ARTIGO EXCLUSIVO DE DILMA ROUSSEFF
DIRETAS JÁ! p.26
MOVIMENTO ESTUDANTIL E DEMOCRACIA Entrevistas com ex-presidentes da UNE desde 1979 e com a atual líder Carina Vitral
p.70
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A REVISTA MOVIMENTO ESPECIAL 80 ANOS É UMA PUBLICAÇÃO DA UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES
FICHA TÉCNICA Organização
BRUNO HUBERMAN, NATÁLIA PESCIOTTA e RAFAEL MINORO Jornalista Responsável RAFAEL MINORO (REGISTRO 11287) Entrevistas BRUNO HUBERMAN, JAVIER ALFAYA e NATÁLIA PESCIOTTA Fotos FUNDAÇÃO MAURÍCIO GRABOIS, INSTITUTO LULA, CUCA DA UNE, ACERVO JORNAIS E REVISTAS, ACERVO PESSOAL e ACERVO UNE Projeto gráfico SATO DO BRASIL e MURILO THAVEIRA >casadalapa Revisão LUANA BONONE Editora Responsável CONTRA REGRAS - PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO ESTUDANTES TENTAM RECUPERAR A SEDE DA UNE NO RIO DE JANEIRO TOMADA PELA DITADURA MILITAR, EM 1980 UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES Rua Vergueiro, nº 2485 - Vila Mariana - 04101-200 São Paulo SP telefone: 11 5539-2342 / e-mail: contato@une.org.br CONTRA REGRAS ARQUITETURA E DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS CULTURAIS Rua Áurea, nº 285 - Vila Mariana - 04.015-070 - São Paulo - SP telefone: 11 2503-1978 / e-mail: contato@contraregras.com.br
A União Nacional dos Estudantes agradece o ex-presidente da entidade Javier Alfaya, por ter cedido as suas entrevistas e fotos históricas que serviram de mote para a realização dessa revista especial sobre os 80 anos da UNE.
Estudantes, União Nacional. E79
Revista Movimento Especial 80 Anos / União Nacional dos
Estudantes. – São Paulo: Contra Regras, 2017. 192 f. ISBN: 978-85-93897-02-3 1. Revista Movimento Especial 80 Anos. 2. União Nacional dos Estudantes. 3. Movimento Estudantil. 4. Brasil – História. CDD 070.304
54º Congresso da UNE em Goiânia, em 2015
Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador, em 1979
EA TRADIÇÃO
UNE REÚNE o FUTURO
A
Manifestação “Fora Temer” em São Paulo, em 2017
Passeata dos 100 Mil no Rio de Janeiro, em 1968
EA TRADIÇÃO
UNE REÚNE o FUTURO
A
Grupo de teatro estudantil na 10ª Bienal da UNE, em 2017
“O Guarani� encenado por estudantes
EA TRADIÇÃO
EM DEFESA DO BRASIL, DA EDUCAÇÃO E DA DEMOCRACIA
UM GENE ORIGINAL DA DEMOCRACIA POR CARINA VITRAL................................................................... P.20 80 ANOS DE LUTA. E AGORA É PELAS DIRETAS, JÁ POR DILMA ROUSSEFF............................................................... P.26
sumário
AS EXPERIÊNCIA CULTURAIS DA UNE POR DANIELA REBELLO.............................................................. P.32 LINHA DO TEMPO: ESTUDANTES EM DEFESA DA DEMOCRACIA ONTEM E HOJE................................................ P.42 ENTREVISTA COM RUY CEZAR: O NOME DA RECONSTRUÇÃO...................................................... P.70
ENTREVISTA COM ALDO REBELO: NOSSA TÁTICA FOI A LUTA DEMOCRÁTICA.................................... P.88 ENTREVISTA COM JAVIER ALFAYA: O JAVIER É BRASILEIRO............................................................. P.100
ENTREVISTA COM CLARA ARAÚJO: UMA MULHER NA PRESIDÊNCIA................................................. P.116 ENTREVISTA COM LINDBERGH FARIAS: O MOVIMENTO ESTUDANTIL DE CARA NOVA................................ P.126
ENTREVISTA COM ORLANDO SILVA: UMA UNE DIVERSA, PLURAL E COMBATIVA ................................ P.144 ENTREVISTA COM WADSON RIBEIRO: UNE NAS RUAS CONTRA O NEOLIBERALISMO............................. P.156 ENTREVISTA COM GUSTAVO PETTA: NOSSA VOZ PASSOU A SER OUVIDA............................................. P.164 ENTREVISTA COM CARINA VITRAL: A JUVENTUDE PELA DEMOCRACIA MAIS UMA VEZ....................... P.176
20 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
por CARINA VITRAL DA PRESIDENTA UNE
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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A líder estudantil durante passeata em Goiânia
22 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
P
ara uma pessoa, oitenta anos é o tempo de toda a vida. Para um país, apenas um pedaço. No caso do Brasil, porém, as últimas oito décadas são o pedaço que mais importa no que diz respeito às suas manifestações de massas, transforma-
ções sociais e protagonismo do povo nas ruas. Não por coincidência, é também o período de existência da União Nacional dos Estudantes. A UNE é personagem essencial das lutas populares durante o século XX
e o começo deste. Uma organização histórica, que acompanha a edificação da nossa democracia, em diferentes períodos, movida pelo combustível da ousadia da juventude. Cada geração de militantes do movimento estudantil trouxe sua colaboração para as mudanças que o nosso país enfrentou, questionou os autoritarismos de sua época e transformou o estado das coisas que se apresentava. Esse é um legado incomparável, ostentado por poucas e marcantes instituições no nosso país. Em 2017, quando a UNE completa esse aniversário marcante, há como perceber tal natureza a partir da luta dos estudantes pelas Diretas Já e pela retomada da soberania popular, após a violência de um golpe parlamentar em 2016 que depôs uma presidenta eleita e impôs uma agenda de retrocessos. Há mais de 30 anos, em 1984, a mesma campanha pelas Diretas Já era protagonizadatambémpelamesmaUNE,após o longo período da ditadura civil-militar, com mobilização dos setores populares pelo retorno do voto nas urnas e da legitimidade democrática. Isso demonstra que, assim como versa o nosso hino, a UNE reúne futuro e tradição. Resgata o acúmulo de lutas do passado para fortalecer as lutas e convicções de hoje, avistando o amanhã. Essa é principal característica da entidade desde a sua fundação, em 1937, incubando no movimento estudantil brasileiro uma espécie de gene original pela democracia. O DNA da UNE é a defesa do Brasil e a construção de uma nação plural, com igualdade, justiça social, inclusão dos mais pobres e desfavorecidos. É a luta por uma educação pública, gratuita e de qualidade, a nossa verdadeira emancipação por meio do desenvolvimento da juventude e a superação das contradições históricas que nos freiam. Essa é uma história com antecedentes ainda mais remotos. Os registros oficiais revelam a atuação dos estudantes organizados no cenário nacional desde a época do império, quando a educação ainda era restrita a uma pequena parcela da população, mas representava a possibilidade da centelha de uma consciência crítica no berço da elite nacional. Com a chegada da República e as transformações do século XX, a juventude passou a participar cada vez mais dos acontecimentos do país, dividida em diversos grupos políticos, religiosos, comunitários, com forte militância nas ruas de muitas cidades e da então capital, Rio de Janeiro. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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Carina durante homenagem aos estudantes mortos pela ditadura Helenira Rezende e Honestino Guimarães
A soma dessas forças deu origem à UNE, que já demonstrou imediatamente o poder de alcance de
nazista e para que aquele prédio fosse doado por
brasileira, com resultados diretos em momentos
Vargas como sede da UNE.
como a defesa do Petróleo, o combate à ditadura
toda essa unidade. Em meio às tensões daquela
Desde então, todas as causas foram grandes,
época, que premeditavam a segunda guerra mun-
todas as lutas foram amplas, todas as conquistas
dial, a UNE fez frente ao avanço do nazifascismo no
estudantis foram decisivas para o conjunto da so-
O movimento estudantil é uma escola de demo-
Brasil, em um momento em que o posicionamento
ciedade brasileira. Por conta dessa vasta natureza
cracia por onde passaram diversos personagens da
de Getúlio Vargas ainda era indefinido. O comba-
institucional, organizam-se na UNE desde sempre
política, da cultura, da academia, pessoas que vieram a
te às ideias fascistas se deu nas ruas e esquentou
estudantes das mais diferentes ideologias, correntes
influenciar fortemente a vida nacional após os tempos
as cercanias do Palácio do Catete, então sede do
políticas, grupos com pensamentos distintos que
de estudante e que aprenderam na militância da UNE
governo brasileiro. O ápice, no ano de 1942, foi a
enxergam na entidade uma força unitária capaz
os princípios de coletividade e do pacto político-civi-
ocupação estudantil no Clube Germânia, núcleo de
de fazer a diferença em momentos críticos da vida
lizatório. No coração das lutas estudantis brotam os
simpatizantes de Hitler e do nazismo no Brasil, no
nacional. As disputas e movimentações dentro da
primeiros valores e as primeiras visões de mundo.
endereço da Praia do Flamengo 132. O ato contribuiu
UNE, assim como os seus grandes momentos de
Ali, crescem as pessoas e também as suas convicções,
para que o país se posicionasse contra a Alemanha
consenso, são uma experiência ímpar da história
suas formas de enxergar o Brasil e de defendê-lo.
24 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
militar, a campanha do Fora Collor, as jornadas de junho de 2013.
A presidenta da UNE é agredida por seguranças do Congresso Nacional durante ato contra a redução da maioridade penal
Nas últimas décadas, esse processo tornou-se ain-
de novos quadros para a vida pública nacional e
lidade de um futuro melhor e da eclosão da nossa
da mais qualificado, com a chegada à universidade
pela inclusão dessa agenda na política brasileira.
primavera, com a cara do Brasil e da sua juventude.
de grupos historicamente excluídos, como os filhos
Assim como já ocorreu em outras épocas, o que se
A UNE é a prática de um Brasil que dá certo quando
dos trabalhadores, moradores das periferias, negras
debate dentro da UNE é uma antecipação do que
se permite sonhar em conjunto, ousar em conjunto,
e negros, juventudes do campo, representantes da
será debatido em breve, com centralidade, pelas
lutar em conjunto. É a antítese do que tentam os po-
maioria do povo que começam, só agora, a terem
principais instâncias de poder e decisão do país.
derosos de sempre, que insistem em manter um país
suas vozes ouvidas e respeitadas. A UNE alcança
Este aniversário de 80 anos da UNE é um marco
para poucos, conservador, excludente e desigual.
seus 80 anos com a imagem mais inovadora que
para a sociedade brasileira. Atesta a validade da
Enquanto continuarem insistindo, os estudantes
já teve, construída por novos sujeitos, novos anseios
experiência democrática no nosso país, a partir da
continuarão resistindo. A juventude brasileira não
e novas formas de lutar.
livre organização dos seus jovens, ainda que cons-
se cansa. Estamos apenas começando.
Essa diversidade, que passa também pela relação
tantemente atacados pela violência do autoritarismo
fortíssima da entidade com pautas urgentes como
e das ditaduras. Ainda que atingidos pela covardia
o combate ao machismo, ao racismo, à LGBTfobia,
dos golpes de Estado e da repressão. Ainda que
terá consequência direta na qualidade da formação
desacreditados pelos que não aceitam a possibi-
CARINA VITRAL PRESIDENTA DA UNE gestão 2015-2017 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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26 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
80 ANOS de luta. DIRETAS,JÁ! revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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N
a terceira semana de maio de 2017, o Brasil viu-se convulsionado, mais uma vez, por denúncias que envergonham a todos que
acreditamos neste país. Mais uma vez, a sociedade brasileira é agredida pela desfaçatez daqueles que violentam a soberania do voto. Mais uma vez, nos vemos diante da urgência de enfrentar e reverter o processo de degeneração das práticas de parte de uma oligarquia, que agride o povo e busca renegar a própria política, base da democracia. O novo capítulo da crise, iniciado por denúncias que comprometem dois dos líderes do Golpe de 2016 que cassou o meu mandato, outorgado por 54,5 milhões de brasileiras e brasileiros, reforça a tese que tenho defendido: o único caminho para reconstrução do Brasil são as eleições diretas. Só as urnas retomam a normalidade democrática. Precisamos restaurar a legitimidade do voto popular como o mais eficiente processo de escolha de nossos representantes. Precisamos de mais democracia para voltar a acreditar e a construir um futuro digno para o Brasil. Poucas instituições têm papel tão relevante neste processo como a União Nacional dos Estudantes. Em seus quase 80 anos de existência, a UNE esteve nos momentos decisivos da construção democrática do Brasil. Na Campanha do “Petróleo é Nosso”, na luta pela legalidade, no enfrentamento ao arbítrio imposto pela ditadura que emergiu após o golpe de 1964, na campanha das Diretas, Já e no movimento dos cara-pintadas que foram às ruas pelo impeachment de Fernando Collor. Celebro a intensa participação na jornada de lutas de enfrentamento ao Golpe de 2016 e pela retomada do Estado Democrático de
A jovem militante Dilma Rousseff em julgamento durante a ditadura militar
28 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Direito. Agora, no engajamento na campanha por eleições diretas.
Manifestação popular na Avenida Paulista em defesa da democracia
Muitos dos que participarão do 55º Congres-
estudantes brasileiros, foi parceira em várias
existentes. Dobramos o número de matrículas
so da UNE, em Belo Horizonte, viveram a maior
etapas desse processo, apresentando propos-
nas universidades públicas brasileiras e, com o
parte de sua infância e adolescência em um Brasil
tas de interesse dos estudantes e da sociedade
ENEM e o Sisu, democratizamos o acesso a elas.
sob governos populares. Tiveram a felicidade
brasileira, exercendo a necessária tensão em
Com o ProUni e o FIES, criamos possibilidade
de viver um período extraordinário em nossa
favor de mais avanços, ou mobilizando-se para
para que estudantes de baixa renda pudessem
história, quando democracia, crescimento e in-
evitar retrocessos.
chegar ao ensino superior – foram 4,6 milhões
clusão social caminharam juntos. Combinação
Uma das mais importantes mudanças que
de estudantes beneficiados. No ensino técnico,
inédita que decorreu de escolhas políticas em
promovemos, entre 2003 e 2016, período em
multiplicamos por 10 o número de matrículas
favor da população. Foi quando o povo entrou
que o PT esteve à frente do governo federal, foi
nos institutos federais de ensino técnico e tec-
no Orçamento Federal, sendo beneficiado por
uma democratização sem precedentes do acesso
nológico, além de termos criado 422 escolas
políticas capazes de mudar a vida e gerar novas
à educação, em especial de nível técnico e supe-
técnicas, a maioria no interior do Brasil.
oportunidades para todos.
rior. Uma bandeira da UNE que foi transformada
Fomos além da ampliação da oferta de vagas.
em política de Estado, com resultados que muito
Implantamos a lei de cotas nas universidades
nos orgulham.
e institutos federais, reservando metade das
Em uma sociedade desigual, eivada de privilégios e tradicionalmente excludente como a brasileira, essas escolhas representaram, em
Criamos 18 universidades federais, implan-
vagas para egressos da escola pública de baixa
vários momentos, mudanças radicais em relação
tamos 173 campi universitários, em especial
renda, negros e indígenas. Criamos o progra-
ao passado. A maioria delas exigiu disputas, em-
no interior do Brasil, e investimos na melhoria
ma de assistência estudantil, para viabilizar a
bates e composição de interesses e demandas
da infraestrutura e na expansão do quadro do-
permanência dos estudantes de baixa renda
díspares. A UNE, como representante maior dos
cente para criar mais vagas nas universidades
nas universidades. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
29
Dilma Rousseff e Carina Vitral
Com essas medidas, mudamos, de forma
do Brasil. Mais importante, em 2014 sancionei
Na base de cada uma dessas transformações,
radical, o perfil do estudante de escolas técni-
o Plano Nacional de Educação, estabelecendo,
há uma escolha política, há uma decisão inequí-
cas e universidades no Brasil e, agora, nossas
como meta para 2020, a aplicação de 10% do
voca de garantir a cada vez mais brasileiras e
universidades e escolas técnicas têm a cara e as
PIB em investimentos em educação. Nos dois
brasileiros a oportunidade de uma formação su-
cores do povo brasileiro. E, contra a expectativa
casos, as mobilizações promovidas pela UNE
perior de qualidade. Decidimos investir em uma
de muitos, o desempenho dessa nova geração
foram decisivas para essas conquistas.
sociedade democrática e soberana, assentada na
de estudantes universitários não ficou aquém
Lembro essas medidas em favor da democra-
disseminação do conhecimento e da informação,
tização do acesso à educação porque, ao ado-
e no fortalecimento da cidadania. Decidimos
Lançamos também as bases para mais inves-
tá-las, iniciamos uma revolução no Brasil. Uma
investir na formação educacional e científica de
timentos em educação. Em 2013, garantimos
revolução pacífica, é certo, mas cujo impacto é
brasileiros e brasileiras para poder, em um futuro
a destinação, por lei, de 75% dos royalties do
imenso. Hoje, milhares de jovens tornaram-se
próximo, assentar as bases do crescimento de
petróleo e 50% do excedente em óleo do Fundo
os primeiros na história de suas famílias a che-
nossa economia do conhecimento.
Social do pré-sal para a educação. E, se consegui-
garem ou a concluírem o ensino superior. Hoje,
Essas escolhas são alicerces de um projeto de
mos aprovar a lei, foi porque a UNE foi parceira
em centenas de cidades do Brasil, é possível
desenvolvimento para o Brasil que busca incluir
e assumiu uma efetiva e importante liderança
realizar o sonho de cursar universidade, sem
todos e garantir direitos a todos. Elas somente
nessa disputa.
que, para isso, seja necessário migrar para a
se viabilizam em um modelo democrático e par-
Recursos volumosos e crescentes que per-
capital. Hoje, a juventude negra e indígena está
ticipativo de governo, em que os beneficiários
mitiriam transformar uma riqueza finita – o pe-
presente em universidades por todo o Brasil,
das políticas são, também e ao mesmo tempo,
tróleo do pré-sal – em passaporte para o futuro
sem restrição de curso.
agentes de sua construção e implementação.
das que a precederam.
30 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Aliás, este é o conceito que nos moveu na ado-
da retomada da transformação democrática e
ção do Estatuto da Juventude, carta de direitos
política de nosso país.
O artigo 1º de nossa Constituição é claro: a República Federativa do Brasil constitui-se em
dos jovens brasileiros, pela qual a UNE lutou
Precisamos de uma reforma política que altere
Estado Democrático de Direito e, nela, todo o
intensamente. Essas escolhas exigem um Bra-
os mecanismos de escolha de nossos represen-
poder emana do povo, que o exerce por meio
sil governado por pessoas escolhidas pelo voto
tantes e que amplie a representatividade de
de representantes eleitos ou diretamente. É
popular e com respeito às regras do Estado de-
nosso sistema político e a participação social.
nosso dever lutar pela restauração da vigên-
mocrático de direito.
Precisamos impedir e reverter as reformas con-
cia desse preceito constitucional. O momento
Quando conclamo cada jovem do Brasil a lu-
servadoras em curso, que transformam em pó
atual não admite alternativa: é hora de Diretas
tar contra o Golpe de 2016 e suas consequências
direitos pelos quais batalhamos tanto. Precisa-
Já. Uma nova luta que a UNE saberá abraçar
nefastas, faço-o porque todas essas condições
mos construir um novo projeto de Nação que,
junto com toda a sociedade, em mais uma de
foram colocadas em xeque pela interrupção
assentado na tolerância, no respeito à diversida-
suas contribuições à construção de um Brasil
ilegal de meu mandato. Vou repetir o que te-
de e no compromisso com a igualdade, ofereça,
mais democrático e capaz de garantir direitos
nho dito desde que a Câmara dos Deputados
de fato, futuro a todos os cidadãos.
e realizar sonhos.
iniciou, em um processo eivado por desvio de finalidade, este capítulo infame de nossa história política: o golpe foi contra o povo brasileiro e seu direito de construir um futuro de mais inclusão e mais democracia. Cada uma das conquistas alcançadas nos 13 anos de governos populares tem sido revertida ou colocada em questão nestes 12 meses em que o Brasil está sob o jugo de um governo ilegal, entreguista e descomprometido com os brasileiros e brasileiras. O Ciência sem Fronteiras
Dilma recebe apoio da população após afastamento da presidência
foi extinto. O ProUni e o Fies foram fortemente reduzidos. Os recursos para a continuidade do Reuni minguaram. A mudança na Constituição para impedir o crescimento dos gastos sociais terá efeitos deletérios nos próximos anos. As reformas trabalhista e previdenciária, se aprovadas, destruirão o sistema de proteção ao trabalho e aos cidadãos que viemos fortalecendo nos últimos anos. O momento atual me faz recordar o que vivi no final dos anos 60, quando me engajei na luta contra o pesadelo imposto pela ruptura do Estado democrático. Nem sempre foi fácil, mas as lutas que nos movem são assim, exigem coragem e determinação. Hoje, estes mesmos sentimentos me impulsionam na tarefa de mobilizar o Brasil, em especial nossa juventude, para a luta em favor
Os ex-presidentes Dilma e Lula
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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32 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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UNE & O TEATRO A
A
s trajetórias da União Nacional dos Estudantes e da cultura dentro da entidade ganham vida num mesmo berço. É no II Congresso Nacional dos Estudantes, em 1938, onde o gaúcho Valdir Borges é eleito o primeiro presidente oficial da UNE, que se inicia a prática do Teatro Universitário. Irum Sant’Anna, um dos fundadores da entidade, teve a ideia de trazer um
braço cultural para dentro do Congresso e convidou o ator, poeta, teatrólogo e político Paschoal Carlos Magno. Ele, que acabara de criar o Teatro do Estudante do Brasil, levou a peça Shakespeariana Romeu
e Julieta, construída por estudantes que adentravam no teatro amador, e que depois se revelaram grandes nomes e intérpretes brasileiros, como Paulo Porto, Sônia Oiticica e Iara Sales. Essa experiência foi considerada por muitos como a estreia nacional do Teatro do Estudante do Brasil. A partir dela, criaram-se as condições para que em 1940, no IV Congresso da entidade, fosse fundado o primeiro Teatro da UNE, que no decorrer de algumas décadas ganha articulação artística e política, com maior organicidade dentro da entidade, e se torna conhecida em cada canto do país. Na década de 1950, após a Segunda Guerra Mundial, uma forte efervescência cultural e uma grande organização política tomaram conta da sociedade, polarizada entre nacionalistas e entreguistas. Em 1950, é criado o primeiro canal de televisão da América Latina, a TV TUPI, que serviu de difusão para inúmeras produções artísticas e culturais, como as telenovelas. No ano seguinte, acontece a I Bienal Internacional de Artes de São Paulo, que é até hoje um dos principais eventos artísticos do planeta. Movimentos culturais, como a Bossa Nova, os teatros Arena e Oficina, e o concretismo, rompem com as tradições da música, das artes cênicas e da literatura, tendo grande impacto popular. A Revolução Cubana também O jovem Paschoal Carlos Magno, referência do movimento cultural estudantil
34 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
serviu de inspiração e entusiasmo para a construção de um novo pensamento e de um projeto nacional, implicando no surgimento de diversos movimentos nos campos artístico e cultural.
É nesse clima que, em 1954, surge o Teatro Paulista dos Estudantes (TPE), ligado à União Paulista dos Estudantes (UPES), para integrar a militância política através da arte. Paralelamente, o Teatro de Arena, promovia uma revolução no teatro nacional, com peças que pretendiam servir de alternativa às encenações que predominavam na época. Por necessidades estruturais e financeiras, o TPE e o Arena passaram a compartilhar o mesmo espaço e a colaborar na formação dos atores. Dessa aproximação nasceu a encenação de maior impacto da década: de autoria do jovem Gianfrancesco Guarnieri, egresso do TPE, foi encenada em 1958 “Eles Não Usam Black-Tie”, sucesso de público e crítica. No contexto do sucesso da peça, o TPE e o Arena realizam os “Seminário de Dramaturgia”, que revelaram autores como Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e Flávio Migliaccio. Em busca de seu próprio espaço, Vianinha, ao lado do sociólogo Carlos Estevam Martins e do cineasta Leon Hirszman, procuraram a UNE, no Rio de Janeiro, para realizar cursos no auditório da entidade, que mobilizam mais de 400 estudantes e lotam a sede da Praia do Flamengo em torno da cultura. Desta forma, inaugurando uma nova etapa do movimento cultural estudantil.
Peça “Eles Não Usam Black-Tie”
Peça do antigo Teatro do Estudante
Oduvaldo Viana Filho “Vianinha
Encenação estudantil da época da II Guerra Mundial
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
35
CPC DA UNE: UM MARCO NA CULTURA BRASILEIRA 36 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
H As produções artísticas do CPC da UNE
avia, de um lado, os intelectuais, os
foram recebidos com um ataque do Movimento
artistas querendo produzir uma arte
Anticomunista (MAC), que metralhou e pichou a
que fosse de avaliação da realidade
sede da Praia do Flamengo.
brasileira, mas que se dirigisse para
No segundo semestre de 1963, na segunda
amplos segmentos da sociedade. E havia, do outro
edição da UNE Volante, os estudantes sentiram
lado, os estudantes querendo encontrar novas
na pele uma mudança de clima, antevendo as
formas de comunicação com a ampla camada da
perseguições políticas dos próximos anos. Em
sociedade. Na minha opinião, houve uma conju-
várias cidades, a caravana foi atacada por grupos de
gação feliz entre essa aspiração dos artistas e as
direita. Em Natal (RN), uma bomba explodiu próxi-
necessidades do movimento estudantil. Por isso,
mo ao hotel onde se hospedavam os estudantes;
então, se constitui o Centro Popular de Cultura”,
em Vitória (ES), uma bomba caseira interrompeu
conta Aldo Arantes, ex-presidente da UNE em
um espetáculo; em Maceió (AL), uma sabotagem
1961, quando é criado o CPC, o órgão cultural
cortou a energia; e em Fortaleza (CE), tentaram
da UNE. A ideia principal era a conscientização
jogar ácido nos atores.
do povo brasileiro por meio da cultura, por meio
Na madrugada de 31 de março de 1964, o golpe
da aproximação do proletariado, dos intelectuais,
foi deflagrado e os ataques escalaram. Naquela
dos artistas e dos estudantes de forma a atingir as
mesma noite, a sede da entidade foi metralha-
mais amplas massas.
do ainda com os estudantes em vigília. A UNE
Em conjunto, a entidade lança um projeto de
foi saqueada e em incendiada por militantes de
mobilização nacional a partir de caravanas para
direita e militares. Ali se via um ataque não só
levar a luta pela maior participação dos estudantes
à entidade em si, mas a sua representação, ao
nas decisões das faculdades na proporção de 1/3
medo do poder da força estudantil, da ousadia,
entre professores, funcionários e estudantes. Em
da coragem. Iniciava-se ali um longo período de
1962, toma as estradas do país a primeira UNE
clandestinidade.
Volante, no qual membros do CPC e da diretoria
Apesar de uma tão breve trajetória, o CPC teve
da UNE embarcaram em uma viagem de dois
um enorme impacto na vida cultural nacional.
meses por quase todos os estados do país. No
Entre as obras se destacam a produção da peça
percurso, os estudantes conversavam com a po-
“O Auto dos 99%”; o filme “Cinco Vezes Favela”,
pulação, convocavam reuniões e assembleias e
de Joaquim Pedro de Andrade, Marcos Faria, Cacá
apresentavam peças do CPC.
Diegues, Miguel Borges e Leon Hirszman; a co-
A repercussão foi tão grande que o jornal “O Glo-
leção Cadernos do Povo e a série Violão de Rua,
bo” investiu na tentativa de combater a iniciativa.
da qual participaram Moacir Felix, Geir Campos e
Diziam que, por onde a UNE passava, “envermelha-
Ferreira Gullar. Foi com o CPC e a UNE Volante que
va” o país, espalhando o comunismo pelos rincões
Eduardo Coutinho registrou as primeiras imagens
brasileiros. A propaganda teve efeito contrário:
do filme “Cabra Marcado para Morrer”, um dos
as cidades passaram a aguardar ansiosamente a
mais célebres documentários da cinematografia
chegada da caravana estudantil. Como resultado,
brasileira. O CPC teve uma profunda influência no
foi decretada a greve estudantil nacional por 1/3,
que viria a se fazer, posteriormente, na produção
que paralisou as universidades do país por quase
artística brasileira, principalmente aquela enga-
dois meses, e foram criadas diversas filiais locais do
jada na resistência à ditadura militar.
CPC. No retorno ao Rio de Janeiro, os estudantes revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
37
1ª BIENAL ARTE E CULTURA: A RETOMADA DAS EXPERIÊNCIAS CULTURAIS DA UNE DE
38 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Lenine se apresenta durante a 1ª Bienal da UNE, em Salvador
A
ação cultural dos estudantes, du-
nacional para inscrição de trabalhos impressio-
neste 2017, a sua décima edição em Fortaleza,
ramente reprimida pelo regime
nou a todos ao revelar uma rica produção artística
no Ceará, depois de passar por Recife e Olinda
ditatorial, foi simbolicamente re-
e cultural universitária. Da noite para o dia, a sede
(duas vezes), São Paulo, Rio de Janeiro (três vezes)
tomada na luta contra o neolibera-
da UNE foi tomada por cenários, instalações, cai-
e Salvador (mais uma vez).
lismo dos anos 90. A UNE estava fortalecida, o
xas de CD’s e diversos outros trabalhos artísticos
No decorrer desses anos, os festivais procuraram
movimento dos cara-pintadas havia derrubado
que iriam até o festival na Bahia.
refletir e valorizar a formação e a identidade do
o presidente Collor em 1992 e era momento
Para completar a festa, Chico César, Lenine,
povo brasileiro, trazendo como temas as raízes
de ampliar as ações da entidade para combater
Mano Brown e até Dadá Maravilha circularam
e as vozes do Brasil e a relação social e cultural
os avanços dos valores e ideais neoliberais. Foi
pelo encontro catártico de reaproximação dos
do nosso país com os nossos vizinhos latinoa-
essa premissa que levou à realização de um
artistas e estudantes. Uma união da política
mericanos e os nossos irmãos africanos. Como
grande festival estudantil.
com a cultura: um caminho sem volta. A partir
no começo dos anos 1960, esse emergente mo-
A primeira Bienal de Arte e Cultura aconteceu em
de então, a Bienal se consolidou no calendário
vimento cultural estudantil logo se desdobrou
Salvador, na Bahia. Apesar do pouco apoio do
do movimento estudantil e cultural brasileiro,
em um circuito perene de articulação de arte e
poder público e do escasso dinheiro, a chamada
completando no aniversário de 80 anos da UNE,
cultura nas universidades. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
39
CUCA DA UNE: O ESPÍRITO DA SUA GERAÇÃO O
Circuito Universitário de Cultura
que passou a ter uma cara nova. Cada vez mais
“Caravana Universitária de Cultura e Arte - Pas-
e Arte, o CUCA da UNE, é um filho
mulheres, pretos, indígenas, LGBTs e filhos
choal Carlos Magno”, que em parceria com o
da Bienal. Veio à luz como pro-
de trabalhadores povoam as universidades
Ministério da Cultura, liderado na época pelo
posta em 2001, no último dia da
nacionais. Se o CPC, através do “Auto dos 99%”,
músico e amigo dos estudantes Gilberto Gil, foi
2ª edição do festival, que acontecia no Rio de
denunciava a falta de acesso da juventude à
a quatorze estados com objetivo de fomentar a
Janeiro pela primeira vez. A Bienal dava seus
universidade, o CUCA da UNE tinha o desa-
criação de uma rede nacional de arte estudantil.
primeiros passos na direção do amadureci-
fio de dialogar com toda uma geração que
O primeiro espaço físico do CUCA localiza-
mento do novo movimento cultural da UNE. O
passou a ter acesso ao ensino superior e que
va-se na Barra Funda, na Zona Oeste da capital
desafio era manter a continuidade das ações
não encontrava seu reconhecimento simbólico
paulista, onde foram realizadas memoráveis
culturais nas universidades para além do fes-
nesse espaço.
rodas de samba, festas e apresentações artís-
tival bienal.
Simultaneamente, os estudantes voltaram
ticas. Em 2005, a partir de uma iniciativa do
Semente lançada, o CUCA floresceu fruto de
para a estrada em 2004, 42 anos depois de sua
MinC, o espaço do CUCA tornou-se um ponto
uma tempestade perfeita. Nos anos 2000, a
estreia. Emulando a UNE Volante, a “Caravana
de cultura com apoio do governo federal. Com
universidade brasileira passou por um profun-
UNE pelo Brasil” percorreu o país de norte a
base nessa política que reconhecia qualquer
do processo de transformação pelas inúmeras
sul, parando em mais de 25 cidades com uma
brasileiro ou brasileira como fazedor de cultura,
iniciativas do governo popular encabeçado
equipe de atores, produtores, documentaristas,
o CUCA abriu diversos pontos de cultura em
por Luiz Inácio Lula da Silva, que expandiu
artistas e diretores da entidade a bordo de um
universidades de todo o país.
e democratizou o acesso ao ensino superior,
ônibus. Ainda no mesmo ano, embalaram na
40 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
A conexão entre a universidade e os saberes
Estandarte do CUCA da UNE na Bienal
O ator Zé Celso em protesto contra o golpe, em 2016
A cobertura colaborativa da 10ª Bienal
populares amalgamou experiências como o
nas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo
baile do CUCA da UFF, que trazia o funk e a
promoveu uma agenda de lutas em defesa da
comunidade do morro do Palácio para den-
democracia, dos direitos sociais e da denúncia
tro dos muros da universidade. Bebendo da
do golpe por meio de grandes mobilizações
refinada arquitetura política que forjava-se
populares que organicamente incorporaram
através da concepção organizativa de rede, o
os movimentos de cultura.
CUCA se tornou uma referência espalhada pelos
O CUCA da UNE destacou-se como impor-
estados, uma “rede das redes” que articula e
tante articulador de um laboratório altamente
difunde a produção de estudantes e agentes
refinado de simbiose entre a diversidade do
culturais pelo país.
setor cultural progressista e os movimentos
“Se não há jovens que pensem cultura no
sociais, onde a busca pela criação estética estava
movimento estudantil não há revolução no
profundamente orientada para a luta política.
pensamento”, afirma a atriz Ana Petta, uma
Como resultado vieram experiências como o em-
das pioneiras do CUCA ao lado do professor
blemático Ato Pela Democracia no Teatro Oficina,
Ernesto Valença, do produtor cultural Tiago
em São Paulo, na Fundição Progresso, no Rio
Alves e do artista visual Luis Parras.
de Janeiro; ou as ocupações dos equipamentos
O golpe parlamentar ao governo de Dilma
do MinC e das sedes da Funarte espalhadas
Rousseff, em 2016, interrompeu de maneira
pelo Brasil. Esse processo gerou repactuações
traumática um ciclo progressista de avanços
geracionais de figuras do campo da cultura com
no Brasil. A coalizão dos movimentos sociais
a União Nacional dos Estudantes.
A nova diretoria do CUCA 2017-2019
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
41
LUTA POPULAR NARRADA POR ESTUDANTES 42 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Encenação artística durante manifestação popular em defesa da democracia em São Paulo
S
e afirmamos que o golpe é o si-
Nos últimos anos, o CUCA se jogou nas ocupações
500 inscrições de jovens e estudantes dispostos
lenciamento dos que lutam contra
das escolas, universidade e do Ministério da Cultura,
suas opressões, é nosso papel criar
conquista histórica e estratégica para o desenvolvi-
O desafio de criar e produzir narrativas através
contranarrativas que consigam dar
mento do país, extinta no primeiro dia de governo
de uma plataforma altamente compartilhada é
vazão às vozes que querem silenciar. É nessa
interino. Narrou a luta nas ruas, nos inúmeros atos
a experiência-estética mais recente do Circuito
perspectiva que o CUCA tem se articulado
que se espalharam pelo Brasil. Em Minas Gerais, no
Universitário de Cultura e Arte da UNE. Daqui pra
na criação de uma rede de midialivrismo e
Ceará, em Salvador, no Mato Grosso, no Piauí, no
frente, nosso maior desafio recai sobre a cons-
de uma agência-escola de fotógrafos inde-
Acre, em cada canto do país, o CUCA está presente
trução de narrativas que deem vazão às pautas
pendentes que se ampliou para uma rede
articulando as vozes da juventude brasileira. Na 10ª
reivindicatórias do movimento estudantil e da
de colaboradores nacionais, a fim de narrar
Bienal da UNE, lançou pela primeira vez edital para
rica produção cultural que existe no interior das
sua própria luta.
uma Cobertura Colaborativa, que alcançou mais de
universidades brasileiras.
a fazer e a narrar a resistência artística e cultural.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
43
44 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
F
undada em 1937 para ser a representação máxima dos estudantes universitários do país, não demorou para a UNE tornar-se uma das mais relevantes organizações da sociedade civil. A entidade pressionou Getúlio Vargas a declarar guerra ao Eixo nazifascista na Europa, além de combater os seus admiradores em território nacional, que teve como ápice a ocupação do Clube Germânia, na Praia do Flamengo, 132, que viria a tornar-se a sede da entidade. Nas décadas seguintes, os estudantes tomaram as ruas do país na defesa dos direitos dos trabalhadores e do patrimônio nacional e no combate ao entreguismo e ao intervencionismo externo. Destas lutas, destacam-se a campanha “O Petróleo é Nosso”, que resultou na criação da Petrobras, e as Reformas de Base, em especial a reforma universitária, lideradas pelo presidente João Goulart. A ditadura civil-militar que se instalou no país no dia 1o de abril de 1964 teve na UNE o seu primeiro e maior alvo. A sede da Praia do Flamengo foi metralhada e incendiada pelos militares, a entidade foi colocada na ilegalidade e os seus diretores foram para o exílio.
