UNIVERSIDADE GAMA FILHO VICE-REITORIA ACADÊMICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO: MESTRADO
O PRINCÍPIO DA ORALIDADE ÀS AVESSAS: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro
Bárbara Gomes Lupetti Baptista
Rio de Janeiro 2007
UNIVERSIDADE GAMA FILHO VICE-REITORIA ACADÊMICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO: MESTRADO
O PRINCÍPIO DA ORALIDADE ÀS AVESSAS: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Universidade Gama Filho como requisito parcial para a conclusão de mestrado em Direito.
Bárbara Gomes Lupetti Baptista
Professor orientador Dr. Roberto Kant de Lima
Rio de Janeiro 2007
Bárbara Gomes Lupetti Baptista
Matrícula: 2005194308-5
O princípio da oralidade às avessas: um estudo empírico sobre a construção da verdade no processo civil brasileiro.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho como requisito parcial para a conclusão de mestrado em Direito.
AVALIADO POR
________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima Universidade Gama Filho - UGF
________________________________________ Profa. Dra. Maria Stella de Amorim Universidade Gama Filho - UGF
________________________________________ Prof. Dr. Luís Roberto Cardoso de Oliveira Universidade de Brasília - UnB
Rio de Janeiro, 04 de maio de 2007.
José Ribas Vieira Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho - UGF
Para Gustavo, em reconhecimento ao nosso amor incondicional.
AGRADECIMENTOS
Segundo as regras oficiais da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) esta parte é opcional ao trabalho. No meu caso, é imprescindível agradecer porque, certamente, eu não chegaria até aqui sem a ajuda de pessoas especiais, que faço questão de nomear. Agradeço ao Gustavo, meu marido, por compartilhar de forma tão intensa e com tanto amor todos os momentos da minha vida e por jamais permitir que eu esmoreça, fazendo-me acreditar que tudo na vida é possível. Aos meus amados pais, Marly e Humberto, pela dedicação integral; por incutirem valores tão importantes na minha formação pessoal; pelo incentivo e pela confiança sempre depositados em mim; e, mais do que tudo, pelo sacrifício que fizeram a vida inteira para que eu pudesse trilhar este caminho. À Linda, minha sogra, por fazer papel de mãe no nosso cotidiano. Ao meu orientador, Roberto Kant de Lima, por quem sinto muito orgulho e extrema admiração pessoal e profissional. Agradeço, sinceramente, por confiar na minha proposta; por se dedicar à minha pesquisa; por todas as oportunidades que me concedeu neste período; por abrir os meus olhos para um novo campo e por me “guiar” neste árduo caminho que é ver o Direito através de uma outra perspectiva. À querida professora Maria Stella de Amorim, pelo carinho, pelo convívio, pelo incentivo e pelo “olhar sociológico” que me fez atentar para questões que eu não veria sem a sua inesquecível colaboração. À adorável professora Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, que foi muito importante neste início da minha trajetória acadêmica, pelo incansável apoio e por ser uma pessoa tão especial. Ao Felippe Zeraik, que me conduziu, com lealdade, desde o princípio da minha vida profissional; que me ensinou o que eu sei sobre a advocacia e que deu o pontapé inicial na minha trajetória acadêmica. À Clarisse de Oliveira e ao Dênis Halis, por me fazerem acreditar, desde o início, que eu seria capaz de seguir este rumo, mesmo quando tudo parecia tão distante para mim.
À minha amiga, Cris Dias, por me socorrer nos momentos em que eu mais precisei e por estar sempre disposta a me ajudar. Aos meus fiéis companheiros do mestrado: Francisco da Cunha e Silva Neto, Rafael Iorio Filho, Rubens Takashi, Marco Aurélio Gonçalves Ferreira, Regina Lúcia Teixeira Mendes, Cláudia Franco Corrêa e Márcia Cristina Xavier de Souza, pela companhia, pela amizade, pela agradável convivência e por compartirem experiências acadêmicas e profissionais que me foram tão úteis. Aos meninos e meninas do grupo de pesquisa da Gama Filho, por dividirem as tardes de quinta-feira com alegria, entusiasmo, harmonia e solidariedade. A todos que, de alguma forma, colaboraram com este trabalho, torcendo por mim; respondendo às minhas insistentes indagações; dedicando parte do seu tempo para me conceder entrevistas; ouvindo as minhas divagações; enfim, fazendo parte deste processo tão novo e marcante na minha vida.
“[...] É da natureza da verdade perder sua força quando é reconhecida como ilusão.”.
(DINIZ, Debora. Antropologia e os limites dos direitos humanos: o dilema moral de Tashi. Antropologia e Direitos Humanos. Niterói: EDUFF, 2003, cap. 1, p. 17-46)
RESUMO
A proposta deste trabalho é, sob o prisma das práticas judiciárias, verificar de que forma e em que circunstâncias o princípio da oralidade se materializa no processo civil brasileiro e, a partir daí, entender as implicações dessas manifestações orais na construção da verdade jurídica. O princípio da oralidade é incorporado pela dogmática de uma forma absolutamente distinta daquela depreendida pela empiria. A doutrina reconhece a oralidade como uma garantia processual das partes a um processo justo e democrático, ao passo que os rituais judiciários a descartam, sugerindo ser esta forma de manifestação um empecilho à celeridade da prestação jurisdicional. Na descrição dos rituais judiciários, utilizo-me do método de pesquisa das ciências sociais, mais especificamente, a etnografia e a observação participante. Os dados obtidos em campo sugerem que o consenso não é estimulado em nossa sociedade e que o Direito brasileiro incorpora essa lógica não-dialogal, especialmente através do princípio do contraditório, que rege as relações processuais. Nesse contexto, a oralidade, que, de plano, poderia representar um relevante instrumento para a produção de uma verdade jurídica consensual, na prática, funciona como produto do contraditório e, conseqüentemente, como um mecanismo que obstaculiza o diálogo e afasta as partes da solução do conflito. A oralidade é expropriada pelo Estado, que, ao impedir a participação ativa das partes no curso do processo, impõe uma verdade, produzida por escrito, através da sentença, demonstrando que o monopólio de dizer o Direito (e desvendar a verdade) é exclusivo do Juiz. Descrevi, durante o trabalho, as distintas manifestações orais presentes no processo civil brasileiro, tanto na 1ª quanto na 2ª instância processual do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Nesse contexto, a pesquisa apontou que a estrutura do sistema processual vigente cria lógicas contraditórias, que se anulam mutuamente em vez de se complementarem, de modo que, em cada etapa do processo é conhecida - ou construída - uma verdade distinta da anterior.
Palavras-chave: oralidade, escritura, processo, verdade.
ABSTRACT
The proposal of this paper is to verify, based on judiciary practices, the way and the circunstances that Orality Principle is materialized in Brazilian Civil Procedure and understand the implication provided from such oral manifestations in the construction of the juridical truth. The Orality Principle is incorporated by a dogmatics of a absolutely diferent method, if compared to the dogmatics deduced by empirical method. Doctrine recognizes orality as a procedural guarantee to the parties in a fair and democratical process. On the other hand, judicial practice gets rid of it suggesting that this method of manifestation is an obstacle for the celerity of a jurisdicional service. For the description of the judiciary practice, it was used social science methods of research, mainly, the ethnography and participative observation. The data obtained in the field suggest that consensus is not stimulated in our society and the Brazilian right incorporated the non-dialogical rational, especially through the Principle of the Contradictory, that conducts the procedural relations. In this context, the orality, which, in principle, it could represent a relevant instrument for the production of a consensual juridical truth, in reality, it functions as product of the contradictory and, consequently, as a mechanism that to create obstacles the dialogue and moves away the parties from the solution of the conflict. The orality was expropriated by State, which goal is to prevent the active participation of the parties during the process to impose a truth, constructed in writing, through of the final sentence, showing that Law (and the persecution of the truth) can only be said by the Judge. During this paper, the different oral manifestations that can occur in Brazilian civil procedure (in all jurisdictions) were described, as much in 1ÂŞ as in 2ÂŞ procedural instance of the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro. In this context, research showed that the actual structure of the procedure system criates contradictory logics, that cause each one anullation instead of complementation, consequently, in each phase of the process a different truth is either known or constructed, distinct of the previous one. Key words: orality, writing, process, truth.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA .............................................................................................................. 4 AGRADECIMENTOS .................................................................................................... 5 EPÍGRAFE .......................................................................................................................7 RESUMO ……………….................................................................................................. 8 ABSTRACT…………………………………………………………………………........... 9 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 14 CAPÍTULO I: ENTRE O DIREITO E A ANTROPOLOGIA: O CAMPO, AS SUAS REPRESENTAÇÕES E A SUA INFLUÊNCIA NA PESQUISA ............................... 19 1. Buscando o meu espaço no campo ...............................................................................19 2. Vivendo entre dois “mundos” ..................................................................................... 22 3. O “saber jurídico” e a sua atualização na sociedade brasileira .................................... 27 4. De um lado procurando soluções e de outro, explicitações .......................................... 37 5. Entrando e saindo de campo ........................................................................................ 42 CAPÍTULO II: A ORALIDADE E SUAS DISTINTAS CATEGORIZAÇÕES ............ 53 1. Focalizando o espaço e o objeto a ser categorizado ..................................................... 53 2. Contextualizando o tema ............................................................................................. 54 3. A oralidade legislada ................................................................................................... 55 4. A oralidade “aos olhos do Direito”: a visão dogmática ............................................... 59 5. A oralidade no contexto jurisprudencial ...................................................................... 75 6. A oralidade “em campo” ............................................................................................. 79
7. Oralidade: a mesma proposição, porém distintas representações ................................. 83 CAPÍTULO III: RETRATANDO O CURSO INICIAL DO PROCESSO: A 1ª INSTÂNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO ....................... 88 1. A estrutura da 1ª instância processual do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ................ 88 2. Processualizando as práticas ....................................................................................... 92 3. Dando início ao processo, por escrito ................................................................................. 95 4. O procedimento ordinário: estrutura e manifestações orais ................................................ 95 5. O procedimento sumário: um outro percurso da oralidade ............................................... 105 6. Quando os procedimentos se igualam: as repercussões no campo da oralidade ............... 109 CAPÍTULO IV: AS PRÁTICAS JUDICIÁRIAS ORAIS EM 1ª INSTÂNCIA: LEGITIMANDO O NÃO INSTITUÍDO OU INSTITUINDO O NÃO LEGITIMADO? ....................................................................................................................................... 113 1. As audiências: a materialização da oralidade na 1ª instância processual .......................... 113 2. Despachando: quando o escrito depende do oral .............................................................. 126 3. Testemunhando: o valor da prova oral no processo ...........................................................132 4. O depoimento pessoal das partes: a legitimação legal da “mentira” ................................ 140 5. O poder do papel: quando a escrita se impõe .................................................................... 147 6. O papel central do Juiz na condução do processo: quem constrói a verdade? .................. 152 7. O princípio do contraditório: um obstáculo no caminho da oralidade, do consenso e do diálogo ................................................................................................................................... 161 8. Oralidade x celeridade: a divergência que se estabelece ................................................... 164 9. Reduzir a termo ................................................................................................................. 167
10. Concluindo: a desconstrução dos subprincípios na prática ............................................. 184 CAPÍTULO V: A ESTRUTURA E O FUNCIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO
RIO
DE
JANEIRO:
SITUANDO
A
ORALIDADE
RECURSAL ........................................................................................................................ ............... 189 1. Preliminarmente ........................................................................................................ 189 2. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro .................................................... 190 3. Os rituais a serem explicitados: introduzindo o tema ........................................................ 201 CAPÍTULO VI: OS RITUAIS DO TRIBUNAL: IMPLICAÇÕES NO CAMPO DA ORALIDADE .............................................................................................................. 203 1. A representação da instância recursal como órgão superior ............................................. 203 2. Limite de acesso: as vestes que separam ........................................................................... 205 3. As decisões monocráticas em sede recursal: exceção que virou regra .............................. 211 4. Sustentação oral: a suposta materialização da oralidade no Tribunal ............................... 216 5. O tempo destinado a cada processo: desproporcionalidade .............................................. 224 6. Votos prontos: o convencimento é formado nas sessões? ................................................. 225 7. Os memoriais: o oral legitimando o escrito ....................................................................... 228 8. Esclarecimento de fato: uma prática legislada, porém não reconhecida ........................... 233 9. Consensualizando o resultado, não a argumentação ......................................................... 234 10. A oralidade como obstáculo à celeridade e a celeridade como obstáculo à oralidade .... 237 11. A ausência de registro ..................................................................................................... 243 12. Explicitação de um paradoxo: oralidade x duplo grau de jurisdição ............................... 252
13. A verdade recursal ........................................................................................................... 256 CONCLUSÃO: O CAMINHO DA VERDADE VIA ORALIDADE: LÓGICAS PROCESSUAIS EXCLUDENTES ............................................................................. 259 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 265
INTRODUÇÃO A proposta deste trabalho é, sob o prisma das práticas judiciárias, verificar de que forma e em que circunstâncias o princípio da oralidade se materializa no processo civil brasileiro e, a partir daí, entender as implicações dessas manifestações orais na construção da verdade jurídica. O princípio da oralidade é incorporado pela dogmática de uma forma absolutamente distinta daquela depreendida pela empiria. A doutrina reconhece a oralidade como uma garantia processual das partes a um processo justo e democrático, ao passo que os rituais judiciários a descartam, sugerindo ser esta forma de manifestação um empecilho à celeridade da prestação jurisdicional. É exatamente o descompasso entre o que a doutrina jurídica idealiza e o que a prática judiciária demonstra que eu pretendo explicitar. Para tanto, utilizei-me dos métodos de pesquisa das ciências sociais, isto é, “fui a campo” ver como o Direito se realiza na prática. Procedi à pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mais especificamente, nas Varas e Câmaras Cíveis do foro central da Comarca do Rio de Janeiro. Entrevistei magistrados, advogados, funcionários do Poder Judiciário, partes envolvidas nos processos em curso na Justiça, testemunhas, cidadãos e quem mais pudesse me fornecer subsídios para compreender de que forma as técnicas processuais se manifestam empiricamente. “A via privilegiada para perceber uma cultura jurídica continua a ser, incontestavelmente, os seus rituais, visto que é através deles que ela se manifesta quase às claras.”. (GARAPON, 1997, p. 155). Descrever as práticas judiciárias é, sem dúvida, uma importante forma de definir a subjetividade e a construção do saber e da verdade de uma determinada cultura (FOUCAULT, 2003). Imbuída dessas concepções, percebi que o estudo do Direito estava demasiado restringido aos manuais de procedimentos e que as práticas cotidianas dos Tribunais não estavam na pauta de discussões desse campo do saber. Compreendi que era necessário entender como a nossa sociedade administra os seus conflitos rotineiramente. A oralidade foi o tema selecionado porque me pareceu ser um instrumento rico para analisar os rituais judiciários e, também, porque, a meu ver, ela representaria a possível concretização de uma forma consensual de administração dos conflitos no espaço público,
por permitir, supostamente, uma aproximação e um diálogo entre todos os envolvidos no processo; o que me parecia salutar. É certo que, como adiante se explicitará, a pesquisa de campo demonstrou que o princípio do contraditório, incorporado também nas manifestações orais verificadas no curso do processo, impede essa forma dialogal de administração de conflitos. O foco primordial do trabalho é a oralidade e o seu vínculo com a construção da verdade processual. Foucault (2003) destaca que foi a partir das práticas judiciárias que nasceram os modelos de verdade que circulam até os dias de hoje em nossa sociedade. A verdade é, pois, uma construção que se pode atingir por diversos caminhos e Foucault (2003) nos desperta para isso ao descrever as inúmeras formas de enunciação da verdade no curso da história, exemplificando, especialmente, o seu deslocamento do divino para o terreno (testemunho). Fundamentando-me nessa premissa, percebi que a oralidade e a escritura representariam formas distintas de construir a verdade jurídica e que, portanto, estudar esses sistemas processualmente seria um caminho interessante para reconhecer de que maneira o processo civil se constitui e que tipo de verdade ele busca produzir. Sistematicamente, este trabalho está estruturado em 6 (seis) capítulos, nos quais pretendi explicitar as distintas manifestações orais do processo civil brasileiro ocorridas tanto na 1ª quanto na 2ª instância processual do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde realizei a pesquisa de campo. O capítulo I tem um cunho metodológico. Nele, destaco as dificuldades e os benefícios do estudo do Direito sob uma perspectiva antropológica, bem como a importância e as contribuições desse diálogo interdisciplinar no resultado da minha pesquisa. Todos os percalços pelos quais passei para transmudar os meus conceitos e reconhecer uma outra forma de construir o saber estão narrados no primeiro capítulo, de modo que ali expus tanto os aspectos pessoais, quanto os acadêmicos que influenciaram, do início ao fim, a elaboração deste trabalho. No capítulo II tive a preocupação de situar a oralidade no campo conceitual. Embora a dogmática não absorva as distintas categorizações da oralidade, a pesquisa empírica ajudou a perceber que, conforme o momento e o espaço em que as manifestações orais se verificam, a representação desse conceito apresenta um formato diferente. Assim, neste capítulo eu tentei individualizar esse conceito, considerando cada uma de suas diferentes perspectivas e especificidades.
A complementação do oral pelo escrito e do escrito pelo oral estão, igualmente, ali esboçadas. Além disso, procurei apontar, de forma mais evidente, o quão, no campo do Direito, o “mundo dogmático” e o “mundo pragmático” são desarmônicos. O capítulo III descreve o funcionamento e a estrutura do Poder Judiciário Estadual do Rio de Janeiro, em sede de 1º grau de jurisdição. O intuito foi criar um ambiente propício para a compreensão das práticas judiciárias nesta seara, pois o capítulo seguinte (capítulo IV) busca traçar o percurso do processo civil nessa 1ª instância. A minha proposta foi explicitar as práticas judiciárias seguindo exatamente o trilho da ação judicial. Destarte, eu descrevo o caminho do processo civil, desde o princípio até o momento da prolação da sentença, quando, então, o Juiz monocrático opta pela verdade jurídica prevalecente. Os capítulos V e VI têm, de alguma forma, uma estrutura similar aos seus antecedentes (capítulos III e IV), pois adoto a mesma estratégia descritiva, sendo que aplicada à instância recursal. Quer dizer, no capítulo V, descrevo e identifico o funcionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e, em seguida, no capítulo VI, explicito os rituais de julgamento desse órgão e, obviamente, as suas repercussões no campo da oralidade e da construção da verdade jurídica. A conclusão do trabalho retoma às questões perfiladas em cada capítulo, mas, especialmente, chama a atenção para um dado obtido em campo: o de que o sistema judicial brasileiro está estruturado de uma forma tal que as fases processuais se anulam mutuamente, fazendo com que distintos sistemas de verdade se sobreponham e se desqualifiquem (KANT DE LIMA, 2004-a). Durante todo o trabalho, focalizei a oralidade como um instrumento de garantia ou de facilitação do acesso à justiça, no entanto, essa idéia não obstaculizou a percepção de que, nem sempre, o Direito assim a reconhece. Reputo oportuno manifestar que este trabalho não visa solucionar os problemas do Judiciário, nem mesmo criticar as suas posturas. A minha proposta foi a de explicitar, do ponto de vista pragmático, como o Direito se materializa no cotidiano dos Tribunais. Acredito que demonstrando, às claras, exatamente como a Justiça se estrutura, se organiza e administra os seus conflitos, estarei possibilitando, ainda que de forma indireta, o aperfeiçoamento do sistema vigente. Abrir os olhos e estranhar o que aparentemente parece natural é sempre uma forma mais fácil de recriação e aprimoramento. A pesquisa não foi realizada com o intuito de criticar ou elogiar; de acusar ou omitir; de investigar ou silenciar. Na verdade, a minha idéia foi, simplesmente, descrever a
realidade do Judiciário, tendo em conta os pontos de vista de todos os envolvidos nessa estrutura: os que julgam e os que são julgados. Por fim, impossível deixar de mencionar a influência neste trabalho do contacto que mantive com o sistema processual argentino durante a missão de estudos de 03 (três) meses que realizei em Buenos Aires, em função do projeto CAPG-BA 021/05 - intitulado “Burocracias Penais, Processos Institucionais de Administração de Conflitos e Formas de Construção de Cidadania. Experiência Comparada entre Brasil e Argentina” - fruto de um convênio institucional firmado pela Universidade Federal Fluminense e pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, que teve como instituições associadas o Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho (RJ), onde cursei o mestrado, e os Programas de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Nacional de Misiones (Argentina) e da Universidade de Brasília. Esta vivência com o sistema judiciário argentino e, especialmente, com a oralidade do processo argentino, foi fundamental para as minhas percepções do Direito brasileiro, pois ao distanciar-me da minha realidade e socializar-me com outra cultura, inserindo-me em outro campo, pude estranhar e questionar, a partir dessas novas referências, as minhas verdades. Aliás, nesse sentido, a viagem é normalmente vista pela Antropologia como um instrumento facilitador desse distinto olhar necessário ao estranhamento da própria cultura (MALINOWSKI, 1984). No meu caso, a cultura jurídica brasileira, com a qual até então eu havia tido contacto, foi percebida de uma forma absolutamente distinta e peculiar, tendo sido efetivamente remodelada. Kant de Lima (1983), neste diapasão, ressalta que o papel da antropologia é, utilizando-se do conhecimento das diferenças entre as sociedades humanas, “estranhar” sua própria sociedade, descobrindo nela aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginação sociológica (KANT DE LIMA, 1983, p. 90). Creio que foi, exatamente, esta a influência da cultura judiciária argentina nesta pesquisa. Espero atingir a finalidade deste trabalho, permitindo a reflexão sobre os temas levantados. A minha proposição foi estudar o Direito sob um novo olhar, de modo a entender as lógicas que regem a sua concretização. A minha busca foi por conhecer como o Direito se materializa e entender o porquê das práticas se apresentarem como se apresentam, independentemente do que proclamam os manuais. Percebo que, normalmente, os trabalhos jurídicos – mesmo os acadêmicos priorizam explanar os motivos pelos quais a idealização dogmática do Direito não se materializa. Esta, efetivamente, não foi a minha idéia. Aqui, eu pretendi desnudar (ou
enxergar além) determinadas categorias fixas e imutáveis do Direito, utilizando-me, através do método etnográfico, de mecanismos de neutralidade e distanciamento que propiciaram uma pesquisa atrelada à realidade. A Antropologia permitiu que eu ultrapassasse as fechadas visões do campo do Direito e vislumbrasse o mundo empírico dos Tribunais. É este mundo que eu pretendo descrever, com todas as suas especificidades.
CAPÍTULO I ENTRE O DIREITO E A ANTROPOLOGIA: O CAMPO, AS SUAS REPRESENTAÇÕES E A SUA INFLUÊNCIA NA PESQUISA.
“Sejam quais forem as outras características que a antropologia e a jurisprudência possam ter em comum – como por exemplo uma linguagem erudita meio incompreensível e uma certa aura de fantasia – ambos se entregam à tarefa artesanal de descobrir princípios gerais em fatos paroquiais [...] No entanto, essa sensibilidade pelo caso individual pode tanto dividir como unir [...] A interação de duas profissões tão voltadas para a prática, tão profundamente limitadas a universos específicos e tão fortemente dependentes de técnicas especiais, teve como resultado mais ambivalência e hesitação que acomodação e síntese [...]”. (GEERTZ, 1998, p. 249)
1. Buscando o meu espaço no campo Escrever o primeiro capítulo deste trabalho é como voltar ao tempo e relembrar o início de tudo. A Pós-graduação em Direito, para mim, sempre significou percorrer um caminho distinto do que fora trilhado na época em que fiz a graduação em Direito. Eu não tinha uma idéia formada sobre o que significava exatamente um curso de mestrado em Direito, mas - pensando no sentido da palavra “pós” - eu objetivava ver além. Desde o dia em que me inscrevi na seleção para o mestrado, eu acreditava que veria o Direito a partir de uma outra perspectiva – que eu não sabia bem qual era – mas acreditava que seria algo além das leis, além dos códigos, além dos processos. Na verdade, pensava em uma forma de conhecimento específica, que me levaria a desvendar alguns mistérios do Direito e que me auxiliaria a encontrar as soluções para os problemas que me incomodavam na prática forense e que as leis, os códigos e os processos não resolviam. A minha trajetória profissional me fez ter contacto, desde a época da faculdade, com o dia-a-dia dos tribunais. Eu “exerci” a advocacia antes de me tornar, oficialmente, advogada, porque ir ao fórum todos os dias e ter contacto direto com as práticas judiciárias fazia parte do meu estágio. Assim, agucei a minha sensibilidade desde cedo e, há muito tempo, os problemas do cotidiano forense fazem parte das minhas reflexões.
Creio que sempre tive uma personalidade crítica e uma forma de vivenciar as circunstâncias sem o poder da aceitação. O questionamento e a necessidade de compreender a lógica dos fatos sempre estiveram presentes em minha vida, de maneira que, com o Direito não poderia ter sido diferente. Ingressei no mestrado segura de que ali eu teria a possibilidade de encontrar as respostas que eu buscava; de produzir as soluções que eu desejava e de mudar os rumos desviados do Direito. Obviamente, eu não tinha uma pretensão megalomaníaca a esse respeito, eu não queria consertar o mundo, eu queria, apenas, acalmar as minhas “perturbações”; e acreditava que – como a teoria ensinada na faculdade de Direito não resolvia os problemas da prática judiciária – talvez um conhecimento menos dogmático – a ser obtido na Pós-graduação - me ajudaria a entender as incongruências que eu não compreendia. De fato, a Pós-graduação me mostrou um novo caminho, mas para entender a lógica do Direito eu precisei do auxílio das ciências sociais. Descobri, no mestrado diferentemente do previsto - que estudando Direito eu não entenderia as discrepâncias entre a teoria e a prática que eu vivenciava cotidianamente. Percebi que, mesmo na pós, a tradição do ensino jurídico, dogmático, fecha as perspectivas do conhecimento. Entendi que o Direito é um campo autista, que “dialoga consigo mesmo” e, por conseguinte, eu não poderia compreendê-lo se o estudasse segundo suas próprias normas, categorias e princípios e o que eu buscava era, justamente, entender a sua lógica, o seu funcionamento, a sua estrutura, a sua essência. O descompasso entre a teoria jurídica e as práticas dos tribunais sempre foi um tema que me despertou atenção e eu observei que não é da tradição do Direito conciliar o estudo de ambas, mas descobri um campo diferente, que estuda o Direito numa perspectiva empírica - a antropologia - e é, justamente, por essa via que este trabalho caminhará 1. Com o tempo eu entendi que a antropologia também não me daria respostas ou soluções – como adiante se demonstrará – mas forneceria os subsídios para que eu vislumbrasse os obscuros, os implícitos do campo jurídico; e, com isso, entendesse os seus equívocos e aguçasse uma perspectiva de mudanças. Cruzar esses dois campos do conhecimento – a antropologia e o direito – me permitiu entender as instituições de uma forma nova. Ângela Moreira-Leite, que também
1
Sobre a contribuição da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil, ver: KANT DE LIMA, 1983, p. 89116.
aliou esses dois saberes e percebeu as disparidades entre teoria e práticas judiciárias, destaca em seu livro “Em tempo de conciliação” (2003, p. 27-28): “[...] o estudo antropológico do Direito parte da sua compreensão como instância ordenadora e controladora, passa pela interpretação das instituições jurídicas e judiciais e das teorias que o impregnam, atingindo o sistema jurídico como um todo, no momento e nos espaços sociais particularizados em que aquelas instituições e teorias se desenvolvem. Isto implica, portanto, visualizar a ordem legal criada no ordenamento jurídico e a ordem vigente no cotidiano da sociedade, seus cruzamentos, suas superposições, mas também os afastamentos e as disparidades existentes entre elas [...] a socialização dentro desse campo [do direito], produz um saber que ultrapassa a fundamentação de leis, sentenças, pareceres etc., dos poderes executivo, legislativo e judiciário e as atividades técnicas e extrajurídicas. O estudo interpretativo desse saber conduziu à sua percepção como formalmente distante da realidade social [...].”.
A certeza de que o caminho que eu deveria trilhar na pesquisa era, com efeito, o da interlocução entre o direito e a antropologia 2, proveio especialmente – dentre outros fatores a serem a seguir delineados – da descrição de Kant de Lima, em “Por uma Antropologia do Direito no Brasil” (1983; p.112-113), sobre a importância, para o saber jurídico, da utilização de métodos advindos do saber antropológico e, mais especificamente, por um parágrafo do texto em que ele instiga o leitor a ir a campo romper os “véus” do Judiciário e esclarece os meandros desse campo, que eu pretendo, no suceder deste trabalho, ajudar a desvendar: “É preciso ouvir os silêncios desse saber-poder, o que nele está implícito naqueles procedimentos sempre tão ritualizados, abertos e formais, de quem nada teme porque nada deve, expressão máxima de seu arbítrio definitivamente impune e irresponsável [...] Na área do Direito, como apontei, o percurso é tanto mais árduo porque implica na transformação das próprias bases onde se ancora um saber-poder que se difunde muito além do jurídico na nossa socialização. Não há glória ou fama nessa luta, nem objetivo a ser alcançado [...]”. (grifou-se)
A minha proposta é, portanto, estudar o Direito com um olhar antropológico 3. 2
As características comuns existentes entre o Direito e a Antropologia são retratadas de forma singular por GEERTZ em “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa” (1998). 3 Recorro-me à Shelton Davis (1973) para delimitar a abrangência do campo de atuação da Antropologia do Direito. Em sua visão, existem três proposições sobre as quais os antropólogos estão de acordo e que definem esse campo: “[...] a) em toda a sociedade existe um corpo de categorias culturais, de regras ou códigos que
2. Vivendo entre dois “mundos” Ao iniciar o mestrado tive de me vincular a um grupo de pesquisa que trabalhasse temas do meu interesse e me identifiquei imediatamente com a abordagem do grupo coordenado pelos Professores Roberto Kant de Lima, meu orientador, e Maria Stella de Amorim, intitulado: “Administração de conflitos nos juizados especiais: a institucionalização das práticas judiciais e o acesso à justiça”. No princípio do curso eu não tinha uma temática definida para abordar na dissertação. Entretanto, a minha idéia era clara no sentido de que iria trabalhar um tema conciliando as suas abordagens doutrinárias com as práticas judiciárias, bem como sabia que o meu enfoque seria analisá-lo a partir da perspectiva do jurisdicionado. Logo nas primeiras reuniões do grupo, percebi que estava no lugar certo. Creio que, talvez, no primeiro encontro, o Prof. Roberto Kant de Lima exclamou algo que ratificou isso. Ele disse que sempre lhe chamou a atenção a naturalidade com que era visto o fato de os estudantes de Direito, mesmo após cursarem os cinco anos da faculdade, não saberem “advogar” ou “atuar na profissão”. Para ele, era “estranho” o fato de a pessoa mesmo após se graduar em Direito ter de passar por um aprendizado específico – não disponibilizado nas faculdades, mas em estágios informais - para então saber exercer a profissão para a qual havia se formado (KANT DE LIMA, 1997). Entender o porquê da existência de dois mundos – o teórico e o prático – embora complementares, serem tão distintos, também era algo que me despertava curiosidade. O fato de o Prof. Roberto Kant de Lima “estranhar” o convívio natural de dois tipos de educação no Direito; uma formal – das universidades – e outra informal – dos tribunais – me fez perceber que as inquietudes que envolviam os membros daquele grupo eram também as minhas e que, portanto, ali seria o meu espaço de aprendizado; de discussão e de reflexão. Os assuntos estavam sempre vinculados às práticas e comecei a me familiarizar com as categorias antropológicas. Aos poucos fui entendendo que deveria “socializar-me” com o conhecimento das ciências sociais; que ter um “olhar antropológico” significava a necessidade de “estranhar” o meu objeto de estudo; que “desnaturalizar” as práticas judiciárias representava a essência do meu trabalho; que eu deveria “distanciar-me” do meu objeto, para definem os direitos e deveres legais entre os homens; b) em toda a sociedade disputas e conflitos surgem quando essas regras são rompidas; c) em toda a sociedade existem meios institucionalizados através dos quais esses conflitos são resolvidos e através dos quais as regras jurídicas são reafirmada e/ou redefinidas. [...] A Antropologia do Direito é a investigação comparada da definição de regras jurídicas, da expressão de conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos são institucionalmente resolvidos [...]”.
compreendê-lo segundo as “categorias nativas” e não a partir das minhas “categorias”, apreendidas na faculdade de Direito; que a estrutura do meu trabalho adviria das respostas dos meus “interlocutores” e não de um marco teórico previamente definido; que eu deveria “relativizar” os conceitos que eu havia aprendido; que tudo ficaria mais claro quando eu iniciasse a minha “pesquisa de campo”, através da “etnografia” e da “observação participante” 4. Pensei que enlouqueceria, tudo era – e, sem dúvidas, ainda é – muito novo e diferente para mim; entretanto, eu senti que aquilo com o que eu estava tendo contacto pela primeira vez era o que me ajudaria a trabalhar academicamente os temas que, na prática judiciária, tinham uma representação não absorvida pela teoria jurídica. Percebi que este novo campo seria o instrumento para eu estudar, na academia, aquilo que, antes, era fruto, apenas, das minhas sensibilidades. Dar conta disso não foi complicado porque as reuniões do grupo de pesquisa e os textos indicados para leitura, me faziam, gradativamente, entender como o Direito estava estruturado. O mais difícil foi desconstruir as minhas verdades, que já estavam internalizadas, pelo tempo em que estive exclusivamente envolvida com o Direito; afinal, na faculdade somos educados a pensar de uma determinada forma e desprender-me desses conceitos tão arraigados está sendo - inclusive neste momento, de escrever a dissertação o meu maior desafio 5-6. A leitura de Berman (1996) ajuda-nos a compreender que é na universidade que se firmam os cânones metodológicos do saber científico. Os advogados não aprendem e, por conseguinte, não estão acostumados a “estranhar” ou a “relativizar” categorias, pois o
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Nas palavras de Kant de Lima, “o ponto central do método etnográfico é a descrição e a interpretação dos fenômenos observados com a indispensável explicitação tanto das categorias “nativas” como aquelas do saber antropológico utilizado pelo pesquisador [...] A convivência e participação na vida dos grupos costuma-se denominar observação participante [...]”. (Kant de Lima, 1983). Para aprender como fazer etnografia, utilizando-se da observação participante ver: FOOTE-WHYTE, 1975, p. 77-86. 5 Bourdieu (1987) trata desse assunto quando menciona no capítulo que trabalha os sistemas de ensino e sistemas de pensamento, que “[...] quanto mais tais esquemas [de pensamento] encontram-se interiorizados e dominados, tanto mais escapam quase que totalmente às tomadas de consciência [...]”. 6 Sobre a influência da formação escolar – no caso, a formação jurídica – na construção do pensamento e da cultura de um determinado grupo, ver BOURDIEU (1987) e BERMAN (1996). E, a respeito da distinção entre a formação do conhecimento através da “disciplina acadêmica” ou da “repressão institucional”, ver: KANT DE LIMA (1997; p. 16).
mundo do Direito é um mundo de certezas incontestáveis 7-8; embora GEERTZ tenha chamado a atenção para o fato de que o Direito – assim como todas as instituições que se julgam permanentes –, na modernidade, esteja “envolvido em um processo de aprender a sobreviver sem as certezas que o geraram”. (GEERTZ, 1998). Os coordenadores do grupo de pesquisa no qual me inseri, os Professores Roberto Kant de Lima e Maria Stella de Amorim, foram fundamentais. Os seus olhares atentos pontuavam os meus desvios, de forma que, assim, com as observações feitas por ambos, eu fui conseguindo perceber como focalizar o meu tema e hoje posso assegurar que ver o Direito a partir da perspectiva das pessoas a quem ele se aplica foi uma experiência muito produtiva, prazerosa e enriquecedora para mim. Até porque eu sempre estranhei a postura dos operadores do Direito que vêem este campo do conhecimento como um conjunto normativo ideal, que, nessa condição, não necessita ser questionado. Vincular o Direito ao campo do “dever-ser” é um equívoco que o estudo das práticas judiciárias ajuda a explicitar 9. O mundo do “dever-ser” deve estar atrelado a uma preocupação filosófica, não jurídica. O Direito é um campo prático, empírico, que existe para administrar os conflitos entre as pessoas, seres de carne e osso, que precisam resolver os seus problemas cotidianos. Pensar em como as coisas deveriam ser não pode ser uma problemática jurídica. O direito tem de se preocupar em como as coisas, de fato, são. O 7
Lucía Eilbaum, em sua dissertação de mestrado, apresenta a outra “mão” dessa via, uma vez que, como antropóloga, imiscuiu-se no campo jurídico. Um dos desafios que ela aponta na pesquisa é, justamente, o fato de que os advogados “sempre tinham uma opinião formada” sobre tudo; e ela, como antropóloga, se deparava com as certezas jurídicas que confrontavam com as suas relativizações e com a sua necessidade de questionar, a todo o momento, “o porquê das coisas serem de tal modo.”. (EILBAUM, 2006). 8 O Prof. Marco Antonio da Silva Mello utilizou, certa vez, em uma reunião de alunos e professores, uma expressão que define com objetividade a postura desse campo, dizendo: “No Direito as pessoas não têm opiniões, têm estoque de respostas”. É assim mesmo que o Direito se expressa e se reconhece. Trata-se de um campo formado e constituído por verdades absolutas. Exatamente por isso, fui buscar na Antropologia os subsídios necessários à desnaturalização e ao questionamento dessas certezas irrefutáveis. 9 Os próprios códigos (civil, comercial, tributário, penal etc.) – fonte básica do estudo do Direito – são nada mais nada menos, do que uma teoria de procedimentos, uma teoria que ensina como se deve agir em determinados momentos. Uma doutrina do “dever-ser”. Curioso destacar, aliás, a apropriação do significado da palavra código pelo campo do Direito. O Prof. Roberto Kant de Lima destacou, certa vez, em sala de aula, que a utilização deste termo se relaciona com a representação do conhecimento nesse campo. Pensei no assunto e, de fato, compreendi o que o meu orientador destacara: a palavra “código” remete a um sistema de símbolos ou sinais secretos que se destina a desvendar algo que necessita ser descoberto. Os códigos representam o “dever-ser” do Direito e, concomitantemente, a “chave” destes códigos, a serem decifrados, só os operadores internos do campo detêm. Isto nos leva a pensar que, além de o Direito ser um campo fechado, constituído de um saber particularizado, ao qual só os seus operadores internos têm acesso; trata-se de um campo que reproduz uma lógica que remete a um mistério, que somente poucos, privilegiados, desvendarão. O conhecimento no Direito é algo que distingue; que destaca; não é para todos. Tanto que a legitimidade da interpretação das leis e dos códigos é exclusiva dos juristas e dos advogados; e, por outro lado, a legitimidade da interpretação dos fatos do processo é exclusiva dos juízes. Vê-se que às partes só resta a aceitação.
“mundo do Direito” 10 é o mundo real. Por isso escolhi fazer trabalho de campo. Porque eu vivencio na minha atividade profissional problemas que afligem as pessoas e, mesmo assim, tenho a impressão de que o Direito está mais preocupado em padronizar os comportamentos dessas pessoas do que em administrar os seus conflitos 11. Nesse contexto, considero interessante observar, outrossim, o fato de que o “Direito” - como campo do conhecimento - acabou incorporando “uma” dentre as inúmeras acepções da palavra “direito”, aliando-se à significação de “reto; probo; correto”. A mim, parece que esta escolha incorporada reflete a forma como esse campo se auto define e me parece que esta auto definição faz com que esse campo busque a padronização valorativa do comportamento, enquadrando todos em um único molde visto como “correto” e punindo os que a este molde não se encaixam. O saber jurídico, como sistema de representações sobre a sociedade, produz conteúdos e orientações formais para as ações sociais, de modo que tenham sempre que adequar-se às formulações legais, aos artigos, regulamentos e leis para que se tornem eficazes e legítimos (KANT DE LIMA, 1995). Com este escopo, o Direito pensa construir a realidade 12. Aliás, nas palavras de Faoro (1958, p. 168), para o Direito, “desde o primeiro século da história brasileira, a realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias.”. Nesse sentido, esta forma de o Direito se articular me remeteu a uma outra questão que visualizei com a ajuda da empiria: a de como o Direito enquadra os eventos sociais no ordenamento jurídico, transformando os fatos não jurídicos em fatos jurídicos. O Direito se apropria dos fatos de forma a moldá-los em uma estrutura previamente delimitada e vista como “adequada”, “correta”, “justa” (GEERTZ, 1998). As provas produzidas no curso do processo são “trabalhadas” de forma a se adequarem ao perfil previsto na lei e de maneira a gerar uma versão verossímil para o mundo jurídico,
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Utilizo as expressões “mundo do direito” e/ou “campo do direito”, no decorrer do trabalho, com o mesmo sentido de cultura (“cultura jurídica”), que, nos dizeres de Bourdieu, seria “o que permite a todos os detentores do mesmo código associar o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e, de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante por intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras [...]”. (BOURDIEU, 1987). 11 A respeito da desarmonia entre a teoria e as práticas judiciárias, ver: GARAPON, 1997 e 2003. Garapon destaca que a sacralização da lei desqualifica a prática jurídica e questiona o fato de o Direito exigir a aplicação de regras que visam a um ideal. Ele ressalta que “um direito demasiado ideal é muitas vezes inaplicável”, de modo tal que “o distanciamento entre o direito dos livros e o direito vivido tornou-se perigoso”, tendo em vista que, para ele, a distorção entre o que a lei determina e o que a prática realiza causa uma “anomia”, decorrente não da ausência do Direito, mas do seu “caráter demasiado abstrato”. (GARAPON, 1997, p. 180). 12 “O direito visa a fazer com que o mundo dos fatos esteja em conformidade com um mundo ideal; a transformar o mundo tal como ele é em um mundo tal como deveria ser.” (SUPIOT, 1994 apud GARAPON, 2003, p. 60-61).
sob pena de não terem validade. Isso faz com que a realidade que se vai construindo no processo derive de uma gradual e mútua relação entre fato e lei. O mundo jurídico é estabelecido como uma esfera à parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com critérios formulados internamente, são considerados como relevantes para o Direito. Ocorre que, em realidade, o Direito não pode ser estudado de forma dissociada do seu campo social de atuação porque ele é parte do controle social. Em sendo assim, o Direito não pode ser visto como um saber “monolítico” (KANT DE LIMA, 1983). O mundo jurídico, portanto, não deveria se constituir de um saber especializado, uma vez que a sua lógica e o seu ordenamento se difundem e atingem todas as esferas e camadas sociais. Ocorre que, é assim que o campo funciona e isto faz com que a produção desse saber específico implique em um tremendo distanciamento formal da realidade, que não se constitui de configurações normativas ideais, como o Direito prevê. Assim, a realidade acaba, nesse sistema, tendo que se adaptar ao Direito, cuja função é - em vez de administrar conflitos - regular o comportamento social (KANT DE LIMA, 1983). Percebi, destarte, que é típico do Direito racionalizar, transformando o que é diverso em único; sendo, por outro lado, próprio das ciências sociais, respeitar as especificidades e as individualidades do objeto pesquisado. Para o Direito é necessário generalizar porque assim uma Lei resolve todos os problemas 13; um juiz soluciona todos os processos; enfim, um único instituto abarca diversos temas. Estudar as práticas judiciárias me permitiu ver as diversas representações sociais de um mesmo instituto. Por exemplo, o princípio da oralidade – meu objeto de investigação - no Direito, tem uma definição única, abstrata e geral. Entretanto, fazendo a pesquisa de campo eu pude observar que ele recebe significados distintos, conforme se materializa, o que quer dizer que o seu conceito não pode ser genérico, necessitando de especificações. No decorrer da pesquisa notei que só a empiria nos dá um consenso sobre como as coisas, de fato, se dão no mundo prático. E esse consenso advém dos interlocutores, ou 13
Creio que este assunto incita a reflexão sobre tema paralelo: a generalidade e a imensa quantidade de leis que constituem o sistema jurídico brasileiro, tornando-o ininteligível. A Revista Consultor Jurídico, em 15/07/2006, noticiou existirem, à época, em pleno vigor, mais de 25 mil leis federais, cinco mil decretos-leis e um número incalculável de resoluções, instruções normativas, portarias e comunicados. Óbvio que isto torna o sistema legal contraditório e de difícil compreensão mesmo para quem o opera rotineiramente, como juízes e advogados. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/46365,1.
seja, das pessoas que vivenciam as práticas sobre a qual se está estudando. No Direito, a dogmática faz parecer que o objeto de estudo não é real; parece que o saber que você busca está em outro lugar; superior; ideal e inacessível; o que nos faz pensar que o próprio Direito se coloca nesse patamar de certa forma impalpável; exclusivo; não pragmático. Estar entre os dois campos – a antropologia e o direito – e ter uma nova proposta de trabalho não é problemático para a antropologia, porém para o Direito – este universo hermético que mencionei – sim. 3. O “saber jurídico” e a sua atualização na sociedade brasileira Kant de Lima (1983, p. 98), ao escrever sobre a contribuição da Antropologia na pesquisa do Direito, destaca de forma clara - mesmo para quem não tem formação em ciências sociais – a importância do diálogo entre esses campos. E, como não poderia deixar de ser, aponta, oportunamente, a dificuldade de o campo do Direito perceber a relevância dessa interlocução, valendo transcrever o seguinte trecho: “A contribuição que se pode esperar da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil será evidentemente vinculada à sua tradição de pesquisa. Desde logo há a advertir que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que certamente não estão habituadas as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos valores absolutos . A própria tradição do saber jurídico no Brasil, dogmático, normativo, formal, codificado e apoiado numa concepção profundamente hierarquizada e elitista da sociedade, refletida numa hierarquia rígida de valores autodemonstráveis, aponta para
o caráter
extremamente etnocêntrico de sua produção, distribuição, repartição e consumo.”. (grifou-se)
Vê-se, com isso, que o campo do Direito é muito fechado em si mesmo e não costuma reconhecer saberes que não se moldam ao seu formato, sendo, a padronização, o seu estilo (KANT DE LIMA, 1997). Exemplificando a dificuldade que o campo tem de aceitar a “intervenção” de outros saberes em seu próprio universo, destaco um trecho da entrevista concedida pelo ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Edson Vidigal, que criticou o resultado de uma pesquisa empírica, encomendada pelo Supremo Tribunal Federal, à época, presidido pelo Ministro Nelson Jobim, cuja conclusão foi no sentido de que no
Brasil há juízes demais e o Judiciário gasta de modo exagerado 14. Disse o Ministro: “[...] o que acontece é que no Brasil há muita tese de mestrado. E o pessoal gosta muito de elucubrar. Parece que essa pesquisa foi produto de acadêmico [...] Eu não sei de onde tiraram essa conclusão [...]”. Na Argentina, quando estive em missão de estudos 15, entrevistei uma desembargadora federal, que é também professora de filosofia do direito, que me disse algo muito marcante a respeito do saber jurídico: “A dogmática jurídica vê o mundo em preto e branco, como os autos de um processo.”. O Direito se reproduz através de “doutrinas”, que constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente determinados assuntos. O saber jurídico não é científico, é interpretativo; é dogmático 16. Berman (1996; p. 18), ao estudar a formação da tradição jurídica no Ocidente, aclara diversos pontos sobre a questão do Direito como sendo um saber “dogmático”, definindo-o como um campo no qual não se incluem somente as instituições legais, as ordens legais, as decisões legais; mas também tudo aquilo que os especialistas em leis dizem acerca dessas instituições, ordens e decisões legais, tratando-se, pois, de um “meta direito”. No Direito, o conhecimento advém da interpretação das leis e as pessoas autorizadas a interpretar as leis são os próprios juristas que as elaboram e, depois, as submetem ao Legislativo para mera aprovação 17. A produção do Direito é, nesse sentido, monopólio do Estado, que tem a autoridade de interpretar e aplicar as normas à sociedade (EILBAUM, 2005).
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Notícia do Superior Tribunal de Justiça, divulgada em 11/05/2005, intitulada: “Ministro Vidigal diz em Fortaleza que desconhece pesquisa do STF”. Disponível no site oficial do STJ: www.stj.gov.br. 15 Como asseverado anteriormente, realizei missão de estudos em Buenos Aires, no período de julho a outubro de 2006, por força do projeto CAPG-BA 021/05. 16 A expressão dogmática equivale à doutrina jurídica, que, no Direito, significa “o estudo de caráter científico que os juristas realizam a respeito do direito, seja com o objetivo meramente especulativo de conhecimento e sistematização, seja com o escopo prático de interpretar as normas jurídicas para sua exata aplicação” (Diniz, 1994:284). Na verdade, a dogmática é um normativismo, inspirado no positivista Hans Kelsen. 17 Nesse particular, não posso deixar de remeter o leitor ao tema do Estado Democrático de Direito em que, hipoteticamente, vivemos. Se não são os representantes do povo que elaboram as Leis, nem tampouco quem as interpreta, vale dizer que aos Tribunais cabe este papel e, sendo assim, uma vez que não elegemos os Ministros dos Tribunais Superiores, a quem cabe dizer o significado da Lei, a validade da Lei e a sua forma de aplicação; podemos concluir que o nosso sistema legal não representa, propriamente, um Estado Democrático de Direito. Vale dizer que este tema é complexo e que não tenho a pretensão de analisá-lo diretamente; mas, mesmo uma análise primária, instiga a reflexão.
A doutrina é uma criação advinda ou dos tribunais – através da jurisprudência 18 – ou dos juristas, que são os renomados estudiosos do Direito que estabelecem como as normas devem ser interpretadas. E isto não representa a minha opinião sobre o assunto; é o próprio campo que vê a doutrina como sendo fruto de sua criação. O Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico, em 01/12/2006 19, sobre a aprovação de um novo instrumento processual – repercussão geral do recurso extraordinário 20 - que impedirá de chegarem ao STF casos que não sejam considerados relevantes, manifestou-se nos seguintes termos: “O Tribunal terá de criar uma doutrina para delimitar a relevância dos temas. Será de grande utilidade e aprendizado.”.
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O reconhecimento das pessoas autorizadas a escrever sobre temas específicos advém especialmente dos cargos importantes que ocupam no Judiciário. As versões consagradas são “a matéria-prima sobre a qual se edifica” a formação jurídica, que se limita a avançar a partir delas, sem, no entanto, questioná-las (KANT DE LIMA, 1997). Impõe destacar que, mais especificamente do que “doutrina”, o que existe no Direito são correntes doutrinárias. Ou seja, sobre quase todo tema jurídico existem grupos, compostos de pessoas renomadas no campo, que interpretam as leis de uma forma peculiar e distinta e que se contradizem mutuamente. Estes grupos são formados por juristas reconhecidos que escrevem sobre o mesmo assunto e, necessariamente, o fazem de forma contraditória; e, também, por ministros e magistrados que, ao proferirem as suas decisões nos processos também criam “doutrina”. Essas correntes formam o conhecimento jurídico. Ou seja, todas as pessoas que estudam Direito ou que com ele estejam envolvidas têm de se “filiar” (jargão do campo) a uma corrente doutrinária, pois seguir uma corrente é ter uma identidade. 18
Jurisprudência é o conjunto de decisões judiciais proferidas em casos concretos. Quando se diz “a jurisprudência do STF”, se quer dizer a soma das decisões prolatadas pelo STF a respeito de um determinado tema. 19 Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/50640.1. 20 A repercussão geral foi aprovada através do projeto de lei n o 6636/06 - sancionado em 19/12/2006 sob a forma da Lei no 11.418/2006 - juntamente com a súmula vinculante. Trata-se de instrumento que concederá ao STF a possibilidade de, literalmente, escolher o que vai julgar de acordo com a relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico. O STF decidirá - subjetivamente, uma vez que não há uma definição clara do termo o que tem repercussão geral e o que não tem e, portanto, o que merece ser apreciado pela mais alta corte do país e o que não merece. Vale dizer que este instrumento, assim como a súmula vinculante, surgiu para desafogar os tribunais superiores, permitindo que as importantes cortes do país julguem apenas casos importantes, de destaque nacional. A questão é que eles próprios é que decidirão o que tem e o que não tem destaque nacional. 21 No decorrer do trabalho tratarei mais especificamente a respeito da produção da verdade jurídica através do processo. Mas, de plano, já se pode perceber o poder que os tribunais e os juristas detêm na construção da verdade, uma vez que a eles cabe interpretar as normas, ou seja, são eles que dizem o que as leis significam, a quem elas atingem e de que forma devem ser aplicadas na prática.
Os juristas – que são aqueles que criam as correntes, ou melhor, que encabeçam determinadas correntes doutrinárias – têm uma postura comprometida com o tema; entretanto, os advogados - por representarem interesses alheios, de seus clientes - podem um dia se aliar a uma corrente doutrinária e noutro dia, a outra, o que não lhes causa nenhum problema ético. Eles não precisam se posicionar a favor ou contra o tema, pois o seu papel não é de jurista; o seu papel é usar a corrente doutrinária de forma aleatória e circunstancial, ou seja, de acordo com o interesse que convier ao seu cliente num determinado momento. Isto é, o mesmo advogado pode sustentar, concomitantemente, interpretações contraditórias para o mesmo dispositivo legal conforme esteja defendendo o autor ou o réu de uma ação, por exemplo 22-23. Em geral, há multifárias correntes, mas, pode-se dizer que sempre existem ao menos duas “correntes doutrinárias” sobre determinado tema jurídico, o que significa dizer, duas formas distintas e contraditórias de se interpretar um dispositivo legal e é justamente isso que faz com que, em muitas ocasiões, o Direito seja uma loteria. Se você conseguir que a sua ação seja distribuída para um juiz que interprete a lei de forma a atender aos seus interesses, a sorte está com você; todavia, se por acaso a sua ação for distribuída para um juiz que interprete a lei de forma a não atender aos seus interesses, o seu caso estará perdido. E tudo isso é legítimo porque é assim mesmo que o Direito funciona. A norma é abstrata e exige interpretação subjetiva e particular. 22
Apenas para exemplificar a idéia, razão pela qual não me aterei à complexa argumentação jurídica que envolve o tema: A lei de locações é de 1991. O instituto da tutela antecipada foi introduzido no Código de Processo Civil somente em 1994, estando previsto em seu art. 273. Em apertada síntese, esclareça-se que a tutela antecipada é um instrumento que, provisoriamente, permite a antecipação dos possíveis efeitos de uma sentença favorável ao autor da ação judicial, ou seja, o juiz, vislumbrando que o pedido autoral é procedente, antecipa os efeitos da sentença, concedendo à parte, de plano, total ou parcialmente, aquilo que ela requer. Pois bem, no momento da introdução desse instituto no sistema legal, em 1994, a “doutrina” passou a discutir a possibilidade ou não de concessão de tutela antecipada em ações de despejo por falta de pagamento. Uma corrente doutrinária se firmou no sentido de entender ser possível a concessão de tutela antecipada em ações de despejo; outra corrente, ao contrário, não admitiu a concessão, tendo em vista que quando a lei de locações foi promulgada o instituto inexistia no sistema processual. Como advogada, quando eu estivesse defendendo os interesses de algum cliente que fosse locatário de um imóvel, eu me filiaria à corrente que entende não ser possível a concessão de tutela antecipada, a fim de protegê-lo de um despejo antecipado; entretanto, quando estivesse advogando em prol do locador, me utilizaria da corrente que sustenta a possibilidade de concessão de tutela antecipada, a fim de reaver o seu imóvel o mais rapidamente possível. Faria isso sem problema ético nenhum porque este é exatamente o papel do advogado: usar a doutrina da forma que melhor convier aos interesses do seu cliente. 23 Durante a pesquisa e mesmo no exercício da advocacia ouvi apenas uma pessoa, uma única vez, destacar a estranheza que lhe causa essa concepção de que os advogados não precisam ter compromisso com aquilo que sustentam profissionalmente. Trata-se de um Juiz, titular de uma Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, que, em uma entrevista formal para este trabalho, acabou manifestando-se nesse sentido: “Eu acho curioso – e ainda vou morrer achando curioso – o fato de um advogado me dizer o seguinte - ainda dizem hoje em dia, e um só não, vários – ‘ah, quando eu sou autor penso de um jeito e quando sou réu penso de outro’. Desculpe, eu acho que isso não é um sistema; isso não é mentalidade. Verdade só tem uma [...] você não pode usar instrumentos jurídicos com propósitos que não sejam morais e éticos. O advogado não tem o direito de dizer que quando é autor tem uma tese e quando é réu tem outra, contrária àquela, só porque mudou o seu patrão. Acho isso meio estranho. Ou você está convicto de uma coisa ou não está.”.
