei ouro, só bendia q’ando estaba estragado e p’ra trocar por outro»36.
Conclusão A ourivesaria popular, sentimento e adorno, constitui uma das mais intrínsecas manifestações do povo minhoto. Espelho de alegrias e de tristezas, manifestação do ser social e da expressão individualizada das mulheres desta região, as peças de ouro envolveram-se com o íntimo das populações, com os seus anseios e as mais profundas aspirações. Presença indissociável de festas e romarias, os cordões, os corações, as cruzes, entre tantas outras tipologias de peças, materializam a alegria do povo do Minho, não podendo ser esquecidas enquanto reserva de valor e expressão dos gostos que os ourives passavam ao metal, criando a peça. Nesse sentido, é importante o surgimento de estudos mais profundos sobre a ourivesaria popular das distintas zonas do Minho, abarcando as várias e complexas questões de que se rodeia, envolvendo a História da Joalharia, a Antropologia, a Economia e a Sociologia desta região de Portugal.
34 Vd. COQUET, Eduardo, ob. cit., p. 56. 35 Id., ibidem, p. 69. 36 Id., ibidem.
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RESUMO
ABSTRACT As we have commemorated, in 2005, the centenary of Rafael Bordalo Pinheiro death, I decided to honour this notable artist; in the IX Curso Livre do Instituto de História da Arte, which was about Iconography. I’ve chosen his Zé Povinho, born, in 1875, on the A Lanterna Mágica pages, one of the humoristic newspapers that he has created, directed and continuously illustrated. Zé Povinho has traces of relationship with others allegories which attempt to personalize a kind of anthropological ground to identify the nation. It has also traces of rhetorical figures from European theatre and dance, since medieval buffoons to baroque Commedia dell’Arte personages. However, what distinguishes Bordalo’s Zé Povinho is it’s absolutely actuality: he is the citizen of the liberal country, where there are elections, taxes, public opinion and freedom of press. Embodied into a rude and iliterate peasant, deceived by everyone, Zé Povinho is a complex device of resignation, contestation and threat which value of use soon was understood and largely appropriated, using its multiples and embroiled meanings. Thus, its creator, Rafael Bordalo Pinheiro, must be considered one of the first and more radical Portuguese modern artists.
Tendo-se comemorado, em 2005, o centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro, entendi homenagear este notável artista, no IX Curso Livre do Instituto da História da Arte cujo tema foi a iconografia. Escolhi então o seu Zé Povinho, nascido, em 1875, nas páginas de A Lanterna Mágica, um dos jornais humorísticos que criou, dirigiu e permanentemente ilustrou. Zé Povinho tem traços de parentesco com outras alegorias que pretendem personalizar uma espécie de fundo antropológico como identificação da nação.Tem traços também de figuras retóricas do teatro e da dança da tradição europeia, desde os bobos medievais às personagens barrocas da Comedia dell’Arte. No entanto, o que particulariza o Zé Povinho de Bordalo é a sua absoluta actualidade: ele é o cidadão do país liberal, onde há eleições, impostos, opinião pública e liberdade de imprensa. Incarnado num rude camponês analfabeto e enganado por todos, o Zé Povinho é, todavia, um dispositivo complexo de resignação, de contestação e de ameaça cujo valor de uso depressa foi compreendido e largamente apropriado, utilizando os seus múltiplos e enredados sentidos. Por isso, o seu criador, Rafael Bordalo Pinheiro, deve ser considerado um dos primeiros e mais radicais artistas modernos portugueses.
O ZÉ POVINHO DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO: Uma iconologia de ambivalência* Raquel Henriques da Silva**
Intróito A figura do Zé Povinho, sobretudo na sua relativamente tardia versão cerâmica, é uma das mais populares da arte portuguesa fino-oitocentista. Até aos anos de 1970, pelo menos, era frequente vê-la em prateleiras de tabernas e pequenos comércios de vilas, aldeias e lugares de todo o território nacional. Em corpo inteiro ou, mais vulgarmente, em rotundo busto, que podia enformar canecas e caixas decorativas, esse Zé Povinho errático e familiar consubstanciava uma espécie de benévola imagem de transgressão, quase sempre ligada ao manguito obsceno e à proclamação retórica do lojista ou taberneiro sobre a sua clientela, inscrita no próprio objecto: “Queres fiado... toma!”. No entanto, mesmo para as potenciais vítimas, o Zé Povinho era um elemento de pertença: lembrando regras mas também a possibilidade de elas não serem cumpridas, através da ronha ou do embuste, era de cumplicidade entre iguais que se tratava, utilizando, mais do que a linguagem, a sua imagética e gestualidade1. Creio que poucos usuários desse Zé Povinho em louça das Caldas conheceriam o autor do protótipo. É do “Bordalo” responderiam talvez alguns, evocando quase só uma das suas aventuras: a criação, em 1884, da Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha, com objectivos grandiosos, visando recuperar e * Dedico este texto a Anabela Carvalho que, com a sua rara competência e dedicação, dirigiu uma equipa empenhada na celebração adequada do centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro. A manifestação mais perene do programa foi a reabertura do Museu Rafael Bordalo Pinheiro e a publicação do respectivo Guia... que a seguir citarei. Apesar do seu carácter generalista, é a sua selecção bibliográfica que recomendo aos estudiosos do tema. ** Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 1 Ver, para desenvolvimento e contexto internacional, sobretudo em relação à disseminação do manguito, João Medina, “Zé Povinho esteriótipo nacional e autocaricatura do português desde 1875” in Portuguesismo(s). Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006: 212, particularmente nota 329.
O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro
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modernizar um artesanato popular, dentro do espírito das Arts and Crafs inglesas, onde diversas marcações eruditas, características dos eclectismos historicistas, bem como a estética Arte Nova, coabitaram com os saberes e as práticas ancestrais dos pequenos mestres convertidos em operários2. No entanto, o Zé Povinho nascera antes: exactamente em 1875, nas páginas do jornal humorista A Lanterna Mágica. A esta imagem fundadora regressarei em breve mas antes é o autor que tenho que recordar.
Rafael Bordalo Pinheiro: a sátira como ética da política Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) foi um membro muito peculiar do Grupo do Leão, associação informal de pintores lisboetas que, nos anos de 1880, realizaram, anualmente, as Exposições de Quadros Modernos, propondo e desenvolvendo a estética naturalista. No essencial, os naturalistas (dirigidos por Silva Porto que, em Paris, aderira à designada Escola de Barbizon) reivindicaram o “pintar natural”, directamente sobre o suporte, valorizando a capacidade formal das cores e a esteticidade do inacabado, e, mais empenhadamente, a renovação das temáticas: paisagens identificáveis, tomadas ao ar livre, «sobre o motivo», e as gentes que nelas se movimentavam, camponeses ou pescadores de toda a geografia nacional3. Esta concentração dos motivos da pintura foi gerando iconografias, mais ou menos tipificadas, onde a crítica (sobretudo através de Ramalho Ortigão) procurou inventariar um nexo etnográfico. Ou seja, os pintores naturalistas (eles próprios iconografados pelas aspectos mais exuberantes da obra de José Malhoa) foram vistos, e assumindo-se também, como participantes numa tarefa mais vasta que marca, de modos diversos, o final do século XIX português: exactamente, a reflexão sobre o que era ser português, envolvendo também a literatura, a filosofia, a música ou a arquitectura.
2 Ver, a propósito, o estudo actualizado e inovador de Paulo Henriques, “Uma Cerâmica Nacional”, in Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2005: 93 e seguintes (Guia da Exposição Permanente, coordenado por Ana Cristina Leite e Anabela Carvalho). 3 Para a abordagem do Naturalismo artístico, a obra de referência continua a ser José-Augusto França: A Arte em Portugal no século XIX. Lisboa, Bertrand, 1966.Ver também a minha síntese: Raquel Henriques da Silva,“O Naturalismo e o Portuguesismo em Pintura” in João Vaz, 1859-1931, um pintor do Naturalismo. Lisboa: Instituto Português de Museus/Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, 2005: 16-26 (catálogo de exposição comissariada por Isabel Falcão e José António Proença).
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Sendo verdade que a indagação sobre os fundamentos antropológicos, históricos e vivenciais da nação é questão maior em toda a Europa e possui uma matriz romântica, nascida na Alemanha e assimilada, com reivindicadas particularidades, por outros países, ela adquiriu em Portugal uma espécie de essencialidade que percorre obras tão diversas, como, utilizando o caso da literatura, as do cosmopolita Almeida Garrett, do ruralista Alexandre Herculano, do diletante Eça de Queirós ou do simbolista António Nobre. Atravessando todo o século, a questão do ser português tornou-se mais premente no seu último quartel, quando o desenvolvimento económico Caixa “Toma”. Faiança, 1904. MRBP CER 375 e social possibilitado pelo Fontismo gerou maior animação urbana e vivencial, bem como um notável alargamento das práticas culturais e artísticas. Paradoxalmente, esse brilhantismo da sociedade fino-monárquica foi acompanhado de um pessimismo quase militante, habitualmente sintetizado nas atitudes desistentes dos mais ilustres membros da Geração de 70 (representada por Antero de Quental, Eça de Queirós ou Oliveira Martins) que, vinte anos mais tarde, se sentem Vencidos da Vida. O que aconteceu para justificar este complexo dispositivo de queda tem sido objecto de inúmeras reflexões de que a mais perene, continua a ser, na minha opinião, a obra clássica de Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade4. No contexto, progressivamente exasperado, da cultura portuguesa entre os dois séculos, Rafael Bordalo Pinheiro foi extraordinária excepção5. 4 Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade: Psicanálise mítica do povo português. Lisboa: D. Quixote, 3ª ed., 1988. 5 Ver o desenvolvimento desta questão in Raquel Henriques da Silva,“Desenhar para rir: a sociedade burguesa ao espelho” in Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, op. cit: 27-60.
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Artista por temperamento que, na juventude auto-didacta, abordou a pintura e o teatro, ele optaria por uma prática cultural particularmente moderna: o jornalismo e, no seu vasto espectro, o jornalismo ilustrado em que o texto é apenas uma das componentes da mensagem, mais imediatamente proposta e apreendida através da ilustração que, nos jornais de Bordalo, foi sempre humorística e caricatural6. Não sendo possível, neste texto, tratar a imensa importância que este tipo de trabalho artístico teve no nascimento da modernidade, não posso, no entanto, deixar de referir a figura tutelar do francês Honoré Daumier, indiscutivelmente um dos artistas referenciais da Europa de então, pela inventividade técnica e, sobretudo, por desalojar a arte da academia, envolvendo-a (poder-se-ia dizer : conspurcando-a) numa revolucionária deslocalização que vai dos ateliers do jornalismo ao ruído industrial das tipografias. Deste modo a questão Arte e Técnica7, que é um dos topos da modernidade, teve ali um dos seus primeiros e mais determinantes laboratórios (ou palcos) por onde passaram, na juventude, grande parte dos pintores de 1900, à cabeça dos quais pode citar-se Picasso. Bordalo foi, em Portugal, um dos raros interventores neste determinante campo de inovação. Houve outros, claro, nessa época em que o número de jornais e revistas atingiu quantitativos impressionantes. Mas nenhum como ele soube reunir à sua volta um escol qualificadíssimo de escritores (incluindo Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida, particularmente ligados à crítica de arte) que aceitaram o repto de trabalhar sobre o desafio labiríntico dos seus desenhos cujas linhas, quase sempre minuciosamente descritivas, retrataram e espelharam o melhor e o pior da sociedade do seu tempo. Na verdade, Bordalo viveu entre a pulsão do desenho, o desafio da crónica diarística e a imensa curiosidade pelos instrumentos e sítios tecnológicos que, no jornalismo, mesclam estas diversas componentes. Homem das Arts and Crafs, apaixonado pela revolução industrial e pelo investimento criativo, fortemente individualizado, ele foi patrão e operário de um pequeno capitalismo moderno, raríssimo em Portugal. A positividade desta atitude, num meio mar6 Para abordar o universo da carreira e da produção de Bordalo, a obra incontornável continua a ser a de José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro. Lisboa: 2ª ed., Bertrand, 1980. Para um enfoque mais biográfico, cite-se João Paulo Cotrim, Rafael Bordalo Pinheiro. Fotobiografia. Lisboa: Museu Rafael Bordalo Pinheiro/ Assírio & Alvim, 2005. 7 Utilizo, propositadamente o título de um estudo referencial de Pierre Francastel; Arte e Técnica nos séculos XIX e XX. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. (1956).
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cado pela desistência ou pelo oportunismo primário, não foi apenas traço temperamental mas uma espécie de ética que envolve toda a sua extraordinária produção: a crítica demolidora com que vai celebrando a vida nacional, sobretudo na dramaticidade dos desempenhos políticos, usa o riso como catarse, abrindo, com finos (des)acertos, um, não poucas vezes, comovente desejo de redenção. Essa espécie de heroicidade militante, que todos os estudiosos reconhecem nos dispositivos da sátira e do riso bordalianos, tem, como base de sustentação determinante, a reivindicação e o exercício da liberdade. Liberdade descomprometida do poder – que nunca ambicionou nem prosseguiu – com indelével marca do anarquismo que então ia crescendo nas margens do sindicalismo e do comunismo, ela é a bandeira de Bordalo que a exerceu com provocação e excesso, assumindo, em postura aparentemente tranquila, as consequências: quando o condenavam em tribunal, ele fazia depois a crónica do acontecido; quando lhe fechavam um jornal, ele abria outro a seguir8. Assim fazendo, Bordalo ajudou a consolidar uma sociedade livre, situação, como se sabe, raríssima em Portugal e cuja perda, em largas décadas do século XX, nos permite mais fundamente compreender a modernidade desse tempo cujos grandes questionamentos ainda não conseguimos resolver.
Zé Povinho: contributos para uma elucidação iconológica Como já foi amplamente historiado, Zé Povinho nasceu na Lanterna Mágica,“Revista ilustrada dos acontecimentos da semana”, exactamente em 12 de Junho de 1875: aproveitando as festas populares de Santo António, a nova personagem é abordada para o peditório a favor do santo lisboeta; José-Augusto França que, exaustivamente, dotou de legendagem histórica este e dezenas de outros desenhos, esclarece: quem pede é o Ministro da Fazenda, o Santo é António Maria Fontes Pereira de Melo, Chefe do Governo do Menino Jesus que segura ao colo e que é, evidentemente, o rei D. Luís9.
8 Ver, por exemplo, A Rolha. Bordalo. Política e Imprensa na obra humorística de Rafael Bordalo Pinheiro. Lisboa: Câmara Municipal, 2005 (catálogo de exposição comissariada por Álvaro Costa de Matos). 9 Sigo a leitura de José-Augusto França, “O Zé Povinho, Sempre o mesmo” in Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, op. cit:121.
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“Estudo para Santo António de Lisboa: -P’rá cera do Sant’Antó...” Desenho a tinta-da-china sobre papel, publicado em A Lanterna Mágica, 12.06.1875 MRBP DES 1125
Nesta faixa narrativa, resolvida, em termos de leitura, na sequência de uma banda desenhada, o lugar do Zé Povinho está definitivamente apontado: ele é, será sempre, o contribuinte que não consegue escapar-se, nem a peditórios ocasionais, nem à carga, sempre crescente, dos impostos correntes ou excepcionais. Ajudar, pagar e sustentar são as tarefas que ele tem que desempenhar, numa história montada por outros, e que o constrange a um lugar tão indispensável quanto passivo. O corpo e a alma do Zé Povinho estão igualmente definidos. Apesar de aqui surgir mais alto e menos atarracado do que irá tornar-se, ele é a figura modesta de camponês, um labrego se quisermos ser mais directos: boçal e servil de atitude, pobre e desconjuntado no vestuário, lento na compreensão e na decisão, factos esclarecidos na bocarra aberta e na mão a coçar o cabelo. O termo Zé Povinho remete, ao ouvido semiológico de qualquer português, para a expressão popular Zé Ninguém. Sendo o Zé a metáfora de todos os nomes portugueses, numa simplificação plebeia de ausência de genealogia, a inovação do trocadilho instaura-se entre Ninguém e Povinho. Uma vez que o
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Povo é a Nação, na cartilha constitucionalista do regime, é no diminuitivo inho, com que a língua portuguesa exprime o afecto e o desdém, que a figura se define e se torna Ninguém, sendo toda a gente. A astuta polissemia do nome de baptismo da personagem é, evidentemente, a primeira, e talvez determinante, chave do seu sucesso. Bordalo pensa o Povo como Zé Ninguém, abusado por quem o representa e diz servir. Mas o Povo não se rebela: pensa-se a si mesmo como Povinho, incapaz de reivindicar-se como nação. A personagem tem assim uma dupla paternidade, ou seja há uma comunidade de culpas consentidas, de interesses opostos mas incapacidades confluentes que se mostram desinteressadas de mutação. Na cadeia de impossibilidades, Bordalo é tanto compositor como actor, umas vezes distanciando-se, outras colando-se a esse Zé Povinho vítima e algoz do progresso e da prosperidade. Ao longo dos trinta anos seguintes, na verdade até à sua morte, Bordalo nunca mais deixará de utilizar o Zé Povinho trágico e cómico, que espelha, na sua imobilidade física e anímica, os desastres do Portugal regenerado, incapaz de se pôr a par da riqueza e da cultura europeias. A figura desenhada manteve, quase sem excepção, a rotundidade deselegante de campónio iletrado cujo corpo tende à postura de quadrúpede, depressa albardado para carregar, sobre o lombo, toda a história nacional e, sobretudo, os sucessivos figurantes que dela se vão apropriando. Deste ponto de vista, o Zé Povinho não só é Zé Ninguém como “Depois das Eleições” também é desprezível Zé Burro. O riso Litografia, publicada em O António Maria, 9.09.1880 MRBP GRA 228 parece assim nascer da negatividade. Mas será mesmo assim? Rimo-nos de quê perante o Zé Povinho cavalgado por reis e ministros, agiotas nacionais e estrangeiros? Porque não nos esmorece o riso ao deparar com o dele, de boca escancarada, dentes sujos, expressão de idiotia, forte-
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mente albardado, como surgiu em “Depois das eleições”, no António Maria de 9 de Setembro de 1880? Detenhamo-nos então neste magnífico desenho. Bem centralizado na página, Zé Povinho está sentado, quase anão de tronco avantajado e membros curtos, com um grande riso alarve que, não podemos deixar de o sentir, nos provoca uma apiedada simpatia. Sobre o lombo e aureolando a cabeçorra, estende-se, com ligeira figura descendente, uma bela albarda, poderosamente debruada, sugerindo inusitado confor to. Sobre ela, destacam-se dois homúnculos: o rei à frente, de cabeça coroada, sustendo umas improváveis rédeas, o ministro atrás, manejando inútil leme. A eficácia do claro-escuro serve o carácter descritivo do desenho que contrapõe o peso abundante do Zé Povinho, bem sentado no chão, à leveza de quem o monta e comanda, sem rosto, quase mesmo sem corpo. Entre o excesso sentado do Zé Povinho e a vagueza aérea de quem nele manda, o que se impõe ao nosso olhar é o corpo inesperado da albarda. Convém então pensar: que metaforiza ela? A lei ou a tradição, a ignorância ou a estupidez, permitindo que tão ridículo poder domine um povo sentado e bem disposto? Não o sabemos, mas não podemos deixar de admirar a tissitura bem encaixada do seu corpo, o firme debrum, o interior acolchoado. Na minha opinião, este elemento, essencialmente decorativo, uma espécie de casulo que pode abrir-se ou fechar-se, é determinante para afirmar a eficácia da sátira: é um traço intenso que proclama a autonomia do desenho e o lugar da imaginação, criando uma interrupção caprichosa à narrativa. Na verdade, aquela bela albarda é uma iconografia desalinhada: proclamando o estatuto de burro e animal de carga do Zé Povinho e o lugar de conforto do poder, que nela se faz transportar, ela insinua, a impossibilidade desta história. Que burro anda sentado, que rédeas e leme poderão movimentar aquele corpo pesado e risonho que nem sente a carga que transporta? Compreendemos que, afinal, não é do Zé Povinho que rimos mas da montagem daquele jogo de enganos, tão subtilmente construído que, mais ridículos do que o Zé Povinho, são os seus incertos condutores que nunca o conseguirão movimentar. Chega-se assim à iconologia da empatia: não será o Zé Povinho mais esperto do que reis e ministros? Não será deles que ele ri, impassivelmente seguro na sua vontade de estar sentado? Se o ritmo de leitura que estou a construir faz sentido, será então o momento de encarar o Zé Povinho com outra dureza. Será dele a culpa? Porque
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permanece sentado, porque insiste em rir, porque ignora a albarda tecida de tempo e os seus frágeis aproveitadores? Porque não se ergue o Zé Povinho, antes ou depois das eleições? Ao contrário de João Medina – que considera “o nosso Zé uma figura essencialmente não dramática”, “espécie de resignado Sancho Pança sem D. Quixote”10 – gostaria de sugerir que Rafael Bordalo Pinheiro talvez se tenha inspirado exactamente em Sancho Pança para construir Zé Povinho, mas que um e outro têm a dramaticidade peculiar do peso da História: complementarmente aos D. Quixotes, que amam e veneram, eles sabem que a História quase não se move, repetindo as injustiças e os insucessos, numa sucessão interminável de ciclos que parecem mimar a vida biológica, gerando a (nossa) morte. Essa sabedoria inesperada, que não tem genealogia, nem escola, nem arte, é o cerne da dramaticidade dessas figuras desprezadas: como os bobos e os loucos, como as crianças, Zés Povinhos e Sancho(s) Pança são uma metáfora antropológica de grande eficácia anti-revolucionária (sem clímax) porque representam, não a racionalidade, mas a natureza, incerta e indomável. A grandeza de Rafael Bordalo Pinheiro reside, com a ambiguidade inerente ao trabalho artístico, na subtil compreensão de que a História de um povo e a razão de ser da nação são uma tissitura tão cerrada quanto a da albarda do Zé Povinho com quem ele evidentemente se identifica: não há soluções à vista, nem linhas de rumo impositivas para modernizar Portugal que é iletrado e submisso. Nos milhares de folhas que desenhou, Bordalo fustiga todos, particularmente o jogo perverso dos oportunismos políticos. Não ignora os defeitos do Povo mas tem por ele uma simpatia pulsional que nos transmite e, com ela, uma espécie de sentido pátrio, atravessado de onírica imponderabilidade: que Povo é este, tacanho e boçal, a que pertencemos e amamos pela sua grandiosa fragilidade? À morte de Rafael Bordalo Pinheiro, em 1905, já havia nascido Fernando Pessoa que teve esta questão como mote de hetero e auto-conhecimento. Alberto Caeiro, como Sancho Pança e o Zé Povinho não acreditam nem na História, nem nos livros nem nos homens. Procuram existir como as pedras e as águas e rir como as crianças. Variantes da iconologia do bom selvagem, eles confrontam a racionalidade e o progresso como a cultura europeia do iluminismo os determinou e construiu. 10 João Medina, op. cit.: 205.