Apesar da crescente perseguição dos militares, os estudantes mantiveram a UNE viva na resistência ao regime. A maior manifestação popular do período, a Passeata dos 100 Mil, de 1968, foi puxada pelo movimento estudantil após o assassinato do secundarista Edson Luís,. No entanto, as atividades da organização foram praticamente terminadas após o sequestro do seu presidente, Honestino Guimarães, pelos militares, em 1973. Até hoje o seu corpo não foi encontrado. No final dos anos 1970, pequenos grupos de universitários passaram a espontaneamente montar grupos em diversos cantos do país pela reorganização do movimento estudantil visando o fim da ditadura militar. Desse esforço, foi convocado o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador, na Bahia, em 1979. A Revista Movimento Especial 80 Anos da UNE homenageia os bravos estudantes que protagonizaram esse movimento, trazendo a entidade estudantil de volta ao protagonismo das lutas populares do período e conquistando a redemocratização do Brasil. A linha do tempo das próximas páginas trará em detalhes os acontecimentos que cercaram a época, levando até os dias de hoje, de muitas conquistas para a educação e de resistência aos ataques à democracia. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
45
No 32º Congresso, realizado em outubro de 1980 em Piracicaba (SP), foi eleito, também por via direta, o estudante alagoano Aldo Rebelo. (Leia entrevista na página 88)
1979 O Congresso vota a Lei de Anistia, sancionada dia 28 de agosto. Parte dos presos políticos é libertada, entre eles Aldo Arantes, ex-presidente da UNE. Os exilados retornam, os clandestinos voltam à superfície. Acontece em Salvador, na Bahia, o 31º Congresso da UNE (Congresso de Reconstrução), que pela primeira vez na história, teve eleições diretas para a escolha da nova diretoria. 356.722 estudantes de todo o país votaram e, das cinco chapas que concorreram ao pleito, a “Mutirão”, apoiada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e por ex-presidentes e ex-militantes da AP, como Aldo Arantes e José Serra, foi a vitoriosa, sendo eleito o baiano Ruy Cezar Costa Silva para presidente. A vitória representou uma certa continuidade da hegemonia da AP na direção da UNE, já que grande parte dos dissidentes dessa organização política foi incorporada ao PCdoB em 1972. (Leia entrevista na página 70)
46 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
1980
1981 O 33º Congresso elege Javier Alfaya, nascido na Espanha. O ministério da Justiça tenta expulsar o estudante do país, desencadeando uma campanha nacional dos jovens chamada “Javier é brasileiro”. (Leia entrevista na página 100)
1982
A primeira mulher presidenta da UNE, Clara Araújo, é eleita. (Leia entrevista na página 116)
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
47
D
urante toda a ditadura os militares mantiveram o movimento estudantil alijado do edifício da Praia do Flamengo. Após o
Congresso de Reconstrução de 1979, os estudantes buscaram retomar o edifício, chegando a fazer uma ocupação simbólica. Da mesma forma, o regime iniciou a reação: uma invasão policial tomou o prédio, que foi dado como condenado e esvaziado pelo município. A partir de então, uma verdadeira batalha foi travada entre os estudantes e a polícia, a justiça e o poder público com o intuito de impedir que os estudantes retomassem a posse do prédio. Apesar dos esforços dos estudantes, de políticos e artistas simpáticos à sua causa, e da própria Justiça personalizada no juiz Aarão Reis, o prédio foi demolido em fins de junho de 1980. Aldo Rebelo, presidente da UNE eleito em 1980, relembra do episódio: “O governo percebeu que aquilo tinha uma simbologia, porque o que ficou na imagem do golpe militar foi exatamente o assalto ao prédio da UNE. Aquilo ali calou fundo. E queríamos a volta dos estudantes retomando a sede da UNE, que mandaram demolir. Fizemos manifestações, reunimos milhares de estudantes na Praia do Flamengo, sofremos uma repressão brutal dos policiais, e a polícia cercou o local e garantiu a demolição do prédio.”
48 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
O governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, cede à UNE o casarão da Rua do Catete, 234, onde passa a funcionar a sede dos estudantes.
1983
Alcindo Paes Leme é eleito presidente da entidade.
1984 Mais de oito milhões de pessoas vão às ruas pedir eleições diretas para presidente durante 100 dias, consagrada como a maior manifestação popular da história do Brasil. A UNE começa a colorir as manifestações com suas bandeiras. A emenda das Diretas, contudo, não passa na Câmara. A UNE apoia a candidatura de Tancredo Neves, da Aliança Democrática, à presidência da República. O Congresso da entidade elege, como presidente, Renildo Calheiros.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
49
Durante o seu 37º Congresso, a UNE realizou um amplo debate sobre a Constituinte, e estudantes de todo o Brasil aprovaram por unanimidade a proposta de limitar o papel das Forças Armadas. Gisele Mendonça, de 24 anos, foi eleita presidenta da entidade.
1986 1985
O Colégio Eleitoral elege Tancredo presidente. No entanto, após 38 dias de agonia, Tancredo morre e o vice, José Sarney, do PMDB, é empossado presidente. O Congresso aprova projeto de lei de legalização da UNE, de autoria do deputado Aldo Arantes.
50 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
O 38º Congresso da UNE elege o paraense Valmir Santos, ligado ao Partido dos Trabalhadores.
1987
Os estudantes elegem outro estudante ligado ao PT, Juliano Corbelini, como presidente. É promulgada a nova Constituição da República definida pelo Congresso Nacional. É criado o voto aos 16 anos por pressão da UNE e movimentos de juventude.
1988 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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1991 Patrícia de Angelis é eleita presidenta da UNE, marcando o retorno do PCdoB ao cargo máximo da entidade.
1989
O movimento estudantil faz campanha pelo voto e participação dos jovens nas primeiras eleições democráticas após a ditadura. A UNE apoia a campanha do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva em sua primeira disputa presidencial com o mote “Lula UNE o Brasil”. No 40º Congresso da UNE foi aprovada, pela primeira vez desde o congresso de reconstrução, a composição da diretoria de maneira proporcional aos votos obtidos por cada chapa. O PT ainda continua na presidência, elegendo Cláudio Langone.
52 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
O presidente da UNE, Lindberg Farias, lidera a entidade contra o governo do presidente Fernando Collor, denunciando seu caráter neoliberal. Após denúncias de corrupção envolvendo o presidente, os estudantes “cara-pintadas” realizam uma maratona de grandes manifestações por todo o país, na campanha “Fora Collor!”. O presidente renuncia para não sofrer processo de impeachment do Congresso Nacional. (Leia entrevista na página 126)
1992
1993
A UNE desenvolve um bom diálogo com o presidente da República Itamar Franco (1992-1995) A entidade mobilizou os estudantes contra o programa de privatização de empresas estatais e a favor de uma campanha nacional pela alfabetização. Reinvidicou ainda a volta do controle das mensalidades escolares, liberadas no governo Collor. A partir de 1993, com a eleição de Fernando Gusmão presidente, as gestões da UNE passam a ter dois anos de duração.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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No início de 1995, a UNE liderou diversas mobilizações em vários
A UNE, outras entidades estudantis e o Tribunal Superior
estados contra os projetos governamentais de avaliação das univer-
Eleitoral (TSE), iniciaram a campanha “Se liga 16”, com
sidades por meio do Exame Nacional de Cursos, conhecido como
o objetivo de incentivar os jovens entre 16 e 18 anos
“provão”. Ainda em 1995, na gestão do baiano Orlando Silva Júnior
a tirarem o título de eleitor. Ao lado do grupo Tortura
(1995-1997), o primeiro negro no cargo máximo da entidade,
Nunca Mais, a entidade reivindicou uma indenização
a UNE realizou protestos contra a política educacional e as reformas
para as famílias de 17 estudantes mortos em passeatas
constitucionais propostas pelo governo Fernando Henrique Cardoso,
durante o regime militar. A UNE lança campanha de
do PSDB. (Leia entrevista na página 144)
boicote ao “provão”.
1995
1996
O presidente da república Itamar Franco assina um protocolo para a devolução definitiva do
1994
terreno da Praia do Flamengo aos estudantes. Após o ato da entrega, os jovens e Itamar vão ao restaurante Lamas, no bairro do Flamengo, comemorar, o que ficou conhecido como o famoso “choppinho com o presidente”.
54 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Os estudantes fizeram inúmeras manifestações contra políticas do governo do FHC, como a emenda constitucional da reeleição, a privatização do patrimônio nacional e o sucateamento das universidades públicas. Em julho de 1997, no 45º Congresso da UNE, em Belo Horizonte, foi eleito o candidato da chapa “Um passo à frente”, o carioca Ricardo Cappelli.
1997
A UNE apoia a candidatura de Lula à presidência, que acaba novamente derrotado por FHC.
1998
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
55
Em Porto Alegre, a UNE participou da primeira edição do Fórum Social Mundial, uma iniciativa inédita de movimentos sociais de diversos países, que pretendia propor uma alternativa à globalização neoliberal. O evento foi um importante marco na luta contra a ALCA – Área de Livre Comércio das Américas. Em fevereiro de 2001 foi realizada a 2ª Bienal de Arte e Cultura da UNE, no Rio de Janeiro, com público de cerca de oito mil pessoas. A partir do ressurgimento do movimento cultural na UNE, foi criado o Circuito Universitário de Cultura e Arte, o CUCA, com o objetivo de desenvolver o trabalho cultural da entidade e propor novas formas estéticas de arte e luta. No 47º Congresso, é eleito o carioca Felipe Maia.
2001
1999 Com muita dificuldade e ousadia, foi realizada a 1ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura da UNE, em Salvador (BA) A experiência visava retomar o trabalho cultural como um programa de atuação da instituição e reuniu diversas personalidades, como o ator Francisco Milani, o físico Bautista Vidal e o músico Jorge Mautner O 46º Congresso da UNE, realizado em julho de 1999, em Belo Horizonte (MG), contou com a presença do líder cubano Fidel Castro. Os estudantes presentes ao Ginásio do Mineirinho elegeram o candidato da chapa “Refazendo”, Wadson Ribeiro, estudante de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. (Leia entrevista na página 156)
56 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
Uma grande coalizão das forças populares e de-
A 3ª Bienal da UNE reuniu milhares de estudantes em Recife e Olinda, em
mocráticas do Brasil conduziu o metalúrgico
Pernambuco, com a participação do músico e ministro da Cultura, Gilberto
e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva à
Gil. Pela primeira, vez a Bienal passou a concentrar seus debates em torno de
Presidência do país. Os estudantes apoiaram
um tema mais específico: “Um encontro com a cultura popular”. Em Goiânia,
a candidatura Lula, no segundo turno, após um
é eleito presidente da entidade o paulista Gustavo Petta. (Leia entrevista
plebiscito nas universidades.
na página 164)
2002
2003
Inspirada na UNE Volante da década de 1960, uma equipe de atores, produtores, documentaristas, artistas e estudantes embarcaram a bordo de um ônibus para mais um jornada, desta vez, chamada de Caravana UNE pelo Brasil, percorrendo 25 cidades brasileiras, sendo 18 capitais, passando por 31 instituições de ensino, nas cinco regiões do país. Em cada local, os estudantes debatiam um assunto da reforma universitária, como as cotas e a ampliação de vagas.Ao final da caravana, foi realizado um seminário que redigiu um documento de avaliação das reformas educacionais debatida no governo Lula, como o Programa Universidade Para Todos, o ProUni
2004
. “Algumas daquelas propostas foram levadas adiante, como o fato da universidade pública voltar a ser valorizada, com medidas que fortaleceram o seu financiamento e a sua democracia interna e de acesso”, recorda o ex-presidente Gustavo Petta. No mesmo ano, em outubro, foi realizada a “Caravana Universitária de Cultura e Arte – Paschoal Carlos Magno”, que percorreu 15 estados brasileiros e disponibilizou as condições estruturais para a fundação de treze CUCAs da UNE nas universidades, os quais passariam a ser os núcleos de sustentação do circuito.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
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Em um seminário no Museu da República, no Rio de Janeiro, é constituído o Instituto Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE. Os estudantes apoiam a reeleição de Lula à presidência da República.
2006
Com o tema “Soy Loco Por Ti America”, é realizada a 4ª Bienal da UNE, em São Paulo, junto com o XIV Congresso da Organização Continental Latino-americana e Caribenha dos Estudantes (OCLAE), o que possibilitou a vinda diversos estudantes latino-americanos para o país. A filha de Che Guevara, Aleida Guevara, foi uma das presenças importantes. No mesmo ano, ao lado do Ministério da Defesa, a UNE impulsionou a retomada do Projeto Rondon. Voltado para a integração social, envolve a participação voluntária de estudantes universitários na busca de soluções que contribuam para o desenvolvimento sustentável de comunidades carentes e ampliem o bem-estar da população. No Congresso da UNE, novamente em Goiânia, Gustavo Petta se tornou o primeiro presidente reeleito da história UNE.
2005 58 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
E
m fevereiro de 2007, milhares de estudantes de todo o país marcharam em direção ao número 132 da Praia do Flamengo, derrubaram
os portões do estacionamento irregular que funcionava ali, e ocuparam o local com barracas e tendas. A passeata, cuja apoteose foi a retomada do terreno, marcou o encerramento da 5ª Bienal da UNE e teve a participação de 5 mil pessoas no Rio de Janeiro. O presidente da UNE, Gustavo Petta, lembra que havia um clima de euforia e apreensão no ar. “Estávamos emocionados e nos sentindo protagonistas de um momento histórico para o Brasil, mas também preocupados com a reação dos posseiros que haviam se apropriado ilegalmente daquele lugar por anos e que ganhavam muito dinheiro irregular ali”, relembra. O acampamento permaneceu no local por mais de um ano, até os estudantes conseguirem a posse definitiva do terreno na Justiça. Durante este período, a ocupação recebeu a visita de personalidades da política e da cultura e anônimos que declaravam apoio à campanha “UNE de volta para casa”. Em 2008, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, esteve no terreno e anunciou que enviaria um projeto ao Congresso Nacional propondo indenização do Estado brasileiro aos estudantes pela demolição de sua sede, perseguição política, torturas e mortes na ditadura. Em 2010, o projeto foi aprovado por unanimidade no Legislativo, com votos de parlamentares de todos os partidos. Em dezembro daquele ano, a UNE lançou a pedra fundamental da reconstrução do novo prédio, projetado por Oscar Niemeyer. A cerimônia no histórico endereço contou com a presença do presidente Lula. O prédio projetado por Niemeyer tem 13 andares e nele estão sendo construídos o Museu da Memória do Movimento Estudantil, um centro cultural e o teatro dos estudantes.
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Em fevereiro de 2007, a UNE realizou sua 5ª Bienal na cidade do Rio de Janeiro, com o tema “Brasil-África: um rio chamado Atlântico”, em referência ao livro homônimo do acadêmico Alberto da Costa e Silva, que esteve presente no festival junto a outros artistas e intelectuais, como Martinho da Vila e Gilberto Gil, na época ministro da Cultura Em julho, realizou-se em Brasília, no Distrito Federal, o 50º Congresso da UNE, que elegeu presidenta a estudante de jornalismo Lúcia Stumpf (2007-2008) Neste congresso foi realizada sessão da Comissão de Anistia, que anistiou os ex-presidentes da instituição Aldo Arantes e Jean Marc Von Der Weid.
60 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
2007
UNE realiza a “Caravana da Saúde”, que teve como finalidade percorrer as universidades brasileiras com atividades culturais e debates sobre temas como aborto, aids, sexualidade, educação e cultura. A Caravana percorreu cerca de trinta universidades em vinte e seis estados da federação mais o Distrito Federal, onde se encerrou.
2008
2009
Em seu décimo aniversário, a Bienal retornou à sua casa. A Bahia novamente serviu de palco para a celebração estudantil da cultura brasileira, que teve como mote “Raízes do Brasil: formação e sentido do povo brasileiro”. O Pelourinho foi palco de grandes shows que agitaram a capital baiana: Margareth Menezes, Marcelo D2 e Cordel do Fogo Encantado. O Congresso da entidade, em Brasília, elege o paulista Augusto Chagas como presidente. Luiz Inácio Lula da Silva, desta vez como presidente da República, participa pela segunda vez de um Congresso da UNE.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
61
A UNE, em um grandioso evento de oito dias e mais de 60 mil estudantes no Rio de Janeiro, promoveu a sua 7ª Bienal para saudar o samba e a luta do povo brasileiro, assim como a capacidade de integração social deste estilo musical. Beth Carvalho, Arlindo Cruz, Leci Brandão, Rapin Hood, Martinho da Vila, e outros bambas da música brasileira, subiram ao palco da Bienal para reinterpretar o samba e o país. O Congresso da UNE em Goiânia elege como presidente o carioca Daniel Iliescu. No Congresso Nacional, é aprovado o Estatuto da Juventude, de autoria da deputada gaúcha Manuela Davila, ex-diretora da UNE, que regulamentou os direitos e as políticas públicos para a juventude brasileira.
2011
No segundo turno das eleições presidenciais, frente à ofensiva conservadora, a UNE apoia a ex-militante estudantil da época da ditadura, Dilma Rousseff. A candidata torna-se a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.
2010 62 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
partir de 2003, os estudantes avançaram em
A
Houve democratização do acesso ao ensino superior
suas reivindicações, obtendo uma transforma-
por meio do Sistema de Cotas para estudantes de
ção profunda do ensino superior, expandindo
escolas públicas e aqueles autodeclarados indígenas,
o acesso à universidade para todos os cantos do país,
pardos e negros; oferecimento de 1,5 milhões de
mudando a cara e a cor de pele do estudante universi-
bolsas por meio do Programa Universidade Para Todos
tário e também do movimento estudantil, cada vez mais
(ProUni); e financiamento especial de 1,8 milhões
democrático e aberto à heterogeneidade.
de matrículas por meio do novo Fundo de Financia-
A expansão e democratização do ensino superior foi
mento Estudantil (Fies)
vital para uma ascensão social qualificada de setores
Ocorreu, ainda, a ampliação do investimento
mais pobres da sociedade brasileira nas últimas déca-
na Educação, com um salto de R$ 18 bilhões para R$
das, o que tem nos possibilitado a luta em defesa dos
115,7 bilhões ao ano no Orçamento federal; destinação
direitos dos trabalhadores e dos estudantes diante da
de 75% dos royalties do petróleo e de 50% do fundo
medidas reacionárias do governo golpista de Michel
social do pré-sal para a educação; e a aprovação do
Temer
Plano Nacional de Educação com a previsão de inves-
Desde 2003, ocorreu uma expansão do ensino
timento de 10% do PIB em educação
superior por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que possibilitou a construção de 18 novas universidades públicas e 173 novos campi. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
63
A UNE realiza mais uma de suas caravanas, com o tema Brasil+10, circulando por 12 capitais de todas as regiões e discutindo os olhares e anseios da juventude brasileira para o país dentro de uma década. Estudantes avançam na campanha pela destinação de 10% do PIB e de 50% do fundo social do pré-sal para a Educação.
2012
64 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
2013
2014
A UNE apoiou, no segundo turno, após reunião com a presença de centenas de lideranças
Os versos e o toque de fole da mítica Asa Branca do pernambucano Luiz
representando as principais entidades estu-
Gonzaga deram o tom da 8ª Bienal da UNE, que teve as ladeiras de Recife e
dantis do país, a reeleição de Dilma Rousseff
Olinda como palco para a presença de milhares estudantes e artistas como
para a presidência da República. O Congresso
Lenine, Alceu Valença, Elba Ramalho e Mundo Livre S/A
Nacional aprova, com grande participação da
A pernambucana Virgínia Barros é eleita presidenta no congresso da entidade
sociedade civil e dos estudantes, o Plano Na-
em Goiânia e o movimento estudantil tem participação central na histórica
cional de Educação com a destinação de 10%
onda de manifestações brasileiras, a partir do mês de junho, reivindicando
do PIB para a Educação.
mais direitos e mudanças na estrutura da sociedade. Para conter a insatisfação popular, a presidenta Dilma Rousseff promoveu uma agenda progressista e atendeu a uma antiga reivindicação dos estudantes: destinação de 75% dos royalties do petróleo e de 50% do Fundo Social do Pré-Sal para a educação. É aprovada a nova Lei da Meia-Entrada, que regulamenta o direito do estudante de pegar 50% do valor em eventos culturais e esportivos e determina as entidades estudantis (UNE, UBES e ANPG) como as responsáveis pelo processo de emissão e fiscalização do Documento do Estudante.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
65
Com o tema “Vozes do Brasil”, a 9ª Bienal retornou para o Rio de Janeiro e ocupou o tradicional e histórico bairro da Lapa, com atividades no Circo Voador, Fundição Progresso e shows abertos de Criolo e Pitty no palco livre dos Arcos. No 54ª Congresso, com a eleição da paulista Carina Vitral, nós temos pela primeira vez uma sucessão de mulheres na presidência da entidade. Diante da ofensiva reacionária que tomou as ruas do país e o Congresso Nacional pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os estudantes saíram em defesa das conquistas democráticas do último período e contra os cortes do ajuste fiscal do governo federal. Marcou o período uma grande campanha nacional contra a redução da maioridade penal. A UNE participou ainda da construção das frentes “Brasil Popular” e “Povo Sem Medo” para defender a democracia e os direitos da população ao lado de importantes organizações da sociedade civil, como as centrais sindicais e os movimentos sem terra e sem teto. (Leia entrevista na página 176)
2015
66 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
2016
Os estudantes engrossam as manifestações populares contra o golpe conspirado pelo vice Michel Temer. Poder Legislativo e Judiciário, com apoio de partidos da direita, de forma ilegal, sem crime de responsabilidade comprovado, retiraram a presidenta Dilma Rousseff do poder. A UNE e os movimentos sociais tomam as ruas contra as medidas reacionárias do governo golpista de Michel Temer, como a PEC do Fim do Mundo, que limita os gastos públicos por duas décadas, ameaçando as conquistas sociais das últimas décadas.
2017 Pela primeira vez, a Bienal da UNE desembarca em Fortaleza, no Ceará. Com o tema “Feira da Reinvenção”, o festival estudantil ocupa o Instituto Dragão do Mar, contando com a participação do dramaturgo Zé Celso Martinez, dos músicos Emicida e Gaby Amarantos e dos políticos Fernando Haddad e Ciro Gomes. Acontece a pré-estreia do documentário “Praia do Flamengo 132”, do diretor Vandré Fernandes, com as presenças do jornalista, ex-ministro e ex-militante estudantil Franklin Martins A UNE e as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo realizam uma série de manifestações populares contra o governo ilegítimo de Michel Temer, que promove um pacote de reformas impopulares contra o direito dos trabalhadores. Os estudantes participam da histórica greve geral de 28 de abril, que envolveu mais de 35 milhões de pessoas em todo o país.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
67
entrevistas
MOVIMENTO ESTUDANTIL E DEMOCRACIA segundo seus protagonistas Nas prรณximas pรกginas, relatos de antigos presidentes da UNE reconstroem a histรณria da entidade em ambiente democrรกtico 68 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
E
ntre 2006 e 2017, foram colhidos depoimentos essenciais para se entender a trajetória e a importância da União Nacional dos Estudantes num ambiente democrático, a partir do ocaso da Ditadura Militar (1967-1984). Estes relatos
de antigos presidentes da UNE começaram a ser tomados por uma destas lideranças, que também deixa seu depoimento na série. Javier Alfaya, da gestão de 1981-1982, preocupava-se em guardar e contar a história que viu ser construída. A equipe de comunicação da UNE tratou de terminar a missão começada por ele. Deram entrevistas desde os que participaram da reconstrução da UNE em 1979, depois de 19 anos de ilegalidade, quanto os que acompanharam o fortalecimento da era democrática. A UNE, ao completar 80 anos em um momento sombrio da jovem democracia brasileira, considera oportuno mostrar, mais do que os perigos da ditadura, as amplas possibilidades da democracia - mais uma vez ameaçada no Brasil, desde que um golpe parlamentar impediu a continuidade do mandato de Dilma Rousseff.
DIRETAS JÁ: 1984-2017 No Congresso da Reconstrução, ponto de partida para esta série de entrevistas, a liberdade para organização social apenas começou a ser esboçada. A Ditadura Militar ainda se manteria oficialmente por cinco anos, só tendo um ponto final com a eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência. Naquela época, a UNE se manteve à frente de uma grande campanha por eleições diretas, coincidentemente, assim como agora. Aos 80 anos, a maior entidade estudantil brasileira segue a tradição de não se eximir nos momentos mais importantes da história. A seguir, confira como tem sido nas últimas quatro décadas, pela voz dos protagonistas.
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE
69
N
ascido no interior da Bahia, na cidade de Ibirataia, em 1956, Ruy Cezar Costa Silva, o primeiro presidente da União Nacional dos Estudantes
(UNE) após a reconstrução da entidade, aos 14 anos vivia “a angústia com o vazio das expectativas e possibilidades”. Em meio a um bando de jovens buscando fazer teatro, Ruy Cezar acabou tomando o rumo, como estudante, da vocação da região em que vivia: em 1972, ingressou na Escola Média de Agropecuária Regional da Ceplac, órgão voltado para a pesquisa da lavoura cacaueira, em Ipiau. O primeiro contato do adolescente com os tentáculos da ditadura foi quando o jornal que fez com colegas na escola acabou apreendido - “A Boca” trazia um texto de Krishnamurti, sobre mudanças de governo e participação. Em 1977, aprovado no vestibular do ano anterior, ele ingressou no curso de Comunicação (Jornalismo) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde um misto de medo e efervescência predominava. Em meio a um forte movimento estudantil contra o jubilamento, perseguido pela repressão do Estado, ao mesmo tempo havia um ambiente intelectual favorável. Na polêmica Escola de Comunicação – avessa a Diretórios Acadêmicos, boêmia e de vanguarda cultural – morando na avenida Carlos Gomes, entusiasta do teatro e das militâncias artísticas, ele foi despontando como uma liderança estudantil que cravaria seu nome na história da reconstrução da UNE. Ao contrário de outros colegas daquela época, que seguiram na militância político-partidária, ele optou por atuar na seara da educação, da arte e da cultura. Ruy Cezar faleceu em junho de 2013, deixando uma lacuna entre as cabeças pensantes do país. (Entrevista concedida a Javier Alfaya,
Ruy Cezar, estudante de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e primeiro presidente da UNE depois da reconstrução
72 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
em 2008)
O que você lembra daquele tempo em que chegou à capital e ingressou na universidade em Salvador? Os bares da avenida Carlos Gomes, onde eu fui morar, eram bastante frequentados pela juventude da época. Havia também as residências universitárias nos Barris, na região do Centro, Piedade, largo 2 de Julho. Naturalmente, nos bares da rua essa realidade era refletida: havia os artistas de teatro, do Teatro Livre da Bahia, da Escola de Teatro, músicos emergentes, músicos novos, pessoal do Restaurante Universitário. E tinha o Corredor da Vitória, das residências universitárias oficiais, as residências do interior. Quando os bares fechavam, a gente ia para uma residência daquelas e continuava a beber, a escrever, a falar, a discutir… E o assunto era sempre a arte e a política. Para quem chegava do interior, era uma grande descoberta, a capital. Existia um clima de muita efervescência intelectual, muitos encontros afetivos, era ótimo para se namorar, para fazer amigos, tudo isso era interessante. Era contraditório com toda a situação política. Um fato que me lembro muito é que havia uma recomendação de que os namoros fossem
Para quem chegava do interior, era uma grande descoberta, a capital. Existia um clima de muita efervescência, muitos encontros. Era contraditório com toda a situação política.
escondidos, isso circulava, porque as pessoas podiam ser presas, os companheiros torturados. Eu me lembro que comecei a frequentar o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal da Bahia (DCE/UFBA), onde existia toda uma discussão, porque o presidente, Sinval, tinha se casado com Virgínia, diziam que não deveria ter se casado, porque não seria o momento adequado. Em função dessa questão, haviam muitos medos. Eu mesmo criei um jornal, intitulado ‘Faca Amolada’, juntamente com um companheiro que veio comigo do interior, de Itajuípe, apelidado Mandico, que hoje é um jornalista bastante conhecido. Fizemos esse jornal, que nem saiu da gráfica: foi apreendido e fomos detidos. Foi rápido, fomos levados à Cidade Baixa.
Mobilização pela anistia em Salvador, em 1979
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
73
até a Polícia Federal, e depois, liberados. Fo-
A indicação surpreendeu a mim mesmo e
fui indicado como candidato à presidência. A
mos liberados, mas o jornal, não. A gente ficou
suplantou a de Celinha. A reunião foi grande,
Celinha foi muito generosa e, além de apoiar,
sem o nosso jornal-laboratório. Tinha uma en-
com muita gente, e alguém falou: por que não
escreveu toda a plataforma à mão, com a letra
trevista com pessoas de uma invasão de terreno
Ruy? Eu vinha do trabalho de comunicação, do
muito linda. E aí foi uma disputa acirrada, porque
em Salvador, Novo Marotinho, muito em foco na
jornal e de um grupo de teatro que montei com
tinha Cândido Vacareza e Zulu como candidatos,
época. E falávamos da liberdade, das eleições li-
pessoas como Shirley Pinheiro, Marcelo Dantas,
por outra chapa, a Sangue Novo. Ganhamos, e
vres, da reorganização do movimento estudantil,
e a gente fez uns esquetes críticos em relação à
não foi com uma frente muito grande, diferente
da reorganização do movimento sindical.
universidade, passou em salas, foi se apresentan-
da eleição da UNE. De repente, eu me vi surpreso
do em vários espaços. Aí o DCE nos convidou para
como presidente do DCE da UFBA.
A partir de quando você se destacou para ser
fazer o julgamento do reitor, numa manifestação
candidato do DCE? Como se dá o salto entre
em frente à Reitoria da UFBA. Eu fiz o promotor.
Nessa época, 1978, já havia articulações
o calouro no segundo ano, que passa a ser,
Tivemos um colega que morreu de uma forma
na UFBA em favor da reconstrução da UNE,
no terceiro ano, candidato a presidente do
ridícula, teve apendicite e, atendido pelo Serviço
uma vez que o movimento estudantil era
DCE? Como se deu essa ascensão rápida?
Médico da UFBA, não sobreviveu. A gente, de-
forte e referência na Bahia; houve a re-
Eu não conhecia partido político nem tinha
pois da morte dele, fez várias manifestações e
percussão da greve contra o jubilamento,
informação sobre movimentos estudantis ligados
algumas passeatas foram fortemente reprimidas:
anunciada até pela BBC de Londres, como
a partidos, como a corrente Viração, com ligação
cachorros, bombas. Isso aí em 1978.
marco da retomada da luta estudantil.
com o PCdoB. Eu fui eleito presidente do DCE
No meio dessa questão do teatro e da cultura,
sem saber, sem ter essa informação. A candidata
saiu essa indicação minha para a presidência do
do partido, imagino, seria a Celinha Bandeira.
DCE. Eu nunca tinha tido cargo em nenhum or-
Fico pensando na questão do ‘reacionário’ e
Eu, na verdade, fui indicado numa reunião da
ganismo estudantil. Eu não tinha tido nenhuma
do ‘revolucionário’, porque era como as pessoas
tendência dentro do movimento estudantil, da
participação institucional em nenhum diretório,
se definiam em relação a essas questões. Isso
corrente estudantil Viração.
não era membro do partido, era da periferia e
não era uma bandeira, mas era como se fosse
Como foi essa arrancada para a reconstrução da UNE lá no DCE da UFBA?
uma atitude. Quem era reacionário e quem era revolucionário. Necessariamente, ser revolucionário, ali, era abraçar essa luta pela reabertura do movimento estudantil e participar. O revolucionário era o participante, que vinha e dizia algo. Quando fomos eleitos para o DCE, duas tentativas de reconstrução da UNE tinham sido frustradas: em 1977, na PUC, em São Paulo. Eu estava lá, quando Erasmo Dias jogou a bomba na PUC. Duas estudantes saíram gravemente queimadas, foi um episódio bastante forte. E o outro momento, em 1978, foi em Minas Gerais, quando a maior parte dos estudantes foi presa. Na PUC paulista chegou a acontecer o encontro, eu cheguei a fazer a abertura. Em Minas Gerais nada aconteceu, porque todo mundo foi preso Vitória de Ruy Cezar para a presidência do DCE da UFBA: primeira participação no movimento estudantil
74 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
e não se pôde fazer nada direito, poucas coisas, poucas reuniões.
A indicação surpreendeu a mim mesmo. Alguém falou: ‘por que não Ruy?’ Eu vinha do jornal e de um grupo de teatro. De repente, me vi surpreso como presidente do DCE da UFBA.
Estudantes comemoram eleição de Ruy Cezar na UFBA
Havia uma comissão pró-UNE, que estava
você via aquele mundo? O que falavam
nhando. Figuras como Alon Feuerwerker, Marcos
organizando esses encontros nacionais pela
sobre o Brasil? Era um momento de ecos
Caloi, da Caminhando; e figuras como Marcelo
reconstrução. Resolveu-se, então, que já era o
da repressão ali bem perto, como os as-
Garcia, Averoca, Israel Valígora, da Refazendo.
momento de se marcar o congresso. E a Bahia
sassinatos no Araguaia…
Eram lideranças importantes nesse movimento.
recebeu essa missão de organizá-lo. Quando
Sim, como a explosão de um aparelho do PC-
Em Minas também havia um movimento muito
fui eleito presidente do DCE, a notícia che-
doB em São Paulo, em 1977, quando faleceram
forte. No Rio de Janeiro, das propostas ligadas ao
gou de que o congresso seria na Bahia. Nós
Pedro Pomar, Ângela Ruy. Então, era assim, epi-
‘pecezão’ vinham as mais conservadoras, da luta
fomos eleitos em outubro de 1978 e, alguns
sódios de repressão muito forte ainda recentes, a
pelos meios institucionais, da aliança prioritária
dias depois, sabíamos que a nossa principal
coisa do conflito era muito forte. Havia um leque
com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
missão seria organizar o Congresso da UNE,
de posições dentro do movimento estudantil,
da via eleitoral como a via principal.
em maio de 1979. Ou seja, a gente já tinha
que ia do PCB, que nesse momento era forte no
As correntes ligadas à Refazendo, Viração e
um tempo curto para organizar e essa era a
Rio de Janeiro (especialmente na Universidade
Caminhando pregavam a luta pela mobilização
nossa principal missão.
Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), onde havia
das massas, a liberdade democrática, alianças com
também uma força grande do PCdoB, na Uni-
amplos setores da população. Na Bahia, havia o
Fala-se muito que os DCEs, as entidades
versidade Federal Fluminense (UFF). Essas duas
Trabalho Conjunto, que era o exemplo das alian-
e as correntes estudantis eram expressão
organizações estavam à frente do movimento
ças com diversas organizações de bairro, políticas,
desta ou daquela corrente clandestina:
estudantil. E a única união dos estudantes or-
artísticas e também a participação estudantil, e da
PCdoB, Ação Popular Marxista-lenista,
ganizada era a de São Paulo, ligada ao pessoal
igreja. Essas eram propostas muito fortes dessas
PCB, MR-8, organizações vinculadas à
da Ação Popular, que se chamava Refazendo, e
correntes, talvez a maior força motriz do movimen-
chamada Quarta Internacional. Como
do pessoal do PCdoB, que se chamava Cami-
to estudantil na época. Mas também havia outras revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
75
correntes bastante expressivas, como em Minas
Como era a relação entre o movimento
Gerais, que tinha o pessoal da Universidade Fede-
estudantil da época, querendo articular
ral de Minas Gerais (UFMG), com uma liderança
a reconstrução da UNE, e outros movi-
conhecida como Duda, que depois concorreu à
mentos sociais que apoiavam?
presidência da UNE, que era de um grupo chama-
Eu posso falar sobre isso dando o exem-
do Convergências Socialistas. E tinha a Liberdade
plo de como o congresso foi organizado em
Luta, que era mais radical, mais trotskista, de São
Salvador. A recepção ao congresso na Bahia
Paulo, que tinha a liderança de Josimar Melo,
foi trabalhada de uma forma intensa, com a
que hoje é crítico gastronômico. O Rio Grande
participação de diversas organizações da so-
do Sul era outro estado com participação boa,
ciedade, principalmente do Trabalho Conjunto
embora incipiente; Londrina, no Paraná, também
em Salvador, cujas reuniões eram no Mosteiro
ligada à Refazendo, mantinha uma força; e mais
de São Bento. Ali, havia uma liderança do Ins-
para o Norte-Nordeste, a Universidade Federal
tituto dos Arquitetos, Manoel José, que teve
de Pernambuco (UFPE) e a Universidade Rural
participação incrível nesse momento. Mas nós
de Pernambuco (URP) eram duas instituições
não tínhamos nenhuma infraestrutura para
que mantinham uma força muito grande; e aí
organizar o congresso aqui, e dependíamos
alguns estados sempre tinham lideranças fortes,
muito do apoio da cidade. A nossa única chan-
o Ceará, o Pará.
ce era o envolvimento de todas as camadas,
Havia uma participação forte em todo
formadores de opinião, intelectuais, imprensa,
o Brasil. No congresso aqui em Salvador a
comunidade universitária, partidos políticos,
participação era muito grande, havia mui-
entidades de classe, Instituto dos Arquitetos,
to interesse e um desejo forte de mudança
Clube de Engenharia da Bahia e de diversas
catalisado quando foi marcada a data da
associações de bairros.
reconstrução. Esta data ali pactuada cata-
Esse movimento foi tão interessante que nós
lisou todos esses esforços e muita união,
abrimos inscrições para hospedar os estudantes
apesar das diferenças. Nesse momento, a
nas casas das pessoas, nas casas de famílias.
reconstrução da UNE foi de muita união do
Recebemos o dobro de inscrições de famílias
movimento estudantil.
na sede do antigo MDB, no Campo Grande. Pre-
José Genoino e outros líderes do movimento estudantil participam do Congresso de Reconstrução da UNE, em 1979
76 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Nós não tínhamos infraestrutura para organizar o congresso. Precisávamos de quatro mil hospedagens e tivemos o dobro de pessoas oferecendo as suas casas para receber, gratuitamente, os estudantes.
Salvador recebe jovens de todo o Brasil para o Congresso de Reconstrução da UNE
cisávamos de quatro mil hospedagens e tivemos
seguidos, ele cedeu o Centro de Convenções da
Havia a união da sociedade, como se esse
o dobro de pessoas oferecendo as suas casas para
Bahia. Esse fato gerou muita polêmica no movi-
episódio da reconstrução da UNE fosse o
receber, gratuitamente, os estudantes. As maté-
mento estudantil. A maior parte das correntes do
grande momento. Eu me lembro que nós
rias da época na imprensa eram extremamente
movimento estudantil foi contra. Mesmo dentro da
fomos capa da IstoÉ e da Veja várias vezes
favoráveis. Então formou-se uma cumplicidade
nossa diretoria do DCE havia uma oposição grande.
nesse período de reconstrução. Uma capa
em torno do movimento estudantil e da busca
O fato foi que o governador, além de ceder o Centro
mostrava a bandeira da UNE e aparecia uma
da reconstrução da UNE.
de Convenções, que ainda não tinha sido nem inau-
comissão indo ao Centro de Convenções,
Teve até um episódio curioso, que foi a mar-
gurado (nós que o inauguramos), colocou também
teve uma capa depois do congresso, teve
cação das entrevistas com Antônio Carlos Maga-
à disposição uns ônibus que fizeram linha do Centro
uma capa na eleição. Nós viramos capas das
lhães. Eu puxei isso com muita força, porque não
da cidade para o local do congresso na Boca do Rio,
revistas. O nosso trabalho de reconstrução, de
tínhamos nenhum espaço coberto que pudesse
transportando os estudantes nos dias do encontro.
articulação, as ideias começaram a ocupar a
abrigar o volume de pessoas previstas. O maior
Foi algo também que ampliou a base de sustentação.
mídia de uma forma significativa também
auditório nosso era o do Direito, para 500 pes-
Nós conseguimos fazer o congresso com o suposto
– o que antes de 1978/1979 não acontecia.
soas. A minha angústia como presidente do DCE,
apoio até do governo.