Por organizar-se através de categorias universalizantes, o Direito possibilita uma luta interna do campo para ver qual das possíveis interpretações das normas terá a melhor aceitação. A literalidade da lei não é vista como o instrumento propiciador do acesso universal das pessoas ao Direito – característica das sociedades democráticas - ao revés, é vista como simplória. (MENDES, 2005). Kant de Lima (2000, p. 111) ressalta que “o acesso particularizado à informação é que define a hierarquia das interpretações e as redes de sociabilidade responsáveis pela compensação das desigualdades de toda sorte reconhecidas explicitamente como inevitáveis na sociedade.”. O campo do Direito é, logo, um campo de luta, de disputa de opiniões, onde uns ganham e outros perdem. A consagração no interior do campo do conhecimento exige uma concorrência pela legitimidade que, por sua vez, destaca os que alcançam o reconhecimento intelectual, dos demais. Distingue os “donos do saber”, dos comuns. (BOURDIEU, 1987). Bourdieu (1987) nos convoca à reflexão quando deixa no ar a assertiva: “O projeto intelectual de cada um dos contestantes tem outro conteúdo que não seja a oposição ao projeto do outro?”. Transpondo isso ao Direito, verificamos que, de fato, a preocupação dos “doutrinadores” em legitimar o seu saber é maior do que o compromisso com o conteúdo daquilo que sustentam. Muitas vezes, a competição pela consagração se resume ao contraditório 24 de teses por si só, em vez de representar um efetivo comprometimento com a produção intelectual. Os “juristas” (categoria genérica que inclui tanto os magistrados - que criam a doutrina através de suas decisões - quanto os doutrinadores que, embora consagrados, não exercem necessariamente um cargo público na estrutura hierárquica dos tribunais) disputam a produção do “saber jurídico” de forma tal que - a busca desse mencionado status de criador de um conhecimento exclusivo e único – leva à mútua desqualificação. Ou seja, ganhar a disputa interna do campo pela criação do “saber jurídico” supõe, necessariamente, desqualificar a tese oposta; e esse inesgotável duelo de opiniões resulta em contradições e anulações recíprocas.
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Este sistema de duelo (contraditório) se reproduz no processo e dificulta sobremodo o diálogo das partes. No decorrer da dissertação abordarei o tema com mais precisão.
Para exemplificar, considero oportuno transcrever trecho de um voto vencido, proferido em 2003 por um Ministro do STJ 25, nos autos de um processo, no qual fica clara essa disputa interna do campo, ao qual me referi, bem como essa necessidade de afirmar um “saber” específico; em geral, vinculado a um cargo de poder 26. “Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o belíssimo texto em que o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins expõe as suas razões, mas tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data venia de S. Exa. Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja. Peço vênia ao Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins, porque ainda não me convenci dos argumentos de S. Exa. Muito obrigado.”.
Esta natural possibilidade de entendimentos contraditórios sobre as normas – além de criar incongruências e paradoxos no sistema - permite, ainda, que a sua concretização se dê de forma particularizada - não universal - o que leva também à desigualdade. A deturpação da lei é conseqüência irremediável desse sistema judicial que – em razão de se constituir de leis abstratas - opera através de “malhas” – que seriam relações pessoais 27 – que permitem a aplicação particular dessas leis genéricas. É a abstração do 25
Voto proferido pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, nos autos do agravo regimental nos embargos de divergência em recurso especial (AgReg em ERESP) n o 279.889/AL. Disponível em: https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200101540593&dt_publicacao=07/04/2003. 26 No voto fica clara, também, a postura autoritária do ministro, comum – embora não uníssona - aos membros do Judiciário. 27 Sobre a influência das relações pessoais no funcionamento dos tribunais ver: OLIVEIRA, María José Sarrabayrouse. La justicia penal y los universos coexistentes. Reglas universales y relaciones personales. In: TISCORNIA, Sofía (Org.). Burocracias y violencia: estudios de antropologia jurídica. Buenos Aires: Antropofagia, 2004. p. 203-238. E sobre essa influenciação no universo policial, ver KANT DE LIMA (1995).
regramento que permite a utilização de critérios subjetivos e individuais na sua aplicação, conforme a existência, ou não, de tais “malhas”. A aplicação desigual da lei é, nesse sentido, legitimada pelo próprio sistema. (KANT DE LIMA, 1995; DAMATTA, 1979). Daí surgem, inclusive, as situações previstas por DaMatta, quanto à necessidade de cada cidadão se utilizar de suas relações pessoais para se “safar” do manifesto desequilíbrio entre a previsão legal – de cunho abstrato - e a viabilidade de cumprimento das leis – de cunho prático. O “sabe com quem está falando” (autoridade) e o “jeitinho brasileiro” (malandragem) são formas situadas entre o “pode” e o “não pode” que os indivíduos28 encontraram para conviver com um regramento universalizante e repressor e para enfrentar as contradições e paradoxos dele oriundos. (DAMATTA, 1979; 1984). A existência de regras é uma condição do funcionamento do sistema jurídico no Brasil. Ocorre que tal pretensão é desprovida de razoabilidade, tendo em vista – além das razões adrede expressadas - que o Direito é um ramo do conhecimento que deve ser interpretado à luz do “saber local” (GEERTZ, 1998). Ou seja, a formulação de suas regras só terá sentido em um contexto próprio, individualizado 29; entretanto, o ordenamento não precisa ser universal 30, sendo necessário, apenas, que a sua aplicação o seja. Na vida real, obviamente, as pessoas são diferentes, não havendo como normalizar posturas de forma a desconsiderar essas especificidades. Trata-se, o Direito, de uma forma de conhecimento cuja legitimidade depende dos distintos modos de viver e construir da sociedade em que se aplica; implodindo as totalidades homogeneizadoras e as essências redutoras da diversidade empírica 31 (KANT DE LIMA; VARELLA, 2001). Lamentavelmente, na prática, não é assim que o Direito se reconhece. Este campo acredita em leis perfeitas e universais que, ao regularem as relações sociais, submeterão as pessoas que a elas não se adequarem 32 à repressão, como se, no Brasil, as leis 28
DaMatta diferencia a categoria “indivíduo” (sujeito das leis universais) da categoria “pessoa” (sujeito das relações sociais). O “sabe com quem está falando” é a fórmula que magicamente transforma um indivíduo em uma pessoa. DaMatta inclusive ressalta o teor negativo inseparável da palavra indivíduo, sempre ligado a alguém sem princípios. O indivíduo, no Brasil, em vez de ser “alguém”, é “ninguém”; é um qualquer. 29 O direito recebe distintos sentidos conforme as sensibilidades jurídicas da sociedade em que se aplica (GEERTZ, 1998). 30 Universal, nesse contexto, como sempre ressalta o Professor Roberto Kant de Lima, não quer dizer galáctico, mas, apenas, que se trata de uma regra aplicável a todos aqueles que fazem parte daquele universo determinado de pessoas. 31 A respeito da diversidade do comportamento humano; da tendência de se buscar uma universalidade e das implicações disso no conceito de cultura e de homem, ver GEERTZ (1978). 32 GEERTZ (1978) explicita a cultura como sendo um ingrediente na formação do homem, que é um ser essencialmente inacabado e incompleto. Nesse sentido, o Direito - como parte da cultura – também funciona como um ingrediente na incessante formação humana, não podendo, portanto, ter a pretensão de regular o
representassem um contrato social que assegura uma convivência pacífica e consensual entre todos os contratantes. A concepção corrente do Direito faz dele um modo de vida à parte (KANT DE LIMA; VARELLA, 2001). Aliás, é interessante e oportuno tratar, nesse momento, de um outro tema - a este atrelado - e que tem repercussões relevantes na forma de administração dos conflitos pelo Judiciário brasileiro: a maneira mediante a qual a sociedade internaliza e se socializa com as regras. É cediço que em sociedades igualitárias - onde, de fato, a democracia se estabeleça - as regras são internalizadas pelos sujeitos, tendo em vista que, na verdade, eles são ativos no processo de normalização. Por outro lado, em sociedades desiguais – como é o caso do Brasil – tradicionalmente elitistas e hierarquizadas (KANT DE LIMA, 1995; 2004-a), as regras são fruto de imposição e de arbitrariedade; sendo, portanto, exteriores aos sujeitos às quais se aplicam. Leis são – em sociedades hierarquizadas – motivo de ameaça, pois a sua aplicação pressupõe, necessariamente, uma interpretação particularizada, cujos resultados são imprevisíveis. (KANT DE LIMA, 2004-b). A lei não é vista como instrumento de proteção de todos porque é desigualmente aplicada. Nesses termos, obviamente, que para alguns ela é, simplesmente, instrumento de opressão, já que os deveres e direitos nela prescritos são desigualmente distribuídos (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005). Além disso, a possibilidade de aplicação relativa ou particular das normas torna este campo ilegítimo, tendo em vista que a segurança está sempre ameaçada e comprometida, por nunca ser possível saber de que forma o regramento será interpretado 33. Abordarei essa temática no próximo item com mais detalhes. Entretanto, reputo importante deixar claro, desde então, que essas problemáticas permearão todo o trabalho porque fazem parte da estrutura do campo investigado. A falta de criatividade do Direito é algo que, nessa circunstância, também merece ser considerado. 34
comportamento social, reprimindo-o e submetendo-o a padrões prévia e arbitrariamente definidos. 33 Como já reconhecido, esta aplicação individual das normas se dá em função das “malhas” que constituem as relações pessoais na sociedade brasileira (KANT DE LIMA, 1995). Entretanto, não apenas por conta dessas relações a lei é relativizada. Outros fatores - como, por exemplo, o livre convencimento do juiz (que o permite julgar com base em sua convicção pessoal, mesmo diante de provas contrárias produzidas nos autos do processo) - possibilitam essa particularização. O “descumprimento” das normas pode ocorrer, portanto, mesmo quando aquele que o pratica, o faz acreditando estar “realizando a justiça”. 34 As ciências sociais, ao contrário do Direito, valorizam sobremaneira a criatividade e a ausência de engessamento nos trabalhos acadêmicos (KANT DE LIMA, 1997).
Os trabalhos jurídicos em geral – mesmo os acadêmicos - são recortes que reproduzem tudo o que já fora produzido sobre o mesmo tema e que fora escrito por pessoas consagradas no campo: os doutrinadores. O número de autores consagrados citados no trabalho é proporcional à qualidade do mesmo 35 e a suposta originalidade existe quando se busca assuntos equivalentes no “direito comparado”, o que significa dizer, quando se busca a doutrina estrangeira. Ocorre que, o estudo comparado no Direito é absolutamente distinto do estudo comparado nas Ciências Sociais. Sendo o Direito um campo em busca de ideais, “comparar” para o Direito significa ir atrás de um padrão ideal. Funciona assim: escolhe-se o paradigma; se não existirem no Direito brasileiro as mesmas características do paradigma estudado no Direito estrangeiro, reformula-se o brasileiro, a fim de adequá-lo aos padrões do estrangeiro 36, o que, muitas vezes, não implica em êxito, já que se “importam” os institutos sem previamente analisar a sua adequação à realidade 37. Na Antropologia, comparar significa contrastar, isto é, ver o que é essencialmente diferente e, eventualmente, semelhante. Inexiste, nesse sentido, uma preocupação de cunho valorativo. A Antropologia busca a comparação a fim de compreender e de repensar as suas próprias categorias, não a fim de copiar o que encontra no objeto comparado. O Direito não tem tradição de pesquisa e, por isso, fazer trabalho de campo, em Direito, torna-se complicado. O campo não reconhece como jurídica a pesquisa voltada para a análise empírica dos institutos jurídicos, havendo uma nítida ruptura entre teoria e prática. O Direito, na academia, está envolvido com as teorias e com uma forma distinta de interpretá-las. As práticas judiciárias parecem um mundo a parte. O conhecimento jurídico é atualizado de forma a não produzir transformações, mas cópias. Conhecer, nesse campo, equivale a deixar as coisas tal como estão e não 35
Michel Foucault (2003; p. 76-77), descrevendo como o domínio do saber se firmava na Idade Média, ressalta a disputatio (disputa) como um dos mais célebres rituais de autenticação desse saber. Constituía-se, a disputatio, num ritual de “afrontamento de dois adversários que utilizavam a arma verbal, os processos retóricos e demonstrações baseadas essencialmente no apelo à autoridade”; o que, aliás, nos lembra o atual contraditório. Foucault destaca, abordando o tema, algo que tem íntima relação com o que eu asseverei sobre a falta de criatividade do Direito, dizendo que: “[...] quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade [...] mais possibilidade ele teria de sair vencedor.”. 36 Kant de Lima chama a atenção para o fato de que a reação de não encontrar o “mesmo” costuma ser “valorativa-negativa”; ou seja, a ausência ou a não identificação de valores está atrelada à depreciação (Kant de Lima, 1983). 37 Como exemplo, tem-se o due process of law, que é um instituto aplicado ao sistema de administração da justiça criminal americana que foi importado pelo direito brasileiro, sendo traduzido como devido processo legal. A análise empírica do instituto, no Brasil, permite perceber que ele não guarda qualquer relação com o due process of law americano, a não ser a tradução literal do nome. Sobre o tema, ver: FERREIRA, Marco Aurélio Gonçalves. O devido processo legal: um estudo comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
intervir na sua forma de atuação. Trata-se de uma visão limitada do conhecimento (KANT DE LIMA; VARELLA, 2001). Para mim, ao contrário. Explicitar as representações práticas dos institutos jurídicos é a melhor forma de compreendê-los e a Antropologia possibilita isso: analisar, empiricamente, os institutos jurídicos e, com isso, entender as suas distintas categorizações para, então, se for o caso, conhecendo-os, transformá-los. O que eu sempre li nos manuais de direito eu jamais tive a oportunidade de vivenciar, até mesmo porque não existe um manual sobre as práticas judiciárias ou sobre as rotinas dos tribunais, de forma que conciliar isso era a minha porfia. Eu nunca tive a pretensão de realizar um trabalho puramente antropológico, porque não sou antropóloga e não saberia fazer isso, mas, ao mesmo tempo, não me agrada o fato de não ver uma pesquisa empírica ser reconhecida como jurídica, como normalmente ocorre. O fato de utilizar-me da metodologia da antropologia como ferramenta para realizar o trabalho de campo não torna a minha pesquisa não jurídica. Ao revés, creio – como já dito - que conciliar esses campos – abstrato e empírico – é fundamental. Este trabalho é fruto de uma pesquisa desenvolvida por mim, não resultando do senso-comum ou da minha opinião particular. Assim, deixo claro, desde o princípio, que o meu trabalho – embora focalizado em uma metodologia não usual no Direito 38 - é jurídico, estando voltado para este campo do conhecimento; e a minha proposta é, justamente, explicitar o quão foi importante para mim e para os resultados desta pesquisa ter tido o auxílio crucial da Antropologia. Eu não conseguiria dar conta de um trabalho que não conciliasse as rotinas dos tribunais – que fazem parte do Direito – com o que a dogmática aborda. A mim, parecia esquisito escrever sobre algo que eu sei que não acontece; que eu vejo, no dia-a-dia dos tribunais, que se materializa diferentemente do que consta na Lei; enfim, escrever uma dissertação que não tivesse em conta o contexto prático era, para mim, como escrever uma ficção. O que consta neste trabalho é o que acontece no fórum todos os dias; é o que os cidadãos vivenciam, de fato, quando vão “buscar a justiça”. Escrever sobre o mundo ideal é romântico; dá esperanças; mostra que tudo seria incrível se ocorresse como todos gostariam, mas não resolve as inquietudes e as crises pelas quais o Judiciário passa há muito tempo. Penso que a minha contribuição acadêmica só seria possível se eu escrevesse sobre o mundo real. Foi isso o que eu pretendi fazer. 38
O método de pesquisa no Direito nos ensina a forma de escrever, não de pesquisar cientificamente um tema.
O meu desafio foi, portanto, trabalhar o Direito a partir de uma nova perspectiva. Os
Antropólogos
que
estudam
a
Antropologia
Jurídica
realizam
trabalhos
importantíssimos nesse sentido, sendo válido que o Direito também estenda o seu campo, visando a dialogar com outras áreas. Para
quebrar
tradições
é
necessário
explicitá-las;
só
assim
antigos
comportamentos são transformados em novos comportamentos. Acredito que a Antropologia ajuda muito nisso. Explicitando as práticas judiciárias podemos transformá-las sempre que elas não estejam mais respondendo aos anseios daqueles que delas se utilizam. Creio, diante do que vivenciei no decorrer do mestrado, que o Direito não pode mais continuar fechando-se em si porque enquanto não estender suas perspectivas, não encontrará a possibilidade, sequer, de compreender o porquê das dificuldades e das crises que vêm enfrentando. 4. De um lado procurando soluções e de outro, explicitações Considero relevante destacar, outrossim, uma outra face da minha proposta. Esclareci em linhas anteriores que eu busquei no mestrado “soluções” para inquietudes que o Direito até então não aclarava. Com o tempo, percebi que esta minha idéia estava atrelada à forma como o próprio Direito se define. Trata-se de um campo muito “ansioso” por achar saídas; muito voltado para essa concepção de “encontrar soluções”; de “resolver”; de “extirpar problemas”; de “extinguir”. As reformas processuais, a promulgação de leis, os livros, as teses acadêmicas; tudo está vinculado, sempre, à necessidade de “fazer” para “solucionar”. Nesse sentido, o papel do Judiciário não se limita a “administrar e solucionar conflitos, pois estes não são vistos como um acontecimento comum e próprio da divergência de interesses que ocorre em qualquer sociedade. Pelo contrário, aqui os conflitos são visualizados como ameaçadores da paz social, e a jurisdição, longe de administrá-los, tem a função de pacificar a sociedade, o que pode ter efeito de escamoteá-los e de devolvê-los, sem solução, para a mesma sociedade onde se originaram” (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005, p. xxvi).
Trata-se de uma pretensão tal que faz com que os operadores deste campo se vejam como missionários da pacificação dos conflitos sociais 39. E isto nos leva a pensar que o Direito não “se vê” como um conjunto normativo cuja finalidade é administrar os conflitos que são levados ao Judiciário, mas, antes disso, ele “se vê” como o responsável por extirpar esses conflitos da sociedade e pacificá-la 40, ignorando que outras disciplinas – como a Sociologia, por exemplo – é que devem estar, verdadeiramente, comprometidas com essas propostas. O Direito desconsidera que o conflito é algo inerente à sociedade e intui que deve extingui-lo, ainda que ele seja indissociável dessa estrutura 41 (DAVIS, 1973, p. 10). Em realidade, não apenas o Direito, mas a sociedade brasileira em geral, é avessa ao conflito, malgrado seja ele uma característica – não só do capitalismo – mas de toda a estrutura dependente, colonial e periférica, como realçara DaMatta (1979). A existência de uma forma tradicional de lidar com a supressão dos conflitos faz com que o Direito não os reconheça e, sendo assim, conviva com uma falsa aparência de harmonização que, por sua vez, esconde o litígio, resultando em práticas judiciárias que servem muito mais para manter inalteradas as situações potencialmente de “choque” do que para alterá-las (MOREIRA-LEITE, 2003). Esta forma de se reconhecer do campo deriva, a meu ver, de duas questões: tanto porque para o Direito a sociedade tem de ser pacífica e harmônica, já que as leis que a 39
No prédio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - onde realizei a pesquisa de campo - há diversos cartazes pendurados nas paredes dos cartórios. Alguns, prestando informações; outros indicando legislações específicas; e outros, mais genéricos, enunciando a razão de existir do poder judiciário; os valores do poder judiciário; os princípios do sistema integrado de gestão do poder judiciário etc. Há dois específicos que fazem referência à pacificação social: são os que reproduzem a missão e a visão do Poder Judiciário do Rio de Janeiro. MISSÃO DO PODER JUDICIÁRIO DO RIO DE JANEIRO: “Resolver os conflitos de interesses que lhe sejam levados pela população, garantindo as liberdades, assegurando os direitos e promovendo a paz social.”. VISÃO DO PODER JUDICIÁRIO DO RIO DE JANEIRO: “Entregar a prestação jurisdicional em tempo adequado à natureza dos conflitos propostos, obtendo o reconhecimento da sociedade sobre a contribuição do Judiciário para o exercício democrático da cidadania e o desenvolvimento harmonioso de todos os segmentos sociais.”. Disponíveis em: http://www.tj.rj.gov.br/institucional. 40 O fato de o Direito tomar para si a tremenda responsabilidade de “pacificar a sociedade” o faz perder o seu verdadeiro foco de atuação, que é, simplesmente, administrar os conflitos levados ao Judiciário. Este “egocentrismo” próprio do campo tem sido identificado como um grave problema para a sua legitimidade. O promotor de justiça André Luís Alves de Melo, em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico, em 23/07/2006, destaca o distanciamento entre a sociedade e o judiciário e, especificamente, sobre o tema aqui ressaltado assim se pronuncia: “[...] o sistema judicial concebido no Brasil não se destina a resolver os problemas do jurisdicionado. O interesse da população vem depois dos interesses dos operadores do sistema. Toda a arquitetura é voltada para eles próprios. A reengenharia do sistema jurídico passa por um processo cultural de democratização do sistema jurídico. Temos que considerar que o sistema judicial não é o centro do universo [...]”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/46568,1. 41 Nas sociedades herdeiras dos valores iluministas e defensoras da democracia liberal, o dissenso é uma qualidade a ser cultivada e o conflito é resultado de sua organização, baseada em diferenças que sempre existirão em qualquer estrutura social (DINIZ, 2003).
regulam são ideais; quanto porque “acabar com o conflito” significa acabar com processos e as prateleiras dos tribunais estão cada vez mais abarrotadas. Ocorre que o conflito não necessariamente acaba com o fim do processo. Quando o processo não se resolve de forma consensual, o conflito não é administrado, mas sim extinguido. Nesse caso, as pessoas envolvidas no litígio cumprirão uma determinação judicial que não foi consensualmente alcançada, de maneira que, assim, o conflito é devolvido para a sociedade, que vai administrá-lo sozinha (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005, xxvi). A fábrica de processos que existe e atola os tribunais é oriunda dessa forma arbitrária de se “administrar” os conflitos levados ao Judiciário. É a eterna devolução do conflito para a sociedade. O processo acaba com uma sentença que, às vezes, atende aos interesses das partes envolvidas, mas nem sempre o faz. O diálogo, possivelmente concretizado no processo através do princípio da oralidade, seria o caminho para a administração consensual dos conflitos pelo Poder Judiciário. Entretanto, como se demonstrará na pesquisa, a sua aplicação é praticamente inexistente, fazendo com que, arbitrariamente, um juiz - terceiro na relação conflituosa – nela intervenha para dizer às partes o que elas devem ou não fazer. A necessidade de um terceiro – alheio ao processo – ter o poder de decidi-lo no lugar das partes diretamente nele envolvidas também provém da tradição paternalista e tutelar da sociedade brasileira e está arraigado na cultura jurídica de forma irremediável 42. A idéia de que as pessoas não conseguem, não devem e, portanto, não podem resolver os seus problemas e os seus conflitos, sozinhas - sem a intervenção estatal - é algo que marca a cultura jurídica de uma forma impressionante, de maneira que impedir ou até minimizar a intromissão da tutela jurisdicional na vida particular dos cidadãos é quase um ato de “anarquia”. O controle estatal sobre a vida dos cidadãos é uma característica que aparecerá – como pano de fundo – durante toda esta pesquisa. Faoro delineia, minuciosamente, em “Os donos do poder” (1958), a relação de submissão existente entre os indivíduos e o Estado, destacando características que marcavam a estrutura tutelar da sociedade brasileira, valendo transcrever o seguinte trecho que exemplifica a idéia: “Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente 42
Em momento futuro, quando eu tratar, diretamente, da materialização da oralidade no processo civil, me reportarei a este tema. A imprescindibilidade de representação das partes no processo por um advogado regularmente constituído é um resquício da tradição tutelar da sociedade brasileira. O fato de as pessoas não poderem se manifestar pessoalmente no processo, necessitando ser representadas por um patrono que, em seu nome, fale; aja; requeira procedimentos; transacione; recorra; opte e adote estratégias processuais etc., demonstra a anulação da identidade do indivíduo diante do Estado.
menores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos [...].” (p. 96). Os cidadãos são tidos pelo sistema jurídico brasileiro, mesmo hodiernamente, como hipossuficientes, incapazes de fazer valer os seus interesses legítimos no processo, o que leva a uma intervenção incontrolável do Estado nos direitos de cidadania (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005). O sistema jurídico não reivindica uma origem popular e democrática, ao contrário, alega ser produto de uma reflexão “iluminada”, uma “ciência normativa” (como mencionado anteriormente), que tem como escopo o controle de uma população sem educação, desorganizada e primitiva (KANT DE LIMA, 2005). Desconfia-se do indivíduo, visto como “potencialmente pecador e culpado” (GARAPON, 1997, p. 182). Exemplo atual disso é a declaração de Luiz Flávio D’Urso, Presidente da OAB de São Paulo, desaprovando, em nome de toda a categoria, o Projeto de Lei 155/2004 – hoje já transformado na Lei n. 11.141/2007 - que admite a via extrajudicial para a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais. “[...] Tirar tais processos da jurisdição banaliza os atos e desampara o cidadão, tirando-lhe o apoio do Poder Judiciário. Não tem nada a ver com o mercado de trabalho porque a lei assegura a presença do advogado. Achamos que isso traz vulnerabilidade às partes. Não temos nada contra a simplificação do procedimento, desde que seja com o crivo jurisdicional. Quando há predominância dos direitos de uma das partes em detrimento da outra, por exemplo, o juiz age no sentido de orientar a parte prejudicada. É uma figura fundamental.”. 43
Sob pena de se “banalizar os atos”, o Tribunal deve continuar intervindo nos inventários, partilhas, separações e divórcios, mesmo quando consensuais e firmados por pessoas maiores, capazes e decididas sobre a atitude que estão tomando. Esta expressão – extraída da transcrição acima e carregada de cunho pejorativo sugere uma forma específica de o campo jurídico representar a prestação jurisdicional que - ao invés de ser vista como um serviço público ao qual todo o cidadão deve ter acesso, por ser um direito que a todos é assegurado – padece de um caráter simbólico, mágico, próprio de algo que tem um valor especial.
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Entrevista concedida ao Jornal do Comércio, no dia 03/01/2007. Disponível na coluna “Direito & Justiça”, sob o título “Ano de reforma no judiciário” e subtítulo “Divórcio e inventário no cartório” (p. B-6).
E mais, o juiz é visto como o responsável pela compensação das desigualdades, o que constitui, no mínimo, um paradoxo, tendo em vista que esse mesmo sistema jurídico dele exige imparcialidade absoluta no exercício da função. Em uma sociedade altamente hierárquica, como a brasileira, a existência de uma autoridade decisória – que haja de forma “paternalista” 44 – é crucial (SIMIÃO, 2005). O fato de os próprios indivíduos se reconhecerem como desiguais – como inferiores a quem por eles decide – faz com que a necessidade de um terceiro seja decisiva. 45 Narrando as características do Brasil do século XVI, Faoro (1958; p. 98) 46 já destacara o papel do Estado como “fonte de todos os milagres e pai de todas as desgraças”, visão esta que perdura até hoje e, como não poderia deixar de ser, reflete-se no Judiciário. A suposta função estatal de compensar as desigualdades “inevitáveis e naturais” da sociedade brasileira faz com que o discurso jurídico absorva essa lógica paradoxal e, com base nisso, tenha a pretensão de tutelar legalmente os segmentos inferiorizados da estrutura social (KANT DE LIMA, 2004-a; AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES, 2005). Todavia, o papel do Direito não é resolver o problema milenar da desigualdade social que assola o Brasil 47, pois para extirpá-la do convívio social tem de promover desigualdades jurídicas e isto, em um sistema democrático e liberal, é inadmissível. Ao
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O discurso jurídico incorpora, sem dúvida, a lógica tutelar e paternalista que rege as sociedades desiguais. Entretanto, tive a oportunidade de entrevistar uma Juíza Federal - a respeito da implementação de um projeto piloto que inseriu o sistema de processos eletrônicos nos Juizados Especiais de São Gonçalo – que comentou comigo, justamente, sobre a necessidade de o Direito se desprender dessa concepção, manifestando-se nos seguintes termos: “Nós tínhamos uma impressão inicial – sem muita base experimental - de que não seria possível implementar um juizado eletrônico em São Gonçalo porque a comunidade é muito carente. A gente se surpreendeu. A gente se surpreendeu muito com o fato de que a gente tem que parar de tratar as pessoas de maneira mais paternalista. O povo não é tão carente, não é tão excluído assim [...]”. 45 Nesse sentido, surge um outro obstáculo à administração consensual dos conflitos levados ao Judiciário e, por conseguinte, à efetivação da oralidade no processo. A arbitrariedade da decisão supera o diálogo, que, na verdade, presume uma igualdade na relação; igualdade esta que, obviamente, inexiste. 46 Faoro, em “Os donos do poder” (1958) descreve, detalhadamente, a origem da estrutura hierárquica, verticalizada e desigual que caracteriza a sociedade brasileira até os dias atuais. Sobre o mesmo tema, malgrado com outros enfoques, ver também: PRADO, Maria Emília. Memorial das Desigualdades: os impasses da cidadania no Brasil (1870/1902). Rio de Janeiro: Revan, 2005 e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974. 47 O objetivo do estado democrático de direito não pode ser o de instaurar uma igualdade absoluta nos setores sociais, tendo em vista que a existência de um mecanismo que iguale todos os indivíduos é impossível no sistema capitalista (MARSHALL, 1967; KANT DE LIMA; 2004-a), todavia, o papel de um estado democrático é, sem dúvida, o de remover as desigualdades que não podem ser tidas como legítimas, por exemplo, a desigualdade prevista na lei; a desigualdade jurídica.
atribuir a si mesmo esta obrigatoriedade - de solucionar a desigualdade social - o Direito acaba legitimando a desigualdade quando aplica a Lei. (KANT DE LIMA, 2004-b). 48-49 Por todas as razões aqui expostas, compreendi que o foco da minha pesquisa não poderia ser a busca por soluções e, portanto, ao final deste trabalho, observar-se-á que não fiz isso. Percebi – com o auxílio das discussões realizadas no grupo de pesquisa coordenado pelos Professores Roberto Kant de Lima e Maria Stella de Amorim - e também lendo estudos realizados por antropólogos estudiosos do Direito – que, descrevendo as práticas judiciárias (dificilmente explicitadas nos livros escritos por juristas), eu estaria possibilitando a reflexão sobre os temas e, conseqüentemente, permitindo que as pessoas envolvidas no campo observem como a sociedade o reconhece e, a partir daí, repensem a sua atividade. Entendi que descrevendo as práticas, mostrando como as coisas são, explicitando os obscuros e, às vezes, até mesmo, apontando o óbvio, é que se poderia permitir a reflexão sobre as crises, os problemas e pensar em possíveis formas de minimizá-los. Kant de Lima (1983) aborda a necessidade de se “rasgar os véus” do Judiciário e tornar explícitas as suas práticas para que governem essas atividades regras que sejam definidas e acessíveis a todos; o que hoje ainda não ocorre. Abdicar da idéia de que o Judiciário é um local de “resolução de conflitos” e de que os seus operadores são missionários da harmonia social – sempre ameaçada pelo litígio – é fundamental para que o campo se reconheça como heterogêneo e compreenda, por fim, que a diferença é inerente ao convívio social. Foi nesse contexto e com estas questões na memória, que entrei “em campo”. 5. Entrando e saindo de campo
48
O sistema jurídico obedece a duas éticas: uma, igualitária e democrática, assegurada no sistema legal; e outra, hierárquica e desigual, explicitada nas práticas judiciárias e verificada no momento da aplicação da lei. Ruy Barbosa foi o responsável por introduzir a convivência dessas duas lógicas incompatíveis no sistema jurídico brasileiro, de forma que a aplicação desigual da lei é legitimada pela máxima que ele criou, a ‘regra da igualdade’: “igualdade é tratar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. Ver: MENDES (2003). 49 Kant de Lima (2000; 2004-b), ao tratar do tema da igualdade e da desigualdade jurídicas, relacionando-o à questão da administração de conflitos na sociedade, explicita algumas diferenças entre modelos de ordem pública em sociedades igualitárias e em sociedades hierárquicas, utilizando-se, para tanto, da representação gráfica de um paralelepípedo para descrever o modelo igualitário e de uma pirâmide para o hierárquico. Intitulando esses modelos – outrora – como de hierarquias includentes ou de hierarquias excludentes, Kant de Lima aponta cada uma das características que os afastam, ajudando-nos a compreender as representações e as práticas do Judiciário Brasileiro, parte integrante de um modelo social piramidal e excludente.
Nas ciências sociais, fazer “trabalho de campo” é algo inerente à pesquisa. No Direito, é uma expressão desconhecida. Fazer trabalho de campo é conviver intensamente com o objeto de estudo; é vivenciá-lo (MALINOWSKI, 1984). No meu caso – como outrora asseverado - fiz, propriamente, uma etnografia das práticas judiciárias institucionalizadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no que atine à manifestação do princípio da oralidade no processo civil. Segundo entendi - por ocasião do contacto que tive com o tema durante as reuniões do grupo de pesquisa - a etnografia consiste em um estudo descritivo, detalhado, de um ou mais aspectos sociais e culturais do objeto estudado; ela se caracteriza pelo “estranhar”, isto é, pelo olhar crítico de quem a realiza; pela desnaturalização das representações do objeto estudado; pela não aceitação imediata e natural daquilo que se observa. Como advogada e mestranda em Direito posso assegurar que foi muito novo e empreendedor para mim, incorporar a idéia de fazer trabalho de campo para estudar um instituto jurídico. Assim como o foi desprender-me da condição de advogada para tornar-me, em campo, uma pesquisadora. Entretanto, depois de finalizado o trabalho, posso dizer que estes foram obstáculos que, felizmente, eu consegui transpor, embora, certamente, tenham influenciado no resultado da pesquisa. Antes de iniciar propriamente o campo, eu tive de entender em que consistia este tipo de trabalho porque, como disse, no Direito não aprendemos a fazer pesquisa e a empiria é bastante frágil. Aprendemos, apenas, as leis, os procedimentos e quais os autores que devemos ler quando queremos estudar determinados assuntos. Absorvi que, para fazer trabalho de campo, eu deveria ir ao tribunal e ouvir o que as pessoas envolvidas em um processo judicial tinham para dizer a respeito do meu tema. Estas pessoas seriam os meus interlocutores, os meus informantes, e a minha pesquisa adviria da representação que estas pessoas têm sobre o campo estudado. Além disso, aprendi que deveria descrever e explicitar o tema de forma absolutamente imparcial, ou seja, eu não poderia jamais induzir os meus entrevistados a responderem aquilo que eu gostaria de ouvir. Eu deveria estar crua de idéias e pensamentos que pudessem influenciar a minha pesquisa. O meu orientador, Roberto Kant de Lima, disse-me que para fazer trabalho de campo eu deveria estar aberta aos interlocutores e que os meus pontos de vista não
poderiam influir na investigação, pois o campo me daria tudo o que fosse preciso para a realização do meu trabalho. Isso foi o mais complicado. Para fazer o projeto da dissertação, eu li a doutrina jurídica e sabia, de alguma forma, como era o entendimento sobre o meu tema; além disso, eu tinha internalizado em mim algumas representações sobre as práticas judiciárias que eu vivenciava diariamente na minha profissão, portanto, me desligar de tudo isso, iniciar o trabalho e não interpretar os meus dados segundo as minhas convicções foi muito difícil. Um dia, na reunião semanal do grupo de pesquisa, eu levei modelos de questionários padronizados que eu havia preparado, a fim de que o meu orientador analisasse e verificasse se estavam bons. Eu havia elaborado diferentes questionários de acordo com o perfil do entrevistado. Então, fiz um modelo de perguntas para juízes de varas cíveis; outro para juízes de 2ª instância; outro para partes; outro para advogados e outro para testemunhas. As perguntas estavam concatenadas de forma que a segunda pergunta pressupunha uma resposta específica à primeira. O questionário apontava, com clareza, que eu tinha um padrão para as respostas, como se eu soubesse exatamente o que tinha de ser respondido e, mais, como se eu estivesse disposta a induzir as respostas para o caminho que me interessava. Hoje, descrevendo este fato eu vejo o quão inquisitorial foi a minha atitude. Obviamente, o Prof. Roberto Kant me deu uma “bronca” e me mostrou por onde e de que forma eu deveria começar. Aí sim, tudo ficou mais claro e eu iniciei o campo. O meu universo - como já asseverado e como melhor será esclarecido nos próximos capítulos - limitou-se aos processos em trâmite nas varas e câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Realizei entrevistas, formais e informais, com advogados, juízes, partes e testemunhas e, a partir daí, organizei a pesquisa de forma a priorizar os pontos que apareciam comumente no discurso dos meus interlocutores. Além disso, assisti a algumas audiências cíveis e julgamentos em 2ª instância, na qualidade de mera espectadora, e pude perceber o quão distinto é quando apenas se observa de quando se está realmente envolvido no ato. Detalhes que eu jamais havia observado como advogada eu pude perceber como pesquisadora. As reações do público; o comportamento dos juízes; as atitudes dos advogados; as suas posturas, tudo isso é algo que necessita de atenção exclusiva, algo que não se tem quando se é parte do evento.
A minha primeira surpresa ocorreu em relação às entrevistas com os Juízes. Imaginei que não seria recebida com facilidade pelos magistrados que não me conhecessem; e que, quando o fosse, seria impedida de usar o gravador. Isto não ocorreu. É certo que garanti que não identificaria os meus interlocutores, mas, mesmo assim, pensei que a gravação seria um empecilho. Todos os Juízes permitiram que eu utilizasse o gravador e dos que eu tentei entrevistar, lembro-me de apenas quatro que não me receberam sob a alegação de que não teriam tempo por estarem sobrecarregados de trabalho. Dois dos quais, inclusive, disseram-me que eu poderia deixar um questionário em seu gabinete, que, quando tivessem tempo, o responderiam, por escrito 50. Outro dado que considero relevante destacar diz respeito a um obstáculo que, não só influenciou o trabalho, como me fez repensar a minha forma de proceder até encontrar um jeito que se adequasse à realidade apresentada e, até então, imprevista para mim. Muitos dos juízes que eu entrevistei eram pessoas com as quais eu lidava cotidianamente, que me conheciam e sabiam que eu era advogada. Como eu poderia chegar até eles e lhes perguntar o óbvio? Havia perguntas sobre as práticas judiciárias – vinculadas ao tema - que eram muito básicas e que eu não tinha como fazer porque eles sabiam que eu conheceria o assunto. Inicialmente, pensei em entrevistar apenas juízes substitutos 51, com os quais eu não tivesse tanto contacto. Depois pensei em entrevistar juízes de outras comarcas 52, que também não seriam conhecidos. Ocorre que, para mim, não seria viável fazer a pesquisa longe do Tribunal onde atuo como advogada; isto não seria prático e poderia até inviabilizar o campo. Além disso, o meu interesse era entender como a oralidade se materializa no processo civil e, para isso, 50
Achei o dado curioso para pensar, pois o meu tema vincula-se à oralidade. A atitude me fez refletir, de imediato, sobre a vinculação da oralidade com o tempo, uma vez que os juízes não puderam me receber por falta de tempo, mas afirmaram ter condições de responder a um questionário escrito. Posteriormente, no desenvolvimento do trabalho, traçarei esta perspectiva. 51 O ingresso na carreira da magistratura dar-se-á, sempre, no cargo de juiz substituto (art. 164 do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro – Codjerj). Os juízes substitutos exercem funções de auxílio ou substituição a outros juízes. Portanto, não são titulares de nenhum cartório, não tendo um local fixo para o exercício do cargo, sendo designados, aleatoriamente, ao final de cada mês, para exercerem as suas funções onde for necessário. 52 A comarca equivale à sede de juízo, representando a área territorial em que o juiz de direito exercerá sua competência jurisdicional. Pode se dividir em: comarca de 1ª entrância (pequenas comarcas do interior, com apenas uma vara); de 2ª entrância (comarcas intermediárias do interior, com duas ou mais varas); ou de entrância especial (comarcas maiores). A comarca pode corresponder a um só município e, nesse caso, a sua área territorial coincidirá com a área do município. Entretanto, a comarca poderá, também, corresponder a mais de um município, desde que contíguos, caso em que será adotada a denominação de sua sede. (ver artigos 5º ao 16 do Codjerj).
o ideal era, justamente, entrevistar juízes titulares 53 de varas cíveis do Tribunal do Rio de Janeiro, porque trabalham com processo civil rotineiramente e, em geral, são membros da magistratura há bastante tempo. Ademais, as varas cíveis eram o meu ambiente de trabalho e, desde que ingressei no mestrado, tive a intenção de conciliar o que eu vivenciava na vida profissional com o que eu passaria a vivenciar na academia. Resolvi manter a pesquisa tal como prevista e, nesse sentido, decidi, então, que eu tentaria detalhar ao máximo o objetivo do meu trabalho para os juízes, a fim de fazê-los compreender aquilo que os Professores Roberto Kant de Lima e Maria Stella de Amorim me fizeram entender sobre o trabalho de campo. Obviamente, não logrei êxito. Primeiro, os magistrados não entendiam como era possível eu chegar a uma entrevista sem um questionário pronto, com perguntas definidas, exatas, que eles pudessem responder objetivamente. Segundo, não compreendiam o porquê das minhas perguntas. E, terceiro, alguns não precisavam de explicações e fazer isso acabava atrapalhando porque, na verdade, eles não estavam interessados em saber que tipo de trabalho eu iria realizar. Resolvi, então, que não iria programar tanto os encontros, pensar em todas as possibilidades, enfim, explicar tudo com muitos detalhes; apenas diria a minha proposta e faria as perguntas básicas. Conforme a reação, eu adotaria as atitudes que, no momento, eu entendesse serem oportunas. O contacto com os magistrados com os quais eu tinha uma relação próxima foi mais tranqüilo porque havia menos formalidade e maior disponibilidade de tempo, então eu pude esclarecer com calma a minha proposta e aí sim, obter respostas a perguntas supostamente
óbvias
com
menos
estranheza.
Com
os
magistrados
totalmente
desconhecidos também foi interessante porque eles não sabiam que eu era advogada e, portanto, explicavam detalhadamente tudo aquilo que respondiam, o que enriqueceu bastante a pesquisa. O mais complicado foi entrevistar juízes que nem eram amigos, nem eram desconhecidos, ou seja, aqueles que me conheciam profissionalmente, mas com quem eu não tinha nenhuma relação pessoal. Nesses casos, a reação às minhas perguntas eram as mais enigmáticas possíveis. Certa vez, num contexto desses, um magistrado não resistiu e asseverou: 53
Os juízes titulares são os magistrados responsáveis por um determinado Juízo. Exercem essa função, de forma fixa, após serem promovidos do cargo de substitutos.
“É um prazer recebê-la, para mim não há problema algum em conceder esta entrevista, mas, sinceramente, para quê você está utilizando o seu tempo agendando entrevistas, vindo até o fórum, gravando tudo, para saber coisas que estão em livros ótimos, de autores reconhecidos, que eu posso até indicar? Aonde você pretende chegar e qual, objetivamente, é o seu intuito com este trabalho?”.
Tentei explicitar o meu objeto, mas não fui compreendida. A entrevista transcorreu com certo desconforto e não pude aproveitar tanto quanto gostaria os dados colhidos nesse dia. Ocorreu, algumas vezes, nesse mesmo contexto, desses magistrados sentirem-se constrangidos em responder a determinadas perguntas que eu fazia. Como sabiam que eu sou advogada – embora não tivessem intimidade comigo - ficavam pouco à vontade em esclarecer questões que lhes pareciam óbvias. Eu perguntava, por exemplo, em que atos processuais a oralidade se materializa e eles diziam: “Ah Doutora, como a Senhora já sabe ... no código de processo civil existe a previsão do artigo ...”. Quanto aos juízes que absolutamente não me conheciam, as reações eram, para mim, às vezes, até mesmo cômicas. Quando eu me apresentava e dizia que estava realizando uma pesquisa, eles, automaticamente, me desvinculavam do campo jurídico, como que seguros de que falavam com alguém de outra área. Como no Direito é mesmo raríssimo haver pesquisa de campo, eles não achavam que pudessem estar diante de alguém do próprio campo e, com isso, esclareciam tudo minuciosamente. Eu, por outro lado, não vi como antiético deixar de dizer que era advogada, afinal, eu estava ali como pesquisadora e, por conseguinte, tive a felicidade de ter acesso a um outro perfil de entrevistas. Ocorreu, mais de uma vez, de esses juízes iniciarem a entrevista destacando: “As pessoas que não conhecem o Direito têm uma visão distorcida do processo; pensam que o processo funciona como nos filmes americanos, mas, na verdade, aqui é muito diferente; não existe esse romantismo.”. Ou então: “Vou explicar tim tim por tim tim porque reconheço que para quem não tem formação jurídica é complicado entender um processo e as nossas rotinas.”. Creio que a dificuldade maior dos juízes em entender a minha pesquisa se deu – não só pela falta de tradição de pesquisas desse tipo no Direito – mas, talvez, porque, para eles, não era jurídico e muito menos academicamente rico, um trabalho fundado em perguntas tão básicas, como, por exemplo, o que é o princípio da oralidade? Algo que pode ser encontrado em qualquer manual de direito processual.
Para eles, creio, uma dissertação de mestrado produzida nesses termos não seria academicamente satisfatória e, portanto, ficava difícil compreender o que aquilo que eu estava realizando significava exatamente. Outro dado importante observado na pesquisa de campo – ainda em relação às entrevistas com os juízes - diz respeito à influência que a formação jurídica universitária exerce sobre os seus operadores (BOURDIEU, 1987). Alguns dos juízes por mim entrevistados estão de tal forma condicionados a se utilizarem de doutrina e de conceitos de autores já consagrados para ratificar os seus pensamentos, que não conseguiam opinar livremente na entrevista, quer dizer, sem fazer menção a algum jurista em quem apoiassem a idéia que sustentavam. É como se a informação que me concediam somente me servisse se fosse avalizada por alguém de renome, a quem eles necessitavam fazer referência expressa, como argumento de autoridade 54. Nesses momentos, em que estive com juízes assim, tinha na minha cabeça a idéia de que, para eles, dar entrevistas era como proferir uma sentença, porque eles tinham uma convicção formada, mas precisavam fundamentar esta convicção, comprovando, com o discurso dogmático, que o que diziam tinha fundamento. Isto ocorreu mais de uma vez. Em uma determinada entrevista agendada com uma juíza, aconteceu algo muito curioso. Eu marquei para uma data e quando cheguei ela me pediu desculpas e disse que não estava preparada, que havia esquecido, solicitando-me que retornasse um outro dia. Agendamos uma nova data e eu saí do gabinete sem compreender exatamente o que significava ela “não estar preparada”. Retornei no dia designado e me surpreendi sobremaneira: ela havia estudado com afinco o princípio da oralidade para me conceder a entrevista. Havia lido vários livros de doutrina, sublinhado algumas notas e estava com todo o material preparado na hora em que cheguei. Tudo estava sobre a sua mesa. A entrevista foi mecânica, com citações de autores do início ao fim e, obviamente, embora a magistrada tenha sido inigualável em termos de atenção e cortesia, não colaborou com a pesquisa da forma como eu esperava. A atitude desses entrevistados – minoritária no universo da pesquisa, porém marcante - fez-me pensar em três fatores: 1) a necessidade dessas pessoas de saberem sempre todas as respostas, ou seja, a impossibilidade de não conhecerem algum assunto 54
O Professor Roberto Kant de Lima chamou-me a atenção em uma aula, certa vez, dizendo-me que o problema do argumento de autoridade, tão firme no Direito, é que ele se baseia na autoridade e não, propriamente, no argumento. E, de fato, no Direito é assim. Mais vale a autoridade do que o conteúdo do que se sustenta (KANT DE LIMA, 2005, p. 92).
jurídico; o que – no decorrer da pesquisa – verifiquei tratar-se de uma exigência para o exercício do cargo de juiz; 2) o fato de que a opinião no Direito só tem legitimidade se estiver fundamentada na doutrina; 3) a circunstância de eles, efetivamente, não saberem como se faz uma pesquisa empírica, porque, diante do seu comportamento, demonstraram que, a seu ver, eu estaria ali para testar o seu conhecimento, ou para investigá-los, enfim, para saber algo que eles não poderiam, em hipótese alguma, desconhecer 55. Este traço assinala um relevante aspecto da cultura jurídica brasileira que, certamente, aparecerá como pano de fundo durante toda a pesquisa: a ameaça pelo estigma do desconhecimento, do erro ou da ignorância (KANT DE LIMA, 1995, p. 11). Ainda que todos saibam que é impossível para qualquer ser humano conhecer todo o sistema normativo, desconhecê-lo é uma marca que, no curso do trabalho, percebi estar vinculada a certo status exigido pelo campo e que serve como álibi para aqueles que estão inseridos se distinguirem dos excluídos. Por fim, ainda em campo, percebi que nem para os juízes, nem para ninguém do Direito - nem mesmo amigos interessados em me ajudar – eu consegui explicar exatamente a minha proposta de trabalho. Eu não consegui fazê-los entender que o meu objetivo era explicitar as distintas representações do princípio da oralidade no campo do Direito; que meu interesse não era definir a oralidade segundo a doutrina jurídica que já existe sobre o tema, mas explicitar que a oralidade é uma categoria e, como tal, possui representações distintas no campo e que eu não poderia, para estudar o instituto, me prender a uma única categoria do tema, qual seja, a dogmática. Era preciso distinguir as diversas representações do campo e descrever o que as diferencia para, assim, compreendê-las de forma mais completa e, com isso, repensá-las. Eu também demorei muito para compreender a metodologia das pesquisas realizadas nas ciências sociais e ainda apresento muitas dificuldades, todavia, o meu orientador me ensinou algo que me guiou o tempo todo. Ele disse, certa vez, que as categorias, em realidade, não existem. Elas constituem uma construção do campo pesquisado. E, portanto, disse-me que, para identificá-las, eu deveria olhar debaixo delas, pois olhando debaixo das categorias eu as estaria desnaturalizando; eu as estaria “estranhando” para, então, as reconhecer.
55
Kant de Lima destaca esse fator como algo marcante também em sua pesquisa sobre a polícia do Rio de Janeiro, manifestando-se no sentido de que: “[...] eles [os interlocutores] consideravam minhas indagações sobre suas práticas e representações como uma clara ameaça a seu saber profissional e, conseqüentemente, como um manifesto desafio ao seu poder e posição.”. (1995, p. 11)
Pensei as categorias, então, como sendo os conceitos ou os significados das práticas judiciárias, a partir da perspectiva dos interlocutores. Quanto à necessidade de “explicitação”, lembrei-me de que na vida sempre aplicamos um “jargão” que diz: “o melhor caminho para não resolver um problema é fingir que ele não existe”
56
; e do quanto isto tem relação com o estudo do Direito no
Brasil. Tive a certeza de que, descrevendo as práticas judiciárias, os problemas obscuros do campo jurídico, inevitavelmente, apareceriam. Hoje, terminada a pesquisa, ratifico: enquanto não existirem estudos voltados a essa interlocução com as metodologias das ciências sociais, não enxergaremos as incongruências deste campo e as repercussões sociais de suas rotinas. Tentei fazer isso e espero, realmente, conseguir explicitar, no decorrer deste trabalho, tudo o que eu pude “desvendar” com a ajuda da pesquisa de campo. É certo que muito do que se descreverá neste trabalho parecerá óbvio para os operadores do Direito, mas o fiz propositalmente, pois identifico que um dos obstáculos deste campo é a ausência da explicitação do óbvio, daquilo que todos sabem, mas não se escreve; não se encontra em livro algum e não se tem quaisquer registros. Práticas institucionalizadas no Direito, que todos aqueles que vivenciam os cotidianos dos tribunais conhecem, que são básicas e corriqueiras para quem lida com as rotinas forenses, tornam-se um saber exclusivo de quem as experimenta. Tais práticas só existem dentro dos muros dos tribunais, pois, dali para fora, ninguém as compreende, tanto porque sobre elas não se escreve, quanto porque, quando se escreve, o que se descreve é completamente diferente do que se realiza. O meu objetivo foi, por todas essas razões, descrever o óbvio, a fim de torná-lo conhecido por todos. Saber a hora de parar também foi uma das dúvidas com a qual me deparei. O Professor Roberto Kant disse-me que eu saberia quando o campo chegaria ao fim porque naturalmente os assuntos iriam se repetir e quando não houvesse mais nada novo, o campo estaria terminado. E assim foi. As categorias vão se repetindo nas entrevistas e, então, você percebe que o universo da sua pesquisa, naquele momento, chegou ao fim. 56
No discurso de posse do professor Jorge da Silva como Secretário de Estado de Direitos Humanos, em 3 de fevereiro de 2004, ele se utiliza desta expressão nesse mesmo contexto, ao manifestar-se sobre os paradoxos da sociedade brasileira e a necessidade de ocultá-los.
Feito isto, estruturar o texto e começar a escrever foi o meu último e mais problemático obstáculo e isto, mais uma vez, tem a ver com a minha formação jurídica. No Direito, quando se pensa em escrever qualquer coisa define-se, a priori, um “marco teórico” para o trabalho. Tanto que, a primeira fase de uma pesquisa jurídica é a elaboração do índice. Sem um índice previamente definido não há forma de se começar um trabalho acadêmico no campo do Direito. Nas ciências sociais, ao revés, inexiste “marco teórico”. São os dados da pesquisa empírica que estruturam o desenvolvimento do trabalho. A realidade investigada é que dá vida ao texto a ser escrito 57. A razão de tal disparidade é simples: no Direito a realidade deve se adequar à teoria. As leis são padronizadoras do comportamento social e, conseqüentemente, tudo o que está entrelaçado nesse campo possui certezas prévias. A essência desse “mundo” é “doutrinária” e - como o próprio significado da palavra doutrina (ensinamento) aponta trata-se, este campo, de um meio em que a pretensão é sempre ensinar por se supor que não há mais nada para se aprender. Em sendo assim, no Direito, os dados da realidade que não ratifiquem o “marco teórico” previamente definido para o trabalho devem ser dele expurgados: fecha-se os olhos para a sua incontestável existência. Há um desejo muito presente no campo de manter os fatos à distância em procedimentos jurídicos e, nesse contexto, o Direito acaba se afastando, cada vez mais, da estória real e completa (GEERTZ, 1998). Como, aliás, fazem os advogados quando se deparam com uma “tese” que não atende aos seus interesses; simplesmente fingem que ela não existe e buscam outra que lhes tenha serventia 58. O método do Direito deveria partir de observações da realidade presente, viva, não daquilo que se apresenta no conjunto das leis ou da jurisprudência (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005).
57
DaMatta destaca que nas ciências sociais o pesquisador trabalha com fenômenos que estão “bem perto” dele; eventos humanos, fatos que o pertencem integralmente. (DAMATTA, 1981). 58 O Prof. Roberto Kant de Lima narrou - em um dos encontros do nosso grupo de pesquisa – um fato que se relaciona com essa problemática e que, concomitantemente, serve para exemplificar o quanto a formação jurídica, de certa forma, dificulta a realização de uma pesquisa de campo para aqueles que não estão socializados com essa metodologia: ele nos disse que, certa vez, um orientando seu - aluno de Direito e advogado - intrigado, perguntou-lhe se deveria incluir na bibliografia toda a “doutrina” sobre o tema da sua dissertação ou somente aquela que fosse favorável à tese que pretendia sustentar. Como se um trabalho acadêmico fosse destinado a criar “doutrina” e tivesse a necessidade de estar comprometido com um determinado tipo de pensamento.
Nas ciências sociais não é assim que funciona. A realidade não se sujeita a coisa alguma. A realidade fala; a realidade se apresenta; e cabe ao pesquisador, apenas, explicitá-la. Certamente, utiliza-se base teórica na fundamentação da pesquisa empírica, mas esta sobrevém igualmente da realidade e não de uma fonte de inspiração interna ou sobrenatural. Pesquisas anteriores que também levaram em conta a realidade empírica vinculada ao tema que se pretende estudar podem servir de referência, mas, jamais, de “marco teórico”. Quando eu me vi perdida entre esses dois métodos, estando completamente desencaminhada sobre como organizar os capítulos da dissertação; como estruturar as idéias e como definir os tópicos a serem trabalhados, meu orientador, mais uma vez, acalmou-me. Citando o seu Professor Castro Faria, ele me disse que eu deveria, simplesmente, “ouvir os dados do campo, porque eles têm vida; eles falam”. Entendi e internalizei o significado disso. A dificuldade perdurou porque eu não estava, efetivamente, socializada com essa forma de pesquisar, entretanto, compreender essa idéia foi o pontapé fundamental para que eu pudesse – finalizado o campo – iniciar a sua descrição de forma sistemática e organizada. Viver entre o direito e a antropologia - dois campos aparentemente antagônicos, mas, de fato, complementares – aguçou a minha sensibilidade para os problemas teóricos que limitam o sistema jurídico a exercer, na prática, a sua função: dar às pessoas a solução “justa” que elas buscam para os seus problemas. O ensino jurídico é “livresco” - como o Prof. Roberto Kant sempre explicita – e eu necessitava da vitalidade do mundo das práticas. Sem dúvida, encontrei isso na Antropologia. Doravante, o desenrolar dessa minha experiência será aclarado, capítulo a capítulo.