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No caso do Zé Povinho, há, no modo como observa de fora os acontecimentos e finge neles não participar, algo de bobo medieval, “o velho parvo de Gil Vicente”, como bem viu João Medina, ou, na reflexão do mesmo autor, “os popularíssimos Bertolo e Bertoldinho da literatura de cordel trazida de Itália e tão bem aclimatada entre nós”11. Alargando o espectro de referências iconológicas, pode também pensar-se que Zé Povinho não poucas vezes desempenha as funções do coro grego, não pela palavra mas pela eficaz gestualidade do seu corpo desenhado, antes de ser escrito. Houve, no entanto, por parte de um dos colaboradores de Rafael, o desejo de dotar Zé Povinho de discursividade retórica. Ramalho Ortigão, no Álbum das Glórias, onde Zé Povinho é representado de corpo inteiro, numa espécie de apetência pequeno-burguesa, afirma que “talvez um dia, (ele) viesse a mudar de figura e de nome e, então, «em vez de se chamar Zé Povinho se (iria) chamar simplesmente Povo”12. Precisamente, em 11 de Março de 1880, ele aparece no António Maria nessa quase improvável transformação: “A Política: O que é – O que pode ser” tem a habitual composição plástica de desenho legendado, neste caso organizado em díptico, representando, à esquerda, o Zé Povinho quadrúpede albardado, esperando ser montado pelo rei, sob o manto do qual se escondem os ministros, e, à direita, um irreconhecível Zé Povo, erguido em posse orgulhosa, arregaçando as mangas e sustentando ameaçadora picareta, um dos vértices da qual nos faz olhar uma cartilha de aprender a ler, enquanto, do outro lado, os políticos fogem em debandada. Exemplo quase único de uma intencionalidade política, conotável com alguma simpatia republicana de curta duração, ele não abriu nenhum caminho de transmutação do Zé que, mesmo alfabetizado, voltou a duvidar da sua capacidade salvadora. Na verdade, fora alguns desenhos panfletários, nunca a iconografia do Zé Povinho abandonou a polissemia indeterminada que é o cerne da sua eficácia: resignado e descrente, a força de Zé Povinho nasce da repetição de contrastes aparentemente simples, insinuando que a teimosia po11 Idem:206. Registe-se, no entanto, que já Ramalho Ortigão citara a mesma genealogia: “Zé Povinho é, na obra de Bordalo Pinheiro, uma espécie de Polichinelo da antiga comédia de títeres, encarregada de arrecadar as sovas que Pierrot e Arlequim não cessam de lhe aplicar; um pouco menos idiota que Beltoldinho, já com um princípio de capacidade para ganhar a vida como oficial de ofício, mas não sabendo, por enquanto, ler nem escrever, nem tendo da existência metafísica do Estado mais que uma noção extremamente rudimentar, nevoenta e confusa.”, in Obras Completas de Ramalho Ortigão. As Farpas. Lisboa: Livraria Clássica Editora, volume IX, 1944: 152. 12 Citado por João Medina, op. cit.: 208.
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“A Política. O que é – O que pode ser”. Litografia, publicada em O António Maria, 11.03.1880. MRBP GRA 2687
de ser uma ameaça e a desistência, um modo pragmático de sobrevivência. Os desenhos vão construindo uma História aberta em que reis e ministros se sucedem, com falsa grandeza marcada de morte, enquanto ele, o boçal Zé Povinho não arreda pé, expectando não a grandeza nem a imortalidade, mas um lugar sentado, numa sombra fugidia do tempo. Por isso, é também um desenho de excepção a apropriação da célebre “Última Ceia” de Leonardo da Vinci, em que Zé Povinho ocupa o lugar e a figura de Cristo, ladeado pelos grandes do regime que dizem servi-lo e logo o trairão. José-Augusto França identificou quase todos: o rei D. Luís, o argentário Conde de Burnay, o Fontes Pereira de Melo no lugar de Judas13. A ousadia teve consequências judiciais que, como se disse, sempre foram assumidas por Bordalo com extraordinária irreverência. Há, nessa atitude, coragem cívica e assumpção 13 José-Augusto França, “O Zé Povinho, Sempre o mesmo” in Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, op. cit.: 133.
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“O Dia d’Hoje – A Ceia do Zé”. Litografia, publicada em O António Maria, 6.04.1882. MRBP RES 2.4
da ética do seu ofício, mas também uma espécie de conivência tolerante: acusador e acusado, mas não perseguido, o artista reivindica-se num espaço social comum, em que cada um tinha um papel específico a desempenhar. Duríssimo para os erros e as omissões dos governantes, Bordalo nunca deixou de os homenagear em momentos extremos, como aconteceu com a celebração comovida da morte de Fontes Pereira de Melo que tratara cruelmente como um “António Maria” predador. Ao contrário de outros contemporâneos seus, que se refugiaram no ódio ou no ressentimento, insinuando que a Pátria do Zé Povinho não os merecia, Bordalo foi, como já sugeri, um actor em cena, que se auto-retratou nos pequenos vícios e algumas virtudes que partilhava com os seus alvos do riso e da denúncia jornalística. Creio que essa espécie de bonomia, paradoxalmente acerba e complacente, existe também no Zé Povinho que se interroga descrentemente: “Que hei-de eu fazer?”... Respondendo a si próprio, ao longo de centenas de situações: “É sempre o mesmo”.
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“Zé Povinho na História” Litografia colorida, publicada em A Paródia –Comédia Portugueza, 23.07.1903. MRBP GRA 1032
Sendo assim, mais do que a boçalidade ou o analfabetismo, o que caracteriza o Zé Povinho é a vontade de dormir, metáfora da desistência. No notável desenho “Zé Povinho na História”, publicado n’ A Paródia de 23 de Julho de 1903, Bordalo utiliza os círculos da sua banda desenhada avant la lettre, para evocar momentos fundamentais da histórica trágica do século XIX português: o Zé estava a dormir quando o futuro D. João VI “fugiu” para o Brasil, levantou-se num ímpeto para a Revolução de 1820, para se “tornar a deitar”, deixando D. Miguel apoderar-se do trono; fez depois a Guerra Civil mas adormeceu de novo, permitindo que a Regeneração conciliasse os interesses dos poderosos; “tornando-se a levantar” contra o Ultimatum, dormia, apaziguado, naquele dia de 1903, sob uma árvore da liberdade sem sombra, embora com um pássaro alcandorado. O desenho é agilíssimo, movimentado e eficaz, construindo a narrativa em manchas serpenteadas que se sucedem num sobe e desce risível. Era essa a história do Zé Povinho, aproveitando a soneca que a paz do regime lhe proporcionava: está mais próspero e ataviado, distraído da magreza da árvore da liberdade.
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Nesta esplêndida sequência – que sobreleva a importância das revoluções e a reivindicação da cidadania – o velho Bordalo atazana mais o Povo do que quem o domina, acusando-o desse movimento repetido de desistência que impediu a grandeza da História recente. Tocava então, talvez, numa impalpável verdade que envolvia não só o povo anónimo mas ele mesmo e os seus mais nobres contemporâneos. Não desistiu Antero de Quental, e Soares dos Reis, e Oliveira Martins? O que é a parábola de A Cidade e as Serras de Eça de Queirós senão outro modo de assunção da “soneca” do Zé Povinho, confortavelmente deitado no chão do constitucionalismo, sob o trinado da Liberdade?
Epílogo Perante a figura do Zé Povinho creio que continuamos todos, portugueses, a sentirmo-nos retratados, não individualmente mas enquanto nação. Aparentemente trata-se dessa pulsão de “autodenegrimento”,“aspecto crucial” da “nossa forma psíquica”, segundo a opinião de João Medina14. Não o creio, definitivamente. O que hoje sentimos de familiar no Zé Povinho é sobretudo uma memória, histórica e afectiva. Ele recorda-nos: – o predomínio da figura do camponês pobre que, até tão recentemente, foi quase toda a nação que emigrou para o Brasil, para a Europa e para o mundo inteiro; – os limites das revoluções liberais que, sucessivamente, foram traindo os seus desígnios e que, já depois da morte de Rafael, falharão com maior gravidade, caindo sob o mando dessa espécie degenerada de Zé Povinho que foi o bom povo de Salazar; – finalmente, ele propõe-nos um auto-espelhamento risível porque sabemos que o país é ainda pobre e deficiente no contexto da Europa, onde gostaríamos de nos reencontrar na admiração dos outros. Muitas vezes desistentes, lá fomos acordando, abanados, ninguém duvide, pela alma de D. Quixote que todos os Sanchos Pança escondem. 14 João Medina, op. cit.: 73.
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No jogo de enganos que o riso exige, Rafael Bordalo Pinheiro, genial criador de Zé Povinho, foi essa desocultação que prosseguiu, militantemente empenhado em democratizar e alargar o lugar do cidadão, leitor de jornais e, desejavelmente, neles participante. Por esta atitude, cultural sem ser política, exercida como quem respira nos lugares quotidianos, interpelando, ainda que sem doutrina, a dimensão aurática da arte, Bordalo foi uma das personalidades mais pujantes do seu tempo, ele que, não raras vezes, podia ser confundido com o próprio Zé Povinho, fingindo não compreender nem as perseguições nem os fracassos. Por isso, defendo que o Zé Povinho não é o “baixo herói” do povo português. O seu “pendor truanesco”, para citarmos ainda João Medina15 é uma sabedoria primordial que convoca, vinda de uma história antiquíssima e fiel a si mesma, apesar de tantos desastres e adormecimentos. Recriação dos “parvos” de Gil Vicente, Zé Povinho é também, do ponto de vista estilístico, uma espécie de revivalismo tardo medieval, como outros que se instalaram, com maior retórica, nas artes decorativas e na arquitectura. A sua cristalização popular, na cerâmica das Caldas da Rainha, sintetizará afinal alguns dos seus sentidos mais fundos, deslocando-o do monótono palco do poder para o convívio chistoso com os seus iguais.
15 Idem, ibidem.
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RESUMO ABSTRACT The contemporaneous phenomena of seaside villeggiatura obliged capital societies to create new spaces for this practice, trying to combine aspects already well-known with others that were absolutely new, so as to respond in the best possible way to this new social demand.This process also took place in Portugal, within differentiated parameters, but profiting from European examples that, in the meanwhile, already had ensured prestige.
O fenómeno contemporâneo da vilegiatura balnear marítima obrigou as sociedades capitalistas a criar novos espaços para a sua prática, tentando combinar um conjunto de aspectos já bem conhecidos com outros absolutamente novos de modo a responder da melhor maneira a uma nova exigência social. Também em Portugal este processo teve lugar, dentro de parâmetros diferenciados, mas aproveitando os exemplos europeus que, entretanto, já tinham assegurado prestígio.
VILEGIATURA BALNEAR – Imagem ideal / Imagem real Graça Briz *
Introdução A moda das “curas” de banhos de mar e os novos ritos sociais determinaram um dos fenómenos mais característicos da época contemporânea. Seguindo as prescrições médicas, anunciadas pela primeira vez em Inglaterra, nos meados do século XVIII, uma elite culta e viajada vai, por toda a Europa, dar início a um hábito social que terá a maior importância ao longo dos últimos duzentos anos. Inicialmente, os locais escolhidos são sítios há muito habitados que apresentem condições excepcionais; mas, ao longo dos séculos XIX e XX, vamos assistir à colonização de pedaços de costa desertos, ao mesmo tempo que os “velhos” sítios sofrem transformações profundas. A hierarquia destas primeiras estâncias rapidamente se estabelece também, pelas escolhas dos monarcas ou grandes aristocratas. Em qualquer dos casos, porém, todas procuram combinar aspectos aparentemente contraditórios. Por um lado, querem ser diferentes dos locais de habitação permanente, organizando-se, preferencialmente, de uma forma “natural”, quer dizer, privilegiando o carácter pitoresco do sítio, cumprindo o ideário romântico, presente também na explosão do lazer, potenciado pelo liberalismo; por outro, precisam responder às exigências da sua clientela, oferecendo animação, equipamentos e serviços, próprios da grande cidade. Os modelos primitivos vão ser adaptados das vilegiaturas tradicionais, tão antigas como as sociedades civilizadas, mas que, na era contemporânea, vão conhecer também um desenvolvimento sem paralelo, acabando por existir uma contaminação e uma concorrência entre as diferentes propostas. “Como toda a nova instalação, a estância balnear vai ter necessidade de modelos: de sociedade, com as suas práticas – aristocráticas, burguesas, artísti* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Vilegiatura balnear – Imagem ideal / Imagem real
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cas, etc.; de arquitectura – tradicional, nacional, exótica, etc; de urbanismo – pitoresco, empírico, racionalizado… À partida existem os exemplos das vilegiaturas já bem conhecidas – o campo, a montanha e as termas – e sempre a imagem presente da cidade a cujas populações se destinavam, preferencialmente, as novas estações”1. Ao longo de Oitocentos, vemos espalhar-se, por todo o mundo ocidental, o novo hábito dos banhos de mar e, com ele, nascer as primeiras instalações urbanas originais, destinadas a uma sociedade desejosa de acompanhar esta prática, inicialmente muito elitista. Mas desde o início de Novecentos, assistimos ao crescimento gradual do fenómeno, bem como da sua importância em relação às restantes vilegiaturas. Alargam-se as regiões escolhidas e nascem novas “cidades” cuja única razão de ser está no crescente aumento da procura da praia como destino predilecto das férias de todos. Saudável, lúdica, quase obrigatória socialmente, a temporada de banhos de mar tornou-se, a pouco e pouco, um hábito de massas, absolutamente banalizado e assimilado pela humanidade ocidental. A penetração em Portugal dos padrões de comportamento dominantes no resto da Europa, combinada com os interesses sociais e económicos da burguesia, vai dar lugar à difusão do gosto por novos espaços e tempos de lazer ao mesmo tempo que propicia processos, mais os menos lucrativos, de especulação imobiliária.
Génese da vilegiatura contemporânea Se, como se disse atrás, os ingleses foram os “inventores” do banho de mar, a eles se deve também o conceito de vilegiatura contemporânea e os primeiros modelos importantes para a sua prática. Alguns factores, como a Revolução Industrial, os progressos científicos, sobretudo na medicina e na higiene, um acelerado crescimento e caos urbano das cidades e ainda, mas não menos importante, uma cultura literária e filosófica que enquadra as opções da nova época, quase todos de primazia inglesa, explicam a precocidade do fenómeno entre as elites britânicas. Ainda antes do final do século XVIII, os ingleses definiram as três grandes vilegiaturas contemporâneas – climática, balnear e 1 Mª da Graça Briz, Arquitectura de Veraneio…, 1989, p.4
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termal – ao mesmo tempo que, também primeiro, criaram os novos modelos para essas práticas, quer no seu território, quer no estrangeiro.Vejamos apenas três exemplos paradigmáticos. Bath foi a primeira importante cidade de vilegiatura que se transforma pela renovada moda das águas termais. Conhecida desde a época romana, desde muito cedo sob protecção real, conhece, no século XVIII, o seu momento mais brilhante. Pela intervenção de arquitectos como os dois Wood (John Wood, o velho, 1704-1754 e John Wood, o novo, 1728-1781), responsáveis por um conjunto de novas tipologias notável e de brilhante futuro, como “The Circus” (1754), o “Royal Crescent” (1767-1775), as “Upper Assembly Rooms” (1768-81) ou o novo edifício de banhos (1775-1778), Bath tornou-se a matriz de soluções urbanistico-arquitectónicas da maior importância para todas as outras experiências de vilegiatura, quer ao nível da habitação, quer no que diz respeito aos espaços públicos. O segundo grande modelo primitivo, de criação britânica, destinou-se à vilegiatura marítima, com a cidade de Brighton, na costa sul de Inglaterra. De aldeia piscatória decadente é, nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, local predilecto para a vilegiatura da corte do príncipe regente. Os médicos, como Richard Russel, começavam, então, a recomendar a água salgada como meio de cura para algumas doenças, mudando a atitude dos seus contemporâneos em relação ao mar. Em 1765, chega o primeiro visitante real e, pouco depois, abre o mais antigo estabelecimento de banhos de mar. A maior proximidade de Londres e a presença regular da corte são factores decisivos na sua progressiva primazia sobre Bath, provando também que a importância social da estadia é cada vez maior em detrimento dos aspectos terapêuticos. A nova cidade equipa-se então com bibliotecas, teatro, capelas e o seu “vauxhall” (um dos termos para casino), ou seja, espaços considerados indispensáveis para gente civilizada. Abrem-se novos hotéis e “assembly rooms” (os clubes) e agencia-se “the Steine”, larga alameda-passeio, perpendicular ao mar, centro nevrálgico da estância, onde se erguem os mais notáveis edifícios públicos e privados. No seu extremo sul, sobre o mar, constrói-se o primeiro “pier” e, em 1815, o Royal Pavilion. Começado em 1786 pelo arquitecto Henry Holland, acrescentado com uma nova decoração chinesa entre 1801 1804, é profundamente reconstruído por John Nash ganhando o aspecto “indiano” que hoje lhe conhecemos. Obedecendo ao gosto do regente pelo “Pituresque stile”, Nash produziu aqui um dos modelos mais notáveis da arquitectura de
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veraneio em toda a Europa. O crescimento urbano, sempre em função do mar, inicia um período brilhante de arquitectura regência com projectos como Kemp-Town e Brunswick Town, a oriente e ocidente do “the Steine”, respectivamente. Com os já característicos “crescents” e “squares”, edifícios decorados a estuque com os arredondados das “bow-windows”, são exemplos maiores de planeamento urbano muito antes do conceito ter sido definido como hoje o entendemos. Uma vasta alameda-jardim, a esplanada marginal, o pontão, um conjunto de hotéis de qualidade, alguns estabelecimentos de banhos de mar com as suas cabinas para transportar os banhistas, clubes para o convívio e o jogo nocturnos, bibliotecas e teatro, e finalmente, um grupo de moradias de grande prestígio, estavam assim reunidos, no início do século XIX, todos os elementos necessários para que qualquer nova instalação fosse considerada uma verdadeira “ville-de-bains”. Mas as escolhas urbanísticas de Brihgton, tal como Bath, são ainda exclusivamente clássicas, demasiado racionais para a nova sensibilidade romântica e, neste sentido, é Bournemouth, o grande exemplo, construída a partir de 1835 pela iniciativa capitalista da grande burguesia – arruamentos sinuosos, aproveitando as características morfológicas do terreno, dividindo lotes de diferentes áreas e configuração e sempre para albergar casas unifamiliares. O resultado é um urbanismo orgânico, melhor ainda pitoresco, deixando livre o vale central para jardim e onde as escolhas arquitectónicas se diversificam, conforme o gosto dos proprietários, de maneira que Bournemouth se converte no melhor “mostruário” da tipologia inglesa mais popular para a arquitectura privada durante o século XIX – o “cottage”. Para a vilegiatura climática, são também os ingleses os pioneiros ao promoverem Nice, na costa mediterrânica de França, a “capital de Inverno” da Europa. Começam a frequentá-la nos meses mais frios, a partir dos finais do século XVIII e, pouco depois, a administração, ainda piemontesa, abre o primeiro troço da “Promenade des Anglais”, larga alameda marítima que se tornará paradigma de quase todas as estâncias de praia. Rapidamente vemos surgir também os hotéis de luxo e o “pier”, que aqui se chama “jetée-promenade”. A Europa Central é também rica em modelos, sobretudo famosa pelos seus “spas” de águas termais com exemplos notáveis como Wiesbaden ou Marienbad, e onde a tipologia do casino teve o seu maior desenvolvimento precoce. Mas, no que diz respeito a Portugal, a influência mais constante é, sem dúvida, a das “Villes de Bains” francesas, designação criada no período do
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segundo Império, paralelamente ao termo “Villes d’Eaux” para as estâncias termais. Pela presença e protecção da imperatriz Eugénia, Biarritz, na costa atlântica, torna-se, rapidamente, na praia da moda de toda a Europa, ao mesmo tempo que vemos surgir um conjunto de instalações da maior importância na costa da Normandia. Amada e frequentada pelos pintores desde os anos do romantismo começa a sua história balnear em Dieppe, primeira praia francesa de prestígio internacional e continuando por Trouville, Deauville, Houlgate, Cabourg, etc., etc.. Em todos estes lugares encontramos um conjunto de características paralelas, apesar da morfologia e organização serem, por vezes, bem diferentes: a memória dos modelos ingleses iniciais, a emulação das estâncias termais e climáticas de maior renome e a tentativa de afirmar uma diferença qualitativa que ajude à sua promoção, quer seja em termos de urbanismo ou de excelência dos equipamentos obrigatórios: estabelecimento de banhos, hotéis, casino, parque-jardim, as esplanadas, ou “digue-promenade”, etc.. Como diz Dominique Rouillard “l’image de départ ne procède pás d’une représentation d’une ville unique, et n’est pas non plus un projet de ville idéale, programée. Elle ne s’élabore que sur des fragments construits, et sur d’autres de l’idéologie urbanistique régnante. Elle rassemble des morceaux de France et de l’étranger, de la montanhe et de la mer, de la ville et de la campagne, et des éléments d’idéologies, sur le monde moderne, aristocratique, de la vilégiature, des voyages, de l’exotisme, etc.. C’est l’image synthétique, d’une ville imaginaire faites de mots, de noms, de traces, de silhouettes, de coulers, de “styles”, mais aussi de gestes, de rythmes et de rites de la vie du curiste”2. Começamos a compreender o carácter excepcional destas instalações, lugares privilegiados de novas experiências quer de urbanismo quer de tipologias e soluções formais na arquitectura, a que a história da arte contemporânea tem de dar a devida atenção. Procurando responder às apetências e necessidades de uma nova sociedade, o resultado particular de cada uma delas depende de um conjunto de factores de natureza diversa e, por vezes, de difícil compreensão. Porém, dois são claramente dominantes: em primeiro lugar, a capacidade dos promotores para agenciar um espaço diferenciado e com equipamentos de qualidade, capazes de cativar um alargado grupo social e, em segundo lugar, as facilidades de acesso, para que os novos lugares possam ser visitados com conforto. Se o primeiro item é, sobretudo, da responsabilidade do capitalismo privado, aqui 2 Dominique Rouillard, Le Site Balnéaire, 1984, p. 16
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investido numa nova área de negócio que até hoje não cessou de crescer, o segundo é subsidiário de vontades políticas, centrais ou municipais.
Os primeiros modelos portugueses Em Portugal, com uma economia capitalista bastante tardia e, em geral, com grandes debilidades, o fenómeno de que acima traçámos uma breve génese, tem, naturalmente, características particulares. Tal como em todo o mundo ocidental, também entre nós se começou a divulgar a moda do banho de mar nos inícios do século XIX. A mais arreigada tradição de veraneio em Portugal é o climatismo, a fuga ao calor para a quinta de recreio ou de “fresco” no campo ou na serra, como Azeitão ou Sintra,“i(ndo) espantar com as modas novas os habitantes tranquilos das circunvizinhanças”3. Mas, na primeira metade de Oitocentos multiplicam-se as referências às estadias para uma cura de banhos de mar, exclusivamente entre as populações das principais cidades e praticadas por um reduzido número de pessoas bem informadas sobre modas estrangeiras, como Almeida Garrett ou o marquês de Alorna. Durante muito tempo ainda, e mesmo quando o hábito já se espalhara por outros grupos sociais, os sítios frequentados eram adaptações muito rudimentares feitas em praias com condições favoráveis. Só na segunda metade do século XIX, nasceram as primeiras instalações de raiz para a nova vilegiatura, bem como se assiste a transformações profundas em lugares há muito habitados dirigidas a esta nova função principal. No primeiro caso estão a Granja e o Monte Estoril, no segundo, Cascais e a Foz do Douro. Façamos uma breve visita a estes lugares para avaliarmos a sua importância relativa e medir o peso dos modelos internacionais. Quando a corte portuguesa ainda tomava o seu banho de mar numa barcaça ao largo de Belém, nasceu a nossa primeira instalação original para a prática balnear. Por iniciativa privada, e urbanizando uma antiga quinta de recreio dos frades de Grijó, surgiu a Granja, a poucas léguas a sul do Porto. O novo proprietário, gozando de excelentes relações com os homens então responsáveis pela construção da linha de caminho de ferro, decidiu transformar a zona da quinta junto à praia numa pequena estância de mar. Com um traçado ortogonal muito 3 Júlio César Machado, Introdução a Banhos de Caldas e Águas Minerais de Ramalho Ortigão, 1944, s.p.