Havia também um certo olhar crítico. Hoje,
responsável pela organização, era por não saber
No processo de organização chegou uma men-
eu olhando as matérias publicadas na época,
onde íamos fazer esse encontro. Eu desenhei na
sagem do então ministro da Justiça, Ibrahim Abi
percebo que antes daquele momento havia
minha cabeça que o Ginásio Antônio Balbino
Ackel, proibindo o congresso. Alguns ônibus foram
referências a uma certa baderna, bagunça
(Balbininho) seria o melhor lugar. Liguei para a
parados na estrada, presos, houve um atentado
dos estudantes, mas, de repente, não mais.
governadoria pedindo essa entrevista. Surpre-
no congresso. Esse movimento que em Salvador
De repente, a imprensa passou a apoiar o
endentemente, o governador nomeado pela
acontecia, com movimento das mulheres pela anistia,
movimento estudantil, exatamente nesse
ditadura, Antônio Carlos Magalhães, marcou o
Trabalho Conjunto, deram sustentação. E era um
trânsito de 1978/1979: Jornal do Brasil, Folha
encontro e nos recebeu. Depois de três encontros
trabalho que acontecia em outros estados também.
de S. Paulo, em editorial, o JB também em revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
77
Centro de convenções estadual recebe o Congresso de Reconstrução, em Salvador
editorial. O que, para mim, foi muito surpreen-
nalto Central. O general João Batista Figueiredo,
em setembro. Nós nos concentramos muito para
dente, dada a minha juventude, ter que lidar com
presidente na época, talvez tivesse essa missão
construir o congresso em Salvador. O medo de o
tudo isso, numa organização tão sistemática, ser
de fazer uma transição de novo para os governos
congresso não acontecer era forte, mas foi um su-
eleito como presidente do DCE da UFBA e ter que
civis, é o que se registra como fato da História. O
cesso. Participação de muitas delegações, grupos
organizar o Congresso da UNE, ter que lidar com
que não deixava de manter o governo numa po-
que nem conseguiram chegar, muita discussão.
governo federal, governo estadual, Câmara de
sição de forte repressão, porque nós enfrentamos
Nós conseguimos uma síntese naquele congresso.
Vereadores e essa coisa da imprensa, fortemente.
problemas muito graves de repressão, até com o
A gente conseguiu marcar a eleição, conseguiu
próprio Figueiredo, com os próprios estudantes,
aprovar eleição direta, conseguiu aprovar a carta
envolvendo o presidente e os estudantes.
de princípios da UNE. Eu trabalhei bastante com
A UNE e o movimento estudantil eram
isso no congresso, porque havia várias cartas de
movimentos não-legais, mas eram fran-
princípios. Eu trabalhei pela união das cartas.
camente legitimados até por estruturas
Você começou a ser muito procurado como
do próprio poder, é isso?
referencial da juventude universitária.
Fui para trás da mesa e escrevi uma carta fa-
Passou a ser nesse período, como se o movi-
Você foi a um congresso fora do Brasil,
zendo uma síntese de várias outras, propondo
mento estudantil e a reconstrução da UNE sig-
em Roma, o Congresso da Anistia. Fale
a votação com várias lideranças contrárias. Eram
nificassem, naquele momento, uma aspiração
um pouco disso.
80% da plenária aprovando a carta, mesmo com
das forças progressistas do Brasil pela liberdade
O Congresso da Anistia Internacional foi após o
as lideranças querendo me matar por fazer essa
de expressão, pelo fim da ditadura. Coincidiu,
Congresso da UNE. Eu não fui eleito no congres-
síntese, aparentemente, digamos assim, uma
também, com o movimento de transição no Pla-
so. Eu fui eleito presidente nas eleições diretas,
heresia, porque cada um queria que a sua pro-
78 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Havia a união da sociedade, como se esse episódio da reconstrução da UNE fosse o grande momento. Eu me lembro que nós fomos capa da IstoÉ e da Veja várias vezes nesse período. De repente, a imprensa passou a apoiar o movimento estudantil. posta fosse aprovada na íntegra. Como eu não
bilidade de receber o congresso, de organizar, de
e a forma de pensar das outras pessoas. Eu aca-
tinha ainda um vínculo político-partidário, pude
fazer com que ele fosse um sucesso, traduzindo
bei fazendo amizade com lideranças de todo e
ter esses arroubos.
uma orientação de todos os componentes do mo-
qualquer partido.
vimento no sentido da união. Isso levava a uma Como era, na sua visão, a relação entre as
atitude de ouvir muito, de prestar muita atenção
Em 1978/79, houve muita polêmica no PC-
diferentes correntes no movimento estu-
nos interesses dos outros. Levava também a uma
doB, o partido perdeu muita gente, houve o
dantil daquela época?
busca do cuidado, quase físico, de que cada um
‘racha’, como se falou. Muita gente foi para o
Havia uma coisa da própria corrente Viração, da
que viesse estivesse bem, não se machucasse.
Partido dos Trabalhadores e aí surgiu a sua
Bahia, que era até diferente de como se compor-
Mesmo sendo um opositor de ideia, a gente não
condição de presidente da UNE e uma ques-
tava a Caminhando, em São Paulo. Lá, era uma
queria que tivesse dor de barriga comendo acarajé
tão: “O Ruy agora será o quê?” Como é que
força similar, mas a Caminhando paulista tinha
demais. Agora, talvez eu tivesse uma coisa interes-
você se vê hoje, em relação àquela época?
muito mais atritos, até pelas próprias característi-
sante que fosse mais da característica pessoal, que
Você incomodou muitos que defendiam a
cas do movimento estudantil de lá, com as outras
ajudasse nessa questão da busca de uma união,
luta revolucionária sem individualismos,
correntes e uma disputa pela hegemonia muito
que era uma curiosidade intelectual pelas ideias
mas também gente que criticou quando você
forte, contra a corrente Refazendo, que levava a
dos outros. Isso eu tinha naturalmente. Como eu
não quis multiplicar a própria fama…
um radicalismo maior até no próprio discurso. Já a
não tinha um vínculo partidário estreito, eu era
Isso corresponde a um trânsito de quase
Viração, na Bahia, tinha uma certa hegemonia no
uma pessoa da área da cultura, da área das artes,
dois anos. O PT foi fundado em 1980; em
estado e na universidade, e ficou com a responsa-
tinha um olhar muito curioso sobre o pensamento
1979 nós estávamos discutindo essa questão revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
79
de ser justo ou não: abrir o PT por quê? Tinha a ver com o fato de a liberdade de organização partidária ser parcial, nós não deveríamos aceitar. Se os partidos clandestinos não podiam votar e se legalizar, então a gente não deveria aceitar essa liberdade. Essa foi a discussão na época. O PT também não deveria ser registrado naquele momento. Outra discussão
Conseguimos uma síntese naquele congresso. Fui para trás da mesa e escrevi uma carta fazendo uma síntese de várias outras, mesmo com as lideranças querendo me matar.
interessante era sobre até onde o socialismo iria, e estava simbolizada com algumas questões, como a invasão Soviética no Afeganistão – a discussão de apoiar ou não a invasão. São exemplos simbólicos do que eu enfrentei como presidente da UNE. Eu acreditava que as duas questões não eram prioritárias para os estudantes. Lembro-me de que, numa das reuniões da UNE, foi aprovada uma moção de filiação da UNE ao MDB, como uma forma de impedir a reorganização partidária. Essa reunião foi realizada no Espírito Santo e eu, quando tive acesso ao documento, o rasguei. Eles disseram que iam propor a minha demissão e depois não conseguiram fazer. Eu os chamei à mesa para lhes propor uma questão, eles não foram. Esse ato mostra o quê? Mostra realmente a discussão da filiação da UNE – que eu achava um absurdo na época a UNE se filiar a
Participantes do Congresso de Reconstrução da UNE, em 1979, optam por realizar outro encontro para eleger a diretoria da entidade
80 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Antes de ser eleito presidente da UNE, Ruy Cezar fala no Congresso de Reconstrução, em 1979
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
81
Estudantes do Brasil todo se reúnem em Salvador para reconstrução da UNE
82 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
um partido político. Era o cuidado de manter a uni-
dar 5 minutos para falarem. Eu sabia que quando
do revolucionário, e não do revolucionário que vai
dade. A UNE, como representante dos estudantes
parasse de olhar o relógio, a plateia ia vaiar. Então,
fazer a revolução do Brasil, mas um revolucionário no
brasileiros, não podia se filiar a um partido, isso no
primeiro queria dar uma chance de aquele pes-
sentido que buscava ideias mais arrojadas e também
meu entendimento, porque representava pessoas
soal transmitir a sua ideia, sabendo que elas logo
ligado à questão do comportamento.
de todo e qualquer partido, inclusive os da direita.
depois seriam varridas. Esse conjunto de ideias
Essas questões, do Afeganistão e das organizações
Nos congressos, eu chamei ao palco e concedi
mostra muito que essa preocupação minha não
partidárias, foram dois conflitos dentro da diretoria
foi pós-Movimento Estudantil.
da UNE. Também dentro da diretoria, eu me lembro
a palavra aos representantes do DEE (Diretório Estadual de Estudantes) do Rio Grande do Sul,
Eu tive contato também com os políticos de
que terminou a reunião no Rio e teve um sambão,
que era a única entidade estadual, fora a USP,
Brasília. Durante o ano em que fui presidente da
eu fui sambar e alguém me chamou e disse que
que nunca tinha sido fechada, porque era ligada
UNE, eu jantei com Severo Gomes, reuni-me com
um presidente da UNE não podia estar com aque-
à direita. Era o que se dizia. Eles vieram a Salvador,
Fernando Henrique, fui à casa de José Serra, an-
le tipo de atitude: “Companheiro, presidente da
fizeram passeata contra o congresso e chegaram
dei muito com Teotônio Vilela, Ulisses Guimarães,
UNE não pode ficar sambando assim no meio dos
até perto do Centro de Convenções, eu mandei
em manifestações, em atos, e com outros políticos
estudantes”. Houve também um outro momento
um emissário buscá-los. Chamei-os ao palco do
de outras qualidades. Eu estou falando nomes de
muito interessante, que foi a discussão sobre se eu
congresso e concedi a palavra para que dissessem
grandes políticos, mas houve outros também de um
poderia ou não tirar a barba: “Você vai perder todo
o que queriam, convencendo a plateia a ouvir.
escalão mais duvidoso. Vi coisas bastante difíceis,
o carisma”. E eu disse: “Que besteira, deixa eu tirar
Tenho até uma foto de Milton Duran nesse mo-
de como a política funcionava, e percebi que esse
a barba…” E, de vez em quando, eu a tirava. Aí eu já
mento. Eu olhando o relógio. Convenci a plateia a
ambiente não era o meu. Eu continuava no ambiente
conhecia a questão do partido, pude conhecer pela minha ex-mulher, já depois do congresso da UNE. Ela me chamou e me disse: “Você agora é candidato a presidente, você sabe que foi quase igual ao DCE, foi quase um acaso”. Como você foi escolhido presidente da UNE? Já estava esperando? Como foi a relação
Tem uma coisa do meu jeito mesmo, mas também tinha uma atitude coletiva para buscar esse consenso, que faz com que a UNE se mantenha unida por todos esses anos.
com partidos? Eu não era candidato a presidente de nada, fui ao congresso para dirigi-lo, fui indicado pela comissão, fui para a mesa, mas o nosso candidato era Valdélio. Existiam outros candidatos de outros movimentos, mas o candidato de Viração e Refazendo era Valdélio. Mas, quando fechou o congresso, havia um consenso em torno do meu nome de várias forças. Vários grupos abriram mão, o pessoal de Minas Gerais, e acabaram dizendo: “Se for Ruy, a gente fecha”. Aí entrei para gerir essa questão, passei a conhecer o partido como uma forte discussão interna com relação aos rumos do socialismo. Isso me pareceu também bastante interessante, um partido que discutia. Houve também a reunião da anistia em Roma. Eu fui. Jovem, ainda revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
83
não presidente, e conheci todas as grandes lideranças do exílio, como Brizola, Diógenes Arruda, João Amazonas. Então, conheci todas as grandes lideranças e estavam todas me assistindo quando eu falei no senado italiano! Havia umas mil pessoas, praticamente todos os exilados brasileiros foram, foi um momento muito forte para mim, eu era menino na época. Depois, havia os diálogos pessoais com essas correntes de fora, influenciadas pela visão política da Europa. Depois, passei por Cuba e voltei ao Brasil, quando tive a primeira detenção. Havia todo um movimento de organização da anistia, buscando a volta em massa. Foram muitas ideias de fora e toda a discussão de dentro. Fui sentindo que o meu trabalho, o meu movimento, era por esse olhar em torno das questões da arte, da cultura e do comportamento humano. Eu não conseguiria me limitar a responder às necessidades de construção de uma organização partidária mais rígida nem de corresponder às expectativas dessa organização. Onde eu queria mais corresponder era no campo afetivo, eu gostava muito das pessoas e não queria perder nenhuma delas, inclusive a mulher com quem eu estava casado, que era militante do PCdoB, Telma Oliveira, mãe da minha filha Talita. Foi ela quem abriu o partido para mim. Eu já estava casado com ela, de três a quatro anos, nesse momento ela estava grávida de Talita. Ela já era casada comigo legalmente, era militante e eu não sabia. Imagino que essa foi uma situação que gerou a nossa separação, porque em algum momento eu me senti traído. Não que ela tenha me traído efetivamente, mas fiquei com uma dúvida de quem era o principal no coração dela, uma vez que ela conseguiu casar comigo e manter esse segredo por tanto tempo. Ao mesmo tempo, percebi que era 84 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Para mim, o discurso do jovem é filosofia, poesia, arte, amor, qualquer coisa que ele queira falar. Não é um discurso institucional. Acho que a instituição deveria estimular que o jovem pudesse se expressar livremente.
uma proteção. Ela era mais velha do que eu
travesti. Era um cordel, bem escrachado. Não
Banda do Pirandello, um dos bares famosos
e estava me protegendo no sentido de que
importa. O que importa é que isso chocou a
de São Paulo, um bar superdesbundado e cul-
não me expusesse, imagino que havia uma
saída tranquila de dizer não.
tural. Eu e Travassos começamos uma longa
questão partidária ali também.
Já tinha provocado uma discussão: “Por
discussão sobre a individualidade e a política,
que ele está dizendo não? Por que ele não
se as pessoas podiam servir à política e manter
Você era uma referência para o movimen-
pode ser candidato a deputado federal, já
as suas individualidades. Travamos uma forte
to, e sabia disso. Por que se recolheu,
que pode ser o mais votado no Rio ou em
amizade e chegamos a gravar algumas fitas
indo para São Paulo estudar Pedagogia,
São Paulo, é a nossa nova liderança e foi pre-
sobre esta discussão. É uma pessoa muito pou-
Psicologia, Arte, Infância? A polêmica foi
parado para isso?”. Quando despontou e essa
co lembrada. Ele era uma figura que, quando
grande com sua opção de ir para o palco,
peça estreou, a imprensa veio toda em cima
subia no palanque, incendiava as plateias, e
em vez de continuar a militância…
discutir a questão do comportamento: “Por
era uma figura muito especial.
Fui capa de revistas várias vezes, ao ser
que isso? Por que aquilo?” Eu abri as ideias,
eleito e, depois, saindo da UNE, fazendo a
em relação à experimentação de drogas, como
Qual a sua visão hoje do movimento
confusão toda. Veja que essa discussão que
uma forma de busca de desenvolvimento pes-
estudantil?
eu estava falando antes traz a base disso. Fui
soal; as ideias com relação à sexualidade, eu
Acho que foi a minha grande escola. Eu
reconhecendo que não poderia corresponder
também fui defender que as pessoas podiam
aprendi muito sobre mim, sobre o meu país,
a uma expectativa partidária, no termo dos
ter experiências múltiplas na busca da sua
onde eu vivo, e sobre o mundo. Um grande
partidos de esquerda clandestinos, que exigia
satisfação, do seu desenvolvimento. Isso ge-
aprendizado. Pensar que eu coordenei o Fó-
um tipo de disciplina ideológica que não me
rou uma grande polêmica no momento. E aí,
rum Social Mundial de 2004, reuni forças do
caberia dentro, porque eu não era uma pessoa
mais tarde, alguns meses depois, optei por
mundo inteiro e reuni, em São Paulo, Geraldo
alinhada dessa forma, eu não me comportava
não falar mais. Fui cuidar um pouco de mim,
Alckimin e Marta Suplicy, na mesma mesa,
assim. A minha curiosidade era mais ampla
da família, casei-me de novo, já com a minha
para organizar e para abrir. Essa capacidade
do que especificamente aquela que aparecia
atual mulher, que estava grávida.
de articulação, essa diplomacia, esse inte-
com o estatuto. Nunca fui militante formal-
O interessante é que, enquanto eu estava
resse internacional; a montagem da Rede
mente. Essa questão da individualidade era
em São Paulo, já calado, sem atender a jorna-
Latino-Americana, o interesse pela América
bem pessoal ali.
lista nenhum, o jornal Movimento abriu uma
Latina, interesse pelas questões sociais, de
Então foi como se, talvez, eu tivesse vontade
coluna nomeada Ruy Cezar, em 1981. Nessa
ter o tempo certo, de poder atuar, e também
de destruir aquele ser que era famoso, reco-
coluna, Duarte Pereira me esculhambava e
esse desejo pelas coisas novas, tudo veio do
nhecido e necessitado enquanto tal. Acabou
pessoas do Brasil inteiro escreviam me de-
movimento estudantil.
que eu fiz o contrário, pois fiz duplamente a
fendendo. Gente como Caetano Veloso. Mil
De alguma forma, eu fiquei com esse man-
busca da fama, aprontando um escândalo para
discussões se passaram durante o tempo dessa
dato de não ser reacionário, de ser revolucio-
sair. Em vez de sair discretamente, foi como
coluna, que ficou aberta por meses – e eu,
nário. No sentido de que eu fui criar a Casa
dizer: “Não é a minha, eu não sou candidato,
mudo, só lendo o que as pessoas escreviam.
Via Magia, uma escola inovadora, também
vou fazer o meu teatro”. E também havia um
Não era nem mais Ruy Cezar, que só era o
uma rede para artistas independentes, um
incômodo com essa fama, essa busca, esse
título da polêmica.
mercado cultural na contramão da grande
assédio, uma situação com a qual até hoje
Nessa imersão, tive uma grande ajuda de
indústria, trabalhando só com artistas de fora
lido mal. Acontece que eu, quando fui fazer
um ser humano excepcional, chamado Luís
da mídia, um fórum cultural mundial para
teatro, fiz papéis que eram provocadores, en-
Travassos, que conheci no congresso da anistia
valorizar o encontro entre os países do sul
tre eles de um travesti. Eram cinco papéis.
e retornava ao Brasil exatamente nesse mo-
do planeta: África, Oriente Médio, América
Havia um cangaceiro que ia buscar Lampião
mento de transição, e nós nos reencontramos
Latina. Essa iluminação, esse método, foram
no inferno, havia o marido traído e havia um
em São Paulo. Ele estava como presidente da
construídos nesse lugar. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
85
Aprendi também, a duras pena, porque eu preci-
ma da internet, seja em pequenas organizações de
Brasil fica na defensiva, quando ele tem na mão dois
sei destruir aquilo tudo. Eu construí um líder e, em
bairro, em grupos de teatro, há uma proliferação de
grandes patrimônios da humanidade, a diversidade
curto tempo, eu o destruí para colocar outra coisa
formas de atuação incrível. Eu acho que as lideranças
cultural e a diversidade ambiental? É uma pergunta
no lugar. Foi um grande aprendizado para mim.
jovens engajadas nos partidos políticos tendem
que eu fico pensando, se nesse momento, também,
Por exemplo, abrir uma escola e permanecer há 25
a ser um pouco tolhidas na sua possibilidade de
a UNE não anda engajada demais com o governo.
anos… porque o desejo de destruir era muito forte
expressão e de busca. Eu vejo até alguns discursos
Isso imobiliza um pouco a ação a algumas questões.
em mim também. Eu tenho isso como ímpeto de
muito engajados e muito estereotipados. Vejo a
[A entrevista foi concedida em 2008]
transformador, de criação, e também de destruição.
mesma coisa em organizações ligadas a empre-
Por um lado, vejo esse tipo de coisa, falando das
Como é que você transforma, cria, sem destruir? Esse
sas, institutos que chamam jovens para trabalhos
instituições e, de uma forma, trazendo uma visão
foi o meu grande aprendizado. Hoje eu penso assim.
sociais e catequizam o jovem para discurso. Então,
crítica sobre a própria instituição que eu ajudei a
Sobre a questão da juventude, eu tenho quatro
assim, vejo jovens fazendo discurso contra as drogas,
reconstruir. Embora eu tenha a maior admiração
filhos. Eles são bem melhores do que eu pude ser.
pela cidadania. Isso não é discurso de jovem. Para
por todos eles, por outro lado, também tenho a
Eles são mais tranquilos, são mais informados, leram
mim, o discurso do jovem é filosofia, poesia, arte,
maior alegria de ver a juventude com canais diversos
muito mais do que eu pude ler na idade deles.
amor, qualquer coisa que ele queira falar. Não é
de participação. Essas contradições são as que eu
Eu era muito desesperado, ou seja, eu era muito
um discurso institucional. Acho que a instituição, ao
tenho registradas.
carente. Eles são mais tranquilos no plano afetivo,
facilitar a participação do jovem, deveria estimular
buscam mais relacionamentos e menos aventuras.
que o jovem pudesse se expressar livremente, e não
A UNE foi a instituição que o ajudou a
Eu era um aventureiro também nesse campo. Isso
estimular o jovem a fazer o discurso institucional.
ser feliz?
se refletia no campo da política. A gente, quando é
Acho que tem um problema aí.
jovem, não separa nada, tudo é misturado.
Sim, ajudou-me a ser feliz. A UNE me deu a
Eu me pergunto por que a UNE hoje não catali-
possibilidade de conservar dentro de mim uma
Eu trabalho também com jovens do bairro do
sa mais, apesar de já vir catalisando de uma certa
chama da juventude, como se eu pudesse ter
Engenho Velho da Federação e eles são pessoas
forma, o olhar sobre a cultura, através dos CUCAs e
esse poder. Eu posso envelhecer, porque tenho
muito especiais. São pessoas de uma força, de uma
da Bienal? Eu acho muito interessante o trabalho da
dentro de mim essa chama de estar olhando para
capacidade cênica, de um ritmo. Eu acho que, hoje,
UNE nessa direção. Eu me pergunto, por que é que
as coisas com o olhar de poder modificar, de poder
a juventude tem capacidade diversa de expressão,
a UNE não parte à frente dessa questão do meio am-
derrubar, de poder ir adiante, de poder ir atrás,
através de diversas formas de organização, ou de
biente, não mobiliza a sociedade brasileira para uma
como se fosse uma paixão da juventude mesmo.
canais individuais que eles encontram, seja no siste-
união em torno de uma solução? Por que é que o
Isso quem me deu foi a UNE.
Depois da UNE, Ruy Cezar (1956-2013) foi gestor cultural e criou a Casa Via Magia, de educação juvenil e desenvolvimento social, em Salvador
86 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Eu posso envelhecer, porque tenho dentro de mim essa chama de poder modificar. Isso quem me deu foi a UNE.
Ruy Cezar: vocação para a unidade e pouca afeição à política partidária
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista RUY CEZAR
87
J
osé Aldo Rebelo Figueiredo nasceu em Viçosa, Alagoas, no dia 23 de fevereiro de 1956. É um respeitado político brasileiro pela sua trajetória
em defesa do Estado democrático de direito e opositor atuante do modelo neoliberal que ganhou força no Brasil e em outras nações a partir da década de 1990. Membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Rebelo foi presidente da Câmara dos Deputados entre 2005 e 2007, ministro dos Esportes, da Defesa e da Ciência, Tecnologia e Inovação no governo Dilma. No Congresso Nacional, desempenhou função parlamentar com a ampla base de exercício político que adquiriu no movimento estudantil. Rebelo foi o segundo presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), após a reconstrução, estando à frente da entidade durante os anos de 1980 e 1981, logo após a saída do baiano Ruy Cezar. Para Aldo Rabelo, a geração responsável por retirar a UNE da clandestinidade e recolocar a voz dos estudantes universitários para ser ouvida pelo País gerou uma ampla gama de lideranças sociais que hoje se destacam em diversas áreas – da política à economia, passando pelo sindicalismo e pela artes. Sempre que questionado sobre a presença de nordestinos como ele no centro das esferas responsáveis pelas definições dos rumos da história brasileira, ele enfatiza a importância que personalidades da região sempre tiveram no cenário nacional, desde os primórdios da República. A experiência na UNE levou o alagoano, em 1984, a fundar a União da Juventude Socialista, tendo sido eleito seu primeiro coordenador nacional, quando sugeriu o nome do poeta baiano Castro Alves como patrono da entidade. Em 2004, já como ministro da Coordenação Política do governo Lula, Rebelo recebeu a medalha Castro Alves da UJS no Palácio Alagoano de Viçosa, Aldo Rebelo foi o segundo presidente da UNE depois da Reconstrução da entidade
90 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
do Planalto. (Entrevista concedida em 2006 a Javier Alfaya)
Em estados como Bahia e Alagoas havia
creio que essa é a explicação mais profunda e
Centros e Diretórios Acadêmicos, da luta
uma grande efervescência em cresci-
mais verdadeira da formação de um grande
pelos direitos humanos que tinha como
mento na universidade pública nos anos
número de líderes, não apenas políticos, hoje.
pano de fundo a luta pela liberdade, pela
1970, parte do movimento de oposi-
Lideranças empresariais, lideranças sindicais,
constituinte, pela anistia.
ção ao regime militar. Passados mais
lideranças partidárias, lideranças intelectuais,
Então, essa geração navegou em águas
de 30 anos, qual é a sua opinião sobre
acadêmicas; ou seja, o movimento estudantil
muito mais profundas e muito mais largas,
aquele processo? Qual a importância
dos anos 1970.
em leitos de rios mais amplos, por adotar
E houve uma geração muito importan-
a bandeira de luta contra a ditadura como
te nos anos 60 – essa que, em parte, se
uma questão democrática, e não como uma
Eu acho que a luta contra a ditadura, a luta
sacrificou no exílio, na clandestinidade,
questão da revolução social. Ela pôde fazer
pela redemocratização do país, uniu amplas
mas uma boa parte dela, ligada ao volun-
alianças mais amplas, inclusive obter mais
forças políticas e sociais no Brasil e, por ser uma
tarismo que julgava ser possível derrotar
apoio de parcelas da sociedade. Levou o re-
causa tão cheia de generosidade e legitimidade,
o regime militar pelo esforço de poucos,
gime militar ao isolamento e culminou na
despertou na juventude um entusiasmo muito
inclusive pela luta armada. Essa geração
campanha das ‘Diretas Já’. Acho que isso tudo
grande, principalmente entre esses jovens mais
dos anos 70 se distingue da geração dos
teve como chave os anos 70. A Constituinte
desprendidos e mais generosos, que forma-
anos 60 porque já adotou caminhos de luta
foi uma batalha ganha nos anos 70. A anistia
vam a vanguarda, a parcela mais avançada, que
democrática, da união de amplas forças
foi resolvida nos anos 70. A redemocratização
nós chamávamos de movimento estudantil. E
políticas e sociais, da reorganização dos
do Brasil foi resolvida nos anos 70.
disso para a formação de uma geração de lideranças?
Aldo (embaixo, à esquerda) compõe a chapa Mutirão, vitoriosa na UNE em 1979
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
91
Na década de 80, o regime ditatorial já estava em
secundário, na medida em que estava estabeleci-
largo declínio, já era quase um fantasma da própria
da a mudança de perspectiva de comportamento,
ditadura. E acho que essa experiência permitiu à
usada nos anos 60. Nos anos 70, o fundamental
juventude que dela participou exercer um papel
foi a mudança na orientação. O abandono da luta
de liderança na atividade a que se dedicasse, fosse
armada pelo enfrentamento com uma tática de
ela política, parlamentar, institucional, partidária,
isolamento do regime ditatorial pela união de am-
acadêmica, empresarial, sindical, atividade social... Ou seja: todo mundo daquele período participou largamente de um processo organizativo muito grande, porque foi quando o movimento estudantil foi reorganizado, com os congressos estudantis – fossem os congressos estaduais, regionais, os congressos setoriais, congressos de estudantes de Economia, de Jornalismo, de Pedagogia. Havia também um debate sobre os rumos do país muito grande. Era exigido que as lideranças se preparassem, inclusive formando o seu pensamento; a maioria com base na doutrina marxista, mas fundamentada no estudo da História, da Antropologia, da Economia, das Ciências Sociais em geral. Evidentemente que essa geração obteve grande vantagem, os economistas diriam vantagem comparativa, de ter feito na universidade múltiplos cursos de pós-graduação na vida, na prática, em todas essas esferas de atividades. Como você observou, essa geração que entrou na universidade em meados da década de 1970, aprendeu a fazer a luta entendendo as artimanhas das articulações. Você acha que combinou isso com a absorção de uma cultura que influenciou bastante essa geração no movimento estudantil? No final dos anos 60, a cultura advinha dos hippies, de movimentos comportamentais, culturais, artísticos. E sua geração também incorporou temas novos. Acha que foi um dado positivo? Eu acho que, do ponto de vista comportamental, a mudança foi importante. Foi feita nos anos 1960.
A tática foi firmada na política de forças amplas para isolar e derrotar o regime ditatorial. Eu acho que essa é a chave da nossa geração do movimento estudantil.
plas forças políticas, sociais, intelectuais, baseada na redemocratização, na luta por uma Constituinte e pela anistia ampla, geral e irrestrita. Eu acho que isso é que permitiu ao movimento estudantil exercer o seu papel. Ele arregimentou, dentro da própria juventude e na população em geral, esse caminho que não abandonou a perspectiva revolucionária, transformadora. Mas isso ficou no terreno da estratégia, que nos anos 60 não era uma coisa clara. A tática foi firmada na política de forças amplas para isolar e derrotar o regime ditatorial. Eu acho que essa é a chave. E quanto à forma de agir e aos métodos do movimento estudantil que derivaram dessas mudanças? O movimento estudantil era mais fechado entre 1973, 74 e 75. E muito ativo e combatente, destacadamente, a partir de 76, 77 e até 78, quando houve as greves operárias do ABC paulista. Em 79, com a União Nacional dos Estudantes, se reconstruiu a primeira grande organização de massa que agia com mais liberdade, no combate político contra a ditadura. Então o movimento estudantil foi o grande porta-voz de uma sociedade muito amordaçada e reprimida. Você concorda que foram incorporados novos métodos de fazer movimento estudantil, saindo de uma estrutura mais fechada em cúpulas? Eu acho que o “cupulismo” não era um defeito nos anos 60, era uma consequência; como você
Nós realizamos nos anos 70 aquilo que nos anos 60
realizava um congresso estudantil clandestino?
já estava feito. Eu acho que, nos anos 70, a mudança
Nos anos 70, nada era clandestino. Realizamos os
foi essencialmente na política. O comportamento era
encontros nacionais dos estudantes (ENEs), um na
92 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
USP, outro na PUC (ambos em São Paulo), outro em
viveu em Alagoas. O Graciliano Ramos... Alagoas
as lideranças estudantis em Alagoas e no Nordeste.
Belo Horizonte (MG). Os congressos eram cúmpli-
sempre teve uma presença política muito gran-
Na música, também, a Bahia é protagonista
ces, eram nos centros decisórios do país. Você pode
de. Era uma periferia econômica, mas com uma
como principal movimento estético e renovador
entender como “cupulismo” uma coisa que é feita
tradição política e cultural muito grande.
da música popular brasileira nos anos 60 e 70,
na clandestinidade, tem que ser organizada por
Essa vanguarda do movimento estudantil era
com gente que está presente, como Gilberto Gil,
poucas pessoas. Eu acho que o método era conse-
uma vanguarda com algum espírito cosmopolita ou
Caetano Veloso, João Gilberto, Gal Costa, Maria
quência da concepção da luta, da tática empregada.
internacionalista, como alguns possam entender, e
Bethânia, José Carlos Capinam e tantos outros.
Quando os operários do ABC retomaram a ofensiva
de grande preocupação nacional; lia jornais diários
Isso além dos pernambucanos, que também têm
nas lutas por seus direitos, deram esse destaque de
do Rio, de São Paulo, tinha mestrados na literatura
a sua experiência, como Gilberto Freire, Ariano
forma aberta. Eu acho que essa é a grande diferença.
marxista, tinha uma leitura importante, clássica, da
Suassuna, o Movimento Armorial; o Rio Grande
literatura brasileira. Eu lembro que nós tínhamos
do Norte, com a presença agigantada de Câmara
Em Alagoas, você entrou na universi-
uma das representações mais organizadas do jornal
Cascudo; o Ceará, com grande tradição literária, foi
dade em 75, conheceu (o hoje político
‘Movimento’, que era o principal jornal da resistên-
o primeiro estado a libertar os escravos, tem a figura
alagoano) Renan Calheiros, seu colega
cia democrática daquele período. Isso dava uma
do Francisco Nascimento, o Dragão do Mar, que fez
de curso; Alagoas era, naquela época,
visão muito ampla das coisas e uma preocupação
a greve para não transportar os escravos nos navios
um centro importante do movimento
muito grande com o rumo da política, da economia,
para Fortaleza, a literatura brasileira praticamente
estudantil, mas muito afastado dos prin-
e ao mesmo tempo nos facilitava a intervenção, a ex-
foi fundada por José de Alencar. O Nordeste tem
cipais centros políticos brasileiros e dos
posição das ideias e do pensamento em ambiente
essa contribuição – e acho que isso influenciava,
centros que tinham grandes quantida-
nacional do movimento estudantil, que projetava
dava a base para a juventude.
des de estudantes universitários. O fato de você ter vindo desse estado periférico lhe ajudou a levar para as lideranças do movimento estudantil uma vivência mais real e geral do ‘Brasil brasileiro’, digamos assim? Você pode falar por hábito no Nordeste, em geral, e Alagoas, em particular, como periferia. Mas, do ponto de vista político-cultural, o Nordeste nunca foi periferia. Sempre foi um centro de produção intelectual e política muito importante. Mais da metade dos chefes de gabinete do império foram do Nordeste, principalmente da Bahia e de Pernambuco. Os dois primeiros presidentes da República eram nordestinos e alagoanos. O chefe do primeiro movimento, que foi Deodoro da Fonseca, e o que depois se chamou de “consolidador da República”, Floriano Peixoto, eram alagoanos. Desse período, a presença de Alagoas era intelectual, com Guimarães Passos; era política, com Deodoro, com Floriano Peixoto, com Jorge de Lima, com José Lins do Rego, que
Aldo Rebelo durante encontro de estudantes
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
93
Você pode falar por hábito no Nordeste, em geral, e Alagoas, em particular, como periferia. Mas, do ponto de vista político-cultural, o Nordeste nunca foi periferia.
Até então secretário-geral da UNE, Aldo sai eleito presidente da entidade do Congresso de Sorocaba, em 1980
94 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Você acha que uma das funções permanentes
Você falou uma palavra-chave, “horizonte”;
Retomando um assunto mais ligado aos
do movimento estudantil é o da formação
vamos falar um pouco dos horizontes fora
bastidores do movimento estudantil:
regular de lideranças? Isso ficou revitalizado
do nosso país. A geração da reconstrução da
as articulações. Quando foi organizado
na atual geração ou você acha que tende a
UNE, em 1979, teve contato com lideranças
o congresso de reconstrução da UNE,
diminuir de importância?
estudantis de outros países, foi visitada por
em Salvador (1979), houve a discussão
Eu não tenho muita informação para falar da
lideranças de fora do Brasil, fez algumas via-
na sua corrente, a Viração, sobre a pos-
experiência atual. Eu sei que, nos anos 1970, o
gens para fora. Você integrou a primeira dele-
sibilidade de algumas candidaturas.
movimento estudantil recrutava gente dentro da
gação de brasileiros que foi se solidarizar aos
Havia a polêmica: se o congresso teria
universidade, com o que havia de mais avançado,
palestinos, esteve com [o líder da Autoridade
eleições ou se haveria eleições depois.
em todos os cursos, aqueles mais generosos, mais
Palestina Yasser] Arafat, esteve no Panamá,
A Viração estava se dividindo em duas
preocupados com o país. E acho que o movimento
em Cuba, enfim, teve grandes experiências. O
grandes opiniões em torno de alguns
estudantil talvez seja uma das mais importantes
movimento estudantil internacional também
temas, entre esse. Havia a Viração, muito
disciplinas da universidade.
gestou grandes líderes. Hoje, temos uma
forte em quase todo o Brasil, e havia a
articulação que é muito distante do que já
Caminhando, que era muito forte em
O movimento estudantil seria uma espécie
tivemos internacionalmente. Deram um “che-
São Paulo, com bastante força também
de escola entrelaçada com a outra escola?
ga pra lá” na juventude, como você colocou
no Rio e no Paraná. O Congresso da UNE,
Eu acho que o movimento estudantil permite
agora, em plano internacional? Também tem
em maio, votou pelas eleições diretas
uma experiência que universaliza o conhecimento.
a ver com apoios, apoios de Estados, apoios de
somente em outubro, e o baiano Ruy
Você estuda Medicina, Engenharia, Arquitetura
governos. Como avalia essa perspectiva? Você
Cézar se legitimou como uma grande
ou Pedagogia: o movimento estudantil permite
acha que ainda há papel para uma articulação
liderança, porque dirigiu o movimento
a percepção na sua disciplina, na sua atividade
internacional juvenil?
estudantil. Essa disputa interna impli-
específica, do que há de universal e geral naquilo
Tinham sido confundidas as lutas da juventude
cou numa divisão e numa derrota para a
que você estuda, naquilo que você pretende fazer.
com a dos países socialistas, que era uma luta an-
Viração. Qual o seu olhar, como alguém
Acho que uma ofensiva ideológica e conserva-
ti-imperialista; e o movimento estudantil deles era
que esteve no centro das disputas, deste
dora contra a política terminou por afastar uma
muito mais uma escola de formação de quadros
processo todo?
parte da juventude desse movimento estudantil, o
dirigentes, dada a natureza dos regimes e dos
Eu acho que o candidato de Viração, Valdélio
que a empobrece, a torna mais limitada. Vai sofrer
governos nos quais atuavam esses movimentos.