CAPÍTULO II A ORALIDADE E SUAS DISTINTAS CATEGORIZAÇÕES 1. Focalizando o espaço e o objeto a ser categorizado O Poder Judiciário Brasileiro, por previsão constitucional (art. 92 da Constituição da República), compõe-se de diversos órgãos, a saber: Supremo Tribunal Federal; Conselho Nacional de Justiça; Superior Tribunal de Justiça; Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; Tribunais e Juízes do Trabalho; Tribunais e Juízes Eleitorais; Tribunais e Juízes Militares; e Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. O foco principal deste trabalho, conforme já esclarecido, é o estudo da oralidade e a sua representação nos processos em curso na Justiça Estadual do Rio de Janeiro, cuja estrutura e organização estão previstas no Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro – Codjerj (Resolução 01, de 21 de março de 1975). A Justiça Estadual do Rio de Janeiro também é constituída por distintos órgãos, quais sejam: Tribunal de Justiça; Conselho da Justiça Militar; Juizados Especiais Cíveis e Criminais e suas Turmas Recursais; Juízes de Direito e Tribunais do Júri. Cada um desses órgãos possui diversas atribuições e competências, de forma que para viabilizar o estudo tive de limitar o meu campo de atuação e - pelas razões que já expus - o fiz de acordo com a minha experiência profissional, centrada na área cível do Direito. Destarte, para trabalhar com processos vinculados a matérias dessa competência, pesquisei como órgãos estaduais, os Juízes de Direito com competência em matéria cível - ou seja, Juízes em exercício em Varas Cíveis 59 - e o Tribunal de Justiça, órgão recursal revisor das decisões proferidas por esses Juízes. A competência cível estadual não tem como ser delimitada, sendo chamada de “competência residual”, justamente porque o seu campo é genérico, abarcando todas as questões jurídicas, exceto as que digam respeito às matérias: penal; de família; de interesse da Fazenda Pública; de órfãos e sucessões; de registro público; de registro civil de pessoas naturais; de direito empresarial, falências e concordatas e de infância, juventude e idoso. De igual sorte, o processo civil brasileiro – objeto do trabalho - não está atrelado unicamente às causas em curso nas varas cíveis, aplicando-se a todos os casos que não sejam
59
Varas cíveis são cartórios judiciais onde tramitam os processos de competência cível, por exemplo, ações de despejo; ações de indenização; ações em que se discutem questões contratuais etc.
de competência criminal, de forma que, por exemplo, as ações em curso nas varas de família; ou de órfãos e sucessões; ou de registro público, são também reguladas pelo processo civil. Ocorre que, embora o processo civil e as matérias de competência cível sejam aplicáveis e tenham vinculação com outros campos que não somente as Varas Cíveis do Tribunal de Justiça - conforme adrede explicitado - o escopo da minha pesquisa foi investigar os processos que tramitam especificamente nesses espaços, motivo pelo qual, inevitavelmente, limitei o estudo acerca da oralidade a esse locus. 2. Contextualizando o tema A oralidade tem sido estudada, freqüentemente, em relação à escrita, não se definindo de forma isolada. Até hoje não se formularam conceitos específicos que permitam uma compreensão satisfatória - ou menos desfavorável – acerca da oralidade, tendo em vista que todas as tentativas imputam a sua vinculação à escrita (ONG, 1998). Os trabalhos a respeito do assunto focalizam, basicamente, dois aspectos da relação oralidade/escritura, quais sejam: 1) a influência da cultura oral - característica das sociedades “primitivas” (não letradas) - na formação da cultura escrita - representativa das sociedades letradas, onde há o domínio das técnicas da leitura e da escrita (GOODY, 1988); 2) a importância da passagem da enunciação verbal ao texto (cultura escrita) na reformulação estrutural do pensamento humano e no desenvolvimento social, político, econômico e cultural. A oralidade possui um significado residual, pois ela representa tudo aquilo que não seja escrito e, portanto, tudo aquilo que seja comunicado; que seja falado; estando, necessariamente, vinculada ao som, jamais ao aspecto visual das formas (KITTAY, 1995) e representando, sempre, um discurso vivo, dinâmico e direto. A escrita, por sua vez, representa a codificação e a decodificação da oralidade (KITTAY, 1995), tendo em vista que uma cultura oral não possui textos, nem registros; só memória (ONG, 1998). A oralidade é, pois, uma manifestação sonora, cuja função consiste em reagir a um estímulo, de forma enérgica, exprimindo não apenas a comunicação, mas também o aspecto emocional da reação. (GOODY, 1988). A escrita e a oralidade – malgrado sejam vistas como opostas – em verdade, não o são, interpenetrando-se e ao mesmo tempo mostrando-se interdependentes, evidenciando-se não como contrapostas, mas, simplesmente, como diferentes modos de experiência na formação do pensamento humano (KITTAY, 1995; GOODY, 1988).
Constitui erro polarizá-las, vendo-as como reciprocamente exclusivas. A relação entre elas tem o caráter de uma tensão mútua e criativa, contendo uma dimensão histórica – afinal, as sociedades com cultura escrita surgiram a partir de grupos sociais com cultura oral (HAVELOCK, 1995). Nesse sentido, registro, desde logo, que perpassará por toda a pesquisa essa concepção mesclada da oralidade e da escrita, que serão representadas no texto como formas que se intercalam no processo civil, jamais como categorias que se anulam. Este tópico destina-se, tão-só, a situar o leitor no contexto do trabalho, sendo certo que as demais características e representações, tanto da oralidade, quanto da escrita, ressurgirão com mais minúcia no decorrer da dissertação, sempre de forma vinculativa às práticas judiciárias que serão explicitadas. 3. A oralidade legislada O atual Código de Processo Civil Brasileiro - Lei n o 5.869, de 11 de janeiro de 197360 prevê a materialização do princípio da oralidade no processo civil de forma expressa na exposição de motivos e de forma não literal em diversos dos seus dispositivos. De igual sorte, Leis esparsas que regulam matéria cível também o fazem. Na exposição de motivos, o Ministro da Justiça à época, Alfredo Buzaid, destinou item exclusivo para destacar a manutenção do sistema oral no processo - já presente desde o Código de 193961. Para tanto, indicou três elementos fundamentais caracterizadores do 60
Com o intuito de situar o leitor quanto à legislação, esclareço que a Constituição Republicana Brasileira de 1891, em seu artigo 34, n. 23, deferiu aos Estados Federados autonomia legislativa em matéria processual civil, de maneira que diversos Estados editaram as suas próprias normas. Somente em 1939 – por força da Constituição de 1934, ratificada pela de 1937 - foi editado um Código de Processo Civil com amplitude nacional (Decreto-Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939). Após este, adveio o Código de Processo Civil atual, promulgado em 1973. Hoje, o CPC sofreu inúmeras modificações, advindas da implementação de Leis Federais, entretanto, o seu conteúdo integral não foi revogado por um novo Código Processual. 61 A exposição de motivos do Código de 1939 expunha, sobre a oralidade, o seguinte: “Ora, o processo tem por fim a investigação dos fatos. Será possível ao juiz investigá-los apenas no papel, nos relatórios e depoimentos escritos, abstraindo-se das pessoas e das coisas? Seguramente não, a não ser que o processo de julgamento corresponda ao da investigação dos fatos onde eles não se encontram, isto é, a não ser que os juízes passem a adotar para o julgamento o mesmo processo de Bridoye, o da sorte tirada pelos dados. O princípio da concentração dos atos do processo é um dos postulados do sistema oral. No processo tradicional os atos do processo se vão desenvolvendo no tempo à medida da iniciativa das partes. O processo tradicional é essencialmente dispersivo e caótico. Quando os atos do processo chegam ao conhecimento do juiz já medeia um largo tempo entre o momento em que foram praticados e o em que o juiz vai apreciá-los. O princípio da concentração imediatiza o contacto do juiz com o processo e exige que todos os atos e incidentes ocorridos na mesma audiência sejam objeto de solução imediata por parte do juiz.”. Mesmo diante de tal previsão, a dogmática reconhece que a inserção oficial da oralidade no processo, por força do CPC de 1939, não foi suficiente para a sua efetiva concretização. Uma das críticas que se faz, por exemplo, é a ausência de previsão, no CPC de 1939, da audiência inicial com a presença das partes, para fins de conciliação; bem como o fato de a fase postulatória permanecer rigidamente escrita (GUEDES, 2003).
princípio da oralidade no processo civil e que são absorvidos como seus subprincípios, quais sejam: a) identidade física do juiz, caracterizado pela exigência de que um único juiz conduza o processo do início ao fim, colhendo as provas e prolatando a sentença (art. 132 do CPC) 62; b) concentração, que se evidenciaria pela necessidade de se agrupar a produção de todas as provas e a prolação da sentença em um só ato, o que quer dizer, em uma mesma audiência; c) a irrecorribilidade das decisões interlocutórias 63; que evitaria a cisão do processo em razão da contínua interposição de recursos à instância superior64. Além da previsão constante na exposição de motivos, a possibilidade de haver manifestações orais em diversos momentos no curso do processo civil também se encontra no Código de Processo Civil - como asseverado - em dispositivos dispersos e de forma não literal, destacando-se a título de exemplo os seguintes atos: 1) audiência preliminar prevista no art. 331 do CPC; 2) audiência realizada no procedimento sumário, nos termos dos arts. 277; 278 e 281 do CPC; 3) depoimento pessoal das partes, realizado oralmente em audiência de instrução e julgamento, nos termos dos arts. 342 a 347; 4) confissão judicial, prevista no art. 349, 1ª parte, do CPC; 5) prova testemunhal, também produzida de forma oral, em audiência, nos termos dos arts. 400 a 41965; 6) esclarecimentos prestados pessoalmente pelo perito e 62
O princípio da identidade física do juiz admite relativização. O próprio artigo 132 do CPC prevê as exceções à sua regra. (Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor). 63 Por mais incrível que possa parecer, até mesmo um conceito, aparentemente objetivo como este – decisão interlocutória – possui definição “tormentosa” na doutrina (GUEDES, 2003). O art. 162, § 2 o, do CPC dispõe, expressamente: “Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.”. Todavia, há discussão intensa no campo sobre a extensão desse conceito, tendo em vista que não há consenso sobre o que é questão incidente, sobre o que é questão prejudicial; sobre o que significa, no art. 162, a expressão “no curso do processo”; enfim, uma série de fatores, a meu ver, secundários, que impedem uma definição clara sobre o que seria uma decisão interlocutória. Discutir isso e explicitar cada uma das posições conceituais do tema, definitivamente, não é a minha proposta. Registro a existência do debate, apenas para que não pareça que eu desconheço essas questões; no entanto, para o que eu pretendo descrever basta saber que decisão interlocutória é, em linhas gerais, uma decisão proferida no curso do processo; que não põe fim ao mesmo, entretanto, em trazendo prejuízo a quaisquer das partes, pode ser objeto de recurso. Creio que esta “definição” sobre o tema é suficiente para a sua compreensão – embora não o esgote – e permite que eu siga em frente. 64 A justiça brasileira se estrutura mediante diferentes graus de jurisdição. Basicamente, o 1º grau de jurisdição corresponde à fase em que o cidadão postula o direito (fase postulatória); em que as partes produzem as provas que fundamentam a sua tese (fase probatória ou instrutória); e em que o juiz profere a sentença (fase decisória), ou seja, em que prolata a decisão do processo que define quem venceu e quem perdeu a causa. O 2º grau de jurisdição corresponde ao grau recursal, isto é, à instância revisora das sentenças, eis que toda sentença, em regra, está sujeita a reexame por um órgão superior. Como já esclarecido, existem diversos órgãos no Poder Judiciário que compõem o 1º e o 2º graus de jurisdição e são divididos, basicamente, em razão da matéria a ser tratada pelo Judiciário, por exemplo, justiça do trabalho, justiça federal, justiça militar, justiça eleitoral e justiça ordinária estadual (anexo A). Há, ainda, os tribunais superiores, que corresponderiam à 3ª instância, com jurisdição em todo o território nacional, e que se encontram enumerados no já citado artigo 92 da Constituição da República. 65 Aproveito o ensejo para destacar que a hierarquização e a conseqüente desigualdade características da estrutura social brasileira também se expressam – como não poderia deixar de ser – na legislação processual civil. Nesse contexto, a legislação prevê que os depoimentos orais dos “indivíduos” devem se realizar em
assistente técnicos, em juízo, em audiência designada para tal fim, consoante art. 435; 7) inspeção judicial, prevendo o contato direto do juiz com as pessoas objeto da inspeção pessoal por ele realizada, conforme arts. 440 a 443; 8) o rito da audiência de instrução e julgamento, consoante art. 451 - onde o juiz fixa os pontos controvertidos da demanda após ouvir as partes; art. 452 – onde se prevê a oitiva de peritos e assistentes técnicos em audiência; art. 454 – no qual se prevê a manifestação oral dos advogados das partes e do representante do Ministério Público antes de terminada a fase instrutória; 9) interposição oral do agravo retido em audiências de instrução e julgamento (art. 523, §3º); 10) defesa oral das razões e das contra-razões do recurso, no Tribunal, nos termos do art. 554; 11) audiência de conciliação, instrução e julgamento, prevista no art. 740 do CPC, no rito dos embargos de devedor; 12) os procedimentos cautelares em geral, previstos no Livro III do CPC, que prevêem audiências de justificação prévia e de instrução e julgamento, nas quais há manifestações orais das partes e interessados. Na legislação especial e na esparsa66, o princípio da oralidade também se faz presente como garantia do processo civil, sendo que está previsto, de forma mais destacada, na lei dos juizados especiais e no estatuto da advocacia. Na Lei 9.099/95, que trata dos juizados especiais cíveis e criminais, no âmbito do Estado, bem como na Lei 10.259/2001, que trata dos juizados especiais federais, privilegia-se a oralidade à escrita, sendo aquela tratada como princípio norteador do processo, em todas as suas fases, registrando-se em papel, apenas, o que o juiz, ao proferir a sentença, considerar essencial (art. 36). De igual sorte, o Estatuto da Advocacia – Lei 8.906/94 – privilegia a oralidade, alçando o direito de falar do advogado à garantia fundamental do exercício da profissão, conforme art. 7º, incisos IX e X. audiência de instrução e julgamento designada pelo juiz da causa para esse fim, entretanto, em razão do cargo que exerçam, determinadas “pessoas” – autoridades, nos termos da lei - não precisam se sujeitar a tal previsão, podendo ser ouvidas em suas residências ou em seu local de trabalho, como desejarem, no dia e hora que elas próprias designarem. É o que preceitua o art. 411 do CPC, enumerando todos os cargos que detêm dito privilégio. Registro que utilizo a distinção de pessoa e indivíduo adotada por DaMatta (1979), que define as pessoas como sendo os seres pertencentes a um universo privilegiado, hierarquizado, ao qual os indivíduos devem se submeter, conforme já tive oportunidade de expressar, inclusive, no Capítulo I. 66 Exemplos de legislações especiais e esparsas em que a oralidade se faz presente: 1) Lei 9.868/99, que prevê a realização de audiência pública nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (art. 9º) e nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (art. 20); 2) a Lei 8.038/90, que prevê a possibilidade de sustentação oral nos processos que especifica em curso no STJ e no STF (artigos 6º e 28); 3) a Lei 8.666/93, que prevê a necessidade de audiência pública em determinados procedimentos de licitações e contratos administrativos (art. 39); 4) a Lei 5.478/68, que trata da ação de alimentos, prevendo diversos procedimentos orais em seu curso; 5) a Lei 6.515/77, que regulamenta os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, prevendo diversas formas de manifestações orais das partes (A recém-promulgada Lei n o 11.441/2007, vigente desde 05 de janeiro, prevê a possibilidade de as separações e divórcios, quando consensuais, serem realizados sem a interveniência do Poder Judiciário, em cartórios extrajudiciais, por escritura pública); 6) a Lei 7.347/85, que trata da ação civil pública, estabelecendo audiência de justificação prévia para coleta de prova oral, antes da apreciação de eventuais pedidos de medida liminar; dentre diversas outras, ora não mencionadas.
O objeto deste estudo é, tão-somente, a materialização da oralidade nos processos em curso nas Varas Cíveis do Tribunal Estadual do Rio de Janeiro, razão pela qual não abordarei – no momento da descrição das práticas judiciárias que envolvem o tema - manifestações orais esparsas, limitando-me à previsão do Código de Processo Civil quanto ao rito dos processos vinculados a essa matéria, destinando-se, a explanação acima, apenas, a dar um panorama geral demonstrativo das diversas formas orais de realização de atos processuais preconizadas no processo civil brasileiro. Oportunamente, destaco a disposição constante de forma literal na exposição de motivos do CPC de 1973 no sentido de que o uso da oralidade no processo civil, embora mantido, deve ser mitigado67, só devendo se fazer presente nos casos em que exista, obrigatoriamente, realização de audiência destinada à produção de provas pelas partes68, sendo supérflua a designação de audiências com finalidade exclusiva de “debate oral”, casos em que, segundo consta na exposição de motivos, o princípio da oralidade pode ser afastado. Nota-se, com isso, a prevalência concedida às formas escritas de manifestações processuais, caracterizando-se, a oralidade, na Lei, como exceção à regra. Por fim, vale salientar que, em verdade, nem o CPC de 1939, nem o atual (1973), mesmo com todas as modificações sofridas, levaram ao terreno prático o princípio da oralidade tal como elaborado, mormente, no que atine à aplicação dos seus subprincípios (CARDOSO, 2002), o que, certamente, se explicitará melhor na descrição das práticas judiciárias.
4. A oralidade “aos olhos do Direito”: a visão dogmática
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Quanto à mitigação da oralidade no processo, a exposição de motivos do CPC de 1973 se justifica nos seguintes termos: “[...] o projeto manteve, quanto ao processo oral, o sistema vigente, mitigando-lhe o rigor, a fim de atender as peculiaridades da extensão territorial do país. O ideal seria atingir a oralidade em toda sua pureza [...] ocorre, porém, que o projeto, por amor aos princípios, não deve danificar as condições próprias da realidade nacional. O C. Pr. Civ. se destina a servir o Brasil. Atendendo a estas ponderações, julgamos de bom aviso limitar o sistema de processo oral, não só ao que toca ao princípio da identidade física do juiz, como também quanto à irrecorribilidade das decisões interlocutórias.”. 68 Há casos em que a Lei não prevê a realização de audiência no processo civil, como, por exemplo, naqueles elencados no art. 330 do CPC, a saber: quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produção de prova em audiência, bem como quando ocorrer a revelia. A doutrina não possui critérios objetivos e precisos para definir o que seria matéria exclusivamente de direito, porém, em geral, entende-se como sendo matérias que demandam mera interpretação de dispositivos legais. Já a revelia ocorre quando o réu não apresenta a sua defesa, reputando-se verdadeiros os fatos alegados pelo autor na petição inicial (art. 319 do CPC). Outros casos em que a legislação processual não determina a realização de audiências: ver artigos 832, inciso II; 915, §2º e 955, todos do CPC.
Em sede doutrinária, a oralidade é alçada à categoria de princípio norteador de um processo justo e democrático69-70, estando reproduzida por uma série de procedimentos que, supostamente, propiciam a sua supremacia. Um adendo que merece ser feito diz respeito à conceituação de “princípio” no Direito Brasileiro. Os “princípios do direito” representam a “solução” doutrinária para o preenchimento das lacunas da legislação. Eles são uma espécie de porto-seguro dos operadores do Direito, que os utilizam tanto quando querem interpretar a Lei de forma particular quanto quando não encontram nela a saída de que necessitam ou a que melhor lhes convêm. Funcionam como “sinal verde” para a interpretação e aplicação particularizada da Lei, pois, de tão abstratos, se moldam a qualquer fôrma, permitindo a relativização das normas no caso em concreto. A dogmática conceitua os princípios gerais do Direito de uma outra forma 71, mais romântica, entretanto, ao final, sugere a mesma conclusão acima. “A nosso ver, princípios gerais do direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática [...] eles são eficazes independentemente do texto legal [...]”. (REALE, 2004, p. 304-305) “[...] os princípios gerais do direito são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico [...] os princípios não tem existência própria, estão ínsitos no sistema, mas é o juiz que, ao descobri-los, lhes dá força e vida. (DINIZ, 1994, p. 419). “A era das legislações principiológicas inaugurou-se com a Constituição de 88, e com ela, veio inexoravelmente a invasão da política e da sociedade pelo Direito. Isto 69
Oralidade como garantia da parte a um processo justo: ver GRECO (2005). Tive a oportunidade de verificar – através do discurso de alguns operadores do campo – que, na prática, a oralidade não tem correlação com um processo democrático. Destaco um trecho de uma entrevista concedida por uma magistrada, que assim se manifestou: “Acho que a presença mais permanente da oralidade no processo não facilitaria o alcance de um processo mais democrático. O processo democrático é aquele em que todos têm acesso a tudo e têm todos os meios de prova ao seu alcance. Se a gente enfatizar o princípio da oralidade, esses meios de prova vão ser muito reduzidos. Então, eu acho que não tem uma coisa a ver com a outra. Acho que até prejudicaria um pouco. Se bem que, não sei, não sei como isso seria implantado em sede de varas cíveis propriamente. Mas se fosse como ocorre em juizados, acho até que aqui, em vara cível, atrapalharia, não seria uma forma democrática não. E digo isso não por causa da demora, mas por causa da pobreza das provas orais.” 71 Há diversos compêndios e manuais que tratam exaustivamente sobre os princípios gerais de direito, existindo, inclusive, distintas correntes de pensamento a esse respeito. De forma resumida, Maria Helena Diniz as explicita em seu “Compêndio de Introdução à Ciência do Direito” (1994). 70
porque se os princípios são ‘proposições normativas e não declarações descritivas’, eles dizem o que deve ser e o que é permitido, não aquilo que o caso é na realidade, é óbvia a conclusão de que tais premissas valorativas vêm carregadas de carga ideológica [...].”. (GAULIA, 2003, p. 513).
Feita esta consideração, retorno propriamente ao ponto. A doutrina, como esperado - pois é assim que o Direito se estrutura - tem uma visão poética e utópica do princípio da oralidade no processo civil. Ao ler as manifestações dogmáticas tem-se a sensação de que a oralidade é a solução de todos os males do sistema e o fim do abismo que notoriamente separa as pessoas e o Judiciário. No entanto, esta sensação se esvai, de imediato, quando se assiste a uma única audiência no foro estadual do Rio de Janeiro e se verifica que nada do que se escreve se realiza. O procedimento oral é visto como uma garantia, ou seja, como um princípio fundamental72 - à qual todos os cidadãos devem ter acesso – que assegura um processo justo, igualitário e democrático. Trata-se de uma garantia de autodefesa da parte, proporcionada por um “diálogo humano e público com o juiz da causa” (GRECO, 2005). A oralidade é vista como o meio que permite ao juiz não só ouvir, mas, especialmente, “sentir” as partes e as testemunhas e, por conseguinte, avaliar melhor as provas diante dele produzidas e formar, com mais certeza e precisão, o seu convencimento73. A oralidade é representada, na dogmática, como um método que proporciona “à luta judiciária [o processo] o seu genuíno caráter humano, que comunica vida e eficácia ao processo [...]” (MORATO, 1938); é um sistema em que o juiz participa ativamente do processo, entretanto, à sua autoridade pública sobrepõe-se a soberania individual das partes (LEAL, 1938); trata-se de um mecanismo que possibilita “uma justiça rápida, perfeita e barata”, é, na verdade, “um remédio heróico” (CUNHA BARRETO, 1938); é o que possibilita a palavra viva em sobreposição à escrita morta, eis que “na palavra viva fala também o vulto, os olhos, a cor, o movimento, o tom da voz, o modo de dizer, e tantas outras pequenas circunstâncias, que modificam e desenvolvem o sentido das palavras e subministram tantos indícios a favor ou contra a própria afirmação delas. A mímica, a eloqüência do corpo, são 72
De igual sorte, os seus consectários princípios – imediação, concentração, identidade física do juiz e irrecorribilidade das decisões interlocutórias – são vistos como fundamentais (GUEDES, 2003). 73 Em estudo realizado especificamente sobre a aplicação da oralidade nos juizados especiais, Tereza Gaulia (2003) afirma: “O princípio da oralidade deve antes de privilegiar a palavra falada, assegurar o direito de fala do cidadão, e mais, assegurar sobremodo o dever de escuta de seu juiz natural.”. (grifou-se). A magistrada vê o princípio da oralidade – nos juizados - como o instrumento que sedimenta um DEVER de serventuários e juízes de ouvir o cidadão, tendo em vista que, a seu ver, o sistema especial da Lei 9.099 pretende permitir que o cidadão possa expressar “suas dores e mazelas comuns ao juiz.”.
mais verídicas do que as palavras [...].” (CHIOVENDA, 1938); a oralidade, afinal, “garante uma justiça intrinsecamente melhor; faz do juiz partícipe na causa e permite-lhe dominá-la melhor [...] assegura melhor a veridicidade e a sinceridade dos resultados da instrução [...]”. A escrita, ao revés, está costumeiramente atrelada à idéia de um instrumento que impede a efetivação da justiça. A escrita é representada no Direito como sendo a documentação do processo, estando, pois, reproduzida na frieza dos autos processuais 74, cujo registro é preto e branco. Por isso, dissera Morato (1938), “a escrita não faz palpitar o fato na sua humanidade, em sua expressão mais espontânea e pura, pois carece do colorido da voz, da manifestação da convicção íntima, do ardor do justo [...]”. (grifou-se) Cappelletti (1971; 1972), de igual sorte, ao definir as distinções básicas entre oralidade e escritura, trata aquela como sendo representada pela palavra, que é viva, destinando-se, no processo, à persuasão do juiz e a uma espontaneidade e simplicidade que o formalismo da escrita75-76 impede seja alcançado. Para ele, a escrita destina-se a cumprir uma exigência a ela intrínseca, de precisão e conservação77-78. As palavras voam, os escritos permanecem. Nesse sentido, a racionalidade da escrita contrasta com a vivacidade do oral79. 74
Os autos processuais são a representação física do processo. É o conjunto das peças do processo, correspondendo à sua efetiva materialização. Guedes (2003) menciona que os autos possuem “demais de um valor real, palpável e quantificável, outro imaterial, intangível e simbólico, um valor ‘sagrado’, que ultrapassa sua finalidade imediata e prática. Como representação gráfica do litígio, é cercado na sua formação por normas e formalidades [...]”. (arts. 166 a 171 do CPC). 75 Em muitas entrevistas que realizei durante a pesquisa, a questão da oralidade apareceu ligada à simplicidade. É muito comum atrelar essas categorias. Um Juiz que entrevistei formalmente, disse-me que: “A oralidade agiliza o processo e evita várias formalidades, próprias do processo escrito.”. 76 Mais adiante a questão do formalismo reaparecerá, entretanto, reputo relevante destacar, desde logo, que, mesmo a oralidade, quando aplicada no processo, é repleta de exigências formais, não sendo possível atrelar formalismo exclusivamente à escrita. Há toda uma “etiqueta” (EILBAUM, 2006) exigida pelo campo para que as manifestações orais sejam realizadas. Por exemplo, se um advogado, em uma sessão de julgamento no Tribunal de Justiça, desejar esclarecer para o Desembargador Relator do seu processo algum fato que tenha ficado obscuro, precisa pedir a palavra ao Presidente da Câmara, pronunciando, necessariamente, a expressão “Pela ordem, Sr. Presidente”. Relato isto porque, ao iniciar a carreira, sempre fui advertida de que deveria agir assim e, de fato, já vi, muitas vezes, advogados que não se atêm a essa norma serem repreendidos de forma veemente. 77 Comumente, no discurso dogmático, aponta-se uma vantagem da escrita sobre a oralidade: o fato de, por ser “registrada”, ser mais comprometida com a precisão. Com freqüência, aparece a idéia de que no procedimento escrito existe uma depuração técnica maior, tendo em vista tanto a característica da documentação, quanto o fato de que as partes analisam com mais cautela e reflexão as questões envolvidas na demanda quando podem ler e amadurecer aquilo que lêem. Diz-se que, com a escrita, os argumentos são mais substanciais. Laspro (1995), por exemplo, trabalha com detalhes a questão. No mesmo sentido, ver: GUEDES (2003). 78 No campo, essa questão também foi ventilada. Um magistrado que eu entrevistei contou-me: “Eu particularmente acho que quando você escreve é muito melhor porque você tem mais atenção e muito mais oportunidade de tecer detalhes daquilo que você está escrevendo. Você está parado escrevendo: vou falar isso, vou falar aquilo, você volta, refaz ... Na oralidade não, você às vezes esquece ou quando pensa, já falou. Mas, mesmo assim é importante existir a possibilidade de se manifestar oralmente no processo.”. 79 Cappelletti (1971) também insere em sua obra uma conotação social da oralidade que a doutrina de sua época não valorizava. Ele vê a oralidade como um instrumento de humanização do processo, tendo em vista as características a ela inerentes, tais como, a imediação; o contacto direto do juiz com as partes e as provas e o debate oral realizado em audiência.
Percebe-se uma alta carga de sensibilidade, nos juristas, ao estudarem esse princípio80-81. Toda a leitura doutrinária aponta – o que não é possível verificar na reflexão sobre outros institutos jurídicos – uma emotividade intensa, de forma que a aparente proximidade que o sistema oral proporciona entre o Judiciário e a sociedade faz nascer uma atmosfera que parece contagiar os operadores. Na prática, entretanto, ver-se-á: nem sempre é assim que o processo se materializa. A dogmática identifica o princípio da oralidade como um metaprincípio que se subdivide em outros três, assim como o faz a exposição de motivos do CPC: o da identidade física do juiz, o da concentração e o da irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Contudo - distintamente do que abarca a exposição de motivos do CPC - a “dogmática”, além destes, admite ainda a existência de um outro subprincípio fundamental, sem o qual a oralidade não se caracterizaria: o da imediatidade, que permite a aproximação do juiz com as partes e com as provas produzidas no processo, isto é, que garante a coleta direta da prova pelo juiz e, por conseguinte, a sua maior afinidade com a causa. Trata-se do mais representativo e característico princípio do sistema oral82. Nesse contexto, a oralidade, por conseguinte, só se configura, na visão dogmática: 1) se o juiz que colher as provas orais for o mesmo que julgar a causa (identidade física do juiz); 2) se os atos processuais forem concentrados em único momento, a fim de que o juiz preserveos em sua memória até o momento da prolação da decisão (concentração); 3) se o processo não for truncado por constantes interrupções advindas da interposição de recursos à instância 80
Tereza Gaulia ressalta que “[...] somente a partir desta nova fórmula, é que o Magistrado passará a estar mais próximo dos problemas sociais da comunidade em que atua, uma vez que conseguirá, através da multiplicidade de problemas e conflitos cotidianos da população, em primeiro lugar, vivenciar a alteridade, que os gabinetes e a própria estrutura corporativa do Judiciário impossibilitam, e, em segundo plano, reconhecer as aflitivas situações que se abatem sobre as pessoas comuns.”. Embora não seja, diretamente, o assunto que me propus a tratar, o final da manifestação da magistrada sugere uma idéia - de certa forma presente no campo do Direito - de que os juízes não são “pessoas comuns”. 81 No sistema oral, a sentença não nasce do estudo meticuloso e calculado dos autos, mas sim do diálogo franco e aberto entre o julgador, as partes e as testemunhas, de modo que o livre convencimento do magistrado apareça firmemente enraizado à situação concreta posta sob sua apreciação, e não decorra de alguma reflexão fria sobre “o que se disse que é a causa [...]”. Ver: REIS, Nazareno César Moreira. A oralidade nos Juizados Especiais Cíveis Federais . Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 373, 15 jul. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5439>. Acesso em: 29 nov. 2005. 82 Luís Machado Guimarães (1938) - em uma interpretação dogmática isolada - traça uma distinção conceitual interessante entre o “princípio da oralidade” e o “processo oral”. Ele vê o “princípio da oralidade” como um elemento integrante ou uma mera condição do chamado “processo oral”. A oralidade do processo é caracterizada como um princípio segundo o qual as manifestações e declarações que se fazem nos tribunais necessitam, para serem eficazes, ser formuladas oralmente. Já o “processo oral” se representa, a seu ver, como um conjunto de princípios (imediação; identidade física do juiz; concentração e irrecorribilidade das decisões judiciais), intimamente ligados entre si, e que, combinados com o da oralidade, constituem um sistema com características e vantagens próprias. Guedes (2003) chama a atenção para a existência de uma nova tendência doutrinária de conceituar a oralidade como “procedimento por audiências”, o que reforça o quão vinculados estão os temas: oralidade e audiência.
superior (irrecorribilidade das decisões interlocutórias); 4) se o juiz colher a prova oral pessoalmente, participando, de forma efetiva e direta da fase instrutória do processo (imediatidade). Diante de tais circunstâncias, analisarei o princípio da oralidade, no campo, como conexo e inseparável dos demais citados, buscando identificar de que forma todos eles (como se fossem um só), empiricamente, se concretizam no processo. Neste ensejo, adianto, desde logo – o que, aliás, já foi outrora colocado - que o princípio da oralidade, tal como visto pela dogmática, com efeito, só existe no “mundo dos manuais”. As práticas judiciárias que eu descreverei durante a dissertação sugerem que, por diversos fatores, a materialização desse ideal dogmático é irrealizável e, por conseguinte, a aplicação desses quatro subprincípios, uma ficção.83 Ainda quanto à definição do tema, merece enfoque aquilo que eu ressaltei mais acima, quando asseverei que não trataria a oralidade e a escritura como necessariamente opostas, mas sim como complementares. O Direito, hodiernamente, vê o processo civil como um procedimento misto - situado entre o oral e o escrito - entretanto, por muito tempo, confundiu-se essa idéia, entendendo-se que o procedimento oral, necessariamente, fulmina a escrita 84 e, portanto, internalizando-se a concepção de que, se o processo é oral não se pode escrever nada, assim como, se é escrito nada se pode falar. No momento em que se discutia a inserção do procedimento oral no processo civil, antes do Código de 1939, a doutrina se mobilizou para compreender o tema e a Revista Forense – uma das mais consagradas no ramo até os dias atuais – publicou um volume completo (v. 74), em 1938, com inúmeros artigos sobre a questão, todos escritos pelas mais diversificadas “autoridades” que, obviamente, detinham as mais diversas opiniões85. Um dos tópicos destacados como de grande repercussão e que circundou quase todos os artigos, foi, justamente, esse: a inocorrência de mútua anulação da oralidade pela escrita e desta por aquela. Morato (1938, p. 12) salientou oportunamente:
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CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (1997, p. 329) chamam a atenção para a inaplicabilidade desses princípios na prática judiciária: “[...] certos princípios, dados por infalíveis, não tiveram fortuna na prática: assim, a identidade física do juiz, a relativa irrecorribilidade das interlocutórias, a imprescindibilidade da audiência e debates orais.”. 84 Realizei entrevista formal com um Juiz Titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro que me disse, expressamente: “Reduzir a termo ou traduzir por vernáculo é incompatível com a oralidade.”. 85 O Direito sempre foi um campo de luta e oposições e, como tal, as manifestações dos diversos “saberes” que ele abarca são as mais contraditórias possíveis, vivendo em incessante concorrência (Bourdieu,1987).
“[...] o fato de admitir-se a audiência e a discussão oral das partes não implica que o procedimento seja oral, bem como o de se permitirem escrituras, não inculca que seja necessariamente escrito. Um procedimento se diz oral ou escrito segundo o modo por que nele atua a palavra falada ou a palavra escrita [...] predominar a palavra falada não exclui a escrita. Não há procedimento exclusivamente oral ou exclusivamente escrito. A predominância que dá o nome ao sistema [...]”.
Com efeito, a oralidade não exclui a escrita86, tanto que uma de suas vantagens destacadas é o registro de tudo o que é declarado verbalmente no curso do processo 87. É isso que, segundo a doutrina, auxilia a descoberta da verdade e o pronto julgamento da causa. A escrita não é totalmente substituída pela oralidade com a sua inserção no processo civil, é apenas a ela conjugada. (CAPPELLETTI, 1971, 1972; ESTELLITA, 1938; MENDONÇA, 1938; LEAL, 1938; CUNHA BARRETO, 1938). Outra questão relevante que não aparece no discurso jurídico, mas que as práticas a serem descritas mostrarão, é a que entrelaça o sistema escrito/oral ao modelo inquisitorial/acusatorial. Embora a dogmática não reconheça, o tema está, na verdade, intrinsecamente ligado à prevalência do contraditório nas relações processuais, independentemente da dicotomia inquisitivo/acusatório. O princípio do contraditório, que rege o processo brasileiro, é o maior empecilho para que o processo caminhe pela via do consenso. E isto não tem relação com o fato de o sistema ser escrito ou oral88 ou mesmo inquisitivo ou acusatório. Independentemente dos modelos e dos sistemas a serem observados, o que categoriza o processo como um instrumento de autoridade e não de consenso é a presença marcante do contraditório. A característica primordial do contraditório - prevalecente tanto no sistema escrito, quanto no oral - é o distanciamento que ele produz entre as partes, que caminham em linhas 86
Mario A. Oderigo, em “El lenguaje del proceso” (1961, p. 128) ressalta que: “(...) la unica diferencia [oralidade x escritura] es que los resultados de esas operaciones se registran en actas – escriturismo significa oralidad más escritura – mientras que en el oralista se confían enteramente a la memoria de los jueces”. (grifou-se) 87 Demercian (1999, p.107), nesse diapasão, destaca como negativa e “primitiva” a existência de um sistema oral puro, asseverando: “A complexidade das relações sociais já não permite a adoção daquilo que se convencionou equivocadamente denominar oralidade pura. Essa é uma característica de sociedades menos desenvolvidas, em que o método se justificava simplesmente pela ignorância da escrita e pelo hábito do povo de tratar os negócios jurídicos em assembléias públicas. Além disso, o procedimento oral [...] pressupõe, não a exclusão da escritura, mas sua restrição àqueles atos para os quais ela se mostrar absolutamente necessária. Não se pode objetar, portanto, que alguns atos – embora transmitidos pela palavra falada – possam ser reduzidos a termos ou protocolos na sua essencialidade.”. 88 Um exemplo claro de contraditório oral presente em um sistema tido como acusatório é o Tribunal do Júri, onde defesa e acusação se digladiam verbalmente durante longo período.
antagônicas sem, jamais, atingirem um fim comum, pois o que este mecanismo sustenta é, justamente, a sobreposição da tese de uma das partes em prol da outra, a partir da escolha da que for melhor, pela autoridade (Juiz). Enquanto o processo for estruturado com base no princípio do contraditório (que exige a interferência de um terceiro na relação processual, com poder de autoridade, para escolher a tese prevalecente), as próprias partes envolvidas no conflito não chegarão a consenso algum. O contraditório impede que as partes se reconheçam como meramente adversárias. Nesse sistema, as partes competem entre si, pois apenas uma vencerá ao final do processo. Se o processo brasileiro se estruturasse a partir de uma lógica meramente adversarial, conforme se verifica, por exemplo, no sistema da common law; as partes, embora adversárias, objetivariam um fim comum - qual seja, a solução do conflito - ainda que cada uma, no curso do processo, defendesse argumentações distintas. O fato é que, em sendo o processo sedimentado no contraditório, o fim comum desaparece, pois não haverá nunca uma possibilidade que atenda a todos. Além disso, existe um outro problema: o fato de o Direito Brasileiro não reconhecer o seu sistema processual como inquisitorial89, acreditando ser o seu modelo acusatório90 e reproduzindo a idéia errônea de que a Constituição da República brindou tal sistemática. A Constituição da República, de fato, não prevê, explicitamente, nem o modelo acusatório, nem o modelo inquisitivo. O que ela faz é preconizar, de forma expressa e literal, que o sistema processual está centrado no princípio do contraditório (art. 5º, inciso LV). Aí está a questão. Embora a dogmática não trabalhe o tema, o fato é que independentemente do modelo constitucional ser inquisitivo ou acusatório, ele é contraditório e, em sendo contraditório, afasta as partes e impede que o processo tenha um objetivo comum.
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A doutrina brasileira distingue três tipos de sistemas processuais: o acusatório, o inquisitivo e o misto. O acusatório se caracterizaria por ser público, contraditório, oportunizar a ampla defesa, e, primordialmente, distribuir as funções de acusar, defender e julgar a órgãos distintos. O sistema inquisitivo, por sua vez, seria sigiloso, não contraditório e reuniria na mesma pessoa ou órgão as funções de acusar, defender e julgar. Já o sistema misto possuiria uma fase inicial preliminar inquisitorial e uma segunda fase acusatória. O discurso jurídico brasileiro é uníssono, no sentido de reconhecer o sistema processual brasileiro como acusatório, sob os fundamentos, justamente, de que a fase investigatória preliminar não é obrigatória e não integra a instrução do processo (como se não houvesse fortes influências no processo de tudo aquilo que se produziu em sede policial) e de que não é o Juiz quem acusa. Para a dogmática, portanto, o fato de os papéis de quem acusa; de quem defende e de quem julga estarem claramente definidos no processo brasileiro, bem como o fato de que o juiz a quem incumbe apreciar as provas ser absolutamente imparcial é bastante suficiente para caracterizar o sistema como acusatorial. Demercian (1999, p. 27) ressalta que “No Brasil, respeitadas as judiciosas opiniões em sentido contrário, o processo tem estrutura acusatória e a previsão de uma fase investigatória preliminar não lhe retira essa conotação.”. 90 Entende-se que “em nosso país, principalmente depois da promulgação da Constituição da República de 1988 (que revogou os chamados procedimentos judicialiformes) adota-se um processo de estrutura acusatória.”. (DEMERCIAN, 1999, p. 23)
É certo, também, que os rituais judiciários explicitam, claramente, a permanência e a preponderância de práticas oriundas do modelo inquisitorial no sistema processual vigente, no entanto, neste momento, a discussão não deve se manter nessa clausura. O que interessa expor é que o processo se sustenta no contraditório e ainda que os intérpretes da Constituição queiram enxergar um modelo acusatório no nosso sistema processual, ele não está previsto e os rituais não o legitimam. Antes de dar continuidade a essa relação entre escrito/oral e inquisitivo/acusatório, a mim compete fazer mais um adendo. O estudo do processo civil – a que me propus realizar neste trabalho - não abarca essa problemática e não compartilha essa sistematização. Na doutrina vinculada a matérias cíveis, não se vê o estudo e a categorização de sistemas processuais como sendo inquisitivos, acusatórios ou mistos. A doutrina “civilista” encarrega os “penalistas” de tal categorização 91. Por uma questão até mesmo histórica, atrelou-se ao estudo do Direito Penal – e exclusivamente a ele – as discussões a respeito do tema inquisitivo/acusatório. O fato é que, obviamente, essa divisão não merece prevalecer, porque o Direito Processual Civil é fruto do mesmo sistema que o Direito Processual Penal e não há como estudá-los de forma compartimentada. Embora ambos se desenvolvam de forma distinta, as suas raízes estão fincadas no mesmo “lugar”, de maneira que existem, também em matérias cíveis, aspectos que nos fazem lembrar a estrutura inquisitiva do processo, malgrado no campo inexista essa preocupação e esse reconhecimento. As descrições do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, as suas práticas e os seus rituais nos fazem lembrar o processo atual. Como dito, as características se aproximam mais diretamente do processo penal do que do civil, mas este também acabou por absorver as lógicas e ambigüidades do sistema judicial como um todo. As similitudes estão mais presas ao processo penal e isso, de fato, fica mais patente na análise de suas práticas; o que não anula, de jeito algum, a presença de resquícios inquisitoriais também no processo civil92. 91
O Professor Roberto Kant de Lima sempre me chamou a atenção para o fato de que – nesse particular - o sistema jurídico brasileiro é um só, de forma que as influências históricas, culturais e sociológicas que sofreu não possuem segmentação. Assim, quando eu tentava me enquadrar como interessada ou como envolvida exclusivamente com o Direito Civil e, portanto, desinteressada em assuntos do Direito Penal, ele sempre salientava que isso era uma separação disciplinar ou curricular que o campo do Direito fazia, mas que, certamente, a estrutura dos sistemas era comum e as suas origens, de igual sorte, não eram setoriais. Com o tempo, verifiquei que, de fato, segmentar dificulta a explicitação desses sistemas, de maneira que eu tinha de estar aberta à percepção da lógica criminal para compreender e reconhecer melhor a lógica que regia o sistema no qual eu estava diretamente interessada. 92 Garapon (1997, p. 255) destaca que nos processos criminais os rituais são mais intensos do que nos processos civis, que, segundo ele, não “arrastam multidões”, o que se relaciona ao fato de que no processo criminal a
Retornando ao foco, vale registrar que a forma como o processo é conduzido – se escrito ou oral e, por conseguinte, se inquisitorial ou acusatorial - tem extrema relação com a verdade jurídica que nele se forma. A verdade processual deriva de um “caminho particular” (GARAPON, 2003). Se o processo é oral, a verdade é produzida de determinada forma; se é escrito, o consenso tende a perder espaço para o arbítrio; bastando lembrar, nesse contexto, que é bastante significativo o fato de o processo inquisitivo ser sigiloso e escrito; e o acusatório, oral e público. Os métodos inquisitivo, acusatório e adversário se relacionam, portanto, de forma distinta com a produção da verdade jurídica. Todos têm o mesmo ideal de verdade, porém a forma de atingi-lo se materializa diversamente. O sistema inquisitivo está ligado à produção de uma verdade transcendental, a eclodir “milagrosamente”, já no acusatório a verdade surge de versões adversárias (GARAPON, 2003). A questão do consenso, vale dizer, não se faz presente nesse contexto, pois nem no modelo inquisitivo, nem no modelo acusatório, o mesmo se perfaz. O consenso está vinculado ao método adversarial de administração de conflitos, tal como se infere no sistema da common law. No caso do Brasil - e, na verdade, de todos os países que adotaram a tradição da civil law - seja acusatório, seja inquisitivo, o sistema processual não visa ao consenso, uma vez que o contraditório é o método que se impõe e, além disso, a verdade que se quer construir transcende às partes. Retomando o ponto inicial, registre-se que o sistema inquisitório advém dos procedimentos eclesiásticos como uma forma de possibilitar acesso à justiça aos pobres, aos fracos e oprimidos, o que ocorre em uma sociedade nitidamente representada como marcada por hierarquias e desigualdades substantivas. O sistema acusatório, por outro lado, remete a uma representação igualitária dos contendores, que se defrontam em uma arena de acusações que são públicas. A igualdade das partes é algo que se supõe e que é inerente ao sistema acusatório. (KANT DE LIMA, 1992). Nesse sentido, identificar o sistema processual brasileiro com as práticas acusatoriais é por demais ingênuo. O sistema inquisitório, de toda forma, possui elementos que não podem ser repelidos, tanto assim que foi, nos séculos XIII a XVIII, uma garantia de justiça e liberdade. Quando o homem de condição humilde estava exposto às arbitrariedades dos fortes, ricos e poderosos, não lhe era fácil comparecer ante às justiças senhoriais para acusar sem constrangimento e sem temor. O Direito Canônico, opondo ao procedimento acusatorial o procedimento ameaça direta “paira sobre os interesses morais da sociedade”; o que não ocorre no processo civil.
inquisitório, foi o protetor da fraqueza perseguida e o adversário da força tirânica (MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, 1959). O que, aliás, tem profunda relação com a função compensatória do Estado 93, presente no nosso sistema até os dias atuais, cuja figura do Ministério Público atua em nome dos hipossuficientes, mesmo que eles não queiram e ainda que eles não saibam. 94-95 Kant de Lima (2004-a, p. 53), nesse sentido, destaca com propriedade: “A tradição jurídica brasileira justificava esses procedimentos como próprios de sociedades onde a desigualdade substantiva entre as partes era explícita, pois não era desejável manchar a reputação de homens de honra que podiam ser injustamente acusados, nem se desejava expor os despossuídos à ira de poderosos acusadores. O Estado, então, compensava essa desigualdade, assumindo a iniciativa da descoberta da verdade e avaliando a oportunidade de tornar a denúncia pública (Mendes de Almeida Jr., 1920). Aqui, é evidente a produção de um ethos de suspeição sistemática motivado pelo desejo de evitar ou abafar a explicitação de conflitos, ou de punir aqueles que neles se envolvem, prejudicando a harmonia de uma sociedade de desiguais complementares, onde cada um tem o seu lugar. Para mais uma vez demonstrar a força desta tradição inquisitorial, note-se que ela permanece vigente juridicamente, mesmo depois da Constituição de 1988, que estipulou que todos os processos administrativos ou judiciais deveriam incorporar o princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5, LV). No caso do inquérito policial, que permanecia inquisitorial por ser um mero processo administrativo, reafirmou-se seu caráter inquisitorial, enfatizando-se seu caráter de procedimento, e não de processo propriamente dito (Silva Jardim, 2001, pp. 27 e 41 - 47). Com esta argumentação jurídica, é possível mantê-lo inquisitorial, em um sistema constitucional acusatorial.”.
Os processos inquisitivos são vistos - no sistema judicial brasileiro e nos de outras sociedades desiguais e hierarquicamente estruturadas - como a melhor forma de estabelecer a verdade. Nesses sistemas de produção da verdade jurídica, existe uma valorização positiva explícita do conhecimento obtido de forma particular e não 93
Kant de Lima destaca (2004-a, p. 51) que: “[...] a função compensatória do Estado, portanto, é vista como uma literal compensação da desigualdade na administração dos conflitos em público e não como uma promoção da igualdade para que as partes administrem seus conflitos em público.”. 94 No mesmo sentido, sendo que especificamente sobre o papel e a atuação do Ministério Público no processo de produção da identidade “quilombola” da Marambaia, ver: MOTA, Fábio Reis. O Estado contra o Estado: direitos, poder e conflitos no processo de produção da identidade "quilombola" da Marambaia. In: KANT DE LIMA, Roberto (Org.). Antropologia e Direitos Humanos. 1. ed. Niterói: EdUFF, 2001, v. 3, p. 133-183. 95 Sobre o tema, mormente, a questão da desigualdade, ver: AMORIM, Maria Stella de; KANT DE LIMA, Roberto; MENDES, Regina Lúcia Teixeira (Org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
universalmente disponível na sociedade: quem pergunta sempre sabe mais do que quem responde e é a partir deste saber que provém a autoridade do discurso. Derivam daí, também, regimes retóricos diferentes dos de argumentação, voltados sempre para o consenso: aqui, no inquisitivo, predomina a oposição escolástica de teses contrárias em que só ganha aquele que tem o saber de maior autoridade e em que as teses, necessariamente, se desqualificam e se anulam. Só um pode ganhar. (KANT DE LIMA, 2005). O diálogo e o consenso não são, em hipótese alguma, estimulados em nossa sociedade até hoje e o processo judiciário brasileiro incorpora essa lógica tutelar, de cunho inquisitorial. Nesse contexto, a oralidade, que, para mim, poderia ser um instrumento facilitador da produção de uma verdade jurídica consensual - e, conseqüentemente, legítima - ou é afastada e substituída pela escrita ou é expropriada pelo Estado e retirada das partes, que, no fundo, não tem qualquer participação no processo, como adiante tentarei demonstrar 96. E, ratificando o que fora anteriormente salientado, a meu ver, tudo isso se verifica, especialmente, em função da prevalência do contraditório nas relações processuais. Uma das principais características do sistema inquisitivo é a investigação prévia, que permite ao acusador, preliminarmente - antes da acusação formal - conhecer as peculiaridades do delito e o seu autor. Desta forma, o sistema inquisitivo exige uma confirmação da verdade, ao passo que o acusatório, a sua elaboração, tendo em vista que a verdade vai sendo negociada, construída, em conjunto pelas partes. (GARAPON, 2003; KANT DE LIMA, 2005). A forma como o processo é conduzido favorece a confirmação de uma verdade previamente construída (inquisitivo), ao invés da elaboração de versões verossímeis sobre o ocorrido (acusatório). (KANT DE LIMA, 2005) Citando Tomás y Valiente, a Professora Lana Lage descreve que “[...] à margem de qualquer declaração de princípios, o funcionamento do processo inquisitorial parece
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Um Juiz que eu tive a oportunidade de entrevistar durante a pesquisa esclareceu-me isso muito bem, relatando: “Eu já presenciei isso. A audiência começar extremamente pesada; as partes, na minha presença e dos advogados, se debatendo entre elas, brigando, e 1 hora depois reatarem a amizade, fazerem um acordo e esquecerem aquilo tudo. Ou seja, elas só estavam querendo uma oportunidade de se encontrar em um ambiente como esse, para conversar e fazer um acordo, para se acertar. Mas e aí? O Judiciário é para isso? É também, mas aí você tem que administrar o seu tempo. Tem que trabalhar com a realidade. Nós não temos esse tempo. As pessoas se utilizam muito do Judiciário para ter esse momento com a outra parte, quando na verdade a audiência não tem esse fim, ela é para solucionar problemas jurídicos, não pessoais.”. (Juiz Titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro).
dirigir-se a comprovar uma espécie de tácita presunção de culpabilidade daquele contra quem existam indícios de conduta delituosa.”. (LIMA, 1999, p. 17). Lana Lage descreve em seus estudos que a autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, o Inquisidor, acumulava as funções de investigador e juiz, e que encerrava em suas mãos, conseqüentemente, um enorme poder (LIMA, 1999). Nesse sentido, os trabalhos sobre o processo inquisitorial têm ressaltado, outrossim, que o arbítrio do juiz era muito mais amplo nesta justiça – inquisitorial - do que em outras, devido, mormente, ao grande número de questões subjetivas, não resolvidas normativamente ou tratadas de forma ambígua pela legislação, cuja resolução quedava, exclusivamente, nas mãos do Inquisidor, que tudo decidia. (LIMA, 1999). Mais uma vez, impossível não recorrer ao que – até hoje - vivenciamos com a legislação brasileira. Esclareci no Capítulo I, justamente, que a enormidade de questões subjetivas e ambíguas, presentes na legislação, fazem com que o Juiz tenha que interpretar como vai aplicar as normas e, muitas vezes, até mesmo, o que, efetivamente, elas significam ou querem dizer. Isso faz surgir as correntes doutrinárias e, assim, se forma o saber jurídico e assim, também, se conduz o processo judicial, em que, dependendo do Juiz, a sentença é favorável; dependendo, não o é. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002, p. 36), em seu estudo sobre os insultos morais que não são categorizados como direitos legítimos, menciona que a validez e a legitimidade de uma decisão judicial não pode ser confundida com um discurso de lógica, nem pode depender das eventuais características (ou qualidades) excepcionais do julgador, devendo ser, na verdade, fruto de um processo dialógico onde as especificidades do conflito têm de ser adequadamente aclaradas e compreendidas por todos os envolvidos e a decisão, por sua vez, produto de um compromisso de imparcialidade. De fato, não é assim que o sistema judicial brasileiro se consubstancia, de forma que os aspectos inquisitoriais são aflorados e perceptíveis mediante os seus rituais. Ao Inquisidor era atribuída não só a interpretação das normas, mas a faculdade de não cumpri-las quando entendesse conveniente. Lana Lage descreve que os Inquisidores procediam nas causas “como lhes parecer justiça”. (LIMA, 1999, p. 18). Eram comuns “expressões abstratas, não literais, que não possuem significado exato e objetivo e, por conseguinte, conferem poderes ilimitados ao inquisidor”. (LIMA, 1999, p. 18). Lana Lage (1999, p. 19) descreve, ainda, que “ter a pena atenuada dependia de fatores subjetivos interpretados pelo inquisidor.”.
Além da amplitude do arbítrio do Inquisidor, o segredo 97 – advindo da impossibilidade de ter acesso aos autos do processo e da inviabilidade de os acusados saberem qual era a acusação que pesava sobre eles e quem a havia procedido (denunciante) – e a escrita, são destacados como as outras duas importantes características do processo inquisitorial, cujos resquícios, sem dúvida, verificamos nos processos dos dias atuais. A comunicação era evitada e dificultada ao máximo. A confissão também aparece como característica fulcral do sistema inquisitorial. A confissão era uma forma de demonstrar arrependimento e, por conseguinte, obter-se o perdão sagrado. No entanto, apesar disso, sempre se desconfiava muito da confissão nesse sistema. A confissão era utilizada como um meio de escapar de acusações maiores, pois, como as acusações não eram conhecidas, tudo era sigiloso, procurava-se confessar infrações menores para escapar de acusações mais sérias. (KANT DE LIMA, 2004-a) No nosso sistema processual vigente, vale dizer que a confissão não tem o mesmo privilégio ou destaque no processo civil e no penal. No processo civil, a confissão não é tão enfatizada porque, na verdade, o que se discute são questões patrimoniais de interesse exclusivo das partes envolvidas na lide e não crimes; melhor dizendo, as causas estão mais atreladas a questões econômicas do que à liberdade e à vida. Isso faz, creio eu, uma diferença grande na representação do “sagrado” 98. A presença religiosa é bastante influente também no processo civil, no entanto não tanto como no penal. No processo penal sim, a confissão ainda é muito valorizada, o que tem influência histórica, como se verifica a respeito do que se descreve sobre os Tribunais da Inquisição, onde “os delitos são também pecados e o julgamento das causas é influenciado diretamente pelo grau de arrependimento demonstrado pelo réu.” (LIMA, 1999, p. 19). Além disso, conceder perdão é também um ato de poder que demonstra a submissão de quem o pede e a autoridade de quem o concede. Nesse sentido, a confissão era uma prática estimulada não só pela questão sagrada, mas também pelo fato de ser um ato que ratificava o poder dos inquisidores. 97
Hodiernamente, ainda se discute sobre o sigilo do inquérito policial, mesmo para o advogado do acusado. Trata-se de um rasgo inquisitorial presente no processo brasileiro, que, apesar disso, é tido como acusatorial. Há inúmeras decisões judiciais nesse sentido. A título de exemplo, ver matéria publicada, recentemente, em 19/12/2006, na Revista Consultor Jurídico, sobre o tema. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/51233,1. 98 Não procedi à pesquisa na Justiça de Família, onde o processo civil também se aplica, entretanto, pode ser que lá – como se discutem questões ligadas à instituição familiar, também sacralizada na nossa cultura – apareçam mais enfatizadas essas características, advindas da relação com a moral, assim como ocorre no processo penal.