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Granja: a “Alameda” da Granja com as casas geminadas conhecidas pela “Correnteza”, c.1900 in A Granja de Todos os Tempos.
simples, feito em função da via férrea e não da costa, Frutuoso Ayres chamou os seus amigos e conhecidos do Porto para comprarem lotes para construção, ou mais ainda, para alugarem as novas casas que ele próprio ia construindo. Estas primeiras moradias, começadas a edificar cerca de 1860, em nada se distinguem das vernaculares casas rurais espalhadas por todo o norte do país. Porém, o promotor logo deu início também à construção de alguns equipamentos para a satisfação dos eventuais frequentadores: um clube, aqui chamado por influência inglesa Assembleia, uma pequena alameda ajardinada, curiosamente virada a nascente e à linha do caminho de ferro, um rudimentar estabelecimento de banhos, o “pinhal” para as brincadeiras infantis e, um pouco mais tarde, um hotel em 1872, propriedade duma sociedade por quotas em que os sócios eram, além do “fundador” que entrava com o terreno, exclusivamente membros da Assembleia da Granja. A estância desenvolve-se e ganha novas estruturas unicamente pela acção de privados, primeiro da família Ayres depois da Companhia a que pertencem a Assembleia e o hotel. Este carácter marca definitivamente a Granja, autêntica estância quase privada, o que muito contribuiu para o seu prestígio entre a sociedade oitocentista portuguesa mas, por outro lado, é também o principal responsável pela incapacidade de adaptação a novas exigências que o fenómeno balnear potenciará ao longo do século XX. Também fruto de um programa de raiz vemos surgir o Monte Estoril, na quase continuação de Cascais e promovendo-se inicialmente à sua sombra. Novamente uma companhia imobiliária se forma no ano exacto em que se
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Monte Estoril: a praia e a primitiva estação de caminho de ferro (revista Occidente, 1890).
Foz do Douro: “chalet” do Passeio Alegre, c. 1900. Fotografia da autora.
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constrói a linha de Cascais, em 1889. Com ambições desmedidas de grande estância internacional, que rapidamente ficaram pelo caminho, com a falência da companhia, o Monte Estoril conseguiu, apesar de tudo, organizar um espaço e cativar interessados capazes de fazer do lugar um dos mais agradáveis da costa de Lisboa. Claramente influenciado por exemplos de urbanismo orgânico, como Bournemouth ou Dinard, na costa da Bretanha, tirando partido do relevo natural para distribuir lotes e arruamentos, a nova estância teve o seu período de maior brilho na última década do século XIX e primeiros anos de novecentos. Tinha um Grande Hotel, então famoso, um jardim, o seu casino com terraço sobre o mar e um conjunto de moradias muito ecléctico, de que restam alguns belos exemplares. Quando a atenção de todos se começou a virar, prioritariamente, para o Estoril, vasto programa apresentado por Fausto de Figueiredo em 1914, o Monte foi ficando gradualmente como um subúrbio residencial de qualidade, cuidadosamente protegido da animação cosmopolita da nova estância. Um caso único de transformação de um sítio há muito habitado para a prática balnear é a Foz do Douro, uma vez que se trata de um processo realizado dentro de um importante município, o da cidade do Porto. Pelos meados do século XIX, eram já muitos os ingleses da colónia da cidade que frequentavam no verão as suas praias mas, só com a “invasão” dos portuenses, a Foz conhece uma verdadeira revolução urbana. Primeiro, ainda na zona fluvial, de onde se desalojam os pescadores, com o agenciamento do magnífico jardim do Passeio Alegre e o conjunto de boas moradias que o limitam, depois com a urbanização da chamada “Foz Nova”, ao longo da estrada sobre o mar. Nos finais do século dezanove e primeiras décadas do século seguinte, são estas novas avenidas, de traçado regular, que vamos ver ocupadas pelos palacetes da rica burguesia portuense, num processo contínuo que acompanha a transformação do lugar naquilo que hoje é, uma zona residencial de luxo. Finalmente, vamos deter-nos mais demoradamente sobre um último exemplo, também resultado de uma reconversão urbana, para responder a uma nova procura. É o caso de Cascais que, à semelhança do que vemos acontecer por toda a Europa, viu mudado o seu destino pela preferência dos nossos reis. D. Luís I inicia esta história em 1870, instalando-se alguns meses na velha cidadela do burgo e, atrás dele, vão aparecer os primeiros “fundadores” de nome sonante, como os duques de Palmela ou o Duque de Ávila, construindo sumptuosas moradias nos pontos de melhor panorama sobre a baía.
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Alguns amigos da terra, com dinheiro e iniciativa, promovem melhoramentos urbanos importantes e levantam equipamentos para o bem estar e animação dos novos visitantes: um jardim, um teatro, um hotel, um casino, uma praça de touros, novos arruamentos. Com a chegada do comboio, e o consequente aumento de veraneantes, Cascais conhece o seu momento de maior prestígio e, paralelamente, sofre as mais profundas transformações, perdendo quase por completo o seu carácter primitivo.
Cascais: a praia da Ribeira (ou do Rei) e as moraadias da Av. D. Carlos I, c.1900. © Arquivo Histórico Municipal de Cascais.
Conclusão Em jeito de balanço, devemos justificar as razões desta nossa breve “viagem”, através de um necessariamente reduzido número de exemplos possíveis. A Europa, com sociedades economicamente mais desenvolvidas, forjou os modelos empíricos, como vimos atrás, para responder a uma nova procura das suas populações, juntando vários elementos já conhecidos com outros absolutamente novos, procurando, em cada um deles, a excelência, numa perspectiva que é sempre de concorrência cada vez maior. Quando, em Portugal, o fenómeno conhece a expansão suficiente para justificar a criação original de
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novas estâncias balneares ou mesmo a transformação profunda de alguns sítios, esses modelos estavam já adquiridos e a população que inicialmente os frequenta conhecia-os bem. Todas as estâncias que aqui “visitámos” têm, à semelhança das suas congéneres europeias, um conjunto de elementos obrigatórios – o parque-jardim, o clube-casino para as festas e o jogo e os hotéis de alguma qualidade. Ao lado destes, mas já menos constantes, um estabelecimento de banhos, um pontão-esplanada sobre o mar, os equipamentos para práticas desportivas ou as salas de espectáculo. Na maior parte dos casos, qualquer destes equipamentos é, em Portugal, de fraca relevância e, frequentemente, improvisados e de carácter temporário. A mesma avaliação deve ser feita em relação às habitações privadas, também elas muito contaminadas pelos exemplos internacionais, preferindo fantasias e exotismos arquitectónicos. Finalmente, o mesmo se pode dizer das soluções urbanas que, inclusivamente nas estâncias feitas de raiz, optam quase sempre pelo esquema mais fácil e menos imaginativo. Se por um lado, estas limitações colocam problemas para uma análise comparativa que, neste fenómeno, é obrigatória fazer, por outro, fazem ressaltar uma original forma portuguesa de acompanhar a nova moda dos banhos de mar, produzindo espaços que, apesar de tudo, são extremamente conseguidos. Quando o desenvolvimento e a especulação posteriores não descaracterizaram completamente estes lugares onde os nossos avós iam a banhos, como dos exemplos aqui tratados, o Monte Estoril e a Granja, eles mostram ainda hoje uma qualidade notável de ambiente humano e organização espacial.
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RESUMO
ABSTRACT Ordered to Almada Negreiros to decorate a private house designed by the architect António Varela which stands on Restelo, this stained-glass window was acquired from an heir of the owner in 2001 by 3.000.000$00 to the collections of the Assembly of the Republic. Now it integrates the decoration of the official residence of the President and it is set up on a structure with artificial light. In iconographic terms, the work has inspired many different interpretations, being considered by some as Eros and Psyche and by others as the Fall of Icarus. What sustains this doubt is the dubious representation of the two figures with attributes and attitudes far from the traditional iconographic model.
Encomendado a Almada Negreiros para decorar uma residência particular projectada pelo arquitecto António Varela, na Rua de Alcolena (Bairro do Restelo), este vitral foi adquirido a uma herdeira do proprietário no ano de 2001 pela quantia de 3.000.000$00 para as colecções da Assembleia da República. Presentemente integra a decoração da Residência Oficial do Presidente daquele órgão representativo e está montado numa estrutura com iluminação artificial. Em termos iconográficos a obra tem suscitado interpretações diversas, sendo considerada por uns como o tema de Eros e Psique e por outros como o episódio da Queda de Ícaro. Na base da dúvida está a dúbia representação das duas personagens com atributos e em atitudes que fogem ao modelo iconográfico mais divulgado.
Contributo para análise iconográfica de um vitral de Almada Negreiros Cátia Mourão*
À colega e amiga Sandra Neves da Silva
«(…) a minha linguagem é o símbolo. E todo o símbolo é necessariamente breve, sintético, vertiginoso, sibilino. Aliás, simbólica ou narrativa, a verdade é sempre fictícia, misteriosa. Sobretudo aqui.»1
Eros e Psique. José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970). Não datado (1954). 57,5 x 325 cm. Vitral. Assembleia da República. MAR 271
O vitral é composto por 5 painéis que congregam 153 módulos de vidro policromo unidos por chumbo, formando uma composição estruturada na horizontal, com duas figuras nuas e deitadas, uma delas a dormir e a outra acordada a olhá-la. A que dorme é feminina, tem a pele rosada, está de barriga para cima, tem o corpo em diagonal descendente, com a cabeça para baixo e a três quartos, os cabelos longos, soltos, de cor arruivada, os olhos fechados, o braço direito estendido para o mesmo lado, o esquerdo curvado e acompa* Mestre em História da Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Membro do Instituto de História da Arte. 1 JOSÉ MANUEL (Ferrão), 1952, p. 37.
Contributo para análise iconográfica de um vitral de Almada Negreiros
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nhando a curvatura do tronco, a perna esquerda estendida e a outra ligeiramente flectida, de calcanhar sobreposto à perna oposta. Tem grandes asas de cor rosa forte, estando a esquerda aberta e a direita fechada, sobre a qual apoia a cabeça; a figura que a olha é masculina, tem a pele amarelada, está de barriga para baixo, de bruços, tem a cabeça erguida e de perfil, os cabelos longos, entrançados, de cor loura, as pernas estendidas, com o pé direito apoiado no tornozelo da perna oposta, os braços flectidos, apoia-se no esquerdo e também no cotovelo direito (sobre a extremidade da asa da figura anterior), e segura na mão direita uma pequena lucerna de cor verde, cuja chama ilumina o rosto da personagem adormecida. O fundo tem cor arroxeada. O conjunto não está assinado nem datado. Na origem deste vitral estão dois estudos preparatórios:
1º Estudo – Eros e Psique2. José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970). Não datado (1954). 16 x 56 cm. Aguarela e lápis sobre papel. Colecção particular José de Brito
2º Estudo – Eros e Psique3. José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970). Não datado (1954) 65,5 x 30,20 cm. Óleo sobre papel. Colecção particular (Lisboa)
As personagens representadas são Eros e Psique. Na época pré-socrática Eros era filho do Caos, vazio original do universo, e detinha a força ordenadora e unificadora dos elementos, pedra de toque para a criação do Cosmos. 2 Reproduzido em TEIXEIRA, 1993, p.227. 3 Reproduzido em TEIXEIRA, 1993, p.227 e VIEIRA, 2001, p. 168.
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Hesíodo4 descreveu-o como jovem dotado de uma beleza inigualável, considerando-o deus do Amor e do desejo. Em teogonias posteriores, já na era póssocrática, a filiação de Eros foi controversa e variável entre Afrodite e Zeus, Ares ou Hermes, ou ainda Poro (Expediente) e Pénia (Pobreza). Esta última, defendida por Platão5, explicava a natureza inconstante e insatisfeita do Amor, em permanente busca de realização, e retirava a Eros o estatuto de deus maior, concebendo-o como génio mediador entre deuses e Homens. O escritor latino Lúcio Apuleio6 relacionou Eros grego com o Cupido romano7 e ligou este deus a Psique, uma virgem mortal de exímia beleza que os homens passaram a adorar em detrimento de Vénus, mãe de Cupido.8 Esta, por vingança, pediu ao filho que fizesse a donzela apaixonar-se pelo homem mais feio, pobre e indigno. Todavia, Cupido enamorou-se da bela jovem e, sob a forma de voz incorpórea, ocultando a identidade e o aspecto, tomou-a em segredo e fê-la jurar que jamais tentaria descobrir o aspecto do ente amado. Mas curiosa por natureza e ainda incitada pelas irmãs, Psique não resistiu à tentação e, numa noite, aproximou uma lamparina do rosto do marido que dormia a seu lado. Quando descobria tratar-se de Cupido, teve, contudo, o infortúnio de deixar cair sobre ele uma gota de azeite quente, acordando-o. Sentindo-se traído, o deus fugiu. Psique, assim relacionada com a Alma inquieta e ávida de descoberta, foi abandonada pelo Amor e punida por Vénus, revoltada com o desaparecimento do filho. Num dos castigos, Psique teve de descer ao infernal Hades e de lá trazer para a deusa uma boceta fechada com um pouco da formosura de Prosérpina. Contudo, incauta e vaidosa, Psique não resistiu à tentação de abrir o recipiente e aspergir-se mas logo descobriu o logro quando inalou um aroma soporífero que a induziu em sono profundo. Arrependido pela fuga e tomado pela saudade, Cupido conseguiu acordá-la usando o poder do Amor9. Com a permissão de Zeus e a reconciliação de Vénus, Psique foi tornada imortal e uniu-se a Eros. 4 Hes, Theog., ref. por GRIMAL, 1992, p. 148. 5 Plat., Smp., passim, ref. por GRIMAL, 1992, p. 148. 6 Lucius Apuleius nasceu em Madaura, actual Argélia, c.125 e faleceu em Cartago, c.180. 7 Na Mitologia Romana o deus grego Eros correspondia a Cupido. 8 APULEIO, 1990, pp. 81-119. 9 Tradições diversas defendem que Eros terá acordado Psique com um beijo ou com uma flecha, embora a primeira versão tenha colhido mais frutos no meio poético e artístico – cfr. GRIMAL, 1992, p. 400.
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Desde a Antiguidade greco-romana10 a representação desta lenda foi bastante comum na escultura, na pintura e no mosaico11. Em termos figurativos, Eros foi amiúde adornado com asas e Psique cristalizada no sono ou acordada pelo seu beijo.12 No primeiro estudo, Almada Negreiros representou com fidelidade o momento em que Psique descobriu, à luz da lucerna, o rosto de Eros adormecido. Por seu turno, no segundo estudo e na obra definitiva parece estar ilustrado o instante em que Eros encontrou Psique adormecida pela água da Fonte da Juventude. No entanto, aqui verifica-se uma insólita permuta de atributos entre as duas figuras, sendo que Psique apresenta as asas de pássaro iconograficamente atribuídas a Eros e este está desprovido delas mas segura a lucerna de Psique. A atitude de contemplação protagonizada por Eros, ao invés de beijar ou alvejar a amada com uma seta para acordá-la, também é invulgar. Como de pronto não se encontrou explicação para estas alterações iconográficas, alguns autores13 pensaram tratar-se de uma ilustração do tema A Queda de Ícaro. Consideraram que Psique seria Ícaro caído, jovem e algo andrógino, com as asas que o permitiram sair do labirinto do Minotauro e, por seu turno, tomaram Eros por Dédalo, certificando-se da morte do filho. Contudo, o tema de Eros e Psique parece-nos, sem margem para dúvida, o correcto, ainda que marcado pela não convencional partilha de atributos que aparenta uma inversão dos papéis das personagens na primeira parte da lenda (ou seja Eros descobrindo o rosto de Psique à luz da lamparina, ao contrário da lenda). A invulgar representação escolhida para a versão definitiva do projecto tem, no entanto, um precedente literário no poema Eros e Psique, de Fernando Pessoa14, amigo de Almada e seu companheiro da geração modernista:
10 Eros foi identificado com Cupido na Mitologia Romana Antiga. 11 A título de exemplo, no mosaico peninsular destacam-se os dois mosaicos cordobenses com o abraço entre Eros e Psique, ainda crianças, ambos de finais do séc. III e inícios do séc. IV d.C., respectivamente no Alcázar de lo Reyes Cristianos e na Caja de Ahorros. 12 Exemplo da escultura de António Canova, 1793 (Psique reanimada pelo beijo de Amor, no Museu do Louvre). 13 A obra foi a leilão no ano de 2001, com o n.º 547 e o título A queda de Ícaro – Cfr. Colecção Canto da Maya, Catálogo de Exposição e Leilão de Pintura e Escultura Portuguesa, Palácio do Correio Velho, Lisboa, 2000, p.10. 14 PESSOA, 1934, p.13. A citação em jeito de prólogo ao poema é tradução do poeta a partir da obra referida.
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EROS E PSIQUE «... E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que Vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma Verdade.
«Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal.»
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.»
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O final do poema contém a mesma metáfora de projecção reflexiva pró-unificadora observada na pintura: o reconhecimento do Infante na própria Princesa encantada é equivalente à revisão de Eros em Psique por meio dos atributos partilhados. Esta espécie de comunhão está relacionada com a interpretação hermética das personagens e do tema enquanto metáfora do conhecimento, na medida em que Eros é, no momento arcaico, o agente ordenador e unificador dos elementos dispersos do caos e ao mesmo tempo a figura do Amor que une os opostos. Manipulador da prima materia, por excelência, Eros foi considerado pelos herméticos como a figura do guia iniciático por excelência nos processos da gnose unitária.15 Estes passavam pela morte (o sono referido no poema de Pessoa e figurado no vitral de Almada) e pela ressurreição (representada pela hera no mesmo poema e pelas asas de Psique no mesmo vitral) simbólicas que permitiam a regeneração psíquica e espiritual necessária ao neófito para alcançar formas de conhecimento superior. Para os esotéricos, Eros é o Eleutério, ou libertador, da condição inferior (designada por obscura e falsa no poema) e o facilitador da chegada ao Éden de Luz pelo percurso da via divina. Ele é, por conseguinte, o activador do processo criativo da mente, inspirando e abrindo o canal da intuição para um entendimento mais elevado e abstracto das partes que formam o Cosmos. Por seu turno, Psique (Psyche em latim, Psykhe em grego) protagoniza a Alma e o Espírito inicialmente mergulhados no sono obscuro que simboliza o desconhecimento e depois acordados pela iniciação nos Mistérios. À luz do esoterismo gnóstico, o vitral de Almada Negreiros revela uma dimensão unificada dos pormenores que o compõem, deixando perceber que todos eles se revestem de particular simbolismo orgânico: a matéria vítrea permite a entrada da Luz gnóstica (Fogo Subtil) no espaço onde o vitral foi colocado; o chumbo16, metal saturnino que se acreditava poder ser transformado em ouro pelos alquimistas, une e ao mesmo tempo fracciona o vidro em 5 partes maio15 Algumas estelas funerárias gregas dos séculos IV e III a.C. apresentam Eros encaminhando Psique, pela mão, talvez assumindo-se como guia iniciático desta nos Mistérios. Estes Mistérios poderiam ser os celebrados em Elêusis, cidade agrícola próxima de Atenas, e compreendiam ritos iniciáticos integrados no culto da fertilidade da terra, associado às deusas Deméter (das colheitas) e sua filha Perséfone (sequestrada por Hades, deus do Mundo Inferior). O rapto de Perséfone induzira Deméter em profunda tristeza, descurando as lides da agricultura e dando origem ao Inverno, tempo de carestia. Mas Hades permitiu que a filha visitasse a mãe durante alguns meses e nesse período a deusa esmerava os seus trabalhos, permitindo a abundância no Verão. 16 Para um significado do metal Chumbo no esoterismo, vide CHEVALIER e GHEERBRANT, s.d., p. 192.
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res e verticais, simulando as grades de uma janela esotérica17; a lucerna foi adjudicada a Eros gnóstico como fonte simbólica da Luz do conhecimento; a figura de Eros tem a coloração amarelo-ouro do Corpo de Luz e da fase citrina; a sua atitude vigilante e até orientadora em relação a Psique transforma-o no guia iniciático desta; o sono de Psique é uma metáfora para o engano operado pelos sentidos18 e uma alusão à morte iniciática para superar o engano e alcançar a verdade; a serenidade do seu rosto, desmentida pela tensão da sua mão direita, demonstra que a dúvida impede o profundo descanso; as asas de Psique funcionam como símbolo da desmaterialização, da saída do corpo sensorial e enganador, e do alcance do conhecimento19. Almada conviveu com alguns esotéricos do círculo de Orpheu e mais tarde da Presença20 e também procurou a chave do conhecimento que veio a encontrar na Aritmética pitagórica21 quando aprofundava o estudo sobre a cultura da Antiga Grécia. Com base no princípio do Número Perfeito (o theleon, de Pitágoras referido por Vitrúvio) teorizou sobre o cânone geométrico na Arte, encontrou a relação 9/10 e desenvolveu uma «metafísica imanencial»22. Mas o hermetismo simbólico evidente no vitral Eros e Psique tem contornos singulares na Obra deste artista23 e as circunstâncias em que se desenvolveu levam a crer
17 Para um significado da Janela no esoterismo, vide CHEVALIER e GHEERBRANT, s.d., p. 382. 18 Para os herméticos «o significado real da iniciação é, para este mundo em que vivemos um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos pelos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão.» - in PESSOA, Esp., 54, A-55. 19 Crf. CHEVALIER e GHEERBRANT, s.d., pp. 92 e 93. O facto de serem asas de ave e não de borboleta, como acontecia na tradição greco-romana, pode estar relacionado com uma aproximação à iconografia do Espírito Santo. 20 De Fernando Pessoa pintou um primeiro retrato no mesmo ano em que terá realizado este vitral. 21 Nos Anos 40, Almada ambicionou «a transplantação da Grécia Antiga no nosso Portugal» e proferiu um discurso no Salão do jornal Diário de Notícias, onde mostrou «Portugal na Europa com os olhos de Homero». Sobre o evento, o jornalista Norberto de Araújo escreveu que se assistira a uma «noite de sonho colectivo» e considerou a intervenção como «o mito interpretado pelo mito» – vide VIEIRA, 2001, p. 172 e FRANÇA, 1985, p. 492. 22 José-Augusto FRANÇA fala de «metafísica imanencial» em Almada Negreiros, com base na ideia da Geometria enquanto «primeira posição do conhecimento, ou seja, a mais próxima do recebimento da imanência» – vide FRANÇA, 1985, p. 495 – apud Almada, in Diário de Notícias, 16-06-1960, entrevistado por António Waldemar. 23 Este hermetismo simbólico não parece ter tido qualquer repercussão nos painéis de azulejos figurados com arlequins ou sequer no de motivos geométricos que o artista executou para a mesma casa no Restelo. Este último é paradigmático da fase em que Almada estudou a Geometria e o Número, não devendo, por isso, ser entendido noutros contextos especulativos. Só a decoração que envolve a porta principal da residência indica também ter estado sujeita a conceitos herméticos.