Silva, era uma grande liderança para dentro da
muito mais na vida porque não teve as experiên-
Claro que não vou discutir a legitimidade desses
tendência e o Ruy tornou-se uma grande lideran-
cias do que alguém já chamou “universidade do
movimentos. É preciso entender que havia um
ça para fora. Quando prevaleceu a tese da disputa
asfalto”, “universidade das ruas”,“universidade
papel que era diferente do nosso. O nosso era muito
na eleição direta, naturalmente isso sepultou a
das assembleias”.
mais um movimento de contestação ao regime
candidatura do Valdélio e firmou a candidatura
Eu era estudante de Direito, mas participava do
existente. Aqueles eram muito mais um movimento
de Ruy. A eleição no congresso era eleição do
Encontro Científico dos Estudantes de Medicina
de legitimação, sem discutir o conteúdo e o mérito
Valdélio. A eleição em urna, aberta e direta, era
(Ecem). Cheguei a participar do pré-Ecem, ler textos
desses regimes.
a eleição de Ruy.
que os congressistas do Ecem estudavam, lembro até com detalhe do texto de um grande médico paulista chamado Samuel Pessoa, participei de encontros de estudantes de Agronomia, de Engenharia, de Pedagogia, e isso, evidentemente, ampliou os meus horizontes e a minha visão como estudante e como cidadão. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
95
Aldo como ministro dos Esportes, cargo que ocupou entre 2011 e 2015
Aldo Rebelo foi presidente da Câmara dos Deputados entre 2005 e 2007
96 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
Você imaginava que seria candidato à presi-
A chapa era Viração?
dência da UNE? Você foi secretário-geral da
A nossa chapa era a Mutirão. Tinha na
entidade, na primeira diretoria, com Ruy pre-
abertura um verso do Fernando Brant. Eu
sidente. Depois você se elegeu presidente da
não pensava o que podia ser. Nós temos
UNE. Você pensava em voltar para Alagoas,
em Alagoas muitas lideranças importantes
talvez ser advogado ou militar no jornalismo,
do movimento estudantil. Tinha o Egberto
ou você estava maravilhado com a hipótese
Dicianelli, o Renan Calheiros, Enio Lins, o
de ser uma liderança nacional?
Sérgio Barroso, Maurício Macedo, Taís Nor-
Não imaginei nada... Eu participava do movimen-
mandi; eram muitas lideranças, com muita
to estudantil porque achava que era uma forma de
capacidade, todas elas respeitadas. Quando
participar do movimento de jornalistas também. Em
meu nome foi indicado para integrar a chapa,
1977, 78, fui delegado do congresso de jornalistas
porque tinha que ser composta nacionalmen-
pela liberdade de imprensa, em São Paulo, dele-
te, teve que se negociar uma composição
gado pelo Sindicato dos Jornalistas de Alagoas. Eu
com outras forças. Primeiro, saber se cabia
achava que era a minha contribuição: a luta pela
ou não um nome de Alagoas. E, segundo,
democracia, a luta pelos direitos da juventude e do
em Alagoas havia disponibilidade de muitos
povo. Tudo o mais era consequência. Eu me aplicava,
nomes. Quando o meu foi escolhido, eu entrei
lembro que preparei, para o Congresso de Salvador,
na chapa e houve uma negociação em Belo
a proposta de estatuto, com o companheiro Carlos
Horizonte, se eu deveria assumir a direção
Pock. Procuramos um estatuto para tomar como
da região Nordeste ou a secretaria-geral.
base de uma proposta, e o Pock trouxe o estatuto
Eu assumi a secretaria-geral. Nós tínhamos
da Internacional Socialista, feito pelo Karl Marx.
uniões estaduais de estudantes, diretórios
Eu ajudei a escrever a carta-programa da primeira
centrais, lideranças importantes pelo Brasil
chapa da eleição direta para a UNE. Eu escrevi alguns
inteiro. Javier Alfaya, Luis Fernandes, Oto
capítulos, Oto Alonso escreveu outro capítulo e o
Alonso e outros nomes também poderiam
Luis Fernandes mais um.
encabeçar a chapa.
O movimento estudantil talvez seja uma das mais importantes disciplinas da universidade. Ele permite uma experiência que universaliza o conhecimento.
Aldo no período em que foi vereador de São Paulo, entre 1988 e 1992
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
97
Quais foram as correntes políticas que integraram a primeira e a segunda diretoria da UNE após a reconstrução da entidade? A primeira diretoria da UNE foi uma aliança da corrente Viração, ligada ao PCdoB, embora a maioria dos integrantes da Viração que foi para a chapa não estivesse organizada no PCdoB. Lembro-me que a fração do PCdoB era menos da metade dos integrantes da Viração. Havia essa corrente da USP, que era remanescente da Ação Popular Refazendo.
Eu participava do movimento estudantil porque achava que era uma forma de participar do movimento de jornalista também. Achava que era a minha contribuição. Tudo o mais era consequência.
O MR-8 integrava a chapa? O MR-8 integrou uma chapa com o PCB, chamada Unidade. Na segunda gestão é que o MR-8 aliou-se ao PCdoB e formou a chapa que era a Viração. A geração das décadas de 1970, 1980, de superação da ditadura militar, está presente nos movimentos sociais, hoje uma das marcas da luta de classes no país. Depois veio a década de 1990, quando vivemos o auge da ideologia neoliberal e das consequências culturais do neoliberalismo, através das artes, cinema, comportamento, da indução ao consumo supérfluo ou de luxo, e a juventude classe média, que é muito forte na universidade, parece que ficou muito influenciada por isso também. Então, a década de 1990 foi uma década de derrota da resistência? O começo dos anos 90 foi de regressão da supremacia, de vitórias das correntes conservadoras, de obscurantistas, em prejuízo das correntes transformadoras e libertárias; e naturalmente isso se abate nos efeitos políticos, ideológicos, culturais, comportamentais, psicológicos, se abate sobre a juventude.
98 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
O movimento conservador empurrou a corrente da esquerda para o centro, o centro para a direita. Isso aconteceu no mundo inteiro. Daí a necessidade de termos uma atitude de resistência para impedir o aniquilamento do pensamento avançado, do pensamento progressista. Acho que, pelo menos hoje [a entrevista foi concedida em 2006], nós temos a vantagem de essa ofensiva conservadora estar sob questão submetida à crítica. Ela está perto de ser derrotada, de ser desmascarada ou superada nos seus defeitos perversos, do ponto de vista democrático, social. Mas também acho que, pelo menos, ela está sob contestação. É evidente na América do Sul. Basta examinar a situação do Brasil, da Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela, Peru, para chegarmos a essa conclusão. Para concluir, você tem sido um dos expoentes da política nacional e foi presidente da UNE. Quando você está à frente de situações complicadas, se lembra do movimento estudantil? A minha posição e as minhas atitudes estão todas condicionadas pelas minhas experiências do movimento estudantil. Era muito mais largo de horizontes de pensamentos, de pendências, de debates. Havia muitas pessoas preparadas, capazes para o exercício da discussão, de debates, polêmicas. A Câmara guarda uma relação com esse universo. No movimento estudantil, nós tínhamos gente de todo o Brasil; do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Havia todos os estados no movimento estudantil. E vejo no Congresso os mesmos regionalismos, as mesmas preocupações gerais, a mesma habilidade nas manobras regimentais. Então, isso facilita a vida e o exercício da política.
Aldo ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ALDO REBELO
99
F
rancisco Javier Ulpiano Alfaya Rodrigues nasceu em Redondela, Galícia, Espanha, em 31 de julho de 1956. Aos 7 anos mudou-se com a
família para Salvador, onde o pai, Fernando Alfaya Bula, trabalhou em fábrica. A mãe, Maria Emma Rodrigues Guerra, era dona de casa. Arquiteto de formação e fotógrafo, teve
1974, 1975 e 1976 como “anos-chave” na decisão de ser militante político, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nessa época se ligou ao PCdoB, partido pelo qual disputou eleições e ocupou postos em casas legislativas da Bahia. Javier participou da reconstrução da UNE, em 1979, da gestão eleita em seguida, como diretor cultural, e foi presidente da entidade entre 1981 e 82, quando viu uma grande mobilização da sociedade brasileira em sua defesa. Isto porque o regime militar havia aberto um inquérito para caçar seu visto permanente. Acusação: ser presidente da UNE. A campanha “Javier é brasileiro” cresceu pelo Brasil e impediu sua expulsão. Anos depois, ele conseguiu ter o pedido de naturalização autorizado. (Entrevista concedida em 2004 à Ana Paula Goulart e Angélica Muller, para o projeto Memórias do Movimento Estudantil)
Javier Alfaya, nascido na Espanha, correu o risco de ser expulso pelo regime militar
102 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Como foi sua trajetória no movimento
mas acabaram, depois, tendo divergências. A Ca-
Na Bahia, havia Combate, Liberdade
estudantil?
minhando tinha sua base principal em São Paulo,
de Luta, Viração, Nova Ação, havia o PCB,
Eu participei da greve no final de 1975 e iní-
e a Viração era muito forte no restante do Brasil.
que tinha muita força em plano nacional,
cio de 1976. Nas férias, nós ficamos matutando:
Caminhando tinha também ramificações no Rio
a partir de São Paulo, basicamente, e do
como é que a gente dá continuidade a essa ex-
de Janeiro e em outros lugares. Estas eram duas
Rio também. O PCB, que tinha muita força
clusão com a greve contra o jubilamento? Havia
grandes correntes do PCdoB, mas havia outras
na corrente histórica, já vinha de antes, de
duas vertentes básicas: a participação no movi-
tantas correntes. Uma outra corrente, com muita
1968. Na Bahia a corrente se chamou San-
mento estudantil, especificamente, disputando
força também na época clandestina, se chamava
gue Novo. Havia também, é claro, correntes
diretorias do Diretório Acadêmico e do Diretório
AP, que era APML: Ação Popular Marxista Leni-
mais conservadoras, mas que eram mino-
Central Estudantil – o que eu acabei fazendo – e
nista. Chamava-se, em Salvador, se eu não me
ritárias. Eu me lembro que, no Congresso
a vertente da intervenção artística e cultural.
engano, Nova Ação. E havia também as correntes
da reconstrução da UNE, a única direita
No curso de Arquitetura criamos um grupo de
trotskistas todas, como a Liberdade e Luta, e ou-
presente era gaúcha. Eram getulistas e se
teatro, Sonhos e Concretos. Foram três textos,
tras. As correntes estudantis ganhavam nomes
apresentavam como os mais conservadores.
três montagens com diversas apresentações no
diversos, mas a matriz do pensamento político
Eles mesmos se colocavam numa posição
pátio da Faculdade de Arquitetura, no pátio da
era trotskista. Tinha a Quarta Internacional, como
hostil à esquerda. Então, mesmo que eles
Escola de Teatro. No Instituto dos Arquitetos não
nós ou eles mesmos se autodenominavam. As
não fossem propriamente de direita, e não
foi feita, porque a Polícia Federal chegou e disse
correntes estudantis ganhavam denominações
eram, no universo sectário que predominava
que se a gente fizesse saía todo mundo preso.
diversas, em função de conteúdos políticos pro-
no movimento estudantil, se não eram um
Dentro da Universidade, mesmo com a polícia
gramados com estratégias diferenciadas.
de nós, eram contra nós.
não querendo, a gente fazia, e fizemos quantas vezes quisemos. Era uma característica daquela época uma boa articulação entre militância política especificamente estudantil, convencional, e uma convenção cultural artística de agitação política muito interessante. Que correntes políticas e ideológicas estavam presentes no movimento estudantil nesse momento? Com muita força na UFBA, e em nível nacional, tinha o PCdoB, ao qual eu me liguei já nessa época. O PCdoB dirigia uma corrente que foi fundamental na reconstrução do movimento estudantil: a Viração. Esse nome é definitivo e marcante na história do movimento universitário. E havia uma outra corrente, a Caminhando, ligada também ao PCdoB. Por razões de segurança, em função de proteger-se contra perseguição da polícia, o partido armou, clandestinamente, duas estruturas, que acabaram dirigindo duas correntes de movimento estudantil, que se articulavam,
Em 1979, estudantes reconstroem a UNE depois da ditadura militar
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA 103
Você foi presidente do Diretório Acadê-
Da Bahia, a impressão que a gente tinha é
da UNE na legalidade. Ele era o presidente da
mico da UFBA em 1977-78 e secretário-
que eram muito centrados numa dinâmica
UNE na época do golpe militar e falou em nome
-geral em 1978-79. Quais as principais
da USP, muito de São Paulo e nós tínhamos
dos ex-presidentes. Levantamos a fotografia de
reivindicações dos estudantes da UFBA
restrições a um processo que não levasse
Honestino Guimarães [presidente da UNE entre
naquele momento?
em conta a média nacional ou, pelo menos,
1971 e 1973, preso e executado pela ditadura].
Todas as plataformas de disputa do DCE
outras realidades que não fossem a paulis-
A partir de uma foto pequenininha, 3x4, de uma
eram muito específicas, contradizendo essa
tana. Achávamos que seria um movimento
carteira de identidade que conseguimos com
leitura conservadora de que o movimento
estudantil de minorias, meramente da van-
familiares dele, nós fizemos um grande retrato
estudantil se dispersou, em determinados
guarda. Dos 3º e 4º ENE, ao que me consta,
de Honestino. O Congresso da Reconstrução da
momentos, porque ele não abraçava as rei-
nós do PCdoB participamos, e com muita
UNE, no ato de inauguração, tinha 11 mil pessoas.
vindicações universitárias propriamente ditas
força. Mandamos gente do Brasil inteiro,
[O ator e diretor teatral] José Celso Martinez
ou acadêmicas: eu afirmo, categoricamen-
delegações com centenas de pessoas. Mar-
tinha voltado de Moçambique e, junto com
te, que isto é falso. Dizer que o movimento
camos muita presença.
outro companheiro, apresentou filmes feitos
estudantil era apenas um biombo para as
Esses ENEs acabaram resultando numa
na África, fizeram uma intervenção teatral
organizações clandestinas se manifestarem
proposta de criação da Comissão pró-UNE,
importantíssima, de caráter bem anti-impe-
é falso. Era movimento estudantil mesmo,
que era formada por quatro ou cinco DCEs,
rialista, antiestadunidense, já falando em
para valer. Na nossa plataforma do DCE tinha
destacadamente pelo DCE da Federal da
revolução cultural.
desde reestruturação dos currículos de cada
Bahia, o DCE da USP, o DCE da PUC-SP, o da
É bom frisar que nós vivíamos uma época
curso, até a melhoria das condições de vida nas
UFRJ e, não me recordo com muita precisão,
em que conseguíamos, para felicidade do mo-
residências estudantis, melhoria da qualidade
mas acho que também o DCE da Federal de
vimento estudantil, da esquerda brasileira,
da alimentação nos restaurantes universitá-
Pernambuco. Dessa comissão pró-UNE, aí
absorver lições que vinham de 1968, do mo-
rios. Havia também a luta por mais verbas
sim, eu participei com muita força.
vimento extrapartidário militante.Depois da
para aplicar em laboratórios e bibliotecas, na
Em Salvador, nós fizemos muitas ativi-
anistia, em 1979, com a chegada de muitos
compra de mais livros, de mais equipamentos,
dades, preparamos a cidade para receber
exilados que vinham de outras experiências,
de mais instrumentos; apoio à luta de fun-
o Congresso de Reconstrução. Foi lindís-
questões como a preocupação ambientalista e
cionários e professores, que naquela época
simo, porque nós não tínhamos dinheiro
a luta pela igualdade entre homem e mulher
era muito discreta, praticamente inexistente.
para pagar hotel e tínhamos que receber
se incorporaram ao ideário da esquerda bra-
Portanto, essa luta chamada específica era
milhares de pessoas. Hospedamos nas depen-
sileira de uma forma muito mais afirmativa
muito forte, e se articulava à luta de caráter
dências das universidades com muita restrição,
do que era antes. Eu me lembro que, por
político mais geral. Na minha chapa para o
porque os diretores, para não falar dos reitores,
exemplo, não havia movimento ambientalista
DCE, nós já reivindicávamos, por exemplo, a
não queriam emprestar. E tivemos de colocar, se
expressivo no Brasil. Até que, no seio das
convocação da Assembleia Constituinte, que
eu não me engano, mais de 2 mil, 3 mil pessoas
universidades e fora delas, mas com pesso-
só veio a acontecer em 1987-1988.
em apartamentos, em residências. Nós fizemos
as muito ligadas ao movimento estudantil,
campanha pela imprensa e as pessoas ligavam
foram criados os Comitês de Defesa da Ama-
No processo de reconstrução da UNE, vo-
para a central oferecendo suas casas. O processo
zônia. O que é hoje o movimento ambien-
cês participaram, em 1976, do ‘I Encon-
foi acompanhado com muito interesse por parla-
talista brasileiro tem sua raiz no movimento
tro Nacional de Estudantes (ENE)’, onde
mentares da oposição, pelo MDB da época.
universitário e em pessoas que, tendo saído
começou o debate sobre a reconstrução?
Eu me lembro da presença do Sindicato dos
do movimento estudantil e se interessado por
Não. Foram quatro edições do ENE, sempre
Trabalhadores Rurais de São Félix do Araguaia,
fazer arquitetura, biologia, acabaram, depois
por definição política. No primeiro e segundo,
que falou em nome dos camponeses no con-
da universidade, se tornando a geração de
nós da Viração não reconhecíamos muito.
gresso. José Serra falou como último presidente
ambientalistas do Brasil.
104 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Dizer que o movimento estudantil era apenas um biombo para as organizações clandestinas se manifestarem é falso. Era movimento estudantil mesmo, para valer.
Manifestação estudantil contra a ditadura em Salvador, 1979
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA 105
Quais foram as principais dificuldades enfrentadas pelo movimento estudantil no processo de reconstrução da UNE? A ditadura, a repressão política e tudo que isso implica. Dificuldade financeira. A gente não tinha nenhuma fonte de financiamento, nenhuma mesmo. A UNE tem hoje as carteirinhas. Aliás, quando eu fui presidente da UNE que se criou a carteirinha da UNE. A UNE não conseguia firmar convênio com ninguém, porque não existia legalmente. Então, de onde tirar dinheiro para o movimento estudantil? Era um problema. Havia um clima de desconfiança, de medo em relação aos estudantes, criado pela ditadura. Quem queria ajudar não ajudava, ou não ajudava muito, com medo da repressão e das consequências. Isso era uma dificuldade. A ditadura era o grande obstáculo e, portanto, o grande móvel para atiçar um sentido à vida que extrapolasse o mero objetivo da formatura, de entrar na carreira profissional, sobreviver profissionalmente, essas coisas.
Esses ENEs [Encontros Nacionais de Estudantes] acabaram resultando numa proposta de criação da Comissão pró-UNE, que era formada por quatro ou cinco DCEs.
Estudantes se reunem pela reconstrução da UNE, na Universidade Federal da Bahia (UFBA)
106 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Esse momento é o da chamada “disten-
Havia o medo, mas era crescente a cada
Como foi a indicação do seu nome para a dire-
são política”. Em que medida você acha
ano, a cada semana, a cada dia, a vontade
toria da UNE na gestão de Aldo Rebelo (1980)?
que a reconstrução da UNE pode estar
de superar o medo. Foi, portanto, uma coi-
Eu esgotava meu mandato de presidente de
relacionada com as mudanças imple-
sa que marcou e educou gerações inteiras,
DCE e era a maior liderança do DCE da UFBA, um
mentadas no governo Geisel?
que passaram pela universidade ou pelo
dos quatro principais centros do movimento estu-
Evidentemente que a reconstrução da UNE
movimento secundarista, tendo ido para
dantil brasileiro. Na Bahia, não havia outra pessoa
teria sido impossível em 1970, 1971, porque
a universidade ou não. A gente sempre
com a mesma projeção, da minha corrente política,
ali estava todo mundo correndo da polícia, da
esquece do movimento secundarista, que
e acabei sendo escolhido para a diretoria da UNE.
perseguição, etc. No momento da reconstrução
se reconstruiu nacionalmente logo depois
Eu já tinha muita afinidade com a área de cultura,
já havia um abrandamento do regime, mas o
da reconstrução da UNE. No Congresso de
já tinha feito teatro, já tinha organizado mostras de
regime – é bom lembrar – matou até 1976.
Reconstrução da UNE, houve uma reunião
som, festas da Arquitetura, e fui para a diretoria de
Depois, houve mortes em manifestações de
de secundaristas e, logo depois, houve o
Cultura da UNE. Eu pedi, eu queria isso. Marquei
rua, mas gente que morreu pela ação direta da
processo pró-reconstrução da UBES, União
minha vida até hoje como parlamentar [quatro
repressão política foi até 1976, se não me falha
Brasileira de Estudantes Secundaristas. O
vezes vereador em Salvador e deputado estadual],
a memória. [O jornalista] Wladimir Herzog foi
reconhecimento institucional levava a uma
com interesse pela arte e pela cultura, entre outros
assassinado em 1975. Em 1979 já estava haven-
dificuldade tremenda de conseguir recursos
temas. E a raiz disso está lá no movimento estudan-
do muito desgaste da ditadura, mas ela só tem
materiais, a perseguição política levava ao
til. A diretoria de Cultura, junto com Aldo, lançou
fim em 1985, com o Colégio Eleitoral. De 1979
medo, outras possibilidades de apoio ma-
a revista Movimento, que ainda hoje é a revista
a 1985 são seis anos. Havia, portanto, ainda
terial não existiam. Mas, bem ou mal, nós
da UNE. Aliás, é preciso retificar a numeração da
muita gente precisando responder inquérito. Eu
conseguimos. Com os próprios estudantes
revista porque ela não leva em conta um número
fui punido com 15 dias de suspensão na UFBA
dando ajuda financeira, avançando sobre a
especial que houve, na retomada dos números
porque organizei uma festa pró-reconstrução
repressão, ampliando espaços democráticos,
anteriores ao golpe de 1964. Nós relançamos a
da UNE na Faculdade de Arquitetura. E havia
nos articulando com setores progressistas
revista no congresso em Cabo Frio (RJ), que acabou
as perseguições que poderiam ser movidas
das igrejas, católica e não-católicas.
me elegendo presidente da UNE.
E o movimento sindicalista?
Como era a atuação cultural da UNE
no terreno judicial, policial propriamente dito. Quando eu fui presidente da UNE, sofri um inquérito de expulsão do país, a partir da lei
O movimento estudantil era tido por setores
de estrangeiros, implantada pela ditadura. Isso
do movimento sindical como irresponsável,
Da UNE propriamente dita, zero, praticamente.
foi em 1981, 1982. Ainda em 1979, de fato,
esquerdista, juvenil, pueril, com pouca conse-
Junto com os DCEs, organizava mostras de som, fes-
havia uma distensão, como eles chamavam,
quência. Mas, na verdade, o movimento estu-
tivais de música, mostras, apresentações de teatro,
mas a gente, que queria rapidez nesse processo,
dantil era o grande aríete, a grande maçaneta
etc. Era muito mais a UNE ajudando iniciativas de
resolveu acelerar essa distensão. A gente não
que dava uma porrada mesmo, que levantava
baixo do que propriamente uma política da UNE.
usava o termo “superação” nem “distensão”,
as bandeiras políticas. O lema do movimento
A revista foi uma tentativa de provocar isso e eu
mas a expressão “derrubar a ditadura”. A gente
sindical, mesmo o do ABC paulista, era lutar
organizei diretamente – posso dizer isso sem cair no
queria derrubar, não queira superar a ditadura,
pelos direitos dos trabalhadores. O “abaixo a
personalismo. Houve uma tentativa – que é preciso
não queria que houvesse um processo de au-
ditadura” aparecia no meio de assembleias,
também registrar na história – de dois encontros para
torregulação do regime, que se transformaria
mas não era a bandeira que a liderança do mo-
debater política cultural do movimento estudantil.
por conta própria de ditadura em democracia
vimento sindical levantava. Quem ia adiante,
Eu organizei os dois, um em São Paulo, no Teatro
limitada, e foi o que de fato aconteceu. Quería-
quem defendia a Constituinte, o fim das leis
do Centro Acadêmico 11 de Agosto, na Escola de
mos a derrubada da ditadura por um movimento
de exceção, o fim da ditadura militar, era o
Direito da USP, em 1980. Depois fizemos o Segundo
de massas, por manifestação de rua, pressão.
movimento estudantil.
Encontro de Cultura da UNE, em Curitiba (PR).
nessa época?
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA 107
A gente não usava o termo ‘distensão’, mas a expressão ‘derrubar a ditadura’. A gente não queria um processo de autorregulação do regime. Queríamos a derrubada da ditadura por um movimento de massas. Congresso de Reconstrução da UNE, em Salvador
Você já mencionou o congresso de Cabo
preso, e nos permitisse a realização do congresso.
Frio, o 33º da UNE, que te elegeu presidente
Que estado era esse? O estado do Rio de Janeiro,
O congresso foi feito num estádio de futebol.
da entidade. Como que foi esse encontro?
com movimento estudantil forte. Tinha o governo
A arquibancada era linear e não curva, como nos
Já é uma coisa curiosa um congresso em Cabo
de Chagas Freitas, do PMDB. Embora o chaguismo
ginásios, ambientes que mais usamos. Eu acho
Frio. Não sei se tem universidade lá hoje, mas, na
fosse ligado também à ditadura, para todos os
muito engraçado porque a gente ficava no gra-
época, certamente não tinha. E Cabo Frio era e é
efeitos era uma legenda oposicionista. A gente
mado, aí as pessoas se inscreviam, vinham até o
conhecido pelos balneários, pela praia, pelo sol,
foi pedir apoio ao governador Chagas Freitas. E
gramado, falavam, voltavam para a arquibancada.
muito mais pelo não-compromisso com coisas
conseguimos. Só que, por uma série de circunstân-
Se não me engano, quatro chapas disputaram.
pesadas, com a militância política, do que outra
cias – eu acho que o chaguismo não quis dar uma
Nesse congresso foi criado um novo método de
coisa. A gente resolveu fazer um congresso em
mostra de confronto com a ditadura militar –, não
eleição, proporcional. As chapas concorreram, se
algum lugar que desse um mínimo de infraes-
dava para fazer na capital. Aí acabamos em Cabo
contou o número de votos e aquelas que quise-
trutura. Fomos atrás de um espaço mínimo de
Frio, no estádio de futebol. Fomos hospedados
ram se articular se articularam e compuseram a
representatividade do movimento estudantil e
em péssimas condições pelos colégios de Cabo
diretoria da UNE.
onde houvesse uma presença democrática na
Frio e no próprio estádio. Mas lá se fez um bom
Foi interessante porque a nossa chapa,
cidade ou no estado, que nos permitisse uma
congresso, bastante representativo, onde eu fui
encabeçada pelo PCdoB, cujo presidente era
retaguarda material e política, para ninguém ser
eleito presidente da UNE.
eu, se confrontou com outras três, sendo que a
108 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Como foi a sua eleição?
segunda mais votada era a mesma chapa nossa,
da Educação não nos recebia. Eventualmente, em
meio da defesa contra a expulsão do presidente do
só invertendo a cabeça: em vez de Javier ser o
determinadas circunstâncias, alguém da Sesup
Brasil. O pretexto da ditadura era o fato de eu ter
presidente, o presidente era Luís Falcão, que
(Secretaria de Ensino Superior) ia até uma greve
nascido fora do Brasil e a lei proibir a participação
era Lula de Pernambuco, e eu vice. Era uma
ou negociava com a UNE informalmente, mas
de estrangeiros na vida política brasileira.
chapa contra a outra. Nós escrevemos nossa
ministro da ditadura nunca recebeu a UNE. Eu fui
Curioso é que o ministro da Justiça, Ibrahim
chapa, depois eles escreveram a deles, que era
diretor de cultura e presidente da UNE e nunca fui
Abi-Ackel, era ele mesmo filho de família de
a mesma, invertendo a cabeça. Havia os slogans
recebido por nenhum titular.
imigrantes e, logo depois de alguns anos, ele e
muito engraçados porque, quando a gente
o filho foram desmascarados como personalida-
queria ou algum adversário queria ridicularizar
Com relação à política nacional em geral,
des que, no Ministério da Justiça, vendiam vistos
a chapa, gritava assim: “Fulano é muito forte
como era a atuação da UNE?
de permanência no Brasil para estrangeiros. Eles
[fisicamente], coloca ele no esporte”. Havia uma
Houve o Seminário da Reforma Universitária.
tinham um circuito mafioso de venda de vistos de
coisa de bom humor sempre, nas palavras de
Houve uma grande luta nas universidades federais
ordem, nas gozações. A gente gritou que Lula era
contra a portaria do general Figueiredo, o ditador
Naquela época, abriu-se um inquérito adminis-
muito forte, para botar ele no esporte. E o pessoal
na época, que revogou a portaria que unificava
trativo para caçar a minha condição de estrangeiro
revidava: “Javier é muito forte, bota ele no esporte”.
uma política de restaurantes universitários. Nós
permanente. Eu tinha a famosa carteira modelo
Então houve a votação, duas chapas quiseram se
víamos uma tentativa de implantar cobrança da
azul, modelo 19, de estrangeiro permanente. Eu já
compor, que foi a nossa com a outra. Como nós
alimentação dos restaurantes, que eram gratuitos,
tinha solicitado duas vezes a minha naturalização
ganhamos, o presidente eleito era eu e o vice, se
ou ampliar a cobrança onde já era cobrado, além
e, nas duas vezes, o processo foi interrompido por
assim eles quisessem, Lula Falcão. Ele aceitou, o
da ameaça da implantação do ensino pago. Houve
uma decisão da Polícia Federal, pelos órgãos de
MR-8 aceitou. Então, nós formamos uma diretoria
muita greve que a gente dirigiu em todo Brasil,
informação e pelo SNI. Em dezembro de 1981, já
com PCdoB, MR-8, pessoas não ligadas à militância
grandes movimentações. Foi uma luta nacional
havia chegado até nós a notícia de que era possí-
partidária, gente do PCB e alguns setores ligados
que ganhou projeção, saiu na imprensa. Essa foi
vel a vinda de um inquérito de expulsão e, então,
à AP. Foi uma diretoria eclética, que já expressava,
uma marca da diretoria que eu presidi. Mas a mar-
começou uma grande luta em todo o Brasil, com
de certa maneira, o processo de reorganização
ca maior acho que foi a defesa da própria UNE, por
o slogan “Javier é brasileiro”.
permanência no Brasil.
das correntes da esquerda brasileira. Para formar a diretoria, se usou o método da eleição no congresso e da composição proporcional ao voto que cada uma das chapas tinha. O que você destacaria da sua gestão como presidente da UNE? Minha diretoria foi muito atuante. Havia membros muito atuantes em suas respectivas regiões. Eu me lembro, por exemplo, que a diretoria fez um seminário sobre a reforma universitária no Rio de Janeiro. Isso prova que o nosso interesse pelo tema é antigo. Como era a relação da UNE com o MEC? Era uma relação formal. Nós entregávamos documentos, protocolávamos, mas o Ministério
1979: ano da União Nacional dos Estudantes
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA 109
É muito emocionante, hoje, quando eu vou a diversos estados e sou entrevistado por jornalistas que eram estudantes na época. Encontro pessoas que dizem: “olha, Javier, ali tinha uma pichação que tinha escrito ‘Javier é brasileiro’, contra a expulsão do presidente da UNE”. Em Porto Alegre, até pouco tempo atrás, alguns companheiros diziam: “No centro ainda tem um resto de pichação, se a pessoa forçar a vista ainda vê lá meio esmaecido, ‘Javier é brasileiro’”. Eu me lembro de uma tirinha de desenho publicada num jornal assim: “Pode o presidente da Volks? Pode. Pode o Presidente da Mercedes? Pode. Pode o Presidente da Gessy Lever? Pode. Pode o Presidente da UNE? Não”. Você não foi expulso, mas sofreu algum tipo de cerceamento? Sim, houve cerceamento. À medida que eu fui notificado do inquérito, houve uma reação interessante em todo o Brasil. Foi superbonita a mobilização, organização de advogados, sindicatos, do movimento negro, movimento feminista. Tudo quanto é forma de organização que havia naquela época se manifestou, mandando carta para mim e para a UNE. A limitação que houve foi a seguinte: o inquérito obriga
Neste congresso de Cabo Frio, mudou o método de composição da gestão. Para formar a diretoria, se usou o método da eleição no congresso e da composição proporcional ao voto que cada uma das chapas tinha.
o estrangeiro a permanecer no lugar onde mora e se apresentar semanalmente à Polícia Federal. A UNE tinha a diretoria concentrada em São Paulo, nós funcionávamos basicamente na PUC de São Paulo. Ainda não tínhamos uma sede. Mas, como eu não podia sair com muita facilidade de Salvador, onde tinha residência fixa, decidimos que só sairia em casos excepcionais. Fiquei de março até setembro, outubro. Foi um período constrangedor para mim, mas o que me magoou mais foi o constrangimento sobre os meus pais. Meus pais sofreram muito, porque eles evidentemente jamais imaginavam e não estavam preparados para enfrentar uma situação como essa, de ter 110 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Javier durante Congresso da UNE em Piracicaba, em 1980
Javier em cartaz da “Fica Javier”
o telefone de casa com escuta policial clan-
Como foi o episódio da sua entrevista à TV
ser espanhol de nascimento e tenho a honra de
destina, sempre policiais federais rondando
Itapoan, de Salvador, em que você acusa os
ser brasileiro por opção. Mas havia esse discurso
a casa da minha família, no bairro do Canela,
órgãos de segurança pela morte do Hones-
reacionário e conservador, como se ser estrangeiro
onde morávamos. Eu tinha um fusca e saí de
tino Guimarães?
fosse uma coisa a princípio sob suspeita e negativa,
casa nele com minha mãe e a Polícia Federal
Havia um programa de entrevistas e supostas re-
dita daquele jeito na TV.
ostensivamente colava no fundo do carro, nos
portagens feitas por um jornalista muito polêmico,
Como se fez muita provocação, muita gente
perseguia, nos seguia. Houve esse constrangi-
que vinha do futebol, França Teixeira, e era muito
começou a me falar: “Era bom você dar en-
mento e eu não pude estar presente em certas
conhecido porque ele inovou na linguagem do
trevista, era bom você responder, é bom você
lutas do movimento estudantil.
rádio e TV na Bahia, usando expressões da rua. Ele
esclarecer”. Aí eu fui à entrevista, procurei o
Houve um ato público muito importante em
passou a fazer também TV e, em muitas entrevistas,
diretor da TV à época. Pedi o direito de respon-
Salvador, fruto dessa campanha nacional. Dessa
humilhava o entrevistado, submetia as pessoas a
der no programa, com a mesma menção, com
vez, decidimos que eu não iria, porque era um
vexames no ar. Ele tinha uma expressão que era
o mesmo tamanho, sem o constrangimento
ato na Praça do Campo Grande e eu podia ser
assim: “Câmera nos olhos dele”. A câmera fazia
de “câmera do olhos dele”, e sem cortes, que o
preso, talvez não tivéssemos força para impe-
um close na cara do entrevistado, especialmente
programa não fosse montado. Ele fez alguma
dir que, da prisão na rua, eu já fosse levado
quando ele estava mais constrangido ou chorando.
pergunta sobre a ditadura militar e eu disse
diretamente para um avião. Porque havia um
Quando as pessoas não aceitavam o convite, ele
que nós, do movimento estudantil, não tínha-
inquérito, não um processo judicial, que vai a
ficava desafiando, dizendo que fulano ou fulana
mos uma postura contra os militares, nós não
julgamento, e sim uma decisão administrativa.
não tinha ido ao programa, que tinha que aparecer
somos contra a existência da estrutura militar,
A qualquer momento o ministro da Justiça e o
e tal, e fazia críticas. No meu caso, ele ficou durante
seria uma bobagem, um infantilismo ridículo,
presidente da República podiam baixar decreto
três ou quatro programas criticando muito a UNE,
ter um país sem forças armadas. Nós éramos
expulsando a pessoa que estava sendo objeto
criticando o Javier como o estrangeiro, o espanhol,
contra a ditadura militar e que o regime militar
do inquérito.
o comunista estrangeiro, etc. Tenho a honra de
era responsável por, eu usei a expressão, verrevista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
111
dadeiras barbaridades ou atrocidades contra os estudantes, entre elas o desaparecimento do ex-presidente da UNE Honestino Guimarães e de outras lideranças estudantis. Disse e assumi isso. Muita gente pensa que
À medida que eu fui notificado do inquérito, houve uma reação interessante em todo o Brasil. Foi superbonita a mobilização. Tudo quanto é forma de organização se manifestou.
foi por causa dessa entrevista que se moveu o inquérito de expulsão contra mim. Mas nós já tínhamos notícias da movimentação nos bastidores da ditadura em prol disso antes. A entrevista foi um dos argumentos arrolados pela PF e pelo Ministério da Justiça para abrir o inquérito contra mim, mas foi usado também, pura e simplesmente, o fato de eu ser o presidente da chamada, na época, “proscrita UNE”. Fizeram uma relação imensa de assembleias que eu dirigi, de atos que eu encabecei, de reuniões que eu coordenei. Com o término do seu mandato, o que significou a eleição da Clara Araújo como presidente da UNE? Nesse ano, eu saí de Salvador para presidir o Congresso da UNE em Piracicaba. Foi uma viagem tomada de cuidados. Fui recebido em São Paulo por uma comissão enorme de estudantes, de personalidades democráticas. Eu me lembro que Ulisses Guimarães me ligou diretamente, estava no Comitê Brasileiro da Anistia. Meu advogado era Luiz Eduardo Greenhalgh, que depois virou deputado, além de Ayrton Soares, também bastante conhecido por defender presos políticos e causas progressistas, e de Ronildo Anobla, na Bahia, e Sigmaringa Seixas, em Brasília. Eu fui até Piracicaba, fiquei hospedado na casa do reitor da Universidade Metodista. Nesse congresso que eu presidi, quebrando essa limitação que a lei impunha, nós escolhemos como candidata nossa companheira do PCdoB, da Viração por
Estudante tomam as ruas na campanha “Fica Javier”
112 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
conseguinte, Clara Araújo, que era líder estudantil no curso de Ciências Sociais da UFBA.