Quanto ao poder e o papel dos Inquisidores, convém restabelecer o tema. Parece-me, assim como as demais questões até então explicitadas, que este tópico possui extrema correlação com o que se apresenta no processo atual. Os inúmeros requisitos exigidos para ser um Inquisidor sugeriam que se desejava, para o cargo, à época, figuras com pouca influência humana e com muita caracterização divina. Além de condições morais, demandavam-se tantas qualidades que lhes faziam parecer seres, de fato, únicos e “especiais” (LIMA, 1999). O inquisidor tinha de ser um “funcionário modelo, um profissional com conhecimentos específicos adequados à sua função, que deveria comportar-se de maneira impessoal no exercício de seus deveres e ater-se ao âmbito de seus direitos [...] mais do que um funcionário graduado do tribunal, o inquisidor era um representante da justiça divina”. (LIMA, 1999, p. 21). O comportamento dos Inquisidores era alvo de “cuidados detalhados”. Eles deveriam proceder em tudo de “maneira que dêem de si bom exemplo; tratando-se com a decência conveniente ao seu estado.” (LIMA, 1999, p. 20). Eles deveriam dar sempre “mostras de prudência, letras e virtude”, bem como deveriam ser pessoas “de tal procedimento e de tanta autoridade, que com ela possam bem corresponder ao muito que deles confiamos”. (LIMA, 1999, p. 21). Desnecessário, nesse contexto, citar um a um dos requisitos exigidos pelo Tribunal do Santo Ofício para que se preenchesse o cargo de Inquisidor; mas, na minha opinião, o que convém ressaltar, para fins de reflexão, é o quão semelhantes são aos que, até hoje, se espera ou se deseja de um Juiz 99. Não quero dizer com isso que os juízes atuais são inquisidores, pois seria um julgamento universalizante que não me compete fazer. Todavia, considero relevante destacar nesta pesquisa o quão notória é a influência desse período no processo atual. A origem do sistema judicial que vemos hoje tem parte de suas raízes fincada nessa época e esta descrição merece ser feita, mormente porque o meu intuito é explicitar o sistema para, expondo-o, ajudar a compreendê-lo melhor e tentar, com isso, vislumbrar possíveis caminhos para o seu aprimoramento. Além de tais questões, a influência desses sistemas (inquisitivo e acusatório 100) na construção da verdade processual merece algumas considerações, como destaquei acima.
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Dentre outras características, a LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) exige do Juiz, como dever, uma conduta irrepreensível em sua vida pública e em sua vida particular. 100 Detalhes sobre os sistemas acusatório e inquisitório, ver: MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, 1959.
João Mendes de Almeida Júnior (1959) destaca as distinções entre os sistemas inquisitivo e acusatório e o faz de forma bastante minuciosa. Nota-se, em sua leitura, que o nosso sistema, por mais que não se queira reconhecer, é inquisitório. A busca da verdade não conta com a participação da parte, tendo o juiz o papel fundamental de desvendá-la através do seu livre convencimento. Inexiste debate efetivamente livre, oral e público. Quanto à publicidade, inclusive, vale ressaltar que ela é vista como vinculada ao princípio da oralidade, na medida em que permite o acesso popular à audiência e o suposto controle social dos atos do judiciário (GUEDES, 2003). Entretanto, a questão é que, na verdade, na prática, as pessoas não entendem absolutamente nada do que vêem no Judiciário porque os seus rituais e a sua linguagem são muito próprios e exclusivos do campo, não alcançando os cidadãos, de modo que dizer, meramente, na legislação e na dogmática, que o processo brasileiro é público não significa que a sua concretização o seja. Como já ressaltei outrora, o Direito é um campo fechado. No processo escrito, com efeito, a atuação das partes e do juiz se restringe à clausura de salas e gabinetes, mas na verdade, no processo oral, mesmo havendo a suposta publicidade, o alcance das partes também não se efetiva. No que tange à verdade, saliente-se que: “[...] os processos inquisitório e acusatório mostram uma relação diferente com a verdade. Num caso, parte-se do princípio de que a verdade existe e acede-se directamente à mesma por via da ascese intelectual e da probidade de um homem; no outro, uma argumentação mais cerrada deve excluir a dúvida e escolher aquilo que se lhe afigura mais verossímil [...] A diferença entre a Verdade transcendente e o verossímil vai deslocar o centro de gravidade do processo para o inquérito ou para a audiência [...] o imaginário inquisitório é tudo saber; o imaginário acusatório é não saber, visto contentar-se sem dificuldade com uma verdade convencional [...] estas diferentes abordagens da verdade alteram a função da audiência: num caso, a verdade clama por confirmação; no outro, por elaboração.”. (GARAPON, 2003, p. 164, 166).
Como no processo inquisitorial a verdade é monopólio do estado, os fatos são dados e construídos pelo Estado – representado pelo Juiz – e não pelas partes. O processo não se constitui por pontos de vista parciais da realidade, mas por uma verdade objetiva, que advirá do convencimento do juiz. Os fatos não são fruto de um diálogo entre as partes, mas são impostos e definidos pelo juiz, que centraliza em suas mãos o curso processual. É aí que a verdade e a oralidade se inter-relacionam. Se a oralidade fosse efetivada, a
verdade seria objeto de construção em audiência. Em sendo escrito o processo, a verdade advém do discurso (autoridade) do Juiz, externado na sentença que ele profere em seu gabinete, sem a participação dos envolvidos. Garapon e Papadopoulos (2003) destacam que a marca da Igreja Católica e da sua influência no processo dos países de cultura civil law 101 é o que dá essa idéia de que fora do Estado não há salvação e, portanto, a verdade tem de ser monopólio do Estado. Traçando a influência da religião católica nesses sistemas, trabalham com o modo de produção de verdade transcendental, advindo da sacralização da lei nessas culturas. Nos países do commom law a lei não possui características divinas. Ela representa um pacto social, o qual os cidadãos, pelo consenso, avalizam. Na civil law, o magistrado é o ministro da verdade; é o oráculo do direito, contribuindo com isso a existência e a possibilidade do livre convencimento 102. A verdade na civil law surge de uma intuição; da impressão geral do juiz. Na common law ela é uma construção realizada pelas partes que, abdicando das suas verdades, produzem uma outra que lhes satisfaça, consensualmente. Na civil law a verdade é absoluta e necessita ser desvendada. Na common law ela não é absoluta, ela se relativiza, conforme decidam as partes. “Num caso [common law], o juiz é um proferidor do direito; no outro [civil law], um ministro da verdade, um intercessor junto do sagrado.”. (GARAPON, 1997, p. 161). Nesse diapasão, é importante realçar que, doravante, a questão da verdade aparecerá bastante atrelada à oralidade processual e será o que delineará a descrição das práticas, a ser feita nos capítulos posteriores. Enfim, diante de tudo o que se explicitou, depreende-se que a palavra falada significa, portanto, no Direito, a via que possibilita a comunicação, sendo que a escrita, simplesmente, representa uma forma de documentação. Destarte, a oralidade é tida como um instrumento mais maleável, pela possibilidade do debate; e a escrita – por ser fixa ao papel - como um meio rígido, imutável e inflexível de se administrar o conflito. 101
Em síntese, o sistema jurídico conhecido como civil law representa-se através de códigos e leis que regulam as relações jurídicas. Ou seja, nessas culturas, a legislação é a principal fonte do Direito. Na commom law o sistema jurídico não privilegia a codificação, sustentando-se em regras sociais e costumeiras, sendo a jurisprudência, ou melhor, os precedentes, a fonte primária do Direito. O Brasil faz parte da cultura da civil law, sendo os Estados Unidos da América o país mais representativo da cultura da common law, que é característica dos países anglosaxões. Sobre o tema, ver: MERRYMAN, John Henry. The Civil Law Tradition. Stanford University Press. Stanford, Califórnia, 1969. 102 A unicidade da verdade é muito distinta nos sistemas da common e da civil law, em especial, em se tratando do livre convencimento, como destacam Garapon e Papadopoulos (2003, p. 134): “(...) no fundo, a sua preocupação [da common law] não é chegar à única e incontestável verdade, se necessário através de atalhos cômodos como a “íntima convicção” que reduzem, em um dado momento, a avaliação concreta e a ponderação de dois interesses antagônicos em jogo.”.
No entanto, vale dizer que, mesmo diante dessa categorização aparentemente negativa do procedimento escrito, os dados empíricos desta pesquisa – como se verá adiante apontarão a prevalência da escrita à oralidade no que tange ao processo civil brasileiro. Assim como consta na exposição de motivos do CPC, também parte da dogmática reconhece esta supremacia da escrita, ressaltando-se, nesse diapasão, o entendimento de MARINONI (2005, p. 671) ao asseverar que “[...] ao contrário do que se observa em relação ao processo comum ordinário – em que se prega a oralidade como princípio, mas a prática demonstra exatamente o inverso, ou seja, que o processo é estritamente escrito [...]”; e o de CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (1997, p. 329), no sentido de que: “O Código de Processo Civil unitário de 1939 proclamou solenemente, na Exposição de Motivos, a adoção do procedimento oral. Mas é forçoso reconhecer que hoje é raro o procedimento oral, em sua forma pura [...] o foro brasileiro não se adaptou de todo ao sistema oral. O insucesso da experiência, no campo do processo civil, redundou na revisão da posição adotada pelo legislador de 1939, por parte do Código de 1973, que atenuou sobremaneira o princípio da oralidade (arts. 132, 330 e 522).”.
5. A oralidade no contexto jurisprudencial A pesquisa jurisprudencial que realizei a respeito da manifestação do princípio da oralidade no processo civil brasileiro, curiosamente, revelou que, nas decisões, a oralidade está sempre atrelada, de forma exclusiva, ao princípio da identidade física do juiz, segundo o qual – conforme adrede asseverado - o mesmo magistrado que colhe a prova oral deve prolatar a sentença (art. 132 do CPC). Na concepção jurisprudencial vê-se, portanto, que a oralidade ganha um novo significado, mais limitado do que aquele reconhecido pela dogmática. A fim de demarcar o foco imediato do trabalho - Varas e Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - procedi à pesquisa da jurisprudência específica desse Tribunal103. Ao lançar o tema “oralidade” no campo de consulta à jurisprudência relativa ao processo civil, localizei 16 (dezesseis) decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, das quais 12 (doze) tratam da vinculação deste princípio – oralidade – exclusivamente ao princípio da identidade física do juiz104. Cuida-se de processos que envolvem, basicamente, 103
Disponível em: www.tj.rj.gov.br (consulta de jurisprudência TJERJ). Sobre o tema, ver: VIEIRA, André Côrtes. Breves considerações sobre o art. 132 do CPC e os conflitos negativos de competência. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5100. 104
conflitos negativos de competência e para que se compreenda o tema, terei de traçar algumas de suas características. O conflito negativo de competência está previsto nos artigos 115 ao 124 do CPC. Ele se configura quando dois ou mais juízes se declaram incompetentes para proferir sentença em um processo. Quer dizer, quando dois magistrados entendem que não devem julgar uma causa, cabe ao Tribunal de Justiça decidir qual deles será competente para proferir a decisão. É muito comum a caracterização desse conflito entre juízes titulares e substitutos. Quando o juiz titular de uma determinada vara cível se ausenta, ele é substituído por um outro que permanece em seu lugar até o seu retorno. Enquanto o substituto permanece, realiza todas as atividades que cabem, precipuamente, ao titular, inclusive, presidir audiências e colher provas orais. O art. 132 do CPC consagra o princípio da identidade física, que, por sua vez, é correlato ao da oralidade, dispondo: “O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.”. Ocorre que – como é costumeiro no Direito – a redação desta norma também comporta interpretações diferenciadas. A confusão se instaura em dois sentidos: 1) sobre o significado da expressão “concluir a audiência”; 2) sobre o significado do termo “afastado por qualquer motivo”, que configura uma das possíveis hipóteses de relativização da aplicação do princípio da identidade física do juiz. Quanto à representação do termo “concluir a audiência”, alguns julgadores entendem que para que o juiz se vincule ao processo e tenha a obrigação de prolatar a sentença é preciso não apenas que presida a audiência de instrução, mas que colha, pessoalmente, a prova oral nela produzida, encerrando definitivamente a fase instrutória. Outros, porém, interpretam ser prescindível a coleta da prova oral para que o juiz se vincule ao processo, bastando, para isso, que presida a audiência e encerre a instrução processual, ainda que nenhuma prova seja produzida neste ato. O duelo se instaura porque, em geral, nem os juízes substitutos, nem os juízes titulares, querem julgar os processos nos quais perpasse esta discussão. Os substitutos afirmam que quando não colhem diretamente a prova oral, não têm o contacto imediato com as partes e com as provas e, por conseguinte, não devem julgá-la, invocando, como argumentação, a própria idéia de oralidade categorizada pela dogmática jurídica.
Os juízes titulares, de igual sorte, defendem que, quando o juiz substituto preside a audiência, mesmo que não colha pessoalmente as provas orais, de alguma forma, tem imediação com as partes e, portanto, somente ele detém condição de prolatar uma sentença que atenda aos efetivos interesses das mesmas, evocando, também, o ideário de oralidade imposto pela doutrina, no sentido de que aquele que tem algum contacto físico com as partes possui melhores condições de decidir do que aquele que apenas lê o que consta registrado nos autos processuais. Destarte, as interpretações variam e possibilitam decisões contrastantes, sendo que todas com base no mesmo argumento: o de que o princípio da oralidade, por estar atrelado ao da identidade física, exige a imediação entre o juiz e as partes e entre ele e as provas. No que atine ao outro ponto, isto é, ao sentido do termo “afastado por qualquer motivo”, previsto no art. 132, vale fazer algumas pontuações. Por se tratar de expressão de conteúdo abrangente, há alguns julgadores que entendem (por estarem atrelados à antiga redação do dispositivo legal, que previa a hipótese da transferência) que a mesma abarca o instituto da remoção 105 e há outros que, distintamente, não decidem nesse sentido. Exemplificando: há quem interprete que a remoção do juiz para outra vara cível – ainda que da mesma Comarca - se insere na exceção contida no termo “afastamento por qualquer motivo”. Em sendo assim, nos casos em que o juiz substituto preside a audiência de instrução, colhe a prova oral, mas, depois, é removido para outra vara cível, ele não se vincula ao processo, cabendo ao titular, em seu retorno, prolatar a sentença. Entretanto, outros julgadores crêem que a norma processual inserta no art. 132 quer fazer prevalecer a oralidade e o seu consectário princípio da identidade física, de modo que a sua interpretação deve ser restritiva (no caso, literal), ou seja, a remoção do juiz substituto que preside a instrução - para a mesma ou para outra comarca - não caracteriza afastamento e, portanto, juízes removidos devem continuar vinculados aos processos e, por conseguinte, têm competência para julgá-los. O tema da oralidade vincula-se, pois, na jurisprudência, diretamente a esta discussão, uma vez que, tal como é também reconhecido pela dogmática, o princípio da oralidade se configura, justamente, quando o mesmo juiz que colhe a prova prolata a decisão. E por que assim se dá? Porque, segundo esta visão, o juiz que tem contacto com as partes e com as provas tem, necessariamente, melhores condições de formar a sua convicção do que o juiz que simplesmente lê o que consta, por escrito, no processo. Toda a dinâmica da audiência e as
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O instituto da remoção está previsto no art. 172 do Codjerj.
impressões pessoais – fulcrais no entendimento doutrinário – se perdem se o juiz simplesmente lê os autos processuais. Então, nesse sentido – malgrado haja decisões contraditórias - vale dizer que praticamente toda a jurisprudência que trata do tema da oralidade, na verdade, discute a questão do conflito negativo de competência entre juízes. A conseqüência mais visível dessa polêmica é a seguinte: em geral, suscita o conflito negativo de competência aquele juiz que recebe os autos para julgar e entende não ser competente. Nestes casos, é mais fácil reverter eventuais prejuízos às partes, pois, antes da prolação da sentença, o processo é encaminhado ao tribunal para que este decida quem deverá julgá-lo. Decidida a controvérsia, o juiz declarado competente proferirá a sentença. Entretanto, há casos em que os prejuízos para as partes são bastante significativos, pois a repercussão da polêmica se dá em momento posterior à prolação da decisão. Por exemplo, às vezes, o juiz que recebe a causa para julgar, entende que é competente e profere, de imediato, a sentença, sem levantar quaisquer problemáticas. Nesses casos, o outro juiz, a quem poderia competir julgar o processo, sequer toma conhecimento do fato e tudo, aparentemente, se define. No entanto, ao tomar ciência do conteúdo da decisão, vendo que lhe é desfavorável - ou por qualquer outra razão - o advogado que estiver com ela insatisfeito pode requerer, em grau recursal, a sua nulidade, com fulcro na suposta incompetência do juiz que a proferiu. Isto é, a própria Lei permite que, diante das circunstâncias concretas do caso, um ou outro advogado que não concorde com a decisão final do processo, atrase o andamento da causa, suscitando a incompetência do magistrado, mesmo depois de prolatada a sentença, o que causa imenso transtorno às partes, uma vez que, depois de decidido o processo, estando ele em 2ª instância, ainda assim, dependendo do entendimento do tribunal, poderá o seu curso retroceder para que nova decisão seja tomada, por um outro juiz106. Colocadas estas características – necessárias à compreensão sobre o tema delineado nas decisões do Tribunal de Justiça – vê-se, logo, que, com efeito, a jurisprudência acolhe parte do entendimento dogmático, ratificando-o quando os tribunais são instados a sobre ele se manifestar, entretanto, as decisões apontam que o conceito de oralidade, nesses casos, limita-
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Um parêntesis merece ser feito. Em geral, nesse contexto delineado, a jurisprudência aponta casos que decorrem de conflitos negativos de competência, pois os juízes querem se desvincular do processo sem ter de julgá-lo. Mas existe também o “conflito positivo de competência”, que se verifica quando dois ou mais juízes entendem que são competentes para julgar a mesma causa (art. 115 do CPC).
-se ao subprincípio da identidade física, não abarcando os demais subprincípios, reconhecidos pela dogmática. A categoria oralidade, portanto, encontra limites na jurisprudência que, mesmo reconhecendo os preceitos dogmáticos, na empiria, acaba tratando - como o exemplo demonstra – a oralidade como mero sinônimo de identidade física do juiz, desconsiderando as suas demais representações, presentes tanto na lei como na doutrina. 6. A oralidade “em campo” Nas entrevistas realizadas com juízes e advogados, pretendi verificar qual seria a representação do conceito de oralidade no campo. A impressão que a teoria causa sobre a aplicação da oralidade no processo não corresponde à percepção empírica que se tem da representação desse princípio. É muito curioso o que ocorre quando comparamos o discurso dogmático com o empírico porque na dogmática – como se viu - a oralidade tem uma conotação imensamente positiva, ela é romanceada pelos doutrinadores, ao passo que no discurso dos operadores, que lidam com a oralidade em seu cotidiano – e aqui se verifica isso muito mais no discurso dos juízes do que no dos advogados - ela é opostamente vista com uma conotação negativa. É tida como algo que atrapalha o bom andamento do processo e que não tem destinação, de fato, útil. No discurso dos advogados entrevistados ainda se vislumbram resquícios positivos da oralidade. O conceito de oralidade, para eles, vincula-se à realização dos atos processuais, em audiência ou em julgamentos, na forma não escrita. A oralidade é, para esses operadores, “a prática dos atos processuais previstos no CPC, sendo que de forma não escrita.”; estando “representada por toda e qualquer ‘palavra’ dita verbalmente em audiência ou em sustentações realizadas nos tribunais”; significando “a instrumentalização dos atos processuais, mediante o uso da palavra oral, preferencialmente, sem a sua redução a termo nos autos.”. Aparece, igualmente, com bastante freqüência, atrelada ao aspecto da imediação e da celeridade processuais, destacando-se nos discursos a idéia de que: “a oralidade é o instrumento que objetiva dar maior celeridade ao processo, pois as partes, ao invés de apresentarem defesa escrita, apresentam-na oralmente”; “trata-se de um mecanismo célere na condução da lide, por parte do julgador”; sendo certo que “o conceito de oralidade significa a introdução de fases no processo em que se privilegie o contacto direto do juiz com as partes”, bem como “a minimização das burocracias”.
Nesse contexto, a oralidade é vista, portanto, pelos advogados, como o instrumento que viabiliza a rapidez do trâmite dos processos e que permite o contacto físico e direto entre o juiz e as partes, evitando a burocracia107-108. No discurso dos magistrados, por sua vez, o que se verifica não é uma representação vantajosa do tema. O conceito de oralidade, na visão dos juízes que entrevistei, possui uma vinculação direta com o tema da prova109. A oralidade é vista, pelos Juízes, simplesmente como um meio de prova a ser produzido no processo, na fase de instrução, isto é, em audiência. Todavia, como um meio de prova que atrapalha o curso do processo, que dificulta a “distribuição da justiça” e que, ao final, impede que realizem um bom trabalho. A questão da oralidade apareceu, outrossim, em alguns discursos, como estando representada pelo contacto físico entre juiz e partes, conforme asseverou um Juiz Titular de uma Vara Cível do Rio de Janeiro: “A oralidade nada mais é do que a ocasião em que os advogados e as partes podem de alguma forma informar ao juiz o que efetivamente pretendem. É uma forma até que o juiz tem de ter a impressão e conhecer até melhor os meandros do processo porque às vezes o advogado não consegue retratar ou pelo menos você não consegue entender exatamente qual é ou quais são os pontos controvertidos da questão. Ela é a verbalização das partes e dos advogados durante o processo.”.
De igual sorte, com menos ênfase, porém também destacada, a oralidade é definida como um instrumento que empresta informalidade e simplicidade ao processo, como ressaltou uma Juíza que tive a oportunidade de entrevistar: “O princípio da oralidade é o da formalidade mínima. O mínimo de escrita e o máximo que se possa fazer para agilizar o processo, o juiz tem que fazer.”.
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A vinculação do processo escrito à burocracia aparece também na dogmática. Entende-se a oralidade como um instrumento que permite a minimização dos atos burocráticos e, conseqüentemente, a celeridade na solução da controvérsia (MARINONI, ARENHART; 2005). Sobre a desburocratização do processo, ver: CARDOSO, Antonio Pessoa. Processo sem autos: oralidade no processo. Curitiba, Juruá, 2002. 108 A problemática da burocracia – tida como inerente aos processos escritos - aparece, também, nas entrevistas realizadas com os juízes, destacando-se o seguinte trecho de uma que me foi concedida por um Juiz titular de uma das Varas Cíveis da Comarca do Rio de Janeiro: “O sistema é burocrático, tem muito papel. Foi feito para burocratizar tudo. Mesmo quando você quer fazer coisas para simplificar, às vezes não consegue. Por mais que você tente, você não consegue só com boa vontade. Eu já cheguei a essa conclusão há muito tempo, você não consegue um resultado melhor só com a sua vontade pessoal.”. 109 Esta representação assimila a idéia constante na exposição de motivos do atual Código de Processo Civil que, como mencionei no início deste capítulo, mitiga a oralidade, tornando-a prevalecente apenas em audiências onde seja necessária a produção de prova oral.
Entretanto, observa-se que, apesar dessas outras concepções, isto surge como questões secundárias. O ponto de destaque levantado pelos Juízes é que a oralidade é, de fato, “uma forma de prova que atende aos princípios da ampla defesa e do contraditório.” (Discurso de um Juiz de Vara Cível que entrevistei formalmente durante a pesquisa), como apontam alguns trechos de entrevistas que realizei; a seguir transcritos. “Eu entendo a oralidade como sendo a própria produção da prova oral. Ela é a aproximação do juiz com a parte, do juiz com a testemunha ... mas, eu tenho uma visão um pouco restrita da oralidade. Para mim, oralidade é colheita de provas. O contacto da parte com o Juiz numa audiência de conciliação apenas, para mim, não retrata um aspecto da oralidade.”. (Juiz titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro) “A oralidade, vulgarmente, consiste no fato de dentro do procedimento, seja sumário ou ordinário, você ter uma determinada fase onde eventualmente há necessidade de você fazer uma certa audiência formal de instrução e que exige que eventualmente alguém compareça em juízo para prestar depoimento e que configura essa relação direta, esse contacto formal do juiz com as testemunhas e com as partes quando prestam depoimento pessoal. Aí está a oralidade.”. (Juiz titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
A oralidade não pode, portanto, diante do que verifiquei em campo, ser categorizada como uma forma necessariamente consensual de construção da verdade jurídica. Até porque, ora ela aparece atrelada a um possível mecanismo de diálogo, ora surge como fruto do contraditório, presente e sedimentado nas relações processuais. Assim, conforme se infere das entrevistas, a importância da oralidade como instrumento que possibilita a construção de uma verdade consensual no processo não foi cogitada. Fala-se em simplicidade; em informalidade; em celeridade; enfim, em diversos pontos, mas não se menciona a questão da relevância do diálogo na administração dos conflitos judiciais e tampouco, a importância da oralidade como uma via que possibilitaria esse percurso consensual. Certamente, no curso deste trabalho, retornarei, mais vezes, a essa problemática. O discurso dos juízes – assim como se verificou na dogmática – também aponta uma preponderância empírica da escrita no processo civil, em prejuízo do sistema oral. O princípio da oralidade é visto pelos Juízes como um entrave ao bom andamento dos processos em curso nas varas cíveis. Os motivos pelos quais os Juízes destacam os aspectos negativos da oralidade
estarão mais presentes no capítulo seguinte, onde trabalharei as práticas judiciárias inerentes aos processos em 1ª instância, entretanto, é um dado irrefutável o fato de que os Juízes de Varas Cíveis não a valorizam. Nesse diapasão: “Eu acho que, na prática, nem precisaria de oralidade. Em vara cível. Digo pelas varas cíveis. Isso se resumiria à fase de audiência. Como eu vou ficar fazendo uma petição inicial oral, contestação oral, uma réplica oral? Não tem cabimento, entendeu? Não sei a que se resumiria isso. Qual seria o benefício disso em Vara Cível? Tem tantas outras coisas que a gente pode fazer para diminuir o volume, para diminuir o tempo de processamento, sabe? A nossa lei permite um monte de recursos que não deveriam existir. Nossa, a gente espirra e dá uma decisão de qualquer besteira, vem agravo, agravo, agravo ... O processo fica um monstro por causa de todos os incidentes que vão acontecendo [...] até porque também, a nossa natureza está arraigada de provas, documentos, papéis [...] e também não é só isso ... é que é uma prova não muito útil mesmo. A prova oral não é muito útil. Você perde tempo, 1h ou 1h e meia e não vem a contribuição que você quer”. (Entrevista formal concedida por uma Juíza de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro) “Eu sei que há autores que defendem uma maior oralidade nos processos. Eu confesso a você que eu penso de forma diferente. Para mim, a oralidade é só nos casos estritamente necessários porque a oralidade ela acaba sendo um entrave para o normal prosseguimento dos processos. Não vejo a oralidade como algo necessário. Aliás, acho que pode ser até prejudicial”. (Entrevista formal concedida por um Juiz titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro) “Toda a rotina do Direito Brasileiro é baseada nos documentos e nas peças escritas. Não adianta. Essa rotina vem do Direito Português, é uma tradição, ao contrário do common law. É difícil você fazer um profissional do Direito sair de sua rotina. Então, o princípio da oralidade é consagrado, mas não tem aplicabilidade por causa dessa rotina, dessa tradição”. (Entrevista formal concedida por um Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). “Eu acho que é um princípio válido, que tem os seus benefícios, só que eu acho que no nosso sistema processual, principalmente estando em uma Vara Cível, ele mais atrapalha do que ajuda. No processo civil mesmo, regido pelo Código, ele é um princípio que não funciona. Nós temos uma tradição de Direito escrito. É um princípio muito bem intencionado, mas acho que na prática ele não funciona”.
(Entrevista formal concedida por uma Juíza de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
7. Oralidade: a mesma proposição, porém distintas representações A partir dos tópicos deste capítulo, tentei demonstrar as distintas representações da oralidade no Direito. Para tanto, utilizei-me da lei; da doutrina; da jurisprudência e do discurso dos operadores. O “campo” foi o que me proporcionou dimensionar melhor a oralidade como categoria que possui inúmeros significados dentro do próprio Direito, significados estes que demandam explicitações. Os dados coletados durante a pesquisa demonstram – como adiante se verá mais detalhadamente - que a oralidade se apresenta de diferentes formas no processo e que, por conseguinte, esta categoria jurídica requer sejam feitas algumas especificações que, por sua vez, nem a Lei, nem a doutrina, nem a jurisprudência sobre o tema destacam; o que, aliás, reforça a necessidade de se pesquisar os institutos jurídicos conjugando-os à empiria, sob pena de não serem compreendidos por completo. Há percepções que só o campo aponta. Cabe salientar que, apesar de as entrevistas realizadas com juízes e advogados, num primeiro momento, não apresentarem uma distinção exata entre as diversas categorizações da oralidade processual, no momento em que se investigam os rituais e as práticas judiciárias, tais representações variadas aparecem e o discurso, destacando as práticas, também as reconhece. Excetuando-se as práticas judiciárias, especificamente, o que pretendi foi mostrar que nas distintas manifestações jurídicas – lei, doutrina, jurisprudência e discurso dos operadores – a oralidade não se representa da mesma forma. Tem-se, mais ou menos, a mesma idéia sobre o seu conceito, mas em cada um desses “subcampos” do Direito, ela tem uma significação especial. Quanto às práticas em si, vale dizer que o campo salienta que as representações também se distinguem. Uma modalidade de oralidade no Direito Brasileiro é a que acontece na 1ª instância e se caracteriza, basicamente, pela mera presença das partes, dos advogados e das testemunhas diante do Juiz, como ocorre nas audiências, onde a oralidade é reconhecida mesmo quando as partes e testemunhas – presentes fisicamente – não têm a oportunidade de falar.
A oralidade, na 1ª instância, é, pois, materializada através das audiências. Vale dizer que a presença física das partes, do juiz, das testemunhas ou dos advogados, por si só, não a define, tendo em vista que, muitas vezes, estão desvinculadas. Há muitos atos processuais que exigem apenas a presença das partes, estando estas na audiência e o juiz não (audiências conciliatórias). Há momentos em que o juiz está com os advogados na audiência e as partes não (audiência do art. 331). Há atos em que apenas as testemunhas estão presentes, sem os advogados e sem as partes (audiências específicas para a oitiva de testemunhas, quando realizadas, por exemplo, por via de carta precatória). E, mesmo assim, em todos esses casos, a oralidade se caracteriza, independentemente da presença simultânea de todos os “atores” do processo. Destarte, não é necessariamente a presença de todos, entretanto, mais especificamente a realização da audiência, em si, que conforma a materialização da oralidade no processo110. Outra modalidade de oralidade é caracterizada na 2ª instância e se manifesta apenas internamente no âmbito do julgamento, ou seja, entre os operadores integrantes do cenário: os advogados das partes e os desembargadores. Nesta modalidade de oralidade, os desembargadores111, por força de lei, permitem que os advogados das partes usem a palavra oral para
defendê-las, desde
que
se atenham ao
trato
da questão
em
causa
e às
técnicas processuais a ela pertinentes, não havendo qualquer participação pessoal das partes, sendo a presença delas dispensada nesta fase. Vale dizer que na 1ª instância, a oralidade se estabelece como um princípio, de cunho processual, alçado à categoria de garantia das partes a um processo justo, sub-representado por quatro outros princípios (imediatidade; identidade física do juiz; concentração e irrecorribilidade das decisões interlocutórias). Já na 2ª instância, esses princípios não se materializam porque, como dito – e conforme será melhor explicitado adiante – a única manifestação oral nos tribunais é internalizada pelos operadores do campo: advogados que sustentam as razões recursais e desembargadores que “debatem”, em algumas ocasiões, a matéria objeto do julgamento. Nesse sentido, a oralidade, pareceu-me, ter uma conotação – em 110
Chiovenda (1938, p. 177) explicita “[...] dizer processo oral é designar a ‘audiência’ como o campo de ação das partes e do juiz [...] dizer oralidade é quase o mesmo que dizer concentração.”. Gonçalves de Oliveira (1938, p. 93) destaca que o processo civil, por ser misto, tem uma base escrita e uma oral, sendo esta materializada na audiência. De igual sorte, Cunha Barreto (1938) e Antonio Pessoa Cardoso (2002) ressaltam, respectivamente, “oralidade e concentração são a mesma coisa” e “oralidade significa concentração”. A concentração é, justamente, o subprincípio configurador da oralidade que consiste na realização da audiência. A concentração se configura por “colocar o juiz em contacto com as partes, testemunhas, peritos, não como se processa no regime da escrita, onde este contacto existe de modo inexpressivo [...] é um contacto real, no qual o juiz colhe, com sua experiência, sangue frio, bom senso e agudeza de observação, a emotividade dos gestos e das palavras, podendo aquilatar sua sinceridade.” (CUNHA BARRETO, 1938, p. 202). 111 São denominados desembargadores os magistrados que atuam no Tribunal de Justiça do Estado.
sede recursal – de garantia das partes à ampla defesa, um princípio constitucionalmente assegurado (art. 5º, LV). Ela é representada como o instrumento que possibilita a defesa oral da parte no Tribunal e nada mais. Essas distintas categorizações não são explicitadas na dogmática, tampouco na lei e na jurisprudência; sendo possível percebê-las, apenas, através do campo. Como visto, a lei e a doutrina tratam a oralidade como o meta princípio do qual os quatro outros subprincípios se derivam. Por outro lado, a jurisprudência limita o conceito de oralidade a um único princípio: o da identidade física do juiz. Já o “campo” permite uma melhor visualização do tema, entretanto, também aponta que a oralidade possui, mesmo na prática, conforme a instância, diferentes conformações. Na verdade, todas as categorizações, de alguma forma, estão influenciadas pela definição principal da dogmática no sentido de que oralidade é: concentração; imediatidade; identidade física e irrecorribilidade. No entanto, isso aparece de diferentes modos e com distintas intensificações. Em campo, percebi que a extrema distinção e quase incompatibilidade existente entre as distintas lógicas que se mesclam na 1ª e na 2ª instâncias – como se verá através da descrição dos rituais judiciários - também não são fruto de estudo pela dogmática e tampouco são reconhecidos pelo campo jurídico. Um dos juízes que entrevistei, asseverou que: “O enfoque tem que ser um só, você não pode fazer um enfoque de 1ª e de 2ª instância. Não se pode partir do princípio de que algumas coisas funcionam em 1ª instância e em 2ª não. Você não pode pensar coisas distintas de acordo com a instância em que o processo está. O princípio da oralidade é um só e vale para as duas instâncias do processo; vale para os dois.”. (Entrevista formal realizada com um Juiz titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
Em razão disso e pelo fato de eu ter optado por realizar trabalho de campo, doravante, abordarei essas duas manifestações essenciais do princípio da oralidade no processo civil – ou seja, a sua concretização nas 1ª e 2ª instâncias - acoplando-as à questão da construção da verdade jurídica. O fato de a oralidade ter materializações diversas de acordo com a instância em que o processo tramita é muito significativo para a formação da verdade jurídica, sendo certo que este – como já asseverei - será o meu foco principal na dissertação. Por exemplo, em relação às lógicas que regem o processo oral da 1ª instância (imediação, identidade física do juiz, concentração e irrecorribilidade das decisões
interlocutórias), o processo de 2ª instância pode ser configurado como sendo escrito, pois o que foi oral na 1ª fase torna-se escrito para o desembargador que vai ler os autos na 2ª instância. Entretanto, a sistemática da 2ª instância recebe outra representação que – embora distinta – também é considerada como oral. As distintas lógicas produzidas em cada um desses graus de jurisdição levam à variadas formas de se construir a verdade e é, justamente, a repercussão disso no sistema processual que eu pretendo explicitar daqui para frente, mediante a abordagem das práticas e dos rituais judiciários. Creio que para chegar à descrição de como essas “lógicas” se constroem no curso do processo, foi imprescindível contextualizar a oralidade, conceituando-a, tal como tentei proceder até aqui. Impõe ressaltar que, o descompasso entre o que a dogmática idealiza e o que se verifica na prática – mencionado na capítulo I e aqui ratificado – perpassará todo o trabalho que, por estar voltado para a descrição das práticas judiciárias, não têm como se desprender da inefetividade do ideal contido na lei, que tem muito mais uma expressão simbólica do que uma aplicação real. A distorção entre a rigidez do direito dogmático e a flexibilidade de sua prática será a seguir apontada (GARAPON, 1997). Ver-se-á que a nossa cultura jurídica, com efeito, representa a coexistência de um “direito formal pouco aplicado e de um direito consuetudinário nunca formulado”. (GARAPON, 1997, p. 179). A teoria e a prática são como retas reversas, que, por estarem em planos distintos, nunca se encontrarão, nem mesmo no infinito, como as paralelas. Nota-se um conflito interno do campo, existente entre a dogmática e a empiria. Aquela dignifica a oralidade e esta a desprestigia; a despreza. Nesse sentido, o conceito de oralidade idealizado pelo Direito dogmático - e que eu procurei descrever neste segundo capítulo - não se efetivará na prática, como apontarão os rituais a serem posteriormente descritos, bem assim como demonstrei através das entrevistas destacadas acima, ressaltando-se, nesse ponto, a concepção de dois magistrados que entrevistei em “campo”, cujas manifestações, por fim, merecem destaque. “Eu só acho que no nosso sistema jurídico, com a quantidade de recursos que a gente tem e com a quantidade de incidentes que a gente tem, principalmente em varas cíveis, a oralidade fica bastante reduzida, bastante reduzida mesmo. O que o juiz pode fazer para que ela se materialize mais é em sede de audiência, mas é praticamente nulo o princípio da oralidade no processo civil, em varas cíveis. A gente não utiliza ele mesmo, você, certamente, vai ver isso na sua pesquisa. E eu acho muito difícil que
venha a se implantar em vara cível o princípio da oralidade de forma mais intensa, pelo menos acho que nos próximos 20 anos isso realmente não vai acontecer”. (Juíza titular de Vara Cível da Comarca da Capital) “Um juiz hoje não pode se dar ao luxo de ficar fazendo as audiências porque as partes querem, ou ouvir todo mundo porque as pessoas querem falar. Não pode. Não pode. Ele pode dar uma bela sentença escrita. Ele pode ser uma pessoa excepcional; dar uma bela decisão. Mas se ele não tem pulso, se ele deixa que coisas inúteis se produzam no processo, ele, no fundo, está prejudicando a distribuição da justiça.”. (Juiz em exercício em Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
CAPÍTULO III: RETRATANDO O CURSO INICIAL DO PROCESSO: A 1ª INSTÂNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO 1. A estrutura da 1ª instância processual do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro A Corregedoria-Geral da Justiça é o órgão responsável pelo planejamento, supervisão, coordenação, orientação e fiscalização das atividades administrativas e funcionais da 1ª instância do Poder Judiciário Estadual, estando, portanto, todas as suas atribuições e disposições legais previstas na Consolidação Normativa da Corregedoria (Resolução n o 1/2000), que funciona, comparativamente, para a 1ª instância processual como funciona o Regimento Interno do Tribunal de Justiça para a 2ª instância processual. Na Capital do Rio de Janeiro existem 50 (cinqüenta) Juízes de Direito com competência exclusiva para Varas Cíveis112, sendo certo que os processos dessa competência são distribuídos de forma eletrônica e por sorteio a uma das 50 (cinqüenta) Varas. Cada Vara Cível possui um Juiz Titular, podendo haver em sua estrutura também um Juiz auxiliar. As 50 Varas Cíveis da Comarca da Capital situam-se no 2º e no 3º pavimentos do prédio do Tribunal de Justiça, conhecido como “fórum central”113. Cada Vara Cível possui - além do Juiz Titular e do eventual Juiz auxiliar - um funcionário que exerce a função de chefia, a que se denomina “escrivão” (também chamado de “titular da serventia”); bem como um imediato a este na hierarquia, chamado “responsável pelo expediente” e um número variável de funcionários que auxiliam nas atribuições e na organização da Vara. Há, outrossim, os oficiais de justiça, que são os funcionários responsáveis pela comunicação dos atos processuais. Eles não fazem parte de uma Vara Cível específica, pois ficam, todos, lotados em um central, denominada “central de mandados”, para onde são encaminhadas e distribuídas as ordens para cumprimento de comunicações oficiais de atos
112
Previsão do art. 94 do Codjerj, com redação dada pela Lei Estadual no 3.432/2000. 113 O estudo limita-se ao foro central do Rio de Janeiro, conforme asseverado oportunamente. Vale dizer que há, ainda, Varas Cíveis Regionais, que também fazem parte da Comarca do Rio de Janeiro, mas se situam em bairros específicos. A Capital divide-se em regiões administrativas. Nesse sentido, a fim de descentralizar a competência do foro central e facilitar o acesso ao Judiciário, criaram-se os foros regionais, que funcionam como se fossem “sucursais” do foro central. São eles: Santa Cruz, Campo Grande, Bangu, Ilha do Governador, Jacarepaguá, Madureira, Méier, Barra da Tijuca, Pavuna e Leopoldina. Em todos eles há Varas Cíveis.
judiciais, como, por exemplo, intimações de partes e testemunhas para comparecimento em audiência. Os escrivães e os oficiais de justiça são auxiliares da justiça, estando suas atribuições previstas, literal e respectivamente, nos artigos 141 e 143 do CPC. Os conciliadores e os juízes leigos também fazem parte da estrutura de uma Vara Cível do Rio de Janeiro, embora não ocupem cargos públicos na qualidade de funcionários do Poder Judiciário Estadual. As suas atribuições encontram-se previstas na Lei Estadual n o 4.578, de 12/07/2005. Eles são nomeados pelo Presidente do Tribunal de Justiça e exercem as suas funções no período máximo de 2 (dois) anos. Os conciliadores são designados para função não remunerada e sem vínculo profissional com o Estado, no entanto, os juízes leigos recebem bolsa no exercício da atividade e são recrutados, exclusivamente, entre os alunos da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Basicamente, tanto os juízes leigos quanto os conciliadores presidem as audiências de conciliação ou as audiências preliminares e, embora não haja determinação legal para tanto, em algumas Varas, também presidem as audiências de procedimento sumário, o que se descreverá adiante. Todos os funcionários das serventias judiciais cíveis exercem suas funções mediante a supervisão do Juiz Titular da serventia. A estrutura das Varas Cíveis é compartilhada entre o gabinete do Juiz; a sala de audiências e o cartório. No gabinete ficam: o Juiz Titular; eventualmente o auxiliar; e os (as) secretários (as). Há Juízes Titulares que possuem mais de um (a) secretário (a), entretanto, a maioria, na Capital, possui apenas um (a). Os secretários exercem funções delegadas pelos Juízes, tais como, despachar 114 processos; organizar a agenda de audiências; receber advogados; esclarecer eventuais dúvidas dos funcionários do cartório; fazer relatório de sentenças; muitas vezes, inclusive, proferir sentenças. Um Juiz que entrevistei informalmente, disse-me, certa ocasião: “Aqui, se assina muito. Boa parte da função de um Juiz resume-se a assinar aquilo que os seus secretários preparam.”. 114
A palavra “despachar” possui distintos significados. No campo do Direito é um jargão utilizado quando se quer dizer que o Juiz vai analisar os autos processuais e proferir alguma decisão para dar impulso ao processo ou sobre eventual requerimento realizado pelos advogados das partes. O art. 162 do CPC define os atos do Juiz e conceitua o termo “despacho” no §3º.
Na sala de audiências são realizadas todas as audiências, tanto as presididas pelo Juiz, quanto as que o são pelos (as) conciliadores (as) ou juízes leigos. As Varas Cíveis, normalmente, destinam dias específicos para audiências com conciliadores e/ou juízes leigos. Aos Juízes cabe presidir as audiências de instrução e julgamento, onde são colhidos depoimentos de partes, testemunhas e peritos. Estas, em geral, são realizadas uma vez por semana. Tanto os cartórios onde, fisicamente, situam-se as Varas Cíveis, quanto as salas de audiências, possuem uma estrutura bastante simples, sem suntuosidades e sem que seja marcada, de forma tão aparente, a distância entre os que são e os que não são integrantes do campo, como ocorre, por exemplo, nos Tribunais Recursais, conforme se verá nos capítulos seguintes115. As salas de audiências são simples, assim como as de quaisquer repartições públicas, e têm pouco espaço físico. A estrutura varia de uma Vara Cível para outra, mas a maioria segue o mesmo padrão. O Juiz (ou o conciliador ou o juiz leigo, dependendo do ato) e seu (a) secretário (a) tomam assento em uma mesa central, espaçosa, que fica, geralmente, em frente à porta de entrada da sala de audiências, na qual há um computador, para uso do (a) secretário (a), que digita as atas das audiências, nos termos determinados e ditados pelo magistrado. A posição do Juiz é central, sendo claro, para todos que entram na sala, que aquele é o Magistrado, uma vez que há, sempre, uma forma de distingui-lo e de destacar a sua posição. Há distintas características que marcam a superioridade do magistrado, patente nesses espaços. Por exemplo: o fato de a sua mesa estar situada em um patamar superior às demais, numa espécie de tablado; o fato de o encosto de sua cadeira ser substancialmente mais alto do que os demais; a sua vestimenta (toga); o fato de o crucifixo que enfeita a sala de audiências posicionar-se exatamente acima de sua cabeça; e, ainda, a presença de um (a) secretário (a) que o auxilia. Nos Tribunais Recursais, tais marcas são mais intensamente verificadas, como se verá a seguir, entretanto, nas Varas Cíveis também existem essas características de distinção. É certo que na área cível, em 1ª instância processual, nem sempre as Varas se estruturam dessa forma. Embora não seja a regra, é possível ver algumas salas de audiências 115
Vale dizer que descrevo, especificamente, os rituais e os espaços das Varas Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Há outros órgãos de 1ª instância desse mesmo Tribunal, como, por exemplo, os Tribunais do Júri, que destoam sobremaneira do que explicito neste trabalho. Assim como acredito haver órgãos que compõem os Tribunais de outros Estados, pode ser, até mesmo, Varas Cíveis, que se estruturem de forma absolutamente distinta da que me propus a pesquisar. Os Tribunais do Júri do Rio de Janeiro são espaços que se aproximam mais dos órgãos recursais do que daqueles de 1ª instancia processual.
onde, por exemplo, a mesa do Juiz não fica em patamar superior; em que a sua vestimenta não se diferencia; e em que não há crucifixos. Esses espaços são, de fato, sacralizados (GARAPON, 1997), mas é nítida a diferença entre a representação disso na 1ª instância processual daquela inferida nas instâncias recursais. A 1ª instância – em termos de estrutura física – parece muito mais uma repartição pública comum do que um templo da Justiça, como os Tribunais do Júri e os Recursais. As partes e seus respectivos advogados ficam na mesma mesa, uns de frente para os outros, sendo que o Réu ao lado esquerdo do Juiz e o Autor ao lado direito.116 O formato das mesas (do Juiz e das partes e advogados) é como o de uma letra “T”, onde o magistrado, ocupando posição central, situa-se na linha horizontal do “T” e as partes e advogados, na linha vertical. Na mesa das partes e advogados a disposição é a seguinte: mais próximo ao Juiz ficam os advogados, um de frente para o outro, e as partes, igualmente, cada qual ao lado de seu patrono. Normalmente, em 1ª instância, não se exige vestimenta específica para partes ou testemunhas comparecerem às audiências. Os Juízes, nem sempre, mas muitas vezes, usam a toga. E, quanto aos advogados e estagiários de Direito, há a obrigatoriedade de trajarem roupa social, quando mulheres, ou terno e gravata, quando homens. Há, inclusive, magistrados que não recebem advogados ou estagiários, mesmo fora de ocasiões formais, se não estiverem vestidos de tal maneira. Os cartórios das Varas Cíveis são repartições públicas que respeitam os padrões normais de um espaço como esses, não se destoando por integrarem o Poder Judiciário. Geralmente, possuem pouco espaço físico, onde se amontoam os cerca de 5.000 mil processos em curso (média do acervo das Varas Cíveis do Rio de Janeiro) 117 e onde se formam filas para atendimento de partes, advogados, peritos e interessados em examinar os autos de um processo.
116
O fato de o Réu sentar-se ao lado esquerdo do Juiz, em um primeiro momento, remeteu-me ao próprio significado da palavra “esquerdo”. O esquerdo é o contrário do direito, ou seja, o esquerdo é o torto. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, esquerdo é, dentre outros sentidos, “desajeitado, desastrado, desagradável, incômodo”. A representação do esquerdo e a vinculação do assento do Réu a este espaço me remetem, necessariamente, à idéia de que, de plano, o Réu é visto, juridicamente, a partir de uma conotação desviada. Entretanto, não posso deixar de registrar – e o motivo pelo qual isso ocorre ainda é desconhecido para mim – que, na Justiça do Trabalho, quem senta ao lado esquerdo do Juiz é o Reclamante, o Autor da Reclamação. Saliento esse dado como um ponto de mera reflexão, ainda não investigado, porém, para mim, de interessante destaque. 117 Estatística detalhada disponível no site da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio de Janeiro: http://www.tj.rj.gov.br/cgj/servicos/50vcc.html.
Vale dizer que os processos são públicos, sendo possível que qualquer pessoa a eles tenha acesso, salvo, em casos excepcionais, quando haja previsão expressa de que tramitem sob segredo de justiça (art. 155 do CPC). Aos advogados é permitido, inclusive, extrair fotocópias dos autos processuais, mesmo quando não representem, oficialmente, a parte interessada (art. 7º do Estatuto da Advocacia – Lei no 8.906/94). Aos não-advogados é proibido o empréstimo de autos processuais para a extração de fotocópias, havendo algumas serventias que disponibilizam funcionários para acompanharem a pessoa, a fim de permitir tal acesso. Ocorre que tal norma não está instituída, variando conforme a Vara Cível. Assim, a possibilidade de cidadãos comuns terem efetivo acesso a cópias de processos depende, sempre, do entendimento pessoal de cada Juiz. De forma resumida, esta é a estrutura da Justiça Estadual de 1ª instância e este é, pois, o meu objeto de investigação. 2. Processualizando as práticas Para descrever as práticas judiciárias em 1ª instância processual é importante, outrossim, traçar o caminho do processo nesse grau de jurisdição e, a partir daí, explicitar de que forma a oralidade se materializa e, nesse mesmo contexto, de que forma a verdade se constrói. O processo cujo trâmite pretendo descrever, consoante já esclareci, é o processo civil, aplicado às Varas Cíveis da Comarca do Rio de Janeiro. O processo civil está sedimentado no Código de Processo Civil (CPC - Lei n o 5.869/73), que, por sua vez, se divide em quatro livros básicos, que regulam: o processo de conhecimento (Livro I); a execução (Livro II); o processo cautelar (Livro III) e os procedimentos especiais (Livro IV). Segundo a estrutura do CPC, o processo de conhecimento (Livro I) abarca a fase postulatória, a fase instrutória e a fase decisória do processo. Isto é, ele se inicia com o ajuizamento da ação judicial e se encerra com a prolação da sentença pelo Juiz.118
118
Ressalto, mais uma vez, que não procedo a um estudo aprofundado das questões processuais, de modo que, em algumas ocasiões, para não comprometer o entendimento da pesquisa, deixo de observar os rigores dogmáticos. No caso, por força de Lei recentemente promulgada e vigente desde junho de 2006, que alterou o CPC (Lei no 11.232/2005), a execução não é mais reconhecida como autônoma ao processo de conhecimento, dele fazendo parte integrante. A nova Lei definiu a execução como fase do processo de conhecimento, ulterior à sentença. Desta forma, não se pode mais afirmar, processualmente, que o processo de conhecimento se esgota com a sentença, embora, o próprio CPC continue adotando a divisão em livros exatamente conforme se dava antes da alteração substancial introduzida no processo civil em razão da Lei no 11.232/2005.
O processo de conhecimento se destina a promover a aplicação do Direito ao caso concreto que é submetido à apreciação pelo Judiciário. Por isso, ele engloba a postulação do Direito pela parte (fase postulatória); a produção das provas que objetivam comprovar a existência do Direito (fase instrutória); e a sentença, onde o Juiz define a quem o Direito se aplica e de que forma (fase decisória). A execução (Livro II) é uma fase posterior à sentença, que se destina a garantir o cumprimento da decisão, nos exatos termos em que foi prolatada 119-120. O Livro III e o Livro IV tratam, respectivamente, dos processos cautelares e dos procedimentos especiais. Este capítulo abrangerá apenas o Livro I do Código de Processo Civil (arts. 1º ao 565). Isto é, para os fins aos quais me proponho faz-se suficiente traçar o curso do processo de conhecimento, não a execução, os processos cautelares e os procedimentos especiais. E por quê? Porque é no Livro I do CPC (onde estão previstos os procedimentos inerentes ao processo de conhecimento) que se encontram as normas mais representativas da oralidade. Para descrever as práticas judiciárias orais, penso que o mais interessante é destacá-las a partir dos procedimentos comuns, aplicáveis a todas as causas, até porque, caso eu explicitasse detalhadamente os quatro Livros do código a partir da análise de todos os seus procedimentos, este trabalho acabaria por constituir um “Manual de Processo Civil”, o que não é, de forma alguma, a minha intenção. O que pretendo, é fazer com que as pessoas – integrantes do campo do Direito ou não – compreendam como a oralidade se materializa no processo civil e, para tanto, penso que não preciso descrevê-lo segundo as minúcias dogmáticas. Escolhi o processo de conhecimento para mencionar as práticas orais porque acredito ser o mais representativo do processo civil e o mais rico para se descrever.
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A execução é um procedimento muito mais complexo do que o relatado por mim neste momento. Existe a execução de títulos judiciais, que é, resumidamente, esta que mencionei. E existe a execução de títulos extrajudiciais, cujas características e forma de processamento se distinguem sobremaneira daquela. A mim interessa mencionar a execução judicial. Por isso, apenas a defino como a fase que visa a garantir o cumprimento da sentença judicial. 120 José Carlos Barbosa Moreira (1999, p. 3), um dos mais consagrados especialistas e estudiosos do processo civil brasileiro, reconhecido como tal pelo próprio campo jurídico, define o processo de conhecimento e a execução da seguinte forma: “O exercício da função jurisdicional visa à formulação e à atuação prática da norma jurídica concreta que deve disciplinar determinada situação. Ao primeiro aspecto dessa atividade (formulação da norma jurídica concreta) corresponde o processo de conhecimento ou de cognição; ao segundo aspecto (atuação prática da norma jurídica concreta), o processo de execução. A situação cuja disciplina há de ser fixada pelo órgão de jurisdição é a que se lhe submete através do pedido. Acolhendo ou rejeitando o pedido, formula o órgão de jurisdição a norma jurídica concreta aplicável à situação. Ao fazê-lo, julga o mérito da causa, por meio de uma sentença.”.
Pois bem, feitas essas considerações iniciais, vale dizer que ao processo de conhecimento, aplicam-se dois procedimentos distintos: o procedimento comum ordinário e o procedimento comum sumário. O procedimento ordinário é mais complexo, cingindo diversas fases muito bem delimitadas, sem as quais o mesmo não se configura; já o procedimento sumário tem o escopo de celeridade, o que reflete na maior concentração dos atos processuais e na divisão menos nítida em fases diferenciadas. É, pois, sob essas duas perspectivas procedimentais que trabalharei. Explicitarei as práticas vinculadas tanto ao procedimento ordinário quanto ao sumário, ressaltando, quando necessário, as especificidades de cada um e as suas distintas formas de materialização. No que atine à oralidade, vale dizer que, conforme outrora destacado, na 1ª instância, ela se estabelece como um princípio, de cunho processual, alçado à categoria de garantia das partes a um processo justo, sub-representado por quatro outros princípios (imediatidade; identidade física do juiz; concentração e irrecorribilidade das decisões interlocutórias). Na prática, verificar-se-á que a sua manifestação se dá, de forma mais intensa, nas audiências, através da colheita, pelo Juiz, dos depoimentos das partes, das testemunhas e dos peritos e, também, das manifestações dos advogados. Como tive oportunidade de destacar antanho, a oralidade nem sempre é valorizada, na 1ª instância, pelos Juízes de Vara Cível, sendo, normalmente, categorizada como um obstáculo ao bom andamento dos processos e à celeridade processual. Os subprincípios que integram o conceito de oralidade também serão observados a partir das práticas judiciárias do processo civil, de modo que pretendo verificar se, empiricamente, assim como a oralidade, eles também são desconsiderados ou se, ao revés, são prestigiados pelo campo. É nessa esteira que tanto este quanto o capítulo seguinte caminharão. Pretendo elaborálos como se elabora o rito do processo; desde quando ele se inicia até o momento da prolação da sentença. Tentarei explicitar todas as práticas orais que se realizam nesse trilho, vinculando-as, sempre, à construção da verdade, que se produz também neste percurso. A forma através da qual se percorre o caminho repercute sobremaneira na forma através da qual a verdade se materializa. É exatamente isso que a mim interessa expor.
