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MARTE 1: O CINEMA MINEIRO EM EVIDÊNCIA NO PANORAMA DO AUDIOVISUAL

Como analisar o movimento de estruturação de uma verdadeira revolução protagonizada pelo filme Marte 1, da produtora mineira Filmes de Plástico?

Foto: Divulgação/Filmes de Plástico

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A história do cinema brasileiro teve início em 1896, ano em que foi ao ar a primeira sessão de cinema no país, na cidade do Rio de Janeiro. Os filmes eram de curta metragem e retratavam o dia a dia nas cidades da Europa. Já as primeiras produções brasileiras foram feitas entre os anos de 1897 e 1898: eram pequenos documentários mudos, em preto e branco.

Na primeira década do século XX, o cinema brasileiro ganhou força. Em 1907 já havia mais de 20 cinematógrafos fixos no Rio de Janeiro. Nessa época começaram a ser lançados os primeiros filmes fictícios produzidos no país, como os curtas “Os Estranguladores” e “Nhô Anastácio Chegou de Viagem”, lançados em 1908. Nesse mesmo período começaram a ser produzidos os primeiros filmes cantados, que eram mudos, mas contavam com uma dublagem ao vivo durante a exibição.

Após a Primeira Guerra Mundial, o cinema brasileiro sofreu uma queda junto ao enfraquecimento do cinema europeu, dando espaço para o crescimento das produções de Hollywood, que acabou se firmando como grande produtora mundial de filmes. O crescimento das produtoras internacionais não impediu a resistência do cinema nacional, que continuou produzindo.

A fundação da Cinédia, em 1930, foi de extrema importância para o desenvolvimento nacional. A companhia cinematográfica produzia musicais e obras com temas populares, como o Carnaval. Em uma dessas produções foi revelada Carmen Miranda, uma figura importante para o cinema nacional. Na década de 40 surgiram os gêneros das “chanchadas”, que cresceram junto à fundação da Atlântida Cinematográfica, companhia de cinema fundada em 1941, no Rio de Janeiro.

Após o golpe militar de 1964, houve um movimento influenciado pelo Neorrealismo Italiano e pela Nouvelle Vague Francesa, conhecido como Cinema Novo, que foi marcado pela insatisfação de alguns cineastas com as questões políticas e sociais da época. Descontentes com a tradicionalidade, o grupo de cineastas protestantes lutava por uma arte mais engajada com as razões sociais e a cultura brasileira.

O movimento foi crescendo e o cinema brasileiro ficou marcado como um dos mais políticos da época. Com o fim da Ditadura Militar, o cinema brasileiro ganhou incentivos, mas foi prejudicado pela crise econômica de 1980 e só começou a se restabelecer no ano de 1990, período que ficou conhecido como “Cinema de Retomada”. A partir disso, foi criada a Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual, sendo implementada a “Lei do Audiovisual”. No início do século XXI, o cinema brasileiro conquista novamente espaço no cenário mundial, com filmes como Cidade de Deus, Central do Brasil e Tropa de Elite.

HUMBERTO MAURO - O PIONEIRISMO MINEIRO NO CINEMA

Embora as produções audiovisuais localizadas no eixo Rio-São Paulo tenham um protagonismo quase hegemônico no que diz respeito à representatividade do cinema nacional, o cinema mineiro também merece destaque quanto a sua qualidade e, mais recentemente, quanto ao volume de produção.

De acordo com o levantamento realizado pela ONG Contato, Sebrae e pela UFMG, “Diagnóstico socioeconômico do audiovisual mineiro”, apresentado em 28 de julho de 2022, no período entre 2014 e 2021, o audiovisual brasileiro apresentou uma expansão de 30,72%.

Em Minas Gerais, esse crescimento foi ainda maior (52,21%), no que compete à evolução do índice de ocupados no recorte CNAEs do audiovisual por territórios. Só na Região Metropolitana de Belo Horizonte registra-se um crescimento de mais de 100% nos postos de trabalho ocupados por trabalhadores do audiovisual (104,96%).

Essa força do cinema mineiro, no entanto, remonta também a história do cineasta mineiro Humberto Mauro, nascido no dia 30 de abril de 1897, em Volta Grande, estado de Minas Gerais. Sua trajetória no cinema se inicia na cidade de Cataguases, município próximo de Volta Grande, onde dirigiu Valadião, o Cratera (1925), com Pedro Comello. Em seguida lança Na primavera da vida (1926), O thesouro perdido (1927), Braza dormida (1929) e Sangue mineiro (1930).

De acordo com artigo de Eduardo Morettin, professor da ECA/USP:

“Essas obras demonstram uma lenta apropriação de temas caros à crítica cinematográfica da época, como a identificação de nossas qualidades “nacionais” através da exibição de ambientes luxuosos em que qualquer indício de pobreza “era ocultado”.

GANGA BRUTA - UM MARCO DO CINEMA NACIONAL

O filme considerado como a obra prima de Humberto Mauro foi lançado em 1933. Ganga Bruta marca a passagem no Brasil dos filmes silenciosos para os falados, e originalmente foi concebido para o formato do cinema mudo, sendo posteriormente adaptado com inserções de fala na edição.

O roteiro conta a história de um engenheiro, Marcos Rezende, que mata a esposa logo após o casamento ao descobrir uma traição. A esposa não chega à noite de núpcias “pura’’, como esperado. O marido a assassina e é absolvido do crime. Posteriormente ele se muda para uma cidade do interior, a fim de abandonar as lembranças do ocorrido.

No interior, Marcos conhece Sônia, namorada de Décio, e constitui um triângulo amoroso que culmina no casamento do protagonista com Sônia, após a morte do namorado por afogamento.