A marca da gestão foi a defesa da própria UNE, por meio da defesa contra a expulsão do seu presidente. O pretexto da ditadura era o fato de eu ter nascido fora do Brasil. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
113
Ela já era uma liderança na universidade, foi
redemocratização, mas o movimento estudan-
grandes campanhas nacionais, foi responsável
eleita a primeira mulher presidente da UNE.
til de hoje é muito mais espalhado, espraiado
por desencadear o processo nas ruas que levou
Também foi do PCdoB o primeiro presidente
nacionalmente. Hoje, temos movimento estu-
ao impeachment de Collor, por exemplo. Foi
negro eleito da UNE, Orlando [Silva] Júnior,
dantil em grandes universidades e em peque-
o movimento estudantil que fez a Campanha
estudante de direito da Universidade Católica
ninas faculdades privadas, das grandes capitais
das Diretas, depois da minha época, fez luta
de Salvador. A primeira mulher eleita presi-
brasileiras a pequenas cidades interioranas,
pela Reforma Universitária, depois da minha
dente da UNE foi uma baiana e o primeiro
expressando a própria expansão do ensino
época. Agora, recentemente de novo, participou
presidente negro eleito na UNE, também um
superior brasileiro, que triplicou. Muita gente
ativamente da luta pela reforma universitária.
estudante baiano.
confunde: “A UNE não é mais aquela, o movi-
Levantou e levanta lutas fundamentais.
mento estudantil não é mais aquele, aquela
E é um movimento estudantil muito mais
Como você avalia a trajetória do movi-
velha UNE de 1968”. Não dá para comparar
em rede do que na minha época, embora o
mento estudantil desde a sua gestão até
épocas, é um erro, é uma injustiça comparar
da minha época tivesse mais visibilidade
os dias de hoje?
mecanicamente épocas com épocas.
pelo impacto da nossa luta. Mas o movi-
Eu acho que o movimento estudantil cresceu
O movimento estudantil de agora é muito mais
mento estudantil hoje é muito maior. A UNE
de poderio. Porque, na nossa época, nosso
abrangente, trata de cultura, de arte, promove
consegue fazer grandes movimentações,
movimento era um movimento de resistência.
bienais, eventos artísticos localizados, promove
vai continuar fazendo e eu confio muito no
Ele conseguiu grandes efeitos no processo de
lutas específicas com muita força, participa de
movimento estudantil.
O movimento estudantil cresceu. Na nossa época, era de resistência e conseguiu grandes efeitos na redemocratização, mas o movimento estudantil de hoje é muito maior. 114 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
Depois de sair do movimento estudantil, Javier manteve-se na luta por um Brasil melhor
Javier ocupou uma vaga na Câmara dos Vereadores de Salvador entre 1989 e 2003, alÊm de ter sido deputado estadual entre 2003 e 2011
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista JAVIER ALFAYA
115
C
lara Maria de Oliveira Araújo nasceu em Teofilândia, cidade do semiárido no estado da Bahia, em 5 de junho de 1958, oriunda de uma
família com tradição político-partidária na região. Em plena ditadura militar, os irmãos mais velhos participavam do movimento estudantil na faculdade, enquanto ela frequentava o Colégio Central, unidade da rede pública com longa tradição e efervescência em Salvador. Em 1977, Clara ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA), no curso de Ciências Sociais. Naquele ano em que houve a primeira tentativa de reconstrução da União Nacional dos Estudantes, ela começou a participar do Centro Acadêmico e, numa viagem para o encontro estudantil em Belo Horizonte (MG), acabou presa por motivação política, junto com a delegação que seguia em um ônibus para a capital mineira. Aquele foi o começo de uma trajetória marcante no movimento estudantil, que inclui na trajetória de Clara Araújo à presidência de Diretório Acadêmico na UFBA, presidência do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFBA e, por fim, à presidência da UNE (1982/83). Nesta entrevista, ela conta como foi ser a primeira mulher no cargo. A gestão de Clara na UNE encontrou uma solução provisória para a falta de endereço da UNE. Enquanto não recuperava a sede da Praia do Flamengo, demolida em 1980, a entidade ocupou o casarão Honestino Guimarães, no Catete. O prédio público foi emprestado pelo governador Leonel Brizola. Após duas décadas de intensa participação política na vida do país, Clara tornou-se acadêmica professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no Departamento de Ciências Sociais, especialista em questões
Clara lidera reunião da UNE em São Paulo
118 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
de gênero. (Entrevista concedida em 2006 a Javier Alfaya)
O que você pensava, naquela época, sobre o fenômeno de ser a primeira mulher presidente da UNE, e o que você pensa hoje, inclusive, por ser estudiosa do assunto, da participação da mulher nas instâncias da nossa sociedade? Como é que você entende o seu comportamento e talvez de outras mulheres que compartilharam com você algum segredo, alguma confidência, acerca daquele desafio? Para mim, ser mulher e ter uma avaliação crítica sobre aquele momento que eu estava vivendo não era bem uma coisa que eu tinha claro. Teoricamente, eu tinha alguma consciência, porque era militante e o meu partido, o PCdoB, defendia essa ideia da emancipação da mulher. Mas aquilo não era uma coisa da minha experiência, ou seja, eu não tinha vivido, até aquele
Para mim, todas as cabeças do movimento estudantil eram a favor da libertação das mulheres e contra o preconceito. Não foi muito bem o que eu vivi.
momento, uma situação de discriminação. Isto eu vejo hoje, quando dou aula e tenho a percepção do que é viver situações de discriminação, seja por ser mulher ou por outro tipo de discriminação. Essa percepção é muito importante também para ter uma visão crítica. Do ponto de vista político, tinha aquela sensação muito forte de que a questão de classe é determinante e as outras coisas estavam muito associadas a isso e secundarizadas na prática. E em casa, você tinha o apoio da família? Meu pai foi uma pessoa que sempre estimulou muito as mulheres da família. Nós somos cinco. Ele achava que a gente tinha que ir à luta, fazer as coisas. Foi um valor importante que ele passou para nós. Para mim, ter vivido a experiência de ser presidente da UNE foi muito importante. Eu vinha do movimento estudantil, era um momento de efervescência, éramos uma geração que tinha uma coisa de cultura com valores, que ia da moda até a própria ideia de família, vista por nós como conservadora.
Jornais destacam a eleição da primeira mulher para a presidência da entidade estudantil em 1982
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
119
Como foi a receptividade, no movimento, da
antes de serem olhadas como mulher, elas têm
explorar sua feminilidade, é automaticamente vista
indicação de seu nome para a presidência
que se tornar neutras, serem neutralizadas. O que
como algo estranho a esse mundo.
da UNE?
se procura, de fato, é saber em que medida elas são
Houve uma manifestação de preconceito muito
ou não mulheres. Como o padrão da política é um
Podia também ser interpretado como al-
forte, e para mim essa reação foi surpreendente. Eu
padrão construído no masculino, qualquer coisa
guém oportunista, que usasse o charme
realmente não esperava, porque na minha cabeça
que fizesse menção à feminilidade era estranha
para atrair simpatia, apoio político, votos.
era um pouco assim: a esquerda era a vanguarda
à política. Então, foi algo que me despertou essa
De fato, quando você fala que a política é
de cabeças libertárias e libertadas. Para mim, todas
visão política também.
historicamente montada como algo mas-
as cabeças ali eram a favor da libertação de classes,
O que aconteceu no movimento estudantil, eu
culino, isso significa que há excesso de
consequentemente eram a favor da libertação das
não sei se acontece ainda hoje, tem a ver com o
arrogância, de agressividade. E se a coisa
mulheres e contra o preconceito. Não foi muito bem
campo da política, que é muito masculino, no sen-
não vai por aí, então não serve muito...
o que eu vivi. Então, o Congresso de Piracicaba, em
tido de que a política se estrutura em torno dos
É exatamente isso. Não é que seja arrogante, mas
que fui eleita, foi um marco, porque ficou aquela
homens, historicamente. Então, o que é adequa-
é que quando se pensa o comportamento político,
coisa de combater a minha candidatura. Ao longo
do, o que é um padrão de comportamento? Ele
se associa um conjunto de comportamentos e
da gestão, eu vivi essa situação de preconceito ex-
é muito – mesmo que subjetivamente – estreito,
práticas que não é o das mulheres. Pior do que
perimentada no congresso. Lembro-me de uma
subjetivo, tudo muito associado ao masculino. E,
reforçar nas mulheres que fazem política a ideia
assembleia na Universidade Federal Rural, no Rio
nesse sentido, é como se tudo aquilo que fosse do
de sedução, é o fato de se sobressair como mulher.
de Janeiro, que no momento discutia se entraria ou
feminino fosse uma coisa estranha à própria política,
Chamar a atenção como mulher. Vou pegar dois
não em greve. Era uma unidade com muitos cursos
ao comportamento. E como a feminilidade sempre
casos de exemplos emblemáticos: duas mulheres
considerados masculinos e eram impressionantes
foi associada ao inverso – à futilidade, ao não político,
políticas, prefeitas de São Paulo: Erundina de um
as manifestações da plateia, que gritava: “A UNE não
à sedução – a ideia de alguém que possa ser capaz,
lado e Marta Suplicy do outro. Quando Erundina
tinha coisa melhor para botar do que botar uma
que possa ser bonito, possa ser sedutor ou possa
foi prefeita, era muito interessante porque toda
mulher?”. Não era uma coisa que me intimidava, mas aquela experiência foi me dando uma visão crítica de que a juventude podia pensar igual às pessoas mais velhas. Eu também comecei a perceber que não podia me arrumar muito. Embora para os homens isso fosse uma coisa neutra, comecei a notar – o que é também um dado dos estudos sobre mulher na política – que as mulheres têm que se parecer com os homens. Quando eu ia às reuniões da diretoria de vestido, sandália, um vestido mais justo, comecei a perceber como isso era um elemento que não só chamava a atenção, mas era como se o fato de eu me vestir daquela forma fosse uma desclassificação. Porque, na realidade, acho que tem a ver com essa associação comum de ter sempre o corpo da mulher como objeto. O que acontece na política é o que eu acabei vivenciando: as mulheres são olhadas como mulher e não apenas como político. Mas, 120 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
O que acontece na política é o que eu acabei vivenciando: as mulheres são olhadas como mulher e não apenas como político.
Clara em reunião da UEE-SP
cobertura era exatamente o fato de ela ser um
fato, assumi um pouco isso: evitar qualquer tipo
movimento estudantil, não. As manifestações, até
tipo pouco atraente, de ela usar roupas fora de
de associação da minha figura com a feminilidade.
porque eram, às vezes, muito diretas, eu sabia
moda, de ela usar roupas pouco femininas, mas
Foram experiências que me fizeram, mais tarde,
lidar. Mas, esse tipo de situação era muito chato
sempre ela era olhada a partir desse lugar de mu-
me interessar em estudar para compreender isso.
mesmo e uma coisa que acontecia. Na realidade,
lher. Ninguém olha se o homem usa um sapato,
nós tínhamos que fazer vários tipos de articulação
meia, calça. Bom, aí entra Marta Suplicy, que é um
Você relatou à época, que tinha vivido uma
e não era só com parlamentar. Eu não vou falar
modelo inverso. Sofisticada, efetivamente arru-
experiência ruim, desagradável, com o pro-
nomes, acho que não é o caso, mas eu vivi duas
mada etc. E ela é olhada, abordada na imprensa,
blema do assédio, ao encontrar com setores
situações muito constrangedoras. Saiu de uma
por quê? Muito arrumada, por ser perua, etc. Ou
fora do ambiente estudantil, com deputa-
cantada para uma investida muito surpreendente,
seja: a mulher está fora do lugar.
dos, por exemplo, que era desagradável ter
de pessoas que eu não esperava. Eram pessoas
que enfrentar alguns gabinetes...
muito mais velhas do que eu, com idade para
É. Isso foi outro tipo de experiência. Havia essas
ser meu avô naquele período. Eu fiquei muito
manifestações, mas não era uma coisa que a
chocada, desarmada, e não respondi. Isso era uma
As mulheres não estão no seu lugar. Há que
gente enfrentava de uma forma legal. Isso re-
coisa que me fazia muito mal. Eu sabia lidar, mas
ter a neutralidade, mas uma neutralidade que,
almente era bem desagradável, porque a gente
não conseguia responder. Foram duas situações
ao mesmo tempo, vai ser cobrada das mulheres.
estava num momento que tinha que fazer muita
muito, muito desagradáveis.
Voltando à minha experiência, isso também foi
articulação. Era uma coisa recorrente – não sei se
um dado interessante, porque eu, sem querer,
eram cantadas, mas falas, indiretas. Muitas vezes
comecei a perceber isso, como se eu fosse menos
tinha que me fazer de ingênua, lidar com a ideia
Não. Fora do meio universitário. Uma com um
capaz. Olhada com menos capacidade pelo fato de
de que eu não estava entendendo, porque isso
político, mas outra com uma figura notável. A
eu estar ali de vestido e não calça. Isso me levou,
se tornava uma coisa desagradável. Eu acho que
gente estava, naquele período, articulando, para
na prática, a ter que exercer um pouco esse lugar
também foi uma coisa, para mim, muito interes-
reconhecimento da UNE, a questão do prédio. A
do meu nome, mesmo. Do meio para o fim da
sante, porque era o mundo da política. E eu acho
gente visitava muitas personalidades do mundo
minha gestão, eu já tinha isso mais claro. E eu, de
que isso era uma coisa que me inibia. No caso do
institucional brasileiro, não era só político.
Seja de um jeito ou de outro, não está no seu lugar...
No meio universitário?
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
121
A sua geração se caracterizou por incorporar
lidade que era diferente da sexualidade de hoje,
Vamos falar um pouco da situação das
valores da contracultura, da luta pelas liber-
porque ela era muito mais... era vivida de uma
mulheres na política. Na sua época ha-
dades individuais das décadas de 1960 e 70.
forma muito menos preconceituosa do que é hoje.
via muitas lideranças no movimento,
Você acha que chegou a usufruir plenamente
Eu acho que há um certo conservadorismo, um
mulheres nos DCEs, DAs. Até certa fai-
disso, levando em termos de uma proposta
retrocesso em todos os aspectos, em relação à
xa, até certo nível de liderança, havia
e vivenciando isso?
sexualidade. Acho que existe menos tabu do que
mulheres, além dos cursos “femininos”,
Isso é minha impressão, meu olhar. Eu acho que
era na nossa época, virgindade, essa coisa das
evidentemente onde as mulheres ti-
a nossa geração viveu muito isso. Até olhando com-
pessoas viverem com os namorados ou dormirem
nham presença hegemônica: nos DAs de
parativamente, como eu olho hoje, o pessoal dessa
juntas, etc. Tudo isso é mais comum hoje. Mas,
Enfermagem, Serviço Social, Nutrição,
faixa, o modo de viver, o despojamento, não era
ao mesmo tempo, tem uma banalização muito
Secretariado, talvez de outros cursos.
só do vestuário. Eu acho que existia um despoja-
grande, e essa banalização é expressa, inclusive, na
O movimento estudantil ajudou muito
mento real no viver, na forma como nós lidávamos
cultura, na música. Quer dizer, há uma liberdade,
a formar lideranças e quadros de mu-
com as coisas. Para nós, naquele momento, não
a mulher perdeu essa característica de repressão
lheres, mas elas não ultrapassavam
era tanto um desafio, como é hoje, a questão do
da sexualidade. Nesse sentido, hoje é mais aber-
determinados limites. De lá para cá, o
emprego, de sair da universidade o mais rápido
to. Na nossa época, levar um namorado ou uma
movimento estudantil melhorou nessa
possível para ter emprego, um pragmatismo que
namorada para casa era muito mais complicado,
produção, produz mais e melhores lide-
orienta a vida no cotidiano das pessoas, mesmo.
mais difícil. Então, as pessoas queriam morar com
ranças femininas, ou. você Você acha
Então, eu acho que nós tínhamos esse despoja-
os amigos, queriam sair de casa. No geral, a classe
que é um fenômeno que chegou a um
mento, nós vivíamos essa ruptura. Aí entra a ques-
média, diante da violência, prefere que os filhos
determinado limite?
tão da sexualidade. Acho, se é verdade, os estudos
levem para casa os namorados ou namoradas. Mas
Muitas mulheres que hoje exercem cargos
mostram um pouco, que a Aids veio um pouco para
acho que o conservadorismo está na forma como a
políticos, como parlamentares ou como pre-
refrear uma coisa que estava em processo, mas
sexualidade é vista. Principalmente em relação às
feitas, não só do PCdoB, mas de vários outros
que estava em processo de uma forma muito mais
mulheres, na forma como são vendidas, retratadas,
partidos, vêm do movimento estudantil. O
radical do que hoje, eu diria. Porque era assim:
seja na música ou na mídia. Se olharmos bem,
movimento estudantil foi importante, mas
sexualidade era viver mais, se dando mais para
veremos que, paradoxalmente, quanto mais a
isso tem a ver pouco com a política. A pergunta
as coisas que se acreditasse, para outros projetos.
mulher entra no mercado de trabalho, quanto
é: por onde entram as pessoas na política?
Eu não digo só para quem era de esquerda ou era
mais se valoriza profissionalmente, mais existe
Aí, no caso, por onde entram as mulheres?
militante, não. Eu acho que, mesmo culturalmente,
o apelo, que é muito centrado em cima da parte
Porque você tem rotas de ingresso na política,
havia uma efervescência. Acho que a gente foi
estética. Quer dizer, o peso da questão estética,
determinados padrões de rotas de ingresso. E,
privilegiada. Quer dizer, nós estávamos vivendo
de um lado, é muito grande. Isso caminha para
no caso das mulheres, há dois caminhos: um é
o resgate da democracia, o combate à ditadura,
um processo, mas não é só isso, é a banalização
o caminho tradicional das pessoas que entram
não era só resgate da democracia política, era o
da sexualidade.
pela família, pelo capital. O outro é mais pela
resgate da cultura, da liberdade de expressão.
esquerda e pelo movimento social forte.
Então, isso também criava um ambiente muito
É natural que o homem tenha muitas mu-
O movimento estudantil produziu um
propício [para uma efervescência].
lheres, mas ele não aceita que a mulher ou
conjunto de quadros, e muitas das mu-
Eu acho que os partidos tinham, no caso, um
a namorada possa ficar um tempo sem ele.
lheres que hoje estão na política vieram
fechamento. Ao mesmo tempo que vivíamos tudo
É essa a ideia de autoridade que tem voltado,
daí. Isso está associado à capacidade que
isso, eu acho que havia também um descompasso,
a ideia da autoridade masculina. Na nossa época,
o movimento estudantil tem de se manter.
nessa dinâmica que a gente vivia, que era muito
isso era uma coisa que não tinha tanto valor. Mas
Eu acho que saíram mais mulheres na nos-
intensa, acho que era muito esse despojamento,
essa ideia do homem como autoridade é um dado
sa época porque o movimento estudantil
que é uma coisa muito interessante; uma sexua-
muito importante.
estava mais efervescente.
122 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
Você acha, então, que cabe uma atenção
sentações, esses preconceitos permanecem?
ca vi o DCE passar em uma sala de aula! Eu
específica, uma pressão, por exemplo,
Eu acho que muito menos, mas ainda perma-
passo nas assembleias do meu curso e tem
sobre as estruturas do movimento estu-
necem. Tem um conjunto de requisitos que, no
15 pessoas. Então, há um pragmatismo. E as
dantil, da UNE, para que haja uma políti-
geral, são mais difíceis para as mulheres do
mulheres se encontram nesse quadro, não são
ca de estímulo à participação feminina?
que para os homens, como viajar pelo Brasil,
muito estimuladas, assim como os homens,
Eu acho que cabe, por duas razões: tenho a
sair do estado. Se você tem estímulos, esses
atualmente, também não são estimulados.
impressão de que não há grandes mudanças,
obstáculos podem ser de menor importância.
[Pouco tempo depois desta entrevista, Lú-
saldos significativos no movimento estudantil
Mas no ambiente em que já não há muito
cia Stumpf foi eleita presidenta da UNE, em
hoje. E isso está associado ao fato de que o
estímulo, já não é muito propício, isso pode
2007, Virgínia “Vic” Barros, em 2013, e Carina
próprio movimento estudantil tem gerado
funcionar como um obstáculo maior. Mas eu
Vitral, em 2015, na primeira transferência de
poucas lideranças. Ser do movimento estu-
não vejo isso como o maior problema.
mandatos entre mulheres na história da UNE.]
dantil antes era um capital político. Quantas
Para mim, considerando a visão que eu
lideranças estão no capital político hoje, que
tenho, que é da vida universitária no Rio
A quantidade de mulheres na política
vêm do movimento estudantil, no geral?
de Janeiro, eu acho que o problema é que
não seria contraditória com o espaço
o movimento estudantil também não gera
já conquistado pela mulher na nossa
muitas lideranças.
sociedade?
Então, as mulheres estão dentro disso. Acho que têm também as dificuldades que são geradas pelo fato de ser mulher. E, se esse
Eu sou professora e não sei quem está no
dado permanecer, a pergunta é: essas repre-
DCE da minha universidade, porque eu nun-
Eu acho que os espaços ainda são muito fechados, não são muito abertos.
Nós tínhamos que fazer vários tipos de articulação. Não vou falar nomes, mas vivi duas situações muito constrangedoras. Isso me fazia muito mal. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO 123
Nós estávamos vivendo o resgate da democracia, não só política. Era o resgate da cultura, da liberdade de expressão. Um ambiente muito propício para a efervescência. 124 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO
Você é a favor de uma política de cotas, por
de representatividade tem a ver não só com
percepção, não existem tantas barreiras assim
exemplo, ou de políticas mais explícitas,
o preconceito, mas com as condições que as
de preconceitos com isso. O que eu acho que
agressivas, de participação da mulher?
mulheres têm para participar, como eu estava
existem são coisas na estrutura da vida, que
Eu sou a favor de políticas afirmativas nos
falando, das rotas de ingresso. O movimento
são mais obstáculos para mulheres. E mesmo
partidos, de modo que eles estimulem a par-
estudantil é um elemento. Eu acho, teorica-
no caso do movimento estudantil isso se aplica.
ticipação da mulher. Na América Latina, a po-
mente, que o movimento estudantil ainda é
Por exemplo: uma mulher para ser deputada
lítica de cotas, por exemplo, deu certo, mas no
um dos espaços, mesmo na época em que eu
federal, ela tem que estar disposta ou não ser
Brasil não deu certo. Eu acho que o que está
vivenciei essas experiências. Mas, se compa-
casada, ou viver fora de casa. Raramente um
acontecendo é o risco de a política de cotas
rarmos com o sindicato, com o partido político,
marido acompanha a mulher na sua vida de
ter uma visão minimalista. Eu acho que a falta
ele é um espaço mais aberto. Então, na minha
deputada federal. O inverso não acontece.
Clara recebe homenagem no Senado Federal
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CLARA ARAÚJO 125
L
indbergh Farias nasceu em João Pessoa, Paraíba, no dia 8 de dezembro de 1969. A trajetória dele no movimento estudantil, iniciada
ainda na cidade natal, o levou a ocupar posições expressivas, como a presidência da União da Juventude Socialista (1996) e a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE), nos anos de 1992 e 93, entre outros postos de destaque. À frente da UNE, Lindbergh ganhou projeção nacional, tornando-se um dos principais líderes políticos no processo que culminou com o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 29 de setembro de 1992. Radicado no Rio de Janeiro, elegeu-se deputado federal pelo PCdoB, em 1994. Com passagem pelo PSTU, filiou-se ao PT em 2001, apoiando a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, tendo retornado à Câmara dos Deputados, em 2002, com mais de 83 mil votos. Em 2004, foi eleito prefeito de Nova Iguaçu (RJ), reeleito para o cargo no primeiro turno da eleição municipal de 2008, com 65% dos votos, e depois chegou ao Senado Federal. Nesta entrevista, ele revê toda a trajetória política, a partir da militância estudantil, relatando detalhes dos bastidores da articulação que deu origem à ação que ficou conhecida, no início dos anos 1990, como Movimento dos Caras-Pintadas; resgata a relação com personalidades de projeção nacional, como Lula e Renato Russo; e emociona-se ao falar da relação com o pai, um ex-militante da UNE nos anos 1950, que o inspirou a trilhar o caminho da política estudantil. (Entrevista concedida a Javier Alfaya em 2009).
Lindbergh Farias, presidente da UNE entre 1992 e 93
128 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
Como surgiu o seu interesse em atuar
Isso foi quando? Em 1987, eu entrei. E posso dizer que é um
com política estudantil? Fui criado numa casa onde meu pai tinha uma
ciclo, até a campanha do Lula. Na luta pela eleição
grande biblioteca, uma biblioteca fantástica para a
do Lula, decidi largar a Medicina. Eu gostava de
gente. Até hoje a gente conserva, meu pai morreu
medicina, mas tinha um dilema com a minha mili-
em 1996. E tem umas histórias que vou ter que
tância, porque eu estudava muito de madrugada,
contar aqui. Meu pai tinha sido da UNE em 1959,
tinha as atividades do Diretório Acadêmico... Eu
gestão Oliveiros Guanais [Aguiar]. Um ano antes,
ficava completamente dividido. Lembro-me de
foi candidato a presidente e tinha uma relação
livros como o Histórias do Marxismo... Eu ficava
simpatizante ao “Partidão”, na época. Qual o nome do seu pai? O mesmo meu: Lindbergh Farias. Teve uma situação até engraçada, foi publicado um livro sobre documentos secretos, intitulado Arquivos Secretos, e o autor ficou intrigadíssimo, porque nos documentos que ele buscou aparece um Lindbergh Farias que respondeu a um inquérito (IPM), porque dizia que trabalhadores, estudantes e camponeses eram unidos... E ele me perguntava como é que podia, já que sou mais novo. E eu disse a ele que era meu pai... Ele estava absolutamente confuso (risos). Meu pai era médico, estudou na França, depois foi para a Paraíba, fui criado em casa com debates, defesa da União Soviética, defesa de Miguel Arraes, defesa de Brizola e defesa de Cuba. Essas são as referências mais gerais. E a história do livro, da literatura. Eu, com 14 anos de idade, pelo que escrevi, me achava socialista, comunista. Então, isso é uma coisa que foi determinante na minha vida. E era isso que eu queria, a UNE, para mim, era uma coisa fantástica. Não só por meu pai ter participado, mas pela história da UNE, que eu já sabia, pelo Partido Comunista. A UNE era mágica para mim; me pegou muito pela emoção, o tempo todo. Quando entrei na universidade, foi um momento de muita agitação, momento de grande ascensão da luta social neste país. E nós nos dizíamos comunistas, carne fresca, jovem, num período
Eu, com 14 anos de idade, me achava socialista. A UNE, para mim, era uma coisa fantástica. Não só por meu pai ter participado, mas pela história da UNE.
com os livros de Medicina e os de marxismo ali na mesa. A campanha de Lula, em 1989, foi determinante. Recordo-me que eu ia para a universidade, já com a bandeirinha do PCdoB, eu e muita gente. A bandeirinha ficava no canto da sala de aula, assistíamos à aula e depois saíamos. Como você administrava essa tensão? São muitas contradições, em minha vida pessoal, que me levaram para o rompimento com o curso de Medicina. Eu queria fazer História ou Filosofia, meu pai foi contra. Meu pai sempre teve uma história de esquerda, mas são muitas as contradições, dizia que era uma maluquice largar a Medicina. Meu pai defendia Brizola, ele era de família de classe média, minha mãe e meus irmãos também, e eu era Lula. Em minha casa, casa do Nordeste, havia empregada, pessoa que trabalha em casa, e eu consegui a convencer e ela votava no Lula. Meu pai ficava irritadíssimo comigo, porque eu era uma verdadeira tensão em casa, garoto louco, 16, 17 anos. Só para falar do meu pai, aconteceu a mesma coisa quando fui entrar na UNE. Já no movimento estudantil, fui a um congresso da UNE em Campinas (SP), eu já tinha ido a dois. Mas, nesse congresso, em 1990, depois da gestão do [Claudio] Langoni, o PCdoB retoma, fiz parte de uma safra de renovação do movimento. Havia uma certa saturação do sistema, depois explico isso.
desses. Greve de universidade, paralisações, luta
Havia o meu nome e o de Patrícia para presidente,
de ônibus, tudo isso tomou minha cabeça.
dois nomes novos, uma garotada, 20 anos. Meu pai revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 129
estava na Europa e perguntaram a ele se já sabia da novidade sobre seu filho na UNE. Meu pai quase morre. Foi conversar comigo e disse que aquela UNE, a que ele fez parte, não existia mais. Que a UNE dele, a história dele, foi diferente. Foi pré-revolução, que eu iria prejudicar meus estudos, aquela coisa toda. Foi uma conversa de pai para filho. E o bacana é que, depois do impeachment, quando tudo começou a acontecer, já em São Paulo, houve um evento da UNE em que pude ver a emoção de meu pai... [chora]. Toda vez que se fala em pai é forte demais. Eu tento segurar, mas não consigo... Então, quando houve aquilo foi um encontro fantástico, porque ele vibrou muito e a gente se falava todo dia. Para ele também acho que foi um
Meu pai estava na Europa e perguntaram a ele se já sabia da novidade sobre seu filho na UNE. Meu pai quase morre.
momento de muita satisfação. Nosso encontro ali fica marcado pelo encontro entre pai e filho. Veja que coisa, meu pai foi candidato a presidente da UNE (antes da gestão de Oliveiros Guanais). Foi da chapa que perdeu a eleição e, de certa forma, eu virei presidente da UNE. Completou uma obra dele, digamos assim. Foi meio assim... E, depois, ele achava que a UNE tinha morrido, que era um debate que havia na UNE: “A UNE não existe mais, acabou”. E a UNE não havia morrido. Ele achou fantástico porque viveu aquilo também, a história pessoal dele.
O estudante Lindbergh durante passeata do Fora Collor
Antes de chegar aos três congressos que você frequentou, sendo que no terceiro
de 1989 para 1990, nós ganhamos o DCE,
no debate. Ganhei a eleição no debate. Aí,
saiu como secretário-geral, você também
e levei essa bancada enorme de delegados
fui candidato a presidente do DCE e perdi,
foi candidato a presidente do DCE no pri-
para o congresso, pusemos uma hegemonia
rapaz... Mas fizeram uma sacanagem comigo.
meiro ano e perdeu a eleição. Você foi
na Paraíba grande nesse período. Mas não
O que aconteceu é que, na época, teve um
coordenador-geral de Medicina no ano
fui presidente, muita gente da Paraíba diz
filme com a Lucélia Santos, Bonitinha, mas
seguinte, correto?
isso, que fui presidente da UNE e não do DCE.
Ordinária. Em todo o canto que eu entrava
A gente perdeu no primeiro ano, no outro ano
Eu assumo que perdi uma disputa, porque
eles diziam: “bonitinho, mas ordinário” (ri-
a gente ganhou o DCE – só tinha coordenador-
perdi uma eleição do Centro Acadêmico, a
sos). Pois é, isso me incomodava, foi o pri-
geral, não tinha presidente. Em 1987, eleição
chapa era Menos Blábláblá, Mais Luta e Ação
meiro ataque moral que eu sofri. Eu ficava
do DCE; em 1988 inteiro, o DCE ficou com eles;
Buscar. Era muita tese, eu ganhei o debate
puto. Hoje, levo porrada na política e digo
130 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
que estou acostumado a apanhar. Já levei
Havia uma rejeição às práticas muito car-
que foi a da bancada por estado. Ele disse que
milhares de vaias, muita disputa. Tem que
regadas de sectarismo com as militâncias
aquele tal de congresso estava dividido no meio.
ter a arte da vaia... Ser vaiado e vaiar.
e partidos e apareceu, espontaneamente,
Aquilo teve uma reação da gente, porque havia
uma reação de pessoas que eram também
uma cultura da geração anterior que era aquela
Quando você foi coordenador do DCE, le-
lideranças, mas não vinculadas a partido.
de corrente contra corrente [e não por estado].
vou grande delegação para a UNE e voltou
Esse fenômeno, você acha que teve o seu
para a Paraíba já com um grande feito. Ali
auge naquele momento? Serviu para cha-
Para entender melhor: a ideia era propor
você já se preparou, já ficou com a cabeça
mar a atenção dos partidos políticos? Foi
organizar melhor o plenário do congresso
virada para sair da Paraíba?
uma crítica?
por estados...
Não. Pensei, no máximo, em ser vice-presi-
Ali foi o auge da partidarização, mas não sei se
Esse era o discurso, independentemente do
dente da UNE em Pernambuco ou na Paraíba.
dessa lógica de repulsa foi o auge. Talvez o auge
partido político. Estava todo mundo no estado,
O importante para a gente era o mundo, o
tenha sido no congresso em que fui eleito (1992),
discutindo. O PT acuou e disse: Vamos. Quando
socialismo, o debate presidencial, o Lula.
e que impôs uma mudança. Porque em São José
foi, a base se diluiu e disse: Não vamos. E ficou
dos Campos houve pancadaria e o PCdoB saiu
o vai-não-vai. A nossa bandeira foi democrática.
A Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
do congresso, não participou até o final. Houve
Cantávamos: “Está decidido, está confirmado é
era a única do Brasil inteiro que de fato
o congresso de Brasília, começou a haver um
a bancada por estado”. E os estudantes com a
era multicampi. Tinha campus em sete
distensionamento fantástico e passou a haver
gente. Associado a isso, nós ganhamos o con-
cidades e era muito respeitada...
proporcionalidade na diretoria da UNE. É quando
gresso da UNE por dois outros motivos. Motivos
Era a terceira maior universidade em número
entra [Claudio] Langone, presidente, e Waldemar
completamente partidários. Tinha um grupo de
de cursos, com um campus enorme em Campina
[de Souza], vice-presidente. Esse é um congresso
muita força no movimento estudantil, o Cami-
Grande, que agora é uma universidade indepen-
transformador da história do movimento estu-
nhando, do Partido Revolunionário Comunista
dente. Tinha Cajazeiras, Souza, Patos, Bananeira,
dantil, o de 1989. Esse foi um congresso que
(PRC), e esse foi um momento de uma revisão
Areias. E lembro do primeiro congresso da UNE,
refundou, porque houve o auge da porradaria,
ideológica, Valmir era do PRC, Langone também.
era uma coisa marcante, um alto grau de partidari-
o distanciamento foi forçado ali, ajudado pelas
E o PRC fazia um debate, uma revisão ideológica.
zação. A presidente era Gisela Mendonça, durante
condições políticas de uma aproximação do PT
O PRC funcionava como um exército leninista e
o congresso em São José dos Campos (SP). Eu não
com o PCdoB. Vamos falar a verdade: havia um
os caras viram uma Nova Esquerda. E aí aqueles
fui em Campinas, fui em São José dos Campos e
clima geral que ajudava e isso proporcionou a
caras unificaram o PT numa visão dali, passaram
Brasília. O presidente [no congresso de Brasília]
reaproximação do PT com o PCdoB. Foi ali, no
por aquele momento da revisão do Genoino,da-
era do PT, Valmir [Bispo]. Chegando lá, nos nossos
momento da proporcionalidade. E com a pro-
quela turma toda.
ônibus do PCdoB e do PT, a briga era tão grande
porcionalidade fomos para o outro congresso,
que teve agressão física para ver quem iria nos
que é o nosso. A proporcionalidade foi um passo.
E como foi a escolha do seu nome a candidato?
ônibus. Foi porradaria, sangue, confusão, uma
Só que os estudantes nessa linha mais indepen-
A ida para os congressos era uma loucura,
coisa terrível. Cheguei no congresso e era tudo
dente não queriam apenas isso. E aqui vou dizer
aqueles ônibus do Nordeste, quando iam para
separado, um cordão de isolamento separando o
que houve um fato com que viramos o congresso
o Sul, eram aventuras históricas. Na noite da
PT do PCdoB. Comprei logo uma camiseta cheia de
da UNE. Chegamos numericamente inferiores ao
véspera da escolha chegaram para mim e dis-
foice e martelo, achava o máximo aquele negócio
PT, com o PT majoritariamente superior. Aí, um
seram que o Renato Rabelo queria falar comigo
todo ali. Era uma polarização entre os estudan-
cara chamado Renato Rabelo chegou e disse:
(o responsável de acompanhar a juventude do
tes. Tanto é que tínhamos um amigo do Rio, no
“Tem alguma coisa diferente nesse congresso”,
PCdoB). Eu me senti o próprio comunista, me
congresso de São José dos Campos, o Afonso
e ficou olhando para a cara dos caras. Ele achou
levaram por uns caminhos para uns trailers. Ele
Cláudio, que criou um movimento independente
um perfil muito estudantil. E ele levou uma tese
estava lá, sentado numa mesa distante, aquela
contra aquilo tudo.
que mudou o congresso e nos levou à vitória,
figura, e me disse que estavam pensando em revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
131
O estudante Lindbergh participa de comício da Fora Collor
fazer presidente da UNE Patrícia ou eu. Eu fiquei
Mas, então, cerca de 20 votos de dife-
que acabou acontecendo na gestão de Fernando
tão emocionado, nem sei o que falei. Fui dormir
rença contra que chapa?
Gusmão, mas começou na minha, quando a UNE
e, no outro dia, ninguém me falou nada. Aí, Gisela
Contra a chapa do PT. Eu construí uma ne-
pegou a bandeira das universidades particulares.
anunciou Patrícia, não me falaram nada. E eu virei
gociação com a Convergência Socialista, com a
O Estadão e a Folha de S. Paulo batiam na
secretário geral, queriam que eu fosse tesoureiro,
Causa Operária e com O Trabalho. Nós ganhamos
gente todo dia. Essa história é muito interessante.
mas eu disse que não. Então, em 1990, Patrícia
por cerca de 20 votos. Naquela época, não havia
Houve uma briga com os jornais de São Paulo e
de Angelis, do PCdoB no Rio Grande do Sul, tor-
essa coisa de ambições pessoais, nunca houve
foi aí que me consolidei candidato natural para
nou-se presidente; eu me tornei secretário geral
isso, a gente sempre fazia, ali, o desejo coletivo.
presidente da UNE.
e o vice-presidente era o Helder, um baixinho do
Mas, vou fazer uma análise agora. Confesso que,
E o congresso de Niterói, uma grande preocu-
Mato Grosso do Sul. Um dos principais caras da
quando virei secretário geral da UNE, fiquei doido
pação nossa, foi muito desorganizado. Lembro-
articulação era o [Alexandre] Padilha. Temos uma
para me tornar presidente. Vou revelar o que
-me que houve um jogo entre Vasco e Flamengo e
galeria do movimento estudantil. Eu, Orlando
ninguém revela: as ambições pessoais. Fiquei
foi todo mundo para o Maracanã. Vimos que não
[Silva], Luciane Lins, Padilha, Popo Parentes,
doido para me tornar presidente da UNE. Tanto
dava para organizar congresso no Rio de Janeiro,
todos se encontraram em Brasília. Tivemos a re-
é que fiz um trabalho dirigido. Estudei o mapa
ninguém ia. Não quero falar mal de cidades, mas
pública sindical e a república estudantil também,
nacional e vi, sobre a força do movimento estu-
congresso é bom em Goiânia, Campinas (risos).
a turma de 1992. Nós todos que brigávamos
dantil nas universidades federais, que a gente
Lá o congresso foi domingo, das 10 da noite às
naquela época viramos todos muito amigos. E se
ganhava no Nordeste e se ferrava no Paraná e em
6 da manhã. Fui eleito 6 da manhã! Lembro-me
formou uma rede de amizade, de camaradagem,
São Paulo. Fazia viagem para o Paraná, silencioso,
que peguei um ônibus... Minha irmã morava no
de torcida um pelo outro.
eu não queria que ninguém soubesse. Porque
Rio, estava morto de cansaço, peguei a barca em
Voltando à UNE, eu fui eleito presidente no
se alguém soubesse, do PT, os caras iriam para
Niterói, desci no Rio e peguei um ônibus para
outro congresso, em Niterói (RJ), em 1992. Um
lá. Foi um processo de interiorização da dispu-
Copacabana. Dormi e passei do ponto da casa
congresso muito duro, que nós ganhamos por
ta de delegado do movimento estudantil. De
de minha irmã. Desci do ônibus e peguei outro
20 e poucos votos. Fui candidato consensual.
certa forma, nós começamos uma ampliação,
de volta, perdi o ponto de novo.