3. Dando início ao processo, por escrito O processo civil inicia mediante a propositura da ação, que se dá através do protocolo da petição inicial pelo Autor. A petição é distribuída, na Capital, por sorteio e eletronicamente, a uma das 50 (cinqüenta) Varas Cíveis da Comarca do Rio de Janeiro. Trata-se de peça feita por escrito, segundo os requisitos essenciais dispostos no art. 282 do CPC, no qual constam, essencialmente, os dados e a qualificação das partes, autor (s) e réu (s); os fatos e fundamentos jurídicos do pedido; o pedido, com as suas especificações; o valor da causa; e as provas com que o autor pretende comprovar os fatos que motivaram o ajuizamento do processo. Vale dizer que o processo civil de competência dos Juízos Cíveis começa, sempre, qualquer que seja o procedimento, por escrito. Inexistem meios orais de dar início a uma demanda judicial. Nesse particular, reputo curioso e de merecedor destaque mencionar que a petição inicial do processo não deixa de ser uma escrituração do oral, tendo em vista que, ao procurar o advogado para dar início ao processo, o que o Autor faz é descrever, oralmente, os fatos que lhe ocorreram, narrando em detalhes os aspectos que o fizeram entender que os mesmos teriam relevância jurídica, a ponto de constituírem uma ação judicial. O advogado, por sua vez, enquadra os fatos verbalmente descritos pelo cliente em um formato escrito, que atenda aos preceitos jurídicos. Assim, o advogado, de alguma forma, traduz o oral, transformando-o em um escrito que tenha conotação processual. Vê-se, logo, que, de plano, antes mesmo de o início oficial de um processo judicial, o oral e o escrito se mesclam e se complementam. Iniciado o processo, sempre por escrito, as demais fases variam conforme o procedimento, de forma que, doravante, procederei às devidas especificações. 4. O procedimento ordinário: estrutura e manifestações orais Recebida a petição inicial pelo Juiz, este, em se tratando de procedimento comum ordinário, determinará a citação do réu, a fim de que apresente a sua defesa. A defesa se faz por escrito, assim como a inicial (art. 297 do CPC). Nos casos em que o réu, por qualquer motivo, não a apresenta, decreta-se a sua revelia, o que significa dizer que todos os fatos alegados pelo autor, na petição, tornam-se, automaticamente, verdadeiros e
indiscutíveis121. Isso não significa que o autor, necessariamente, vencerá a ação judicial, porque pode ser que a matéria jurídica não lhe seja favorável, no entanto, questões fáticas tornam-se inquestionáveis. Vê-se que, até no momento da defesa, a escritura prevalece em relação à oralidade, o que, conforme se descreverá, é uma tendência cada vez mais presente, em nome da celeridade processual122. Após a defesa escrita apresentada pelo réu, o Código de Processo Civil prevê, de forma expressa, nos arts. 325, 326 e 327, os casos em que se faz necessária a apresentação de réplica pelo autor. Na prática, independentemente de se configurarem quaisquer das hipóteses previstas nos citados dispositivos, os Juízes determinam a manifestação do autor em réplica, em qualquer caso, a fim de que se pronuncie sobre o conteúdo da defesa apresentada pelo réu. Trata-se de uma prática não instituída, porém, generalizadamente verificada. Após a manifestação do autor, em réplica, os Juízes determinam a ambas as partes que especifiquem as provas que pretendem produzir no decorrer do processo e que esclareçam se concordam com a designação de audiência conciliatória. Trata-se de norma não legislada no Código de Processo Civil, pois este, na verdade, determina a especificação das provas, respectivamente, pelo autor na inicial e pelo réu na sua defesa; e, quanto à designação de audiência, determina que pode ser marcada em qualquer fase processual, não prevendo um momento específico para que as partes manifestem eventual interesse em conciliar. Entretanto, tal prática se impôs empiricamente e vem sendo adotada nas Varas Cíveis de forma habitual, em todos os processos que tramitam pelo procedimento ordinário, indistintamente. 121
Nem sempre este efeito da revelia se verifica. Há casos, previstos expressamente no art. 320 do CPC, em que os fatos alegados na inicial não são automaticamente considerados verdadeiros. A redação do art. 320 do CPC é a seguinte: “Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: I - se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato.”. Para fins de esclarecimento, destaco que direitos disponíveis são os que estão sob o total e incondicional domínio de seu titular, de tal modo que este pode fazer tudo em relação a ele, por exemplo, renunciar, negociar ou mesmo alienar. Como geralmente ocorre no campo do Direito, trata-se de expressão abstrata e, por conseguinte, de difícil apreensão e de interpretação particular. Em regra, direitos patrimoniais são disponíveis, não o sendo, os Direitos de estado e os Direitos públicos, tais como: o Direito Penal; o Direito Tributário, o Direito de Família; os Direitos Fundamentais. Destes, o titular não pode dispor, ou, se pode, a Lei impõe determinadas restrições. 122 Um exemplo disso é a Lei nº 11.277/2006, recentemente promulgada e vigente desde maio de 2006, que alterou o Código de Processo Civil para permitir a prolação imediata de sentença extintiva do processo (nos casos de procedimento ordinário), tão logo recebida a petição inicial, independentemente da apresentação da defesa escrita pelo réu, sempre que se tratar de matérias repetidas, ou seja, já julgadas anteriormente pelo Juiz, e que tenham sido por ele consideradas improcedentes, casos em que, inclusive, reproduz-se, nos mesmos termos, a sentença anteriormente prolatada. Isto é, independentemente da oitiva das partes, o Juiz, quando se deparar com causa que já tenha julgado antes, poderá extinguir o processo, ainda que o réu sequer tenha tomado conhecimento da ação judicial; decisão contra a qual cabe a interposição de recurso. Trata-se de prática recentemente instituída e que visa a prezar pela rapidez do fim do processo.
Impõe, em adendo, destacar que não tenho a pretensão de generalizar posturas, práticas ou conceitos. Obviamente, sempre há Juízes que adotam práticas e ritos distintos. Trato aqui, porém, dos dados mais representativos que apareceram na pesquisa de campo procedida no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Após a especificação das provas pelas partes e a sua manifestação sobre a realização da audiência conciliatória, em regra, o Juiz, independentemente do que tenham dito as partes, designa a audiência de conciliação, a ser presidida por um conciliador ou por um juiz leigo, na qual as partes não precisam estar presentes, bastando que as represente ou os seus respectivos advogados ou um preposto, com poderes para transigir em seu nome. Vê-se, empiricamente, que configura mero ritual burocrático perguntar às partes se desejam conciliar, uma vez que, mesmo que ambas digam que não queiram, muitos Juízes designam a citada audiência; bem como o é, determinar a especificação de provas, tendo em vista que a análise sobre a sua necessidade se dá em momento posterior. Na audiência conciliatória - onde foi possível notar, pela pesquisa, que é muito raro que as partes estejam presentes e, também, bastante incomum que se realizem acordos - os advogados das partes ou reiteram verbalmente as especificações das provas que pretendem produzir (manifestação já feita por escrito) ou então, não sendo o caso, informam sobre a desnecessidade da produção de provas, requerendo o julgamento imediato do processo. Um advogado com quem conversei, disse-me, a respeito do fato de não se fazerem acordos nessa primeira audiência do processo: “Não é aconselhável fazer acordo logo no início do processo. Eu, pelo menos, não aconselho aos meus clientes que aceitem nenhuma proposta nessa fase. É muito cedo, Você ainda não tem uma noção de probabilidade de perda ou ganho. Você sequer analisou as provas, elas não estão robustas ainda. Em casos de perícia então, é quase proibitivo fazer um acordo antes do laudo pericial. Eu, pessoalmente, acho que o melhor momento para começar a fazer uma boa proposta de acordo é depois do julgamento do recurso pelo Tribunal. Aí sim, já se tem uma idéia mais elaborada do curso do processo.”.
O papel do conciliador e do juiz leigo, nessas audiências, subsume-se a, simplesmente, registrar em ata as manifestações dos advogados e remeter os autos à apreciação do Juiz para que este decida qual rumo tomará o processo. Ao Juiz cabe - em seu gabinete e por escrito - ou indeferir a produção das provas e, conseqüentemente, julgar imediatamente o processo; ou analisar as provas requeridas e deferi-
las. Dependendo das provas requeridas e deferidas, o Juiz designa audiência de instrução e julgamento, onde são ouvidos depoimentos; ou, em caso de prova exclusivamente documental, determina que as partes as juntem aos autos ou, ainda, em caso de prova exclusivamente pericial, nomeia o perito e determina às partes que apresentem os seus assistentes técnicos123 e os respectivos quesitos. Infere-se da descrição que, até esta fase, o processo é conduzido, basicamente, de forma escrita, sendo a única manifestação oral, a que se produz na audiência conciliatória, que, distintamente do que idealiza a doutrina, não é conduzida pelo Juiz e as partes não se fazem presentes, inexistindo, portanto o aspecto da imediatidade; assim como, nessas audiências, os atos não ocorrem de forma concentrada, o que descaracteriza, também, o princípio da concentração. Da decisão do Juiz que indefere alguma das provas requeridas pelas partes ou mesmo da decisão que defere provas consideradas desnecessárias por alguma das partes, cabe recurso de agravo (art. 522 do CPC)124, o que, mais uma vez, afasta a previsão dogmática, tendo em vista desconfigurar-se, nesse caso, também, o princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Na audiência de instrução e julgamento, esta sim, presidida pelo Juiz togado 125 - e necessariamente, pelo mesmo Juiz competente para proferir a sentença (princípio da identidade física do juiz) – há diversas manifestações orais, de forma que, pode-se dizer ser este o ato tipicamente oral do processo civil, a que me propus descrever. Tudo o que há de oralidade em um processo de 1ª instância em curso em Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se materializa nessa audiência. Impõe salientar que, mesmo nessa audiência, como adiante descreverei, a presença das partes não é obrigatória, de maneira que a tão propalada imediatidade - prevista pela dogmática como sendo o princípio que concretiza uma aproximação entre as partes e o Juiz e 123
Os assistentes técnicos das partes são os especialistas que acompanham a perícia e elaboram o laudo favorecendo à parte que lhe indicou. Trata-se do técnico que possui os conhecimentos necessários para analisar o laudo e ratificá-lo ou criticá-lo conforme o interesse da parte que lhe contratou. 124 A regra é que das decisões interlocutórias (proferidas no curso do processo, que não põe fim ao mesmo, no entanto, causam prejuízo às partes) o recurso cabível seja o agravo retido, de forma que, assim, estaria presente o princípio da irrecorribilidade, uma vez que o agravo retido não suspende o curso do processo. No entanto, quando a decisão interlocutória causa “lesão grave ou de difícil reparação à parte” (expressão genérica que demanda distintas e particulares interpretações), cabe o agravo de instrumento, recurso que suspende o processo, atrapalhando o seu curso normal. Nesses casos, o princípio da irrecorribilidade não se configura e, vale dizer que, na prática, a interposição de agravos de instrumento não é incomum, razão pela qual descrevi que o princípio da irrecorribilidade não se verifica, em casos tais. 125 Juiz togado é o magistrado graduado em Direito e aprovado em concurso de provas e títulos para o ingresso na magistratura (art. 93, inciso I, da Constituição Federal).
que seria, aliás, o corolário do princípio da oralidade - não se manifesta empiricamente, ao menos nos processos em curso nas Varas Cíveis. De toda sorte, é na audiência de instrução e julgamento que as manifestações orais se realizam de forma mais intensa, sendo, na verdade, como dito, este o ato que oficializa a existência de resquícios orais em um processo civil que, notoriamente, é preponderantemente escrito. Produzidas, então, todas as provas e realizada a audiência de instrução e julgamento, cuja descrição minuciosa se fará mais adiante, o Juiz profere a sentença, acolhendo ou rejeitando o pedido elaborado na inicial. A previsão do art. 456 do CPC é de que a sentença seja proferida verbalmente, na própria audiência de instrução, no entanto, na prática isso raramente ocorre. É, resumidamente, esse o trâmite empírico de um processo pelo procedimento ordinário126. Ocorre que, segundo a legislação, não é bem assim que um processo civil deve transcorrer, cabendo a mim, neste momento, explicitar, resumidamente, as fases desconsideradas pela empiria, embora ainda preconizadas na Lei. Na prática, os Juízes de Vara Cível, tendo em vista a imensa carga de processos que lhes recai, “criaram” um procedimento padrão (resumidamente descrito acima) e o adotam sem levar em conta as especificidades de cada caso. Normalmente, os processos se encaixam nesse procedimento padrão, no entanto, inúmeras vezes a sua adoção leva a que o Juiz se dê conta, somente na hora de prolatar a sentença (momento em que analisa o processo com mais cautela e precisão), passados, não raro, anos de trâmite processual, que determinados atos foram adotados desnecessariamente; que nulidades deveriam ter sido supridas; que processos poderiam ter sido extintos; que provas não precisavam ser produzidas. Nesse contexto, vale esclarecer, outrossim, que, malgrado as práticas judiciárias destoem daquilo que impõe a legislação, no que atine à essência do sistema processual, tanto o processo que se depreende na prática, quanto aquele previsto na Lei, são fundamentalmente escritos, conforme demonstrarei doravante.
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Em suma, para facilitar o entendimento, o procedimento padrão de um processo civil em Vara Cível é este: inicial defesa réplica especificação de provas e manifestação sobre interesse em audiência conciliatória audiência de conciliação decisão escrita sobre a produção de provas audiência de instrução e julgamento (quando necessário) sentença.
Nos termos da Lei Processual Civil vigente, o Juiz, logo após a apresentação da defesa pelo réu ou logo após a constatação da revelia – em vez de determinar às partes que se manifestem em réplica - deve, consoante previsão do art. 329 do CPC, verificar se, nos autos, configura-se alguma das hipóteses de extinção do processo (arts. 267 e 269, incisos II a V, do CPC), caso em que proferirá, de imediato, a sentença extintiva 127. Em não sendo caso de extinção do processo, o Juiz agirá nos termos do art. 330 do CPC, isto é, verificará se o processo deve ser julgado, de imediato (é o que se denomina “julgamento antecipado da lide”), proferindo a sentença, sempre que: 1) a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência; 2) ocorrer a revelia (art. 319). Nesse particular, vale explicar o significado da expressão “questão unicamente de Direito”, também chamada no campo de “matéria de Direito”. Na verdade, trata-se de uma categoria que se define como necessariamente antagônica a uma outra, reconhecida como “questão de fato” ou “matéria de fato”. As questões jurídicas e processuais estão, logo, unicamente situadas entre essas duas categorias. Um processo abarca, sempre, ou “questões de fato” ou “questões de direito” ou ambas. Com efeito, inexiste uma definição precisa sobre que matérias seriam representadas como “de fato” e quais o seriam como “de Direito”. Em linhas gerais, o entendimento dogmático e o dos Tribunais é no sentido de que “matérias de fato” exigem a produção de provas no curso do processo, demandando a reelaboração dos fatos e a reanálise dos documentos que constituem a ação judicial. As “matérias de Direito” seriam aquelas definidas pela mera interpretação de Lei. Ou seja, o papel do julgador, na “matéria de Direito”, restringe-se a dizer como ele entende que determinada norma deve ser interpretada e aplicada naquele caso concreto; ao passo que o julgador, deparando-se com questões fáticas, deve reconstituir todos os dados do caso, entender quais foram os fatos que ensejaram aquele processo e julgar quem tem razão, com base nesses fatos conjugados com o Direito a ele aplicado. A título de exemplo: as ações de acidente de trânsito demandam do julgador - no ato da prolação da decisão - toda a reconstituição do fato que causou o acidente, as suas repercussões, a avaliação dos danos causados às vítimas, a delimitação de quem foi o 127
Na prática, como os Juízes seguem um rito padronizado, como acima descrito, muitas vezes, o processo requer a extinção imediata e, desnecessariamente, segue todos os atos processuais, pois o Juiz não verifica, no momento certo, as hipóteses dos arts. 267 e 269 do CPC.
responsável, a análise detalhada do contrato de seguro para que se apure a obrigação de indenizar, dentre outras questões. Aliando-se os fatos ao Direito que regula a matéria, o Juiz tem, então, a possibilidade de se posicionar e julgar o processo. No entanto, há outras questões jurídicas que não exigem análise probatória para que sejam resolvidas pelo julgador. Por exemplo, questão recente debatida no STF foi a que discutia a possibilidade, ou não, de os benefícios de pensão por morte concedidos antes de 1995 alcançarem o percentual de 100% do salário benefício do segurado falecido. Para julgar tal problemática, os Ministros precisavam, simplesmente, decidir se a Lei no 9.032/95 - que instituiu o percentual de 100% tinha ou não efeito retroativo. Isto por quê? Porque o texto da Lei não previu, expressamente, a época exata da aplicabilidade do dito percentual sobre os benefícios de pensão por morte. Vê-se, logo, que o objeto de um processo como esse – nos termos do Direito e de acordo com as normas que o regem – exige, simplesmente, a interpretação da Lei e dos princípios de Direito, não havendo que se analisar quaisquer questões fáticas. Feitas estas considerações, impõe continuar a explicitação do curso do processo civil, nos exatos termos da legislação vigente. O Juiz, então, deparando-se com uma das hipóteses do art. 330 do CPC deve julgar antecipadamente o processo. Na prática, é complicado para o Juiz definir os casos de julgamento antecipado da lide. Trata-se de decisão extremamente subjetiva e que, em razão disso, implica, muitas vezes, em cerceamento de defesa. Quando o Juiz julga o processo de imediato, logo após a defesa, por entender que as provas dos autos processuais são suficientes, em certas circunstâncias está, de fato, atendendo ao dispositivo mencionado (art. 330 do CPC); entretanto, pode ser que, em razão da peculiaridade do caso, esteja se precipitando. Quando o Juiz profere a sentença antecipadamente e as partes entendem que lhes foi cerceada a defesa, tendo em vista a impossibilidade de produzir outras provas, além das já constantes do processo, podem recorrer e é comum, em casos tais, o Tribunal anular a sentença, por cerceamento de defesa. A linha entre o cerceamento e o que prevê o art. 330 do CPC é bastante tênue. Em razão disso, dificilmente, julga-se antecipadamente o processo, mas tive a oportunidade de entrevistar um Juiz que defendia, em nome da celeridade, o julgamento antecipado como regra geral: “Os Juízes postergam o julgamento antecipado. Julgamento antecipado é para ser efetivado. Se não há controvérsia e se a matéria é de Direito, você tem que julgar o processo o quanto antes. Dá trabalho, mas ser Juiz é trabalhoso mesmo. Eu julgo muito
antecipadamente, muito, muito, muito, muito. A partir do momento em que a contestação é apresentada, você já tem condições de verificar a controvérsia. Se o CPC permite o julgamento antecipado e junto com isso tem a regra do art. 130, que permite que o juiz indefira as provas inúteis, você tem que julgar logo. Agora, para isso, você precisa ler o processo e estar por dentro do processo. Para mim, é muito legal dar sentença logo. A pessoa entrar com uma ação e ter uma sentença 45 dias depois é muito legal. Ela vai ter uma visão muito positiva do Judiciário.”. (Juiz em exercício em Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Caso não se configurem as hipóteses do art. 330 do CPC – julgamento antecipado da lide - cabe ao Juiz designar a audiência preliminar, prevista no art. 331 do CPC. Vê-se, logo, que o CPC não preconiza, nem a especificação de provas, nem a manifestação das partes sobre a audiência conciliatória, nem mesmo uma audiência de conciliação tal como se desenvolve na prática forense. A audiência preliminar é designada quando a causa versa sobre direitos que admitem transação e o é com fins, efetivamente, à realização de um acordo. No entanto, a sua condução não visa somente a isso, conforme se denota da redação do art. 331 do CPC. As partes não são obrigadas a comparecerem a esta audiência e, de fato, normalmente, não se fazem presentes. O Juiz é quem deve conduzi-la, não o conciliador ou juiz leigo, tendo em vista que, nos termos legais, tal audiência destina-se, além da tentativa de conciliar as partes, a que sejam fixados os pontos controvertidos 128 da demanda, bem como a que sejam decididas toda e quaisquer questões processuais pendentes. Ao Juiz cabe analisar, nessa audiência preliminar, prevista no art. 331 do CPC, todas as questões importantes ao andamento do processo. Por exemplo, a ele cabe decidir as provas que deverão ser produzidas, indeferindo as desnecessárias e designando, incontinenti, nos casos em que seja necessária a produção da prova oral, a audiência de instrução e julgamento; e, nos casos que não o seja, a juntada de documentos. Quando entender cabível a produção de prova pericial, neste mesmo ato, lhe impõe nomear o perito. E, ao final, em considerando não ser importante a produção de nenhuma prova, ao Juiz concerne prolatar a sentença. 128
Pontos controvertidos são aqueles afirmados por uma parte e retrucados pela outra. Ou seja, não há coincidência na descrição de sua ocorrência. São os que exigem produção de provas. Por outro lado, são incontroversos ou tornam-se incontroversos os fatos não contestados pelo réu e os previstos no art. 302 do CPC, casos em que se dispensa a produção de provas. A ausência de fixação dos pontos controvertidos, teoricamente, acarreta nulidade da decisão que suprime esta fase. Na empiria, dificilmente constata-se a nulidade das decisões que suprimem esta fase, pois, em realidade, dificilmente vê-se processos em que, de fato, o Juiz, objetivamente, fixa os pontos controvertidos. Esta fase vem sendo, cada vez mais, suplantada, assim como a de saneamento. Um Juiz por mim formalmente entrevistado, disse-me: “Muitas vezes, por exemplo, a prova oral é para ratificar um fato que está na inicial e que na contestação o réu já reconheceu, então ficou incontroverso, para quê eu vou fazer audiência?”.
Este ato, em que o Juiz analisa todas as questões processuais e, por conseguinte, define o rumo do processo, é chamado de saneamento. O saneamento se verifica tanto no procedimento ordinário quanto no sumário. É a detecção de defeitos processuais que obstruem o desenvolvimento do processo em direção ao exame do mérito; ele almeja desimpedir o caminho para a instrução da causa. É feito com a finalidade de regularizar o processo, para ver se há alguma nulidade ou irregularidade processual (ilegitimidade de partes; falta de representação processual; não pagamento de custas; dentre outras). Caracteriza-se, em suma, pela análise dos pressupostos processuais.129 Fato é que ao Juiz cabe presidir a audiência preliminar, justamente porque nesta audiência diversas questões são decididas e os conciliadores e juízes leigos não têm competência para tanto. Esta audiência concentra diversos atos processuais que, na medida em que são delegadas as funções, na prática, deixam de ocorrer, sendo diluídos em inúmeros procedimentos isolados. A dispersão desses atos, em princípio, parece atrapalhar o processo, mas o campo não reconhece assim: “Eu acho essa audiência preliminar muito prejudicial. Eu não gosto de sanear o processo em audiência, não acho necessário, acho que não é benéfico, não adianta o processo, muito pelo contrário, atrasa. Muitas vezes eu evito proferir sentença em audiência, mesmo que eu possa dar, porque a parte está ali, eu vou julgar desfavoravelmente a ela; ela vai chorar, vai ficar triste. E quanto à prova oral eu sou muito criterioso. Só em situações extremamente necessárias. Agora, eu tenho um modo de trabalhar, eu tenho muita visão. Eu não enrolo o processo. Não é porque não faço as audiências que tudo fica estagnado. Eu não faço muitas audiências justamente para dar uma resposta às pessoas que precisam da Justiça. E como faço isso? Julgando rápido.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
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O saneamento do processo pode ser oral ou escrito. O saneamento oral se verifica em audiência. Dificilmente ocorre na prática porque para que se faça o saneamento em audiência é necessário que o Juiz e os advogados conheçam os mínimos detalhes do processo e, normalmente, nem os advogados, nem os Juízes, lêem minuciosamente os autos antes da realização da audiência. Desta forma, não é possível sanear o processo nesse ato, o que, em termos de manifestação do princípio da oralidade seria positivo, pois permitiria o diálogo das partes, advogados e Juízes sobre as provas. O saneamento escrito é feito pelo Juiz, individualmente, em seu gabinete. Há que se descrever que, nem sempre, o saneamento do processo se efetiva. Em função do volume de trabalho, há casos em que o Juiz não faz o saneamento ou, então, delega esta atividade a funcionários. A conseqüência disso, não raro, é detectarem-se nulidades processuais após anos de trâmite processual. Há processos em que se verifica nulidade processual quando os autos estão em curso no STF, o que configura um entrave para a celeridade processual.
“O art. 331 do CPC determina que o processo seja saneado em audiência. Por que isso? Para que o Juiz não enrole o processo e não saneie nunca. Então, havendo a audiência, o Juiz é obrigado a sanear. Há Juízes, infelizmente, que se não houver um momento específico para sanear, ele nunca vão sanear o processo. Mas para mim não é assim. Eu não enrolo. Eu saneio por escrito, mas saneio. Eu produzo muito mais se eu puder delegar a presidência da audiência de conciliação e ser bastante criteriosa com a de instrução, marcando só quando for imprescindível.”. (Juíza em exercício em Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Os Juízes não presidem esta audiência preliminar justamente por entenderem que sanear o processo em audiência é extremamente prejudicial à celeridade, embora a dogmática absorva uma outra lógica: a de que quanto mais concentrados os atos em uma única audiência, mais rápido o trâmite se fará. Diante disso, na prática, todas essas questões que a Lei prevê sejam decididas na audiência preliminar, na presença, ao menos, dos advogados das partes, na verdade, são decididas, por escrito, unilateralmente, no gabinete do Juiz, sem que sejam ouvidos os interessados. Isto é, o Juiz, embora tenha a oportunidade de ouvir os advogados das partes sobre a importância do requerimento de determinada prova, não o faz. Em seu gabinete, sozinho, o Juiz decide, por exemplo, que determinada prova é inútil, protelatória e a indefere, sem que saiba, de fato, os motivos que fizeram com que se a requeresse. Nesse sentido, o processo não prioriza o contacto entre o Juiz, as partes e os advogados. Tudo o que se pode fazer por escrito, no gabinete do Juiz, unilateralmente, se faz. E o argumento é o mesmo de sempre: celeridade. Mais adiante estas questões serão trabalhadas com minudência. Após a audiência preliminar – hipoteticamente tratada no CPC, uma vez que não se verifica em campo – o Juiz, conforme mencionado, sendo o caso de produção de provas, as deferirá. Em se tratando de prova oral, designará audiência de instrução e julgamento. Sendo, ao revés, caso de julgamento, prolatará a sentença. É assim, pois, que a Lei determina seja o curso do processo civil, quando observado o procedimento ordinário.
5. O procedimento sumário: um outro percurso da oralidade O procedimento sumário, processualmente, é mais concentrado e simplificado do que o ordinário. Em função disso, segundo a dogmática, falar em processo sumário é o mesmo que falar em processo oral (GUEDES, 2003). Entretanto, registro, desde logo, que as práticas verificadas em campo não sugerem tal conclusão. O art. 275 do CPC prevê, expressamente, de forma taxativa, as causas às quais se aplica, necessariamente, o procedimento sumário, a saber: I) causas cujo valor do pedido não exceda a 60 (sessenta) vezes o valor do salário mínimo; II) causas, qualquer que seja o valor, tratando, a matéria, de: a) arrendamento rural e parceria agrícola; b) cobrança ao condômino; c) ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico; d) ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre; e) cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, f) cobrança de honorários de profissionais liberais. Subsidiariamente, naquilo em que for omisso, ao procedimento sumário aplicam-se as disposições gerais do procedimento comum ordinário. A petição inicial é apresentada por escrito, nos termos do art. 282 do CPC, como no procedimento ordinário, sendo que, em razão de o procedimento sumário exigir maior simplicidade, o autor, logo na inicial, manifesta-se sobre a necessidade de produção de prova testemunhal e pericial; e, sendo o caso, apresenta o rol de testemunhas e os quesitos da perícia, bem como a indicação do assistente técnico. Nos termos do art. 277 do CPC, recebida a inicial pelo Juiz, este designará a primeira audiência a ser realizada no processo, a ocorrer no prazo de trinta dias, a contar da propositura da ação. O réu deve ser citado, no mínimo, dez dias antes da data designada para a audiência, a fim de ter tempo razoável para a elaboração da sua defesa. A defesa é apresentada na referida audiência e pode ser manifestada oralmente, porém é raro que tal ocorra. Na própria defesa, o réu junta os documentos pertinentes e, quando necessário, o rol de testemunhas. Se requerer perícia, formula seus quesitos desde logo, assim como o autor, indicando, inclusive, o seu assistente técnico. Embora a defesa possa ser apresentada de forma oral, normalmente, como dito, se faz por escrito, assim como se verifica no procedimento ordinário, o que se efetiva por distintos motivos. Um advogado que entrevistei foi taxativo:
“Acho que as peças são feitas por escrito, mesmo nos casos em que a Lei permite que sejam feitas oralmente, tanto por culpa dos Juízes quanto por culpa dos advogados. Dos Juízes porque não têm respeito pelos advogados, nem paciência para ouvi-los e, com isso, nos apressam; citam na ata palavras e expressões distintas das que falamos; reformulam a nossa defesa; não querem inserir coisas que dizemos na ata; enfim, é um verdadeiro estresse apresentar qualquer argumento oral num processo hoje em dia. Não dá mesmo, é criar problema e inimizade com o Juiz e isto, obviamente, nunca é bom. Você pode precisar dele de novo, nunca se sabe. E também isso é culpa dos advogados porque têm medo de falar em público, diante do Juiz; têm medo de errar, de falar besteira, de prejudicar o cliente. Acho que é insegurança e também acho que, às vezes, quando a causa é complicada, não dá mesmo para fazer oral ... vai demorar muito, não é prático. Agora, essa possibilidade é muito boa para as partes. É muito boa mesmo, porque às vezes o cliente recebe o mandado em cima da hora, nos exatos 10 dias antes da audiência. Até conseguir um advogado, marcar uma reunião etc., às vezes faltam 3 dias, sei lá, até 2 dias para a audiência. Aí, é bom poder ser oral porque a parte não se prejudica. O advogado não faz uma defesa tão boa, assim mais refletida e detalhada, mas também não deixa o cliente sem assistência, pronto para uma revelia.”.
Em tópico específico, esta questão será retomada. A ausência da parte ré à audiência designada no procedimento sumário, nos termos do art. 277, §2º, do CPC, implica em revelia, contrariamente ao que ocorre no procedimento ordinário, em que o não comparecimento das partes à audiência preliminar não traz qualquer repercussão, prosseguindo o processo normalmente. Isto ocorre porque, no procedimento ordinário, a contestação é apresentada previamente, por escrito, sendo a primeira audiência do processo designada com fins à mera tentativa de conciliação das partes, razão pela qual o seu não comparecimento é interpretado, simplesmente, como desinteresse em acordar. Todavia, no sumário, a primeira audiência integra a fase postulatória da demanda, tendo em vista que a defesa e a réplica são elaboradas nesse ato. Assim, o não comparecimento da parte ré na mencionada audiência é representado, na Lei (art. 277 do CPC), como ausência de defesa e, conseqüentemente, repercute em revelia130. 130
Vale salientar: ainda que mediante expressa determinação legal, empiricamente, a representação é distinta, sendo certo que o não comparecimento da parte ré, mesmo à audiência do procedimento sumário, majoritariamente, não implica em revelia. No campo do Direito, o saber é produzido a partir do conflito de interpretações, o que, aliás, expus no capítulo I. Depreende-se que, para qualquer questão, há sempre distintas formas de interpretar a Lei e, portanto, diversas formas de aplicá-la, o que, invariavelmente, repercute em desigualdade, malgrado o campo assim não reconheça. O fato é que o saber jurídico se fundamenta no conflito e, quanto a essa problemática, não poderia ser diferente. No caso do procedimento sumário, a ausência do Réu à audiência, para alguns Juízes e doutrinadores, implica em revelia; entretanto, para outros, não, desde que o
Vale lembrar sempre que a prática descarta a imposição legal e, o que se verifica, normalmente, é que as audiências do procedimento sumário – assim como as preliminares do ordinário – representam mero ato burocrático, sendo presididas por conciliadores ou juízes leigos, não mais por Juízes togados131. Destarte, em tais audiências não são mais proferidas decisões importantes para o processo, tratando-se, tais atos, de mero formalismo que implica, no caso do procedimento sumário, na entrega da defesa pelo advogado e na sua manifestação sobre as provas que pretende produzir. Nesse sentido, em sendo a audiência ato burocrático, na prática, infere-se que a ausência das partes não traz quaisquer conseqüências processuais, uma vez que a entrega formal da contestação supre a ausência física da parte. Essas audiências, na verdade, segundo determinação legal, não teriam apenas o fito de tentar conciliar às partes, destinando-se, também, à resolução de questões incidentais do processo e ao seu saneamento. Nesse sentido, igualmente ao que se infere no procedimento ordinário, quando a audiência é feita por conciliador, estes atos de decisão ficam comprometidos, sendo postergados para momento futuro, em que o Juiz se manifesta, por escrito, em seu gabinete, sem a participação dos interessados.
advogado se faça presente e entregue a defesa ou a elabore oralmente em Juízo. A discussão travada sobre o tema é complexa, não cabendo a mim mais do que mencioná-la, tendo em vista a proposta da pesquisa. Guedes (2003), por exemplo, defende que, no procedimento sumário, a ausência da parte à primeira audiência, por si só, repercute na revelia, ainda que a defesa seja formalmente apresentada pelo advogado. Alexandre Câmara, conceituado processualista civil, ao revés, interpreta a revelia como sendo ausência de defesa e, a seu ver, uma vez comparecendo o advogado à audiência e entregando a contestação, a revelia é suprida, sendo desnecessária a presença física da parte (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Vol. I, p. 387-388). Na prática, a repercussão da ausência da parte ré depende, necessariamente, do entendimento do Juiz. Normalmente, a presença física da parte é dispensada, uma vez apresentada a defesa. Entretanto, é sempre possível interpretação diversa. 131 O STJ reformou decisão proferida no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que havia entendido ser possível a realização de audiência de procedimento sumário por conciliador. O Ministro Castro Filho, relator do processo no STJ, manifestou-se nos seguintes termos: “Conquanto o artigo 277 do CPC traga a previsão de que o juiz pode ser auxiliado por conciliador, não autoriza a condução da audiência pelo auxiliar, dispondo o artigo 446 do mesmo Codex competir especialmente ao juiz dirigir os trabalhos de audiência. O princípio constitucional do juiz natural assegura a todos a prestação da tutela jurisdicional por um órgão monocrático ou colegiado investido da função jurisdicional, não sendo permitido delegá-la.”. O Ministro lembrou também que no procedimento sumário, nada impede que, preliminarmente, a conciliação seja tentada por conciliador. Mas, em seguida, é imprescindível a presença do juiz para homologar o acordo ou, na falta de conciliação, oportunizar o oferecimento de resposta, que pode ser apresentada por escrito ou oralmente. Segundo ele, “é nesse momento que o juiz resolverá eventuais questões incidentes, inclusive quanto ao valor da causa; decidirá sobre a prova a ser produzida, se for o caso, e designará data para realização da audiência de instrução e julgamento. Logo, não obtida a conciliação tentada por conciliador, não é lícito encerrar-se o ato”. A decisão foi proferida nos autos do Recurso Especial no 423.117. Vê-se, com isso, que se trata de prática – embora sem amparo legal e desaprovada pelo STJ - institucionalizada e legitimada pelo Tribunal do Rio de Janeiro. Notícia intitulada “Audiência integralmente conduzida por conciliador não é permitida pela legislação em vigor” e disponível em: http://www.tj.ro.gov.br/emeron/sapem/2002/outubro/1110/NOTICIAS/N05.htm
A réplica, que no procedimento ordinário é apresentada por escrito, através de petição, no sumário deve ser feita oralmente. De fato, na prática, ainda que os advogados não queiram, a réplica, quando a audiência é presidida pelo Juiz, deve ser oral, porque o Juiz, normalmente, não concede prazo às partes para manifestação desse teor no procedimento sumário. Nesse procedimento, como asseverado, as partes devem comparecer pessoalmente à primeira audiência do procedimento sumário, podendo, no entanto, fazer-se representar por preposto com poderes para transigir. Isto é, assim como no procedimento ordinário, também no sumário a presença das partes é facultativa, de maneira que aqui se verifica uma nítida relativização do princípio da imediatidade, tido pela dogmática como fulcral à caracterização da oralidade no processo civil. Oportunamente, descreverei com minúcias esta questão, entretanto, ressalto desde logo que, independentemente do procedimento, a presença das partes é, de fato, obrigatória, em um único momento processual: quando são intimadas para prestarem depoimento pessoal em Juízo. Na audiência de instrução e julgamento, são colhidos todos os depoimentos importantes ao processo, de modo que os depoimentos das partes também o são. Ocorre que, nem sempre, é necessário que se realize o depoimento pessoal das partes, aliás, em campo, pude observar que dificilmente os Juízes valoram esta prova. Assim, mesmo nas audiências de instrução e julgamento, momento mais propício para o seu comparecimento, dificilmente as partes estão presentes, salvo se intimadas para prestarem depoimento pessoal. Tal prática demonstra que o conceito dogmático sobre a oralidade não se materializa, estando em um plano ideológico e não pragmático. Nesse contexto, pude verificar na pesquisa que, de uma forma geral, é bastante significativo o número de Varas Cíveis em que as audiências do procedimento sumário são representadas exatamente como aquelas, preliminares, do procedimento ordinário, desvirtuando-se, completamente, da determinação legal e cingindo-se, na prática forense, a atos meramente formais. Havendo conciliação em audiência, a mesma é reduzida a termo e homologada por sentença. Todavia, não obtida a conciliação, após a apresentação da defesa pelo réu, e os atos formais, encerra-se a audiência e os autos são remetidos ao Juiz para que ele faça, em seu gabinete, tudo aquilo que deixou de fazer na audiência, embora pudesse, nos termos legais. Inocorrendo as hipóteses previstas nos arts. 329 e 330, I e II (mencionados anteriormente para o procedimento ordinário) e existindo a necessidade de produção de prova oral, o Juiz designa a audiência de instrução e julgamento para data próxima, não excedente de
trinta dias (o que jamais ocorre na prática). Entretanto, inexistindo provas, o Juiz profere a decisão. Assim como no procedimento ordinário, o Juiz analisa as provas que entende serem importantes e as defere, de modo que, contra a decisão que indefere eventuais provas, também cabe recurso de agravo. O CPC determina que todas as decisões quanto a pedido de provas e ao saneamento do feito se procedam em audiência, sendo este ato protelado, apenas, em caso de ser imprescindível a designação de audiência de instrução e julgamento ou em caso de ser necessária a realização de perícia. De igual sorte, o código determina que, caso não sejam necessárias tais providências, a sentença seja prolatada em audiência, imediatamente após os debates finais orais feitos pelos advogados (arts. 277, 278 e 281). Isto é o que impõe a Lei. Na empiria, como procurei descrever, essa norma é bastante relativizada.
A escrita predomina e os subprincípios, caracterizadores da oralidade,
tampouco se materializam. Tal qual no procedimento ordinário, inexiste contacto entre Juiz e partes, salvo nas audiências de instrução, quando a presença das partes se faz obrigatória em razão do depoimento pessoal; inexiste irrecorribilidade de decisões interlocutórias; e inexiste concentração de atos em um único momento processual. Em suma, salvo pequenos detalhes, na prática, ambos os procedimentos se manifestam de forma parecida quanto à oralidade, configurando-se como predominantemente escritos e dissonantes daquilo que a legislação prevê. 6. Quando os procedimentos se igualam: as repercussões no campo da oralidade Independentemente do procedimento adotado, algumas práticas e determinados atos processuais são comuns e a repercussão disso, no campo da oralidade, se apresenta de forma equivalente. Nos capítulos iniciais, ressaltei que a oralidade é um tema bastante atrelado, no campo, à presença das partes diante do magistrado, de modo que é por essa razão que a audiência se apresenta como o momento ideal para a materialização e prevalência do oral sobre o escrito. Ocorre que a pesquisa aponta uma total independência de ditas categorias: oralidade e presença não estão necessariamente conjugadas. A oralidade pode se configurar no processo mesmo quando as partes estão ausentes: por exemplo, nas audiências realizadas para a oitiva de testemunhas. E, por outro lado, a oralidade pode não se materializar, ainda que as partes se façam presentes: por exemplo, nas
audiências de conciliação. É muito comum que, em tais audiências, apenas os advogados se manifestem oralmente. Com freqüência, a palavra das partes é cassada sob o entendimento de que elas, por serem representadas por seus advogados, devem falar em Juízo exclusivamente através deles 132. Assim, ainda que estejam presentes, a sua oralidade não é exposta. Em muitos processos é possível verificar que as partes, do início ao fim da demanda, não estiveram presentes no Tribunal e não participaram de nenhum ato processual. Quero dizer com isso que é absolutamente normal que as partes de um processo judicial nunca tenham estado diante do Juiz que o conduziu. A sua presença não é obrigatória e a sua participação totalmente prescindível. Obviamente que às partes é concedido acesso e presença nos atos processuais públicos sempre que queiram. Entretanto, caso não queiram estar diante do Juiz em nenhum momento processual, tal postura não alterará em nada o transcurso da ação. Trata-se, a sua ausência, de um ato absolutamente legítimo diante da legislação processual vigente. Como dito, somente nos casos em que seja necessário o depoimento pessoal das partes é que a sua presença diante do Juiz se torna obrigatória. Nessas circunstâncias, a ausência das partes repercute em confissão, pena cuja conseqüência é considerarem-se verdadeiros todos os fatos alegados pela parte contrária (arts. 342 e 343). Destarte, prever a oralidade como uma garantia e como um princípio necessariamente norteador do processo é desconsiderar os rituais judiciários. É certo que a presença das partes pode ocorrer sempre, mas é certo também que pode nunca se efetivar. Em sendo assim, a imediatidade, no processo, é opcional, não podendo, por conseguinte, ser alçada à categoria de princípio. Vale dizer, feitas estas reflexões, que, no capítulo seguinte, descreverei algumas práticas judiciárias (inferidas no decorrer da pesquisa realizada nas Varas Cíveis do Tribunal
132
É muito comum, nas audiências de conciliação, verificar-se os advogados solicitando às partes que não falem, salvo quando questionadas pelo Juiz (ou conciliador/juiz leigo). Muitas vezes, as partes querem falar e, por serem repreendidas, manifestam-se em voz baixa; praticamente, cochicham com os seus advogados, como se fosse prejudicial ao processo falarem abertamente aquilo que pensam ou desejam. Mesmo quando se trata, por exemplo, de propor um valor para um possível acordo, é normal que as partes falem no ouvido do advogado aquilo que querem e ele repasse a proposta, oralmente. Reputo oportuno lembrar o texto da Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica - adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada em San José da Costa Rica, em 22/11/1969, e ratificada pelo Brasil, integrando o ordenamento jurídico brasileiro por força do Dec. 678, desde 06/11/1992: “Artigo 8º. Garantias judiciais: 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”.
de Justiça do Rio de Janeiro) cuja ligação com a oralidade e/ou a escritura repercute na construção da verdade processual. Destaco, oportunamente, que a ínfima participação das partes no curso do processo civil brasileiro relaciona-se sobremaneira com a forma como o campo do Direito absorve o conceito de verdade e, conseqüentemente, à “sensibilidade jurídica” ou o “sentido de justiça” (GEERTZ, 1998) desse campo para administrar os conflitos que lhe são submetidos pela sociedade. A sensibilidade jurídica varia culturalmente (GEERTZ, 1998)133. Nos sistemas jurídicos da civil law – e assim funciona no caso do Brasil – o sentido de justiça está intrinsecamente ligado ao conceito de verdade. E a verdade, por sua vez, é algo transcendente ao homem. Por isso a freqüente vinculação ao sagrado e a intensa simbologia do divino se fazem presentes nos rituais e cerimoniais judiciários brasileiros. Como descreve Garapon (1997; 2003), a verdade não é fruto de um consenso entre as partes; não é verossimilhança, como na common law. A verdade processual, no Brasil, está representada pela concepção do “tudo saber”, ela não é objeto de uma construção. Ela está situada em algum lugar a ser desvendado pelo magistrado, representante público e ministro dessa verdade. Ao Juiz cabe “apurar a verdade dos fatos”134. Essa questão está ligada, também, à exigência do Direito de que os Juízes sejam absolutamente imparciais. A imparcialidade é um princípio processual definido da seguinte forma pela dogmática: “O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O Juiz coloca-se entre as partes e acima delas: esta é a primeira condição para que possa exercer sua função dentro do processo. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente [...] A imparcialidade do Juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial: e o Estado, que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente 133
Sensibilidade jurídica, segundo Geertz (1998, p. 260), “é a maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado”. Geertz (1998, p. 274-275) esboça três variedades bastante distintas de sensibilidade jurídica: a islâmica, a índica e a do chamado direito costumeiro (Malásia-Polinésia). A sensibilidade islâmica está preocupada com a “verdade” ou “validade”; a índica, com o “dever” ou “obrigação”; e o do direito costumeiro, com a “prática” ou “consenso social”. 134 Kant de Lima (2004-a, p. 14) destaca que essa expressão comprova a forma contraditória com que se estrutura o sistema jurídico brasileiro, fundamentado em teses opostas e não em fatos formulados consensualmente e caracterizado pela incorporação bastante flexível de argumentos e dados no processo que deixam a decisão sobre a valoração do Juiz, através do seu livre convencimento. Kant de Lima ressalta que esta expressão “apurar a verdade dos fatos” não pode ser vertida, por exemplo, para a língua inglesa, uma vez que a noção de fato nesta cultura implica, necessariamente, a noção de verdade construída consensualmente. Verdade é aquilo que todos concordam que é.
dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.”. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1997, p. 51-52)
Aliás, simbolicamente, vale lembrar que a venda nos olhos da Deusa Grega da Justiça, Themis, representa, justamente, a sua imparcialidade. Ela, supostamente, não enxerga diferenças entre as partes em litígio. Um processo fulcrado na idéia de que deve servir de mecanismo à descoberta de um verdade transcendente, por óbvio, exige, também, um Juiz imparcial, um Juiz que desvende a verdade tal como ela é, independentemente de circunstâncias externas. Em sendo assim, desconsiderando-se a possibilidade de as partes, consensualmente, através do diálogo, buscarem uma verdade que lhes pareça conveniente, o processo acaba por ser o caminho através do qual o Juiz descobrirá essa verdade e não o percurso a ser seguido pelas partes. O processo é um instrumento do Juiz e não das partes, razão pela qual a participação destas é sempre passiva, ocupando, o Juiz, o papel central. A dogmática reconhece a busca incessante pela verdade como a função primordial do processo e como o fundamento da atuação do Juiz: “[...] nada mais natural do que eleger, como um dos princípios essenciais do processo – senão a função principal do processo de conhecimento -, a busca da verdade substancial [...] assim, nota-se que a idéia (ou o ideal) de verdade no processo exerce verdadeiro papel de controle da atividade do magistrado; é a busca incessante da verdade absoluta que legitima a função judicial e também serve de válvula regulatória de sua atividade, na medida em que a atuação do magistrado somente será legítima dentro dos parâmetros fixados pela verdade por ele reconstruída no processo.”. (MARINONI, ARENHART, 2005, p. 249-250)
As práticas a serem explicitadas no próximo capítulo advêm dos dados colhidos em campo e, acredito, apontam a inter-relação existente entre oralidade e verdade, foco principal deste trabalho.
CAPÍTULO IV: AS PRÁTICAS JUDICIÁRIAS ORAIS EM 1ª INSTÂNCIA: LEGITIMANDO O NÃO INSTITUÍDO OU INSTITUINDO O NÃO LEGITIMADO?
“[...] A audiência é ato processual complexo, que encerra a expressão máxima do princípio da oralidade e concentra toda a atividade quase divina da missão de julgar, posta nas mãos dos homens por intermédio de seus juízes.”. (grifou-se) (ANDRIGHI; BENETI, 1997, p. 45)
1. As audiências: a materialização da oralidade na 1ª instância processual A materialização da oralidade no processo civil se verifica, basicamente, nas audiências, que são reconhecidas pela dogmática – embora não tenha sido esta a expressão do campo - como o momento mais marcante do sistema oral, por ser o ato em que se caracteriza que “a Justiça ouve” (ANDRIGHI; BENETI, 1997, p. 9). No processo civil, três são as audiências fundamentais: 1) a audiência realizada no processo sumário (arts. 277 a 281 do CPC); 2) a audiência preliminar do procedimento ordinário (art. 331 do CPC); 3) a audiência de instrução e julgamento, com representação comum a ambos os procedimentos (arts. 450 a 457 do CPC). Todas as audiências, em princípio, são públicas, conforme prevêem a Constituição Federal, no art. 93, inciso IX, e o Código de Processo Civil, no art. 444 do CPC, salvo quando a Lei restringe de forma expressa, como, por exemplo, nos casos do art. 155 do CPC. No procedimento sumário, a previsão legal expressa de manifestações orais cinge-se a apresentação da defesa; da réplica; das decisões incidentais eventualmente proferidas pelo Juiz; das alegações finais dos advogados e da sentença. No procedimento ordinário, especificamente na audiência preliminar, os rasgos de oralidade previstos na Lei centram-se no Juiz e em eventual manifestação dos advogados, uma vez que esta audiência destina-se, além da conciliação, à fixação dos pontos controvertidos da lide e ao saneamento do processo, decisões que cabem ao Juiz. Na audiência de instrução e julgamento, a oralidade legislada restringe-se aos depoimentos orais prestados; às alegações finais dos advogados e à sentença. Na prática, inexistem atos orais nas circunstâncias legalmente determinadas.
No procedimento sumário, conforme descrevi no capítulo anterior, as audiências são delegadas a conciliadores ou juízes leigos. Assim, geralmente o advogado do réu entrega a defesa escrita; o advogado do autor não faz réplica e o Juiz toma as decisões em seu gabinete, em ato posterior à audiência. Dificilmente, um processo em curso mediante o procedimento sumário termina nesta mesma audiência, pois, normalmente, há provas a serem produzidas, de forma que é absolutamente incomum haver alegações finais orais em audiência e, menos ainda, a prolação de sentenças, já que o Juiz não preside a audiência. Vale dizer que as alegações finais orais feitas pelos advogados constituem a última possibilidade de defesa das partes antes de ser proferida a sentença. Neste ato, é concedido oportunidade aos advogados, a fim de que, resumidamente, destaquem os pontos mais fundamentais da sua defesa. Trata-se de manifestação eminentemente oral, no entanto, verifica-se que, na prática, geralmente são apresentadas por escrito, na forma de memoriais, nos termos do art. 454 do CPC 135 ou, então, na própria audiência, sendo que cingidas à expressão “me reporto”. Quando apresentadas por escrito, o Juiz defere um prazo para que os advogados preparem a peça, onde resumem a sua defesa, ressaltando os aspectos que lhe sejam favoráveis e destacando as provas que tenham sido produzidas a fim de comprová-los. Quando restringidas à expressão “me reporto” significa que os advogados não elaborarão uma peça escrita, mas, tampouco, farão uma defesa oral elaborada na audiência. “Reportar-se” significa remeter-se a todas as peças e provas já constituídas nos autos processuais. Quando o advogado diz, na audiência, “me reporto”, ele está dizendo que a sua defesa está representada por tudo o que consta no processo. Esta prática vem sendo adotada como uma forma de imprimir celeridade aos atos processuais. Trata-se de mais uma “criativa” postura adotada nos rituais forenses a fim de suplantar procedimentos em nome da celeridade. Aliás, atualmente, vem, praticamente, sendo imposta pelos magistrados que, antes de consultarem os advogados sobre como pretendem se manifestar em alegações finais, sugerem “Os Doutores se reportarão ao conteúdo dos autos?”. Um advogado que entrevistei durante a pesquisa, disse-me: 135
A apresentação de memoriais escritos em vez de alegações finais orais é prática recorrente e institucionalizada. O Superior Tribunal de Justiça se pronunciou certa vez sobre o tema, manifestando-se no sentido de que tal prática seria exceção à regra, mas em campo, pude observar que são muito raros os casos em que os advogados apresentam alegações orais em audiência. O entendimento do STJ foi o seguinte: “Em princípio, a regra do art. 454, CPC, adota a oralidade como regra na instrução e julgamento, sucedendo à instrução a faculdade de as partes sustentarem, oralmente e na mesma audiência, suas razões finais antes do julgamento. A substituição dessa fase oral por memoriais vincula-se às ‘questões complexas de fato ou de direito’ mencionadas no dispositivo, traduzindo–se, assim, em exceção à regra.”. (Recurso Especial n o 167.383/DF, 4ª Turma do STJ, Ministro Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira).
“Atualmente, embora seja regra processual, os Juízes estão indeferindo a apresentação oral das alegações finais e determinando que as façamos por escrito. A falta de paciência e a urgência de encerrar o mais rápido possível as audiências estão fazendo com que regras consagradas pelo CPC estejam sendo sobrepujadas pelos próprios magistrados. Quer dizer, entrando no tema da sua pesquisa, você pode ver que, no caso, a Lei prevê a possibilidade de eu me manifestar oralmente e o Juiz me impede por estar com pressa. Quer dizer, a escrita prevalece mesmo quando a regra é a oralidade.”.
Uma advogada por mim entrevistada esclareceu-me por que não é comum aos advogados manifestarem-se em alegações finais orais: “Os Juízes não têm mais tempo, nem paciência, para ouvir os advogados. Além disso, é comum que não registrem as nossas manifestações da forma como gostaríamos. Então, acabamos prejudicando os clientes. O objetivo é fazer a melhor defesa possível e, hoje em dia, por causa da excessiva carga de trabalho dos Juízes, o mínimo de manifestação oral é mais prudente. Os Juízes, realmente, não têm mais condições de ouvir nossos discursos. Se queremos fazer uma boa defesa oral, o tiro sai pela culatra, pois vamos deixar o Juiz impaciente. Então, ou requeremos prazo para nos manifestarmos por escrito ou nos reportamos às peças já apresentadas e ... pronto.”.
Quanto às audiências preliminares do procedimento ordinário, vale dizer que, conforme explicitei no capítulo anterior, tampouco são presididas pelo Magistrado, de modo que, na prática, destinam-se, estritamente, à tentativa de conciliação das partes. As decisões que devem ser tomadas nessa audiência (saneamento do processo e fixação dos pontos controvertidos da demanda) são prolatadas pelo Juiz em seu gabinete, por escrito, dando-se ciência aos advogados através da publicação do seu teor no Diário Oficial. Inexiste debate ou discussão sobre esses pontos, tudo se faz por escrito: o Juiz decide e os advogados, ao tomarem ciência da decisão, ou a cumprem – também por escrito – ou, caso tragam prejuízo à parte, dela recorrem, igualmente por escrito. Os dados da pesquisa confirmam que as audiências preliminares são presididas por conciliadores ou juízes leigos, de modo que não há como o saneamento do processo se efetivar oralmente, pois cabe ao Juiz fazê-lo. No entanto, impõe explicitar o entendimento dogmático. A doutrina, desconsiderando dados empíricos e voltando-se para o mundo do “dever-ser”, insiste em pronunciar-se de forma discrepante:
“[...] a doutrina tem entendido, em maioria, que se introduziu nova forma de oralidade com a audiência preliminar, desaparecendo, para os feitos que têm essa audiência, a anterior forma de saneamento proferido por escrito em gabinete, com posterior intimação das partes. Agora, nesses casos, deverá o juiz sanear o processo em audiência, oralmente. Desse modo ainda mais se aproximará o juiz do que se tem denominado de ‘diálogo com as partes’, ato em que o juiz, para o exame dos ocasionais vícios do processo, ouve os interessados e decide sem surpreendê-los, decide e aponta os seus fundamentos imediatamente, decide pela provocação e perante as partes. Uma tal decisão saneadora proferida oralmente deve, de imediato, ser reduzida a escrito, por termos nos autos, fundamentadamente, como forma de permitir a interposição de eventuais recursos.”. (GUEDES, 2003, p. 107-108).