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ter havido alguma intervenção externa. Com efeito, o primeiro esboço parece confirmar que Almada se propunha tratar Eros e Psique de acordo com a iconografia clássica de origem grega e a mudança no segundo estudo faz pensar numa encomenda temática de características muito específicas, talvez não cabalmente apreendidas logo no início mas depois reajustadas a gosto de outrem. Infelizmente não se encontrou qualquer registo escrito que documentasse a encomenda e pudesse esclarecer as dúvidas levantadas. Mas a incessante investigação levou-nos ao encontro de memórias vivas24 que testemunharam a amizade entre o artista e os proprietários da residência para onde o vitral foi concebido. Esta relação tão próxima parece ter sido suficiente para escusar a formalidade e firmar o contrato na combinação discursiva. A dependência da casa25 onde a obra foi integrada (e para a qual foi, afinal, pensada) era o estúdio privado de José Manuel da Mota Gomes Ferrão (1928-1993) – ou simplesmente José Manuel, como preferia assinar –, malogrado poeta, pintor, compositor e dramaturgo, fundador da revista Eros26 e profundo admirador da obra de Fernando Pessoa. Este atelier27 era um nigredo com paredes cor de ébano, raiadas de branco albedo por estrelas de cinco pontas28, e animado apenas pela luz colorida do vitral colocado numa janela sobre a estante livreira voltada a Poente. Senhor de uma personalidade complexa e de trato peculiar condenou a sua obra manuscrita e pictórica ao silêncio do Fogo, num desejo cumprido post mortem. Escaparam à damnatio as obras publicadas, de entre as quais se destaca a paradigmática Alquimia do Sonho29 que permite
24 Referimo-nos à Dr.ª Madalena Guitart Ferrão, à Sr.ª D.ª Cecília Guitart Ferrão e à Dr.ª Maria Augusta Barbosa. 25 A decoração desta moradia, entretanto vendida e hoje desabitada, em estado de lamentável degradação, conta também com vários painéis de azulejos de Almada Negreiros, uma tapeçaria de parede concebida por Sara Afonso e uma pintura de paisagem, da autoria de Henrique Viana, entre outras obras de diversos artistas do Modernismo português. 26 Revista de ensaio e poesia, publicada entre 1951 e 1958, fundada em colaboração com Fernando Guimarães, António José Maldonado e Jorge Nemésio. O título do periódico parece reforçar a certeza do tema tratado. 27 Infelizmente não nos foi concedida autorização para fotografar qualquer dependência da casa, talvez devido ao seu estado de degradação. Porém, a permissão para visitar o interior permitiu confirmar que se mantêm a divisão dos espaços e a pintura das paredes a branco sobre negro na zona privada de José Manuel. 28 Estas estrelas de 5 pontas foram deixadas em aberto e repetem os motivos da entrada principal e do painel geométrico de azulejos na frontaria. 29 José Manuel (FERRÃO), Alquimia do Sonho,Tipografia Ideal, Lisboa, 1952.
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não apenas comprovar a já adivinhada relação deste encomendante com o esoterismo, mas também entender a evolução conceptual do vitral de Almada, desde a plasmação rigorosa da lenda no primeiro estudo, até à posterior reorganização dos símbolos e a consequente viragem de significados no estudo definitivo. O vitral Eros e Psique, de Almada Negreiros, foi visualmente construído com o vocabulário imagético da lenda de Apuleio mas semanticamente organizado de acordo com o sentido hermético da sua interpretação para resultar numa alegoria ao ritual dos Mistérios iniciáticos. A iconografia clássica surge, por conseguinte, alterada pelo simbolismo ocultista, parecendo invertida ou encriptada e gerando alguma polémica em torno da sua leitura. A pseudo-mutação contida nesta obra não é, afinal, mais do que a teoria hermética materializada em imagem por processo de alquimia mística, e o seu sentido último fica clarificado com a leitura da derradeira parte do poema de Fernando Pessoa que consubstancia a ideia de união final e faz um retorno à figura do Eros pré-socrático. Poeta esotérico com predilecção pelos sentidos obscuros e relacionado com a fina-flor da cultura futurista, José Manuel Ferrão deixou a sua marca indelével nesta obra de Almada. Essa característica influência de encomendante veio-lhe da mãe, D.ª Maria da Piedade, que havia já determinado fortemente as linhas mestras do projecto de António Varela para a moradia no Restelo. É muito possível que também aí o próprio José Manuel tivesse intervindo, solicitando que fosse criada uma zona para seu uso privado, autónoma e quase independente, em jeito de casa dentro da própria casa, com quarto, casa-de-banho, estúdio e pequena “cozinha”...
Agradecimentos À Dr.ª Maria Madalena Guitart Ferrão, filha do poeta José Manuel Ferrão, e à Sr.ª D.ª Cecília Guitart Ferrão, viúva, pela partilha de vivências e empatia; À Dr.ª Maria Augusta Barbosa, amiga da família Ferrão, pela disponibilidade e preciosas informações. À Sr.ª D.ª Maria Almeida, secretária do actual proprietário da vivenda no Restelo, Sr. Carlos Lopes, pela cedência de algumas imagens do exterior arquitectónico. Ao Carlos Martins, pela companhia.
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Fachada principal da residência projectada por António Varela na Rua de Alcolena, N.º 28, Bairro do Restelo
Panorâmica do ângulo nordeste da residência, voltado para a Capela do Restelo
Entrada principal, na fachada lateral esquerda, voltada a Poente
Panorâmica da fachada lateral esquerda, com a entrada principal, a escada de acesso ao primeiro piso (zona privada de José Manuel) e janela onde se encontrava o vitral (janela rectangular mais estreita)
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RESUMO
ABSTRACT To consider the work of Pedro Cabrita Reis from an iconographic viewpoint may seem a contrary or even an impossible task. However, I believe it is a relevant challenge, firstly because it may reveal the limitations of the interpretative aspiration that constructed Iconography as a discipline and was later extended in the Panofskian version of Iconology. Secondly because, based on the same premise, it presents us with a perspective on the destabilization that Contemporary Art brought to the conceptual boundaries established within the field of Art History and that of it’s related disciplines. Starting with this problematic perspective, some recent works of Pedro Cabrita Reis will be analysed.
Analisar a obra de Pedro Cabrita Reis sob o mote da iconografia poderá parecer um contra-senso ou uma impossibilidade. Creio, no entanto, que se trata de um desafio relevante. Primeiro porque nos leva a reflectir sobre os limites da pretensão descodificadora que constituiu a base da definição disciplinar da iconografia, aprofundada ainda na versão panofskiana da iconologia. Depois porque, por essa mesma via, nos introduz uma perspectiva sobre o grau de desestabilização que a arte contemporânea trouxe às fronteiras conceptuais estabelecidas no território da História da Arte e das disciplinas que com ela se interligam (incluindo, naturalmente, a iconografia). Partindo desta problemática serão analisadas algumas obras recentes do artista.
A CONSTRUÇÃO DE MUNDOS EM PEDRO CABRITA REIS Joana Cunha Leal *
Analisar a obra de Pedro Cabrita Reis num curso organizado sob o mote da iconografia e que apresenta, por isso, como horizonte essencial de debate as questões ligadas à imagem e à representação pode, à primeira vista, parecer um contrasenso. Causará, no mínimo, a todos aqueles que estiverem mais familiarizados com a sua produção artística, alguma perplexidade, desde logo porque os objectos/construções/instalações que Pedro Cabrita Reis fundamentalmente cria estão muito distantes das qualidades gráficas que o conceito restrito de imagem primeiro convoca, tal como permanecem radicalmente afastados dos modos tradicionais de representação. Analisar a obra de Cabrita Reis num curso organizado sob o mote da iconografia não constitui, porém, uma impossibilidade mas um desafio que julgo relevante. Relevante porque, em primeiro lugar, nos leva a reflectir sobre os limites da pretensão descodificadora que constituiu a base da definição disciplinar da iconografia, aprofundada ainda na versão panofskiana da iconologia (cf. H. Damisch, 1974). Em segundo lugar porque, por essa mesma via, nos introduz uma perspectiva sobre o grau de desestabilização que a arte contemporânea trouxe às fronteiras conceptuais estabelecidas no território da História da Arte e das disciplinas que com ela se interligam (incluindo naturalmente a iconografia). Começamos precisamente por lembrar que a iconografia fundamenta o seu quadro disciplinar no pressuposto (historicista) de que o sentido das imagens pode ser reconhecido e fixado, bastando para tanto conhecer o contexto em que são forjadas. Na fórmula putativamente mais exigente da iconologia definida por Erwin Panofsky (1989 [1939]: 31-47), contra a orientação estritamente formalista que dominou o essencial da história da História da Arte entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, entende-se
* Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
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que o horizonte de significação das obras de arte é eminentemente simbólico e elege-se como tarefa prioritária descodificar o significado que as obras encerram. Para tanto, a interpretação histórica dos significados deveria superar os aspectos descritivos e classificadores da análise das temáticas e dos conteúdos expressos de modo literal, i.e., imediato, directo, para alcançar um conteúdo intrínseco, mais profundo e não imediato. Sem se satisfazer com a identificação da passagem bíblica ou do acontecimento histórico a que determinada imagem se refere – tarefa própria da iconografia –, a iconologia procura, assim, desvendar o significado simbólico depositado sob o motivo expresso, depositado sob aquilo que imediatamente nos é dado ver. Neste nível de leitura, os dados últimos e essenciais que estão na base de todas as manifestações artísticas de uma época seriam finalmente revelados, porque, pressupunha Panofsky, cada obra encerraria “uma auto-revelação involuntária e inconsciente de uma atitude de fundo para com o mundo” (uma atitude que, portanto, se revelaria independentemente do artista ter ou não consciência dela)1. Mais do que comentar a ambição da definição panofskiana, interessa aqui reter o facto da tarefa icononológica manter intacta a motivação classificadora da iconografia. Ou seja, a iconologia pretende enunciar/fixar aquilo que as imagens (e em particular as obras de arte) simbolizam; pretende declarar-lhes um sentido que, independentemente da sua profundidade, é ratificado pelo discurso da ciência e fixado como verdade, como significado imanente e perene (i.e., não transitório). Este paraíso de transparente correspondência entre o sentido depositado e o sentido lido nas imagens vem sendo radicalmente posto em causa pela produção artística contemporânea e pela reflexão crítica que se gerou em
1 O “significado intrínseco ou conteúdo é apreendido pela averiguação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, período, classe, convicções religiosas ou filosóficas – modificados por uma personalidade e condensados em uma obra. [...] Uma interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia mesmo mostrar que os procedimentos técnicos característicos de um determinado período, país ou artista [...] são sintomáticos da mesma atitude básica que é discernível em todas as outras características específicas do seu estilo. Ao conceber deste modo as puras formas, motivos, imagens, histórias e alegorias como manifestações de princípios subjacentes, interpretamos todos estes elementos como aquilo a que Ernst Cassirer chamou simbólicos” (E. Panofsky, 1989 [1939]: 33). A frase mencionada no texto é citada por O. Calabrese (1986 [1985]: 27) com base no ensaio publicado por Panofsky em 1932 (“Sobre o problema da descrição e da interpretação do conteúdo de obras da arte figurativa”).
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seu torno. A ruptura produzida pelas vanguardas firmou um território artístico essencialmente orientado para a ambiguidade e a auto-reflexividade (como nos ensina U. Eco), um território onde a possibilidade de encontrar um sentido único (putativamente verdadeiro) não parece ser sequer contemplada (daí também o uso recorrente do conceito de crise para designar quer a situação da arte contemporânea, quer das disciplinas centradas na análise da produção artística, incluindo a História da Arte). Por outras palavras, vivemos num mundo onde as formas artísticas, independentemente do seu grau de iconicidade (i. e. independentemente de uma maior ou menor aproximação às imagens do mundo que nos rodeia), se afastam de uma significação estável (ou antes, tida como verdade depositada), cuja descodificação vinha estando, já vimos, a cargo da iconografia e da iconologia. A ambiguidade fundamental dos objectos/construções/instalações criados por Pedro Cabrita Reis contribui justamente para a desestruturação de um universo de significação tomado como pretensamente estável (cristalizado). A obra de Pedro Cabrita Reis confronta-nos, mais precisamente, com uma linguagem plástica de grande densidade poética onde, e isto é que é importante, a naturalização forjada dos significados é superada. Nela os significados (re)adquirem a sua condição arbitrária devolvendo-nos, nas palavras do artista, o “genial e absoluto caos inicial” (P. Cabrita Reis, 1992: 148). Semelhante operação é, sublinhe-se, absolutamente consciente: Cabrita Reis defende que é precisamente a partir deste caos que a inteligência da arte deve agir ou, como também escreve, “nas ‘mãos’ do artista [ele será] matéria para a permanente construção do mistério, pois a arte, ao contrário das outras formas de conhecimento será tanto mais perfeita quanto maior for o grau de obscurecimento a que nos conduza” (idem). Aproximemo-nos um pouco do percurso e da obra de Pedro Cabrita Reis (seguramente um dos artistas portugueses mais internacionalizados). Nasceu em Lisboa em 1956 e formou-se em pintura na ESBAL. Expõe regularmente desde o início da década de 1980, tendo as primeiras mostras do seu trabalho privilegiado fundamentalmente o campo da pintura e do desenho. Estas fronteiras disciplinares iniciais foram, porém, rapidamente ultrapassadas, cedendo lugar a uma ampla diversificação das técnicas e dos materiais convocados para a criação de objectos/construções/instalações. No final dos anos 80 estes eram já a face mais conhecida da sua obra, ainda que, diga-se, tal viragem não fosse sinónimo de abandono dos meios de produção anteriores: por um
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lado a prática do desenho permaneceu intocada em sucessivas séries de autoretratos; por outro lado, assistimos à reposição de valores pictóricos em parte das suas obras mais recentes (fenómeno que voltará a ser mencionado mais adiante). Seja como for, os objectos/construções/instalações de Pedro Cabrita Reis – e deles nos ocuparemos daqui para a frente – escapam intencionalmente à possibilidade de uma categorização disciplinar tradicional (pintura, escultura, arquitectura), potenciando antes cruzamentos de uma variedade inesgotável (veja-se, por ex. The project de 2002 [escultura-arquitectura] ou True Gardens #1 de 2000 [pintura – escultura - instalação])2. Parte substancial das obras produzidas mantém, para além disso, uma relação vital com o espaço em que se instala. São obras que apropriam e metamorfoseiam o espaço, ou território, como prefere Cabrita Reis, para o qual foram projectadas, pelo que habitualmente se designam como site specific – é ainda o caso de True Gardens #1 ou de D’aprés Piranesi (2001), I dreamt your house was a line (2003) e Longer Journeys (2003). Mas deve sobretudo acentuar-se, voltando à perspectiva chave desta abordagem, que as séries de objectos/construções/instalações de Pedro Cabrita Reis são normalmente realizadas a partir da utilização de matérias e formas comuns no mundo que habitamos. Matérias com as quais estamos sobejamente familiarizados por via do confronto quotidiano com a paisagem urbana e com tudo o que esta tem de mais estável e de mais acidental (dos estaleiros de obras às casas e aos jardins, dos equipamentos aos interiores domésticos, das canalizações às portas e janelas). Mais precisamente, embora o plexiglas e a cor das tintas de esmalte, ou acrílicas, sejam recorrentemente utilizados em trabalhos recentes – justamente aqueles em que os valores pictóricos são reassumidos (vejam-se os Polychrome #2 e #3, Cabinet d’Amateur #2 ou, uma vez mais True Gardens #1) –, a maioria das obras de Pedro Cabrita Reis é realizada a partir de um conjunto vasto de materiais e elementos associados à construção civil (tijolos, madeiras, cimento, alumínio, vidro, gesso, cabos eléctricos, tubos de canalizações, portas e janelas etc...). Semelhante apropriação das matérias que compõem a paisagem urbana tem o efeito de nos reportar a um universo arquitectónico invariavelmente 2 O catálogo completo de todas as obras que seguidamente se citam está disponível em Pedro Cabrita Reis. – S.n.: Hatje Cantz, 2003.
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vernacular. A ela associa-se ainda a utilização de outros materiais não nobres como cartões, feltros, tecidos, lâmpadas fluorescentes ou fita adesiva, e objectos de uso quotidiano, nomeadamente em ambiente doméstico, como cadeiras, jarros, cestos, panelas, caixas, mesas etc..., muito frequentes em obras do final dos anos 80 e início de 90 (veja-se Meus pais deram-me aquilo que podiam, alma da sua diversa de 1993). Volto a acentuar que destas matérias-primas e destes elementos resultam, à primeira vista, formas e situações familiares. Porém, cedo damos conta da absoluta estranheza destes objectos/construções/instalações, cedo damos conta da provocação que nos lançam, na medida em que, embora retenham a memória da sua execução material, o comum, o banal, o habitual foi-lhes afinal radicalmente arrancado. Ou seja, a relação antes estabelecida entre estes significantes e o seu significado foi subvertida, ou surge completamente deslocada. Destituídas do seu sentido literal/denotativo, essas matérias várias reencontram finalmente no trabalho de Pedro Cabrita Reis uma dimensão metafórica que escapa aos limites da análise iconográfica (tal como foi sendo definida), ou que, mais precisamente, implode esses limites porque abre infinitamente as possibilidades de sentido sem nunca deixar que se fixe um significado definitivo ou mais verdadeiro. Como escreve José M. Miranda Justo a propósito da condição metafórica da obra de Cabrita Reis:“As metáforas são o modo de nos defrontarmos com o que ainda não conhecíamos, com a abertura ao sentido, com a fome e a sede de sentido que nos assalta para lá de todo o conhecimento razoavelmente claro. (...) As metáforas são transposições é certo, mas não do conhecido para o conhecido. Por vezes serão do conhecido para o desconhecido. Outras vezes serão do desconhecido para o desconhecido. Num caso como no outro, o que importa, em primeiro lugar, é o seu efeito de obscurecimento.” (2003: 143). Donde, em vez do movimento centrípeto/concentracionário accionado pela análise iconográfica (ou iconológica) em nome da descodificação de um significado preestabelecido (i.e., já depositado), o que nos temos é um movimento centrífugo e caleidoscópico, mediante o qual as possibilidades de significação se multiplicam indefinidamente. Vejamos mais detalhadamente algumas obras de Pedro Cabrita Reis.
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A Room for a Poet, 2000 (Colecção do Artista, projecto); Fotografia de Dirk Pauwels
1) A room for a poet, 2000 O muro de tijolo com marcas grosseiras de cimento construído a céu aberto enquadra uma oliveira solitária e oferece duas aberturas, duas aberturas que tendemos a identificar como porta e janela. Neste “quarto para um poeta” as pressupostas porta e janela estão, porém, longe de cumprir a sua função ritual (ou tradicional): dão passagem mas não dão acesso, não resguardam nem cerram. O próprio muro oferece uma condição idêntica, agravando-a porque a rudeza da sua execução o atiraria para a esfera do estritamente funcional, esfera a que seguramente não pertence. Uma situação agravada finalmente pela estranha proximidade da árvore cuja sombra é porventura mais protectora do que o conjunto edificado. A nota lírica do título – A room for a poet – oferece uma última provocação, dilatando o imaginário ligado a este objecto simultaneamente alheio e familiar, rude e poético, artificial e natural. Um objecto contrastante onde muros, portas e janelas adquirem um obscurecimento fundamental que tem força de nos evocar a presença de todos os quartos de poetas que habitaram, habitam e habitarão o mundo.
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Una Casa, 2000 (Colecção do Artista); Fotografia de Paolo Pellion
2) Una casa, 2000, Altra casa, 2000, Unframed, 2001 e 1+1, 2003 Portas e janelas vêm sendo de resto, matéria fundamental na laboração de Pedro Cabrita Reis. Conservando invariavelmente a memória de uma vocação funcional que cruza o dia-a-dia de qualquer um, estes elementos são explorados por Cabrita Reis de modo a criar novas e insuspeitas situações de ambiguidade. Elevados sobre plintos ou convertidos em suporte de pintura, estes objectos (por vezes mesmo objects trouvés) surgem transfigurados, metamorfoseados, adquirindo uma condição (e um sentido) alheio ao universo mais banal de onde provêm.
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Blind Cities #1, 1998 (Colecção do Artista); Fotografia de Vicente de Mello
3) Blind Cities, 1998-1999 As “cidades cegas” de Pedro Cabrita Reis, realizadas a partir de 1998, colocam-nos perante novos e agigantados paradoxos. O primeiro advém do facto de nos confrontarmos com um empobrecimento das matérias envolvidas na sua construção: muito contraplacado, cartão, fita adesiva, fios de telefone e alguma cor levam a maioria dos críticos a recordar “regras, qualidades, sistemas operativos, materiais, [e] conceitos que pertencem mais ao repertório dos anónimos construtores de favelas e de bidonvilles do que aos tratados arquitectónicos” (Bruno Corà, 1999: 39). Nesta cidades deslocar-nos-iamos, portanto, a um território de pretensa marginalidade estética, muito distante do contexto artístico em que as encontramos inseridas. O segundo e, em face da perspectiva que vimos abordando, mais decisivo paradoxo advém da evocação da cegueira numa série de construções dotadas de janelas (ainda que por vezes os vidros tenham a opacidade da pintura) e que evocam decididamente torres de vigia (como aliás sucede em Olhar, olhar sempre, realizada em 2000 num mais nobre aço inox). Como foi já amplamente notado por João Fernandes (2003), as obras desta série transformam o espaço onde se instalam em territórios marcados pelas possibilidades de observação que representam. Donde, a evocação metafórica da cegueira parece atingir mais a condição do espectador do que a dos seus fragmentos de cidade, ina-
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cessíveis e misteriosos. De qualquer modo, a provocação fundamental permanece, deixando-nos um sentimento de estranheza absoluta em face da familiaridade destas improváveis “cidades cegas”.
True Gardens #2(Stockholm), 2001 (Colecção Magasin 3 Stockholm Konsthall, Stockholm); Fotografia de Neil Goldstein
4) True Gardens, 2000-2001 Os jardins de Pedro Cabrita Reis, aqueles a que chama “verdadeiros jardins”, só num primeiro momento consideram a presença natural da natureza. Justamente, a primeira obra desta série, instalada no pátio interior do Centro de Arte de Le Crestet, em Aix-en-Provence, consistia numa plataforma rectangular com dois painéis coloridos a tinta de esmalte e um conjunto de nove espelhos nos quais se dava a ver o reflexo das árvores, do céu e do próprio edifício que lhes dá guarida. No segundo trabalho dos True Gardens, apresentado em Estocolmo, a ligação ao mundo exterior, bem como a presença expectável da natureza (ainda que mantida em segunda mão, ou seja, através do reflexo dos espelhos como acontecia na primeira obra), surge já completamente superada. O jardim de Cabrita Reis estende-se no interior da galeria, composto por
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uma série de caixotes rectangulares que envolvem as grossas colunas de suporte da cobertura (novas árvores?). Dispostos no chão sem geometria, estes caixotes foram cobertos por painéis de vidro fosco sob os quais se difunde o efeito das luzes fluorescentes. O terceiro dos True Gardens, apresentado em Dijon, foi construído a partir de finas paredes de tijolo e é, como já foi notado, o trabalho mais arquitectónico desta série (cf. W. Davidts, 2004). Ou seja, num crescendo Pedro Cabrita Reis desconstrói a imagem (e portanto o sentido) do que habitualmente designamos como jardim. Os verdadeiros jardins de Pedro Cabrita Reis não perderam só a ligação com o mundo da natureza, mas repõem também a ideia da artificialidade de qualquer acção de ajardinamento, quebrando desse modo a garantia dos conteúdos pré-determinados e alheios a interrogações. 5) Cabinet d’Amateur #2, 2001 Em Cabinet d’Amateur #2 a cor invade o espaço da galeria. Chega-nos numa profusão de painéis de vidro pintados em acrílico, ordenados em grelhas seriais construídas em metal (na realidade os suportes são portas, 33 no total). As ressonâncias mais imediatas desdobram-se aqui entre dois pólos irreconciliáveis: por um lado, a lógica de amostragem dos catálogos industriais; por outro a lógica cumulativa das pinacotecas e galerias oitocentistas que o título convoca. Os trabalhos de Pedro Cabrita Reis pertencem a um território livre da pretensa clareza de fórmulas explicativas, descritivas ou ilustrativas. Confrontamo-nos antes com uma constante necessidade de interrogação. Confrontamnos, mais precisamente, com um universo onde as formas arquitectadas, independentemente do grau de simplicidade ou complexidade que apresentam, procuram cumprir “o absoluto desejo de metáfora” (P. Cabrita Reis, 1992: 148), obscurecendo o dado para finalmente, o abrir num sentido indeterminado, mais produtivo e verdadeiro porque mais poético(J.C. Leal, 2004: 120). Por isso as obras de Pedro Cabrita Reis expandem as possibilidades de construção do mundo. Pedro Cabrita Reis expande a nossa apreensão do mundo e, por consequência expande o próprio mundo em que vivemos. Esse é, aliás, o desejo do artista. Como o próprio confessa numa entrevista concedida à revista Arte Ibérica em Fevereiro de 2000: “Um dos meus anseios mais profundos é que, após verem uma coisa minha, as pessoas identi-
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fiquem a realidade através dos meus trabalhos. Isto é, vêem a escada, o Posto de Observação, vêem a Catedral e, depois, ao passarem por um prédio em construção numa colina, não poderão jamais desligar-se do que viram. A arte, se se pretende como meio ou instrumento para expandir a inteligência ou a percepção do mundo, tem aqui uma função unificadora.”