132 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
Naquela época, setores do PT tinham uma grande preocupação com a estabilidade política do país. Achavam que não era o caso de derrubar um presidente eleito pelo processo legal ou por
Naquela época, não havia essa coisa de ambições pessoais. Mas vou fazer uma análise agora. Confesso que, quando virei secretário-geral da UNE, fiquei doido para me tornar presidente.
qualquer outro caminho, que se devia retificar o processo da política brasileira inventando ou propondo a ética na política. E havia setores outros que divergiam disso dizendo que aquele governo já tinha se esgotado... O movimento Ética na Política nós começamos, pode ir atrás dos arquivos, no dia 8 de agosto de 1992, em São Paulo, com Lula, num domingo, na Praça da Sé. No dia 11, marcamos uma passeata, Anos Rebeldes, Próximo Capítulo – Fora Collor. Na verdade, quem comprou a ideia? A UNE como um todo. Quem foi com a gente com muita força nessa tese? Nós, Convergência Socialista e MR-8. Uma parte do PT não acreditava na história. No movimento estudantil, a luta era muito dura. O que aconteceu? Depois do dia 11, começamos a
E aí o movimento do impeachment come-
uma personagem da Malu Mader, que era uma
mudar. Lembro-me que passamos a semana inteira
çou logo depois da sua eleição, como foi?
garota que namorava um militante, mas que
em sala de aula, na USP, e o meu discurso era o
Aí começou a Eco 92, teve uma marcha e
era aquela que queria casar e tal. E tinha a
seguinte: os estudantes lutaram muito contra a
aconteceu uma maluquice: um pessoal do
personagem da Cláudia Abreu, que foi quem
ditadura militar, os Anos Rebeldes também.
movimento estudantil do Rio disse que ia de-
fascinou o jovem naquela época. Ela queria
A minissérie estava fazendo a cabeça de todo
mocratizar a Eco 92, que era um absurdo ser
ir para a guerrilha, era uma mulher de luta
mundo. Dizia que a gente tinha que lutar con-
fechada. O pessoal falsificou ingresso numa
e tal. Eu e o Brasil todo ficamos apaixonados
tra a ditadura, que aquele governo do Collor
gráfica e fomos para as universidades distribuir
por Cláudia Abreu.
estava atacando as universidades, aí era como
entradas para o evento. Deu uma confusão,
Eu me lembro que fizemos o primeiro ato
se estivesse dizendo aos secundaristas que
mas botamos gente lá dentro. Começou a Eco
contra o Collor de fato nas ruas de São Paulo.
era a vez deles irem para as ruas. E foi criado
92, teve uma marcha, uma primeira passeata
Porque o movimento era pela ética na política,
um clima impressionante. [O secretário de go-
bacana pela ética na política, e começou aquela
a ética na política mobilizava... O que quero
verno do Collor Jorge] Bornhausen chegou a
crise do Collor.
dizer é que nem sempre as bandeiras mais
dizer o seguinte, sobre a minissérie: “Roberto
Simultaneamente, começou uma minissé-
radicais, mais à esquerda, são mais estreitas
Marinho deu um tiro no pé”. Aí, chamamos
rie na Globo – nós atentamos muito para isso
em termos de mobilização. Uma bandeira mais
o impeachment, fomos com esse discurso.
– chamada Anos Rebeldes. Uma minissérie
radical pode ter uma capacidade de mobiliza-
Recordo que cheguei às cinco e meia da
feita por Gilberto Braga que falava muito da
ção superior a uma bandeira dita mais ampla.
manhã na rodoviária de São Paulo exausto,
resistência à ditadura militar. E falava da luta
Isso é claramente a mudança do Ética na Política
cansado, depois de um encontro estudantil
da juventude com muito romantismo. Tinha
para o Fora Collor Impeachment.
muito difícil em Brasília, aí fui direto para a revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 133
Começou uma minissérie na Globo chamada Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. Tinha uma personagem da Cláudia Abreu que era uma mulher de luta. Eu e o Brasil todo ficamos apaixonamos pela Cláudia Abreu.
A atriz Cláudia Abreu interpreta Heloísa na minissérie Anos Rebeldes
134 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
USP. Não tinha celular, quando cheguei lá soube
contato com a Erundina, que já estava sabendo,
cou no seu editorial: “Quem é essa tal de Aliança da
que a Av. Paulista estava lotada. Foi uma loucura!
e com o Lula. E chamo Lula para o evento. E o Lula
Juventude Revolucionária”? Querendo assustar. Eu
Depois houve outras manifestações muito maiores,
e a Erundina chegam no final do evento, no largo
me lembro disso em detalhes, é impressionante.
mas a primeira [11 de agosto], que foi a mais
de São Francisco, onde se cria a primeira briga
Nós tínhamos a Juventude Socialista (JS) e a
importante, tinha 10 mil. Era muito naquele mo-
da gente com o MR-8 porque, ao chamar Lula,
Aliança da Juventude Revolucionária (AJR). Aí,
mento, estávamos em 92, tinha caído o muro e
anunciei-o como o maior líder popular da América
o menino [Eduardo] Saron, que hoje é diretor
no mundo não se movia uma folha, só se moviam
Latina. Ali, o pessoal do PT, que era contra, quando
cultural do Itaú, era o nosso diretor de assuntos
os estudantes do Brasil. Na Paulista, o símbolo
viu o Lula, aderiu.
funcionais, disse que nós tínhamos que fazer uma
do movimento era o MASP. Eram secundaristas,
Essa foi a primeira, dia 11, quarta-feira. Quinta-
visita ao parlamento. Aí, eu disse: “boa ideia, va-
muita gente da USP, mobilização como um todo.
-feira, capa dos jornais. O Globo não deu na capa,
mos!”. Marcamos, na sexta-feira, uma conversa
No meio do caminho, disse que precisava do
fez uma matéria no outro dia, foi estranho, todo
com [o presidente do Senado] Mauro Benevides...
telefone da Erundina (então prefeita de São Paulo)
mundo deu capa. O Estadão colocou na capa. Tinha
Essa história é ótima. Eu e Saron conseguimos pas-
e do Lula. Olhem como a coisa era maluca... Des-
umas faixas da Causa Operária que diziam: “Alian-
sagens de avião. Quando chego ao Senado, havia
ço com uma fichinha de orelhão e consigo fazer
ça da Juventude Revolucionária”. O Estadão colo-
uma bateria de fotógrafos e jornalistas, eram umas 100 pessoas de televisão, chegamos lá na hora do almoço. Todos aqueles caras da imprensa, eu não tinha dimensão de nada e pergunto: “Moço, onde é o gabinete do presidente do Senado, Mauro Benevides?” A imprensa toda ali na frente e eu pensando que ia conversar com ele. Eu dizia “presidente e tal”, e ele apertava a minha mão e
Depois houve outras manifestações muito maiores, mas a primeira (11 de agosto), que foi a mais importante, tinha 10 mil. Era muito naquele momento, estávamos em 92, tinha caído o muro e no mundo não se movia uma folha.
dizia: “Muito bem, muito bem”, posando para as fotos (risos). Era o jogo da foto somente, não teve conversa nenhuma. E eu querendo conversar com o cara. Collor, nesse dia, reagiu, chamando o povo para ir às ruas de verde e amarelo. Um cara da OAB de São Paulo, Sérgio da Cunha, me disse em Brasília: “Não vamos cair nessa”. Ele queria que a gente chamasse o povo para sair de preto. Era para ter chamado e ninguém chamou, não foi a UNE quem chamou! Foi uma bobagem. Não fomos nós que chamamos no domingo, ninguém chamou. Domingo era o dia que Collor tinha chamado o povo para defendê-lo, mas no fim aconteceu o contrário... Como se deu isso? Eu, por acaso, estava no Rio. Estava na casa da minha irmã, que morava em Copacabana, quando vi, de manhã cedo, uma onda indo para a praia. Eu corri, consegui um carro de som, revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 135
fomos para a praia e fizemos uma onda no
Já era mais ou menos meados de agos-
para o Anhangabaú. Nessa de levar o povo para
Rio. O diretor André Bezerra ligou na hora,
to? Segunda quinzena de agosto? Esse
o Anhangabaú, chegamos uma hora depois da
de São Paulo, e disse que ia todo mundo de
movimento que derrubou o Collor levou
passeata, esse pessoal ia ficar para um evento
preto, por acaso entramos no processo da
quanto tempo?
mais tarde que a gente tentou unificar com a
mobilização. Foi espontâneo mesmo, não
Foi tudo muito rápido: de agosto, [momen-
CUT, dirigida pelo Jair Meneguelli. Esse foi o
teve nenhum cidadão que disse: “Vamos sair
to das] manifestações, até 29 de setembro, o
grande ato do Anhangabaú. Tem uma foto na
todo mundo de preto”. Era para ter sido eu,
impeachment do Collor. O negócio cresceu
Folha de S. Paulo, “Diretas e Impeachment”, a
fiquei com isso na minha boca, me arrependi
tanto, era tanta passeata em São Paulo, que
foto por cima. Fizemos essa passeata-monstro,
muito, mas não fui eu. Podia até dizer que eu
houve uma reunião que foi fantástica, essa a
levamos para o Anhangabaú. Então, os gover-
chamei, mas seria mentira. Fiquei impressio-
história merece contar. O governador de São
nadores estavam almoçando e o MR-8, que
nado como é que todo mundo saiu de preto
Paulo, Fleury [Filho] fez uma reunião com os
adorava essas coisas, disse “vamos ao almoço
ao mesmo tempo. Não teve um rádio, uma
governadores e presidentes dos partidos lá no
do Fleury”. Cheguei eu, de cara pintada, todos
TV fazendo o movimento. A partir dali, cada
Palácio dos Bandeirantes para discutir o impe-
os governadores, os presidentes dos partidos
dia era uma passeata diferente. Comecei a
achment. Nós tínhamos uma passeata de dia
perfilados, de pé, e entramos triunfantes no
encontrar muito o Lula.
que já tinha 400 mil pessoas, levamos o povo
Palácio dos Bandeirantes.
Olhem como a coisa era maluca... Desço com uma fichinha de orelhão e consigo fazer contato com o Lula. Ele chegou e o anunciei como o maior líder popular da América Latina. Ali, o pessoal do PT, que era contra o impeachment, começou a aderir. 136 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
Era reunião de governadores para discutir
Como é que vocês foram agregando outras
Não é um jovem politizado e tal. Como o Nelson
o quê?
parcelas da juventude além do movimento
Rodrigues escreveu sobre a Passeata dos Cem Mil,
estudantil?
em 68, tem uma hora que ele diz que as moças
O processo do impeachment. Governadores, presidentes dos partidos, João Amazonas [líder
Primeiro, uma coisa que ajudava ali, fruto do
falavam “não posso sentar minha Calvin Klein
do PCdoB] estava lá, todos! Nós entramos, e dali
próprio processo do movimento estudantil e aber-
nesse chão”, dizendo que era uma passeata eliti-
surgiu uma grande paixão na minha vida, que é
tura dos congressos da UNE, era a cara nossa da
zada, de classe média e que não havia um negro,
o Vale do Anhangabaú – eu troco qualquer coisa
UNE naquele tempo. Não só eu. A gente não falava
um vendedor de mariola. Tinha uma diferença. O
na minha vida se alguém me chamar para falar
“companheiro”, “camarada,” falava “galera”. Tinha
cara não queria o esquema tradicional do comício,
naquele Vale do Anhangabaú, em São Paulo. É a
também a Tininha Petta, de Campinas, que quando
dos discursos. A turma queria ser protagonista.
sensação mais deliciosa que existe no mundo.
falava, era um sucesso. Era um movimento muito
Uma vez, estávamos num congresso estudantil
amplo, bem secundarista, não falava a lingua-
no Uruguai e teve um comício do Suplicy que foi
gem de partidos. E houve uma rebeldia juvenil,
Numa primeira passeata em São Paulo, não
lá no Anhangabaú. Convidaram-me para falar
os colégios particulares, cartas e cartas que foram
sei de onde veio. Começaram a pintar... Era uma
e eu voltei, porque o Anhangabaú é mágico!
perdidas, não sei onde andam, de declarações de
forma de o cara dizer: eu estou aqui! Não estou
Parece que quando as pessoas estão ali, quan-
mães que botaram filhos de castigo, porque eles
aqui seguindo um líder, aquela coisa tradicional.
do você fala, tem um retorno – não sei se era
pularam os muros dos colégios. Colégios particula-
No começo a gente até tinha resistência, eu não
pelo momento da história. Teve esse negócio
res tradicionais, as diretoras ficavam loucas... Tinha
queria pintar minha cara. Mas saiu no jornal umas
no Vale do Anhangabaú, foi a maior passeata
uma crítica grande que dizia que era muita festa,
fotos de umas meninas da primeira passeata
(em 25 de agosto).
que só iam nas passeatas porque ia todo mundo.
e a coisa pegou.
E a ideia de pintar a cara, da onde veio?
As entidades estudantis protagonizaram as passeatas pelo impeachment de Collor
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 137
Tinha também as palavras de ordem. O que eram? Eram as musiquinhas, como uma espécie de marchinha de carnaval. Eu sou um cara completamente sem ritmo, tenho grandes dificuldades. As mais complexas não era eu que cantava, mas entrava no meu: “PC, PC, vai pra cadeia e leva o Collor com você”. O Hino Nacional tinha muita força também. O Sem Lenço e Sem Documento de Caetano entrou pela influência dos Anos Rebeldes. E aquele movimento, por incrível que pareça, teve Geraldo Vandré. Porque era um movimento que trazia na minissérie da Globo e, nas nossas falas, na minha, em especial, havia um peso muito grande da coisa da história de 1968, que sempre achei o máximo. Foi um processo de politização dos jovens de classe média também? Muita gente, uma geração quase inteira, amadureceu na vida política do país, partindo daquela experiência. Se a gente teve um presidente como o Lula no poder, estou convencido de que esses processos todos ajudaram na construção desse momento. Tem uma geração ali que viveu um processo grande de politização, por motivos diversos. Uns foram por mensalidades escolares, outros por problemas nas universidades públicas. As universidades públicas estavam em guerra. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência [SBPC] teve um corte de recursos no CNPq, o Ennio Candotti escreveu um artigo na Folha de S. Paulo, tinha uma série de coisas acontecendo, várias questões diferentes. E a corrupção... Acho que muitos iam para a festa também, e ali participaram de um evento importantíssimo da história. Vivo encontrando gente que está nas mais diversas áreas da vida e que participou disso. E eu participei, rapaz, fui 138 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
Os jovens vestindo preto durante o Fora Collor foram a marca daquela geração
Naquela maior passeata surgiu uma grande paixão na minha vida, que é o Vale do Anhangabaú. Eu troco qualquer coisa pra falar lá, é a sensação mais deliciosa que existe no mundo.
Lindbergh ao lado de Dilma Rousseff em comício do Dia do Trabalhador, no Vale do Anhangabaú, em 2016
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 139
às passeatas, estive nas passeatas, e aquilo
dente. Por quê? A saída dada pelo parlamento
as privatizações. Então o processo aqui no Bra-
é como um feito na vida da pessoa. E isso
foi uma saída que ajudou à recomposição do
sil foi diferente, e o processo do impeachment
ajudou na construção de um momento que
projeto neoliberal, eles se recompuseram e
foi fundamental nessa história. A gente não
a gente viveu, com a vitória do Lula.
voltaram com Fernando Henrique. Se fossem
interrompeu o projeto neoliberal, mas a gente
eleições diretas, o Lula ganhava, ou então
deu uma brecada, mesmo que momentânea.
Olhando para trás, como você vê o pro-
seguia a crise, massas mobilizadas, governo
cesso do impeachment de 92?
Collor. Teria uma linha política mais precisa.
Qual foi a relação da UNE com o governo
Podia até pegar a imagem de Diretas Já. E
Itamar, que veio em seguida?
Foi uma polêmica o impeachment. Quando fomos para o Fora Collor, eu não estava
dávamos o xeque-mate na direita.
O governo Itamar era um governo de crise.
certo nem das posições do PCdoB, qual era o
Mas, mesmo que eles tenham se recom-
Quando teve o impeachment do Collor, nós,
caminho. Teve uma primeira proposição que
posto e voltado com Fernando Henrique, a
da UNE, fizemos uma carta de intenções para
chegou a ser aventada por nós, por alguns
gente conseguiu impedir o ritmo de implan-
entregar para o presidente Itamar Franco. Ele
dias, que seriam eleições. O PSTU saiu com
tação daquele projeto. Vocês viram como foi
recebeu, antes de qualquer outra pessoa, a
eleições gerais. Ficamos meio sem saber o que
o presidente Carlos Menem, na Argentina, a
nós da UNE. Quem escreveu fui eu, André
fazer e acabamos indo para o impeachment.
velocidade da Argentina? A situação da Ar-
Bezerra e Fernando Gusmão, na minha casa,
Eu não sei precisar, me lembro que dei uma
gentina entre 1989 e 1999 foi diferente da
na Paraíba. Fizemos uma reunião de dois
declaração à Veja, teve um processo interno no
do Brasil, porque aqui teve uma luta, teve o
dias, uma carta longa, cheia de conversa, de
PCdoB de discussão. Hoje, se eu fosse exami-
impeachment e, mesmo depois de Fernando
história. Primeiro, falamos de privatização.
nar aquele processo, diria que defenderia tudo
Henrique, teve resistência popular. Tinha a
Porque Itamar Franco assumiu com a gente,
igual, mas que a saída seria eleição para presi-
ameaça do Lula e tinha o povo nas ruas contra
criou um grande debate já no começo do seu governo. E aí começamos a apanhar de tudo que é editorial, foi quando a gente começou a apanhar muito! Tentaram desmoralizar a UNE, teve todo tipo de ataque, ataques pessoais. Fiquei assustadíssimo. Entendi que queriam nos desmoralizar como lideranças dos estudantes. Aí nós decidimos o seguinte: já tinham as lutas das particulares, decidimos
A gente não falava ‘companheiro’, ‘camarada’, falava ‘galera’. Era um movimento muito amplo, não se prendia à linguagem de partidos. 140 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
que tínhamos que assumir uma luta de cada vez, com mais força. Então, fomos para a luta das particulares, que foi tão grande que segurou aquele movimento do impeachment no segundo semestre. O Fernando Gusmão, [diretor] das particulares, acabou ganhando uma eleição depois. E teve uma greve geral, na minha presidência da UNE. Uma greve de 22 dias, não foi? Que terminou com a medida provisória de Itamar Franco. No governo dele tivemos vitórias sobre a mensalidade escolar, contra
abusos de aumento. Foi uma medida provisória, que disseram que era intervencionismo no mercado, na economia do mercado. Antes disso aí, teve uma briga, principalmente com o Estadão, que batia na gente todo dia. Eu cheguei a ameaçar, era uma guerra aberta. Tinha passeata com 100 mil, aí eu mostrava o jornal e dizia: “olha, quem está pagando a publicidade?” Foi uma guerra de proporções duras. Vocês sabem o que é apanhar desses caras. Nós seguramos bonito, nós aguentamos na mobilização de massas. Nós estávamos tão ousados depois do impeachment que achávamos que podíamos tudo em termos de mobilização. Teve um dia que fomos para uma audiência com Murílio Hingel, ministro [da Educação] de Itamar Franco, fomos quatro pessoas da UNE, eu, Mauro Bianco, Ricardo Gomide e Leonardo Severo. Chegamos lá e tivemos uma audiência que acabou às 5 horas da tarde. Aí, dissemos: “Vamos fazer uma passeata em Brasília?”. Saímos pelas universidades com caixa de som, chamando o pessoal, e
As passeatas também tinham muitas músicas do Renato Russo: Que País é Esse, Geração Coca-Cola; e ele ficou encantado, aquele negócio das passeatas mexeu com ele.
fizemos! Estávamos abusados. Não existia o Plano Real. Depois de um certo tempo, a inflação veio muito forte e isso fez com que as escolas aumentassem [as mensalidades] antes do prazo. Elas aumentavam todo mês. A greve parou o país. Foi perto do final do meu mandato, maio de 93. E a sua relação com o mundo que era um tanto afastado da luta política, da ação política, com o mundo artístico? Você ficou próximo do Renato Russo? Com o Renato Russo aconteceu uma coisa interessante. Naquela época, me chamaram para um debate sobre um filme de Glauber Rocha, Terra em Transe. Quem me chamou foi um teatrólogo, Mauro Rasi, que já tinha
O cantor Renato Russo, da Legião Urbana
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
141
escrito um artigo falando mal de mim. Eu já
Quando você se deu conta de que a UNE
de uma frase do Ibsen Pinheiro que ele disse
conhecia e gostava de Glauber, mas li todas
estava com muita carga?
“primeiro a artilharia, depois a infantaria”. Nós
as críticas no Brasil e no mundo sobre Terra
No começo do impeachment, da passeata, teve
nos irritamos muito com essa frase. Lembro-me
em Transe. Fui preparado, fiz de conta que
uma história interessante, quando eu disse que
que, quando acabou a votação do impeachment,
foi uma surpresa rever o filme (risos)... E fui
tomamos um susto lá no Congresso, e também
nas galerias, o Lula pegou na minha mão e na
simplesmente brilhante no dia. Aí, no meio
quando fomos a São Paulo e fomos sair à noite
mão do Meneguelli e saímos por dentro da
do debate, alguém falou alguma coisa sobre
para o Bexiga, depois das primeiras passeatas.
Câmara, Lula com nossas mãos levantadas, e
a UNE. No meio daquilo, surge um cara e diz:
Fui para dois bares, com a turma da UNE, e os
o pessoal nas galerias aplaudindo. Andamos
“Não falem mal da UNE nem do Lindberg”.
donos dos dois lugares não deixaram a gente
pelos corredores e a turma aplaudindo. Eu,
Quem era o cara? Renato Russo... Estava na
pagar a conta. E pegamos uma blitz, o policial
garoto, feliz da vida, isso era a glória. Saímos
plateia e eu não tinha visto! Esse encontro
ficou nos olhando e falando bem da gente. Pensei
e lá tinha uma vigília, 100 mil pessoas, e nós
meu inusitado com o Renato Russo foi capa
logo: estamos fortes. Tudo isso foi no começo.
descemos para o meio da massa: foi apoteóti-
do Segundo Caderno, do Estadão, ele falando
Mais 10 dias, e teve a coluna do Castelo, que
co... Saímos muito fortes do processo. Depois,
da UNE. As passeatas também tinham muitas
era importante, no Jornal do Brasil: “Quem é
porrada, porrada, a gente segurou, resistiu, veio
músicas do Renato Russo: Que País é Esse, Ge-
Lindberg Farias?”. A imprensa jogou no começo
a história da mensalidade escolar e acabou.
ração Coca-Cola; tinha Titãs, Cazuza e Legião.
do impeachment a ideia que não tinha liderança,
E ele ficou encantado, aquele negócio das
era um movimento sem UNE e nos firmamos
Voltamos a 29 de setembro de 1992,
passeatas, mexeu com ele de algum jeito...
rapidamente no meio dos estudantes. Agora,
dia de votação do impeachment no Con-
E eu desenvolvi uma relação de amizade e
vou dizer o seguinte: só deram colher de chá à
gresso Nacional, você com o Lula e Jair
proximidade muito grande. Tenho algumas
gente na imprensa depois que estávamos conso-
Meneguelli, presidente da CUT, de mãos
coisas do Renato guardadas, livros, dedicató-
lidados. Houve uma resistência ao nosso grupo
dadas, comemorando, sendo saudados
rias bacanas. Nunca usei nem vou usar, não é
de uns 10 dias. Aí criamos uma onda, uma força
pelas pessoas, depois indo para a mani-
para isso. Guardo com muito carinho. Inclusive
muito grande nas passeatas e tudo. Em todos os
festação nas ruas. Mas como é que foi
ele me aconselhou muito a não me candidatar
eventos grandes, eu só não era mais aplaudido
sua vida depois disso? Você terminou
a deputado, depois. Ele dizia: “Lindberg, não
que o Lula, todo o resto era isso.
o mandato quando?
vá ser deputado, tenho medo que você fique
Terminei em 1993, no congresso em Goi-
como aqueles deputados gordos...” (risos). Era
Alguma comissão da Câmara dos Depu-
ânia, que elegeu Fernando Gusmão, quan-
um símbolo para ele dizer que o cara era um
tados ou alguma instituição de dentro
do tivemos uma grande força de Brizola.
político escroto...
do Congresso Nacional chamou a UNE
Não parou um segundo de luta, focamos
Na verdade, toda relação que tive com um
para fazer um depoimento ou uma ses-
muito em mensalidade escolar, teve uma
bocado de gente no Rio surgiu a partir do
são especial ou uma reunião de comis-
greve estudantil em maio. A pancadaria foi
Renato Russo. Foi ele quem me apresentou
são? Ou vocês iam ao Congresso para
direta. A gestão de Fernando Gusmão era de
ao Dado Villa Lobos, Tony Platão, um músico
fazer as manifestações lá na Esplanada
lutas estudantis no governo Itamar Franco.
que na época era amigo dele, a Léo Jaime,
e entravam para articular?
A queda foi com a vitória de Fernando Hen-
Letícia Sabatella, Ângelo Antonio. Eu virei
As passeatas davam um trabalho muito gran-
rique Cardoso, com respaldo bem menor.
jogador do time do Betinho, por um ano e
de. Nessas décadas de 80/90 tinham muitos
Mas, com força de massa, seguramos um
tanto viajava pelo Brasil inteiro, eu era do
dias unificados de luta. Acabamos com esses
bocado de tempo. E isso merecia um des-
time dos artistas. Jogava com Marcos Winter,
dias, gostávamos do efeito cascata, estávamos
taque um dia, para alguém estudar. Depois
Chico Buarque, tinha o time da velha guarda,
cada dia num lugar diferente. Acho que foi um
da artilharia pesada do impeachment, nos
Carlinhos Vergueiro. Isso foi muito bacana,
acerto nosso não ficar só nesse eixo de Brasí-
seguramos nos estudantes. Movimento de
mas toda ponte quem fez foi o Renato.
lia. Criávamos um fato todos os dias. Lembro
massa, nos estudantes.
142 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS
O senador em 2017, durante manifestação contrária ao governo de Michel Temer em São Paulo
Lindbergh e Lula
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista LINDBERGH FARIAS 143
,
O
rlando Silva de Jesus Júnior nasceu em Salvador, Bahia, em 27 de maio de 1971. Começou sua trajetória política no movi-
mento estudantil, tendo sido presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) de 1995 a 1997. Cursou o secundário no colégio estadual João Florêncio Gomes, na sua cidade-natal e, em 1989, ingressou na Faculdade de Direito na Universidade Católica de Salvador, onde foi membro da diretoria do Centro Acadêmico Teixeira de Freitas, de 1990 a 1991. Nesse último ano, foi eleito para a direção do DCE da sua universidade, onde permaneceu até metade de 1992. Em seguida, foi tesoureiro da União Nacional dos Estudantes e, um ano depois, diretor de comunicação. Em 1995, tornou-se o primeiro negro a ocupar presidência da UNE. Uma década e meia depois, no governo Lula, exerceu os cargos de secretário Nacional de Esporte, secretário Nacional de E sporte educacional e secretário-executivo do Ministério do Esporte, além de ter sido titular da pasta no governo Dilma e integrar atualmente a Câmara dos Deputados, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Nas próximas páginas, ele explica como o movimento estudantil abraçou a causa negra durante o seu mandato e se declara um grande entusiasta da organização juvenil, segundo ele, pelo fato de englobar diferentes pautas da sociedade. (Entrevista concedida a Javier Alfaya em 2006)
Orlando Silva, o primeiro presidente negro da UNE
146 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
Você foi o primeiro e o único presidente
a escolha do primeiro presidente negro da UNE
da juventude, sobretudo. Era a faixa, digamos
negro da União Nacional dos Estudantes
foi uma coincidência muito feliz, um marco
assim, de consolidação democrática. O país
(UNE). Isso é uma coisa muito significa-
num momento importante da luta antirracista
respirava democracia. A discussão de eleição,
tiva do ponto de vista da sua biografia e
no Brasil, protagonizada pelos movimentos
de reitor a presidente, era uma agenda forte
também um alerta pelo fato de ter sido
negros. E o fato de ser baiano, soteropolitano,
na universidade. Meu ambiente político de
o único. Qual sua avaliação acerca disso?
é também digno de nota, por ser a cidade de
início de militância foi um ambiente de afir-
Primeiro, só poderia sair de Salvador um pre-
Salvador, marcantemente negra. Aliás, é um
mação da democracia, sobretudo marcada
sidente negro da UNE, pela presença africana na
fato que individualiza nossa cidade, no estado,
pelas eleições presidenciais. Eu comecei na
cidade. Há aí expressão cultural, mas, também,
no país, talvez no continente, pelo contingente
universidade assim: tive a oportunidade de
expressão política. Houve uma feliz coincidência
de negros que a habitam.
ter uma vivência rica na Universidade Cató-
por aquele ano de 1995 ter sido a celebração
Minha experiência começou quando fun-
lica de Salvador (UCSal), onde eu tive uma
dos 300 anos de Zumbi dos Palmares. Foi um
damos o grêmio do colégio e entramos, com
militância mais ativa, mas na Universidade
ano inteiro de celebração na minha terra, de
dois anos de militância estudantil, na univer-
Federal da Bahia (UFBA), onde também tive
mobilização, de lutas em torno dessa questão,
sidade, podendo já viver ativamente aquele
uma vinculação ao curso de Ciências Sociais,
chegando ao ponto de o então presidente, Fer-
processo de luta estudantil intensa. Coincidiu
também houve colaboração para o meu apren-
nando Henrique Cardoso, reconhecer o dia 20
a minha entrada na universidade com a pri-
dizado como liderança estudantil, pois o mo-
de novembro (depois de uma grande marcha
meira campanha de Lula para a presidência,
vimento da UFBA é muito tradicional, muito
que os movimentos negros patrocinaram em
em 1989. Foi uma campanha muito tocante,
politizado, muito organizado. Então a gente
Brasília), reconhecendo Zumbi dos Palmares
marcada pela mobilização do conjunto da
pode viver um pouco da experiência da Ca-
como herói nacional. O fato de ter sido em 95
sociedade, da esquerda, particularmente, e
tólica e da Federal.
Foi uma coincidência muito feliz a escolha do primeiro presidente negro da UNE ter sido em 1995, ano da celebração dos 300 anos de Zumbi dos Palmares.
O estudante Orlando, orador exemplar
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA 147
Iniciei a militância num ambiente de afirmação da democracia. Em 1989, o país respirava democracia. A discussão sobre eleição, de reitor a presidente, era uma agenda forte na universidade. Na trajetória antes da presidência da UNE,
mo nordestino presidente da UNE. É que, na
percebemos naquela fase, de 92 a 95, um di-
você já tinha consciência da importância
medida que você tem uma concentração ab-
álogo com lideranças negras, com movimentos
que poderia ter ser um líder nacional
soluta de universitários no eixo Sudeste-Sul, o
negros. Eu participei da preparação da Marcha
negro ou isso ainda não passava na sua
peso político dessas regiões acaba sendo mais
de Zumbi dos Palmares em vários estados. Isso
cabeça? Você era uma novidade?
acentuado. As bancadas em congressos da UNE
de ser negro motivava os movimentos negros
A tradição do movimento secundarista numa
acabam refletindo o adensamento de alunos
a abrirem uma interlocução com o movimento
cidade como Salvador é possuir participação
e matrículas nessas regiões, e no Nordeste
estudantil. Criou-se um ambiente, em 1995,
negra efetiva, até porque as escolas públicas
também rareia mais a participação negra na
de debate em torno dessa questão.
têm um peso importante. Mesmo na universi-
universidade, entre lideranças do movimento
O que acontecia também foi interpretado de
dade, na Bahia, há participação relativamente
estudantil. Então, na Bahia, vendo o peso da
modo invertido por alguns. Fomos acusados
maior de negros que em outros lugares. Apesar
população negra, acaba sendo relativamente
de oportunismo, porque era o ano de Zum-
de que, nos cursos, digamos assim, de elite –
menor a singularidade, digamos assim, de ser
bi dos Palmares e a minha corrente política
Medicina, Direito – existe uma participação
uma liderança negra. Mas, no plano nacional,
apresentou uma candidatura negra. O que é
bem inferior à média. Mas, de fato, nos movi-
essa singularidade ganha um peso maior e
um equívoco, uma bobagem, porque deveria
mentos secundaristas, não seria tanta novidade
ganha um peso histórico, porque, em pers-
ser valorizado termos exposto uma liderança
assim. Já na universidade, é mais. A década
pectiva, não é simples a projeção de quadros
negra num ano singular como aquele. Isso
de 1990 foi de alteração no perfil do ensino
de lideranças negras nesse ambiente.
colaborou para que fosse introduzida essa
superior brasileiro. O período de Fernando
Minha eleição foi importante no plano nacio-
temática no interior do movimento estudan-
Henrique foi de explosão do ensino privado
nal. Quando eu passei a ter uma militância na-
til. No congresso da UNE, houve resoluções
no Brasil. E a expansão se deu sobretudo na
cional na UNE, desde a época do impeachment
específicas, e congressos posteriores, depois
região Sul e Sudeste do país, no ensino privado.
de Fernando Collor de Mello, como tesoureiro,
que eu saí, continuaram apontando essa temá-
Isso é importante porque, inclusive, houve uma
pudemos já perceber a singularidade de ser
tica. Houve encontro de universitários negros.
alteração na correlação de forças no movimento
um negro entre os principais quadros no mo-
Ajudou a diversificar a agenda do movimento
estudantil. Não é por acaso que eu fui o últi-
vimento estudantil. E foi importante porque
estudantil brasileiro.
148 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
Orlando trouxe a pauta do movimento negro para dentro da entidade
Você passou por algum episódio ou al-
assim, com os traços absolutamente identifi-
guma situação em que tenha percebido
cados como povo africano, é fator de maior ou
o fato de sua negritude influir negati-
menor possibilidade de ascensão social. Na
vamente, gerando resistência?
verdade é uma bobagem, porque a negritude
Resistência, não. Ao contrário, acabava crian-
é fato sobre a identidade cultural, uma vez que
do – pelo ambiente da época – um clima favorá-
não há diferenças entre as raças. A diferença é,
vel. E foi um fator de repercussão. A maioria dos jornais, no dia seguinte à minha eleição, repercutiu a UNE ter eleito seu primeiro presidente negro da história. Acontecem fatos curiosos, mas que são reveladores na estrutura com que o racismo se manifesta no Brasil, fatos curiosos, com gente absolutamente gentil. O Pedro Simon, que era senador e importante liderança do PMDB gaúcho, a primeira reação dele quando me viu foi: “Você não é tão negro assim!”. Do jeito dele, uma manifestação de subestimação do fator principal da cultura da negritude, que é a identidade étnica das pessoas. O que “não é tão negro assim” acaba sendo tolerado por determinado tipo de posição; os que são “mais negros assim” acabam sendo menos tolerados por determinado tipo de posição. Então, se o fenótipo não é absolutamente negro, digamos
O fato de ter um presidente negro colaborou para que o movimento estudantil brasileiro diversificasse sua agenda.
sobretudo, um fator de identidade cultural. Mas acredito que, no conjunto, somou mais. Também nunca esqueço: descendo em Mato Grosso, na primeira viagem que fiz àquele estado, numa entrevista coletiva, chegou a primeira repórter; “Mas é você?” Isso ficou guardado para mim como se fosse um certo estranhamento. O que a sua presidência impactou, em termos de mudança de preocupação no movimento estudantil, e o que de fato foi incorporado como prática permanente? Essa temática racial, a participação na universidade, de alunos negros, surgiu mesmo antes do congresso em que eu fui eleito presidente. Aconteceu no Seminário Nacional de Universitários Negros, cujas resoluções foram pautadas na gestão que eu participei. Na minha gestão, revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA 149
Precisamos dar um passo além. Se só universalizarmos o ensino, permitiremos o crescimento ainda relativamente menor da presença da população negra, com a qual a sociedade brasileira tem uma dívida secular. surgiu um debate na universidade, porque não
sociedade brasileira tem uma dívida secular, um
Eu diria que os anos 1980 introduziram a questão
basta apenas levantar a bandeira, tem que haver
passivo que, para superar, vai exigir um investi-
ambiental, das mulheres, a temática negra... São
medidas concretas para a realização disso. O que
mento consciente, prolongando. Sequer serão
temáticas ainda se consolidando no movimento estu-
isso significa? Significa investimento na educa-
as cotas que, no curto prazo, irão resolver esse
dantil. E tenho impressão que a minha presença como
ção básica, que é onde se formam aqueles que
passivo secular que nós temos.
negro no movimento naquele período colaborou
ingressam na universidade. A minha gestão foi
A geração dos anos 1980 absorveu e alterou
para avanços. O que nós vivemos, de a temática racial
o período em que nós aprofundamos o debate
conteúdos e perfis do movimento estudantil.
retroagir no ambiente do movimento estudantil, até
sobre cotas raciais nas universidades brasileiras,
A dos anos 1990 foi herdeira de uma parte
porque ficou muito focado em torno de “cotas sim,
que é um tema aberto. Não é um tema fecha-
difícil dos anos 1980, de crise do socialismo
cotas não”, reduziu enormemente o conteúdo do
do. Ainda hoje. Evidentemente que, no meu
da chamada pós-modernidade; da absoluta
problema, que é ampliar a participação de negros
ponto de vista, a questão de raça e de classe se
fragmentação de interesses de temas que ainda
nas universidades brasileiras e, mais do que isso,
entrelaçam. A pobreza no Brasil tem cor. Isso os
hoje estão por serem incorporados pela pauta
introduzir certas temáticas, como tradição africana, a
números, as pesquisas revelam e as políticas
do movimento estudantil. Mesmo a temática
história da África, que são temáticas secundarizadas,
universalistas repercutem para a participação
das mulheres, um debate dos anos 70, ainda
tratadas como tema fora das cadeiras vinculadas ao
de negros nas universidades brasileiras. Agora,
hoje é uma temática a ser abordada. Numa
estudo da história da humanidade. E, pelo peso que
apesar de reconhecer isso, eu, particularmente,
história de quase 70 anos, apenas três mulhe-
a raiz africana tem na cultura brasileira e na nossa
tenho a convicção de que é preciso dar um passo
res, se não me engano, foram presidentes da
formação histórica, valeria a pena uma outra abor-
além. Avançar um pouco mais é ir além do uni-
UNE. [Depois desta entrevista, Lúcia Stumpf
dagem, e talvez do movimento estudantil. Acredito
versalismo das políticas públicas, porque se só
foi eleita, em 2007, Virgínia “Vic” Barros, em
que o movimento estudantil pode valorizar mais
universalizarmos, permitiremos o crescimento
2013, e Carina Vitral, em 2015, na primeira
essa questão da formação social histórica brasileira,
ainda relativamente menor da presença da po-
transferência de mandatos entre mulheres na
porque isso pode servir como base para uma visão
pulação negra, que é a população com a qual a
história da UNE.]
da raiz africana, é uma raiz importante.