Nas audiências preliminares, sequer a presença física das partes é obrigatória. Os advogados tampouco são obrigados a comparecer. Normalmente, os advogados vão a esta audiência porque se considera falta de profissionalismo e até desrespeito a sua ausência. No entanto, inexiste sanção, quer processual, quer disciplinar, para o não comparecimento do advogado a este ato. Por outro lado, as partes dificilmente se fazem presentes, até porque, como a audiência preliminar, empiricamente, tendo em vista a delegação da função de presidila, não se destina - como manda a Lei - ao saneamento do processo ou à discussão dos pontos controvertidos da demanda, mas, exclusivamente, à tentativa de conciliação, a sua presença é prescindível, já que em qualquer momento processual que queira, pode transigir com a parte contrária. A ausência de todos na audiência preliminar é tida como mera recusa momentânea à conciliação, não repercutindo de nenhuma outra forma. Isto, inclusive, dá margem a que o Juiz tenha a liberdade de decidir sobre provas, nulidades ou incidentes em seu gabinete, por escrito e monocraticamente, sem a intervenção das partes. No campo da oralidade, a repercussão dessa postura é negativa, pois dificulta o diálogo e distancia as partes, a partir do momento em que a sua participação se faz desnecessária. A audiência preliminar seria uma forma de valorização e resgate da oralidade, mas não se realiza na prática. Aliás, nesse contexto, vale dizer que o sistema processual civil está estruturado de forma que a presença das partes, quando comparada a dos demais participantes do processo é a mais dispensável. Por exemplo: se as partes não comparecem à audiência preliminar, mas os
advogados comparecem, o ato é realizado. Se, entretanto, as partes se fazem presentes, mas os advogados não, o ato não é realizado. Se a ausência for do Juiz, nenhum ato oral se efetiva. No que pertine às audiências de instrução e julgamento - terceiro exemplo típico de manifestação oral em audiências do processo civil - nestas sim, a oralidade emerge. As provas orais concentram-se nesta audiência, de modo que neste ato ouvem-se os peritos, os assistentes técnicos, as partes e as testemunhas. Além disso, há incidentes que podem surgir no ato e que exigem decisão imediata, suscitando debates orais, como, por exemplo: o entendimento do Juiz de que uma determinada testemunha não precisa ser ouvida, ao passo que para o advogado ela se faz relevante; o indeferimento de perguntas dos advogados às testemunhas; a contradita de uma testemunha aparentemente suspeita136; ou, até mesmo, a acareação137. Na audiência de instrução também pode haver a manifestação dos advogados em alegações finais e a prolação da sentença pelo Juiz. Embora não seja comum, predominando, sobremaneira, a apresentação de memoriais escritos, ocorre de os advogados apresentarem alegações orais (art. 454 do CPC). Ao menos, esta prática é mais presente na audiência instrutória do que naquela do procedimento sumário. Quanto à prolação da sentença, é ato muito raro de ocorrer em audiência. O princípio da concentração, fulcrado, justamente, na previsão de que a audiência instrutória é una e indivisível (art. 455 do CPC), privilegia a prolação da sentença em audiência sob o fundamento de que a decisão mais justa é aquela que considera as provas 136
A contradita está prevista no art. 414, §1º, do CPC. A parte contrária pode contraditar a testemunha sempre que a considerar incapaz, impedida ou suspeita para prestar depoimento. Os casos de incapacidade, impedimento e suspeição estão expressos no art. 405 do CPC. Para fins de reflexão, convém explicitar que no processo inquisitorial do Santo Ofício havia um instituto com este nome (contradita) e com características semelhantes. A contradita era um jogo de adivinhação. O segredo sobre os nomes das testemunhas e sobre a própria acusação fazia com que o suspeito – que na verdade já era acusado, uma vez que a presunção era de certeza do crime, não de suspeição – tivesse de ir adivinhando tanto o crime que lhe imputavam quanto as pessoas que haviam prestado testemunho desfavorável. A partir desse jogo, o suspeito tentava descobrir os nomes das testemunhas, a fim de, na medida do possível, chamar outras pessoas que contraditassem os depoimentos daquelas. A contradita era privativa do advogado do suspeito, uma vez que este, mesmo sendo letrado, não podia se manifestar sobre a eventual suspeição dos depoentes (LIMA, 2001). Obviamente, que a contradita atual não funciona desta forma, pois, previamente, os advogados já sabem quem prestará depoimento em audiência (art. 407 do CPC), mas não há como deixar de descrever as raízes inquisitoriais do procedimento. 137 A acareação está prevista no art. 418, inciso II, do CPC. Ocorre quando existem declarações divergentes sobre fato determinado que possa influir na decisão da causa. É muito raro acontecer na prática, até porque, considerando-se que o Juiz tem o livre convencimento para decidir e valorar as provas produzidas nos autos, quando ele desconfia de algum depoimento, simplesmente o desconsidera. E os advogados, por sua vez, aproveitam a oportunidade para desqualificar a versão da parte contrária. Para os advogados tampouco é interessante, pois, comumente, utilizam-se de um depoimento aparentemente suspeito para, a partir dele, anular por completo a versão oposta. Nesse sentido, é bom haver contradição. A “especialidade” dos advogados é, justamente, a partir dos depoimentos, aproveitar trechos minimamente contraditórios ou equívocos aparentemente normais, a fim de privilegiar o seu argumento, desqualificando o do outro. Um advogado contoume que o objetivo é sempre “poder trabalhar os discursos de forma a favorecer os interesses do cliente”.
colhidas de imediato, diante do Juiz, com o intuito de que todos os elementos da instrução estejam claros em sua memória. Guedes (2003, p. 63) resume com clareza a concepção doutrinária sobre o tema: “O princípio da concentração se destina à produção de uma maior quantidade de fases processuais ou parte delas num menor espaço de tempo, seja realizando número reduzido de audiências ou reunindo instrução e julgamento. Manifesta-se de duas maneiras, seja abreviando o número de atos processuais ou encurtando o tempo entre os atos (aspecto objetivo) ou mesmo pela proximidade temporal entre aquilo que o juiz apreendeu com sua observação pessoal, e o momento em que deverá avaliá-lo na sentença, é o elemento decisivo para a preservação das vantagens do princípio (aspecto subjetivo) [...] Tem, como visto, sentido praticamente restrito à fase de instrução realizada em primeiro grau. Capital para a concentração é a unicidade da audiência. As vantagens apontadas dizem respeito à capacidade física do prolator da decisão em preservar na memória, nitidamente, aqueles aspectos relevantes ao desenlace da causa, prejudicado pelo eventual transcurso do tempo.”.
Infere-se que, também este subprincípio da oralidade não se materializa, pois raras são as sentenças proferidas em audiência pelos magistrados, especialmente, em se tratando de processos em curso nas Varas Cíveis. Hoje, como antes, a sentença é pronunciada muito tempo depois da discussão, de modo que o aspecto da memória do julgador não prevalece (CHIOVENDA, 1938). Vê-se, pois, que, empiricamente, nos três tipos de audiências mencionados (audiências do procedimento sumário; audiências preliminares do procedimento ordinário e audiências de instrução e julgamento) as manifestações orais são desconsideradas. Alguns magistrados que entrevistei culpam os advogados: “Você vê na prática que os advogados não se preparam para a oralidade. Eles preferem fazer tudo por escrito, mesmo que a Lei coloque essas facilidades, eles se sentem bastante inseguros. A gente sente muita falta de advogados preparados para essa situação da oralidade. São muito inseguros. É só uma questão de estudo e de preparo.”. (Juiz de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “Eu particularmente gosto do advogado que tem coragem para sustentar oralmente as suas razões finais, por exemplo. O problema é que a maioria das vezes ele faz isso porque não teve tempo de preparar por escrito não porque ele quisesse, realmente, fazer oral. Não porque ele veio para fazer valer o princípio da oralidade e trabalhar em
cima dele. Os advogados sempre se desculpam quando vão fazer oralmente as suas alegações.”. (Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Em campo, foi possível perceber alguns outros motivos pelos quais a oralidade é desprestigiada, tanto por Juízes, quanto por advogados. No decorrer deste capítulo, essas questões serão traçadas com maiores detalhes, valendo, no entanto, desde logo, citá-las. Os advogados não apresentam defesa oral, nem fazem alegações finais orais, por exemplo, porque, normalmente: não estão preparados para falar em público; não leram o processo minuciosamente; têm receio de serem repreendidos; não há mais tempo disponível no processo para o diálogo e para que as pessoas escutem umas às outras; entendem que a escrita, por ter o aspecto da reflexão, permite melhor elaboração e organização das idéias e, por conseguinte, maior possibilidade de êxito no convencimento do julgador. Um advogado por mim entrevistado, asseverou: “Apresento tudo o que posso por escrito porque os Juízes não têm mais tempo disponível, nem paciência, para ouvirem as argumentações orais dos advogados. Além de ser cansativo é um procedimento muito demorado. Também acho que as peças escritas possibilitam que você apresente a doutrina e a jurisprudência que corroboram a sua tese, o que é inviável na defesa oral.”.
Os Juízes, por sua vez, não proferem decisões em audiência e presidem o mínimo de audiências possível porque, por exemplo: consideram que isso os faz perder muito tempo; que a carga de trabalho que os assola impede que se possa escutar as argumentações da parte, até porque, geralmente, elas costumam ratificar o que já está escrito e o escrito eles podem ler independentemente da audiência; porque têm mais credibilidade na prova escrita; porque as pessoas mentem em Juízo. O discurso de um magistrado que entrevistei é representativo. Ele esclarece - além dos motivos que destaquei acima - que muitos magistrados não marcam audiências para se escusarem de julgar o processo: “Olha só, eu faço aqui, eu tenho na minha pauta, dezesseis horários no mês para audiências. Eu não faço dezesseis audiências por mês. Eu não faço nem dez. Tem mês que eu só faço seis audiências. E eu não acho que tem prejuízo nenhum para a prestação jurisdicional. É mais fácil você designar uma audiência do que você não designar porque se você não vai designar, você vai ter que julgar. Muita audiência é
designada porque o Juiz não teve tempo de ler o processo e verificar que a prova oral não é necessária. Então, ele designa a audiência. Só que lá na frente ele vai sentir falta desse tempo. É como se fosse um cheque especial. Eu não, eu faço de forma diferente. Eu só designo audiência quando há estrita necessidade da produção de prova oral. Evidente que em audiência eu procuro conciliar as partes e logicamente eu estudei muito bem o processo para fazer a audiência. Então isso é muito positivo porque você desde antes da colheita da prova você já menciona aspectos importantes do processo porque você conhece. Eu fico fulo da vida quando o advogado quer, primeiro, explicar. ‘Ah, eu queria explicar o que é isso aqui’. Ora, eu sei o que que é isso. Eu examinei o processo, tanto que eu examino o processo já para proferir a sentença em audiência. A não ser que isso vá me demandar muito tempo. Mas tudo que eu posso fazer para adiantar eu faço. Não há lugar para essa coisa de ‘Ah, vamos conversar, ah, vamos ver.’ Perguntas impertinentes ... o advogado, olha só, ele tem todo o interesse de estar aqui na frente do juiz do lado da parte porque é quando ele mostra o trabalho dele. Então, às vezes ele inventa perguntas porque a parte está ali. E o Juiz, nos termos do art. 130 do CPC, ele deve indeferir as provas inúteis. Eu acho que é muito mais salutar você fazer o saneamento do processo no papel do que você fazer em audiência. Audiência é ruim, todo mundo quer falar, o advogado quer registrar as manifestações dele ... é problemático.”. (Juiz em exercício em Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro).
Um aspecto interessante para descrever neste tópico diz respeito ao formalismo presente nas audiências e a etiqueta inerente a esses atos, que acaba por funcionar como um mecanismo de identificação de quem integra e quem não integra o campo. É certo que o Direito não é um campo afastado do social, constituindo-se de valores culturais próprios da realidade social em que é aplicado (KANT DE LIMA, 1983; GEERTZ, 1998; EILBAUM, 2006). Ocorre que, ao mesmo tempo, algumas normas internas legitimadas por esse campo o afastam do contexto real. A etiqueta exigida para participar dos rituais, por exemplo, é uma demonstração de que o campo jurídico não está no mesmo compasso do social. As regras do Direito são internalizadas exclusivamente entre os operadores, de maneira que não atingem e não são compreendidas por quem esteja “fora” desse campo, tratando-se, obviamente, de um mecanismo típico de isolamento. A força dos rituais envolve uma performance na qual o desempenho específico e esperado dos atores é sempre fruto de observação, sendo certo que, igualmente, produz efeitos e sentidos no campo. A correta manipulação da “etiqueta” exigida nos rituais judiciários é um aspecto central no campo do Direito (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002).
Por essa razão, é comum às pessoas que não estão acostumadas com o Judiciário espantarem-se com certas reações e comportamentos. Aliás, este é um fator importante que contribui para o desconforto freqüentemente relatado pelos cidadãos quando necessitam estar diante de um Juiz. Há muitos rituais previamente determinados pelo campo - e de conhecimento exclusivo deste - que são exigidos da sociedade como se fossem óbvios. Além disso, são demandados dos próprios integrantes que, quando não os conhecem, são estigmatizados. Por exemplo, nas audiências, os advogados, antes de requererem algo ao Juiz, manifestam-se dizendo “pela ordem Excelência” e, quando discordam do Juiz, expressam-se pedindo “venia” (data venia)138. Igualmente nesses atos, aos advogados é exigido saber exatamente onde tomam assento, conforme estejam representando o autor ou o réu, sob pena de serem taxados de “iniciantes”. Às partes, mesmo que nunca tenham estado em um Tribunal, é demandado que saibam se dirigir ao magistrado, tratando-o sempre de “Excelência”139. Elas devem conhecer, também, a sistemática de uma audiência. Isto é, têm de estar cientes de que não podem conversar entre si, a não ser que tenham sido expressamente autorizadas pelo Juiz; de que não podem olhar para o seu advogado, ou tirar dúvidas, no momento em que estiverem prestando depoimento pessoal; de que não podem consultar escritos; de que não podem falar com a testemunha quando esta estiver depondo; de que não podem fazer requerimentos diretamente ao Juiz, devendo necessariamente fazê-los por via de seus advogados. Por sua vez, às testemunhas, igualmente, exige-se - mesmo que jamais tenham estado diante de um Juiz - que saibam se comportar conforme a etiqueta forense. Então, por exemplo, elas têm de saber que não podem presenciar os depoimentos umas das outras; que não podem olhar para o advogado enquanto falam; que não podem se dirigir às partes; que só podem responder às perguntas do Juiz, não podendo contestar diretamente ao interrogante. Todas essas normas são internalizadas apenas pelo Direito, mas, ainda assim, o seu cumprimento é reclamado como se reproduzissem práticas óbvias e comportamentos comuns à sociedade, que, aliás, em não os conhecendo e a eles não se submetendo, é tida como “desviante”.
138
“Data venia” significa “com permissão”, “com todo o respeito”. Eu presenciei certa ocasião uma audiência em que a testemunha chamou o Juiz de Doutor e foi por ele advertida de que o tratamento correto de magistrados seria “Vossa Excelência”. Por vezes a testemunha esqueciase e novamente o chamava de Doutor, até que foi duramente aconselhada a não repetir o erro, sob pena de se encerrar a colheita da prova. 139
Essas normas instituídas não estão legisladas, de modo que só as conhecem quem está rotineiramente nos Tribunais. Além disso, na sistemática processual, a etiqueta determina momentos específicos para todo o tipo de ato, inclusive, o ato de falar. Expressar-se verbalmente em Juízo não é algo natural; é um ato formal que exige previsão. É comum, em campo, ver partes ou testemunhas manifestando-se oralmente em momentos tidos como impróprios serem veementemente repreendidas por isso. Assim, obviamente, são raros os momentos de diálogo. Aliás, sobre a questão do diálogo, considero um dado relevante o fato de, durante toda a pesquisa, eu ter visto apenas um Juiz de Vara Cível que preside todas as audiências designadas no curso do processo e que, com efeito, ouve as argumentações dos advogados e toma as decisões, neste ato, sobre provas, pontos controvertidos e saneamento do processo. Segundo esse Juiz, ele assim o faz por entender que, no futuro, economiza tempo, uma vez que decidindo tudo na audiência, de comum acordo com as partes, evita a interposição de recursos e programa o curso do processo, facilitando as etapas posteriores e dinamizando os atos. A dogmática reconhece – ainda que a prática não efetive - a importância da participação do Juiz na presidência das audiências e na importância desse contacto, mas ao invés de privilegiar essa prática em nome de um possível diálogo a viabilizar o consenso, o faz em nome do contraditório. Nesse sentido, destaque-se o trecho abaixo, extraído da obra de Guedes (2003, p. 111), que trata do princípio da oralidade no processo civil brasileiro: “Na audiência [do art. 331] pode ser estabelecido um pequeno contraditório, também, sobre a validade e utilidade dos meios de prova requeridos por uma ou por outra parte. Favorecidas as partes pela imediatidade, pois segundo a doutrina ‘aqui é o local onde a oralidade funciona com plena eficácia’, porque o contato direto e pessoal do juiz com as partes e os seus procuradores, na determinação da prova, é extremamente profícuo, uma vez que o diálogo faz com que as questões fiquem melhor resolvidas – e por assim dizer digeridas, permitindo uma troca recíproca de argumentações -, o que só serve para enriquecer o debate, evitando-se, com isso, a produção de provas desnecessárias, inúteis, incompatíveis e irrelevantes, além de se evitar um sem número de recursos.”.
Aquele Juiz (que tive oportunidade de observar durante a pesquisa) que preside todas as audiências do processo é uma exceção à regra. A maioria dos Juízes não preside as audiências, delega estas funções, limitando o seu trabalho a decisões monocráticas, tomadas
em seu gabinete, sozinho, e por escrito. Há casos corriqueiros, em que o magistrado marca a audiência só para evitar eventual alegação de cerceamento de defesa e, conseqüentemente, anulação de todos os atos do processo. Um Juiz deixou isso claro em entrevista por mim realizada: “Muitas vezes faço audiências só para evitar cerceamento de defesa. Quando vejo que o advogado vai pedir a nulidade da sentença se eu indeferir a prova oral, aí faço. Senão, julgo antecipadamente, quando acho que as provas escritas são suficientes para fundamentar a minha convicção”.
Na verdade, na maioria dos casos, nem mesmo a audiência de instrução é designada. A decisão de marcar audiências é puramente subjetiva, dependendo necessariamente do entendimento do Juiz. Há casos idênticos em que um Juiz designa audiência e outro não140. Nesse sentido, a oralidade se materializa segundo o entendimento do julgador, ficando a participação das partes condicionadas ao seu arbítrio. A subjetividade da decisão de designar audiências foi assunto recorrente na pesquisa de campo. Nas entrevistas que realizei pude observar que há juízes que não marcam audiência nunca; há outros que raramente marcam e há outros que sempre marcam, como se denota dos discursos destacados abaixo: “Não tenho como falar objetivamente sobre se se faz mais audiências para ter contacto com as partes ou menos audiências. Depende de cada caso, isso é uma situação muito particular. Mas eu posso dizer o que eu faço: a minha postura é julgar ao máximo sem marcar audiência, julgar de plano, antecipadamente. Evito ao máximo marcar audiência e isso não tem nada a ver com a pauta estar longa. Quando tenho que 140
Na prática, a designação de audiências no processo civil, na maioria dos casos, é flexibilizada segundo o entendimento do Juiz que conduz a ação. Isto porque os critérios impostos pela legislação processual para que sejam realizadas tais audiências têm cunho extremamente subjetivo, demandando interpretação particularizada. Os critérios processuais são, basicamente, os seguintes: 1) no procedimento sumário, quanto à primeira audiência, o critério é excepcionalmente objetivo, uma vez que ela deve ser sempre designada, pois configura o momento de apresentação da defesa; 2) no procedimento ordinário, as audiências preliminares (art. 331 do CPC) devem ser designadas conforme a natureza do Direito discutido: em se tratando de direitos disponíveis, a audiência tem de ocorrer; em caso de direitos indisponíveis, ela é desnecessária; 3) em ambos os procedimentos, em se tratando de audiência de instrução e julgamento, só deve se realizar quando for necessária a produção de prova oral. No caso, por exemplo, das audiências preliminares do procedimento ordinário, a questão é polêmica: há quem entenda que esta audiência é obrigatória, sendo um ato essencial do processo; e há outros que defendem ser esta audiência opcional, condicionando-se ao alvitre exclusivo das partes. A modificação recente da redação do art. 331 do CPC, de certa forma, minimizou a controvérsia, ao prever que a audiência só deve ser designada quando se tratar de processos em que se discutem direitos que “admitem transação”. Mas, ainda assim, há Juízes que designam sempre; há outros que não designam nunca; e há aqueles que designam apenas quando as partes manifestam interesse. Quanto às audiências de instrução e julgamento, o critério é altamente subjetivo. Saber quando a prova oral é necessária depende exclusivamente do Juiz. Ele pode entender que a prova escrita já produzida é suficiente e não precisar da prova oral; mas há casos que pode entender que, concretamente, a prova escrita não basta, necessitando ser complementada pela oral. Esta decisão depende unicamente do magistrado, melhor dizendo, da sua convicção.
marcar, eu marco. Não tenho motivo nenhum para não fazer audiência, eu só acho que devemos marcar só quando realmente tenha necessidade e nem sempre tem, aliás, muitas vezes, não tem necessidade.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “Quando eu pego um processo em que eu posso dar uma sentença, mas penso que a audiência pode vir a ser muito melhor do que a própria sentença, eu marco a audiência, até porque eu tenho folga na minha pauta. Mas isso é uma opção minha. Se eu quiser, eu faço, para tirar uma dúvida. Mas se os documentos me bastam, eu não penso em oralidade, eu julgo. O que as partes querem é a sentença. É isso que importa.”. (Juiz Titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro). “Quando é matéria só de Direito, essas causas não são indicadas para audiência. Marcar audiência é muito subjetivo, é uma questão de cada juiz. Eu, quando acho que um pedido de dano moral, por exemplo, é relevante, eu marco audiência. Se eu vejo que tem fundamento. Se não vejo, não marco não. Há colegas que não marcam quase nunca. É uma coisa casuísta. Eu sou uma das juízas que mais marca audiência. Não que eu goste muito de fazer audiência não, mas eu ainda marco. Se você ficar marcando audiência em todo pedido de dano moral complica, porque virou uma indústria. Aí a sua pauta vai ficar impraticável, desumana. Eu marco quando eu sinto que tem um fundamento. Aí eu ratifico, ou não, isso na audiência. Buscando a verdade real141 do processo, eu mesma peço que venham, inclusive testemunhas, que às vezes nem as partes pediram. Eu ouço todo mundo que possa me trazer os fatos e que tenha alguma coisa para me acrescentar.”. (Juíza em exercício em Vara Cível do Tribunal do Rio de Janeiro)
“Eu marco audiência em muitos, muitos processos. Eu marco muitas audiências. Acho importante. Nessas audiências, aí sim, só nas audiências, onde eu colho a prova oral, o 141
Interessante destacar o trecho da entrevista em que a magistrada, atuante em processos cíveis, fala em “verdade real”. O princípio da verdade real é, segundo a dogmática jurídica, próprio e exclusivo do Direito Processual Penal, tendo em vista que no Processo Civil vige o princípio da verdade formal. No Processo Penal predomina o sistema da livre investigação das provas pelo Juiz, sistema este que permite ao magistrado ir além do que consta nos autos processuais para descobrir a verdade. Já o Juiz do Processo Civil deve se satisfazer, no momento de julgar, somente com aquilo que consta nos autos, estando, a sua verdade, limitada ao que as partes apresentam em Juízo como prova. A verdade real do Processo Penal representa, de fato, a verdade transcendente (GARAPON, 1997), aquela que se encontra em algum lugar misterioso que só o Juiz, com o seu poder divino e com a sua autoridade, desvendará. No Processo Penal, onde se discute, indiretamente, a questão do “pecado” e onde o divino se faz mais presente, é imprescindível que se descubra a verdade real do evento criminoso. Isto é, o Juiz deve fazer de tudo para descobrir a verdadeira intenção do agente e todos os detalhes que envolveram o crime. Já no Processo Civil, como as discussões são, basicamente, de cunho patrimonial, os juristas se contentam com a verdade formal, isto é, com uma apuração restrita e possível dos fatos. Nesse sentido, é curioso que uma Juíza de Vara Cível esteja preocupada em descobrir a verdade real no processo civil. Esta entrevista ratifica, ainda, o que mencionei em tópico anterior, no sentido de que a divisão sistemática das áreas do processo em civil ou penal não merece prosperar, uma vez que ambas as disciplinas fazem parte do mesmo sistema e, como tal, se influenciam mutuamente.
princípio da oralidade se materializa. Ações de indenização por acidente de veículo, por exemplo, você tem que ouvir testemunhas porque você vê a mecânica do evento danoso na audiência, é necessário ter a prova oral. Se eu tenho dúvida, marco a audiência. Prefiro marcar do que depois, na hora de julgar, ver que deveria ter ouvido pessoas.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Destarte, a possibilidade de manifestação oral no processo também está condicionada à decisão do magistrado. Por isso afirmo que os dados da pesquisa sugerem que a oralidade é “do Juiz” e não das partes. A ele cabe, com exclusividade, julgar quando ela deve e quando ela não deve se materializar. Um Juiz por mim entrevistado, disse-me categoricamente: “O critério de definir se o processo vai prezar pela oralidade ou não, é do juiz. É ele quem decide se o rumo é escrito ou oral.”. Na prática, verifica-se – como mais adiante se confirmará - que o processo acaba se caracterizando como uma incessante troca de escritos, que acumula papéis e impede o diálogo das partes142. O discurso dos Juízes demonstrou que a oralidade é afastada sempre que possível. Portanto, a forma de o Judiciário administrar os conflitos é esta: as partes interessadas não participam do processo; o consenso não é alimentado; os advogados se digladiam através das peças processuais escritas, lutando para que a sua versão prevaleça; o Juiz não faz audiências, se fecha em sua função e um dia, se convence, lendo os papéis, de que a verdade de uma das partes deve prevalecer, e, então, prolata a sentença. É desta forma não participativa que os conflitos são administrados em nosso sistema judicial e, por conseguinte, é esta verdade, imposta na sentença, que o processo civil constrói. Os momentos orais previstos na Lei para serem concretizados nas audiências aqui descritas, como explicitado, são bastante mitigados pela prática judiciária. 2. Despachando: quando o escrito depende do oral “Despachar com o Juiz” é uma prática não instituída e nem sempre legitimada, mas habitual no foro143. Trata-se de uma espécie de oralidade oculta, não revelada em manuais, 142
Cappelletti (1972, p. 22) sustenta o mesmo a respeito do processo italiano: “O processo na Itália está baseado num intercâmbio de escritos que se torna um grande jogo de afirmações, negações, reticências, das duas posições, com todos os exageros e extensões que são típicas das manifestações escritas e que refletem uma duração insuportável do processo civi [...] a oralidade se destina muito mais a uma discussão cooperada entre o juiz e as partes do que a uma confrontação.”. 143 Foro é um termo usado como sinônimo de Tribunal. É o prédio do Tribunal. Aurélio Buarque de Holanda, em seu Dicionário da Língua Portuguesa, apresenta inúmeros significados para a palavra, sendo um deles ideal para retratar o que me interessa: “lugar onde funcionam os órgãos do poder judiciário”.
entretanto, uma marca de distinção: só conhecem essa prática aqueles que transitam usualmente nos foros. “Despachar com o Juiz” significa falar pessoalmente com o Juiz. Essa prática é utilizada por advogados tidos como diligentes. Esses advogados se dirigem aos gabinetes dos magistrados para despachar as suas petições, ou seja, os requerimentos feitos por escrito e que aguardam a decisão (também escrita) do Juiz. Trata-se de uma prática oral que se destina a reforçar o escrito ou mesmo a reconstruílo, de forma a convencer o julgador. A idéia que envolve esta prática é, também, agilizar o processo; não esperar pelo trâmite normal; passar na frente dos outros; ter um tratamento preferencial e ver o seu requerimento atendido prontamente. Para que se entenda a sistemática, alguns detalhes terão de ser explicitados. A prática de “despachar com o Juiz” funciona, pois, da seguinte forma: toda e qualquer manifestação do advogado, no curso do processo (isto é, fora das audiências) deve ser feita por escrito, mediante o protocolo de petições. A comunicação oficial do processo, realizada, por exemplo, entre advogado e juiz, entre perito e juiz, entre perito e advogados, entre advogados; enfim, qualquer tipo de manifestação processual, se dá através de petições escritas. As decisões do Juiz, por sua vez, também são proferidas por escrito e são publicadas no Diário Oficial (D.O.), consoante previsão do art. 236 do CPC. A publicação é feita de forma a constar no D. O., o número do processo, o número da Vara em que o mesmo tramita, os nomes das partes, os nomes dos advogados das partes, os números da OAB desses advogados e o conteúdo da decisão. É essencial, nos termos do §1º do art. 236 do CPC que conste da publicação, sob pena de nulidade, os nomes das partes e o de seus advogados. Pois bem, os escritórios de advocacia, normalmente, contratam empresas especializadas na leitura do D.O., de maneira que, assim, os advogados não precisam lê-lo todos os dias e é assim que eles tomam ciência, oficialmente, das decisões proferidas por escrito pelo Juiz. Publicada uma determinada decisão, conforme o seu teor, cabe aos advogados se manifestarem ou não. Havendo necessidade de pronunciamento escrito por parte do advogado, ele o faz através de petição. Então, por exemplo, se é publicada, no Diário Oficial, uma decisão do Juiz determinando às partes que se manifestem em provas e digam se têm interesse na realização de audiência conciliatória, no prazo de cinco dias, aos advogados cabe peticionar, por escrito, esclarecendo o que fora determinado pelo Juiz.
Esta petição feita pelo advogado em cumprimento à decisão judicial é protocolada no próprio Tribunal, no setor específico (PROGER – protocolo geral das varas) e de lá encaminhada para a Vara Cível onde tramita o processo. Ao chegar na Vara Cível - cujo acervo, como outrora esclarecido, é, em média, de 5.000 processos - esta petição fica aguardando até que seja possível a algum funcionário juntála aos autos e encaminhá-la ao Juiz. As Varas funcionam de forma que todos os dias são remetidos à conclusão (ou seja, encaminhados à apreciação do Juiz) um número determinado de processos. Algumas decisões podem até ser proferidas pelo escrivão, que é o titular da serventia, ou mesmo delegadas aos funcionários mais antigos das Varas. No entanto, há outros casos que dependem de manifestação específica do Juiz. Por ordem cronológica de chegada, as petições encaminhadas às Varas são separadas pelos funcionários de forma a identificar quais poderão ser por eles mesmos apreciadas e decididas e quais não poderão, devendo necessariamente ser remetidas à conclusão do Juiz. Feito isto, os funcionários separam em “pilhas” os processos que demandam apreciação do Juiz. Diariamente, algumas destas “pilhas” são enviadas à apreciação do Juiz, de modo que outras ficam aguardando. O tempo médio gasto para que todo esse trâmite se desenvolva varia de acordo com a Vara, mas se pode dizer que a média é de 2 (dois) meses entre o protocolo da petição pelo advogado e a remessa à conclusão do Juiz. Exatamente aqui surge a prática de “despachar com o Juiz”. Há advogados que não aguardam esse prazo e se dirigem ao gabinete do Juiz para “despachar a sua petição”, independentemente da “pilha” em que ela esteja. Isto é, o advogado dirige-se ao Juiz e pede a ele que aprecie o seu pedido imediatamente, conseguindo, com isso, economizar tempo e agilizar o processo. Os advogados que despacham com os Juízes conseguem adiantar muito o trâmite processual, uma vez que as suas petições não precisam passar por todo o procedimento normal da Vara. Os advogados adotam tal postura por variadas razões: ou porque têm pressa, sendo o seu pedido, de fato, urgente; ou porque o seu requerimento é muito específico e demanda uma leitura mais detalhada pelo Juiz, sendo necessária a intervenção pessoal para proceder aos esclarecimentos necessários; ou porque têm receio de que o Juiz não leia ou não observe documentos ou detalhes que para eles são fulcrais; ou porque querem, com efeito, interferir na decisão do magistrado, de forma a convencê-lo pessoalmente de que têm razão; ou porque
acham que a questão é complexa demais para ser entendida com a mera leitura da petição; ou porque querem realmente prioridade; enfim, pelos mais diversificados motivos. Um advogado por mim entrevistado, certa ocasião, esclareceu-me: “Eu vim despachar com sua Excelência porque já é a quarta vez que requeiro esclarecimentos periciais a respeito do laudo e ele não remete os autos ao perito. O processo é volumoso, são vários atos sendo adotados concomitantemente e com isso os autos não são nunca encaminhados ao perito. É o tipo de coisa que só mesmo falando com o magistrado porque assim ele determina a remessa ao perito na hora e eu já levo os autos ao escrivão e solicito que cumpra a determinação do Juiz de imediato. Você tem que ficar em cima, acompanhando passo a passo o processo. Se não for assim, não anda. O volume é muito grande, os Juízes, quando despacham as petições - na verdade, muitas vezes o secretário que despacha - não lê todo o processo para compreendê-lo por inteiro. Eles vão lendo de trás para frente e, geralmente, despacham o último pedido e pronto. O que ficou para trás, ficou. Isso vira uma bola de neve. É muito difícil sabe, muito difícil mesmo. Você não pode deixar passar nada. Às vezes, acontece isso, fica chegando um monte de petições e o Juiz não vê um pedido que você fez lá atrás, aí você tem que reiterar várias vezes até conseguir ser atendido.”.
É muito comum requerimentos não atendidos terem de ser reiterados. Há processos muito volumosos e, nesses casos, o Juiz não consegue ter uma dimensão do todo. É aí que entra a suposta diligência do advogado para fazer com que o processo tramite de forma mais organizada e sistemática. Além disso, há a questão da enorme quantidade de processos e a impossibilidade do Juiz de conhecê-los, bem como a necessidade de delegação de funções. Nesses casos, há questões importantes requeridas por advogados que não são, sequer, lidas. É por isso, também, que muitas vezes o advogado tem de intervir pessoalmente e despachar com o Juiz. Uma advogada com quem conversei, disse-me: “É inacreditável. Estou aqui hoje porque o Juiz não leu o meu requerimento. Eu não vou fazer uma nova petição, reiterar o que pedi, aguardar de novo o trâmite processual e vir aqui de novo simplesmente porque o Juiz não leu. Os clientes nem acreditam quando dizemos uma coisa dessas, quer dizer, que o processo deles têm que esperar de novo para ir à conclusão porque já foi, mas o Juiz não leu. Vou solicitar ao Juiz que retifique a decisão sem que eu tenha que fazer novo pedido.”.
Há casos, outrossim, bastante comuns, em que o Juiz determina a juntada de algum documento que, na verdade, já está nos autos. Nessas circunstâncias, os advogados também vão ao gabinete do Juiz despachar e mostrar, pessoalmente, onde está o documento. Um advogado disse-me: “O nosso trabalho é engraçado, sabe. Na verdade, é triste isso. Você acredita que eu estou aqui ... veja você mesma ... está aqui o processo. Olha o que o Juiz pediu? [juntada de um laudo médico]. Olha aqui exatamente o laudo. Está aqui. Era só folhear os autos. Está aqui, juntado desde a inicial, mas ele não viu. Como ele não viu, aí o cliente assume as conseqüências. Não mesmo, os meus clientes não. Você acha que eu vou esperar meses, juntar de novo o laudo ou então indicar o número das folhas em que o laudo está para que o Juiz veja. Não mesmo. Vou mostrar pessoalmente e requerer que o processo prossiga. Não vou cumprir este despacho por petição escrita. Não dá.”.
Essas questões levam a algumas reflexões. Uma inferência, por exemplo, concerne à postura de determinados magistrados. É praticamente regra nos Tribunais, os Juízes não serem afeitos a receber advogados para despachar. Os (as) secretários (as) dos Juízes, comumente, exercem a função de seus “seguranças”, situando-se na porta dos gabinetes de forma a impedir a entrada de advogados. É certo que tentam, de alguma forma, filtrar os casos que chegam ao Juiz, resolvendo-os eles próprios, mas muitas vezes, não fazem apenas isso, obstaculizam, definitivamente, o acesso ao gabinete. As explicações são as mais diversas. Por exemplo: a imensa carga de trabalho que os impossibilita de atender a todos os advogados; a inconveniência de certos advogados de se dirigem aos gabinetes com o verdadeiro intuito de dirimir dúvidas processuais e não de resolver problemas objetivos; o entendimento de que tal prática é antidemocrática, por ser uma forma de distinção, uma vez que nem todos podem ou sabem como adotá-la. Um magistrado que me concedeu uma entrevista, disse-me: “Eu não recebo advogados. Primeiro, porque acho que advogados têm que escrever e não falar. Aqui, não funciona como no Tribunal do Júri, onde a oratória comanda o ritual. Aqui, em Vara Cível, o que vale é o que se escreve. Se um advogado não consegue escrever aquilo que deseja na sua petição, eu não posso assumir isso e recebê-lo em meu gabinete a fim de suprir essa deficiência. Ele tem recursos para, por via escrita, expressar exatamente aquilo que quer me falar. Aliás, sinceramente, há
muitos advogados que se manifestam oralmente de forma menos eficaz do que se o fizessem por escrito. Às vezes, recebo advogados que não conseguem esclarecer, verbalmente, aquilo que desejam. Na minha opinião, advogado tem, acima de tudo, que saber escrever. Além disso, acho que não é correto receber o advogado de uma parte sem receber o da outra parte. Acho desleal. E, mais, imagine Você se todos os advogados dos quase 7.000 processos que tenho em curso na minha Vara resolvem vir despachar comigo? Eu não vou fazer outra coisa.”.
Impõe salientar que esta é a regra, mas há sempre destacadas exceções. Há magistrados que fazem questão de manter as portas de seus gabinetes sempre abertas 144, por entender que isso facilita o seu trabalho, uma vez que, ao resolver determinados problemas de forma imediata, acabam, mais à frente, ganhando tempo e deixando de criar obstáculos futuros ao bom andamento do processo. Conversei, informalmente, com um Juiz aposentado, que me disse: “Veja bem, antes de ser Juiz eu fui advogado muitos anos. Talvez seja por isso, não sei ... não sei mesmo, talvez ainda que eu não tivesse sido advogado eu receberia as pessoas para despachar em meu gabinete. Acho que isso facilita o diálogo, acho que isso acaba ajudando o trabalho do Juiz, porque às vezes os advogados apontam questões que nós não conseguimos ver diante do excesso de processos que analisamos diariamente. Acho também que ajuda a que tenhamos todos uma boa relação, uma relação cordial, não sei, acho isso muito importante. Acho um pouco desrespeitoso alguém vir a seu gabinete, que é como se fosse a sua casa, e você dizer que não o recebe. Não fazemos isso nunca com os peritos, por exemplo. Peritos são sempre atendidos, por que com os advogados haveria de ser diferente? Eu não sei, mas acho que ajuda no trabalho o contacto direto com os advogados. Sempre prezei por isso no exercício profissional e não me arrependo. Obviamente, é preciso ter bom senso. Eu não atendia ou realizava tudo aquilo que os advogados solicitavam, mas os atendia sempre, os recebia sempre.”.
A outra questão que impõe destacar diz respeito ao aspecto das “malhas de relações” (KANT DE LIMA, 1995). Os advogados que têm mais prestígio, que conhecem Juízes, que são mais antigos no foro e que têm, inclusive, relação de amizade com os funcionários, conseguem resolver os seus problemas de forma objetiva, uma vez que têm acesso facilitado aos gabinetes dos Juízes com quem mantêm uma relação de maior proximidade. Por outro
144
Há magistrados de Varas Cíveis da Comarca da Capital que, literalmente, deixam as portas de seus gabinetes trancadas à chave para garantir que ninguém entrará.
lado, aqueles advogados que não têm um convívio mais freqüente no Tribunal, acabam por ter o acesso obstaculizado, a eles se aplicando a regra. Um advogado experiente, confidenciou-me certa feita: “Nesta profissão é fundamental ter amigos. As relações pessoais contam muito. Você consegue economizar tempo, você consegue ter pedidos deferidos, você consegue se destacar. Hoje em dia, a concorrência é muito grande e os advogados se diferenciam conforme a celeridade com que solucionam os problemas de seus clientes. A diferença está aí. O que os clientes querem é resolver o seu problema rápido. Ter relações ajuda exatamente nisso. O Juiz recebe você; o seu mandado de pagamento é expedido com prioridade; o seu mandado de intimação é cumprido com maior diligência; a sua audiência é designada logo; enfim, as pessoas têm mais boa vontade com você. A vida é assim, por que no Tribunal seria diferente? Não é.”.
O dado que o campo aponta não tem nenhuma relação com aspectos vinculados ao tema da corrupção. De forma alguma trato disso neste trabalho. O que descrevo aqui são práticas sociais corriqueiras, fundamentadas na reciprocidade e nas relações de amizade que favorecem certas prerrogativas. Explicito a existência das “malhas de relações” nos Tribunais, assim como há em distintos setores sociais (KANT DE LIMA, 1995). DaMatta (1979, p. 235), ao tratar da relação indivíduo/pessoa na sociedade brasileira, aborda o tema das “malhas”, destacando, inclusive, a título de exemplo, o célebre ditado “aos mal-nascidos, a lei, aos amigos, tudo”. Assim ocorre nos Tribunais. Essa importante rede de relações cria, entre os inseridos, dependência pessoal e reciprocidade, ao mesmo tempo em que isola os não inseridos, aplicando-lhes a letra da lei (KANT DE LIMA, 1995; DAMATTA, 1979). A prática eminentemente oral de “despachar com o Juiz” é uma forma de excluir aqueles menos inseridos no campo do Direito, beneficiando, apenas, os que integram tais “malhas”. “Despachar com o Juiz” é uma prática oral destinada a remodelar o escrito, dando-lhe outra conotação. A escritura - em função dos fatores aqui apontados - para ser concretizada demanda complementação da oralidade, o que advém do contacto pessoal e direto do advogado com o Juiz. A praticidade do oral é ressaltada nesse tópico, uma vez que, ao reconstruir o escrito, ele facilita a comunicação e, por conseguinte, a compreensão daquilo que se pleiteia.
O conteúdo das petições escritas é enfatizado, na empiria, pelas manifestações orais dos advogados e, nesse contexto, escrito e oral, mais uma vez, se mesclam. 3. Testemunhando: o valor da prova oral no processo A prova testemunhal está prevista nos arts. 407 a 419 do CPC. É, dentre as provas orais, muito pouco considerada na formação do livre convencimento do Juiz e, por conseguinte, no momento da prolação da sentença. “A prova testemunhal é a que apresenta o maior número de limitações ao direito de defender-se provando e à busca da verdade” (GRECO, 2005, p. 386). A prova testemunhal, no campo, é representada como uma prova subsidiária à escrita, destinando-se a complementá-la. Aliás, o sistema oral, no processo civil, dificilmente vale por si só. Ele é mais um instrumento de ratificação da verdade escrita do que de elaboração de uma verdade própria. O escrito é uma prenunciação do oral e este uma confirmação do escrito. Chiovenda (1938, p. 56) já pronunciava essa constatação e o paradoxo a ela inerente: “Na audiência deve-se confirmar oralmente as declarações já anunciadas por escrito [...] Freqüentemente, a declaração oral não será mais que um evocar das escritas, uma referência às escrituras: mas não se entende por feita uma declaração se não é feita ou evocada oralmente em audiência. Vê-se que estas ‘escrituras’ preparatórias são anteriores à audiência, é um contra-senso verdadeiro vir à audiência para comunicar-se coisas escritas; a ‘escritura’ se usa entre ausentes, mas entre presentes faz-se uso da palavra.”.
A representação dessa idéia é verificada, inclusive, na legislação processual vigente. O art. 401 do CPC é categórico ao prever que a prova exclusivamente testemunhal só é admitida nos contratos cujo valor não exceda ao décuplo do maior salário mínimo vigente no país. A norma parece querer impor que esta prova só pode ser exclusiva em casos menos complexos, em que não haja maiores prejuízos às partes e em que a repercussão seja restrita. Trata-se de uma forma de absorver a lógica complementar do oral. O fator preponderantemente influente na desvalorização da prova testemunhal, diz respeito à descrença dos Juízes nos depoimentos prestados. Isso se dá porque, na concepção jurídica, a verdade não é revelada pelas partes, ela é desvendada pelo Juiz. A verdade jurídica está acima das partes e, portanto, as pessoas não podem contribuir para a sua descoberta. É
próprio do sistema inquisitorial, cujas raízes se fazem presentes em nossos procedimentos, desqualificar e desconfiar do discurso dos tutelados145. O discurso de um magistrado que entrevistei corrobora a idéia: “Raramente eu me surpreendo com o que ocorre na audiência. Em geral, está tudo no processo. Você já sabe, na verdade, o que o cara vai dizer. Você sabe ... ele vai dizer o que está sustentando no processo. Se não é assim, ele vai ou mentir ou omitir ou dizer que não lembra. O ser humano é muito previsível, ele é previsível por natureza. Você sabe mais ou menos o que ele vai dizer. Aí, nesse sentido, o ato da audiência não serve muito. Por isso.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
O entendimento dos magistrados é o de que as pessoas que prestam depoimento em Juízo estão, necessariamente, comprometidas com a parte que as indicou, de modo que, conseqüentemente, tendem a fortalecer a sua tese, sustentando verbalmente exatamente tudo o que já consta nos autos em benefício da parte. A testemunha não pode titubear, não pode hesitar, não pode confundir dados, pois tudo é motivo para que o depoimento seja considerado inverídico. Comumente, o depoimento das testemunhas é prestado muito tempo após a ocorrência do fato que motivou a propositura da ação judicial. Assim, é normal que detalhes sejam esquecidos. No entanto, em se tratando de um depoimento testemunhal em Juízo, quaisquer desvios são interpretados como parcialidade. Uma importante característica da escritura – destacada pela dogmática - é a possibilidade que ela concede para a reflexão detalhada do discurso, para a meditação em um ambiente de calma (MENDONÇA, 1938, p. 260). A escrita permite um exame mais refletido, cuidadoso e seguro das questões (MORATO, 1938). A oralidade, ao revés, impede a ponderação e a racionalidade próprias da escritura, exigindo imediatismo e improviso, configurando-se, logo, como imprevisível146. A escritura permite a elaboração do discurso; a oralidade não. Assim, prestar depoimento oral é uma situação delicada, especialmente, quando 145
Renato Lessa, em resenha intitulada “Raízes do erro”, do livro “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro, publicada no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, em 11/08/2001, de certa forma, explicita isso, ao asseverar: “o curso despótico tomado pela Coroa portuguesa lançou uma maldição sobre todo o processo civilizatório brasileiro [...] o estamento burocrático sobrepôs-se aos direitos civis sufocando iniciativas e deixando os indivíduos sem direitos diante do Estado.”. 146 Convém esclarecer que este é o entendimento dogmático. O que pude observar em campo foi, justamente, o contrário. Isto é, na maioria das vezes, o oral é extremamente previsível, por representar uma mera ratificação do escrito. A pesquisa apontou, como mais adiante de explicitará, que, em muitas ocasiões, quanto mais próximo do escrito, mais valorizado é o oral.
se trata de um ato que implica na avaliação e valoração de uma prova que direciona a construção da verdade processual, alcançada mediante a prolação da sentença. As testemunhas, obrigatoriamente, nos termos do art. 415 do CPC, prestam o compromisso de dizer a verdade, sendo, inclusive, advertidas de que se não o fizerem incorrem em crime previsto no art. 342 do Código Penal (falso testemunho)147. O fato de haver previsão legal nesse sentido aponta a tendência do campo a desconsiderar a prova testemunhal por pressupor tratar-se de um meio inidôneo de apuração da verdade processual148. O art. 414 do CPC determina que antes de depor, a testemunha seja qualificada, declarando o nome por inteiro, a profissão, a residência e o estado civil, bem como informe se tem relações de parentesco com a parte, ou interesse no objeto do processo, casos em que é considerada suspeita. O art. 405 do CPC enumera os casos de incapacidade, impedimento e suspeição de testemunhas. Os casos de suspeição são os mais problemáticos, tendo em vista, especialmente, o conteúdo altamente subjetivo da legislação processual. São suspeitos para prestarem depoimento em Juízo: o condenado por crime de falso testemunho; o que tiver interesse no litígio; o inimigo capital ou amigo íntimo da parte e aquele que, por seus costumes, não for digno de fé. A representação da expressão “não for digno de fé” é variável, inexistindo meios objetivos de avaliar a sua extensão. Assim, mais
147
A redação do art. 415 do CPC é a seguinte: “Art. 415. Ao início da inquirição, a testemunha prestará o compromisso de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado. Parágrafo único. O juiz advertirá à testemunha que incorre em sanção penal quem faz a afirmação falsa, cala ou oculta a verdade.”. O Código Penal prevê o crime de falso testemunho no art. 342, cuja redação é a seguinte: “Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. § 1º. As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. § 2º. O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.”. 148 O descrédito da prova testemunhal é tamanho que reputo relevante narrar um evento que presenciei. Tratavase de uma audiência de instrução e julgamento, realizada nos autos de uma ação de indenização por danos morais decorrente de atraso de viagem aérea, em que duas testemunhas convocadas para prestarem depoimento em Juízo seriam passageiras do mesmo avião do autor da ação judicial e, portanto, conheceriam os fatos que ensejaram o mencionado atraso do vôo. A Juíza, ao convocá-las, perguntou-lhes, de imediato, se estariam de posse do bilhete aéreo, sendo contestada negativamente. A Juíza informou, então, que, diante do fato, não poderia ouvir as testemunhas, pois, para tanto, necessitaria de uma prova de que elas seriam, de fato, passageiras do mesmo vôo do autor e, portanto, aptas para esclarecerem o ocorrido. O advogado do autor ponderou com a magistrada que a sua interpretação estaria equivocada, tendo em vista que as testemunhas não precisariam apresentar prova em Juízo para depor, bastando que se comprometessem a falar a verdade, sob pena de crime de falso testemunho. A Juíza não se convenceu e se recusou a ouvir os depoimentos, consignando em ata que o fez por considerar as testemunhas suspeitas.
uma vez, deixa-se a cargo do Juiz a interpretação da Lei, o que, torna a sua aplicação particular e, conseqüentemente, desigual. O formalismo do ritual também é um fator que melindra àqueles que não integram o campo, sendo certo que, freqüentemente, pessoas que vão prestar depoimento em Juízo afirmam que ficam receosas de falar; que se sentem constrangidas; que têm medo de se expressar equivocadamente e, por isso, às vezes, até deixam de mencionar dados que poderiam contribuir melhor para a apuração dos fatos; que sentem desconforto e, por isso, preferem não se estender no depoimento, falando o básico e procurando não desvendar os detalhes. Uma testemunha com quem conversei enquanto aguardava uma audiência, disse-me: “Eu estou super nervosa. Sei que não vim aqui para mentir, tudo o que eu sei é verdade, não vou mentir, não vou inventar nada, mas, mesmo assim, fico constrangida. Uma vez, fui na Justiça do Trabalho e também fiquei muito nervosa. Aquela vez, foi a primeira vez, eu quase não dormi direito. Acho que é muita responsabilidade. A gente não sabe direito o que tem que falar, como tem que se comportar, não sei, acho que é tudo muito novo e aí assusta um pouco. Eu nunca vim aqui nesse Tribunal.”.
Muitas vezes, as testemunhas ficam nervosas diante do Juiz e, em razão disso, apresentam um comportamento que, em vez de ser encarado como fruto do desconhecimento do ritual e do formalismo a ele inerente, é imediatamente recepcionado pelos magistrados como um desvio, provavelmente oriundo de insegurança ou do medo de estarem em Juízo depondo sobre inverdades. É imediata a associação do comportamento da testemunha à sua possibilidade de mentir ou de não mentir. O depoimento da testemunha, malgrado a dogmática tenha dificuldade de reconhecer, até os dias atuais, é avaliado conforme as suas características pessoais. Uma magistrada por mim entrevistada, esclareceu: “Se eu tenho um documento dizendo uma coisa e vem aqui uma testemunha que eu não sei nem quem é e me diz outra, é óbvio, eu vou acreditar no documento. A menos que essa testemunha seja muito, mas muito valiosa mesmo ... assim, que seja uma testemunha muito especial, se for uma testemunha comum não [...] teria que ser alguém de muita confiança mesmo, alguém por quem eu tivesse muita credibilidade.”.
A doutrina trabalha o tema como se isso não existisse, merecendo destaque:
“[...] se o juiz deixa de participar da produção de provas, especial e evidentemente daquelas que podem ser produzidas oralmente, abandona o contato direto com a palavra viva no processo, julgando com base nos termos. Contudo, nos depoimentos escritos não se pode, com um mínimo de certeza, diante de duas afirmações absolutamente opostas, saber quem está mentindo ou dizendo a verdade. Assim, surgem sistemas de avaliação das provas em que, por exemplo, o testemunho do humilde é mais importante que o do culto, do nobre sobre o burguês, que hoje são considerados como primitivos, vez que, de há muito, o processo civil deixou de buscar a verdade formal – quod non est in actis non est in mundo – partindo em busca da verdade real.”. (LASPRO, 1995, p. 120).
Tal prática, tão atual em nosso sistema jurídico, faz lembrar o Santo Ofício da Inquisição, que funcionou entre os Séculos XII e XIII, destacando-se a descrição feita por Lana Lage (2001, p. 9-11) a esse respeito: “[...] a credibilidade das denúncias baseava-se fundamentalmente na qualidade social e na fama pública das testemunhas, bem como na maneira como se comportavam ao depor. Uma vez reconhecida, esta credibilidade só podia ser posta em questão a partir do depoimento de outras testemunhas, nomeadas pelo réu, as quais deveriam também ser consideradas merecedoras de crédito. Enfim, como afirma Bethencourt, ‘o estabelecimento e a fundamentação da acusação baseiam-se na reputação dos denunciantes, elementos subjectivos ligados ao jogo das interações [...] a questão da credibilidade permanece nos processos inquisitoriais vinculada à posição social e condição dos envolvidos [...] Dignas de crédito são sempre as pessoas que levam vida recatada [...] Todos esses elementos subjetivos, sustentados pela trama social em que denunciantes e acusados estão envolvidos, interferem no processo penal, além das provas e indícios relativos aos fatos efetivamente ocorridos. Nesse contexto, é significativo que o único mecanismo de defesa à disposição do réu seja colocar em questão o crédito das testemunhas de acusação [...] O Regimento do Santo Ofício de 1774 previa que os inquisidores deveriam tomar ‘a mais exata e rigorosa informação sobre a vida e costumes; crédito, probidade, e reputação dos denunciantes, e testemunhas’ [...]”.