Bibliografia CABRITA REIS, Pedro – 2000, “Realidades utópicas” [entrevista conduzida por José Sousa Machado] in Arte Ibérica. – N.32 (Fevereiro), pp. 68-74 1992, [Sessenta e oito textos de Pedro Cabrita Reis] in Pedro Cabrita Reis. – Lisboa: CAM-FCG CALABRESE, Omar – 1986 [1985], A Linguagem da Arte. – Lisboa: Presença CORÀ, Bruno – 1999,“Pedro Cabrita Reis: Conjuntos de lugares onde o encontrar” in Pedro Cabrita Reis. – Milano: Charta, Fundação de Serralves, pp.39-42 DAMISCH, Hubert – 1974, “Sémiologie et iconographie” in La Sociologie de l’Art et sa vocation interdisciplinaire. – Lisboa: FCG, 1974 (nº18 e 19 da Colóquio Artes), pp. 21-23, 29 DAVIDTS, Wouter – 2004, “Urban Eden” in www.pedrocabritareis.com ECO, Umberto – 1979, L’œuvre ouverte. - Paris: Seuil FERNANDES, João – 2003, “O construtor de lugares” in Pedro Cabrita Reis. – S.n.: Hatje Cantz, pp. 201-250 JUSTO, José M. Miranda – 2003,“Ensaio de Vocabulário para um Discurso do Método” in Pedro Cabrita Reis. – S.n.: Hatje Cantz, pp. 119-186 LEAL, Joana Cunha – 2004, “Pedro Cabrita Reis” in Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: Roteiro da colecção. – Lisboa: FCG, pp.120-121 PANOFSKY, Erwin – 1989 [1939], “Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte do Renascimento” in O Significado nas Artes Visuais. – Lisboa: Presença, pp. 31-47
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Patrick BOUCHERON: «‘Tournez les yeux pour admirer, vous qui exercez le pouvoir, celle qui est peinte ici’. La fresque du Bon Gouvernement d’Ambrogio Lorenzetti», in Annales. Histoire, Sciences Sociales, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales / Armand Colin, Nº 6 (Nov.- Dez. 2005), pp. 1137-1199 O extenso artigo publicado por Patrick Boucheron na revista Annales em finais de 2005, apresenta-se não apenas um novo contributo para a compreensão do fresco do ‘Bom Governo’ de Ambrogio Lorenzetti, e certamente alvo de interesse e crítica por parte dos historiadores da arte do período em questão, mas em simultâneo como um exemplo de reflexão sobre as vias através das quais uma obra pode catalisar a atenção de diferentes campos de saber. Na verdade, a marca distintiva deste denso artigo resulta precisamente do esforço assumido pelo historiador francês no sentido de, face a uma obra concreta, proceder à análise detalhada das propostas oriundas de metodologias disciplinares específicas, cruzando dinâmicas de construção e validação de distintos discursos académicos. O autor confronta o leitor com uma revisão sistemática e detalhada da multiplicidade de estudos produzidos acerca
da obra de Lorenzetti, e provenientes sobretudo do campo da história da arte, aliando-os aos originários de outros domínios, como o da história das ideias políticas (destacando-se a obra de Quentin Skinner, pretexto e contexto da própria origem da reflexão de Boucheron) e cruzando-os com o seu posicionamento e investigação pessoais enquanto historiador da vida urbana das cidades italianas de finais da Idade Média. Pretende-se aqui precisamente assinalar esses caminhos cruzados e a forma como são percorridos por Patrick Boucheron. O historiador começa por contextualizar o ciclo de frescos da autoria de Ambrogio Lorenzetti, pintados entre 1338-1338 na Salla della Pace do Palazzo Pubblico de Siena, na sua dimensão de ‘obra política’. Em simultâneo, sinaliza-a como uma das obras de arte mais analisadas, e quase de forma ininterrupta desde a sua criação, sujeita a contínuas reapropria-
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ções. É nesse sentido que considera que o todo imbrincado formado pelos frescos, pela profusão de objectos deles derivada, e pelas interpretações variadas a que foram submetidos, condiciona a possibilidade de olhar com carácter de novidade a obra de Lorenzetti. No entanto, defende que tal, mais que um entrave inultrapassável, é antes revelador da capacidade de contínua actualização da obra, em si mesmo propulsora de discursos continuamente renovados. Identificada a natureza complexa e múltipla do objecto de análise, Boucheron apresenta a sua reflexão não apenas como resultado circunstancial de um momento particular, o da publicação em francês do livro de Quentin Skinner L’artiste en philosophe politique. Ambrogio Lorenzetti et le Bon Gouvernement1, no âmbito do qual faria sentido propôr uma releitura do citado fresco. Antes teve lugar porque «as interpretações, e mais ainda que as interrogações, o método hermenêutico de Skinner, sublinham problemas gerais suficientemente importantes no campo intelectual em geral para merecerem uma discussão aprofundada. Mas inscrevem-se igualmente numa paisagem historiográfica com-
plexa e confusa que convém reconstituir pacientemente» (p.1138). O autor começa por apontar a necessidade de sistematizar o estado da questão, propondo-se fazê-lo mediante a utilização de diferentes escalas de contextualização (sinteticamente, ‘quem encomenda’, ‘a quem’, ‘onde’ e ‘porquê’). Num segundo momento, e derivando desta ‘aproximação pragmática’, crê ser possível avaliar com maior equidade o contributo da análise de Skinner. Para então «sugerir algumas pistas de reflexão quanto ao funcionamento propriamente pictórico de uma obra na qual a mensagem política não deve ser sempre procurada onde julgamos» (p.1138). A aproximação de Patrick Boucheron à obra de Lorenzetti parte pois da avaliação do contexto da encomenda, do momento particular em que para o governo dos ‘Novos’ (e numa época em que se assiste na Toscana ao avanço da dominação senhorial), a defesa da Comuna terá passado por uma campanha de propaganda política, na qual se inserem não apenas os frescos do Palazzo Pubblico mas também todo o arranjo do centro cívico de Siena e a refundação do
1 Quentin SKINNER, L’artiste en philosophe politique.Ambrogio Lorenzetti et le Bon Gouvernement, Paris, Raisons d’Agir, 2003
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Duomo. Por outro lado, Ambrogio Lorenzetti é caracterizado aqui como um ‘artista-filósofo’, capaz de aceder à cultura escrita em latim e em vulgar. E por isso mesmo, para além da possível existência de vários intermediários culturais entre a intenção política da encomenda e a realização pictórica da mesma, se considera que Lorenzetti, dispunha dos meios culturais para interpretar o programa iconográfico que lhe fora submetido, adaptado e executado com maior ou menor liberdade. Ainda nesta linha de reflexão, Patrick Boucheron identifica o palácio comunal como um repositório de imagens políticas. Inserida na vasta tradição de arte cívica e da aglutinação entre poder e imagem, a alegoria política é aqui considerada como a «inovação mais compreensível do programa pictural sienês» (p.1149), sendo o fresco do ‘Bom Governo’ um marco essêncial desse movimento cultural de conjunto. Este recurso, aliado à profusão de cartelas e letras pintadas que se identificam na pintura do Palazzo Pubblico, terão influenciado a percepção global da obra de Lorenzetti mas também do palácio como um todo, estabelecendo ligações entre as várias salas. O realismo figurativo é o terceiro traço fundamental do programa iconográfico de Lorenzetti, identificado neste artigo pelo autor como um recurso que con-
tribuiu significativamente para a consolidação de uma memória comunal. Após esta primeira aproximação, Patrick Boucheron destaca a importância assumida pela localização da obra: a sala de deliberação dos ‘Novos’. Sentados sob o fresco da alegoria das virtudes do ‘Bom Governo’, veriam com detalhe a representação dos seus ‘efeitos’ e, em simultâneo e como contraponto, o outro lado da sala, onde figura o ‘Mau Governo’ e as suas consequências sinistras. Esta divisão, entre por um lado a alegoria, e pelo outro o realismo pictórico, materializa-se não apenas na separação física dos suportes mas encontra ainda correspondência na apropriação disciplinar das mesmas: «os historiadores das ideias políticas (nomeadamente Quentin Skinner) comentam a alegoria do bom governo, os historiadores da cidade e da sociedade estudam os seus efeitos. Os primeiros confrontam as imagens com os textos políticos, os segundos com as realidades factuais» (pp.1156-1157). Contra esta dicotomia de perspectivas e especialização de olhares, o autor contrapõe que para o olhar do século XIV, olhar as consequências do bom e do mau governo seria talvez mais imediato e convincente que olhar simplesmente a alegoria dos vícios e das virtudes. Patrick Boucheron, na avaliação que faz da proposta interpretativa de
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Quentin Skinner, considera que este fundamenta a sua leitura da obra em função da identificação das fontes textuais que terão presidido à elaboração da mesma. O historiador das ideias políticas analisou pela primeira vez a obra de Lorenzetti em 1986, reafirmando a sua posição e desenvolvendo-a nos anos seguintes, desde logo para levar em conta as críticas de que fora alvo2. É esse conjunto de estudos que é publicado em França sob o título L’ artiste en philosophe politique, correspondendo a uma nova edição inglesa3. Destaque-se o facto de Patrick Boucheron inserir em contexto de produção historiográfrica a própria tradução que a obra de Skinner conheceu em França. Numa extensa nota de rodapé, o autor dá conta que já o livro de Quentin Skinner La liberté avant le liberalisme (2000) havia sido publicado por iniciativa de Pierre Bourdieu (na sua colecção ‘Liber’ das Éditions du Seuil): «o facto de L’ artiste en philosophe
politique constituir o segundo volume de uma colecção («Cours et travaux») dirigida pelo sociólogo e inaugurada pelo seu próprio Science de la science et réflexivité, o facto também de se saber que Pierre Bourdieu projectou prefaciar a obra, criaram condições de recepção específicas do campo intelectual francês. Estas não aconteceram noutro lugar, especialmente em Itália, onde as hipóteses de Quentin Skinner são discutidas por aquilo que são: contributos estimulantes, mas não definitivos, para um debate de historiadores» (p.1161). Avaliado o contexto de aparecimento da obra de Skinner, o autor identifica em seguida a sua proposta principal: o considerar que o fresco de Lorenzetti se destinava a transmitir uma série de mensagens políticas. A grande discussão, para Boucheron, passa por saber quais. Contrariando a visão de Rubinstein (1958), que o entendeu como suma visual da filosofia política de Aristóteles tal como
2 Quentin SKINNER, «Ambrogio Lorenzetti: the artist as political philosopher», in Proceedings of the British Academy, LXXII, 1986, pp.1-56; Quentin SKINNER, «”Buon Governo” frescoes: Two old questions, two new answers», in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, LXII, 1999, pp.1-28; Quentin SKINNER, «Ambrogio Lorenzetti e la teoria dell’ autogoverno repubblicano», in S. ADORNI BRACCESI e Mario ASCHERI (ed.), Politica e cultura nelle repubbliche italiane dal Medioevo all età Moderna: Firenze, genova, Lucca, Sienna e venezzia. Atti del Convegno Siena 1997, Roma, Istituto Storico Italiano per l’Etá Moderna e Contemporanea, 2001, pp.21-42 3 Quentin SKINNER, Visions of Politics, Vol. 2 – Renaissance Virtues, Cambridge, CUP, 2002, vide os capítulos: «The rediscovery of republican values», pp.10-38, «Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government», pp.39-92, «Ambrogio Lorenzetti on the power and glory of republics», pp.93-117
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fora transmitida e adaptada por Tomás de Aquino, e apontou como grande chave explicativa o conceito aristotélico de bem comum, Skinner vem refutar essa «filiação entre ideologia cívica e tradição aristotélica (…). Desejoso de escrever uma história da liberdade antes do liberalismo, Quentin Skinner inscreve-se numa controvérsia intelectual que diz respeito às próprias origens do humanismo» (p.1161). Skinner contraria assim a ideia de Hans Baron (1955) e o seu conceito de ‘humanismo cívico’ (bem como a data de 1400 enquanto ruptura entre Idade Média e Renascimento, e a revolução cultural introduzida por Salutati ou Bruni), e radicaliza a crítica lançada por Paul Oscar Kristeller (1979) ao defender uma data bem mais baixa para a emergência de uma consciência urbana da liberdade republicana na Itália comunal da primeira metade do século XIII. Skinner encontra essa relação entre retórica e liberdade no corpus de tratados da ars dictaminis, aos quais confere a máxima centralidade. Desta forma, a leitura que faz da obra de Lorenzetti não será mais, na opinião de Boucheron, que uma defesa e ilustração de uma tese central mais vasta: «eis o que é realmente decisivo aos olhos de Quentin Skinner: poder afirmar que “a ideologia da autonomia republicana desenvolveu-se nos primeiros decé-
nios dos século XIII, e precedeu largamente a redescoberta das obras morais e políticas de Aristóteles”, ou ainda, de maneira mais abrupta, que “a teoria política do Renascimento deve mais a Roma que à Grécia”. A diferença não é subtil: ela reside na certeza que a república é o melhor dos regimes. Sabemos bem que esta ideia é estranha à tipologia dos quatro regimes legítimos (monarquia, aristocracia, democracia e regime misto) avançada por Aristóteles na Política» (p.1163). Reconhecendo a Quentin Skinner o mérito de repolitizar o olhar lançado sobre a obra de Lorenzetti, Boucheron analisa num segundo momento as alegorias de Lorenzetti, detendo-se na representação da ‘Temperança’, da ‘Paz’, da ‘Concórdia’ e do ‘Juiz’. Nesse processo cruza a visão de Skinner com uma extensissima bibliografia, reconhecendo à primeira o mérito de identificar Cícero (e com isso afastando a chave-explicativa da representação tomista) enquanto integrante do património subjacente às alegorias citadas. Contudo, Boucheron considera que a pintura sienesa não deve ser apenas confrontada com os textos políticos, mas igualmente com os próprios actos da prática política, e com o conturbado universo das cidades italianas do primeiro terço do século XIV.
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Procedendo a uma reflexão crítica, Patrick Boucheron considera que a pesquisa de Skinner em torno da obra de Lorenzetti peca por uma excessiva ortodoxia na interpretação. Face a esta leitura que considera unívoca, o historiador francês valoriza o carácter equívoco da imagem, e da hipótese de o ‘Juiz’ personificar quer o ideal ciceroniano quer o tomista: «uma polivalente personificação». Por outro lado, entende que o historiador inglês mobilizou, na sua leitura, uma ampla variedade de textos (nomeadamente os provenientes da ars dictaminis) que costumam situar-se num segundo grau de análise por parte da história das ideias, mas que omitiu que esses mesmos textos provinham de uma dimensão manuscrita quase confidencial, enquanto que os demais eram largamente difundidos. Este facto impede, em sua opinião, julgar a real difusão dos mesmos e das ideias políticas neles contidas, aferição sem a qual crê ser impossível compreender de que forma a palavra política circulava e se difundia na sociedade comunal. Além disso, sublinha que muitos outros textos, para além dos utilizados por Skinner, poderiam ser chamados para a explicação dos frescos de Lorenzetti, obra que Boucheron considera ser, tal como havia proposto antes Rubinstein, o resultado de um «“ecletismo doutrinal”» (p.1176).
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Patrick Boucheron chama ainda a atenção para o facto de a análise de Quentin Skinner se ter cingido sobretudo à parede norte da sala dos ‘Novos’, e com isso à representação do ideal de um governo virtuoso. O autor considera que a obra de Lorenzetti se reparte por três paredes distintas, mas que é conceptualmente binária, dividia entre realismo e alegoria, apesar destes dois recursos não se encontrarem necessariamente distribuídos como se pensa sobre as paredes da Sala della Pace: «se a alegoria não é uma fuga ao real, o inverso é também verdadeiro: a representação que consideramos ‘realista’ dos efeitos do bom governo comporta uma poderosa carga alegórica» (p.1178). Mais ainda, entende que o ‘real’ não está assim tão assegurado quanto se crê, defendendo que «para o compreender, é necessário virar-se em direcção às análises mais sabedoras dos historiadores da arte, respeitantes não apenas à iconografia, mas também aos princípios formais de composição figurativa, pois é ao mobilizar os meios próprios da pintura que Lorenzetti dá a ver esse efeito de desestabilização» (p.1181). E com isso sublinha que a dimensão urbana, no seu ordenamento e escalonamento, comporta uma clara mensagem política (quem está na cidade é maior, quem dela se afasta diminui):
«esta eloquência singular da representação, que é persuasiva sem ser demonstrativa, é perfeitamente adequada à coisa representada. Porque se pode igualmente definir a eficácia simbólica da arquitectura (ou de uma maneira geral da organização urbana), à maneira de Walter Benjamin, como “o protótipo de uma obra de arte apercebida de maneira simultaneamente distraída e colectiva”» (p.1184). Avalia-se em seguida a questão do mimetismo e da semelhança no contexto narrativo dos ciclos pictóricos desde Giotto, considerando que o fresco de Lorenzetti não é em nada mimético em relação ao real: «dito de outra forma, as grandes paredes da Sala dos Novos dão a ver visioni, mais que uma veduta» (p.1186). Assinalando as diferenças notórias entre o edificado e a representação pictórica do mesmo, considera que essa «distorção da ordem de representação mergulha na perplexidade os historiadores da arte que querem ver na Sala della Pace um retrato realista da cidade de Siena observada do alto da Torre del Mangia (…). Ambrogio Lorenzetti sabe quando é preciso compôr um “retrato topográfico” ao natural. Mas não foi isso que quis fazer na Sala della Pace, onde acumula simultâneamente efeitos de realidade e as dissemelhanças em relação aos emblemas mais célebres da cidade»
(p.1187). Para corroborar esta ideia o autor utiliza aqui o conceito de ‘efeito de realidade’ (Roland Barthes, 1968) aliado à retórica da comparação defendida por Petrarca: por um lado, tratava-se de mostrar o que é a cidade ideal de uma maneira geral, por outro refere-se a um contexto concreto, a cidade de Siena «que, num dado momento da sua história, se faz semelhante à imagem que se pode fazer de uma cidade ideal» (p.1188). Esta questão é particularmente importante pois, como defende, a aceitar esta ideia, fundada na retórica de Petrarca, a questão da identificação do ‘Juiz’, cai por terra: tratar-se-ia em simultâneo de uma ideia abstracta (o bem comum incarnado na autoridade soberana dos magistrados) e sugestiva de um regime político (o sienês, naquele contexto concreto). E da mesma forma, considera que no fresco que representa os efeitos do ‘Mau Governo’ é possível encontrar diferentes elementos simbólicos e arquitectónicos que evocam a principal rival de Siena à época: Pisa. Conotando a ‘cidade maldita’ como sendo uma cidade gibelina, não se representa a cidade de Pisa em si mesma, mas antes uma sua semelhante. Por outro lado Boucheron defende que também por esta via se pode entender o enigma dos vinte e quatro conselheiros que formam a procissão na parede
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norte. Eles seriam um anacronismo, uma «montagem de tempos sucessivos e superados que a imagem dessincroniza para colocar no presente imediato e contemporâneo da representação (…). Não apenas vários discursos, então, mas várias narrativas entrelaçadas, com para cada uma a sua temporalidade própria, tão breve e brusca quanto o acontecimento, tão ampla e lenta como a memória» (p.1190). O autor termina a sua análise recolocando a atenção sobre o momento de produção do fresco de Lorenzetti e para o contexto concreto que Siena vivia: não o perigo da tirania, mas sim a sedução do senhorialismo: «a paz do povo ou a paz do príncipe – é este o não-dito da mensagem política de Ambrogio Lorenzetti. Porque se é mais eficaz reduzir a tirania ao seu princípio original de violência, não podemos recusar admitir que o senhorialismo não era o outro absoluto da comuna, mas a sua transformação futura possível» (p.1196). O autor reconhece a intuição de Quentin Skinner ao materializar a necessidade teórica de lançar um olhar político sobre a obra de
Ambrogio Lorenzetti, mas salienta que esse mesmo olhar deve ser lançado com igual vigor não apenas na alegoria do ‘Bom Governo’ mas sobretudo na materialização dos seus efeitos, representação esta que, segundo Boucheron, condensa boa parte da mensagem política a figurar e transmitir. Colocando-se num ponto de análise de alguma forma equidistante em relação por um lado à história das ideias políticas, e por outro à história da arte, a leitura deste artigo de Patrick Boucheron contribui para a reflexão em torno das vias de constituição e conformação de ambas as disciplinas. A ‘repolitização do olhar’, defendida por Skinner, e exercitada por Boucheron, apresenta-nos o fresco do ‘Bom Governo’ de Lorenzetti não como expressão sucedânea de um conteúdo-outro, de uma ideia ou de uma prática política, das quais seria mera ilustração. Pelo contrário, antes se configura como argamassa constitutiva de ambas.