150 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
Orlando ao lado de Lula, Nuzman e Pelé na escolha do Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos
A UNE foi a sua grande escola de fato? Te
Na Universidade Católica, em Salvador,
Eu tive o privilégio de, como dirigente da
abriu as portas, te capacitou para ser, por
eu tive uma experiência de luta importante,
UNE, percorrer todos os estados da federação,
exemplo, ministro do Esporte?
de combate ao aumento de mensalidades.
conhecer de perto um pouco da realidade
Eu considero que o movimento estudantil,
Mas, na UNE, o sentido é nos ligarmos da
diversificada que tem o nosso país. Ficar à
particularmente a UNE, é uma escola de po-
luta específica à luta geral. O sentido da
beira do Amazonas, em Macapá, conhecer
lítica, uma escola de vida. A experiência que
UNE é colaborar com a construção diferente
o Pantanal, Mato Grosso, Rio de Janeiro,
um dirigente da UNE tem, de conviver com as
do Brasil, tanto que a UNE é reconhecida
São Paulo, grandes centros; interior do Rio
grandes lideranças políticas do país, também
pelas lutas específicas, de reforma univer-
Grande do Sul, que é outro mundo, outra
permite um desenvolvimento único. Foram
sitária, de qualidade da educação superior,
realidade. Então, a experiência que a UNE
longas conversas com Leonel Brizola, relatan-
mas ela é conhecida, sobretudo, pelas lu-
permite, de conhecer o Brasil, é uma expe-
do os processos históricos dos anos 60, 70...
tas gerais. A luta pelo impeachment de
riência única. E conhecer o Brasil a partir de
Encontros com João Amazonas, grande líder do
Collor; a luta pela redemocratização do
um olhar crítico daqueles que constroem as
Partido Comunista, que nós tivemos o privilé-
Brasil, a luta pelo petróleo, as reformas de
universidades nos vários cantos desse país.
gio de chegar mais perto nos anos 90 em São
base. São as grandes lutas que, historica-
Eu diria que a UNE foi uma escola de Brasil
Paulo; Lula, que também tivemos oportunida-
mente, elevaram a UNE a um patamar de
importante. E uma escola de vida por causa
des inúmeras de ter contato. A UNE serve por
patrimônio político do país. Sendo assim,
do convívio que se tem com militantes de
isso. Pela oportunidade que dá de conhecer o
a UNE serve como escola de vida, serve na
várias realidades. Além disso, a realidade de
Brasil, de conhecer as grandes lideranças e se
nossa formação intelectual. O movimento
estar em São Paulo, para mim, um jovem de
aproximar de intelectuais, de personalidades
estudantil é uma outra universidade que
20 anos, acabou me permitindo criar certos
da crítica e, sobretudo, é uma escola política,
serve para formar gerações de brasileiros,
laços de solidariedade, certos mimos, de
porque nos aproxima mais da luta, e da luta
a maior parte deles, inclusive, vinculados
vivenciar experiências que seguramente vou
geral, não só da luta específica, corporativa.
à transformação do país.
carregar até o final da vida. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
151
Você concorda, como diz Caetano, já que falamos de Brasil, de brasilidade, que São Paulo é um mundo todo? São Paulo é o mundo todo. São Paulo é uma cidade de todos os povos. Uma cidade dura no começo, difícil da pessoa se reconhecer nela, como Caetano falava, “Narciso acha feio o que não é espelho”... Mas, à medida que nos aproximamos dela, convivemos com ela, conhecemos, já descobrimos. Passamos a ter uma relação diferenciada. Você viveu também experiências fora do Brasil, participando de festivais mundiais de juventude e estudantis, de encontros da União Internacional de Estudantes (UIE), da Organização Continental Latino Americana e Caribenha de Estudantes (OCLAE); portanto você circulou no Nepal, na Europa, algumas vezes em Cuba, conheceu gente de muitos lugares e partidos. Como você avalia essa
O então presidente da UNE durante reunião com estudantes
experiência com a juventude internacional? Do ponto de vista do campo socialista, comunista, revolucionário, os anos 1990 foram uma época de crise, e a crise nos conduziu a uma perspectiva renovada de ruptura com modelos. Isso repercutia no movimento estudantil. Havia esquemas no movimento estudantil. Modelos. A própria OCLAE era muito vinculada a uma perspectiva, digamos assim, soviética; um pouco estreita e pouco permeável aos novos agentes. Então nós tivemos a oportunidade de poder viver o processo de renovação que a entidade viveu, a partir dos anos 90, toda a década de 90 pôde respirar um pouco mais. E respirou com a participação brasileira, pois a UNE era a entidade principal da região e acabava subestimada, em função de ser dirigida por quadros com visões distintas da visão soviética. Então o movimento estudantil me permitiu viver essa experiência muito interessante com esse processo de renovação da OCLAE, me aproximou de muitos quadros aqui na América Latina. Engraçado que, hoje, a gente 152 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
Orlando em reunião com a diretoria da UNE
vai em Cuba e muito do staff político, muitos são
de ir em quatro continentes. Alguns eventos na
egressos do movimento estudantil da OCLAE, da
Europa, na Ásia, na África... Só não estive na Ocea-
FEU (Federación de Estudiantes Universitarios,
nia, mas estivemos em torno de 16, 17 países no
entidade cubana). Nós tivemos bons encontros e
mundo, sempre articulando iniciativas no campo
até aproximações políticas, em função das relações
da solidariedade internacional, da amizade entre
criadas naquele período.
os povos, buscando aproximações de organizações
Os anos 90 foram um período de retomada do movimento juvenil internacional. Vivemos, nos anos 1980, uma fase de um certo esvaziamento. A OCLAE em plano regional, a UIE, que ainda hoje não conseguiu retomar os seus melhores tempos.Mas nós colaboramos para a rearticulação dos festivais mundiais da juventude e dos estudantes, tivemos um festival mundial muito importante na Coreia, nos anos 80; ainda um esvaziamento forte que só foi superado no final da década de 90, em Cuba, quando foi retomado o movimento dos festivais. Aí, a minha militância na UNE e na União da Juventude Socialista (UJS), já colaborou. Eu tive a oportunidade de participar de toda a preparação dos festivais posteriores, Festival de Havana (1997), Festival da Argélia (2001), e até participei, já como veterano, do festival em Caracas, Venezuela (2003). Veja como o movimento estudantil é importante; permite até que um jovem pobre do Brasil possa circular pelo mundo. Nós percebemos que o Brasil é uma referência muito importante no movimento estudantil, no movimento de juventude, e há uma expectativa de todos os países sobre que papel o Brasil vai jogar, a médio prazo, longo prazo, no mundo. Eu me recordo, por exemplo, de uma viagem à China em dezembro de 95, como presidente da UNE, onde, em contato com autoridades importantes daquele país, eles falavam “o Brasil é um parceiro estratégico nosso”. A expectativa é que Brasil e China sejam irmãos e joguem papel fundamental para a humanidade nos próximos 50, 100 anos. Pelo peso econômico, pelo potencial humano que eles possuem. E a experiência que a gente teve foi muito positiva em vários continentes. Tive a oportunidade
Do ponto de vista do campo socialista, os anos 1990 foram uma época de crise, e a crise nos conduziu a uma nova perspectiva. Isso repercutia no movimento estudantil, foi uma retomada.
juvenis, de organizações populares e aproximações temáticas. Então sua experiência fora do país te ensinou também sobre o Brasil? Como foi esse aprendizado? Muito. Nós tivemos, nós temos, pela nossa experiência histórica no Brasil, na experiência de convívio contraditório, mas plural, democrático, uma certa trajetória que pode colaborar para a reflexão de países do mundo inteiro! Mesmo da Europa, mesmo dos países centrais. No Brasil, nós temos uma espécie de tolerância com a diversidade, que é uma experiência distinta.Um exemplo que eu dou é de um evento na Itália: havia um fato assim original, um líder da juventude comunista israelense, mas que tinha ascendência árabe, num evento que aconteceu em Roma, preparatório do Festival da Argélia, ele se manifestou em árabe, que era a ascendência dele, a tradição cultural, apesar de ser um membro da juventude comunista israelense. E houve uma reação intolerante das organizações juvenis árabes, censurando o israelense – mas ele queria ser até simpático, se aproximar de alguma maneira, mostrar as afinidades culturais. E foi interessante que nós tivemos a oportunidade de fazer uma questão de ordem e apontar a intolerância, fazer uma polêmica naquele momento e tivemos a solidariedade de toda a Europa e de todos os países do mundo. Fizemos aquela intervenção com confiança, por quê? Porque a nossa tradição é essa. Temos muitas diferenças no Brasil, muitas desigualdades, inclusive. Mas somos um povo que tem uma experiência de convívio da diversidade muito grande. Se observa e se procura a tolerância revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA 153
Veja como o movimento estudantil é importante; permite até que um jovem pobre do Brasil possa circular pelo mundo, conhecer experiências diferenciadas. nossa, que não se confunde com a cordialidade
sensível, muito sensível! Você olha para a História
que correspondem a cada época, correspondem
que alguns mal interpretaram. Trata-se de certo
do Brasil, da afirmação da nacionalidade, na resis-
à realidade do ensino superior da educação em
convívio tolerado com a divergência. Aprendi,
tência às invasões, até as manifestações desorga-
cada um dos países e no Brasil.
nessas experiências, que é muito rica a trajetória
nizadas das periferias das cidades, a contestação
brasileira. Sem querer exportar modelos, forma-
cultural de movimentos, movimento hip-hop;
Você acha que podemos dizer que o mo-
mos uma civilização que tem valores que ajudam
onde tem contestação, tem a marca juvenil. Onde
vimento da juventude tende a ser mais
a referenciar o convívio mais fraterno no mundo.
tem resistência, tem a marca juvenil. Resistência
agudo na crítica, na forma de fechar o ra-
Essa relação com o movimento juvenil no mundo
palestina, nas ruas da França ou nas periferias
ciocínio em torno da realidade?
ajudou a ver práticas diferenciadas em muitos lu-
do Brasil, organizadas, desorganizadas; aparece
Ah, sim. Acredito que vem da juventude,
gares e a formar critérios, conceitos que ajudaram
a marca, a presença juvenil. E é o movimento
da generosidade que tem a juventude, da
muito até na experiência nossa no ministério.
estudantil parte destacada dessa resistência. É o
permeabilidade, da abertura, da diversidade
segmento juvenil mais permeável, mais aberto.
que ela incorpora, uma fonte inesgotável de
Você é otimista em relação à luta da juven-
Nós falamos aqui ao longo dessa conversa de que
lutadores das mais diversas frentes. A gente
tude e em relação à luta dos estudantes?
há agendas que ainda se desenvolvem na pauta
associa muito o movimento estudantil à for-
Eu tenho uma convicção: a juventude funciona
estudantil, mas é o setor que mais aglutina. Se
mação de líderes políticos, mas no movimento
como certo termômetro revelador do estado de
observarmos a agenda do movimento juvenil,
estudantil se tem a formação de líderes in-
ânimo e de espírito das sociedades. Como hoje
de trabalhadores, movimentos culturais, movi-
telectuais, pesquisadores, de artistas, até de
nós vivemos numa sociedade marcada por uma
mentos do campo ou da cidade, movimentos
líderes empresariais. Eu tenho contato com
simetria de desigualdades no mundo inteiro, não
temáticos, perceberemos uma segmentação
jovens militantes do movimento estudantil
é um privilégio só nosso, do Brasil. É do mundo
maior. O movimento estudantil, não. Faz esse
que hoje são empresários que ajudam a oxi-
inteiro, que a juventude funcione como esse
esforço de incorporar outras agendas, outras
genar as áreas das suas intervenções. Então o
termômetro. Eu acredito que a juventude histo-
pautas; fazer um movimento mais unificador,
movimento estudantil forma para a política,
ricamente jogou um papel relevante nos postos
articulador da juventude do Brasil e do mundo.
mas forma, sobretudo, para a vida, e forma
de transformação. Segue jogando. A juventude é
Eu sou um entusiasta. As formas são diferenciadas,
para a vida no sentido renovador.
154 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA
Deputado federal, Orlando Silva é um dos líderes da esquerda no Congresso
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista ORLANDO SILVA 155
156 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO 157
W
adson Ribeiro foi ganho pelo movimento estudantil aos 17 anos, durante os protestos pelo “Fora Collor”,
em 1992, quando estudava no Instituto Granbery. Presidente do grêmio da escola, mobilizou os jovens da sua cidade, Juiz de Fora (MG), pela causa. Ele era, então, dirigente da União Juiz-Forana de Estudantes Secundaristas (UJES). Sete anos depois, o mineiro havia chegado à presidência da UNE e acontecia o maior protesto no Brasil desde o “Fora Collor”: a Passeata dos 100 Mil contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília. Na sua gestão, a UNE lutou contra a mercantilização do ensino superior, contra o “Provão” e os aumentos abusivos das mensalidades em instituições particulares, além de ter sido peça chave da pressão por um governo mais democrático e popular. “Nós capitalizamos um sentimento de derrota daquele ciclo neoliberal e da chegada de uma força nova, que seria a eleição do Lula”, relembra o atual ouvidor-geral do Estado de Minas Gerais. Formado em Gestão Pública e filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Wadson já foi secretário-executivo do Ministérios dos Esportes e deputado federal. Nesta entrevista, ele fala mais sobre seu período à frente da maior entidade estudantil brasileira. (Entrevista concedida à equipe de comunicação da UNE em 2017)
O estudante Wadson Ribeiro em 1999
158 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO
Como e por que você entrou para o movimento estudantil? Desde quando começou a imaginar que poderia ser presidente da UNE? Eu entrei para o movimento estudantil em 1992, com as passeatas do ‘’Fora Collor”, nesse período comecei a participar do movimento na minha escola, em Juiz de Fora (MG). Quando ingressei na Faculdade Federal de Medicina de Juiz de Fora eu já era do movimento estudantil, e fui presidente do Centro Acadêmico. Eu tinha muita atuação no movimento da executiva de curso, mas nunca tive a pretensão e nem imaginaria que me tornaria presidente da UNE. Na minha cabeça, eu iria cumprir uma etapa da minha vida no movimento estudantil, em Juiz de Fora, e depois iria retornar ao meu curso, ser médico, atuar politicamente através da medicina... Mas foi uma conjuntura política que fez com que essa minha atividade na universidade me
Quando 10 mil estudantes no Mineirinho viram aquele homem de quase 2 metros de altura e perceberam que era o Fidel Castro, foi uma comoção generalizada.
levasse à diretoria da UNE em 1997, na pasta de Biomédicas. Em 1998, numa mudança interna da UNE, eu fui assumir a diretoria de Universidades Públicas e, em 1999, fui eleito presidente da UNE no Congresso de BH. Eu sempre tive muita deferência pela UNE e seus dirigentes, mas nunca imaginei presidir a UNE, acho que foi uma contingência dos destinos e da conjuntura política. Você foi eleito no mesmo Congresso que recebeu a visita do Fidel Castro. Como foi esse dia, como são as lembranças e o que significou pra você? Qual a importância, para o movimento estudantil, de receber o Fidel em Minas? Um dia inesquecível. Nós tínhamos uma relação com a juventude comunista de Cuba e com a Federação dos Estudantes Universitários de Cuba, a FEU, e o Fidel estava no Rio de
Fidel discursa para um Mineirinho lotado durante Congresso da UNE, em 1999
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO 159
Quando saímos da 1° Bienal da UNE, tínhamos a ideia de construí-la a cada dois anos, mas construir também um movimento que, sem pretensão nenhuma, pudesse beber na fonte do que tinha sido o CPC
Wadson durante a abertura da 2ª Bienal da UNE, em 2001
160 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO
Janeiro por ocasião de um encontro de chefes
Você acompanhou a transição para a era
mais rico e com menos preponderância das forças
de Estado. A partir de relações com a FEU,
digital quando a UNE foi vanguardista
políticas e partidárias que atuavam na UNE, legi-
questionamos a possibilidade do Fidel vir ao
e logo criou a plataforma ‘’Estudante
timamente, mas que deveria ter um movimento
Congresso da UNE. Até o governo de Minas,
Net’’. Como foi essa transição e como
cultural mais independente em relação a isso.
o então governador Itamar Franco, também
você vê os meios digitais hoje, como
Tendo uma independência artística, estética, mas
entrou para fazer um convite formal, para que
ferramenta para fazer política e comu-
com ligações com a UNE do ponto de vista da sua
ele pudesse vir a Minas também para tratar
nicação da juventude?
concepção política, da sua visão de mundo, vamos
de temas com o governo, como justificativa
Essa foi a maior contradição na minha tra-
formal para participar do Congresso da UNE.
jetória, porque eu fui uma pessoa altamente
E os CUCAs funcionariam como um sistema,
E foi um ato emocionante, primeiro por-
inovadora na UNE. Pelo Estudante Net, em 1999
que entre as Bienais percorreria os estados com
que nós ficamos sabendo só poucas horas
eu dava entrevista pela internet, o que era uma
atividades no campo da cultura, literatura, artes
antes da ida dele, por questões de segurança.
coisa supervanguardista na época, mas eu pes-
visuais, música. Seria um movimento cultural
Naquele dia havia uma final do campeo-
soalmente não sou tão adepto às redes sociais.
ligado à UNE não apenas de dois em dois anos
nato mineiro no Mineirão e o Congresso se
Acho que são ferramentas fundamentais, mas,
como a Bienal. Aliás, a Bienal seria o ápice de tudo
realizava no Mineirinho, então foi um dia
em função dessa confusão política e ideológica
aquilo que o CUCA produziria. Se os estudantes
muito conturbado, com 10 mil estudantes no
do mundo, as redes também têm, por vezes,
ligam a UNE apenas ao debate político ou ao
Mineirinho e ele descendo naquela confusão
um papel de propagação de ideias muito con-
debate educacional e econômico, poderiam se
com final de campeonato. Quando chegou
servadoras. Agora, é claro, é impossível pensar a
ligar também pela discussão acerca da arte e da
no ginásio, eu me lembro perfeitamente, nós
juventude atual, a União Nacional dos Estudan-
cultura como ferramenta de engajamento para
da diretoria da UNE ficamos perfilados para
tes atuando sem métodos gráficos como há 20
transformar a sociedade.
cumprimentá-lo e até então os estudantes
anos. Esse empoderamento que o movimento
não sabiam da presença dele. Quando ele
estudantil e que a UNE têm hoje, a partir das
Algumas ações que você tomou ainda como
foi chamado ao palco e 10 mil estudantes
redes, tem sido usado por um vértice correto,
presidente estão sendo continuadas por
no Mineirinho viram aquele homem de
para ajudar a mobilizar a juventude brasileira e
outras gestões, como a reconstrução da sede
quase 2 metros de altura, de farda verde, e
os estudantes para as suas bandeiras históricas
da UNE na Praia do Flamengo, batalhada por
perceberam que era o Fidel Castro, foi uma
de luta, mudando só a forma, mas prevalecendo
vocês, conquistada depois da sua gestão e
comoção generalizada. Ele falou por quase
o conteúdo avançado da luta.
ainda em andamento. Como foi fazer parte
duas horas e me lembro bem que come-
dizer assim, então esse foi o intuito.
desta história em especial?
çou tirando sarro e questionando porque
O CUCA – Circuito Universitário de Cul-
A reconquista da UNE na Praia do Flamengo é
os estudantes do Brasil estavam sentados
tura e Arte – foi fundado na sua gestão.
um acerto de uma dívida do Estado brasileiro com
no chão, se estava faltando dinheiro para a
Como foi o debate para a criação do
a democracia, que é devolver o prédio à UNE. Acho
UNE. Ele colocou Havana à disposição para
circuito?
que várias gerações colocaram seus tijolos ali na
sediar o congresso da Oclae [Organização
O debate principal veio a partir da realização da
construção desse sonho. No meu caso, eu tenho uma
Continental Latinoamericana e Caribenha
1ª Bienal de Arte e Cultura da UNE, em Salvador,
recordação muito boa: fui em uma reunião com o
dos Estudantes] em 2000, o que realmente
em janeiro de 1999. Quando nós saímos da Bienal
governador do Rio de Janeiro, na época, Anthony
aconteceu e eu, como presidente da UNE
de Salvador, tínhamos a ideia de construí-la como
Garotinho, e eu disse a ele que, como tinha sido
em 2000, dirigi uma grande caravana de
um evento a cada dois anos, mas construir um
eleito pelo PSB, um partido de esquerda, ele tinha
estudantes brasileiros para o Congresso da
movimento entre um evento e outro, algo que,
o compromisso de devolver aos estudantes o prédio
Oclae em Havana, que foi um dos mais im-
sem pretensão nenhuma, pudesse beber na fonte
da UNE que a ditadura tinha tirado! De pronto, ele
portantes para a reestruturação da entidade
do que tinha sido o CPC da UNE nos anos 60. Nós
me perguntou se a UNE tinha um projeto para fazer
latinoamericana.
achávamos que precisava haver um braço cultural
ali. Eu logo afirmei que sim e falei ainda que era um revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO
161
projeto do Oscar Niemeyer. Depois, eu vejo uma reportagem no jornal O Estado de São Paulo com uma foto da UNE pegando fogo, em 1964, e uma matéria em que o repórter tinha entrevistado o Niemeyer sobre aquilo, e o projeto novo... O Niemeyer dizia que não tinha sido procurado pela UNE, mas, que se fosse, faria o projeto. Eu imediatamente fui
Vejo uma reportagem em que Niemeyer diz que não tinha sido procurado pela UNE, mas, que se fosse, faria o projeto do novo prédio. Imediatamente vou ao Rio de Janeiro me encontrar com ele.
ao Rio de Janeiro, no apartamento do Niemeyer em Copacabana, pedi desculpas a ele, conversei... Ele disse que não tinha problema, que não havia sido consultado, mas que iria, sim, fazer o projeto. E ele fez, tanto que nós levamos esse projeto em uma maquete para o Rock in Rio de 2001 – nós tínhamos uma tenda dentro do Rock in Rio onde essa maquete ficava exposta. Depois teve aferições de metragem do terreno e o Niemeyer refez o projeto, mas com a mesma concepção. Eu acho que foi uma contribuição importante, não minha pessoalmente, mas da minha gestão, do pessoal que militou comigo naquela época... Termos ressuscitado esse debate e termos entregue à UNE esse projeto de reconstrução feito pelo Niemeyer, que prevalece até hoje. Além de tudo isso, seu período na UNE foi muito marcado pela luta contra o neoliberalismo do governo do Fernando Henrique Cardoso. Quais foram os feitos mais marcantes da sua gestão, na sua opinião? É difícil dizer, são tantas coisas que em dois anos você realiza na UNE. Para se ter uma ideia, eu assumi em julho de 1999, e em 26 de agosto de 99, dia do meu aniversário, eu participei talvez da maior passeata que o Brasil tenha feito depois do Fora Collor, que foi a passeata dos 100 mil contra o Fernando Henrique. Nesta passeata, discursaram [o líder do PCdoB] João Amazonas, Brizola, Lula... Enfim, líderes nacionais, e eu tinha 20 e poucos anos, falando em nome da UNE para aquela multidão. Aquilo era uma força da sociedade brasileira, dos movimentos
Wadson ao lado do arquiteto Oscar Niemeyer, que doou um projeto para a nova sede da UNE
162 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO
sociais que estavam na iminência de derrotar um governo neoliberal, como o de Fernando Henrique
Cardoso, e de eleger um governo com as caracte-
E você ser da diretoria da UNE ou presidir a UNE é
nós tivemos o avanço do governo Lula e Dilma e
rísticas do Lula. A minha gestão foi muito marcada
uma responsabilidade grande, que traz um aprendi-
temos um processo de retrocesso agora. Paradoxal-
por essa polarização. Tanto é que a insígnia do meu
zado precoce. No meu caso, eu fui presidente muito
mente, nós estamos vivendo um momento que se
congresso foi ‘’Fora FHC’’. Nós capitalizamos um
jovem, com 21, 22 anos... E conviver com partidos
parece com o período Fernando Henrique do ponto
sentimento de derrota daquele ciclo neoliberal e
políticos muito experientes, movimentos sociais
de vista de índices de desemprego, de crescimento
da chegada ao poder de uma força nova, como foi
muito experientes, num período de transição polí-
econômico e por aí vai. Então, do ponto de vista
a eleição do presidente Lula.
tica, foi uma escola de vida. Eu acho que os valores
econômico, temos um retrocesso.
O que me marcou muito também foi quan-
críticos, éticos, cidadãos, solidários que você aprende,
Agora, do ponto de vista do comportamento,
do, em 2000, comemoramos os 500 anos do
são valores imprescindíveis para uma geração que
o que eu sinto muita diferença é que tomou um
Brasil e teve um dilema enorme, na sociedade,
tem a possibilidade de mudar o país.
assento muito maior hoje uma luta, ao meu
na esquerda, sobre a narrativa dos 500 anos. A
ver, mais compartimentada: ligada aos direitos
UNE protagonizou uma luta muito lúcida sobre o
Quais lutas da sua época você acredita que
das mulheres, à questão LGBT, do negro, do
significado desses 500 anos sob um prisma dos
hoje estejam mais bem resolvidas? E o que
índio... Ora, você não tem a mulher tendo seus
trabalhadores, dos jovens, dos oprimidos, então
ainda falta para os estudantes conquistarem?
plenos direitos na sociedade, ou o gay vivendo
foi um evento muito importante. A própria Bienal
Eu dividiria em três questões. No campo educa-
uma vida livremente sem preconceito, ou o
do Rio (2001), que é uma marca , pois ali se cria o
cional, a reivindicação que nós fazíamos e o que se
negro tendo acesso ao mercado de trabalho e
CUCA, tem participação do Brasil todo.
tem hoje foi uma vitória muito concreta. O ciclo do
melhores salários se você não tiver uma luta
Passeatas também, foi um período de muitas
Lula e da Dilma propiciou um grande avanço ao en-
muito central contra a mudança do sistema. Eu
passeatas protagonizadas pela UNE. Eu lembro
sino superior. Nós tínhamos lutas como a reserva de
acho que, em certa medida, parte da esquerda
que a gente fazia passeata terça no Rio de Janeiro,
vagas, uma bandeira da minha gestão, pelo acesso
social foi cooptada por uma falsa ideia de que
quarta em São Paulo e outras capitais e quinta só
à universidade, políticas como o ProUni, concurso
é possível transformar sem tomar o poder. E
Belo Horizonte... Fazíamos uma cascata de passeatas
para professor, expansão da pesquisa, da pós-gra-
acho que isso é um engano. Se a gente não
nas principais capitais contra o FHC. Então foi um
duação, isso tudo foram avanços inexoráveis, acho
tomar cuidado, pode fragmentar a nossa luta,
momento de muita efervescência política marcada
que avançou demais. Do ponto de vista econômico,
a gente sempre abdicar o poder e não fazer a
exatamente por essa transição do ciclo neoliberal,
comparando aquela época com o momento atual,
transformação que é preciso ser feita.
encabeçado por Fernando Henrique Cardoso, e a iminência de vitória de uma coisa nova que era o Lula. Eu fui presidente da UNE justamente nessa transição política que o Brasil viveu. Fez diferença na sua vida ter sido presidente da UNE? Olhando hoje o que você acha que aprendeu? Totalmente, eu acho que o movimento estudantil é maior escola e não apenas de política, mas uma escola de vida para a juventude brasileira. A partir dele, você conhece valores que a sociedade ou mesmo a universidade e a escola não te dão. Valores de democracia, convívio social coletivo, perspectiva de vida, de acreditar não em coisa menor, mas em grandes causas, isso o movimento estudantil te dá.
Wadson continua a defender os interesses da juventude, agora em outras instâncias
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista WADSON RIBEIRO 163
164 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA 165
G
ustavo Petta nasceu em Campinas (SP) em 1980. Filho de professores, despertou para a política acompanhando as irmãs mais velhas, já ati-
vas no movimento dos estudantes, em passeatas do “Fora Collor”, no início dos anos 1990. Aos 16 anos iniciou a trajetória no movimento estudantil, no grêmio dos colégios Pio XII e Prof. Aníbal de Freitas. Na sua cidade, presidiu ainda a União Campineira dos Estudantes Secundaristas (UCES). Quando entrou para a PUC-Campinas, no curso de Jornalismo, logo foi eleito coordenador-geral do DCE. Elegeu-se também como diretor de Cultura da UNE em 2001, presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE-SP) em 2002, e, por duas vezes, presidente da UNE, em 2003 e 2005, sendo o único presidente reeleito. Atualmente vereador em seu segundo mandato em Campinas, ele também foi secretário de Esportes e Lazer da cidade e deputado federal. Nesta entrevista, ele analisa seu período à frente da UNE, que coincidiu com o primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e uma nova expectativa para o movimento estudantil. Naquele período, alguns projetos de reforma universitária foram efetivados, com a criação do Programa Universidade Para Todos (ProUni) e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), por exemplo. Os estudantes conseguiram também recuperar a antiga sede da UNE no Rio de Janeiro, tomada pelos militares em 1° de abril de 1964. (Entrevista concedida à equipe de comunicação da UNE em 2017)
Gustavo Petta, o único presidente reeleito da história da UNE
166 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
No período das suas gestões na UNE, o
fazendo pressão, mas também manter um di-
país viveu uma época pujante em relação
álogo com o governo, porque o governo abriu
ao que vinha acontecendo antes, na épo-
essa possibilidade. A partir daí tivemos alguns
ca de neoliberalismo forte, até o começo
avanços que precisamos ressaltar, como a cria-
dos anos 2000. Você acompanhou esta
ção do Prouni, muito importante no sentido
transição? Como foi viver isso pelo ponto
de democratizar o acesso ao estudo superior,
de vista do movimento estudantil?
o Reuni, de expansão da universidade federal,
Foi um período de mudança mesmo, muita reflexão, muito estudo. Fui do movimento estudantil já na escola, no movimento secundarista, no grêmio, até no início da faculdade, num momento de muita resistência. Eu ainda fui militante nos últimos anos do governo Fernando Henrique, em que a popularidade dele já estava muita baixa, mas que havia tentativas ainda de redução de direitos, cobrança de mensalidade em universidades públicas, criminalização de movimentos sociais, traços neoliberais que foram marca do seu governo. Quando fui eleito presidente da UNE no início do governo Lula, em junho de 2003, era um momento de muita expectativa. Você tinha perspectiva de avanços nas pautas que nós construímos ao longo daqueles últimos anos – a reforma universitária, a pauta de maior regulamentação em relação ao ensino privado, ampliação e democratização do acesso à universidade pública... Então o movimento passou a ter um caráter também mais propositivo, em que as suas reivindicações passaram a ser consideradas na negociação. É verdade também que o movimento viveu momentos de muita polêmica. Porque alguns grupos tinham expectativa maior do que poderia ser feito a partir da eleição de um presidente como o Lula. E que passaram a ser muito críticos ao próprio presidente Lula, achando que era uma agenda muito conciliatória, que não estava à luz das expectativas
Fui eleito presidente da UNE em momento de muita expectativa. O movimento passou a ter um caráter mais propositivo, em que suas reivindicações passaram a ser consideradas.
e outras pautas que construímos. Esses grupos mais críticos compunham também a gestão? Na nossa época já tinha o critério da proporcionalidade, então todas as opiniões já estavam presentes na UNE, sim. A maioria da entidade acabou assumindo uma opinião de manter a autonomia, reforçando reivindicações e procurando conquistas efetivas para o conjunto dos estudantes, manter o diálogo. Nós tivemos a primeira reunião com o presidente Lula, fomos recebidos no Palácio do Planalto entre agosto e setembro, se não me engano. A partir dali, pautamos quatro pautas, a reforma universitária, a retomada do Projeto Rondon, o terreno da UNE na Praia do Flamengo, e a discussão sobre a meia entrada. De alguma forma, as quatro pautas foram levadas adiante no último período, não só na minha gestão... Não exatamente com todas as nossas expectativas, queríamos avançar até mais… Olhando hoje, qual sua impressão sobre a reforma universitária? A reforma acabou acontecendo de maneira fatiada. Não tivemos um projeto de reforma debatido e aprovado no congresso. Acabaram acontecendo projetos separados. O Prouni foi uma mudança efetiva no ensino privado. O Reuni foi uma mudança no acesso ao ensino superior. Tivemos avanços importantes.
geradas. Então a UNE passou a ter um caráter
Agora, nós não conseguimos, na minha visão,
de continuar reivindicando, mobilizando e
modificar mais a essência, os currículos, os revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA 167
projetos pedagógicos, ainda muito dominados pela lógica do mercado. O estudante entra muitas vezes na universidade com uma expectativa de mudança, de quebra de paradigmas, mas acaba se adaptando à lógica que o sistema impõe. Acho que nós ampliamos o acesso à universidade, mas à mesma universidade. É evidente que a universidade não é hegemônica, mas o que predomina é esse interesse do mercado. E isso não foi modificado. Mas do ponto de vista de acesso, da ampliação do financiamento para a universidade pública, de novas universidades… Nisso nós avançamos muito. Tínhamos ficado oito anos de FHC, em que foram criadas pouquíssimas vagas. A universidade do Rio de Janeiro chegou a ter aulas suspensas pela falta de pagamento de luz. Para se ter noção da situação anterior. No começo da sua gestão, teve uma reto-
Acho que nós ampliamos o acesso à universidade, a mesma universidade ainda muito dominada pela lógica do mercado.
mada de um antigo conceito da UNE, de fazer caravanas pelo Brasil. Você participou dessas viagens? Como foi essa vivência? Nós apostamos muito, até pelas características das pessoas que participavam da gestão, no campo das artes. Nós acabamos retomando uma ideia original da UNE Volante, em que a UNE rodou pelo Brasil para a criação dos CPCs (Centros Populares de Cultura). Claro, totalmente diferente, mas a mesma inspiração. Era realmente um ônibus, que carregava diretores da UNE e artistas, alguns grupos culturais. Nós rodamos as cidades fazendo essas apresentações e chamando para os debates sobre a reforma universitária. Foi uma experiência muito rica, porque nós conseguimos envolver o conjunto do Brasil e das universidades neste debate. Com as intervenções culturais, as pessoas acabavam se aproximando e debatendo. Depois levamos as resoluções ao ministro Cristovam Buarque, depois sucedido pelo Tarso Genro, e continuamos o diálogo. 168 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
Petta discursa para estudante durante Congresso da UNE
Aí se criaram também os CUCAs, o Circuitos
Clube Germânico, mas, a partir da perseguição que
retomar! E criamos a convicção de que a única forma
Universitários de Cultura e Arte?
ocorreu aos países do Eixo nazi-fascista, foi retomado
de resolver era partir para uma ocupação, que depois
Isso. A partir daí tivemos também uma carava-
pelo Estado. E a UNE conseguiu a posse daquele
seria referendada pelo judiciário, dada a legitimidade.
na especialmente cultural e foi neste movimento
prédio. Passou a ser um espaço muito importante
Nós temíamos muito porque os posseiros eram
que os CUCAs passaram a ser criados. Já era uma
do ponto de vista cultural e político, não só para o
ligados ao crime organizado e o terreno era de muita
ideia das primeiras bienais, mas nós efetivamos
Rio de Janeiro como para o Brasil todo. Tanto que
arrecadação para aqueles posseiros, um estaciona-
a criação de uma rede pelo Brasil a partir dessas
ele foi um dos principais alvos do Primeiro de Abril,
mento numa das áreas mais valorizadas do Brasil.
caravanas e das bienais de cultura da UNE.
o dia do Golpe de 1964. As forças paramilitares es-
Temíamos reação violenta. Por isso fizemos no final
colheram a UNE como principal alvo por ser essa
da Bienal, porque tínhamos ali 5 mil estudantes do
E quanto à reconquista da sede da Praia do
força, essa resistência. Ele foi atacado naquele dia,
Brasil inteiro.Terminamos a Bienal com uma passeata
Flamengo? Como você disse, era um dos ob-
a UNE deixou a sede. Depois, quando começou o
em direção à praia, derrubamos o portão, fizemos as
jetivos da sua gestão, e isto foi alcançado…
período de redemocratização, a UNE voltou a querer
barracas e ficamos ali por um ano. Até a confirmação
Quais as suas lembranças sobre isso?
ocupar o espaço, e os militares fizeram questão de
na Justiça da posse da propriedade legítima da UNE.
Eu fiquei na presidência durante duas gestões.
demolir o prédio. O governo Itamar Franco devolveu
Foi um momento carregado de muita emoção
Mas muitas gerações, não só a nossa, se sentiam
o terreno para a UNE, mas ela não conseguiu efetivar
porque estávamos cumprindo ali a missão de vá-
muito incomodadas e queriam a retomada daquele
a sua posse por conta de uma ocupação irregular
rias gerações do movimento estudantil. De retomar
espaço. Ele tem um valor imaterial enorme. Foi sede
de um estacionamento na área, vários processos na
um espaço que o próprio Estado tirou da UNE de
da UNE a partir da Segunda Guerra Mundial – era o
Justiça… Só sei que ainda não tínhamos conseguido
maneira arbitrária a partir do Estado de exceção que foi a Ditadura Militar, que a entidade conseguiu retomar pela força de muitos estudantes. A gente lembra de um episódio em que a atriz Vera Holtz estava passando, ouviu no rádio, e foi até ali fazer um discurso muito emocionado, porque começou a sua carreira num CPC da UNE. E a partir daí
Derrubamos o portão e ficamos no terreno até a confirmação da posse da propriedade. Foi um momento de muita emoção porque estávamos cumprindo a missão de várias gerações.
a gente começou a receber a visita de muitos artistas, muitos deles ligados ao movimento estudantil na sua adolescência, Cacá Diegues, Carlinhos Lira, Tico Santa Cruz, muitos outros. Pela sua narração, este movimento se parecia, de certa forma, com as ocupações de escolas mais recentes, dos anos 2015 e 2016... Pois é. O movimento estudantil sempre teve a ideia de ocupação… Desse modo de ficar durante muito tempo, pode ter sido ali um embrião. Lógico que a geração atual inovou e fez da ocupação um instrumento de luta poderosíssimo, que impediu inclusive a reorganização da educação do estado de São Paulo e o fechamento de escolas. Mas ali pode ter sido um embrião, uma experiência que acabou sendo atualizada. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA 169
Como foi quando a Justiça determinou que
Retomando a análise do contexto his-
Você acredita ter participado da construção
o espaço era da UNE?
tórico, você dizia que o começo do go-
deste momento?