Juridicamente, no nosso sistema atual, espera-se uma atitude padronizada para os depoimentos, de modo que aqueles que não se enquadram nesse perfil, são invariavelmente tidos como inverídicos e/ou parciais. Se, por exemplo, a testemunha gagueja, respira de forma acelerada ou se contradiz em algum detalhe fático, o seu depoimento é duvidoso, sendo, pois, desqualificado, seja pelo Juiz, seja pelo advogado da parte contrária que estará sempre
disposto a anular o conteúdo do discurso que lhe seja desfavorável. Há um estereótipo 149 que deve ser seguido, sob pena de descrédito do discurso. Os advogados, por sua vez, aproveitam-se desse estereótipo. Quando a testemunha não assume o estereótipo e o seu discurso é desfavorável a algum dos advogados, ele utiliza-se disso para desqualificar o seu depoimento. No entanto, quando a testemunha se encaixa no estereótipo e presta um depoimento que lhe seja favorável, o advogado se apropria do seu discurso e o reafirma, reproduzindo-o incansavelmente, até transformá-lo em verdade jurídica. A estrutura do sistema desconsidera tanto a possibilidade de as pessoas terem percepções distintas sobre o mesmo fato quanto a possibilidade de a mesma pessoa mudar a sua percepção conforme o momento e o espaço em que se encontre. As pessoas internalizam aquilo que vêem de forma muito peculiar. O verbal adquire distintos significados de acordo com o tempo e o espaço em que é enunciado (ONG, 1998). Ademais, o que vai para os Tribunais é a representação que as pessoas têm sobre os fatos (GEERTZ, 1998). Desse modo, a verdade é uma edição. Isso permite com que os depoentes vejam os fatos de forma distinta sem que estejam, necessariamente, mentindo. A criação de padrões de comportamento é uma prática inerente ao campo do Direito e acaba por burocratizar sentimentos, reações e, até mesmo, a subjetividade humana. O “deverser” em que se estrutura e fundamenta o saber jurídico acaba por impedir a naturalização das reações humanas, criando um padrão desumanizado, quase inatingível, e – o que é pior - do qual não se pode afastar, sob pena de estigmatização. A vinculação entre quem é o depoente e o valor que se dá ao que ele vai falar é expressiva. E aí surge uma questão recorrente: a necessidade de o Juiz ter um “feeling” para perceber quando a pessoa está falando a verdade e quando ela está mentindo. A idéia dos Juízes como representantes e ministros da verdade (GARAPON, 1997) relaciona-se a esse fato. Entende-se que o Juiz é uma pessoa com sensibilidades aguçadas e especiais, de modo que tem facilidade para enxergar as verdadeiras intenções do depoente e vislumbrar se o que diz é ou não verdade. O discurso dos Juízes, em campo, coaduna essa lógica: “A impressão pessoal do Juiz conta muito. Na verdade, também pode falhar porque é um ser humano. Às vezes você faz uma leitura de que uma pessoa deu um depoimento coerente e não é. Tem também a análise do depoimento junto com todos os demais 149
O livro “El testigo y el testimonio”, de Hugo Rocha Degreef, editado por Ediciones Jurídicas Cuyo, ensina como uma testemunha deve se comportar e, nesse contexto, é interessante observar a clareza com que o autor vai criando um estereótipo, que, segundo se verifica, é absolutamente legitimado pelo campo.
fatores. O que a testemunha fala não é lei. Mas o Juiz, pela experiência, acaba sabendo. A gente acaba desenvolvendo um “feeling”. O Juiz tem que ter aquele “feeling” para valorar a prova oral. Para tanto, ele até adverte a testemunha de que tem o crime de prestar falso testemunho. O Juiz tem que ter o “feeling” para ver como é que está a colheita daquela prova e, inclusive, se for necessário, até fazer uma acareação, colocar uma testemunha na frente da outra. Eu nunca tive esse problema não, mas ... o juiz pode também fazer isso.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “O Juiz sabe perceber. Às vezes vem uma testemunha que você vê que realmente foi instruída pelos advogados para não falar a verdade. Você percebe isso porque, por exemplo, ela lembra de certos aspectos para falar e de outros tão importantes não lembra. Esse tipo de testemunha é muito fácil você identificar. Como dois passageiros que estão no último banco do ônibus e lembram de tudo, viram o acidente acontecer. Ué, mas não estavam nem conversando, estavam olhando bem na hora do acidente ocorrer? Esse tipo de depuração o Juiz mais experiente ele tem que saber fazer. O juiz sabe, você percebe quando a pessoa está sendo sincera ou quando é um oportunista. Com o tempo, você percebe essas coisas. O Juiz tem que ter “feeling” para traduzir a verdade daquilo que as testemunhas dizem.”. (grifou-se) (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “A maior angústia do juiz é ter que julgar sobre fatos que ele não presenciou. Então, eu acho que se você tem essa angústia e você não busca meios para reduzir essa angústia, você não está tentando dar o bem da vida pretendido do jeito que deveria ser dado. Então, eu tenho essa preocupação de tentar descobrir realmente o que aconteceu. É verdade que se você ouve pessoas que estão acostumadas a vir a Juízo mentir, isso atrapalha, mas eu acho que se você perseverar, se você persistir, você consegue saber, descobrir ... é possível perceber se a pessoa está mentindo. A oralidade mais me ajudou do que me atrapalhou. Eu fico mais tranqüila de fazer valer esse meio para buscar a verdade real150 do que não me utilizar disso pensando nas possíveis mentiras que a pessoa vai me falar. Eu não ficaria bem se não me desse ao trabalho de tentar saber se tem algum fundo de verdade ou não. Mesmo que tenha me atrapalhado algumas vezes, na verdade, eu prefiro assim porque se a oralidade me ajudou alguma vez, já valeu a pena.”. (Juíza Federal entrevistada sobre o projeto de implementação dos Juizados Virtuais)
Nesse contexto, vale mencionar que uma das vantagens do princípio da oralidade, demonstradas pelo campo, advém, justamente, desse contacto dos Juízes com as partes e 150
Mais uma vez a menção à busca da verdade real no processo civil. Remeto o leitor à nota precedente que aborda o tema.
testemunhas e, por conseguinte, da percepção sensível oriunda desse contacto. Quer dizer, a oralidade é vista como um instrumento que permite ao Juiz ver aquilo que o escrito impede: o comportamento humano. “Esse princípio [da oralidade] é importante porque existe muita coisa que está no papel e a gente não consegue capturar porque o papel é frio e não transmite muitas vezes certos detalhes onde oralmente as partes ou as testemunhas são capazes de passar. Na instrução do processo é muito interessante o princípio da oralidade porque você sente tudo aquilo que está acontecendo.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Entretanto, ao mesmo tempo, paradoxalmente, existe a imposição interna do campo de que o oral represente uma confirmação do escrito e, por conseguinte, não possa contradizê-lo. O escrito - como já tive oportunidade de expor - é elaborado, inicialmente, pelos advogados das partes que, ouvindo os fatos narrados, os enquadram num molde jurídico (GEERTZ, 1998; EILBAUM, 2006). Este é, pois, o marco teórico definido para o processo. É a partir daí que as provas serão produzidas, que os fatos serão reconstituídos e que a verdade será formada. O oral - em vez de recompor o escrito, complementando-o e acrescentando-lhe dados - é, na verdade, ao mesmo tempo, fruto e parte integrante desse esquema que reconhece o escrito como o seu marco teórico. O discurso do campo ratifica a assertiva: “O que a experiência mostra é que a prova oral ela, em geral, vem para não contribuir muito. A prova se esgota muito mais por documentos, que vem na inicial e na contestação. O livre convencimento é tudo. O julgador tem que ver se precisa ou não da prova. A questão é que muitas vezes, na maioria, a prova oral vem só para ratificar ou descaracterizar o que já está no processo, documentalmente. Então pra quê?”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
“Evidentemente que eu não vou ouvir uma pessoa que tenha sofrido um dano moral para ela me falar o quanto ela sofreu. Eu não faço isso. Mas, ela quer isso, o advogado dela quer isso, todo mundo quer, mas não é viável. Eu sinto, eu entro nos processos. Eu me coloco naquela situação, agora, eu não preciso ouvir a pessoa para isso. Lendo o processo eu vejo as coisas, eu sinto. Eu acho que acima do que é necessário, a oralidade é extremamente prejudicial à distribuição de justiça. Eu não marco audiência para ouvir o que eu posso ler.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Nesse contexto, o objetivo dos depoimentos orais - no caso, testemunhais - é ratificar o escrito. E por quê? Por que o escrito já foi traduzido para (ou sancionado pela) linguagem jurídica e elaborado de forma a beneficiar aquele que o produziu (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002). O advogado do autor constrói uma petição escrita que reproduz os fatos e os interpreta de modo a fazer prevalecer como verdade processual a versão favorável ao autor. Igualmente, o advogado do réu elabora uma peça escrita em que os fatos sejam explicitados e os argumentos construídos de forma a privilegiar a verdade do réu. Assim funciona o sistema de produção da verdade jurídica. 4. O depoimento pessoal das partes: a legitimação legal da “mentira” O Juiz pode, de ofício - quer dizer, independentemente de requerimento - em qualquer estado do processo, determinar o comparecimento pessoal das partes em Juízo, a fim de interrogá-las sobre os fatos da causa. O depoimento é prestado pessoalmente pelas partes em audiência de instrução e julgamento designada para tal fim. O depoimento pessoal das partes é um meio de prova oral, previsto nos arts. 342 a 347 do CPC, e pode se efetivar não só por determinação do Juiz, mas também mediante requerimento. Incumbe a cada parte, no momento em que se manifestar sobre a produção das provas que pretende produzir nos autos, requerer o depoimento pessoal da outra, sempre que, havendo interesse, o Juiz assim não determinar. A parte que for intimada para comparecer em Juízo a fim de prestar depoimento pessoal não pode deixar de fazê-lo, sob pena de confissão, isto é, sob pena de serem reputados verdadeiros os fatos alegados pela parte contrária (art. 343, §1º, do CPC). É defeso a uma parte assistir ao interrogatório da outra, salvo se já tiver prestado o seu depoimento anteriormente. Tal prática é fruto da tradição inquisitorial do sistema jurídico brasileiro, que desconfia, sempre, das intervenções orais das pessoas envolvidas no processo por pressupor que tudo já se sabe e que a verdade não advém das partes, mas de um terceiro, legitimado para apurá-la e desvendá-la quase milagrosamente (GARAPON, 1997; GARAPON e PAPADOPOULOS, 2003). A presunção do sistema é a mentira. Kant de Lima (1983, p. 109) ressalta que essa idéia (de um depoente não poder ouvir o outro sob o pretexto de não o influenciar) se opõe à idéia liberal clássica de que indivíduos livres e iguais devem, entre si, atingir um compromisso através da discussão de que participem, argumentando e contra-argumentando explicitamente.
De fato, a forma como o sistema se estrutura – juntamente com os resquícios inquisitoriais do processo – facilita o entendimento do campo no sentido de que as partes, em princípio, mentem em Juízo. Essa idéia também está incorporada pelo campo porque as partes – distintamente do que ocorre com as testemunhas - ao comparecem diante do Juiz para prestarem depoimento não assumem sequer o compromisso de dizer a verdade, de forma que, se mentirem, não respondem por crime algum. Em sendo assim, interpreta-se que - por não prestarem o compromisso e diante da impossibilidade de responderem criminalmente por faltar com a verdade - as partes estarão sempre dispostas a mentir. Além disso, existe o entendimento doutrinário corrente no sentido de que – embora não o façam literalmente – os incisos LV e LXIII do art. 5º da Constituição da República querem dizer que “ninguém é obrigado a produzir prova contra si próprio”. Por causa dessa percepção, a prova oral oriunda do depoimento pessoal das partes é desvalorizada pelo campo, de forma que, quase nunca se materializa no processo civil. “Eu não faço depoimento pessoal, justamente por causa da possibilidade das partes de mentirem. A utilidade de uma prova oral advinda de um depoimento pessoal é zero. Não acrescentam em nada. Eu evito ao máximo porque não acho proveitoso juridicamente. Qual é a utilidade disso se a parte vem aqui e pode mentir sem que aconteça nada? A Constituição permite isso.”. (Juiz Titular de Vara Cível do tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
“No depoimento pessoal é complicado. A parte envolvida no processo senta ali, diante do Juiz, sem ter que prestar compromisso, ou seja, se ela mentir ela não vai sofrer nenhuma sanção. Ali, cada um, autor e réu, conta a sua versão do fato. Cada um puxa a sardinha para a sua versão. Eu quase não marco audiência para ouvir parte. Eu só marco audiência para ouvir a parte quando eu não consegui compreender bem a controvérsia. Eu marco para poder entender exatamente o que está ocorrendo. Às vezes os advogados foram um pouco obscuros e então eu não entendo exatamente o problema. As pessoas mentem e a gente vê isso. Você não vai dar credibilidade quando vê isso, mas às vezes você vê que ela está mentindo, mas mesmo assim tem como fazer uma leitura melhor dos fatos.”. (Juiz Titular de Vara Cível do tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Apesar dessa concepção, convém citar que o próprio CPC, no art. 14, inciso I, determina como sendo dever da parte “expor os fatos em juízo conforme a verdade”, bem como prevê que responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou
interveniente, definindo o litigante de má-fé como sendo aquele que, no processo, desvirtua a verdade dos fatos (arts. 16 e 17 do CPC).151 Há também um outro aspecto que merece ser citado. O depoimento pessoal é uma prova oral em que se espera que a parte ratifique verbalmente tudo aquilo que já está escrito nas peças iniciais: petição do autor e contestação do réu. Espera-se que o depoimento pessoal do autor seja uma fiel reprodução oral de tudo o que consta por escrito na inicial e o do réu, igualmente. Cuida-se de uma característica inquisitorial, uma vez que se presume uma verdade previamente elaborada que demanda, tão somente, ratificação. O pressuposto é o de que o escrito prevalece e, por conseguinte, merece ser confirmado, não contrariado. As perguntas feitas aos depoentes são utilizadas para que sejam reproduzidas respostas previamente conhecidas, mas que precisam ser expressadas verbalmente para que os fatos por elas revelados não sejam vistos como produto de mera persuasão, mas sim como a própria realidade incorporada no depoimento (RINALDI, 1999). Assim, infere-se em campo que as partes são instruídas a falarem em Juízo exatamente aquilo que consta na petição elaborada pelo advogado. Isto porque, justamente a peça processual feita pelo advogado contém os requisitos jurídicos necessários ao amoldamento do fato comum em um fato relevante para o Direito. Nota-se, pois, que, mais uma vez, a verdade prevalecente não é a da parte. Neste caso, prevalece a verdade construída pelo advogado na peça processual que elaborou. Verdade esta que, juntamente com a que fora elaborada pelo advogado da outra parte, será medida e analisada pelo magistrado, a quem caberá escolher uma das duas. O processo é estruturado de forma a que as duas verdades explicitadas e elaboradas por escrito pelos advogados das partes (autor e réu) sejam contrapostas, a fim de que uma, a melhor, no ponto de vista do Juiz, seja eleita. Vê-se que as verdades produzidas são ou a dos advogados ou a do Juiz. O papel das partes nesse contexto é passivo. As verdades dos advogados demandam ratificação. Quanto mais provas houver ratificando aquilo que consta em suas petições, mais chance haverá de que a sua verdade seja escolhida. É por isso que no momento da produção das provas o que vale é confirmar o escrito
151
O art. 339 do CPC, ainda que de forma um pouco mais abrangente, também dispõe sobre o compromisso de se dizer a verdade no processo. A redação é a seguinte: “Art. 339. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.”.
ou, até, reelaborá-lo, mas sempre com o intuito de comprovar aquilo que fora previamente expressado no momento inicial (postulatório) do processo. Ainda a respeito do depoimento pessoal, uma questão convém salientar. Trata-se do desconforto aparente das partes em se manifestarem verbalmente (assim como se procede com as testemunhas) diante do Juiz. A excessiva formalidade dos rituais é, com efeito, um fator colaborador para o temor reverencial das partes. O espaço judiciário é sacralizado (GARAPON, 1997) e isso contribui para que se crie - por parte daqueles que não integram de forma ativa dito espaço - um respeito paralisante, exacerbado, que acaba por se transformar em medo. Uma parte que entrevistei no foro, enquanto aguardava o pregão de uma audiência na qual ia prestar depoimento pessoal, disse-me: “Eu, sinceramente, não gosto de estar nessas audiências. Só venho mesmo quando não tem outro jeito. Me sinto muito mal, acho muito formal, acho desagradável. Além do que fico sempre com medo de falar alguma coisa errada e me prejudicar. A gente não sabe direito as estratégias dos advogados, sei lá, fico muito inseguro diante do Juiz.”.
Uma outra, esclareceu-me: “Me sinto muito incomodada no Tribunal. Já vim outras vezes, mas mexe comigo. Não é uma atividade normal, como outra qualquer. Sei lá, quando vamos ao médico, quando vamos a uma reunião de trabalho, quando vamos a uma reunião de condomínio, mesmo que seja a primeira vez, não ficamos assim. Aqui na Justiça temos uma sensação especialmente negativa. Acho que os Juízes nos intimidam. Eu pelo menos me sinto assim. É tudo muito formal, muito especial, muito cheio de regras que você não conhece bem, então é como se tivéssemos que pisar em ovos o tempo todo, temos que pensar em tudo que vamos dizer, senão podemos criar uma situação terrível. Sei lá, acho esse lugar aqui muito carregado desse formalismo que trava o nosso impulso natural e o nosso jeito de ser.”.
Depreende-se do discurso que a formalidade é um fator que causa desconforto às partes, aparecendo, também, como caracterizador da insegurança de estar diante do Juiz, outros dois aspectos interessantes: o desconhecimento das técnicas processuais e o medo de falar. O desconhecimento das técnicas tem relação com assunto já descrito neste trabalho, de forma detalhada no capítulo I e como pano de fundo nos demais capítulos: o fato de o Direito
ser hermético e, portanto, se reconhecer e se estruturar como um saber exclusivo, especializado, que só compete conhecer aos integrantes do campo. A linguagem própria do campo é, sem dúvida, um fator que colabora deveras para que a sociedade se reconheça como dele não integrante. A linguagem do Direito é uma forma de afastar a sociedade do Judiciário e de tornar este campo distinto, o que tem relação, inclusive, com a particularização do saber, explicitada no capítulo I deste trabalho (KANT DE LIMA, 2005). A linguagem jurídica dificulta a comunicação e, de certa forma, manifesta-se como obstáculo ao próprio acesso à Justiça. Garapon (1997, p. 137-138) descreve que os rituais judiciários não favorecem a comunicação, sendo certo que “o silêncio ou uma linguagem própria definem a expressão verbal do poder [...].”. Para ele e Papadopoulos (2003, p. 310), “a linguagem jurídica se torna hermética por estar recheada de termos técnicos que apenas uma elite profissional domina.”. Garapon registra, ainda: “O vocabulário da justiça, muitas vezes, esotérico, situa-se no prolongamento da toga. Trata-se de uma linguagem de iniciado, reservada àqueles que pagaram pelo direito de entrada e que envergam o traje judiciário. Essa gíria acentua a distância – como se isso fosse necessário! - entre esses iniciados e o público.”. (GARAPON, 1997, p.139)
A dogmática, teoricamente, reconhece isso ao destacar que o abusivo e imprudente uso da linguagem empolada do Direito faz surgir algo próximo de uma “variante dialetal, de profundo hermetismo, incompreensível para a gente comum152”, de modo que o seu uso, quando presente nas decisões judiciais, as torna ininteligíveis e configura “desprestígio para a administração da justiça”. (GUEDES, 2003, p. 156) O medo de falar envolve todos esses aspectos concomitantemente. Por exemplo: o excesso de formalismo; o desconhecimento, por ser o Direito um campo demasiado fechado; a postura arbitrária de alguns julgadores; a estrutura tutelar da sociedade, que demanda sempre proteção aos “ignorantes”; a severa hierarquia judiciária, visível à sociedade; aspectos de cunho pessoal, como timidez ou insegurança. Na pesquisa foi recorrente o discurso de que o medo das testemunhas e partes de se manifestarem verbalmente em Juízo decorre da formalidade própria dos Tribunais, que afasta as partes. 152
Mais uma vez utiliza-se a expressão – internalizada no campo - para distinguir os “mundos”. Um, é o “mundo” do Direito, que é especial, distinto; e outro, o “mundo dos demais” (a sociedade), em que se encontram as pessoas comuns.
“O ambiente e os rituais que o Poder Judiciário ostenta são pouco afáveis a quem não faz parte da carreira jurídica. Na verdade, o medo da manifestação pessoal perante os Tribunais é um verdadeiro tabu. Acredito que isso aconteça por causa da postura do Judiciário perante a sociedade. Os Tribunais passam uma visão imperial para os cidadãos. Os Tribunais se mostram cada vez menos humanos e mais inacessíveis aos desfavorecidos. Essa imagem construída e mantida distancia e dificulta uma relação que permita a concordância de idéias e opiniões.”. (Advogado entrevistado formalmente durante a pesquisa de campo)
Por derradeiro, impõe lembrar neste tópico, que a presença física das partes como característica fulcral da materialização da oralidade no processo civil, de fato, não prospera, uma vez que, como visto, dificilmente as partes comparecem pessoalmente em Juízo no curso do processo, especialmente porque só existe um caso legalmente previsto que as obriga a tanto: quando intimadas para prestarem depoimento pessoal e, mesmo assim, esse único caso – ora descrito - não costuma se verificar empiricamente, uma vez que o depoimento pessoal é a prova mais desvalorizada do processo. Nesse contexto, infere-se que a participação das partes no processo é insignificante. A oralidade das partes praticamente não existe. Há oralidade dos advogados, do Juiz, do perito e das testemunhas, mas das partes, dificilmente ocorre. Quando falam, é através de seus advogados. Assim, a possibilidade de consenso é cada vez mais afastada. A sua participação na construção da verdade é quase inválida, sendo remotos os momentos em que autor e réu se deparam, frente a frente, com a finalidade de dialogar sobre a lide e buscar uma forma de resolvê-la. O estímulo ao consenso é raro, estando restrito às poucas tentativas de conciliação que se verificam no decorrer do processo civil. As audiências destinadas à colheita do depoimento pessoal não são realizadas sem a presença do Juiz, mas o não comparecimento das partes, nos termos da legislação processual civil vigente, não impede a concretização do ato, trazendo como conseqüência processual, apenas, a pena de confissão, que, tal como a revelia, não significa, necessariamente, que a sentença será favorável à parte contrária (ANDRIGHI, BENETI, 1997). A cultura jurídica brasileira absorve uma sensibilidade de que o importante do processo é verdade advinda da sentença. A sentença representa a descoberta da verdade pelo Juiz. Segundo o campo, é isso que importa. O diálogo e a respectiva administração consensual do conflito não é o foco do Judiciário. A oralidade, em se caracterizando como o instrumento que permitiria o contacto direto do Juiz com as partes e com as provas, poderia vir a ser o mecanismo de produção de uma
verdade consensual, embasada no diálogo das partes e na tomada de decisões por elas. No entanto, empiricamente, a oralidade não se mostra como um mecanismo de aproximação das pessoas envolvidas no processo e, por conseguinte, não se reproduz como um instrumento de diálogo, especialmente, por conta da lógica do contraditório, arraigada no sistema processual brasileiro de forma marcante e decisiva. Um único Juiz que entrevistei destacou esse aspecto consensual da oralidade. Até então, a concepção de oralidade como diálogo não havia aparecido na pesquisa de campo: “O contacto do Juiz com as partes me parece extremamente interessante porque é o momento em que o Juiz realmente vai sentir o drama daquelas pessoas e dialogar com elas. Quantas e quantas vezes o que está escrito não é nem o que realmente a parte quer. O escrito é feito pelos advogados, que têm toda a sua técnica. O momento em que as partes vêm a Juízo é importante porque elas vão dizer exatamente aquilo que elas querem e dizendo até verificam que o pedido foi feito com certo excesso etc. Então, elas estando em Juízo podem até fazer uma conciliação dentro da real pretensão delas. Me parece que sempre que possível, os Juízes deveriam ter o contacto com as partes, mas isso é o ideal, mas a gente vive com cinco mil processos e não podemos empilhar nossas pautas porque aí a parte também vai reclamar, então tem vários outros problemas que envolvem essa questão da oralidade. Eu sempre tive bons resultados quando tive contacto com as partes. Acho isso fundamental. A gente sente a verdadeira pretensão do autor, o porquê da resistência do réu e até mesmo quem está mentindo, quem não está. Esse contacto é muito importante por causa disso. As pessoas falam, se expõem e isso é muito positivo para o processo. Além do que, temos que ouvir as pessoas e entender o que elas vêm buscar na Justiça.”.
5. O poder do papel: quando a escrita se impõe Por mais que a dogmática e o discurso do campo prestigie a oralidade, na empiria a escrita se impõe. A importância do papel é nítida, tanto que o peso concedido pelos Juízes (no momento de julgar) à prova escrita (documental e pericial) prevalece sobremaneira quando comparado à relevância das provas orais (testemunhal e depoimento pessoal). Assim é a lógica do campo: “As provas orais não têm o mesmo peso, no processo civil, que as outras. Não têm e nem tem como ter porque a gente acredita mais naquilo que está escrito, né? A gente vive numa sociedade em que vale o que está escrito, né? E se eu tenho um documento dizendo uma coisa e vem aqui uma testemunha que eu não sei nem que é e me diz outra, é óbvio, eu vou acreditar no documento. A menos que essa testemunha seja
muito, mas muito valiosa mesmo ... assim, que seja uma testemunha muito especial, se for uma testemunha comum não [...] teria que ser alguém de muita confiança mesmo, alguém por quem eu tivesse muita credibilidade. Eu falo assim porque a gente vê cada coisa aqui. Nossa! As pessoas mentem descaradamente, é uma coisa horrorosa. Muitas vezes a gente deixa de tomar outras providências criminais porque é tão trabalhoso, mais tão trabalhoso, que é simplesmente melhor, mais fácil, mais rápido, a gente descartar aquele depoimento e pronto, usar outras provas. Fazer acareação, mandar prender ... na prática, não vai adiantar nada, entendeu? E a gente já tem tanto trabalho, já tem tantas coisas que se a gente for se prender a essas pequenas coisas – não que isso seja pequeno – mas, no conjunto isso acaba sendo pequeno, né? Eu posso simplesmente descartar essa prova e utilizar outras. E é assim que eu faço.”. (Juíza em exercício em Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “A análise se a oralidade ajuda no ato de julgar deve ser feita caso a caso. Em alguns casos, pode ajudar em algum detalhe ou ponto, e em outros casos é uma perda de tempo danada porque a prova oral não traz nenhum elemento concreto que permita ao julgador dar uma decisão diferente da que ele daria só com a documental. Muitas vezes a prova documental ou a pericial são mais fortes, aliás, na grande maioria dos casos é assim. O juiz tem que saber filtrar os depoimentos. Se a pessoa não tem caráter, está ali só para prejudicar alguém, é um problema. O peso da prova documental é muito maior por isso. A prova documental é uma prova que dá muito mais certeza e segurança. Você está ali, lendo, não está ouvindo alguém que pode estar mentindo para Você.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “Realmente, não há lugar hoje para aquele juiz de antigamente que fazia as audiências, falava ... Eu prefiro no papel, é muito mais produtivo. Enquanto no papel eu saneio dez processos eu talvez não consiga sanear nem a metade se eu tiver de fazer audiência. Não há lugar, simplesmente não há lugar para aquele juiz que conversa ali ... imagine se tivermos de fazer isso em todos os processos! Agora, o que a gente faz, o que a gente deve fazer? Bom, através do próprio processo eu despacho e peço esclarecimentos. Eu vou compondo a situação através dos esclarecimentos escritos dos advogados. Agora, há situações em que não há como prescindir dessa oralidade, mas só no caso em que há efetivamente a necessidade de uma prova oral. Senão, o escrito é muito melhor, muito mais produtivo.”. (Juiz em exercício em Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Um Juiz que entrevistei ratifica essa idéia, no entanto, a sua entrevista traz um argumento que não apareceu em outros casos: a desvinculação entre oralidade e sensibilidade do julgador.
“Talvez quem defenda a importância da oralidade é quem defende a sensibilidade no processo. Porque parece que se o Juiz não estiver na audiência em contacto com a parte ele não vai ter sensibilidade. Isso não acontece. Não é verdade. Você pode ter sensibilidade sem descambar para providências inúteis, inúteis mesmo. A sensibilidade está em cada um. Eu leio e consigo desenvolver minha sensibilidade. Oralidade e sensibilidade não são conceitos análogos”. (Juiz em exercício em Vara Cível do Rio de Janeiro)
As provas tipicamente escritas são a documental e a pericial. A prova pericial – prevista nos arts. 420 a 439 do CPC - é, dentre todas, a mais considerada pelos magistrados. Ainda que várias testemunhas, em Juízo, esclareçam fatos contrários aos que constem em um laudo pericial, é este que prevalecerá. E, certamente, é este laudo que fundamentará a sentença. Vale dizer que a prova pericial é eminentemente escrita, mas a sua valoração pelos Juízes se verifica não em função disso, mas por ser, a verdade aparente no laudo, uma verdade cientifica. Aquele que elabora o laudo pericial é um técnico, é um especialista e, em sendo assim, no entender do campo jurídico, certamente, está mais bem preparado para distinguir fatos do que as testemunhas ou, até mesmo, as próprias partes. Sobre o tema, João Francisco Duarte Jr. (1984) descreve o caráter quase mágico que a ciência adquiriu no mundo moderno e a importância que atualmente se dá à verdade que ela constrói, destacando, inclusive, a tendência hodierna de não se acreditar em nenhum fato que não possa ser cientificamente comprovado. Analogicamente, pode-se dizer que o laudo pericial possui, exatamente, este caráter simbólico: o de construir uma verdade inquestionável, uma vez que legitimada pela ciência. É certo que os Juízes, por força do art. 436 do CPC, não estão adstritos ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção para prolatar a sentença com base em outros elementos e provas produzidos nos autos. Assim, a decisão judicial pode contrariar, sem quaisquer problemas, a conclusão do laudo, julgando, o magistrado, de acordo com o seu livre convencimento153. Todavia, dificilmente algum magistrado se afasta do laudo para proferir a sentença. A prova pericial é eminentemente escrita porque a sua materialização se dá através do laudo entregue pelo perito ao Juízo, na forma escrita. No entanto, há a possibilidade de esta 153
O princípio do livre convencimento encontra-se previsto no art. 131 do CPC, cuja redação é a seguinte: “Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”.
prova se concretizar, também, oralmente, ou melhor, de ser complementada através de esclarecimentos verbais a serem prestados pelo expert, em audiência de instrução e julgamento designada para este fim. É bastante raro, mas existem casos, mais complexos, em que a compreensão do laudo é limitada, havendo a necessidade de que o perito preste esclarecimentos orais complementares sobre o seu conteúdo (art. 435 do CPC). Mesmo quando esta prova é complementada oralmente, quer dizer, ainda que o laudo escrito necessite de esclarecimentos a serem prestados em audiência pelo perito, esta oralidade é mais valorada do que aquela materializada nos depoimentos de partes e testemunhas. Um magistrado que entrevistei esclareceu-me as razões: “O perito não tem um interesse direto no resultado do processo. O seu compromisso é com a sua especialidade, não com a causa em si. Já as partes e, também, as testemunhas por elas indicadas, têm um comprometimento maior com o resultado do processo. As partes querem vencer; e as testemunhas – não sempre, mas geralmente sim – querem ajudar alguém a vencer. É muito diferente a atuação do perito quando presta depoimento. E isso, nós, Juízes, temos que considerar no momento de formarmos a nossa convicção. Obviamente, que o valor que eu dou ao depoimento de um é muito superior ao do outro.”. (Juiz de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Nota-se – em se tratando de prova pericial - certa complementaridade entre escritura e oralidade. Entretanto, neste caso específico convém destacar que, normalmente, o escrito se basta, dispensando o oral. A prova documental é também escrita e bastante valorizada em se tratando de matérias cíveis, estando prevista nos arts. 364 a 389 e 396 a 399 do CPC. Um advogado por mim entrevistado justificou por que há expressiva valorização da prova documental na área cível: “A documentação no processo civil é muito importante. Não tem porquê ter oralidade em vara cível. Só em ação de indenização mesmo. Em ação de cobrança, por exemplo, você mostra o documento comprovando que pagou a dívida e pronto. Se não tem o documento acabou, vai ter que pagar. Em vara cível as ações são corriqueiras, é tudo muito igual e, na maioria dos casos, os processos envolvem prova escrita, documento mesmo.”.
Os documentos são provas escritas que, assim como o laudo de um perito, afastam o oral, tendo maior valor e força probatória do que depoimentos prestados em Juízo, conforme demonstrou o discurso dos magistrados anteriormente transcritos. O documento público, mais que o particular, possui força probante inquestionável, uma vez que comprova não só a sua formação, mas também os fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declaram que ocorreram em sua presença154. Nas questões cíveis, o documento escrito - público ou particular - possui ainda mais valor probatório, tendo em vista que grande parte das discussões jurídicas travadas nesta seara envolve matéria contratual e obrigacional, basicamente resolvidas através da análise de papéis. José Reinaldo de Lima Lopes (2002) destaca a importância da história do Direito Canônico na formação do Direito Ocidental moderno e, nesse sentido, ressalta a sobrevivência no nosso sistema, até os dias atuais, do procedimento inquisitorial e escrito, onde a tradição e o simbolismo do valor do “papel” se faz presente. José Reinaldo (2002) destaca a influência do Direito Canônico como determinante no campo processual, salientando a imposição da escrita155 sobre a oralidade e, por conseguinte, a constituição do sistema cartorial. José Reinaldo ratifica a idéia ao descrever, no que diz respeito ao processo civil, que o processo canônico, introduzindo o escrito, acabou por destacar, em importância, a figura dos notários (LOPES, 2002, p. 100 e 102). Ao tratar das instituições e da cultura jurídica no Brasil do século XIX, José Reinaldo (2002, p. 330) explicita que “o cartório é a grande figura na vida forense do Brasil”, como, de fato, até hoje é, sendo praticamente insuperável “a necessidade do escrivão e do tabelião”. Mesmo a era digital - cujo maior objetivo é dar fim ao acúmulo de papéis que assustadoramente assola os Tribunais Brasileiros - não é suficiente para afastar a tradição escrita do sistema processual. Diz-se que um dos principais freios da modernização do Judiciário é o seu conservadorismo, que faz com que Juízes continuem executando manualmente tarefas que poderiam ser feitas eletronicamente. A troca do papel físico pelo digital é uma das principais
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A fé pública consiste na presunção de certeza e veracidade de fatos e atos executados por agentes públicos, bem como de documentos por eles elaborados. Os notários e oficias de registro têm fé pública, nos termos do art. 3º da Lei nº 8.935/94. De igual sorte, os oficiais de justiça e magistrados também o têm. O Código Penal prevê, expressamente, em seus arts. 289 a 311, os Crimes contra a Fé Pública, determinando a majoração da pena na sexta parte sempre que o autor do fato seja funcionário público. 155 José Reinaldo (2002, p. 257), ao descrever – muito posteriormente - o período do Antigo Regime, ressalta que o processo escrito se impunha cada vez com mais intensidade, passando a existir, inclusive, “profissionais da redação das peças, como advogados e escrivães e até os inquisidores, ou seja, os encarregados de ouvir e tomar depoimentos. Tudo passava ao escrito [...] ”.
aliadas para reduzir a morosidade da Justiça e por isso têm sido feitos investimentos expressivos nesse âmbito. A Lei no 11.419/06, em vigor desde março de 2007, regulamenta a informatização do processo judicial no Brasil. Trata-se de Lei que vem sendo recepcionada com bastante entusiasmo, mas que, no entanto, continua presa à escritura. A Lei permanece representando a prova documental ou escrita como documentos físicos de papel que devem ser digitalizados, desconsiderando, absolutamente, as provas nunca existentes em formato impresso, geradas desde o início eletronicamente, o que demonstra o retrocesso do Judiciário nesse assunto156. Um Juiz que entrevistei, avesso ao volume de papéis que sobrecarrega o Judiciário moderno, disse-me: “O Direito Brasileiro tem o vício do papel. A Lei permite gravação e os Tribunais não se preparam para isso. É uma resistência tremenda. É o vício do papel. Tem que romper as barreiras da acomodação jurídica das pessoas. Tem gente que até hoje se recusa a trabalhar com computador, até hoje. Os advogados mais jovens usam computador com facilidade, mas se utilizam das vantagens do computador para produzir mais papel, ao invés de diminuir a quantidade de papel. Fazem colagem de quase livros inteiros em uma inicial. Os mais antigos estão presos à tradição escrita. Não pode, temos tecnologia para suplantar isso.”.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a cultura judiciária está presa ao papel, considerando-o como fonte de certeza e segurança, os Tribunais estão se afundando na morosidade que a excessiva quantidade de papel está produzindo157. A escrita como forma de construção da verdade indiscutivelmente prevalece, sendo certo que os dados da pesquisa apontaram isso. As manifestações orais são sempre relegadas a segundo plano, prevalecendo a escritura. A prova documental é mais valorada pelos Juízes, é tida como mais confiável; de modo que, conseqüentemente, a verdade revelada na sentença a prestigia. Um sistema processual preponderantemente escrito impede uma relação dialogal e a verdade advinda desse sistema não-consensual, arbitrada através da decisão, acaba não sendo legitimada pelas partes interessadas, que, em vez de participarem do processo de formação e construção dessa verdade, dele são absolutamente excluídas. 156
Sobre o assunto, a Revista Consultor Jurídico, em 24/02/2007, divulgou matéria interessante, intitulada “Corte anti-digital: Judiciário quer, mas não consegue se informatizar.”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/53117,1. 157 Em 14/04/2005, o Superior Tribunal de Justiça veiculou notícia intitulada “Súmula vinculante é um remédio necessário, diz Ministro Vidigal na Câmara”, em que se explicitava que “a sede do Tribunal de Justiça de São Paulo está literalmente afundando em função do excesso de papel”. Disponível em: http://cramer.stj.gov.br/webstj/Noticias/detalhes_noticias.asp?seq_noticia=13678.
6. O papel central do Juiz na condução do processo: quem constrói a verdade? Gusmão (1938, p. 228) resume de forma apropriada o tema que pretendo abordar neste tópico: “O papel do juiz no processo oral sobe de importância. Exerce ele rigoroso controle do procedimento, de modo a evitar o tumultuamento e a violação da ordem processual, tão freqüentes no processo escrito, onde as partes agem com quase absoluta liberdade [...] o juiz tem a fiscalização direta do processo, de modo a impedir artifícios, manobras [...]”.
O Juiz exercer função essencial e central na condução de processos - ao contrário do que sustenta a dogmática - é característica do sistema inquisitorial, que é predominantemente escrito. Nos sistemas acusatórios a função do Juiz é mediar a relação entre as partes. Nesse sentido, Garapon e Papadopoulos (2003)158 inclusive representam o Juiz da common law como sendo um “árbitro” e o da civil law, um “ministro da verdade”. A atividade do Juiz no processo civil brasileiro é dizer o Direito e, para tanto, a ele cabe controlar todas as fases do processo, tanto a instrutória quanto a decisória. Ao contrário, o Juiz dos sistemas acusatoriais não tem essa pretensão: a sua atividade cinge-se à direção do processo. A função sagrada de pronunciar o que é justo, qual é o Direito, quem está certo e, portanto, enunciar a verdade, é intrínseca ao Juiz da cultura da civil law, cuja sensibilidade jurídica está atrelada a essa concepção - de verdade - assumida de forma transcendente. Garapon e Papadopoulos (2003, p. 153) destacam o Juiz “ministro da verdade” ou “oráculo do direito” como um Juiz que controla todas as fases do processo de modo a não ficar à parte de nenhum fragmento do ato de julgar. A sua função é simbólica, estando ele tentado a exercer uma “magistratura espiritual”, ao contrário do Juiz do sistema acusatório, que exerce a sua atividade de forma a se preocupar mais com questões processuais do que abstratas, como, por exemplo, a busca da verdade. A concentração dos poderes exclusivamente nas mãos do Juiz é parte deste sistema que, em função disso, obstaculiza o diálogo entre as partes. Do início ao fim o processo é
é fulcral para o entendimento dos papéis dos Juízes nas culturas da civil e da common law. 158
Sobre o tema, ver: GARAPON e PAPADOPOULOS (2003). O Capítulo VI
conduzido pelo Estado, de modo que se impede a discussão entre duas partes que, em igualdade de condições, argumentem as razões do conflito e estabeleçam o diálogo. Nesse contexto, o território do processo é muito mais textual do que oral, ao contrário do que sustenta a dogmática. De fato, nos momentos de materialização da oralidade, a centralização do poder nas mãos do Juiz fica mais evidente. Entretanto, isso não quer dizer que no nosso sistema – objeto desta pesquisa – o processo, por ser predominantemente escrito, não esteja concentrado no Juiz. No Brasil, o papel que o Juiz exerce no processo também é central, tornando-se ainda mais representativo no sistema oral, onde isso transparece de forma mais evidente. O Juiz, em nosso sistema, toma para si a direção da causa (OLIVEIRA, 1938). O livre convencimento, instituto presente no Direito brasileiro, permite que o magistrado escolha as provas que quiser para fundamentar as suas decisões. Contra tudo e contra todos, ele é livre para construir a verdade de acordo com a sua convicção, ainda que a prova produzida induza a interpretações distintas159. No momento em que o CPC atual foi concebido, prevalecia – como, de fato, ainda prevalece - o entendimento de que, sendo o juiz o destinatário das provas, cabia-lhe com exclusividade decidir a respeito da sua admissão: “Foi essa a fonte de inspiração do art. 130 do Código de 73, que reproduziu o art. 117 do Código de 39, acreditando que a outorga de poderes inquisitórios ao juiz pudesse contribuir para a certeza da busca da verdade objetiva e de decisões mais justas.” (GRECO, 2005, p. 363; 365; 366). Nesses termos, o Juiz pode até mesmo desconsiderar as provas dos autos em nome de sua livre convicção. Trata-se de uma liberdade ampla concedida ao Juiz que, como tal, pode recair em arbítrio. Segundo Kant de Lima (2005), este princípio possibilita que o Juiz seja visto como um clarividente, capaz de descobrir a verdadeira intenção dos agentes e de formular um juízo racional, imparcial e neutro. O campo incorpora a relevância desse princípio para o ato de julgar: “O peso do registro dos depoimentos na ata, no momento da prolação da sentença, é uma questão filosófica porque o que vale no processo é o livre convencimento do julgador. Eu, como juiz, tenho que valorar as provas apresentadas no processo. Todas elas, inclusive os depoimentos e as demais provas. Eu decido qual o valor que eu dou àquela prova. Em abstrato, eu acho que uma prova não tem mais valor que a outra; eu 159
O livre convencimento é um princípio de Direito Processual, amparado no art. 131 do CPC, que preconiza: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.
não posso partir do princípio de que uma é melhor que a outra. Elas são iguais. Mas, em concreto, na hora de decidir, eu vou ver se a prova oral é ou não mais importante, naquele caso. O critério é muito subjetivo, na realidade, porque por mais que você tente harmonizar, a questão é ver se você, juiz, está convencido ou não. Na verdade, é isso que importa no processo: o juiz estar convencido”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
A verdade, nesse sentido, é monopólio do magistrado, tendo em vista que ela emana do seu livre convencimento. No nosso sistema processual, escrito ou oral, o Juiz tem poder para interpretar as Leis livremente, dizendo o Direito conforme entender, especialmente porque participa de todos os estágios do processo. A intervenção direta do Juiz na produção das provas é característica primordial de um sistema processual inquisitivo. No Brasil, o Juiz defere as provas de acordo com a sua convicção; ele escolhe as provas que devem ser produzidas e refuta as que considera desnecessárias (art. 130 do CPC). E, ademais, participa da fase instrutória ativamente. A produção das provas está sempre condicionada a sua intervenção. Ele decide as perguntas que devem ser feitas às testemunhas e as que não devem ser; ele decide os quesitos que devem ser respondidos pelo perito e os que não devem ser; ele reelabora as perguntas conforme entende pertinente; ele registra em ata apenas o que julga conveniente; ele ouve as partes sempre que assim desejar; ele valora as provas produzidas conforme o seu convencimento; enfim, o controle dos atos processuais lhe pertence. É também por isso que não é qualquer pessoa160 que pode exercer essa função. É preciso que seja alguém “preparado”. O Juiz do sistema inquisitorial conjuga uma função técnica e uma função moral. De alguma forma, o seu julgamento tem cunho moral. A dimensão espiritual do ato de julgar, presente nos sistemas com raízes inquisitoriais, não se afasta da dimensão técnica (GARAPON, PAPADOPOULOS, 2003).
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A postura dos magistrados, geralmente, retrata a distinção que se faz questão de estabelecer entre um Juiz e uma pessoa comum. Tanto que, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo: os Juízes têm elevadores privativos; lugares exclusivos para freqüentarem; espaço reservado, no restaurante do Tribunal, no qual só podem almoçar magistrados; uma academia de ginástica privativa. Tratam-se representações desta nítida separação, já há muito sedimentada.
Nesse sentido, os Juízes devem ser pessoas especialmente designadas para essa função. É preciso ter dom para exercer a atividade “quase divina” de julgar o destino e a vida das pessoas (ANDRIGHI; BENETI, 1997, p. 45) 161-162. Um Juiz com quem conversei durante a pesquisa, ao final da entrevista, confidencioume: “A função jurisdicional é muito delicada. Você tem que querer ser um Juiz. Para ser Juiz é preciso querer muito. Nós temos muita responsabilidade sobre a vida e o destino das pessoas. Eu tenho um papel de modificar substancialmente a sua vida no momento em que profiro uma decisão. Eu interfiro na vida das pessoas. Não é simples. Não é uma função comum. Eu acho, no fundo, que é preciso ter um certo “dom” para exercer essa atividade tão fundamental. O Juiz tem que acima de tudo querer muito ser um Juiz. Ele tem que ter essa consciência. Quando eu penso na minha função, no que eu faço diariamente, eu vejo que é preciso muita responsabilidade porque o meu trabalho é muito especial e eu tenho que desempenhar, da melhor forma possível, o meu papel, a minha missão. Eu vejo a
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Sobre a função divina de julgar, reputo interessante destacar trecho do discurso proferido na posse do Ministro Walton Alencar Rodrigues, no Tribunal de Contas da União, em 13/04/1999, na Sessão Extraordinária do Plenário: “[...] Aliás, Sr. Presidente, como disse no meu discurso de posse no cargo de Procurador-Geral, essa nobilíssima função de julgar aproxima V. Exa., seus nobres pares e, de modo geral, todos os juízes, de algum modo, de uma função divina, uma função que apreende os fatos do passado e, segundo eles, outorga os vereditos do presente, decidindo futuros, vidas, destinos, de toda a coletividade. Peço a Deus, Sr. Presidente, que me ilumine no dia a dia das minhas funções, e que eu consiga ter presentes os exemplos e a coragem de figuras nobilíssimas que na história desta Corte me precederam e pontificaram, como Ruy Barbosa que concebeu o Tribunal de Contas da União e Serzedello Corrêa, que o instalou [...]”. Disponível em: http://www2.tcu.gov.br/pls/portal/docs/PAGE/TCU/SESSOES/ATAS/PLENARIO/PLENARIO_1999/ATA_PL_ 13,_DE_13-04-1999.PDF. 162 Um Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo pronunciou-se na Revista Consultor Jurídico, em 01/12/2006, sobre a injustiça de os salários dos magistrados sofrerem uma limitação, em função do teto remuneratório imposto pelo Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução n o 13, de 21/03/2006. O título do texto que escreveu é “Quem mandou estudar? Desembargador diz o que pensa de corte em seu salário”. O Desembargador discorre sobre a nobreza de sua função, destacando-se os trechos a seguir: “[...] Do ponto de vista profissional a magistratura é uma atividade nobre e não há que omitir o orgulho de exercê-la [...] A dignidade do cargo a exigir uma boa apresentação, a necessidade de estar atualizado para compreender os conflitos que se arbitra — tudo tem preço. E não é pouco. O país pode optar por uma Justiça mais barata, é claro. Mas já não atrairá as melhores cabeças do país para seus quadros. E a opção terminará sendo por uma Justiça pior. Enfim, existe essa realidade mas, dentro dela, o que se divulga e difunde é a idéia de que, um magistrado com mais de vinte anos de experiência, ganhar R$ 25 mil (valores brutos) por mês, é um verdadeiro absurdo. Isso é mesquinho, é pequeno e, ouso afirmar, muito sério. Deveria provocar muito mais inquietação do que conivência. No meu caso, detestaria ser julgado por magistrado despreparado, mal posicionado socialmente, de conhecimentos gerais e conceitos limitados, e, no momento, desanimado porque lhe cortaram o salário, e, sua moral, apenas isso, o determina a honrar seus compromissos. Afinal, a dúvida é o tipo de juízes que a sociedade deseja, e, conseqüentemente, do nível do Judiciário que, enquanto um serviço público, está e estará à sua disposição. Daí porque, se rever esse posicionamento não for possível, peço, humilde e indistintamente, que me ensinem a jogar vídeo-game para poder alugar um canal de TV, ou a fundar uma ONG, dessas financiadas pela Petrobrás. Não descarto a apresentação de um mensaleiro, um sanguessuga, ou alguém do Sebrae para pagar minhas contas e dívidas [...] Em último caso, me reservem uma senha do bolsa família pois, com um barraco na praia, um chinelo e uma camiseta vermelha, seguramente e sem remorso, poderei me dedicar ao ócio.”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/50648,1.
minha atividade como a minha missão e eu reflito sobre isso todos os dias. Eu não me permito esquecer o quanto isso é importante”.
É por isso que para ser um Juiz é necessário afastar-se, de certa maneira, dos hábitos comuns. Ao Juiz, segundo nosso sistema processual, cabe assegurar a defesa e a igualdade das partes. Segundo a dogmática, a participação ativa e central do Juiz no processo existe para que ele assegure a igualdade das partes e compense eventuais discrepâncias. O Juiz deve agir de tal modo a equiparar as partes, a ponto de adotar uma atitude ativamente paternalista em relação à que seja mais fraca, suprindo as suas carências. (GUSMÃO, 1938; LASPRO, 1995). Todos os atos do processo são efetivados sob a presidência do magistrado. As partes só falam mediante a sua autorização e se calam sempre que ele assim determinar. As manifestações orais são estendidas ou limitadas de acordo com o seu entendimento e, nesse contexto, a oralidade acaba sendo, na verdade, do Juiz e não, efetivamente, das partes. Apesar disso, a dogmática perdura crendo que dentre os papéis do Juiz no sistema oral está o de “fomentar o diálogo” (GUEDES, 2003, p. 82). O discurso legitimado é o do Juiz e é isso que prevalece na construção da verdade jurídica. Ele conduz a audiência; ele produz a ata; ele “produz” as provas; ele interpreta o oral; ele elabora o escrito; ele diz o Direito. As partes só têm lugar quando o Juiz permite que tenham. A sua integração ao cenário processual só ocorre quando e se o Juiz assim permitir. De fato, num processo desenvolvido em prol de uma busca incessante pela verdade, consagrada através da sentença proferida por um Juiz (que a faz eclodir), não há espaço para as partes. A função destas e receber a verdade desvendada e cumpri-la. Nesse sistema, também a oralidade funciona como elemento integrante da prestação jurisdicional e, por conseguinte, a sua incidência depende do entendimento do Juiz que, no caso, prepondera pela escrita. Um Juiz entusiasta da oralidade, com quem tive a oportunidade de conversar durante a pesquisa de campo, disse-me: “Sei que quase ninguém pensa assim. Não sou conservador, tenho pensamentos mais abertos e Você não poderá utilizar isso na sua pesquisa como um discurso majoritário. Mas, na minha opinião, a oralidade é o futuro do processo civil brasileiro. O convencimento do Juiz tem que vir, cada vez mais, a ser obtido pela oralidade e não pela escrita. No futuro, tem que ser assim. Enquanto o Juiz não for um computador, ele
tem que permitir ser convencido pela oralidade. O convencimento do Juiz tem que ser formado pelo advogado. Ele é que tem que conseguir isso, através da oralidade”.
Um outro aspecto importante para ser descrito é o fato, verificado em campo, de a alta carga de subjetividade da função jurisdicional permitir a arbitrariedade. Garapon e Papadopoulos (2003, p. 96) ressaltam que a cultura acusatorial, fulcrada no controle do processo pelas partes, não pelo Juiz, “desconfia de sua subjetividade; suspeita de que pode haver nela um germe de arbitrariedade.”. Atitudes e posturas arbitrárias por parte de Magistrados são comuns na atividade forense. Obviamente, não há que se generalizar, mas, na pesquisa, manifestações nesse sentido foram recorrentes. Nesse contexto, considero oportuno descrever um fato que ocorreu comigo no exercício da profissão. Certa vez, compareci a uma audiência de instrução e julgamento realizada em uma Vara Cível do Rio de Janeiro, na qualidade de advogada, mas, na verdade, com a finalidade de apenas acompanhar o titular do escritório onde eu trabalhava, uma vez que eu estava iniciando a carreira e, para aprender, eu o observava freqüentemente em audiências importantes. Tratava-se de um caso complexo, que envolvia pedido de indenização por danos morais e, na audiência, seriam ouvidas diversas testemunhas, indicadas por ambas as partes. Feito o pregão, eu sentei, juntamente com o titular, no local designado aos advogados das partes. Tão logo iniciada a audiência, o Juiz dirigiu-se a mim, solicitando que eu me identificasse. Eu informei que era também advogada de uma das partes. O Juiz prontamente esclareceu-me que em seu Juízo cada parte só poderia ser representada por um único advogado e, como já havia um advogado presente, eu deveria me retirar. Ponderamos que a lei processual permite à parte que seja representada por quantos advogados desejar, que eu estaria devidamente constituída no instrumento de mandato e que éramos do mesmo escritório; portanto, eu permaneceria na sala. O Juiz replicou dizendo que a ele não importava o que a Lei dizia e que ele, no Juízo dele, ditava as regras, sendo uma norma intransponível o fato de cada parte só poder ser representada por um advogado. Solicitou que não atrapalhássemos mais o andamento do ato processual e decidíssemos qual dos dois iria realizar a audiência. Passado certo tempo, desgastado com a suposta intransigência ali apresentada, o Juiz disse, então, que eu poderia permanecer no recinto, mas não poderia me manifestar de forma alguma, ou seja, não poderia fazer perguntas às testemunhas; não poderia fazer requerimentos; enfim, não poderia falar. Após longo debate caótico o Juiz decidiu que eu
poderia atuar como advogada, mas informou que se tratava de uma exceção, uma vez que era ele quem decidia o rumo dos atos realizados em seu Juízo. Trata-se de um típico exemplo de arbitrariedade perpetrada por um magistrado que, contra tudo e contra todos, decidiu impor em seu Juízo163 uma norma contrária às disposições legais vigentes. Um Juiz com quem conversei durante a pesquisa de campo reconheceu a freqüente postura arbitrária por parte de magistrados e expôs que, em sua opinião, cabe aos advogados detê-los, manifestando-se nos seguintes termos: “Quanto melhor for o advogado, maior resistência haverá ao possível autoritarismo do Juiz. O advogado tem que saber parar o Juiz quando ele está saindo da sua autoridade para entrar no autoritarismo. Quanto menos preparado for o advogado mais ele vai encolhendo e o Juiz crescendo. O advogado tem que conseguir se apresentar; tem que dizer que não concorda com o Juiz; que vai recorrer ao Tribunal; enfim, o advogado tem que se impor, senão, é certo: o Juiz cresce.”.
Há inúmeras possibilidades de exercício arbitrário das funções dos magistrados. Dois exemplos são representativos e mais corriqueiros nas práticas judiciárias, merecendo destaque. Os Magistrados, por exemplo, podem dar voz de prisão aos advogados se entenderem terem sido por eles desacatados. Tal prática não é comum, mas acontece. Muitas vezes, a atitude é justificada, no entanto, em outras circunstâncias, o conteúdo aberto e subjetivo do crime de desacato pode levar – como de fato leva - ao cometimento de arbitrariedades164. 163
Além da arbitrariedade do Juiz, vê-se, nessa descrição, inclusive, a recorrente postura do magistrado de apropriar-se de forma particular de um espaço eminentemente público: o cartório é dele; a sala de audiências é dele; o Juízo é dele; as regras são dele. A idéia de possuir o que é público é bastante comum no Judiciário, sendo certo que distintas práticas denotam essa apropriação privada do espaço público. Sobre o tema, ver: KANT DE LIMA (2005); OLIVEIRA, María José Sarrabayrouse. La justicia penal y los universos coexistentes. Reglas universales y relaciones personales. In: TISCORNIA, Sofía (Org.). Burocracias y violencia: estudios de antropologia jurídica. Buenos Aires: Antropofagia, 2004. p. 203-238; e MARTÍNEZ, María Josefina. Viaje a los territorios de las burocracias judiciales. Cosmovisiones jerárquicas y apropriación de los espacios tribunalicios. In: TISCORNIA, Sofía; PITA, María Victoria (Org.). Derechos humanos, tribunales y policías en Argentina y Brasil: estudios de antropologia jurídica. Buenos Aires: Antropofagia, 2005. p. 167-183. 164 No Brasil, o crime de desacato está previsto no artigo 331 do Código Penal, cujo tipo é: “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela.”. É preponderante, mesmo na dogmática, o entendimento de que a configuração da ação de desacatar como crime é positiva. No entanto, percebe-se que, por se tratar de um tipo penal excessivamente aberto, facilita um número quase ilimitado de condutas que podem ser enquadradas penalmente, gerando insegurança jurídica na aplicação da referida norma penal. A Lei n o 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) previa no art. 7º, § 2º, que: “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.”. No entanto, em 17/05/2006, o STF decidiu, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n o 1127-8, proposta pela Associação dos Magistrados há 12 anos, logo após a provação do Estatuto, declarar a inconstitucionalidade de diversos dos seus dispositivos, inclusive, o mencionado §2º do art. 7º. Dentre as modificações, os Ministros retiraram a expressão “ou desacato” do § 2º do art. 7º. Com isso, o desacato passou a ser punido, mesmo no
Outro dispositivo legal que permite atitudes arbitrárias nos rituais forenses é o art. 15 do CPC, que prevê a possibilidade de o magistrado cassar a palavra do advogado – e até das partes – se entender que se manifestaram de forma a utilizarem “expressões injuriosas”. Os termos contidos no dispositivo legal possibilitam uma larga interpretação, de forma a, eventualmente, repercutir em arbitrariedades165. Na realidade, a abstração das expressões contidas na Lei influencia sobremaneira a possibilidade de condutas arbitrárias no curso do processo. A excessiva liberdade concedida aos magistrados na interpretação e aplicação da Lei acaba por permitir que as decisões demandem exclusivamente a sua subjetividade e aflorem-na exacerbadamente. Um magistrado em entrevista formalmente realizada por mim, disse-me: “Os critérios do CPC são movediços. Não há nada objetivo. A lei não é objetiva. Temos que interpretá-la o tempo todo.”. Por derradeiro, uma última questão interessante a ser explicitada neste tópico e que segue o mesmo diapasão do que mencionei acima, diz respeito ao papel dos magistrados nas audiências166. As audiências presididas por Juízes, conforme descrevi outrora, são atos formais; rituais que exigem o cumprimento de regras rígidas de etiqueta, e, por isso, é comum às pessoas que não integram o campo se sentirem melindradas quando têm de estar em Juízo, diante do magistrado. exercício profissional do advogado, podendo, um juiz, por exemplo, dar voz de prisão ao advogado se sentir desacatado. O advogado Alberto Zacharias Toron, em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico, em 19/05/2006, intitulada “Estatuto da Advocacia: Resultado do julgamento do STF divide advogados”, manifestouse no sentido de entender que “a decisão mostra uma mentalidade ainda muito calcada na repressão, como forma de exaltar ou preservar a autoridade do juiz.”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/44549,1. 165 Redação do art. 15 do CPC: “Art. 15. É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las. Parágrafo único. Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra”. 166 O livro “O Juiz na Audiência”, de Nancy Andrighi e Sidnei Agostinho Beneti (1997, p. 25), é um verdadeiro manual sobre como proceder em audiência. Os autores ensinam a postura que Juízes, partes, testemunhas e cidadãos devem apresentar nesses atos. Vale transcrever um trecho significativo da obra: “Nesse ritual da audiência, incluem-se, por exemplo, algumas regras, que variam, é certo, de uma localidade para outra, mas, em geral, são presentes na prática nacional: a) uso da toga, quando Provimentos ou outras disposições do Tribunal o exigirem; b) urbanidade no tratamento das partes e Advogados, mantendo firmeza na postura pessoal, a partir da mesa de trabalho, de que, em princípio, não se deve o Juiz afastar, pois nela é o lugar que institucionalmente se situa. Manter-se em posição institucional de sereno rigor e cordial formalidade, não se exasperando, mas mantendo ritmo contínuo de atividades, de modo a não deixar longos espaços vazios nos trabalhos, bem como conservando a voz em tom de comando, sem gritar, mas não diminuindo o volume de modo a ficar sobrepujada por outro comando ou pela dispersão; c) verificação permanente da ordem do recinto, conservando-lhe sempre a dignidade e a solenidade, ainda que singelo o local, para fazer presente a majestade da Justiça; d) observação de que os presentes estejam convenientemente trajados, obedecida a linha convencional de convivência humana, sem exageros, implicância ou preconceito; e) manutenção na sala, sempre que possível, do pavilhão nacional, pois na audiência reafirma-se, a todo o momento, a exteriorização de respeito ao país e ao povo; f) atenção à questão de segurança pessoal própria e dos demais participantes da audiência.”.