Luísa França Luzio*
* Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSH-UNL (Bolseira FCT). Membro do Instituto de História da Arte – FCSH-UNL. e-mail: lfl@fcsh.unl.pt
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Estudos sobre a Arte Moçárabe - O Estado da Questão –
Existe uma arte moçárabe? Por perturbadora que possa parecer a colocação de uma tal questão marcando o início do discurso num artigo cujo título parece assumir, à partida, aquela existência (e sem a qual toda a validade da exposição que agora se inicia parece ameaçada), esta não deixa de ser, de qualquer modo, a questão fundadora no que aos estudos sobre a arte cristã peninsular dos séculos IX ao XI diz respeito. Assumida a análise estruturada e conclusiva destes mesmos estudos – mais do que a apresentação de qualquer tese pretensamente inovadora nesta área que não é, de resto, objecto da nossa investigação mais aprofundada – como proposta fundamental e fio condutor das nossas reflexões neste artigo, clarificada estará a pertinência de um tal começo, ponto de partida de uma análise sobre o moçarabismo, em geral e na arte, que nos conduzirá, de autor em autor, pelo universo dos estudos (das interrogações e das respostas propostas) sobre a arte moçárabe ou sobre o que esta designação representa. Desenvolvido no quadro de uma necessidade de clarificação do enten-
dimento de uma época tão persistentemente obscura quanto a Alta Idade Média, mas também de um interesse pelas raízes dessa relação com o imaginário islâmico, tão presente, mesmo ao nível de uma cultura ainda activa, no Alentejo, em cujas formas de vida e de arte primeiramente ensaiei o olhar crítico e o juízo estético, concretiza-se agora este estudo, sugerido e apoiado pelo Prof. Doutor José Custódio Vieira da Silva, num artigo que mais não pretenderá, conforme foi dito, do que sistematizar as posições de alguns dos principais investigadores que sobre a área do moçarabismo se debruçaram e, apoiando-nos na sua autoridade, analisar o fenómeno e concluir do seu lugar na História da arte peninsular. Serão, por isso, deixadas em aberto inúmeras questões, testemunhas da riqueza do tema, cuja resolução não tem aqui lugar, algumas das quais ainda à espera de novos estudos, mas de que a apresentação ao leitor será já parte da concretização dos objectivos a que aqui nos propomos. “Nuestra historia tradicional, la escrita, desconoció casi absolutamente lo mozárabe, y a sido tarea novíssima, y
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nuestra en cierto grado, el resucitarlo; mas su triunfo ya es definitivo, y precisamente en lo artístico sorprende como una de las expressiones más originales del génio español y más descollante sobre lo extranjero”1. Assim era o estado dos estudos sobre a arte moçárabe nos anos 50 do século XX, segundo palavras de Manuel Gómez-Moreno, as quais aqui transcrevemos, não só por ter sido ele o grande iniciador do discurso mais actual e científico sobre o moçárabe, discurso de que os actuais investigadores são ainda os herdeiros (o que, de resto, é claramente assumido nos escritos de quase todos eles)2, mas também por nelas se encontrarem contidas algumas das mais fecundas questões que animarão os textos que aqui analisamos, nomeadamente a do “triunfo definitivo” do moçárabe como categoria artística (aliás, em 2000 ainda Dominique Clévenot inicia a sua reflexão sobre esta arte precisamente
com a interrogação “Existe-t-il un art mozarabe?”3), a da sua originalidade e das marcas da mesma na arte medieval peninsular.Tal debate, naturalmente indissociável das transformações verificadas ao nível do olhar sobre o outro e o exógeno, da relação da escrita da História com o Cristianismo e das concepções de nação e de estilo, tem suscitado teses diversas que de uma negação absoluta do papel da componente islâmica na formação de uma cultura e de uma arte que perduraram na especificidade da Península Ibérica, passaram a uma vontade de entendimento mais amplo e imparcial (de certa forma mais científico), que encontrou nessas comunidades moçárabes, na cultura por elas preservada e na arte por elas concretizada, o principal veículo, na Península, de transmissão das heranças altimedievais peninsulares para o Românico, portanto sua fonte maior de originalidade4.
1 Manuel GÓMEZ-MORENO, “El Arte Árabe Español hasta los Almohades. Arte Mozárabe”, in Ars Hispaniae. Historia Universal del Arte Hispânico, vol. 3, Madrid, Editorial Plus Ultra, cop. 1951, p. 355. 2 A grande obra de referência desta inauguração do novo olhar sobre a arte moçárabe, de definição da sua autonomia no seio dos estudos histórico-artísticos, é de Manuel Gómez–Moreno, data de 1919 e intitula-se Iglesias mozárabes, Arte español de los siglos IX a XI. 3 Dominique CLÉVENOT, “L’Art Islamique en Espagne”, in L’Art en Espagne et au Portugal (dir. JeanLouis Augé), Paris, Editio-Éditions Citadelles & Mazenod, 2000, p. 95. 4 José Mattoso reconhece igualmente aos moçárabes o papel, por meio das suas deslocações em território peninsular, de instrumento de atenuação da oposição radical entre o Norte asturiano e o Sul islâmico: “Assim, pode-se dizer sem receios que as emigrações de moçárabes para norte prepararam as sínteses culturais que depois se fizeram em contactos de massa, com as emigrações de clérigos do Norte no sentido contrário.” (José MATTOSO,“Os Moçárabes”, in Fragmentos de uma Composição Medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, p. 24).
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Oiçamos, a este propósito, Carlos Alberto Ferreira de Almeida, que assim expõe a questão, em 1986: “O conhecimento e explicação destes tempos obscuros e inovadores é motivo de grandes polémicas entre diferentes historiadores, sobretudo no que respeita ao nível do despovoamento, ao grau de originalidade e da personalidade da cultura moçárabe e à classificação da sua arte: se moçárabe, se de repovoamento ou apenas pré-românica”5. Por via destas palavras, introduzimos nesta nossa reflexão um novo dado, fundamental para o início de uma mais profunda compreensão da razão de ser da nossa questão inicial: a discussão que divide os investigadores no que respeita à denominação mais correcta a atribuir ao conjunto de manifestações artísticas deixadas na parte Norte do território da Península, produto da confluência das tradições cristã-visigótica, muçulmana-cordovesa e asturiana, combinadas em soluções compósitas e onde alguns elementos carolín-
gios, bizantinos e norte-africanos parecem ganhar também momentos de expressão6. A arte cristã, realizada por e para cristãos, em território de dominação islâmica, parece não oferecer actualmente grande resistência à sua classificação como moçárabe. Mas o que dizer desta arte desenvolvida e conservada em terra livre e que constitui, afinal, o maior número de testemunhos remanescentes desta época? De facto, aceite comummente entre os historiadores para designar os cristãos que, durante a ocupação muçulmana da Península (711-1493) optaram por viver sob dominação política islâmica, o nome moçárabe ameaça perder a firmeza dos seus contornos quando aplicado, numa versão qualitativa, aos campos respectivos da cultura, da liturgia ou da arte. Regressemos, por isso, à interrogação que despoletou todo este discurso e perscrutemos as condicionantes existenciais desta arte que constroem a base daquela questão e
5 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, “Arte moçárabe e da Reconquista”, in História da Arte em Portugal, vol. 2, “Arte da Alta Idade Média”, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, p. 96. 6 Note-se que esta discussão, longe de se reduzir a uma questão meramente de ordem vocabular, corresponde a uma verdadeira divergência de opiniões sobre o significado e a essência desta arte, desenvolvida na Península Ibérica ao longo dos séculos X e XI. No fundo, cada uma das designações que tem identificado este conjunto artístico nos diversos autores, corresponde a uma proposta de entendimento singular desta arte, entendimento cuja dificuldade tem determinado a insegurança na aceitação, a nível científico, de uma denominação definitiva. Paulo Almeida Fernandes, na tese de Mestrado que apresentou à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Setembro de 2002, concluiu, assim, em jeito de denúncia: “Carecendo de elementos artísticos unificadores, mas faltando, sobretudo, um correcto e abrangente modelo historiográfico dirigido a este fenómeno…” (Paulo Almeida FERNANDES, A Igreja Pré-Românica de São Pedro de Lourosa, p. 21).
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lhe dão sentido. Existe afinal uma arte moçárabe? Em primeiro lugar, parece-me clara a necessidade de dar a conhecer o sentido exacto do termo moçárabe. Surgida pela primeira vez nos Fueros de Toledo do século XII, após a reconquista da cidade por Afonso VI7, a palavra moçárabe, provavelmente derivada de mustarib ou mustacrib, foi de quantas os árabes usaram para designar os cristãos a mais frequente e a que maior futuro revelou. Moçárabes eram os cristãos não islamizados que, vivendo em grupos no seio da sociedade muçulmana, conservavam os traços da sua religião, mas também do seu sistema próprio de adminis-
tração municipal e judicial (embora esta independência tenha tendido, a pouco e pouco, a corromper-se pela pressão da civilização mais desenvolvida e atractiva dos muçulmanos). Distinguiam-se, quer dos musalima, os cristãos convertidos ao islamismo, quer dos muwalladi, aqueles nascidos de pais convertidos, não árabes, mas hispânicos8. Moçarabismo será, desta forma, toda a manifestação que tenha relação com os moçárabes, consequência concreta desta vivência balizada entre a tradição e a inovação, entre a preservação da fé cristã e a cedência à incorporação de certos dados de uma estética oriental9. E, aceitando esta relação simples voca-
7 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.104. 8 Mais tarde, chamou-se a todos estes “novos muçulmanos”, muladies (Cf. José Fernandez ARENAS, La Arquitectura Mozárabe, Barcelona, Ediciones Polígrafa, 1972, pp. 6-12). 9 Vários são os autores a insistir na existência de um ambiente propício a esta assimilação orientalizante e no seu fácil processamento como consequência natural do reconhecimento da superioridade cultural do califado cordovês – fenómeno confirmado pelas críticas que despoletou no seu próprio tempo, críticas denunciadoras das excessivas aproximações dos cristãos ao modus vivendi islâmico, como é o caso das de Eulógio, ou mesmo pelos nomes árabes com que inúmeros monges vindos do sul da Península são designados em documentos leoneses. “La foi chrétienne s’affadit devant les attraits matériels, et même intellectuels, de la nouvelle et brillante civilisation islamique d’Al Andalus”, conclui Jacques Fontaine acerca deste processo de secularização e de arabização progressiva da comunidade moçárabe (mesmo daquela especificamente dedicada à vida religiosa). Este processo teria como uma das mais poderosas facetas o movimento espiritual dos mártires voluntários de Córdova, “symboles dangereux, parce qu’exemplaires, de la résistance chrétienne des mozarabes” (Jacques FONTAINE, L’art préroman hispanique: l’art mozarabe, Zodiaque, 1973-77, pp. 24 e 26).Tais aproximações, definidoras afinal do carácter próprio da comunidade e da arte moçárabes, viriam igualmente a ser causa de um seu afastamento e consequente incompreensão por parte dos cristãos do Norte, que, na sua conquista do Sul, tenderão a confundi-las com a presença islâmica a neutralizar. Não obstante, diz-nos Christophe Picard que “le transfert négocié des reliques de Saint-Vincent en 1173, de la zone mozarabe vers Lisbonne, montre, au contraire, un changement d’attitude du pouvoir visà-vis des derniers groupes mozarabes pendant la deuxième moitié du XIIe siècle, au moment où ils pouvaient être un soutien à la royauté face aux Almohades.” (Christophe PICARD,“Les Mozarabes de Lisbonne: le problème de l’assimilation et de la conversion des chrétiens sous domination musulmane à la lumière de l’exemple de Lisbonne”, in Arqueologia Medieval, nº 7 (Abril de 2001), pp. 89-94).
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bular, a questão da classificação da arte do Norte, mesmo que não manifestada em território de dominação muçulmana, porque nascida por acção
da comunidade moçárabe para aí deslocada, parece ter-se tornado de evidente resolução. Esta seria, portanto (e é-o, na opinião de autores
Do ponto de vista artístico, existem também, entre os investigadores, algumas referências à anterioridade, na Península, de elementos tendencialmente identificados com a influência da arte muçulmana. Fernando Chueca Goitia é, contudo, aquele que com maior demora se debruça sobre essas concordâncias com o mundo oriental, activas “desde tempos anteriores à conquista romana, e não se sabendo por que estranhas tendências e inclinações ancestrais”. Nessa pesquisa reconhece, na arte antiga peninsular, a existência de influências do oriente grego e de outros povos e civilizações orientais, “durante a época de colonização dos fenícios, dos gregos e dos cartagineses”, mas também no período romano (refere-se ao aparecimento do arco de ferradura nalgumas estelas e mosaicos). Esta adopção de formas orientais seria continuada pelos Visigodos, que empregam com frequência o arco de ferradura, mas também alguns motivos decorativos predominantemente de origem bizantina (Fernando CHUECA GOITIA, Arquitectura Muçulmana peninsular e a sua influência na arquitectura cristã: exposição de documentação fotográfica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1962). Cláudio Torres e Santiago Macias consideram mesmo, de resto, a civilização islâmica implantada na Península uma formulação própria do Mediterrâneo, e não uma intromissão exterior a ele, o que explicaria a sua natural aceitação entre os povos conquistados. No fundo, trata-se, de acordo com os arqueólogos e numa posição de algum idealismo, de um processo, em larga medida, de continuidade: “Em vez de cidades destruídas ou arruinadas, em vez das marcas deixadas pela imposição de novas formas de vida e civilização, nota-se um fenómeno generalizado de continuidades em que se acentua uma aproximação, já anteriormente perceptível, às modas arquitectónicas e decorativas do antigo Levante bizantino – onde Damasco se afirma como capital – e da África Proconsular (ou actual Tunísia)”, e continuam, com uma afirmação de ruptura: “De facto, do ponto de vista da investigação arqueológica, a primeira grande ruptura civilizacional claramente visível na tradição mediterrânica acontece, não durante os inícios do século VIII e sim nos anos da «Reconquista», quando são introduzidos nas terras do Sul os primeiros corpos estranhos de uma nova formação social que, de um modo geral, catalogamos como «feudalismo».” (Cláudio TORRES e Santiago MACIAS,“A Arte Islâmica no Ocidente Andaluz”, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), vol. I, Círculo de Leitores, 1995, p. 153). De resto, por que na linha desta ideia de uma implantação particular da arte árabe em território actualmente português, não podemos deixar de referir os estudos de Correia de Campos.Afirma o investigador, em palavras que revelam uma posição diversa daquela visão de uma ocupação islâmica em ambiente de total pacifismo, que: “Sabe-se agora pelo conhecimento dos textos árabes que as primeiras revoltas contra a ocupação árabe começaram primeiro em Sevilha, depois em Beja, donde saiu uma expedição para socorro dos sevilhanos, seguindo-se-lhe Coimbra e estendendo-se a toda a região galaica, que abrangia todos os terrenos a Norte do rio Douro. (…) Para manter a ordem em toda a Península, houve necessidade de recorrer à vinda de contingentes orientais. Num determinado período, há notícias de que esses contingentes se encontravam nas seguintes localidades: damascenos em Córdova, egípcios em Lisboa, Beja e Todmir, os quinçaritas em Jaen e os iemenitas em Silves. E foram os contingentes orientais, antes da criação da arte árabe, que fixados principalmente no Ocidente peninsular e em colaboração com os aborígenes, vieram a criar o particularismo arquitectónico árabe do nosso território, bem diferenciado do espanhol… (…)” (Correia de CAMPOS, A Arquitectura Árabe do País e o II Congresso Nacional de Arqueologia, Lisboa, !972 (ed. de autor), p. 17).
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como Manuel Gómez-Moreno, Élie Lambert, Fernando Chueca Goitia, Pedro de Palol, José Fernandez Arenas e Jacques Fontaine, para só nos reportarmos a uma historiografia estrangeira), uma arte moçárabe. Simplesmente, do mesmo modo que a população designada como moçárabe é vária, não só nas situações sociais e religiosas activas no seu seio, como nas características que assume ao longo do período de dominação islâmica da Península e de Reconquista cristã, também na arte dita moçárabe nos deparamos com realidades diversas, em função da própria história peninsular e dos meios em que é posta em prática. Compliquemos, contudo, esta aparente clareza. Na verdade, outros problemas se colocam. Se se assume o moçarabismo como uma manifestação de definição própria, dona de uma autonomia espacial e temporal, o que dizer das condições paradoxais que dificultam uma sua caracterização estanque e que envolvem, inclusivamente, a localização dos testemunhos sobreviventes dessa arte?
No que respeita aos problemas cronológicos, as posições dos investigadores oscilam, fundamentalmente, entre a definição de dois períodos. Reconhecido o século X por todos como momento central do desenvolvimento desta arte10, as opiniões dividem-se quanto à delimitação de um início e de um fim para uma arquitectura que, afinal, assegura a continuidade das tradições latino-godas11 e prepara o caminho para a afirmação românica peninsular, com cujas primeiras manifestações ainda convive. O ano de 711 impõe-se como primeiro momento a reter neste contexto dos estudos sobre as relações entre Árabes e Cristãos na Península Ibérica. Em 711, com efeito, Târiq ibn Zyiad atravessa o estreito desde então designado de “Gibraltar” e chega ao território peninsular, marcando com isto o início da história do al-Andalus12, que Élie Lambert divide em dois períodos: o da monarquia andaluza, fundada em Córdova por Abd er-Rahman I, em 756, e o do Califado do Ocidente, desenvolvido
10 Note-se como Isidro Gonzalo Bango Torviso, interessado em centrar a discussão nos termos da designação desta arquitectura, limita cronologicamente a sua análise ao século X, limitação que assume logo no título do artigo: “Arquitectura de la Décima Centuria: Repoblación o mozárabe?” (in Goya. Revista de Arte, nº 122 (1974), pp. 69-75). 11 Esta noção de continuidade leva mesmo Vergílio Correia a denominar esta arte cristã do Norte dos séculos X e XI de neo-goda (Vergílio CORREIA, “Notas sobre o pré-românico coimbrão”, Obras, vol. II, Coimbra, 1949, pp. 31-38). 12 “«Al-Andalus» est le nom arabe de cette Espagne islamique qui, du VIIIe au Xe siècle, s’étend vers le nord jusqu’au Duero et qui, dès le XIIIe, se réduit au petit royaume de Grenade.” (Dominique CLÉVENOT, ob. cit., p. 77).
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sob os reinados de Abd er-Rahman III (912-961) e de El-Hakam II (961-976) e prolongado pelo governo do ministro Al-Mansur (976-1002) e dos seus dois filhos (1002-1009). A estes dois períodos, Élie Lambert faz corresponder, no Norte cristão da Península, o da monarquia asturiana e o período moçárabe, numa noção de sucessão que é, como veremos, largamente discutível13. De facto, de 711 a meados do século VIII, a dominação islâmica do al-Andalus sofreu de grande instabilidade; só com a dominação da dinastia omíada, massacrada pelos Abássidas na Síria, em 750 e de que o único sobrevivente, o jovem Abd er-Rahman, se veio a refugiar em território peninsular, onde se proclamou emir, em 756, a longínqua província começou a florescer, de acordo com uma vontade expressa dos seus governantes, que pretendiam fazer de Córdova a nova Damasco. Esta supremacia da cidade de Córdova não estava, contudo, destinada a manter-se ao longo de toda a história da presença árabe na Península. A partir do começo do século XI, os efeitos das guerras civis que então se sucedem traduzem-se na multiplicação de potentados locais que farão de cada cidade importante do território (Saragoça,Toledo, Sevilha,
Algeciras, Málaga, Granada, Valência, Múrcia, etc.) o centro de um pequeno emirato. Embora politicamente este período, chamado dos Reis de Taifas, não se tenha revelado particularmente favorável ao poder islâmico – podemos mesmo dizer que esta conflituosidade interna serviu frutuosamente os interesses dos cristãos reconquistadores –, foi, sem dúvida, um tempo fecundo para as artes, como o são todos aqueles em que a competitividade se expressa no fortalecimento visível de uma imagem de poder e riqueza. Em 1085, Afonso VI de Castela apodera-se do reino de Toledo, sinal de uma decadência, sem retorno, do poderio islâmico. Para fazer face a esta ameaça crescente, instala-se, na Península, a dinastia dos Almorávidas, dinastia berbere estabelecida em Marrocos, a que se seguem, desde 1145, os Almóadas, também eles berberes e promotores de um rigorismo religioso que traria enormes complicações à sobrevivência das comunidades moçárabes em território muçulmano. Finalmente o reino de Granada, que Muhammad ibn Nasr funda em 1237 sobre os escombros do Império almóada, limita-se já a um território que vai apenas de Tarifa a Almería. “C’est le dernier bastion de l’islam en Espagne, auquel la Reconquista accorde
13 Élie LAMBERT, Art Musulman et Art Chrétien dans la Péninsule Ibérique, Paris, Privat Éditeur, 1958, p. 6.
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un long surpris, jusqu’en 1492, l’année même où Christophe Colomb débarque sur le nouveau continent”14. O último soberano muçulmano de Espanha, perseguido pelos exércitos de Fernando de Aragão e de Isabel de Castela, deixa definitivamente o seu palácio de Alhambra, em Granada, e procura exílio no Norte de África. O ano de 1492 apresenta-se, assim, como a segunda data a reter. Mas se estas são marcas susceptíveis de uma aceitação mais ou menos pacífica no que respeita à historiografia em geral e à identificação precisa do período de presença muçulmana na Península Ibérica, o mesmo não se verifica quando tratamos dos fenómenos artísticos, sobretudo reportando-nos, como no presente artigo, a um grupo de manifestações de existência, mais do que marginal, verdadeiramente “fronteiriça” entre dois
mundos dominantes e melhor definidos, do ponto de vista político e cultural – o islâmico e o cristão. Assumindo o ano de 711 como o início do período que nos interessa, parece lógico supor que terão existido moçárabes desde então. Mas a partir de que momento assumem estes a necessidade e a liberdade de se manifestarem artisticamente? Em que momento a fusão entre o cristão e o árabe que é para nós distintivo desta arte está apta a ser uma realidade? As datas que então retivemos ameaçam agora ter de se relativizar. Para Manuel Gómez-Moreno, este parece não ser problema difícil: se em relação a um início refere apenas a data de 711, no que respeita ao balizamento final desta arte (e note-se que falamos aqui fundamentalmente de arquitectura, e particularmente de arquitectura religiosa15) refere-se ge-
14 Dominique CLÉVENOT, ob. cit., p. 77. 15 Não obstante, não podemos perder a noção de que a influência islâmica teve reflexos em áreas artísticas tão diversas como os marfins, a ourivesaria, os bronzes, os tecidos e a iluminura, em cuja produção se destaca o predomínio dos manuscritos consagrados aos Comentários do Apocalipse, escritos no final do século VIII, por Beato de Liébana, abade de Valcavado, contra a heresia de Elipando. Carlos Alberto Ferreira de Almeida associa esta preferência pelo texto do Apocalipse a uma mentalidade anti-muçulmana, afirmando: “o texto bíblico mais glosado, é o do Apocalipse, por ser aquele que, por aludir expressamente à luta entre o bem e o mal e ao Céu dos mártires e dos puros, melhor responde ao anti-islamismo se então.” (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.107). Dominique Clévenot considera mesmo que “si l’architecture est le domaine où fut reconnue pour la première fois l’existence d’un art mozarabe, la peinture est sans aucune doute la domaine où cet art s’est exprimé avec le plus d’originalité.” (Dominique CLÉVENOT, ob. cit., p. 106). Apesar disto, a verdade é que a iluminura dita moçárabe permaneceu longo tempo no esquecimento, desde a sua época de expressão (que vai de 900 ao final do século XI) até ao ano de 1924, quando foi realizada uma grande exposição de manuscritos espanhóis iluminados, em Madrid, pela Sociedad de amigos del arte. O afastamento face à realidade objectiva, bem como a intensidade expressiva do grafismo e da cor, são algumas das características identificadas com esta iluminura estudada nos Beatus, por
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nericamente ao século XII, mas apenas para o território de dominação muçulmana. Mais comum, contudo, é a aceitação do reinado de Afonso III (866-910), o rei cristão impulsionador da emigração moçárabe para as terras do Douro, como marca da génese da arquitectura cristã “arabizada”16, e o século XI como momento de ocaso. Jacques Fontaine define-a, simplesmente, como “la dernière floraison des arts préromans de la péninsule”17. Compete-nos, contudo, clarificar a validade de uma tal aceitação – a do reinado de Afonso III como baliza inicial – antes de nos debruçarmos na análise da expressão de Jacques Fontaine. De facto, no século IX, sob os reinados de Ordonho I (850-866) e, sobretudo, de Afonso III o Grande (866-910), o reino asturiano, aproveitando, como atrás se disse, o momento de instabilidade vivido no
Estado muçulmano andaluz desde a morte de Abd er-Rahman II, em 852, procedeu a um alargamento da sua área, repovoando progressivamente os imensos territórios que desde a fundação da monarquia cristã haviam servido de fronteira de separação relativamente ao domínio islâmico. Foram colonizadas, a Oeste, a Galiza e uma grande parte do Portugal actual; a Sul, toda a área até à linha do Douro. Em 912, o filho e sucessor de Afonso III, Garcia I, definiria novo limite a Este, levando-o até ao curso superior do Douro com Roa, San Esteban de Gormaz e Osma. Nessa mesma data, enquanto em Córdova subia ao poder Abd er-Rahman III, a capital da dinastia asturiana transferiase de Oviedo para Léon. Este processo de colonização, ou melhor, de reorganização dos territórios e das populações18, foi acompanhado de um considerável afluxo de cristãos
excelência. O lugar reduzido que ocupa relativamente à arquitectura, nos estudos cuja análise é aqui nosso objectivo, explica a prevalência concedida também neste artigo ao campo arquitectónico como lugar de expressão do moçarabismo. 16 Élie Lambert, Pedro de Palol e José Fernandez Arenas, são alguns dos investigadores que concordam com este balizamento. 17
Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 57.