Por incrível que pareça, depois que a gente
verno Lula significou o começo de um
Acho que a participação da UNE foi fundamen-
ocupou, um juiz chegou a dar uma reocupação de
período em que as demandas da UNE
tal. Nós tínhamos na época o que chamávamos de
posse – para o posseiro. Alegou que entramos de
eram mais ouvidas pelo Estado. Obser-
Coordenação dos Movimentos Sociais, que reunia
modo violento, numa atitude agressiva. Ele con-
vando tudo que aconteceu depois, os
centrais sindicais, a UNE, o MST… A centralidade
seguiu num primeiro momento e decidimos que
períodos que se sucederam até hoje,
era empurrar o governo para fazer as mudanças
iríamos resistir se a reintegração acontecesse. Mas,
você diria que aquele foi o ápice da
que o povo precisa e aprofundar as mudanças.
depois de uma nova resposta nossa, o juiz acabou
democracia no Brasil?
Algumas nós conseguimos, outras acho que a
reconsiderando, o caso foi julgado e a UNE venceu.
Nós tivemos, na verdade, pouquíssimos
esquerda como um todo pode fazer algumas
Ali, realmente vencemos a parada. Foi uma grande
períodos do que chamamos de democracia
autocríticas. Não ter promovido mudanças no
festa, uma grande comemoração.
liberal, com alguns limites. Nunca tivemos
sistema de comunicação no Brasil e não ter feito
o que chamamos de democracia plena, com
uma reforma política consistente impediram que
Este talvez tenha sido o maior marco das
todas as liberdades. Mas mesmo essa demo-
a gente continuasse esses avanços. Alguns vão
suas duas gestões? Este episódio é o que
cracia liberal, foram poucos períodos. Ali
dizer que era impossível ser feito, outros vão
você destacaria?
no final dos anos 1950 e começo dos 1960
dizer que houve subestimação… Pode ser um
É… Se você observar do ponto de vista do mo-
tivemos um período de maior possibilidade
pouco de cada. Mas o fato é que não fizemos e
vimento estudantil, realmente esta é uma marca
de participação, e depois retomamos ela a
os setores da direita se aproveitaram de uma
importante, porque é uma luta da qual nós vivemos
partir da Constituição de 1988 e do direi-
crise econômica, que se desencadeou numa crise
a conclusão. Cada gestão anterior foi colocando
to ao voto em 1989. Então foram períodos
política, e estamos retrocedendo em diversas
um tijolinho. Antes de mim, o Wadson Ribeiro foi
curtos. O período do governo Lula foi de
políticas democráticas.
quem conversou com Oscar Niemeyer para que ele
maior possibilidade não só de democracia
fizesse o projeto. O Felipe Maia teve participação
representativa quanto de democracia parti-
Sobre sua trajetória, a que você deve o
importante na evolução da pauta…. E nós fomos
cipativa. Tivemos a criação das conferências,
fato de ter sido o único presidente reeleito
os porta-vozes de todo o movimento estudantil
a possibilidade de diálogo com movimentos
da UNE?
que lutou por isso.
sociais, a construção de políticas públicas de
Primeiro porque eu fui eleito mais jovem
Mas, do ponto de vista mais geral do país, eu
forma mais coletiva e participativa… Foi um
do que os outros, talvez isso tenha contribuído
destacaria mais as conquistas da educação. O
período muito rico. E estamos vendo agora
para eu ter sido escolhido por mais um período
Prouni, o Reuni, a ampliação do acesso ao ensino
vários avanços serem superados por políticas
como candidato… Fui eleito pela primeira
superior. Ainda temos um ensino superior marcado
limitadoras do ponto de vista democrático.
vez com 22 anos, é considerado novo para a
pela desigualdade social, um desenvolvimento
Exatamente por a gente ter vivido uma rup-
presidência da UNE, a segunda com 24. Acho
elitista em que poucos têm acesso ao conheci-
tura democrática.
que teve a crise política do momento também,
mento. Mas estas medidas ajudaram um pouco
Acho que aquele período foi muito inte-
em que passávamos pelo “Mensalão”. Havia
a criar oportunidades para o conjunto das classes
ressante, principalmente o segundo governo
uma pressão para que a UNE tomasse uma
sociais brasileiras. Do ponto de vista do país que
Lula e o primeiro governo da Dilma [Rous-
posição, ao meu ver equivocada, de pedir o
a gente almeja, em que a educação tenha centra-
seff]. Porque o primeiro governo do Lula,
impeachment do presidente Lula. A mídia fazia
lidade, tanto no sentido de gerar oportunidades,
que eu peguei, ainda foi muito marcado
uma comparação que não tinha consistên-
quanto no de gerar conhecimento para soberania
por muitas polêmicas, dificuldades. Acho
cia nenhuma com o período do Collor, como
do país, esta universalização da universidade e
que esses períodos seguintes foram os de
aconteceu de novo com a Dilma. Então acabou
ampliação do acesso foram as marcas principais
maiores avanços e mais participação política
que nossa organização política, a UJS, acabou
daquele período.
democrática no Brasil.
escolhendo pela continuidade.
170 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
Petta lidera culturata que levou à retomada do terreno da Praia do Flamengo
Antes do seu primeiro mandato, quando
As forças hegemônicas bancaram o Golpe; a UNE
para compor a chapa da UNE de 2001, fui eleito
começou a imaginar que poderia ser pre-
foi contra. Hoje, porque nós vencemos a batalha
para a diretoria do Felipe Maia. Era também diretor
sidente da UNE?
da narrativa histórica, a UNE é vista de modo
da UEE. No meio da gestão da UEE, tivemos uma
Na verdade eu nunca imaginei… Eu sempre
heróico pela maioria – não por todos, mas pela
fatalidade com o presidente, Luiz Ricardo [Lima],
admirei muito. Eu lembro do primeiro Congresso
maioria. E tem sido assim ao longo do tempo. E
e acabei sendo escolhido para a substituição, de
da UNE que eu fui, com uns 10 anos, aqui em
isso sempre me fascinou.
maneira provisória. E depois fui eleito presidente
Campinas. Fui acompanhando meus pais, que
da UNE, no congresso de 2003.
não eram mais estudantes, mas que foram visitar
Você estava dizendo sobre um evento da
o congresso. Lembro já dos primeiros movimen-
UNE que viu ainda muito novo. Quando
Nessa época em que presidia a UEE, já
tos de Fora Collor… Aquilo ficou no meu imaginá-
você começou a participar de fato do
imaginava que pudesse presidir a UNE?
rio como algo muito interessante. Sempre achei
movimento estudantil?
Na verdade, quando a gente vai pra diretoria
bonita a história da UNE, por ter sido protagonista
Aos 16 anos, comecei a participar do grêmio da
da UNE, a gente nunca tem isso como proje-
dos momentos mais importantes da história
minha escola. Fui do movimento secundarista aqui
to. Mas acaba se envolvendo, participando de
brasileira. E sempre do lado certo. Sempre se
de Campinas. Entrei na PUC de Campinas e fui do
muitas lutas, tendo protagonismo, com muita
posicionando de maneira correta. São posiciona-
DCE. Depois fui para União Estadual dos Estudantes
intensidade… E aí algumas pessoas começam
mentos reconhecidos pela história, mas até muito
(UEE-SP) e daí para UNE. Quando entrei no Jornalis-
a levantar esta ideia e você começa a achar que
questionados na época. Por exemplo: o pessoal
mo da PUC, logo no primeiro ano formamos uma
é possível. Mas nunca partiu assim da minha
não fala hoje, mas, em 1964, a grande maioria
chapa, era um DCE muito disputado, mas vencemos
pessoa o projeto de ser presidente. O meu en-
da classe média, da mídia, do empresariado…
e virei coordenador-geral. Aí acabei sendo convidado
volvimento acabou permitindo. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
171
O período do governo Lula foi de maior possibilidade de democracia participativa. Tivemos conferências, construção de políticas públicas de forma mais coletiva, diálogo com movimentos sociais.
Diretoria da UNE é recebida pelo presidente Lula
172 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
Agora que você está dizendo, estou pen-
Hoje você atua como parlamentar. O que
parlamento. O movimento estudantil é o principal
sando aqui… Eu era presidente provisório
você acha que a experiência na UNE te
espaço para você adquirir essa segurança, essa co-
da UEE e acabei sendo eleito depois. Nisso,
trouxe como experiência para realizar
ragem para enfrentar opiniões contrárias. Porque
achei que já não tinha mais possibilidade de
essa função?
é uma caixa de muitas ideias, de visões diferentes,
ser presidente da UNE. Mas aí me lembro de
Ah, total! É a maior escola de formação política
de muita polêmica. Isso no movimento estudantil.
alguns líderes do movimento defendendo
que o país tem, ou uma das principais. Você, no
E na UNE tem uma outra coisa: a possibilidade de
que, ainda assim, fosse o meu nome o do
movimento estudantil, vive de modo intenso com
você conciliar, negociar, mediar opiniões diferentes
candidato da nossa força. Teve uma assem-
diferentes opiniões, com polêmicas, com espaços pú-
para chegar numa maioria legítima.
bleia depois e isso ficou definido. Lembro
blicos. Você precisa se posicionar publicamente para
quando fui chamado e tudo. A gente fica, na
muitas pessoas, em assembleias, em congressos.
Você já pensava em seguir na área polí-
verdade…. Não é só uma alegria, pois é muita
Você, portanto, expõe o que pensa, é exposto ao con-
tica antes da presidência da UNE?
responsabilidade. Você fica naquela sensação
traditório. Em determinados momentos é aplaudido,
Quando entrei no movimento estudantil, não.
de satisfação, por ser um reconhecimento,
em outros é vaiado. Isso vai te dando experiência e
Mas depois que você se envolve, independente
mas também de preocupação.
segurança para lidar com as questões que vive no
da atividade parlamentar, você acaba sendo ganho para uma ideia de que a gente precisa atuar na sociedade que a gente vive, transformar a sociedade que a gente vive, combater injustiças, preconceitos… Independente da sua atividade profissional, o que fica é a ideia que você nunca vai deixar de utilizar o seu conhecimento, a sua experiência para tentar transformar a realidade de um país tão injusto como o nosso. De alguma forma, ali eu já me convenci que a minha vocação seria essa. O que mais você diria que mudou sua vida ou sua visão de mundo daquela época? É aquela coisa, a gente até costuma brincar, a UNE é um pouco assim: eu saí dela, mas ela não sai da gente. Você vai carregando toda essa experiência de um período até curto, mas muito concentrado. A gente leva pro resto da vida. É uma escola de formação política e de formação humana, porque conhecemos pessoas do Brasil todo, culturas diferentes. Você conhece a diversidade brasileira. E isso te ajuda também a olhar o mundo de um modo muito menos preconceituoso, muito menos a partir do seu umbigo, da sua visão limitada de mundo. A UNE propicia isso também, conhecer a riqueza do
À frente de manifestação, Gustavo Petta protesta em 2005
nosso País, a singularidade. A UNE ajuda a gente a entender o que é o Brasil. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA 173
Vivemos uma época em que o individu-
Então a UNE tem um espaço muito importante
alismo e conservadorismo têm ganhado
a cumprir nesta disputa de pensamento entre os
certo espaço. Como você vê o papel da
jovens brasileiros. Há muitas organizações polí-
UNE nisso? Ainda tem espaço nesta so-
ticas, religiosas, atuando no sentido de ampliar
ciedade para uma entidade que pensa
os privilégios e a desigualdade no nosso país.
no coletivo? O que fazer para ela conti-
Cabe ao movimento estudantil dialogar cada vez
nuar pulsante?
mais com os estudantes, dinamizar suas formas
Acho que existe muito espaço. Aliás, ela é
de organização, se atualizar, olhar os coletivos
cada vez mais fundamental, porque realmente
que estão sendo organizados. Mas sempre no
a campanha de criminalização da atividade po-
sentido de colaborar para um caráter político. A
lítica, dos grupos coletivos, ela é permanente. E
UNE não pode ser só mais um coletivo, tem que
crescente. A UNE tem espaço ainda mais impor-
dar orientação política. Essa é a característica dela.
tante à medida que estas campanhas crescem.
Ela não pode se apegar a uma bandeira específica.
E elas crescem porque são fundamentadas
Pode ter várias bandeiras específicas para uma
pelos grupos políticos de direita. Interessa
pauta civilizatória, mas tem que ter um olhar
a eles a ideia de despolitização, a ideia de
sobre a política brasileira, pois é evidente que
que atividade política é coisa de criminoso,
quando vivemos momento de mais democracia,
que a UNE é coisa de vagabundo, sindicalista
essas pautas avançam mais. Elas nunca vão se
também é vagabundo... Esse discurso é muito
resolver de modo particular. Só vão avançar se
bem pensado, planejado, por forças também
o projeto político avançar. Por isso ela tem que
políticas, que atuam para despolitizar a po-
cumprir esse papel, pois não vamos mudar nossa
pulação e se apresentar como alternativa a
realidade a partir só da nossa luta. É a partir da
partir de soluções irresponsáveis, carregadas
conjuntura que se dá a possibilidade de avanço
de preconceito, ódio, que temos que combater.
em bandeiras específicas.
Petta e diretores da UNE em encontro com Niemeyer para discutir o projeto da nova sede da entidade
174 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA
Sempre me fascinou a história da UNE. Por ter sido protagonista dos momentos mais importantes da história brasileira e sempre do lado certo, por mais que fosse questionada.
Petta atua em defesa dos direitos dos trabalhadores e dos estudantes na Câmara dos Vereadores de Campinas
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista GUSTAVO PETTA 175
176 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL 177
N
ascida em 1988 em Santos, litoral de São Paulo, Carina Vitral faz parte da primeira geração de brasileiros já nascidos em uma democracia.
Ainda assim, protagonizou a resistência contra mais um golpe no Brasil, desta vez não militar, mas parlamentar, jurídico e midiático. “Esse é o compromisso da UNE em diferentes épocas e dessa vez não seria diferente”, reverencia. Desde os 12 anos a estudante de Economia da PUC-SP se interessa pela luta social. Depois de participar de instituições do Terceiro Setor, integrou o Conselho Municipal de Juventude de Santos e participou do Fórum Mundial de Caracas, em 2006. Foi eleita presidenta do Centro dos Estudantes de Santos (CES) e da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP), antes de chegar à presidência da UNE, em 2015. Em 2016, Carina foi a segunda candidata mais votada à prefeitura da sua cidade, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Nesta entrevista, ela conta como os estudantes reagiram, em Brasília, nas ruas e nas escolas, tanto à ruptura democrática de 2016 quanto aos cortes de investimentos na educação. Sobre as necessidades da área, ela faz um apelo pela continuidade do Plano Nacional de Educação. E, apesar dos acontecimentos recentes na política nacional, declara seu otimismo em relação ao povo brasileiro.
Carina Vitral lidera a nova geração de caras-pintadas estudantis
178 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
O período da sua gestão na UNE coincidiu
de que não iríamos baixar a guarda. E esse foi o
com um período de certa frustração no
papel dos estudantes no geral, desde o começo
país, em relação ao começo dos anos 2000,
do não-governo de Michel Temer. Os estudantes,
quando as expectativas e ânimos estavam
por exemplo, foram os primeiros, iniciamos a
mais elevados. Como o movimento estu-
oposição oficial a Temer com o movimento his-
dantil acompanhou – ou não – este movi-
tórico das ocupações de escolas e universidades
mento? Qual foi o humor do movimento
em todo o país, contra o projeto autoritário de
estudantil nesta fase nacional? Sem dúvida foi um baque para a nossa geração, nós não podíamos imaginar que íamos viver um golpe de novo no Brasil. Que nossa bandeira seria a democracia, pra quem já nasceu após o fim da ditadura militar e cresceu na luta do período democrático, pelo aprimoramento das instituições e da participação popular. Nós passamos mais de uma década com muitas conquistas, que têm a marca de luta do movimento estudantil. E de repente ter que resistir contra os retrocessos...! O golpe de 2016 atingiu toda a nossa militância, mas sabíamos que nossa obrigação era ter personalidade e determinação para enfrentá-lo. Lembro-me do dia da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, 17 de abril, quando o Brasil presenciou um dos espetáculos mais grotescos já promovidos naquela casa. O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, atolado em graves denúncias de corrupção que acabariam por levá-lo à prisão, comandou outros parlamentares na mesma situação a uma encenação desprezível, tentando desviar o foco do que pesava contra eles por meio da deposição ilegal de uma presidenta eleita. Juntaram-se a esse processo os derrotados das últimas eleições, insatisfeitos, e a grande mídia monopolista, movida por seus interesses econômicos e de poder. Ao final da votação, o sentimento de
Foi um baque para a nossa geração viver um golpe de novo no Brasil. Mas o movimento estudantil enfrentou com força máxima. Sempre lembraremos disso.
reforma do Ensino Médio e o congelamento dos gastos sociais por vinte anos, com a PEC 55. O movimento estudantil enfrentou o golpe com força máxima. Sempre nos lembraremos disso. Como foi viver uma ruptura democrática depois de 14 anos de governo popular? Qual foi o papel do movimento estudantil nessa fase do contexto nacional? Os avanços sociais dos últimos 15 anos, fruto das lutas populares e em especial da juventude, provocaram a oposição dos setores poderosos que sempre buscaram frear tudo isso. Foi assim que pressionaram os governos, nos últimos anos, para uma agenda econômica que não foi eleita nas urnas e foi assim que apelaram, mais uma vez, a um golpe de estado na nossa democracia. Não apenas promoveram o falso impeachment de uma presidenta eleita, sem crime de responsabilidade sobre ela, como articularam às pressas um projeto entreguista e autoritário de governo, que pudesse desmontar rapidamente o que foi conquistado no último período. A UNE sabia que um golpe estava sendo tramado, e foi a primeira entidade a denunciá-lo, quando muitas entidades subestimaram aquele risco. A UNE teve papel fundamental na resistência popular e democrática, por isso, acho que o espírito do movimento estudantil
tristeza chegou com força, mas lembro que nós,
foi de grande unidade. Organizamos os comi-
da UNE, os estudantes, deixamos a Esplanada dos
tês universitários pela democracia em todos os
Ministérios com a bandeira estendida, cantando
estados e transformamos a universidade num
nossas palavras de ordem, deixando a mensagem
grande espaço de resistência. Participamos da revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL 179
criação da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo. Fomos inúmeras vezes a Brasília em marchas contra as reformas de Temer, ganhamos a adesão da maioria da população, seguimos firmes. Se o momento foi triste para o país, podemos dizer que o ânimo da sua juventude permaneceu alto para virar esse jogo. Esse é o compromisso da UNE em diferentes épocas e dessa vez não seria diferente. Alguns setores da sociedade acham que a UNE não cumpria mais o papel de liderar a juventude depois de junho de 2013. E agora a UNE mostra mais uma vez a sua força. A que você atribui isso? Nós temos orgulho de ser da geração de junho de 2013, fomos para as ruas pelo transporte público e o direito à cidade. Tivemos a vivência política mais decisiva da nossa geração que mudou tudo, uma nova forma de se organizar e principalmente massificou a luta entre os jovens. Depois de junho que as ruas ganharam força e viraram campo de batalha sobre os rumos do país. Claro que percebemos que aquele movimento legítimo foi usado pela grande imprensa para desestabilizar o país, e até hoje sofremos as consequências daquela época. A UNE não liderou junho, e na verdade nenhuma organização liderou. Sofremos sim grande questionamento da imprensa que queria deslegitimar entidades como a UNE. Mas o tempo passa e a UNE sempre cresce nos grandes momentos de crise política. Parece que nós gostamos é da confusão (risos). A maior prova de que a UNE é muito importante para o país, por exemplo, é o nosso Congresso de 2017, com muito interesse das forças organizadas em disputar e vencer as eleições da UNE, e a direita está voltando também para a UNE, ou seja, ninguém quer participar de algo que não é importante, né? 180 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
O combate ao golpe e ao retrocesso guiaram a gestão de Carina à frente da UNE
Pela atuação da UNE nos últimos anos, ela também foi muito perseguida nesse último período. Teve até uma tentativa de CPI da UNE liderada por Eduardo Cunha. Como foi isso? Sabemos quem são aqueles que preferem os estudantes calados. Sabemos quem são aqueles que preferem a juventude despolitizada, apática, longe dos debates sobre o país e sem participação. São os que querem manter a política apenas para os mesmos grupos que sempre estiveram lá e que não querem o aprofundamento da nossa democracia. Estávamos esse tempo todo ocupando o congresso nacional e dando trabalho pros deputados, imprimimos a primeira derrota do Eduardo Cunha na redução da maioridade penal, depois lutamos pela sua cassação. A partir daí ele começa a articular uma Comissão Parlamentar de Inquérito, uma ação injustificada, só pra criminalizar a UNE mesmo. Nós não nos intimidamos, a UNE sempre se posicionou nos momentos mais decisivos e sempre foi protagonista na história do Brasil. Isso porque a UNE é uma das maiores experiências democráticas do país, reunindo na mesma entidade todos os tipos de pensamento, todas as ideologias, toda a diversidade da juventude de forma coletiva e unitária. Temos a legitimidade de quem enfrentou ditaduras em diversos períodos, de quem cedeu as suas próprias vidas pela redemocratização, de quem completa 80 anos de lutas e serviços prestados ao país. Poucas são as organizações que têm essa importância e essa longevidade. Por tudo isso, estaremos sim, sempre, participando da vida política do Brasil e temos um lado. Estamos do lado da democracia, da soberania nacional e dos direitos da população, especialmente a menos favorecida nesse país de desigualdades. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
181
A UNE sabia que um golpe estava sendo tramado, e foi a primeira entidade a denunciá-lo, quando muitas entidades subestimaram aquele risco.
A presidenta da UNE dirige-se à população em ato Fora Temer
182 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
No âmbito da educação, qual você con-
da estrutura e financiamento educacional,
regulamentar o ensino privado e fomentar
sidera que tenha sido o papel do mo-
mas contra o discurso fascista de movimen-
as universidades que contribuem para a de-
vimento estudantil neste período da
tos como o Escola Sem Partido, que ganhou
mocratização do acesso ao conhecimento,
sua gestão?
espaço no MEC, defendendo o silenciamento
as instituições filantrópicas, comunitárias,
Tivemos de resistir, porque o ataque nesse
do pensamento crítico nas escolas. Foi uma
organizações que respeitem a educação e não
setor foi grave. Ainda antes do golpe, fomos
época de defender o que conquistamos nos
a tratem apenas como mercadoria.
duramente contra a política de ajustes do
últimos anos e de denunciar, para o conjun-
Nosso farol deve ser manter o processo cres-
ministro Joaquim Levy que promoveu cortes
to da sociedade, as consequências do golpe
cente de popularização da universidade, levar
com prejuízos imediatos na universidade pú-
nesse setor.
cada vez mais filhas e filhos dos trabalhadores
blica. Com a chegada de Temer, a sinalização
para as salas de aula, ampliar as linguagens e
dos retrocessos já foi dada pela escolha do
A educação brasileira chegou a conseguir
os saberes, representar o Brasil e transformar
ministro da Educação, representante de um
alguns avanços, hoje não mais tão garan-
o Brasil por meio da educação. O problema é
partido que, recentemente, foi ao STF contra
tidos, como os 10% do PIB para a educação
que a PEC do “teto de gastos”, aprovada pelo
o Prouni e a democratização da universidade.
e o aumento da inclusão na universidade.
Congresso, fere de morte o PNE, porque essa
Nossa primeira resposta foi ocupar escolas e
Quais são os desafios atuais?
transformação só vai acontecer se houver fi-
universidades de todo o país contra a Refor-
Devemos lutar com todas as forças pela
nanciamento para educação pública.
ma do Ensino Médio e a PEC 55. Durante o
retomada do Plano Nacional de Educação. Essa
mesmo período, fomos contra o avanço dos
foi uma conquista histórica, resultado de um
As ocupações representaram o maior mo-
interesses financeiros e a mercantilização do
amplo debate da sociedade por meio das con-
vimento estudantil desses dois anos. O dia
ensino superior, com as fusões milionárias de
ferências nacionais nessa área, reivindicação
29 de novembro de 2016 também foi um
grupos da educação privada. As mudanças na
antiga do movimento educacional, um projeto
dia marcante. O que representou isso?
operação do pré-sal, contra as quais também
indispensável para pensar a transformação
As ocupações inauguraram a oposição ao
lutamos, colocaram em risco a aplicação dos
de uma sociedade como a nossa. Devemos
governo Temer. Os secundaristas começaram
royalties dessa riqueza natural na educação. A
recuperar um projeto que priorize a educação
no Paraná e se espalhou pelo Brasil com a luta
UNE marcou posição não somente na questão
pública, gratuita e de qualidade, assim como
contra a Reforma do Ensino Médio. Depois
A UNE marcou posição não somente na questão da estrutura e financiamento educacional, mas contra o discurso fascista de movimentos como o Escola Sem Partido. revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL 183
veio a PEC do “teto de gastos”, que sabota os investimentos em educação e saúde pelos próximos 20 anos, aí as ocupações chegaram na universidades. Foi muito impactante, quase 200 universidades ocupadas em todo o Brasil, um processo coletivo e combativo protagonizado pelos estudantes. Mas nós não estávamos satisfeitos, era preciso levar as ocupações para Brasília, para que pudessem nos ouvir. E foi isso que aconteceu no dia 29, uma passeata gigante das ocupações. Foi um marco para o movimento estudantil e para a UNE, pois foi construída com muita unidade visto a diversidade característica do movimento. Infelizmente a repressão nos atingiu fortemente, Brasília pareceu campo de guerra, cavalaria, bombas de efeito moral, gás de pimenta. As reformas do Temer não pararam no Ensino Médio, também atingiram os trabalhadores com a Reforma Trabalhista e da Previdência. Como a UNE atuou nesse processo de luta? A UNE procurou atuar em unidade com as centrais sindicais e as frentes. Isso foi muito importante, porque quando os trabalhadores entram em campo, fica muito mais forte. Construímos uma grande greve geral, foi impressionante, o Brasil inteiro parou. E acho que a Reforma da Previdência foi um ponto de inflexão do ponto de vista da opinião pública. Ali o governo Temer começou a cair, quando a população começou a perceber que o golpe era contra ela. Esse não era assunto somente dos movimentos organizados, virou conversa entre a família, amigos, nas comunidades. Todo mundo sabia que o direito à aposentadoria ia acabar. E o Temer não conseguia votos para aprovar a reforma. Esse foi o impacto da nossa luta. 184 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
Carina ao lado da ex-presidenta da UBES Bárbara Melo em acampamento contra os cortes na Educação
Todo mundo sabia que o direito à aposentadoria ia acabar. E o Temer não conseguia votos para aprovar a reforma. Esse foi o impacto da nossa luta. O governo Temer quase caindo e os mo-
Você preside a UNE numa época em que as
dade. E hoje vivemos um momento único para a
vimentos sociais passaram a defender
mulheres têm ganhado representatividade
luta das mulheres, não só no Brasil e na América
Diretas Já. Isso lembra bastante o pas-
no movimento estudantil. A Clara Araújo,
Latina, mas em diversos países do mundo, uma
sado de luta da UNE?
presidenta da UNE nos anos 80, conta na
nova onda de avanço do feminismo que já tem o
Com certeza, o período atual de golpe nos
sua entrevista que naquela época havia um
seu lugar na história.
relembra a nossa resistência à ditadura e a
estranhamento se usava vestido ou sandália,
luta pela democratização. Depois de mais de
por exemplo. Você acha que o movimento
Neste momento, sua gestão caminha para
30 anos voltamos a ter como nossa bandeira
estudantil está mudando?
a reta final. O que você poderia dizer o que
principal as eleições diretas. Agora que o go-
Sim, está mudando muito, apesar de ainda existir
ganhou com a experiência desses dois anos?
verno Temer não tem mais condições políticas
esse estranhamento com a presença da feminilidade
O que mudou na sua visão de mundo? Qual
de continuar, precisamos de uma saída política
em um espaço de política, assim como o assédio.
a diferença da Carina de hoje em relação à de
que devolva a legitimidade do voto popular
Ainda são muitos desafios que enfrentamos diaria-
dois anos atrás?
e confie ao povo os rumos do país. Como em
mente. O silenciamento é uma enorme barreira para
Acho que ninguém passa pela UNE e sai da
1984, no congresso articula uma saída por
as mulheres no movimento social. Na maioria das
mesma forma. Isso não é apenas na presidência,
eleições indiretas, mas acho que isso fará
vezes eu fui a única mulher a falar no carro de som
mas na entidade como um todo. Acho que o
aprofundar a crise política que afunda o país.
nos atos contra o golpe e contra os retrocessos. Com
principal aprendizado é sair amando cada vez
Precisamos organizar uma grande campanha
certeza essa é uma contribuição que o movimento
mais o nosso país. Sabemos o que realmente
que envolva em unidade os movimentos, artis-
estudantil está dando para os movimentos sociais.
nos une e sabemos da nossa força quando
tas, esportistas, religiosos, acadêmicos e todo
As gerações mais novas de meninas militantes
construímos os nossos sonhos em conjunto.
mundo que puder juntar numa grande Frente
estão cada vez mais conscientes dessas questões
Acho que dois anos atrás eu não teria a mesma
Ampla pelas Diretas. Só essa mobilização será
e ocupando seus espaços de forma cada vez mais
certeza sobre o poder da juventude e da demo-
capaz de ser vitoriosa.
organizada. Isso fará a diferença em toda a socie-
cracia. Na UNE conheci estudantes de todo o revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL 185
país que carregam em si as maiores esperan-
Como uma liderança jovem do Brasil, o
ças e os maiores talentos. Conheci quem tem
que você pensa sobre o futuro do país?
histórias de vida muito difíceis, quem enfrenta
Acredito muito no meu país. Acredito no
um mundo inteiro, vence dificuldades monu-
talento dos seus jovens, na liderança fan-
mentais para ter acesso à universidade e ainda
tástica de tantas meninas e meninos que se
assim não abre mão de militar pelas coisas em
organizam de diversas formas, no movimento
que acredita. Vi a juventude defendendo o seu
estudantil, nas associações comunitárias, na
país. Vi a tristeza de um momento difícil, como
cultura, no midiativismo, uma galera que não
em 2016, mas o brilho nos olhos de quem se
está aí para brincadeira e, com certeza, vai
manteve firme para lutar e virar a página. A UNE
mudar radicalmente a nossa realidade para
tem uma força inimaginável e sei que é essa
melhor. Se o presente é de desesperança, se
força que vai me inspirar daqui pra diante em
olharmos para a juventude teremos fé num
diversos momentos da vida.
futuro melhor, porque existe luta.
Na maioria das vezes eu fui a única mulher a falar no carro de som. Com certeza essa é uma contribuição que o movimento estudantil está dando aos movimentos sociais. 186 revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL
Estudantes ocupam a Esplanada dos Ministérios em defesa da democracia brasileira
revista movimento ESPECIAL 80 ANOS DA UNE // entrevista CARINA VITRAL 187
Diretoria da UNE gestão 2015-2017
Presidenta
3ª Diretora de Assistência Estudantil
CARINA VITRAL
SIMONE NASCIMENTO
Vice-Presidenta
4º Diretor de Assistência Estudantil
MOARA CORREA SABOIA
MARCIO BRITO
1ª Vice-Presidenta
1ª Diretora de Políticas Educacionais
KATERINE OLIVEIRA
BARBARA CARDOSO
2ª Vice-Presidenta
2º Diretor de Políticas Educacionais
TAMIRES GOMES SAMPAIO
GUILHERME VICTOR MONTENEGRO
3º Vice-Presidenta
3º Diretor de Políticas Educacionais
TAÍRES SANTOS
RAPHAEL ALMEIDA
Secretária-Geral
4º Diretora de Políticas Educacionais
JESSY DAYANE SILVA SANTOS
RITA GOMES
Tesoureiro-Geral
1ª Diretora de Cultura
IVO BRAGA
POLIANA NADIN
1° Tesoureiro
2º Diretor de Cultura
VINICYUS SOUSA
CAIO TEIXEIRA
Diretor de Comunicação
Diretora de Mulheres
MATEUS WEBER
BRUNA COUTO ROCHA
Diretor de Políticas Educacionais
1ª Diretora de Mulheres
DAVID ALMANSA
AMANDA ARIADNE MANTOVANI
Diretora de Cultura
2ª Diretora de Mulheres
MEL GOMES
NATHÁLIA BITTENCURT DOS SANTOS
Diretora de Relações Internacionais
3ª Diretora de Mulheres
MARIANNA DIAS
ELIDA ELENA
1ª Diretora de Relações Internacionais
4ª Diretora de Mulheres
CAMILA SOUZA
ALINE MORAES
Diretor de Movimentos Sociais
1º Diretor Movimentos Sociais
FELIPE MALHÃO
FRANCISCO DAS CHAGAS PEREIRA
Diretor de Universidades Particulares
2º Diretora de Movimentos Sociais
JOSIEL RODRIGUES
KATTY HELLEN
Diretora de Direitos Humanos
3º Diretor de Movimentos Sociais
LUIZA FOLTRAN
GABRIEL ALVES
Diretor de Relações Institucionais
4ª Diretora de Movimentos Sociais
IAGO MONTALVÃO
SARAH LINDALVA
Diretora de Extensão Universitária
1º Diretor de Universidades Privadas
MARIARA SILVA DA CRUZ
CARLOS AUGUSTO PORTELA
Diretor Jurídico
2º Diretor de Universidades Privadas
RARIKAN HEVEN
JONATHAN LAURO ROSSI MACHADO
Diretora de Universidades Públicas
3º Diretor de Universidades Privadas
GRAZIELE MONTEIRO
ALISSON NICOLDI DE OLIVEIRA
Diretor de Assitência Estudantil
4º Diretor de Universidades Privadas
LUCAS BICALHO
TONY ROBSON DA SILVA
1º Diretor de Assistência Estudantil
1ª Diretora de Direitos Humanos
JOÃO LUIS LEMOS DE PAULA
MARIANA VIEIRA LACERDA
2º Diretor de Assistência Estudantil
2ª Diretora de Direitos Humanos
FELIPE EDUARDO LOPES
RAIANA SIQUEIRA MENDES
1º Diretor Institucionais
Vice-Presidente BA
RUAN RODRIGUES
NATAN FERREIRA
UEEs
2º Diretor Institucionais
Vice-Presidente CE
UEE -SP
MICHEL AFIF MAGUL
LUIS CARLOS
FLÁVIA OLIVEIRA
Diretor de Combate ao Racismo
Vice-Presidenta PE
UEE - RJ
RODGER RICHER
FLOR RIBEIRO
LEONARDO GUIMARÃES
1ª Diretora de Combate ao Racismo
Vice-Presidente PI/MA
UCE - CE
MARCELA LISBOA RODRIGUES DA SILVA
LUCAS MATOS
YURI BECKER
2ª Diretor de Combate ao Racismo
Vice-Presidente SP
UEE - MT
YURI BRITO
CRIS GRAZINA
VINICIUS SANTOS
Diretor de Ciência e Tecnologia
Vice-Presidente MG
UEE - GO
JONAS LUBE
CARLOS SOUSA
RITLEY ALVES
Diretor de Inclusão Digital
Vice-Presidenta DF
UEE - MG
CARLOS ANDRÉ LOBATO MENDES
LUIZA CALVETTE COSTA
LUANNA RAMALHO
1ª Diretora de Extensão
Vice-Presidente RJ/ES
UEE Livre - RS
PAMELA KENNE
JOSÉ MESSIAS DA SILVA
2º Diretor de Extensão
Vice-Presidente Sul
GUILHERME HENRIQUE TARGINO
GIOVANI CALAU
THAIS BERG DINAMARA FARIAS NATALIA DORIA
Diretora de Meio Ambiente
Vice-Presidenta MT/MS
UPE - PE
SAMARA DANIELLE SOUZA
AMANDA ANDERSON
BRUNO PACHECO
Diretora de Memória Estudantil
Vice-Presidente PA
UEB - BA
MARILLIA SILVA RODRIGUES
HEBERTT LIMA
NAGILA MARIA
Diretor LGBT
Diretor de Desporto Universitário
UEE - AM
AUGUSTO OLIVEIRA PEREIRA
PATRICK GUIMARÃES
BRUNA BRELAZ
1ª Diretora LGBT
3ª Diretora de Extensão
DANIELLA VEYGA
THAYNARA MELO RODRIGUES
2º Diretor LGBT
Diretor de Políticas Públicas para Juventude,
AUGUSTO MALAMAN
Estágio e Trabalho
GESTÃO 2015-2017
1º Diretor de Universidades Públicas
RANYELLE NEVES
Coordenação Geral
GABRIEL MEDEIROS
2º Diretor de Políticas Públicas para Juventude,
PATRÍCIA DE MATOS
1ª Diretora de Universidades Públicas
Estágio e Trabalho
Coord. de Projetos e Finanças
JOHARI PROVEZANI
RAIMUNDO IGOR
BÁRBARA CIPRIANO
2ª Diretor de Universidades Públicas
3º Diretor de Políticas Públicas para Juventude,
Coordenação de Comunicação e Audiovisual
EZIEL DUARTE
Estágio e Trabalho
RODRIGO MORELATO
3º Diretor de Universidades Públicas
DAISON ROBERTO COLZANI
Coordenação de Arte e Cultura
JESSÉ SAMÁ
CUCA da UNE
BRUNO BOU
4ª Diretora de Universidades Públicas
ELEN REBECA
GESTÃO 2017-2019
5ª Diretora de Universidades Públicas
Coordenação Geral
MARA JULIANA DE SOUSA TRAMONTINI
CAMILA RIBEIRO
Vice-Presidente AC/RO
Coord. de Projetos e Finanças
JEFFREY CAETANO
PHILIPE RICARDO
Vice-Presidente AM
Coordenação de Comunicação e Audiovisual
KENNEDY OLIVEIRA
DANI REBELLO
Vice-Presidente AL
Coordenação de Arte e Cultura
LUCAS VINICIUS
CAIQUE RENAN
Congresso da UNE em Piracicaba (SP), em 1980
Apoio:
Patrocínio:
Realização:
O Centro Cultural Belchior, construído em um dos principais cartões-postais de Fortaleza, possui aproximadamente 850m², divididos entre um auditório, salas e galerias para exposição, café, além de área de uso comum, no pavimento superior, de onde é possível contemplar o mar. O equipamento cultural faz uma homenagem ao músico cearense Belchior que, além de uma importante referência para a música brasileira, foi também um amante das artes plásticas.
conheca o CENTRO CULTURAL BELCHIOR Rua dos Pacajus, 123 - Praia de Iracema, Fortaleza - CE Terça a sexta-feira, das 10h às 21h Sábados e domingos, das 15h às 21h
Organização BRUNO HUBERMAN, NATÁLIA PESCIOTTA e RAFAEL MINORO
UNE.ORG.BR