O filme é um elogio à modernidade, repleto de imagens que captam o espírito de seu tempo. Construções de fábricas, cenas urbanas, veículos automotivos e tomadas da locomotiva. Estas imagens formam um panorama que endossa a importância do progresso industrial como força motriz da sociedade.

Humberto Mauro E O Cinema Novo

“Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto Mauro que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte.”

Esta declaração de Glauber Rocha, um dos cineastas que integrou o movimento iniciado na década de 50 no Brasil, chamado de Cinema Novo, dá a exata noção da importância do trabalho de Humberto Mauro para o cinema nacional. O cinema novo, que buscava uma maneira de se produzir filmes autenticamente brasileira, foi um marco mundial na cinematografia que reverbera até hoje nas produções nacionais.

MARTE 1: O CINEMA MINEIRO NA MOBILIZAÇÃO PARA O OSCAR

O filme escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar foi Marte 1, longa do diretor mineiro Gabriel Martins. O roteiro faz um recorte de momentos vividos pelos membros da família Martins, e se desenvolve principalmente em torno do menino Deivinho, interpretado por Cícero Lucas, o caçula da família, que tem o sonho de integrar uma missão para colonização do planeta Marte. Ambientado numa região periférica, e rodado em Belo Horizonte e Contagem, a história mostra a dinâmica familiar deste grupo que, apesar de passar por muitos revezes, se mantém unido.

O filme caminha por uma narrativa de dissolução dos estereótipos sobre a desestruturação de famílias, frente às crises que se sobrepõem ao cotidiano difícil. A filha mais velha, Eunice, interpretada por Camila Damião, é um importante elo de coesão e força, determinante para o relacionamento entre seus familiares.

A personagem de Camila passa por um momento delicado, de descoberta de sua sexualidade e pelo processo de saída da casa dos pais, ao mesmo tempo em que sofre com a pressão exercida pelo pai sobre o irmão mais novo, e com a preocupação em relação à mãe, impactada por uma crise psicológica.

O pai de Eunice, Wellington, interpretado pelo ator Carlos Francisco, vê abalada sua relação com a família ao constatar que o filho não deseja seguir o caminho sonhado por ele, além de sofrer com uma ruptura inesperada, que contribui para sua desestabilização emocional.

A mãe, Tércia, interpretada por Rejane Faria, enfrenta crises de pânico desencadeadas por um trauma repentino. Deivinho, por sua vez, lida com a pressão paterna para seguir na batalha pela carreira de jogador de futebol.

A profissão de atleta, almejada pelo pai para Deivinho, representa um mito de redenção financeira para muitos jovens pobres periféricos. No entanto, no caso do menino, ele não é capaz de competir com a fascinação que devota às viagens espaciais, tão distantes de sua realidade.

Nessa atmosfera de sonho, o roteiro adiciona sentimentos como coragem, amor, medo, desejo, algo de muito familiar para todos nós, tão familiar que se torna muitas vezes invisível e imperceptível, mas que toma a superfície de Marte 1 como um espelho, algo em que somos capazes de nos reconhecermos.

O AQUILOMBAMENTO NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA: UM MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

Além destes aspectos apontados, Marte 1 se tornou uma peça fundamental do cinema nacional também por sua profundidade e importância social. Ao analisar a trajetória de produção do filme, entrevemos uma série de pontos que ajudam a compreender a estrutura que permite gerar obras de qualidade como essa.

É o que constatamos na conversa que tivemos com a professora Tatiana Carvalho. Tatiana que é formada em jornalismo, é curadora da mostra de cinema de Tiradentes e da semana de cinema negro de Belo Horizonte, além de integrar o FICINE, Fórum Itinerante do Cinema Negro e conselheira regional da APAN, Associação dos Profissionais do Cinema Negro Brasileiro.

De acordo com a professora, Marte 1 aparece num contexto de descentralização de políticas públicas de produção audiovisual, e de ações afirmativas no setor e na área da educação para a formação dos profissionais atuantes nas produções.

Os programas de cotas universitárias, programas de financiamento estudantil, bem como o investimento em cursos universitários e faculdades fora do eixo Rio-São Paulo proporcionam que indivíduos, antes apartados da produção cinematográfica, possam protagonizar e contar suas histórias através do cinema.

Segundo Tatiana, esse contexto é crucial para que produtoras como a Filmes de Plástico, responsável por Marte 1, possam prosperar. O filme é fruto do único edital do extinto Ministério da Cultura, lançado em 2015, que visava contemplar projetos de longa metragem de baixo orçamento afirmativos.

O papel que a Filmes de Plástico cumpre, no panorama nacional, de acordo com Tatiana, é revolucionário, porque a produtora volta suas câmeras para mostrar a beleza dos corpos negros periféricos, das paisagens da periferia, das histórias íntimas deste contexto, e a sua dimensão profundamente humana. Além de influenciar uma série de outras produtoras como a Ponta de Anzol Filmes, a Renca Produções, a Abdução Filmes e a É Mesmo Filmes, dentre outras.

Esse movimento revolucionário é identificado pela professora, através de sua pesquisa de doutorado, como Quilombo Cinema. O conceito de aquilombamento nomeia esse fluxo produtivo que vai contra a corrente do desmantelamento das políticas públicas de fomento à cultura e ao audiovisual a partir de 2016 e de maneira mais brusca a partir de 2018, e do qual Marte 1 é sem dúvida um dos representantes mais brilhantes.

O Jornal Impressão também entrevistou Camila Damião, a intérprete de Eunice, e você pode conferir a entrevista completa no link abaixo.

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