18 A historiografia tradicional tendeu a sobrevalorizar a acção desertificadora de Afonso I das Astúrias sobre a bacia do Douro. De acordo com esta perspectiva, este rei teria, em razias sucessivas arrasado povoações árabes e fortalezas nesta região, criando um vazio estratégico, com vista a dificultar eventuais invasões muçulmanas. Não obstante, tal como Carlos Alberto Ferreira de Almeida conclui logo em 1986,“tudo indica que foi o modelo e o itinerário de organização do território promovida por D. Afonso III no vale do Douro que deu a rota à narrativa da actividade despovoadora então atribuída a Afonso I.” (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., pp. 98-99). Esta mesma tese que vem atribuir a Afonso III um papel sobretudo de reorganização das populações é confirmada por José Mattoso: “Se algum [despovoamento] houve, não podia ter desertificado por
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moçárabes que, fugidos dos territórios dominados pelos muçulmanos, onde até então se haviam mantido (em torno de Córdova e de Toledo), procuravam novas condições de vida naqueles lugares. Dizem os historiadores que Afonso o Grande soube atrair estas populações, através da doação de terras e da promessa de
uma vida tranquila, em lugar da instabilidade (com perseguições, revoltas e martírios) vivida em território muçulmano, desde a morte de Abd er-Rahman II, em 852. Com efeito, se num primeiro momento os moçárabes parecem ter gozado de um clima de considerável tolerância19, que lhes permitiu conservar as suas instituições,
completo o vale do Douro. Não fez mais do que contribuir para isolar as comunidades ali existentes, reforçar a sua atitude de defesa, acentuar a sua autonomia, aumentar os laços de solidariedade.” (José MATTOSO, ob. cit., p. 30). Mais do que de um processo de conquista ou de reconquista (fenómeno cuja designação comporta uma noção de acção ofensiva e anti-islâmica que só com Fernando o Magno parece ter tido início), trata-se então da “integração de comunidades independentes no modelo civilizacional emanado de Oviedo, proporcionada por uma expansão do reino cristão pela ‘terra de ninguém’” (Paulo Almeida FERNANDES, ob. cit., p. 42). Daí a limitação de uma denominação desta arte cristã do Norte subsequente da asturiana com a expressão “de reconquista” (pois este é um fenómeno cronologicamente não coincidente com o período de manifestação desta arte) ou mesmo como “arte fronteiriça” (pois a noção de fronteira tem, na referida época, contornos particulares e diversos dos actuais). 19 Jacques Fontaine privilegia à noção de tolerância a de liberdade, uma vez que considera esta situação maioritariamente como o resultado de uma dominação ainda mal instituída, por se encontrarem os Árabes com as atenções voltadas para outras preocupações, nomeadamente para os conflitos com os Berberes. Jacques Fontaine apela então para uma posição de equilíbrio nesta análise da relação entre povo dominador e povo dominado: “Malgré les affirmations rétrospectives des chroniqueurs chrétiens et arabes ultérieurs, les débuts de la conquête arabe de l’Espagne ne furent sans doute ni plus idylliques ni plus désastreux que ne l’avaient été l’insécurité et les destructions causées par les interminables désordres des invasions du Ve siècle…” (Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 23). A esta perspectiva opõem-se, contudo, de certo modo, Cláudio Torres e Santiago Macias: “A arqueologia, e de um modo geral a historiografia actual, não constatam para esta época e nas zonas supostamente ligadas a esses acontecimentos, quaisquer indícios que justifiquem outras convulsões que não as provocadas por grupos armados, mais ou menos autónomos que, nos últimos e conturbados anos do reino de Toledo, actuavam em todo o lado por sua conta e risco, ou a mando de senhores e caciques locais.”. E concluem,“a islamização não resultou de conquistas militares e sim de uma rápida conversão das populações citadinas mais abertas à troca de mercadorias e de ideias.” (Cláudio TORRES e Santiago MACIAS, ob. cit., pp. 153 e 154). De acordo com esta perspectiva, reduzido papel deve ser, neste processo de islamização peninsular, atribuído às forças militares, sublinhando-se antes a importância dos caminhos e rotas do comércio oriental. A adopção da religião muçulmana tende agora a ser encarada como um processo de desenvolvimento lento e gradual. Diz-nos Cláudio Torres que apenas em finais do século X os Muçulmanos terão ultrapassado mais de metade da população andaluza, facto que vem contribuir para colocar “em novos moldes a forma como pode ser encarado o fenómeno moçárabe, explicando muitos dos problemas que até agora pareciam insolúveis.” (Cláudio TORRES, “O Garb-Al-Andaluz”, in História de Portugal (dir. José Mattoso), vol. I – “Antes de Portugal”, Círculo de Leitores, 1992, p. 407).
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as suas crenças e as suas igrejas20, a partir do século IX a situação destas populações ter-se-á complicado, obrigando a importantes deslocações, nomeadamente de comunidades monásticas, que nas terras do Douro fundaram mosteiros notáveis, centros exemplares da cultura e da arte moçárabes. Este fenómeno “explique pourquoi l’on vit s’élever alors dans toute cette partie de la Meseta ibérique de nombreuses églises tout autrement construites que les monuments asturiens, tandis que les couvents ainsi fondés devenaient autant de centres artistiques où l’influence andalouse se faisait de plus en plus sentir à côté de la tradition visigothe”21. De facto, deslocados para o Norte cristão, estes homens vindos do Sul não se puderam manter alheados das tradições artísticas activas nas terras onde então se instalavam. Estas soluções arquitectónicas asturianas foram, assim, incorporadas numa lin-
guagem em que as memórias cordovesas não se perderam, harmonizando-se igualmente com a herança visigótica, de maneira original de edifício para edifício, embora mantendo um certo “ar de família”, um espírito comum que nos permite falar de uma arte moçárabe. Esta composição diversa – diversa não só nas tradições e influências que nesta arte convergem, como nas suas manifestações e tipologias – tem dificultado uma caracterização definitiva da arquitectura dita moçárabe (até pela discussão que tem envolvido a origem dos seus elementos distintivos por excelência – a divisão tripartida dos espaços interiores, o arco de ferradura, o alfiz, o ajimez, os modilhões de rolos, as abóbadas de nervuras) e, o que é ainda mais importante, tem orientado toda uma reflexão sobre a validade de um entendimento autónomo desta arte no seio das manifestações artísticas pré-românicas.
20 Pedro Palol e Max Hirmer afirmam que às comunidades moçárabes preservadas em território de dominação islâmica estavam vedadas a construção de raiz e a reconstrução de qualquer edifício religioso (Pedro PALOL e Max HIRMER, L’Art en Espagne. Du Royaume Wisigoth à la Fin de l’Époque Romane, Paris, Flammarion, 1967, p. 36). Esta suposição de uma proibição de construção serviu longamente os modelos interpretativos da arte cristã do Norte, determinando o seu entendimento como resultado da combinação de elementos de origem vária, dada a inexistência de uma tradição construtiva estritamente moçárabe. Alimentada, contudo, por sucessivas descobertas arqueológicas e pela investigação de alguns autores, uma nova corrente historiográfica tem vindo a ganhar terreno, corrente que aponta para a transposição e a adaptação de modelos moçárabes, já ensaiados no Sul, na parte Norte da Península. Um dos investigadores que, em Portugal, representam esta corrente é Manuel Luís REAL (“Portugal: cultura visigoda e cultura moçárabe”, Visigodos y Omeyas. Un debat entre la Antigüedad Tardia y la Alta Edad Media, Madrid, CSIC, 2000, pp. 39-41). 21 Élie LAMBERT, ob. cit., p. 107.
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Verdadeiro fundador do lugar autónomo do moçarabismo no seio da historiografia da ar te, Manuel Gómez-Moreno não deixou de reconhecer a diversidade que o define, que encarou como expressão maior da vitalidade de uma arte que se adapta continuamente e se desmultiplica, em função das características do meio físico e do meio social circundante, mas também das pesquisas do artista sobre o modelo cristão22. Élie Lambert, em 195823, assume já, sem dificuldades, a existência autónoma desta arte, nascida, segundo o autor, da associação da tradição visigótica, que funciona como ponto de partida, à influência crescente do Islão andaluz. Para Fernando Chueca Goitia, em 1962, não há dúvida de que “é muito concreta e muito específica a arte que se desenvolve no século X e nos primeiros decénios do século XI” e que não hesita em denominar de moçárabe, termo que, sublinha, “não se deve confundir (…) com o de mudéjar, nem quanto a conceito, nem quanto a cronologia”24. A mesma certeza é assumida em 1967 por Pedro de Palol e Max
Hirmer, que, na definição da composição da arte moçárabe, aos elementos hispano-visigóticos e árabes referidos pelos outros investigadores acrescentam as influências do Norte de África e de Bizâncio, sem esquecer o enriquecimento proporcionado pela incorporação de referentes asturianos aquando da concretização desta arte em terras do Norte: “En somme, l’art mozarabe nous offre une sorte de réssurection des formes romano-ibériques, byzantines et wisigothiques, dans une version arabe…”25. Estes dois estudiosos são igualmente dos primeiros a interpretar com segurança a arte moçárabe como arte pré-românica, não num sentido meramente de valor cronológico, mas no quadro de uma evolução que faz daquela arte um prelúdio ou um campo de experimentações com reflexos notáveis no Românico peninsular. Um verdadeiro proto-românico. Cinco anos depois da publicação daquele texto, continuamos a encontrar, em José Fernandez Arenas, uma assumpção não discutida do moçárabe como qualificativo válido no âmbito artístico26, o que, contudo,
22 Manuel GÓMEZ-MORENO, ob. cit.. Paulo Almeida Fernandes corrobora, na sua tese de Mestrado, esta perspectiva: “…acreditamos que é precisamente a inexistência de individualidade estilística uma das características essenciais da arte cristã peninsular realizada ao longo dos séculos X e XI” (Paulo Almeida FERNANDES, ob. cit., p. 24). 23 Élie LAMBERT, ob. cit. 24 Fernando CHUECA GOITIA, ob. cit. 25 Pedro PALOL e Max HIRMER, ob. cit., p. 35. 26 José Fernandez ARENAS, ob. cit.
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não é garante ainda do “triunfo definitivo” da arte moçárabe com que Gómez-Moreno sonhara em 1951. De facto, é num artigo de 1974, publicado na Revista Goya, que Isidro Gonzalo Bango Torviso vem recolocar a questão, assumindo-se como o mais acérrimo defensor do modelo interpretativo proposto por José Camón Aznar, pela primeira vez, em 194827. Assim, ante a pergunta que à classificação da arquitectura hispânica do século X coloca duas hipóteses, de repovoamento ou moçárabe, Bango Torviso opta em defintivo pela primeira, pretendendo com isto afirmar a sobrevivência e o prolongamento da arte asturiana no Norte, ainda que com as alterações inevitáveis nascidas do contacto com os monumentos visigodos, da afluência de elementos andaluzes e carolíngios e da adaptação a novas realidades políticas e mentais, ao longo da centúria em questão. A denominação de arquitectura moçárabe deixa-a para as realizações operadas em território de dominação muçulmana, enquanto para o Norte fala da convivência de uma arquitectura em
que a tradição asturiana se combina com formas andaluzas e carolíngias (a arquitectura de repovoamento) com uma arquitectura puramente asturiana. Jacques Fontaine, nos anos de 1973-77, coloca esta teoria a par de outras sobre a arte moçárabe, que sistematiza, para finalmente reconhecer o mérito e o erro comuns a todas elas: “Le mérite de chacune de ces formules est d’avoir mis l’accent sur une facette particulière de l’art mozarabe; leur défaut (…) est d’avoir prévilégié cette facette aux dépens des autres…”28. Para Jaques Fontaine, a arte moçárabe é, por isso, simultaneamente uma arte do repovoamento, uma ramificação da tradição hispano-romano-visigótica, uma variante local da arquitectura romana tardia, uma filial da arte de Córdova, uma arte de fronteira, mas é sobretudo como manifestação préromânica que ela deve ser valorizada. A arte moçárabe é, nas palavras do autor que agora recuperamos, “la dernière floraison des arts préromans de la péninsule”29. E como? Porque se situa entre uma tradição, que a alimenta, e um movimento, de que é um
27 José CAMÓN AZNAR, “Arquitectura prerrománica española”, XVI Congrès International d’Histoire de l’art, vol. I, Lisbonne-Porto, Minerva, 1949, pp. 105-123. 28 Jacques FONTAINE, ob. cit., p. 50. 29 Idem, p. 57. Jacques Fontaine segue na esteira de Georges Gaillard, que ele próprio cita, nesta noção de que a originalidade e a repercussão da arte moçárabe ultrapassam a fragilidade e a dispersão dos seus monumentos corroboram a sua importância. Para Jacques Fontaine, de resto, o fundo hispânico que reconhece em todas as artes cristãs peninsulares que se sucederam à moçárabe não é compreensível sem este canal último e original de transmissão da tradição.
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dos laboratórios de experimentação: a primeira feita das heranças da arte paleocristã, da visigótica e da asturiana; o segundo correspondendo ao Românico. Para se compreender o moçarabismo na arte ter-se-á, por isso, de ter sempre presente, ainda que sem pôr em causa a autonomia e o valor próprio desta arte, todas as tradições (paleocristãs, omíadas, visigóticas, asturianas, meridionais e setentrionais) que nela confluem, não para debilitar a sua personalidade individual, mas para construir a sua riqueza maior. Em data bem mais próxima, Dominique Clévenot30 continua, no ano de 2000, a aceitar a existência de uma arte moçárabe, embora sem deixar de evidenciar a importância desta problemática nos estudos desenvolvidos desde Manuel Gómez-Moreno. Reconhecendo nesta arte uma eterna oscilação entre dois pólos culturais e artísticos (o islâmico e o cristão), Dominique Clévenot considera-a uma
arte “frontalier”, sob os dois pontos de vista, estilístico e geográfico31. Curioso é o facto de não nos depararmos com o mesmo tipo de hesitações entre os investigadores portugueses, posto que a denominação e autonomia desta arte aparecem assumidas desde momento tão precoce quanto o ano de 1927, na obra de José Pessanha32. Assim, se pela definição que apresenta de arte moçárabe – “a arte de hispano-godos que viviam submetidos e isolados, tendo apenas contacto com muçulmanos”33 –, parece pretender limitar tal adjectivação às edificações cristãs em domínio muçulmano, na continuação do discurso, José Pessanha reconhece a influência que, nos fins do século IX, a “arte do Califado” exerce sobre “os principados cristãos do Norte”. Esta “arte moçárabe setentrional distingue-se, todavia”34, conclui. Aarão de Lacerda, em 1942, aceita de igual modo a denominação de moçárabe para a arte cristã com influências islâmicas, tanto para a con-
30 Dominique CLÉVENOT, ob. cit. 31 Ver nota 18 supra. 32 D. José PESSANHA, Arquitectura Pré-Românica em Portugal. São Pedro de Balsemão e São Pedro de Lourosa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927. 33 Note-se que esta noção de absoluto isolamento das comunidades cristãs mantidas em território de dominação muçulmana está hoje ultrapassada. Assim o afirma Cláudio Torres:“Contradizendo um justificado isolamento ante as outras igrejas cristãs e ante o papado, sabe-se que no ano de 924 o papa João X envia um legado à Espanha muçulmana, onde reconheceu a perfeita ortodoxia e a legitimidade cristã da liturgia visigótica mantida pelos moçárabes.” (Cláudio TORRES, “O Garb-Al-Andaluz”, in História de Portugal (dir. José Mattoso), vol. I – “Antes de Portugal”, Círculo de Leitores, 1992, p. 408). 34 D. José PESSANHA, ob. cit., p. 12.
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cretizada no Sul (que considera rude) como para a do Norte (onde reconhece uma dignidade monumental que a afasta da anterior). Não obstante, não encontramos neste autor qualquer noção de continuidade entre a arte moçárabe e aquela que lhe sucede. Para Aarão de Lacerda, “a arquitectura moçárabe, produto de um movimento erudito, monástico, teve uma vida efémera, pois, extinta a geração oriunda do Sul, ela morre reabsorvida pela rusticidade do ambiente”35. Na obra que Carlos Alberto Ferreira de Almeida dedica à “Arte da Alta Idade Média”, o historiador desenvolve longamente os aspectos relativos à arte moçárabe, cuja autonomia reconhecida se traduz na atribuição, no contexto de todo o volume, de um capítulo à parte36. Desenvolve, assim, este capítulo em torno da “arquitectura moçárabe ou da primeira reconquista” do Centro e Norte de Portugal, que integra num período que vai até ao ano 1000, considerando
o século XI já como um momento, mais do que de empobrecimento das tradições que lhe estão na base, de ensaio de novas soluções que preparam a eclosão do Românico – uma verdadeira “arte pré-românica” ou, recorrendo à classificação de Puig i Cadafalch, uma “premier art romanic”37. Carlos Alberto Ferreira de Almeida não revela qualquer dificuldade em reconhecer aquela arquitectura do actual território português como uma “escola muito própria, bem distinta quer da do grupo leonês-toledano quer da outra da área asturiana”38. Segundo o historiador, a arte moçárabe e a arte do repovoamento aproximam-se pela sua fonte comum, em termos sociais e mentais. De facto, embora reconhecendo a autonomia das duas correntes, não considera a existência de argumentos arquitectónicos que imponham uma sua separação radical: “unidas por uma mesma mentalidade anti-islâmica39 e neogoda e por uma especial monumentalização do coro e
35 Aarão de LACERDA, História da Arte em Portugal, vol. I, Porto, Portucalense Editora, 1942, p. 154. 36 Ver nota 5 supra. 37 J. PUIG I CADAFALCH, Le premier art roman, Paris, 1928. 38 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.104. 39 Esta noção é importante no estudo deste investigador. Ao definir o panorama social que enquadra os desenvolvimentos artísticos a que dedica a análise, Carlos Alberto Ferreira de Almeida fala de uma sociedade marcadamente anti-muçulmana, mas que oscila entre uma necessidade de defesa e de preservação que obriga à formulação de uma concepção negativa do islamismo como religião do mal e o inevitável fascínio pela superioridade daquela civilização, o que favorece a abertura às inovações técnicas e às soluções artísticas de origem islâmica.Trata-se, no fundo, de duas tendências que são a razão uma da outra e que constroem a originalidade da arte dita moçárabe.
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do transepto das igrejas, para além de outras aparentadas soluções espaciais e artísticas.”40 Interessante é, afinal, o modo como, por esta via de entendimento, Ferreira de Almeida suaviza a radical oposição que divide os investigadores estrangeiros. Finalmente41, em reflexão recente sobre o que encara ainda como uma “arte sem nome”, Paulo Almeida Fernandes recoloca com clareza e sólida argumentação crítica toda a questão da arte dita moçárabe, e opta em definitivo pela noção abrangente mas não imprecisa ou simplista de uma “arte pré-românica hispânica”, pretendendo com isto reconhecer a diversidade e a heterogeneidade que constroem este conjunto artístico, mas também as suas especificidades. Em lugar de um “aprisionamento” artificial de todas estas manifestações cristãs
concretizadas no Norte peninsular entre os primeiros anos do século X e a segunda metade do século XI numa fórmula restritiva, estranguladora ou idealizada, este investigador retoma a denominação que encontrámos na expressão de Jacques Fontaine, mas enchendo-a de uma nova significação, em certa medida até contrária à do autor francês. De facto, para Paulo Almeida Fernandes, a referida arte é pré-românica apenas em sentido cronológico, pois não é na sua esteira mas sim por oposição a esta (nomeadamente à liturgia que esta serve e representa – a liturgia hispânica) que o Românico se desenvolve em território peninsular42. Não é, contudo, a diversidade de influências conjugadas na arte moçárabe o único factor a concorrer para um questionamento sobre a sua auto-
40 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.96. 41 Nesta análise relativamente abreviada do estado da questão da arte dita moçárabe, não couberam no texto principal alguns investigadores portugueses, limitação que de modo algum pretende sugerir uma sua menor importância, pelo que não poderemos deixar de os referir, nomeadamente Mário BARROCA (“Contribuição para o estudo dos testemunhos pré-românicos de Entre-Douro-e-Minho”, IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, vol. I, Braga, Faculdade de Teologia de Braga da Universidade Católica Portuguesa/Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 101-145; “Do Castelo da Reconquista ao Castelo Românico (séc. IX a XII)”, Portugália, Nova Série, vol. X-XI, Porto, Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1990-91, pp. 89-136) e Manuel Luís REAL (“Inovação e resistência: dados recentes sobre a Antiguidade cristã no ocidente peninsular”, IV Reunião de arqueologia cristã hispânica (Lisboa, 1992), Barcelona, Institut d’Estudis Catalans/Universitat de Barcelona/Universidade Nova de Lisboa, 1995, pp. 17-68; “Os Moçárabes do Ghab português”, Portugal islâmico (catálogo de exposição), Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 1998, pp. 35-56). 42 “Ao contrário do que aconteceu em outras regiões da Europa, onde o Românico sucedeu naturalmente às formas autóctones de construir, em solo peninsular instituiu-se como a arte de propaganda das reformas cluniacense e gregoriana. Neste sentido, foi uma nova arquitectura para uma nova liturgia…” (Paulo Almeida FERNANDES, ob. cit., p. 61).
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nomia.Também a localização dos seus testemunhos remanescentes tem criado dificuldades à compreensão segura destas manifestações artísticas e à tentativa de delineamento de um seu percurso, desde a formação à diluição em novas formas, passando pelo movimento de expansão para Norte com todas as suas consequências. Com efeito, dos dois mundos que sobre esta arte actuaram apenas aquele outrora cristão manteve conservados os edifícios ditos moçárabes, facto que se traduz actualmente numa quase absoluta concentração de testemunhos na par te Nor te da Península (e alguns em território francês43), dificultando o entendimento da arte moçárabe primordial44. No que se refere ao Sul antes islâmico, foram apenas duas, segundo Manuel Gómez-Moreno (opinião que é seguida pela maioria dos investigadores), as estruturas conservadas: a igreja de Santa Maria de Melque, na região de Toledo, e a igreja rural de Bobastro, nas montanhas de Málaga. Já
em relação ao Norte, vários são, como dissemos, os edifícios conservados: San Miguel de Escalada (a sudeste de León, construído em 913), San Cebrián de Mazote (fundado em 916), San Millán de la Cogolla e Albelda (na região de Logroño) e San Juan de la Peña (Alto Aragão) são apenas alguns dos mais comuns nos discursos de análise dos investigadores que sobre a matéria se debruçam. Na verdade, não nos interessa neste artigo tanto uma apresentação exaustiva dos testemunhos identificados com a arte moçárabe (pelo menos para o território não português) quanto uma indicação das características que desde Manuel GómezMoreno têm sido consideradas distintivas desta arquitectura e, particularmente, a discussão que tem estado associada à pesquisa sobre as origens de cada um desses elementos. O primeiro de entre eles, até porque assumido pelo referido investigador como o distintivo básico, é o arco de ferradura, a que todos os
43 A este propósito afirmam Pedro de Palol e Max Hirmer:“Remarquons que depuis Alfonso III le Grand, les églises mozarabes se multiplient, non seulement dans les pays d’Asturie et de Léon, mais aussi dans les territoires qui vont jusqu’à l’ancienne Marche de Catalogne, où Saint-Michel-de-Cuxa nous offre le plus impressionant des bâtiments mozarabes d’esprit cordouan que les vieux pays chrétiens nous aient conservés.” (Pedro PALOL e Max HIRMER, ob. cit., p. 37). Note-se que esta influência moçárabe na Catalunha é relacionada por estes autores com a forte atracção que, em geral, a civilização de Córdova exerceu sobre os conventos catalães desde o começo do século X. 44 Este facto ficou a dever-se à sistemática destruição a que este património foi sendo sujeito, primeiro pelos Almorávidas e Almóadas, depois pelos próprios cristãos vindos do Norte e pela importação de novos modelos artísticos e culturais como o monaquismo cluniacense.
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autores se reportam. Élie Lambert atribui-o à influência do Islão andaluz, diferenciando-o do da tradição visigótica pelas proporções variáveis, pelo descentramento do extradorso relativamente ao intradorso e, sobretudo, pelo vulgar enquadramento num rectângulo – o alfiz. Estas são, de resto, as características repetidas nos textos subsequentes a este historiador a fim de distinguir o arco de ferradura de uso na arquitectura visigótica daquele adoptado nos edifícios moçárabes. Isidro Gonzalo Bango Torviso, contudo, na sua argumentação a favor da substituição da ideia da existência de uma arte moçárabe no Norte pela da continuidade da arquitectura asturiana, vem contrariar a comum associação daquele elemento à mesquita de Córdova. De acordo com este investigador, o arco de ferradura usado naquela metade da Península não é o cordovês por vários motivos, mas principalmente pelas proporções, que considera perfeitamente integráveis nos limites tradicionais do visigótico, e pela decoração nele aplicada. O próprio efeito do descentramento, diz Bango Torviso, pode ser encontrado em monumentos cristãos não espanhóis, nomeadamente na arquitectura
lombardo-toscana. De igual modo, os modilhões de rolos, associados por Élie Lambert e Chueca Goitia à estética cordovesa, são, segundo o mesmo polémico historiador, de um grande visigotismo, pois não há, nas construções muçulmanas coetâneas, modilhões iguais aos moçárabes, nem no tamanho, nem na decoração. As absides de planta ultrapassada, próximas dos mihrabs, e as abóbadas de nervuras são outros dos elementos presentes na arquitectura moçárabe geralmente associados à influência andaluza. Fernando Chueca Goitia conclui: as marcas do orientalismo brilham em igrejas que, ao nível estrutural, seguem maioritariamente as normas das basílicas latinas e da arte visigótica. Dirijamo-nos finalmente para o actual território português. Aqui, no que respeita aos testemunhos conservados, podemos falar, segundo Carlos Alberto Ferreira de Almeida, das igrejas de São Frutuoso de Montélios (Braga), que o historiador atribui aos finais do século IX ou, no máximo, aos inícios do século X, de São Torcato (Guimarães), de São Pedro de Balsemão (Lamego), de São Gião da Nazaré e de São Pedro de Lourosa da Serra45, todas estas datáveis do século
45 “Verdadeiro ex-libris da historiografia nacional sobre os tempos moçárabes”, na opinião de Carlos Alberto Ferreira de Almeida, esta igreja é a única de datação relativamente segura, pois nela se encontra uma inscrição datada de 912 (Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, ob. cit., p.140).
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X. Para além destas, são igualmente referenciados um mosteiro em Guimarães, o mosteiro do Cabo de São Vicente, em Sagres e a igreja de Santa Maria de Faro, estruturas perdidas no contexto das já faladas destruições. Conclui Carlos Alberto Ferreira de Almeida, acerca destas obras, que delas se absorve “a impressão de que houve nesse período [finais do século IX a meados do século X] uma razoável melhoria na vida socioeconómica e cultural das populações cristãs das áreas do Centro e Norte de Portugal, o que condiz com o que sabemos de outras regiões”46, merecendo neste contexto particular destaque a cidade de Coimbra, considerada o mais importante foco de moçarabismo nesta região do Ocidente. Enveredar por um tal caminho discursivo, dirigido às transformações sociais e económicas desta época pré-
-românica, afastar-nos-ia, contudo, dos propósitos deste artigo, obrigando-nos a considerar questões mais propriamente históricas cuja análise não tem aqui lugar. Limitamo-nos, por isso, a sublinhar a importância, nesta área dos estudos moçárabes, de uma atenção dirigida às particularidades de cada região, à sua realidade e evolução próprias, bem como ao esclarecimento acerca do real papel das comunidades moçárabes na formação de uma cultura e de uma arte particulares47, tendência que tem sido aquela seguida pela mais recente historiografia, de acordo com um desejo que tem de ser o de todos os que investigam sobre o moçarabismo de redefinir continuamente os canais de entendimento de uma época ainda a precisar de um interesse renovado. Joana Ramôa Melo*
46 Idem, p.145. 47 Este aspecto do peso dos moçárabes imigrados para o Norte da Península na formação da arte aqui desenvolvida nos séculos X e XI é, sem dúvida, fundamental para um futuro esclarecimento acerca da mais correcta designação a atribuir àquelas manifestações. Afinal, foi neste sentido e tendo em conta o papel determinante do poder condal como encomendador e organizador dos territórios, abrindo caminho, deste modo, à própria instalação das comunidades monásticas, que a corrente historiográfica assente num conceito de arte de época condal se desenvolveu. De qualquer modo, a mesma crítica que não permitiu aceitar a validade de uma tal designação deve orientarnos na consciência da complexidade de todo o fenómeno que deu origem e serviu de pano de fundo a esta arte, e consequentemente da precaução com que uma sua caracterização e classificação definitivas deve ser orientada: a noção de que no processo de repovoamento vários agentes intervêm e de que as relações entre poderes cristão e islâmico apresentam matizes mais ou menos pronunciados que algumas perspectivas menos atentas têm tendência a negligenciar. * Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – POCTI/EAT/45922/2002 – Imago.
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Projecto Imago O projecto Imago (POCTI/EAT /45922/2002), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.), tem vindo a ser desenvolvido desde 1 de Setembro de 2005 no âmbito da investigação associada ao Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, seguindo como objectivo fundamental a constituição de uma base de dados iconográfica relativa à Idade Média portuguesa, particularmente centrada nos campos artísticos da iluminura e da escultura tumular. Suportado numa ideia suscitada pela carência sentida neste quadro específico da investigação em Portugal, tal projecto pretende, assim, assumir-se como um contributo primordial para a construção de um centro de iconografia medieval, marcando o início e construindo a base do que poderá ser uma inventariação de mais longo alcance e, deste modo, facilitando e estimulando o trabalho dos investigadores, através da centralização e da divulgação da referida informação, actualmente dispersa e muitas vezes difícil de obter. A apresentação deste projecto, no contexto de um Instituto de Estudos Medievais, pretende contribuir
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para situar as imagens como memória social, revelar o seu valor em função do conteúdo, relacionando-o com as diversas áreas dos estudos medievais, nomeadamente a história e a literatura. A interdisciplinaridade permitirá, assim, atingir uma dimensão iconológica da imagem e através dela dar a conhecer a Idade Média. O projecto, presidido pelo Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva, coordenador da investigação na área da escultura tumular, conta igualmente com a participação, como investigadora interveniente, da Professora Doutora Maria Adelaide Miranda, responsável pela área da iluminura, bem como da bolseira Dra. Joana Ramôa Melo. Em colaboração com o trabalho de elaboração e adequação ao suporte informático das fichas da iluminura têm estado igualmente a Dra. Ana Lemos e o Dr. Luís Sousa. Iniciado o trabalho de investigação revelou-se indispensável, num primeiro momento, a concepção de um tesauro descritivo das imagens adequado a cada uma das áreas nas quais se optou por concentrar o projecto – iluminura e escultura tumular –, instrumento de base fundamental para a descrição das imagens e garante da eficácia e da facilidade da consulta no
âmbito da base de dados informatizada. Seguiu-se a elaboração de uma ficha de catalogação para as peças (no caso da escultura tumular) e as imagens (no caso da iluminura), num processo feito de reelaborações sucessivas tendo em conta os interesses dos investigadores em articulação com as propostas e a experiência nesta área de trabalho dos programadores informáticos. A construção da base de dados foi, do ponto de vista informático, confiada ao Centro de Investigação de Tecnologias de Informação (C.I.T.I.), uma unidade de investigação diversas vezes premiada por trabalhos desenvolvidos neste e noutros campos da programação, instalada no 8º piso do edifício da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e presidida pelo Doutor Carlos Correia, professor da mesma instituição. Com o programa informático em construção, que permitirá uma catalogação directa na base, tem vindo a ser desenvolvido o trabalho de campo, com a recolha de imagens e a análise das peças nos locais, trabalho seguido da digitalização, investigação (pesquisa e levantamento de fontes históricas, literárias, filosóficas e religiosas que permitam a integração das imagens no contexto mais vasto da civilização medieval) e catalogação, tendo por objectivo a constituição do corpus iconográfico.
Depois dos núcleos escultóricos de Lisboa, Santarém, Alcobaça, Viseu, outros se seguem como objectos de estudo, num projecto que visa, no período de três anos a que corresponde, abranger todo o país, no que se refere ao campo da escultura tumular, e os mais importantes fundos, no que respeita à iluminura.Tendo em vista a superação de dificuldades implicadas num processo como este de recolha e disponibilização on line de imagens de peças artísticas, em termos de direitos de autor, têm vindo a ser estabelecidos contactos no sentido de se solicitarem protocolos às instituições de cultura, procurando assim igualmente não repetir trabalhos já realizados. Deste esforço nasceram a licença do Instituto Português de Património Arquitectónico (IPPAR) para o acesso e a realização de fotografias de peças situadas em edifícios sob a tutela da instituição, bem como um protocolo já assinado entre o projecto Imago e a Biblioteca Nacional, que permitirá o levantamento de imagens dos fundos iluminados aí depositados. Ao longo dos dois anos restantes de trabalho e investigação (com final em Agosto de 2008), o projecto Imago tem ainda como objectivos em desenvolvimento, para além da disponibilização on line da base de dados iconográfica relativa à Idade Média portu-
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guesa, a publicação de duas obras de investigação e a organização de um encontro, no ano de 2007, no âmbito das actividades do referido Instituto de Estudos Medievais e em parceria com o Instituto de História da Arte da
F.C.S.H., dedicado à iconografia medieval e ao trabalho de construção de base de dados nesta área de investigação. Joana Ramôa Melo
Arte Portuguesa dos séculos XVI-XVII em exposição Em 2007 Macau fará 450 anos. É uma data importante, já que marca a fundação de um dos pontos estratégicos fundamentais da presença portuguesa na Ásia, tanto do ponto de vista económico, como religioso, cultural e artístico. “Cidade dominante”, para utilizar a terminologia de Braudel, Macau foi durante séculos uma verdadeira plataforma entre as várias Ásias e os diferentes ocidentes (a Europa e a América do império espanhol). Contudo, quem quiser ver grandes exposições dedicadas à arte portuguesa do tempo da expansão ultramarina, não o poderá fazer em Lisboa, Porto, Coimbra ou Évora, mas sim em Washington D.C. e em Berlim que, com apenas alguns meses de intervalo, irão inaugurar em dois dos museus mais importantes dos respec-
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tivos países – a Smithsonian Institution e o Deustsches Historisches Museum –, eventos que pretendem divulgar e informar sobre um universo que é sempre motivo de surpresa e descoberta. Com o título genérico «Encompassing the Globe. Portugal and the World in 16th and 17th centuries» e a decorrer entre 23 de Junho e 16 de Setembro, a exposição de Washington visa mostrar as influências recíprocas entre a metrópole e respectivas colónias e o alcance das mesmas, segundo as palavras de Jay Levenson em entrevista recentemente publicada na imprensa portuguesa. Ocupando um espaço imenso – correspondente ao das Freer e Sackler Galleries com extensão ainda para a galeria do African Museum –, a exposição que irá contar com cerca de três centenas de
objectos incluirá algumas das peças emblemáticas da arte portuguesa deste período pertencentes a instituições nacionais – com destaque para o Museu Nacional de Arte Antiga –, mas também estrangeiras, contando com espólios de colecções austríacas, alemãs, russas, italianas, brasileiras e japonesas. «Novos Mundos – Neue Welten. Portugal e a Época dos Descobrimentos /Portugal und das Zeitalter der Entdeckungen» foi o título escolhido pelos responsáveis do Deutsches Historisches Museum. Em Berlim a dimensão museológica da mostra que irá inaugurar de 25 de Outubro de 2007 e estará patente até 10 de Fevereiro de 2008 será menos ambiciosa, ainda que se vise do ponto de vista científico procurar mostrar através do catálogo que será então publicado o que de mais recente a historiografia e historiografia da arte têm produzido sobre a matéria. Para o efeito, teve lugar na capital alemã entre 23 e 25 de Novembro um Simpósio internacional com a participação de Sanjay
Subrahmanyam, Francisco Contente Domingues, Ulrich Knefelkamp, Maria de Lurdes Rosa, Stefan Eisenhofer, Michael Kraus – comissário da exposição juntamente com Hans Ottomeyer –, Marília dos Santos Lopes, Ângela Barreto Xavier, Zoltán Biedermann, Roderich Ptak, Jürgen Nagel, Leonor Freire Costa, Jean-Paul Lehners, Paulo Pereira – consultor pela parte portuguesa –, Elke Bujok, Sigrid Sangl, Alexandra Curvelo, Johannes Meier, Pedro Lage Correia e Eduardo Lourenço, que encerrou o encontro com uma reflexão crítica intitulada “O olhar-mundo de Portugal”. Tendo como linha de força os descobrimentos lusitanos nas suas várias vertentes, foram abordados temas da história política, económica, científica, religiosa, cultural e artística que puseram em evidência novas reflexões sobre a matéria, resultado dos trabalhos de investigação que têm vindo a ser desenvolvidos nas últimas décadas por estudiosos de diferentes campos do saber. Alexandra Curvelo*
* Historiadora de Arte do quadro do Instituto Português de Conservação e Restauro, doutoranda do Departamento de História da Arte da FCSH/UNL, com bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, investigadora do CHAM – FCSH/UNL.
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História da Arte na World Wide Web
Ao longo dos últimos anos, a assunção do espaço Web enquanto plataforma cada vez mais alargada de comunicação, faz da publicação electrónica não apenas um meio de acesso massificado ao conhecimento, mas também um recurso cada vez mais operativo no campo da produção de saber1. As publicações electrónicas no domínio da História da Arte, nelas se incluindo quer as fontes e recursos bibliográficos, quer a historiografia propriamente dita, apresentam-se neste contexto como um grupo bastante heterogéneo, em boa medida resultante de duas problemáticas distintas mas confluentes. Desde logo, a que advém do próprio objecto de estudo, e da forma como este contemporaneamente
é ele próprio subsidiário da e-revolution. Do ponto de vista da criação, a Media Arte e a Web Art implicam uma redefinição do conceito de obra e da relação entre suporte e materialidade. Além disso, o ambiente www e a constituição de bancos de imagens ou mesmo de museus on-line, contribuem para a massificação do acesso à imagem, e obrigam a uma reflexão renovada em torno das ligações entre o criador, a obra e a fruição desta última pelo público, assim como das formas de mediação tradicionais dessas mesmas ligações. Por outro lado, o advento electrónico tem conduzido a mudanças significativas no domínio da formação e transmissão do saber. Assistimos a um processo de aceleração e alarga-
1 De entre uma vastissima literatura sobre este tópico, veja-se entre outros: AAVV, Les Savoirs déroutés. Experts, documents, supports, règles, valeurs et réseaux numériques, Lyon, Les Presses de l’Enssib, 2000; AAVV, A Cultura das Redes – Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, Relógio d’Água, Junho de 2002 (número extra); Patrizia Nerozzi BELLMAN (a Cura di), Internet e le Muse. La rivoluzione digitale nella cultura umanistica, Milano, Associazione Culturale Mimesis, 1997; Roger CHARTIER, «Passé et avenir du livre», in Yves Michaud (Dir.), L’Art et la Culture, Paris, Éditions Odile Jacob, 2002, pp.172-184; Bernard DELOCHE, Le musée virtuel, Paris, PUF, 2001; Richard LANHAM, The electronic word: democracy, technologie and the arts, Chicago, University of Chicago Press, 1993; Lawrence LESSIG, Free Culture. How Big Media Uses Technology and the Law to Lock Down Culture and Control Creativity, London, Penguin, 2004; Ilana SNYDER (Ed.), Silicon Literacies. Communication, Innovation and Education in the Electronic Age, London & New York, Routledge, 2002; Emmanuel SOUCHIER,Yves JEANNERET, Joelle LE MAREC (Dir.): Lire, écrire, récrire: objects, signes et pratiques des médias informatisés, Paris, BPI – Beaubourg, 2003; Claire WARWICK, «Electronic publishing: what difference does it make?», in Susan Hornby e Zoe Clark (Dir.): Challenge and change in the information society, London, Facet Publishing, 2003, pp. 200-216.
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mento mediante a sedimentação de conexões múltiplas entre áreas até então relativamente compartimentadas, e entendidas ou apreendidas como estanques. Em simultâneo, estas novas modalidades de criação e comunicação do conhecimento vieram permitir não apenas esse intercâmbio entre disciplinas mas também a investigação conjunta de problemas comuns a grupos específicos, se bem que territorialmente dispersos. Neste contexto alargado e em contínua actualização, o universo das publicações electrónicas assume configurações múltiplas, desde as simples conversões digitais de revistas ou livros, até às publicações born digital, passando pela divulgação de bases de dados ou de resultados parciais de projectos científicos de vária ordem2. O advento do digital veio contribuir para a redefinição das modalidades de pensar o estatuto e a função dos objectos culturais e intelectuais e diversificar as formas de apropriação dos seus conteúdos. Mais que acentuar as dicotomias entre impresso e electrónico, importará pensar em que medida essas polaridades se influen-
ciam mutuamente, redefinindo a natureza originária de ambas para além da mera questão técnica de fixação e reprodução textual, forjando várias tipologias de públicos e novas práticas de criação e obtenção de conhecimento. Um exemplo desta dinâmica no campo da História da Arte pode ser encontrado em ENGRAMMA: la tradizione classica nella memoria occidentale (http://www.engramma.it/), uma publicação on-line do Seminario di Tradizione Classica – Dipartimento di Storia dell’Architettura dell’Università IUAV di Venezia, dirigida por Monica Centanni (DSA/IUAV).
Proveniente do departamento inicialmente dirigido por Manfredo Tafuri (e também depositário do contributo ao nível do ensino da história da arquitectura de nomes como Bruno Zevi ou Leonardo Benevolo), ENGRAMMA assume-se como um espaço em permanente interrogação teórica. Centrando-se na per-
2 Refira-se neste âmbito e no contexto português o pioneirismo do projecto «ENCICLOPÉDIA E HIPERTEXTO», dirigido pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e sediado durante o período de execução em http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/, local onde se foram publicando alguns dos estudos resultantes do trabalho em curso, recentemente materializados e ampliados em livro impresso: Olga POMBO, António GUERREIRO, António Franco ALEXANDRE (Ed.), Enciclopédia e Hipertexto, Lisboa, Edições Duarte Reis, 2006.
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sistente influência da tradição clássica na cultura ocidental, e sob o signo epistemológico de Aby Warburg, esta publicação promove a reflexão em torno da reactualização de topoi artísticos e literários da antiguidade clássica desde a época medieval até à contemporaneidade. Em simultâneo, e tratando-se de uma revista exclusivamente on-line, em ENGRAMMA defende-se que “também no campo dos studia humanitatis a publicação em rede se configura actualmente como o meio e o lugar de verificação das novas metodologias de pesquisa e como veículo de comunicação dos resultados”. A revista organiza-se em oito núcleos: Saggi (estudos e contributos inéditos); Gallerie (iconografia); Peithò & Mnemosyne (temas clássicos na publicidade); Esperidi (tabelas iconográficas); Aranea (fontes e recursos on-line) e News (recensões). Dá igualmente a conhecer a pesquisa em curso no interior do Seminário de Tradição Clássica, organizada em três módulos distintos: Warburg e l’Atlante, La Calunnia di Apelle, e Internet e Umanesimo. ENGRAMMA tem ainda promovido várias iniciativas culturais em Veneza, de entre as quais se destaca o encontro anual Luminar. Internet e Umanesimo. Publicada em Veneza, e em italiano (sumários em inglês e em latim), o primeiro número de
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Revista de História da Arte
ENGRAMMA surgiu em Setembro de 2000, contando em Novembro de 2006 com 51 números periodicamente disponibilizados. IMAGES re-VUES: histoire, anthropologie et théorie de l’art (http:// www.imagesre-vues.org/), por seu lado, é uma publicação on-line organizada pelos quatro centros de pesquisa da EHESS e do CNRS integrantes do Institut National d’Histoire de l’Art (INHA): o Centre Louis Gernet, o Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM), o Centre d’Histoire et Théorie des Arts (CEHTA), e o Laboratoire d’Anthropologie Sociale (LAS).
Derivando de uma tomada de posição muito concreta no que respeita ao entendimento dos limites e das ‘boas-práticas’ em História da Arte, o objectivo primeiro de IMAGES re-VUES radica pois na aglutinação, num mesmo espaço de reflexão interdisciplinar, da experiência
proveniente do trabalho de campo antropológico com a especificidade da interpretação iconográfica. A sua principal interrogação, que é em simultâneo posicionamento teórico e metodológico, passa pela delimitação do “lugar” epistemológico da “imagem”, independentemente da sua forma ou cronologia. Criado por doutorandos e pós-doutorandos dos centros que constituem o INHA, e dirigida por Giovanni Careri (CEHTA /EHESS), este projecto on-line é a expressão de uma pesquisa que transcende a própria revista. Cada número de IMAGES re-VUES é organizado tematicamente, publicando trabalhos de investigação inéditos e em língua francesa. O primeiro (Dossier N.1: Théories) surgiu em Julho de 2005 e o segundo (Dossier N.2: L’image abimée) em Março de 2006. Em Novembro de 2006 encontram-se em diferentes fases de preparação (alguns já com data prevista de edição e outros em fase de recepção de contribuições) os seguintes números: Dossier N. 3: Hommage à Daniel Arasse; Dossier N. 4: Objets mis en signe; Dossier N. 5: Voir, décrire; Dossier N. 6: L’image-
événement; Dossier N. 7: Devenir –animal. Integrado numa problemática bem mais vasta que a estritamente jurídica, saliente-se ainda o carácter matricial que o debate em torno da reprodução electrónica da imagem para fins científicos assume nesta publicação3, discutindo os limites de conceitos como “original” e “cópia” no contexto específico das publicações on-line. Estes dois exemplos de publicações electrónicas no âmbido da e para a História da Arte espelham em parte o que parece ser um dos maiores desafios do conhecimento na era da e-produção. A necessidade de reflexão em torno das potencialidades e dos limites de constituição e divulgação do saber. O suporte electrónico, mais que um inócuo veículo de comunicação massificada, imiscui-se na criação e organização do saber, compelindo a testar metodologias e recursos de validação oriundos de práticas culturais que tinham no impresso, no tangível e no circunscrito as suas bases originais. Obrigando a pensar de novo velhas questões, e conduzindo algumas vezes a novas formas de pensar. Luísa França Luzio*
3 Cf. Maddalena PARISSE, Tania VLADOVA, «Les revues en ligne: recherche et politique des images»: http://www.imagesre-vues.org/numero_2/Annexes/DroitImage.htm * Aluna de Doutoramento em História da Arte Moderna (Arquitectura e Urbanismo) – FCSH-UNL (Bolseira FCT); Membro do Instituto de História da Arte - FCSH-UNL
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