Nessas audiências, é dever do Juiz exercer sua autoridade, ditando o art. 445 do CPC que a ele cabe: manter a ordem e o decoro; ordenar que se retirem da sala da audiência os que se comportarem inconvenientemente e requisitar, quando necessário, a força policial. O conceito de “comportamento inconveniente” é demasiado subjetivo de forma que, em sendo a sua categorização algo pessoal, a mais mínima manifestação despadronizada pode configurar uma postura tida como inoportuna pelo magistrado. Vê-se, logo, que a redação das Leis, por ser muito ampla, genérica e abstrata, contribui para um comportamento arbitrário do magistrado, no momento em que abre espaço para a sua subjetividade aflorar. No processo brasileiro, o Juiz é atuante, seu papel não é de simples mediador e, portanto, a sua subjetividade é exigida permanentemente, tanto na interpretação das normas quanto na sua aplicação. As leis são generalizantes e a sua aplicação, particularizada. Nesse contexto, o que o Juiz mais faz na sua função é exercer a sua subjetividade. Conseqüentemente, tal permissividade, sugere práticas arbitrárias, como as aqui explicitadas. Garapon e Papadopoulos (2003, p. 40), a respeito da administração de conflitos pelo Judiciário e da influência do comportamento pessoal do Juiz nesse sistema, mencionam: “é preferível uma regra injusta mas previsível do que uma justiça dependente da personalidade de um juiz.”. Em manifestações orais a postura é mais visível; no entanto, também no sistema escrito, verifica-se o papel central do Juiz no processo e, conseqüentemente, na construção da verdade jurídica. 7. O princípio do contraditório: um obstáculo no caminho da oralidade, do consenso e do diálogo O contraditório é uma garantia constitucional, prevista no art. 5º, inciso LV, da CF/88. Chiovenda (1938) sempre sustentou que a verdade dos fatos deve resultar, necessariamente, de um contraditório e a dogmática moderna, igualmente, reproduz essa lógica, reconhecendo o contraditório como uma “garantia fundamental de justiça” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1997, p. 55-56) e definindo-o nos seguintes termos: “O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese) o juiz pode corporificar a síntese, em um
processo dialético. [...] Decorre de tais princípios [contraditório e ampla defesa] a necessidade de que se dê ciência a cada litigante dos atos praticados pelo juiz e pelo adversário. Somente conhecendo-os, poderá ele efetivar o contraditório.”.
Infere-se do trecho acima que a visão dogmática confunde o processo dialético com a lógica do contraditório imposta nas relações processuais. O contraditório não é dialético 167, pois dele não deriva uma síntese que incorpora a tese e a antítese sustentadas em paridade de condições. No sistema contraditório, uma tese prevalece sobre a outra e a suposta “síntese” é, nada mais nada menos, do que a decisão arbitrária da autoridade, não decorrendo, de forma alguma, de um raciocínio logicamente construído. O contraditório é, portanto, representado pelo dever das partes de se contradizerem. Ele é, na verdade, o mecanismo que possibilita ao Juiz a eleição de teses e que, consequentemente, afasta as partes, uma vez que se sustenta na oposição de pontos de vista, em que apenas um sairá vencedor. Além do contraditório, também impede o consenso a estrutura desigual e hierárquica que o sistema judiciário incorporou da sociedade. O diálogo pressupõe igualdade entre as partes, pois só é possível estabelecer uma relação consensual quando existe mútua consideração e reconhecimento. A igualdade, dogmaticamente, está embasada na idéia de que “as partes e os procuradores devem merecer tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.”. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1997, p. 53) De igual sorte, o art. 125, inciso I, CPC, prevê que: “compete ao juiz assegurar às partes igualdade de tratamento”. Diante de circunstâncias concretas, oriundas do “mercado” e características do sistema capitalista vigente, é claro que pode haver uma parte melhor representada por um advogado do que outra e com mais recursos financeiros que lhe possibilitem uma defesa mais bem elaborada. Ao Juiz não cabe compensar essa aparente desigualdade, que é substantiva e não processual, tendo em vista que o sistema que rege as relações sociais é o capitalismo, cuja característica mais marcante é, justamente, a produção de “desigualdades”. No entanto, essa previsível “distinção” representativa do “mercado” não pode se confundir, nem com a imprescindível igualdade que deve, necessariamente, regular as 167
Sobre a dialética, ver BERMAN (1996).
oportunidades de acesso e de oportunidade no curso do processo, nem com os privilégios legais até hoje presentes no sistema processual brasileiro. O prestígio dos advogados e as relações pessoais – já mencionados aqui – são exemplos de desigualdades que se estabelecem no processo e que não merecem prosperar. O fato de um advogado ter a oportunidade de falar com o magistrado e o outro não, é característico de uma desigualdade no acesso ao Judiciário e isso não deve prevalecer. Por outro lado, a questão econômica que possibilita que uma parte esteja melhor assessorada que outra, não é fator de desigualdade, mas eventual disfunção do sistema capitalista. A parte melhor amparada financeiramente tem a possibilidade de, por exemplo, nomear um assistente técnico mais competente e diligente e, conseqüentemente, acompanhar a elaboração do laudo pericial com eficiência e, assim, obter uma conclusão favorável ou, ainda que não a obtenha, desconstruir o laudo do perito de forma mais convincente e eficaz. Isso faz parte do sistema vigente. Uma terceira coisa, diferente das duas anteriores e que com elas não se relaciona é o fato de haver privilégios, fixados na legislação, que distinguem as partes e produzem desigualdade jurídica. A legislação processual impõe privilégios àqueles que reconhece como merecedores de uma situação especial. Assim, por exemplo: 1) fixa prazos distintos para a Fazenda Pública e o Ministério Público se manifestarem nos autos, sendo o quádruplo do prazo normal concedido às partes para contestar e o dobro para recorrer (art. 188 do CPC); 2) determina a sua intimação pessoal e não mediante publicação no D.O., como de regra (art. 236, §2º do CPC); 3) dispensa o preparo (pagamento de custas judiciais) como requisito para a interposição de recursos tanto para o Ministério Público quanto para a União, Estados, Municípios e respectivas Autarquias (art. 511, §1º do CPC); permite a opção quanto ao dia, horário e local para que determinadas pessoas prestem depoimento na qualidade de testemunhas, desobrigando-as de o fazerem em Juízo (art. 411 do CPC). Estas situações, acima exemplificadas, não configuram nem desigualdade de acesso ao processo, nem tampouco características do sistema capitalista; ao revés, representam exemplos típicos de privilégios legalmente instituídos e que, como tal, devem ser categorizados como desigualdade jurídica. Nota-se, pois, que existem três formas de analisar o tema da “igualdade” no sistema processual em vigor: 1) igualdade de acesso e oportunidades, que deve prevalecer de forma equilibrada; 2) a natural disfunção produzida pelo mercado capitalista, cuja solução não
pertine ao Judiciário; 3) privilégios fixados na legislação, que não devem prosperar por caracterizarem desigualdade jurídica. Vê-se, pois, que a igualdade é um tema complexo no Direito brasileiro 168 e, portanto, reconhecer o contraditório como garantia sem que se possa estabelecer o equilíbrio das relações processuais é paradoxal. O contraditório é visto pela dogmática, erroneamente, como direito de defesa e, em sendo assim, pressupõe uma igualdade entre as partes que não há como prevalecer na empiria. O direito de defesa deve ser concedido a todos os envolvidos em um processo e existe independentemente do sistema contraditório. A possibilidade de as partes se defenderem em um processo não tem nenhuma relação com a necessidade de se digladiarem com o intuito de vencer a batalha judicial. O contraditório é constituído por uma necessária confrontação das partes, ao passo que a oralidade presume uma imprescindível cooperação (CAPPELLETTI, 1972). Contraditório e oralidade são, portanto, categorias excludentes, não podendo, por razões óbvias, constituírem, ambas, garantias processuais das partes. O modelo processual vigente está inviabilizado justamente porque os juristas insistem em primar pelo contraditório, que afasta qualquer viabilidade de consenso. Kant de Lima (2004-a, p. 56), descrevendo a lógica do júri, pontua o tema da confrontação de teses de forma objetiva e perfeitamente aplicável à pesquisa por mim realizada a respeito do processo civil: “Nesta disputatio escolástica, os advogados e os promotores defendem "teses" opostas, que não podem encontrar-se jamais, sob pena de declarar-se "inepta" a defesa. Quer dizer, mesmo quando acusação e defesa concordam com a culpa ou com a inocência do acusado, têm que acusá-lo e defendê-lo em público, apresentando suas teses em oposição “contraditória”. Como não há, também, consenso prévio sobre quais são os fatos, sobre o que foi e o que não foi devidamente provado – distintamente do que ocorre no trial by jury - a verdade, assim, não se apresenta como o resultado de um processo de construção a partir de um consenso sobre os fatos, como no modelo adversarial, mas aparecerá como o resultado de um duelo, em que vencerá o mais forte, tal como estabelecia a antiga tradição do sistema de “provas legais”, vigente no ocidente até o Antigo Regime (Foucault, 1999). Os advogados não costumam se ater aos autos e não ficam registros escritos de suas falas, diferentemente do procedimento dos EUA, onde a fala é registrada. Deste modo, os advogados podem mentir, pois estão sustentando a versão de um acusado que tem direito de continuar a mentir em causa própria durante seu novo interrogatório. Assim, o conteúdo dos autos, resumido 168
Sobre o tema, ver: KANT DE LIMA (2004-b; 2005); MENDES (2003).
em relatório e lido pelo juiz, é neste momento manipulado livremente tanto pela acusação quanto pela defesa, dando lugar a controvérsias ferozes sobre a existência, ou não, de provas, fatos e indícios.”.
É nesse sentido que o contraditório, por propor uma relação necessariamente competitiva (conflituosa) acaba sendo um empecilho à materialização do oral, que supõe o consenso, o diálogo e uma participação conjunta na discussão dos temas. A busca da verdade poderia se concretizar através de uma tarefa retórica, que objetivasse uma aproximação de pontos de vista mediante o uso persuasivo da palavra, no entanto, o sistema contraditório obstaculiza essa possibilidade. 8. Oralidade x celeridade: a divergência que se estabelece Nesse tema, a visão dogmática é distinta da pragmática, verificada na pesquisa de campo. A doutrina ressalta a oralidade como uma forma de atingir a celeridade da prestação jurisdicional, ao passo que o discurso dos operadores do campo reproduz a idéia de que a oralidade é, ao contrário, justamente, um obstáculo à celeridade processual169. Marinoni e Arenhart (2005, p. 671), assim se pronunciam sobre o tema: “A oralidade, sem dúvida, contribui não apenas para acelerar o ritmo do processo, como ainda para se obter uma resposta muito mais fiel à realidade. O contato direto com os sujeitos do conflito, com a prova e com as nuances do caso permitem ao magistrado apreender de forma muito mais completa a realidade vivida, possibilitando-lhe adotar visão mais ampla da controvérsia e decidir de maneira mais adequada.”.
Os doutrinadores mais antigos, igualmente, destacam a oralidade como a vantagem mais imediata do processo oral, especialmente, por se considerar sempre menos penoso “ouvir do que ler”. O processo oral, quando de sua implementação, foi visto como o remédio provadamente eficaz contra a lentidão do Judiciário. A oralidade foi recepcionada como o instrumento que libertou o processo de “fórmulas inúteis e arcaicas”, destinandose a tornar possível a solução dos litígios, com economia de tempo. (GUSMÃO, 1938; ESTELLITA, 1938; MENDONÇA, 1938; CUNHA BARRETO, 1938; OLIVEIRA, 1938). 169
A celeridade é um princípio alçado à categoria de garantia fundamental. Encontra-se previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “A todos, no âmbito judicial ou administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”.
A concepção de que a oralidade permite um contacto físico e direto entre os comunicantes e uma solução mais imediata dos problemas, acaba por induzir, também, até os dias atuais, ao entendimento de que ela desburocratiza o processo e, por conseguinte, o agiliza. Assim é como reconhece a dogmática. No campo, todavia, a percepção que se tem do princípio da oralidade é reversa. Entende-se que o sistema oral é moroso e, atualmente, inviável. “A oralidade é a maior proximidade do juiz com a parte, com as testemunhas, tal, mas eu não acho que essa oralidade além do necessário seja benéfica. Muito pelo contrário, ela é muito maléfica. Tanto que estou em uma vara cível e posso afirmar que não há necessidade de se fazer mais do que dez ou doze audiências por mês. Não há. É inviável hoje em dia ficar ouvindo as partes, os advogados, não há tempo. Nós não temos mais tempo para essas questões. A oralidade atrapalha. Você não pode ser obrigado a fazer uma audiência.”. (Juiz em exercício em Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
“Nós temos regras que nós precisamos seguir e o nosso legislador, para a matéria em curso em vara cível, não adotou o princípio da oralidade. O princípio da oralidade não é seguido em sua pureza, em vara cível, seja porque o nosso legislador não o adotou, seja por questões processuais, bem como pela própria quantidade de processos. A oralidade, em Vara Cível, é muito mitigada porque ela faz com que o Juiz gaste muito tempo ouvindo, ao passo que ele pode gastar menos tempo lendo.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “A oralidade atrapalha do ponto de vista prático. O volume de trabalho é muito grande. É muito mais rápido despachar por escrito, muito mais fácil analisar, ler as petições, do que ficar ouvindo as pessoas em audiência. Os advogados não têm poder de síntese, as partes muito menos. Não há condições de ouvir todo mundo ponderar o que quer. Temos que ser muito objetivos.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
O que surgiu como a solução de um sistema formal e demasiado burocrático acabou, empiricamente, mostrando-se um obstáculo, um entrave, ao bom andamento do processo, como aliás, apontei no capítulo II, através de distintos discursos, destacando-se o de um Juiz por mim entrevistado: “Um juiz hoje não pode se dar ao luxo de ficar fazendo as audiências porque as partes querem ou ouvir todo mundo porque as pessoas querem falar. Não pode. Não pode. Ele pode dar uma bela sentença escrita. Ele pode ser uma pessoa excepcional; dar uma
bela decisão. Mas se ele não tem pulso, se ele deixa que coisas inúteis se produzam no processo, ele, no fundo, está prejudicando a distribuição da justiça.”. (Juiz em exercício em Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
Há quem entenda de forma distinta, embora em minoria. Há Juízes que não valoram a prova oral por outros fatores, já aqui traçados, que não o “tempo”. Um Juiz que entrevistei durante a pesquisa disse-me, a respeito da incessante busca por celeridade: “O trabalho do julgador é perder tempo também. Faz parte. Temos que entender isso. Julgar rápido demais pode conduzir a decisões injustas.”. Uma outra Juíza que entrevistei, formalmente, durante a pesquisa de campo, esclareceu-me: “Eu não acho que a gente tenha que sobrepor a celeridade a tudo. Às vezes, uma sentença célere não é justa, não vai trazer benefício a ninguém. Celeridade não é tudo, mas oralidade excessivamente garantida também traz inúmeros prejuízos ao processo.”. Na prática, a oralidade é vista como sendo, necessariamente, um princípio a ser relativizado, a fim de, sempre que o Juiz perceba a sua desnecessidade, tenha a possibilidade de afastá-la. Um Juiz Titular de Vara Cível por mim entrevistado, manifestou-se: “Sinceramente, eu não concordo que a oralidade seja uma garantia absoluta. As pessoas pensam que Você marcando uma audiência para fazer valer o princípio da oralidade e para permitir que ele transpareça de uma forma mais clara, para que seja produzida uma prova oral, isso é importante. Mas só tem que ter isso quando a prova é útil, quando a prova não é útil, não tem que ter oralidade alguma. Basta analisar com os documentos que estão nos autos e julgar”.
O processo civil, definitivamente, não privilegia um sistema oral de administração de conflitos, especialmente, por conta da visão atual do Judiciário de que a eficiência da prestação jurisdicional está intimamente ligada à celeridade. 9. Reduzir a termo Todos os atos processuais orais devem, necessariamente, ser reduzidos a termo, o que significa dizer: registrados por escrito nos autos do processo. Basicamente, os atos orais limitam-se àqueles praticados em audiência. Em sendo a audiência presidida por conciliador
ou Juiz leigo, a eles cabe a redução a termo. Nos casos em que o Juiz Titular da Vara conduz a audiência, igualmente, a ele pertine o registro. Vale dizer que, normalmente, as manifestações orais ocorridas em audiências presididas por conciliadores ou juízes leigos são transcritas pessoalmente por eles em ata digitada em computador. No caso dos Juízes togados não, uma vez que, por serem assessorados por secretário (a), a este (a) cabe digitar em ata aquilo que o Juiz ditar. Um primeiro dado que chama a atenção é, justamente, o fato de que, quando as audiências são conduzidas por conciliadores ou juízes leigos, aquilo que eles ouvem passa por um único “filtro”, o deles próprios. Ou seja, eles ouvem, absorvem o que ouviram e escrevem (digitam), eles próprios, aquilo que ouviram na ata. Nas audiências realizadas por Juízes Togados, nem sempre é assim, pois os Juízes ouvem; absorvem o que ouvem e ditam para um terceiro. Este terceiro ouve o que o Juiz lhe disse; absorve; e aí sim digita em ata. Nesses casos, a comunicação passa por dois “filtros”. É certo que aos secretários cabe digitar em ata exatamente aquilo que o Juiz dita, mas nem sempre é assim. A dinâmica de uma audiência exige atos concomitantes, de maneira que, em algumas Varas, há Juízes que deixam o secretário registrar de forma autônoma e depois eles apenas revêem; em outras, o Juiz dita, mas o secretário reescreve de uma outra forma; enfim, não se trata de atos mecânicos, totalmente programados, em que tudo sai exatamente como se imagina. Assim - por isso digo, em princípio - as atas das audiências presididas por Juízes togados passam por dois “filtros” na elaboração. A escritura se compõe de um aspecto de impessoalidade. Uma vez registrada em papel, a fala torna-se despersonalizada e abstrata (GOODY, 1988). A tradução e a escrituração da fala por um terceiro acabam por diluir “a autoria da pessoa”, transformando “a própria palavra em um texto autônomo a ela” (EILBAUM, 2006, p. 158). Com base nisso, vale dizer que as repercussões processuais empíricas da sistemática em que o processo se estrutura – de redução a termo -, no campo da produção da verdade, são problemáticas. Uma característica fundamental do registro escrito é o fato de ele se “eternizar” (GOODY, 1988; ONG, 1998). Destarte, no caso de um processo, aquilo que se transcreve em ata se constitui como verdade e, esta verdade produzida através da ata, perdura durante todo o transcorrer do processo. Assim, até que os autos cheguem ao Supremo Tribunal Federal, aquilo que consta por escrito na ata da audiência será avaliado e efetivamente considerado pelos magistrados, de forma que, assim, depreende-se a importância de se transcrever
literalmente a dinâmica de uma audiência, sob pena de inverdades serem eternizadas e influenciarem julgamentos futuros. A ata é crucial para a construção da verdade jurídica, uma vez que - ao consignar por escrito a prova oral - acaba constituindo elemento de fundamentação para todas as decisões judiciais proferidas no decorrer do processo, desde a sentença até o último acórdão prolatado pelo STF. Nesse sentido, a reprodução fidedigna - tanto da audiência em si quanto dos depoimentos das partes, testemunhas e perito - é fundamental, sob pena de inverdades serem transformadas em certezas oficialmente registradas170. Citando Bentham, Demercian (1999) faz referência a uma passagem deste autor sobre a produção da prova oral em que ele sustenta que deveria ser considerada como uma parte dos talentos de um escrevente judicial o domínio da técnica taquigráfica, o mais célere e avançado sistema de apreensão da palavra falada. Nesse sentido, manifesta-se asseverando que a ata é documento essencial para a própria validade do processo e sustenta: “Convém assinalar, por oportuno, que a adoção desse método de oralidade exige cuidado especial no momento de elaboração da ata de tudo quanto ocorrer na audiência concentrada de instrução, debates e julgamento [...] a sua finalidade [da ata] é dar fé pública sobre aquilo que se desenvolveu na audiência e permitir quaisquer manifestações de inconformismo das partes, até para eventual interposição de recurso. Nessa espécie de protocolo ou no termo de audiência, não há necessidade da reprodução literal dos debates, o que implicaria transformar em escrita a oralidade, perdendo-se as vantagens deste sistema. É recomendável, no entanto, que os debates sejam colhidos pelo sistema de estenotipia mecânica ou computadorizada e que, a critério do tribunal, sejam eventualmente transcritos.” (DEMERCIAN, 1999, p. 103)
Uma Juíza Federal que entrevistei a respeito do projeto piloto dos Juizados Virtuais, que vem sendo implementado nos Tribunais Federais, esclareceu-me a importância do registro literal dos atos processuais e a necessidade de que sejam implementadas formas de gravação das audiências: “As informações gravadas, obviamente, são muito mais fidedignas do que aquelas de quando Você faz um registro a termo. Ver é muito melhor do que ler. Às vezes, a testemunha ou a parte fala uma coisa, depois ela pensa melhor e fala para o Juiz que 170
Kant de Lima (1995) narra em sua pesquisa sobre a polícia, um evento interessante em que um escrivão de polícia, por ser amigo do advogado do indiciado, registrou um atropelamento de forma a beneficiá-lo. Mas, esclareceu e demonstrou que, se não fosse amigo do advogado, poderia transcrever o evento de uma forma tal que configuraria, sem sombra de dúvidas, o crime de omissão de socorro. A narrativa encontra-se nas páginas 92 e 93 de sua etnografia sobre as práticas policiais e representa a relevância da redução a termo como ato formal do processo.
não era bem aquilo e fala outra coisa. Se o Juiz registrar só o que ela falou por último, um dado importante vai ficar perdido, porque não vai ficar registrado que antes ela tinha dito uma outra coisa. Ou seja, ele vai perder que primeiro ela falou que era aquilo e agora ela acha que é isso. O registro gravado é muito mais significativo e traz muito mais informação. A gente vai tentar, aqui no Juizado, uma coisa que talvez fique mais fidedigna aos fatos. É uma experiência. Sem deixar de fazer os registros escritos, vamos tentar uma audiência experimental que seja toda gravada. A idéia é realmente evitar que a gente tenha que transcrever. Não que isso vá acontecer imediatamente porque a gente nem tem autorização para isso. A Corregedoria não normatizou gravação de audiência. A idéia é fazer em paralelo, a gente vai continuar reduzindo a termo os depoimentos, vai continuar ouvindo as testemunhas, mas em paralelo, vamos fazer arquivos de áudio e vídeo. Anexando isso, a idéia é até deixar de transcrever os depoimentos. Eu, particularmente, acho que é muito melhor.”.
A literalidade do registro, de fato, é impossível através do mecanismo de redução a termo, uma vez que, obviamente, a rapidez com que as palavras são ditas é infinitamente superior a sua respectiva escrituração. No entanto, facilmente, através de taquigrafia (como ocorre nas Cortes Superiores) se pode obter um registro literal. O processo civil brasileiro, inclusive, prevê, nos arts. 279 e 417 do CPC, a hipótese de taquigrafia, estenotipia ou até mesmo gravação dos atos realizados em audiências. Ocorre que, como, habitualmente, a previsão legal discrepa das práticas judiciárias, nesse sentido, também não é diferente. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não existe qualquer mecanismo para registro literal dos atos processuais realizados oralmente. Tudo é reduzido a termo e, portanto, registrado “aos olhos” de quem elabora a ata: ou o Juiz togado ou os conciliadores e Juízes leigos. O legislador do Código de Processo Civil, supondo a hipótese de não se efetivarem meios de reprodução literal dos atos, previu a redução a termo, determinando que da ata (ou termo) conste apenas o “essencial” (art. 279) ou um “resumo do ocorrido na audiência” (art. 457), sendo que, quanto aos despachos e às sentenças (isto é, o discurso do magistrado), estes sim, devem ser registrados “por extenso”, o que quer dizer, neste caso, literalmente. O art. 457 do CPC determina, outrossim, que o termo seja rubricado pelo Juiz e assinado por todos: Juiz, advogados, Ministério Público e funcionário. Esta é uma forma de fiscalização da ata que, embora eficaz, quando analisada empiricamente, tem desdobramentos complicados. Cabe aos advogados certificarem-se, no caso concreto, de que a ata reproduziu exatamente o evento ocorrido. Assim, esses profissionais devem ter muita atenção à dinâmica
da audiência, de forma que, ao final, no momento de assinarem a ata, averigúem se, de fato, não houve erros e, especialmente quanto aos depoimentos, se não houve omissões que possam vir a prejudicar seus clientes171. Na prática, o que se infere é que não é habitual ler-se a ata de audiência: alguns por falta de paciência, outros por falta de tempo, outros por falta de atenção, outros por subserviência ao Juiz. Uma advogada que entrevistei, consultada sobre o tema, disse-me: “Eu não leio as atas. Gasta-se muito tempo. Só leio mesmo, quando sei que é um Juiz mais problemático.”. E um outro, disse-me: “Eu acho meio chato você ficar lendo a ata na frente do Juiz. Parece que você está querendo corrigir o trabalho dele ou desconfiando da sua atuação. Acho que se eu fosse Juiz eu não ia gostar dessa postura. Eu acho deselegante.”. O discurso dos Juízes é no sentido de que os advogados têm a obrigação de ler a ata e impugná-la no ato, quando considerarem que a mesma não reproduz fidedignamente a dinâmica da audiência. “Cabe ao advogado fiscalizar a elaboração da ata. Se ele não faz isso pode vir a prejudicar a parte. Primeiro porque o Juiz, no momento de prolatar a sentença, recorrerá à ata em busca de fundamentação para a sentença e depois porque o Tribunal, ao rever o recurso, certamente analisará o teor da ata em busca de fundamentação para o acórdão. O advogado tem obrigação de saber que o sistema funciona assim e trabalhar em prol do seu cliente.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “O que vemos na prática é que os advogados não lêem as atas das audiências e no Tribunal, às vezes, querem discutir o seu teor. O momento para isso é antes de assinar, depois não adianta mais. Como um advogado assina um documento oficial sem ler? Não pode. Mas é assim que acontece.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
“Acho que a ata registra bem o que acontece. O advogado é que tem que controlar isso. Depende do advogado que vai ler essa ata. Ele tem que ler e falar para o Juiz 171
Existe uma Vara Cível no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que disponibiliza um monitor específico para os advogados. Este monitor fica posto sobre a mesa onde se situam, de frente um para o outro, os advogados do autor e do réu. O mecanismo eletrônico adotado nessa Vara Cível permite que no momento em que a ata é digitada, apareça no monitor dos advogados tudo o que o secretário está escrevendo. Assim, os advogados vão acompanhando a elaboração da ata e participando ativamente desse procedimento, de forma que o controle se faz enquanto a ata vai sendo produzida. Isto garante uma relação harmoniosa, uma audiência serena e uma ata mais fidedigna. Trata-se de uma prática adotada isoladamente, não representando uma política institucional do Tribunal.
‘olha, eu falei isso e não falei isso que está aqui’. Isso passa sempre pela atenção do advogado antes de assinar. Passa sempre pela capacidade profissional do advogado de assimilar o que foi feito na assentada.”. (Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Deixar de ler a ata é, portanto, uma prática e, ao mesmo tempo, um problema, porque se algum dado importante fica esquecido, não haverá forma de retificá-lo posteriormente e o registro perdurará nos autos tal como lançado, independentemente de reproduzir os fatos tal como foram ditos ou tal como ocorreram. Assim como não ler a ata é uma postura comprometedora, lê-la também pode trazer problemas. Na pesquisa, observei que quando os advogados constatam impertinências nas atas ou mesmo erros, isso causa nitidamente um mal-estar e o ambiente torna-se imediatamente desconfortável. Esta atitude dos advogados, geralmente, caracteriza o início de uma rusga ou de um debate mais veemente com o Juiz ou conciliadores e juízes leigos. Isto porque retificar a ata significa questionar o trabalho do Juiz, já que é ele quem dita os seus termos. Segundo o ritual de uma audiência, terminada a mesma, o secretário imprime a ata, o Juiz assina e, somente após, submete à análise dos advogados para que também a subscrevam. Ou seja, quando o advogado lê a ata e solicita a sua reelaboração, ela já passou pelas mãos do Juiz, já está impressa e por ele assinada, ou seja, simbolicamente, para o Juiz aquele ato terminou e reiniciá-lo representa refazer o que já estava (per)feito. Os obstáculos criados para que esse procedimento de reelaboração da ata não se efetive são os mais diversificados. Em princípio, tenta-se convencer o advogado de que se trata de um preciosismo de sua parte. Vencida esta etapa, ou o Juiz cede e reelabora a ata ou usa de sua autoridade para fazer valer a sua vontade, insistindo em manter a ata tal como redigida. Em se instaurando o autoritarismo, ou o advogado cede e deixa tudo como está – o que, aliás, ocorre com freqüência, uma vez que se diz não ser prudente criar inimizades com magistrados - ou o advogado insiste e, aí sim, inicia-se um processo caótico, que, costumeiramente acaba ou com o advogado preso, sendo levado à Delegacia, ou com a ajuda de um representante da OAB, cuja presença é corriqueiramente solicitada para amenizar esse tipo de problema 172. 172
O art. 7º do Estatuto da Advocacia prevê, em seu inciso IV, que constitui prerrogativa do advogado ter a presença de um representante da OAB em caso de prisão em flagrante por motivo ligado ao exercício da advocacia. Vale dizer que a redação deste inciso permanece vigente, uma vez que o STF a declarou constitucional, por ocasião do julgamento da ADIN 1.127-8, ajuizada pela Associação dos Magistrados, que pretendia que tal dispositivo fosse declarado inconstitucional.
Uma Juíza que entrevistei durante a pesquisa disse-me que evita marcar audiências sempre que pode, uma vez que o preciosismo e as exigências dos advogados fazem com que se perca muito tempo nesses atos. Esclareceu-me que: “Não há mais condições de trabalho para que um Juiz fique a tarde inteira para fazer uma audiência só porque os advogados querem que se transcreva tudo, ipsis literis, numa ata. A ata foi feita para ser resumida pelo Juiz. Temos que ter poder de concisão e os advogados são muito prolixos. É complicado.”. A relação entre Juízes e advogados nesses espaços, sem dúvida, notoriamente, fica bastante desgastada. É dever do Juiz tratar a todos com urbanidade, cabendo-lhe, também, exortar aos advogados que o façam (art. 35 da LOMAN e art. 446, inciso III, do CPC). De igual sorte, aos advogados também compete tratar todos os envolvidos no processo com respeito e educação (art. 31 da Lei 8.906/94 e arts. 44 a 46 do Código de Ética e Disciplina da OAB). Na prática, nem sempre a relação é amistosa, o que prejudica deveras o diálogo, que, se houvesse, permitiria a construção de uma verdade jurídica legitimada pelo consenso. A dogmática concebe a atuação do Juiz da seguinte forma: “Ao magistrado compete, ainda, a inquirição direta das partes e das testemunhas e peritos, de modo a suprir as lacunas, omissões, dúvidas e falhas existentes, as quais podem determinar soluções contrárias à verdade. Como um verdadeiro filtro, o magistrado operará a seleção dos elementos necessários à formação de sua convicção, ouvindo e sentindo diretamente as partes nos pontos essenciais, evitando o supérfluo; observando e inquirindo as testemunhas, afastando os meios capciosos, os interrogatórios tortuosos, confrontando-as, se necessário, medida última esta, que ao juiz deve ser afeta “ex-officio”, visto como o processo psicológico de indagação da verdade e formação da convicção, a ele afetam.”. (GUSMÃO, 1938, p. 228)
É muito comum haver discussão sobre os termos da ata, especialmente, quando se trata de audiências de instrução e julgamento, onde são colhidos depoimentos de partes, testemunhas e peritos. A divergência de posicionamentos se verifica porque a ata deve registrar apenas o que é relevante para a demanda, mas o que é relevante para a demanda depende do entendimento de cada um. Aí se instaura o conflito. E, além disso, fixada a discordância, há magistrados que entendem que, mesmo o fato não sendo, a seu ver, relevante para o processo, devem registrálo em ata sempre que os advogados pleiteiem; no entanto, há outros que não reduzem a termo de forma alguma aquilo que não consideram relevante, ainda que os advogados requeiram. O
maior problema é justamente este, pois, uma vez não consignado em ata, jamais se poderá retomar o tema. “Não existe norma que discipline como o registro deve ser feito. Mas você parte do princípio de que a ata de registro é um ato público, ela tem que refletir exatamente os fatos que ocorreram na audiência. Você tem que registrar os fatos juridicamente relevantes. O juiz não tem a opção: vou registrar ou não vou registrar. Tem que registrar, agora, só o que é relevante. Por exemplo, se o cara espirra, eu não vou registrar na ata que ele espirrou porque isso não tem significância jurídica para o deslinde do feito. Agora, se o advogado faz uma postulação importante, o juiz tem que registrar. O advogado, mesmo quando o juiz não acha o fato relevante, na minha opinião, ele tem que registrar. Se o advogado achar o fato relevante o juiz tem que registrar. A ata tem que refletir o que ocorreu em audiência e se o ato é público ele vincula também o julgador. É mais um critério subjetivo porque entender o que é juridicamente relevante e o que não é, é muito pessoal, mas só que aí está a minha opinião: o juiz tem que registrar quando o advogado pedir, mesmo se para ele, não for relevante.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “Olha, nós aqui tentamos registrar o máximo de coisas que a gente consegue no termo da audiência. Porque a ata nada mais é do que como uma ata de assembléia, quer dizer, você tem que colocar ali tudo o que aconteceu na audiência. Em síntese, mas você tem que colocar. Eu procuro colocar todos os incidentes que ocorreram na audiência. Perguntas que eu indefiro, eu coloco na ata, porque a parte pode querer agravar depois. Então, na minha opinião, a ata ela tem quer minuciosa, sob pena de cercear o direito de defesa das partes. O juiz tem que estar atento à ata das audiências. Tanto que quando a audiência é feita por conciliadores, eu faço questão de que eles sejam bem detalhistas. Peço para colocar o que que aconteceu, se foi feito acordo, o que que a parte autora requereu, o que que a parte ré requereu. Tudo. Ficam atas maiores, mas o julgador e o tribunal têm condições de saber o que que realmente aconteceu naquela audiência, quando as partes estiveram frente a frente. Eu acho que uma boa ata de audiência é importante, porque ela relata o primeiro momento em que o juiz ou o conciliador está frente a frente com as partes.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “Você não vai transcrever na ata tudo o que a pessoa fala e acho que isso não tem problema nenhum. Você tem que ser objetivo até porque pelo volume de trabalho que nós temos, você é obrigado a ser objetivo e você vai ser objetivo em que sentido? Só no que interessa. Quando você entra com uma ação, o Réu chega e contesta, surge a chamada controvérsia, existem aqueles pontos que são controvertidos. Então, é só sobre esses pontos controvertidos que você tem que incidir a prova. Normalmente,
você não tem que fazer mais do que dez perguntas a uma testemunha ou a uma parte para saber exatamente o que aconteceu sobre aquele ponto. A pessoa não está lá para contar a história da vida dela, ela está lá para justamente falar ‘olha, aconteceu isso, isso, isso e isso. Foi dessa, daquela e daquela maneira que aconteceu’, ponto final. E outra coisa, a pessoa não tem que chegar e falar ‘ah, eu acho ...’. Eu não quero saber o que a pessoa acha ou deixa de achar, a testemunha está lá para depor sobre o quê? Fatos. A opinião da testemunha eu dispenso solenemente. A testemunha não tem que dar o ponto de vista subjetivo dela, a opinião dela. É assim ‘O que que o Sr. viu? Bom, eu vi isso’. O que a pessoa não viu eu não quero saber. Não tem mistério. É assim que funciona.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Uma questão significativa, que interfere sobremaneira na produção da verdade por descontextualizar todo o evento realizado diante do Juiz, é o fato de as perguntas não serem registradas em ata. A maioria dos Juízes não consigna as perguntas feitas pelas partes e advogados às testemunhas, reduzindo a termo apenas as respostas do depoente. Um Juiz que entrevistei em campo esclareceu-me que assim age porque não existem critérios ou normas objetivas que prevejam o formato da ata das audiências, dependendo, portanto, a sua elaboração, da subjetividade de cada magistrado: “Não há norma especial prevendo como temos de registrar uma ata. O meu hábito é: quando eu ouço a testemunha, ela me diz tudo o que tem que me dizer e aí, até para não ficar cansativo, eu não faço na ata ‘pergunta, resposta, pergunta, resposta’. Ela vai falando, como se estivesse numa conversa comigo, e a partir daí eu tiro todas as idéias realmente principais, até porque às vezes a testemunha viaja, como se diz por aí. A gente tira as idéias principais e aí ela lê, sempre com a supervisão dos advogados. Eu evito de fazer pergunta, resposta e consignar; depois pergunta, resposta e consignar, senão a audiência não termina absolutamente nunca. Mas eu procuro sempre manter a fidedignidade com o que a testemunha diz, inclusive, nos seus termos. Às vezes ela usa um termo que não é muito usual, mas eu o coloco. Uso as aspas e escrevo literalmente, principalmente quando eu acho que determinada frase demonstra a expressão do sentimento dela.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
As divergências quanto aos termos das perguntas e quanto ao registro das respostas são muito assíduas, especialmente, por causa do formalismo exigido no procedimento indireto de perguntas e respostas do nosso sistema, em que o advogado elabora a pergunta para o Juiz que a reelabora para parte que responde para o Juiz que dita para o secretário que digita na ata.
Esse sistema dificulta a clareza e a objetividade dos atos e prejudica o registro, uma vez que, diante de sua complexidade, acaba levando a que, na prática, sejam registradas em ata, apenas, as respostas dos depoentes, não havendo consignação alguma do teor das perguntas, o que é delicado, quando se trata de um sistema que exige de um Tribunal colegiado que rejulgue e reaprecie um processo apenas pela leitura de seus termos. A simplificação do oral pelo escrito, às vezes torna a comunicação verbal irreconhecível. O oral é mais rico em detalhes, tendo em vista que incorpora o gestual, o corporal, o sentimental. Assim, a demasiada simplificação dessas formas distintas de se expressar pode afetar a compreensão. A escrita modifica, significativamente, a natureza do uso da língua, quer dizer, a natureza da comunicação verbal (GOODY, 1988). Com efeito, a enunciação oral é muito mais completa do que a sua redução à escritura. Inclusive, é por isso que o princípio da concentração é consectário da oralidade, pois permite que se conserve na memória do julgador tudo aquilo que o escrito não consegue reproduzir e que o Juiz tem a oportunidade de presenciar. No entanto, ainda que o contexto oral seja mais vivo, real e completo e, por conseguinte, a escritura jamais possa absorvê-lo, é certo que o máximo de fidedignidade pode ser obtido, conforme a literalidade do registro. Para se fazer entender “sem gestos, sem expressão facial, sem entoação, sem um ouvinte real” tem-se que ter um cuidado redobrado e excepcional. É por isso que a escrita é um trabalho angustiante e que exige análise refinada (ONG, 1998, p. 120). No caso do processo, o modo de registro escrito dos depoimentos acarreta tremendas distorções ao criar esse múltiplo sistema de interlocuções, gerando, inclusive, riscos de “ruído na comunicação” (GUEDES, 2003). Como asseverado, entre a pergunta e o registro das respostas interpõem-se vários ‘intérpretes’: a pergunta é feita do advogado ao juiz; o juiz refaz a pergunta ao depoente; o depoente responde ao juiz; o juiz determina o registro ditando ao escrevente; e, por fim, o escrevente registra o texto ditado173. Jack Goody (1988, p. 127) destaca que “o formalismo da escrita escarnece a flexibilidade da fala, e fá-lo de uma maneira simultaneamente distorcedora e generativa.”. Essa forma indireta de questionamento desmerece a oralidade, pois uma das fundamentais características do sistema oral é a aproximação e o contacto direto e imediato entre aquele que fala e aquele que ouve. 173
Na prática, já existem alguns Juízes desprendendo-se desse formalismo e permitindo que a testemunha ou a parte respondam diretamente à pergunta feita pelo advogado. Um Juiz que entrevistei disse-me: “Eu não estou mais refazendo a pergunta do advogado para a testemunha. Perde-se muito tempo com esse sistema. Óbvio que quando noto malícia do advogado, indefiro a pergunta e advirto o advogado. Mas, quando a pergunta é leal eu não a refaço não.”.
Com efeito, o sistema processual é presidencialista, quer dizer, concentra no Juiz a elaboração das perguntas e a consignação das respostas. Assim o é porque, de fato, as perguntas para os depoentes comumente são tendenciosas. Muitas vezes, os advogados, inclusive, constrangem as testemunhas, pressionando-as exageradamente a fim de forçá-las a manifestarem-se de modo a corroborar as suas teses. Ou, quando percebem que as testemunhas não estão contribuindo, conduzem o depoimento de forma a buscar alguma falha e desqualificar todo o discurso. Cada advogado induz o depoente, através da pergunta, a dizer o que lhe convém. Nesse sentido, ao Juiz cabe distinguir isso e indeferir a pergunta ou reelaborá-la. Ao mesmo tempo, as respostas às vezes também são tendenciosas ou até mesmo confusas, cabendo ao magistrado perceber o seu teor e transcrevê-lo na ata, de forma objetiva. Essas questões, inclusive, geram uma série de discussões. Uma Juíza por mim entrevistada manifestou-se sobre o tema: “A intermediação da pergunta ser feita pelo Juiz, eu acho que faz muita diferença. Mesmo porque aqui já houve casos – isso aconteceu comigo pessoalmente – que eu deferi ao advogado a possibilidade de questionar diretamente a testemunha e o advogado abusou desse direito. Então, coagiu a testemunha e isso não é legal. Isso que a gente tem que evitar. A intermediação pelo Juiz pelo menos até o ponto que eu – bem, eu nunca parei para pensar objetivamente sobre esse assunto, mas agora que a gente está conversando eu estou aqui fazendo meu juízo de valor – eu acho que é uma questão até para se evitar esse tipo de coação. Às vezes o advogado me pede para perguntar alguma coisa e eu pergunto da forma menos coercitiva possível. Às vezes eu tenho que transformar um pouco a pergunta ... a forma como eu vou perguntar ... para que a testemunha me dê uma resposta que esteja mais condizente com aquilo ali, com o teor do processo.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Em sendo subjetiva a avaliação sobre o conteúdo intencional das perguntas, normalmente advogados e Juízes divergem. Os advogados querem manter a pergunta tal como formulada e os Juízes ou a indeferem ou a reelaboram, distorcendo e recriando aquilo que o advogado falou. Os dados do campo apontam isso: “Eu indefiro perguntas com freqüência. Os advogados às vezes não lêem o processo. Indefiro requerimentos de juntada de documentos que deveriam ter sido juntados antes, e no meio da audiência o advogado quer juntar. Eles querem ouvir testemunhas que não foram arroladas tempestivamente. Então, realmente são comuns os indeferimentos. O Juiz tem que saber coordenar muito bem uma audiência porque
senão você se perde. Se você deixar, a audiência dura horas. Você tem que ter lido o processo antes, para poder segurar ali ... para demarcar qual é a questão controvertida. Você tem que se ater à matéria controvertida. O que sair da matéria controvertida você tem que cortar, senão não termina nunca. Pelos advogados, a audiência não termina nunca.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Ao Juiz é determinado que faça constar na ata as perguntas indeferidas, a fim de que o advogado, eventualmente, se entender necessário, tenha subsídios para comprovar que teve a sua defesa cerceada pelo magistrado (art. 416, § 2o do CPC), ocorre que a determinação legal não é suficiente para conduzir os rituais, de forma que, na prática, os Juízes acabam agindo como entendem ser pertinente e, habitualmente, não fazem constar em ata as perguntas que indeferem, deixando o advogado – conseqüentemente as partes – sem meios de defesa174. “Os Juízes, na maioria dos casos, só registram na ata aquilo que eles entendem devido. É muito complicada essa situação porque, às vezes, o advogado tem intenção de sustentar alguma coisa no futuro que depende daquele registro.”. (Advogado entrevistado informalmente)
“Eu indefiro muitas perguntas que não têm nada a ver com a lide, mas registro tudo. Faço questão, acho que temos que respeitar os advogados. Sei que há muitos colegas que não registram em ata os indeferimentos de perguntas, mas não acho isso correto. Até porque não custa nada fazer isso.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
174
Matéria veiculada pela Revista Consultor Jurídico, em 05/12/2006, sob o título “Os filhos das pautas: gravação de audiência evitaria mau comportamento em juízo”, expõe bem o tema. Merecem destaque os seguintes trechos: “Os códigos de processos (Civil, Penal, Penal Militar) e leis processuais especiais estabelecem os requisitos de como as cerimônias judiciais devem nascer, se desenvolver e findar. Os comportamentos dos protagonistas do processo (magistrados, advogados, promotores, delegados, escrivães, testemunhas, partes, peritos, jurados, etc.) vêm delineados sem que o legislador, obviamente, se preocupasse com minúcias. Na prática, a teoria é outra. Semblantes exaustos dos juízes e dos promotores assoberbados de trabalho e pressionados pelo congestionamento das pautas, tanto que é perceptível nos corredores dos fóruns o acúmulo de pessoas (também impacientes pela demora). Advogados nervosos aguardando audiências ou em filas para atendimentos nos cartórios judiciais, disputando esses parcos espaços com despachantes, estudantes e estagiários em busca de certidões, enquanto os celulares tocam, via de regra, com clientes inconformados, insatisfeitos e cobrando rapidez na condução da causa [...] Nesses cenários de hospital em tempo de guerra (falta tempo e espaço), é que se realizam as audiências onde afloram os mais absurdos comportamentos [...] Como quem tem o poder de ditar a redação da ata é o juiz, creio que seria muito importante que esses ambientes judiciários tivessem gravação ambiental ininterrupta com som e imagem de uma câmera fixa. Qualquer dúvida surgida a respeito de comportamentos, poderia ser requisitada cópia em DVD pela OAB, Ministério Público, Corregedoria e Conselho Nacional de Justiça. Com a adoção da gravação ininterrupta, ficaria mais remota a probabilidade de rompimento com os padrões de comportamentos exigíveis nos ambientes judiciários. Bom para os bons e péssimo para os ruins.”. Disponível em: http://www.advocaciabonilha.com.br/noticias.asp?num=411.
Fazer a pergunta certa pressupõe conhecer detalhadamente o processo, isto é, ter lido os autos. Esta é a representação do campo. Destarte, muitas vezes nem os Juízes, nem mesmo os advogados estão preparados para fazer as perguntas precisas. A falta de tempo é o principal fator. Os Juízes lêem os autos minutos antes da audiência, apenas para saberem do que se trata, e os advogados, por sua vez, também agem assim, além do despreparo, que foi um fator destacado na pesquisa como um obstáculo ao bom transcorrer de uma audiência de instrução. A visão do campo é a de que os depoimentos devem ser objetivos e, para tanto, entende-se que as perguntas têm de ir direto ao ponto, cingindo-se aos fatos que não estejam já documentalmente comprovados nos autos. Com base nisso, assim como há Juízes que lêem os autos minutos antes da audiências e, com isso, sentem-se despreparados para perguntar, há Juízes que estudam minuciosamente o processo, o que recai num outro ponto: o pré-convencimento. Considerando que o escrito tem valor preponderante sobre o oral, o Juiz que conhece detalhadamente os autos, tende a firmar um entendimento prévio sobre o ponto de discussão que originou o processo. Assim, os documentos, eventuais laudos e provas escritas já apresentadas o convencem de antemão e, com isso, as declarações orais que os refutem são, automaticamente, desconsideradas. O convencimento prévio é um comportamento absolutamente razoável e inerente ao ser humano, isto é, pode acontecer com qualquer pessoa em qualquer circunstância. Todavia, para o Juiz isso não funciona exatamente assim. A “imparcialidade” é uma exigência do sistema. O Juiz tem de ser imparcial e, por conseguinte, não firmar um entendimento prévio às provas orais é um requisito imprescindível. Isto é, o Juiz não pode prejulgar a causa e, se assim o faz, é suspeito para proferir uma decisão imparcial e, por conseguinte, justa. A lógica do sistema é esta e quebrá-la compromete a sua estrutura e o seu funcionamento. Para exemplificar, reputo interessante narrar uma audiência que presenciei. Tratava-se de uma audiência de instrução e julgamento em que seriam ouvidas duas testemunhas indicadas pelo autor e três, pela ré. Nos termos do art. 413, processual, foram ouvidas, primeiro, as testemunhas do autor e, depois, as da ré, de forma que uma não presenciou o depoimento da outra, assim como acontece quando são tomados os depoimentos pessoais das partes. Adotados tais procedimentos formais, o Juiz iniciou a produção da prova. Enquanto estava colhendo o depoimento da primeira testemunha indicada pela ré, passados alguns instantes, começou a relembrá-la de que prestar depoimento falso em Juízo constitui crime capitulado no Código Penal; que ela estaria prestando um importante compromisso
processual; que ela deveria ficar calma e se preocupar em falar estritamente a verdade; que falando a verdade nada de mal lhe aconteceria; que ela deveria ser imparcial; enfim, demonstrando, abertamente, que estava desconfiado de que a testemunha estaria mentindo. O depoimento prosseguiu e por mais algumas vezes o Juiz interrompeu a depoente de forma veemente e até ameaçadora. Num determinado momento, o advogado da parte ré manifestou-se, dizendo que, a seu sentir, o Juiz havia prejulgado a causa e que, por conta disso, estaria refutando todas as manifestações da testemunha que fossem contrárias ao seu entendimento previamente adotado. O advogado disse, ainda, que o Juiz não estaria sendo leal na transcrição do depoimento da testemunha na ata, parecendo-lhe que estaria consignando apenas aquilo que ratificasse o seu prejulgamento e que servisse de argumentação para a sua sentença, já conscientemente tomada. Instalou-se um enorme desconforto na sala de audiências e o magistrado se mostrou profundamente importunado. A repercussão da atitude do advogado foi seriíssima. O Juiz proferiu uma decisão, no ato, julgando-se suspeito para prolatar a sentença naquele caso, bem como para funcionar como magistrado em qualquer processo que o advogado da parte ré figurasse como parte, advogado ou terceiro interessado, tendo encerrado a audiência imediatamente. O Juiz havia lido os autos, o que foi possível perceber pela sua postura e pelas menções constantes que fazia a documentos e peças processuais já apresentadas e, somado a isso, ouvira primeiramente os depoimentos das testemunhas do autor, portanto, sofreu a influência de tais provas prejulgando o processo antes do momento adequado, o que, em princípio, seria aceitável. Porém, em função da imprescindibilidade de que o magistrado tenha uma postura imparcial, decidiu, não por isso, mas por ter se indisposto com o advogado, não julgar a causa e encerrar a audiência175. Outro dado curioso que verifiquei na pesquisa - quanto à ausência de gravação, em fita ou vídeo, dos depoimentos e demais manifestações orais realizadas em audiências - é que a maior parte dos Juízes por mim entrevistados, disse-me que jamais havia pensado nessa hipótese, embora, em princípio, lhes tenha parecido interessante.
175
Há um Juiz na Capital do Rio de Janeiro que prolata as sentenças antes da realização da audiência de instrução. A sua convicção é formada sem que sequer ouça as partes ou as testemunhas. Ao final da audiência de instrução ele apenas lê a decisão já tomada e, inclusive, digitada. É certo que, às vezes, modifica o seu entendimento, ou fica em dúvida, deixando de anunciar a sentença naquele ato, mas normalmente, o mantém. Presenciei uma audiência em que ele disse, expressamente, que já havia decidido, que a sentença estaria pronta e que ele tinha certeza de que o seu convencimento seria ratificado pelo depoimento das partes.
Os principais empecilhos apontados à viabilidade da gravação dos atos processuais foram: a ausência de recursos financeiros e a falta de amparo legal. Um Juiz com quem conversei durante a pesquisa, contou-me: “Tudo é muito caro. É o problema do custo que mantém o nosso sistema assim, de tudo ter que reduzir a termo. É mais barato reduzir a termo. Eu, particularmente, acho medieval ter que reduzir a termo, mas imagine investir em um sistema de gravação, seria inviável.”. O discurso dogmático sustenta que a possibilidade de registro por taquigrafia, estenotipia ou outro meio idôneo – registro fonográfico – previsto na lei processual geral encontra obstáculos econômicos por depender da contratação de pessoas especializadas e da aquisição de equipamentos caros. (GUEDES, 2003). O campo corrobora a idéia: “O art. 417 não se cumpre por questão de custos. Vai ter que ter equipamentos, lugar onde guardar ... é como se fosse papel, ter fitas ou ter papel é igual. Tem que ver os gravadores, vai ter que transcrever tudo, ter espaço físico para gravar, custo das fitas ... vai dar dois trabalhos ao invés de um só. O custo de uma brincadeira dessa é caro. Não vejo porque gravar. A pessoa está na sua frente e você está escrevendo o que ela disse, pra que gravar? Poderia, tudo bem, ser interessante, porque você pega uma frase específica daquela testemunha que você não conseguiu colocar daquela maneira exata no papel. Mas olha só, você tem sempre que partir do princípio de que o julgador coloca na ata todos os fatos juridicamente relevantes e também que os advogados fiscalizam de certa forma a elaboração dessa ata. Pode ser mais rápido gravar, mas tem custo também. Tem que estudar isso com um pouco mais de calma. Tem até utilidade, mas fita deteriora, tem que guardar pelo prazo da rescisória, sei lá ... acho que os custos não compensam.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro possui câmeras espalhadas por todos os lados, a fim de garantir a segurança no prédio do Tribunal, além disso custeou com recursos próprios, durante todo o ano de 2006, uma obra para instalar a lâmina III, especial para o funcionamento da 2ª instância recursal. Certamente, o custo da implementação do processo eletrônico, exigido por força da Lei 11.419/2006, em vigor a partir do final do mês de março de 2007, será bastante superior ao da aquisição de gravadores simples de fitas que permitem a reprodução em áudio da dinâmica das audiências designadas.
Além disso, o art. 417 do CPC prevê a taquigrafia como forma de registro dos atos processuais desde 1973. Os arts. 164 e 170 do CPC, igualmente, prevêem a possibilidade de registro dos atos processuais por taquigrafia, estenotipia ou qualquer outro meio idôneo. Passado todo esse tempo, mais de trinta anos, até hoje essas práticas não foram adotadas, sendo custoso para a sociedade crer que não o foram por ausência de recursos financeiros. Outros motivos, certamente, contribuem para isso. Aliás, um dado importante que sugere não ser financeiro o problema da não instalação de aparelhos para a gravação dos atos processuais é o fato de os Juízes por mim entrevistados terem dito que consideravam a idéia interessante, embora jamais tivessem pensado na hipótese. Quanto à falta de amparo legal, como já explanado, o art. 417 do CPC prevê, expressa e literalmente, a “gravação” da audiência, sendo certo que os arts. 164, 170 e 279, igualmente, permitiriam interpretação extensiva, a fim de possibilitar o registro fidedigno das manifestações orais, caso os Tribunais assim o desejassem. Ademais, a falta de amparo legal não costuma ser um problema quando o Judiciário quer implementar políticas voltadas ao aprimoramento da prestação jurisdicional. No decorrer deste trabalho foram apontados multifários exemplos de práticas adotadas e não legisladas, assim como foi explicitado que o percurso das práticas judiciárias não segue o da legislação, estando ambas em patamares independentes, sendo exagerado expor que a gravação inexiste porque não há Lei determinando-a176. Entretanto, ainda assim, em campo - como adrede mencionado - tanto a falta de recursos quanto a de amparo legal mostraram-se como obstáculos à gravação dos atos processuais: “Eu acho que deveria gravar tudo que acontece na audiência, mas a gente não tem estrutura para isso. E nem há determinação legal para isso, pelo menos em varas cíveis, em sede de juizado há. Sabe o que acontece? A gente grava tudo, aí depois tem um processo de degravação, que é um estresse se for necessário. Então, cadê a celeridade, entendeu? Não é mais fácil já trazer tudo digitadinho, tudo prontinho, e pronto, estar tudo resolvido, na hora. Ajuda? Pode até ser que ajude, mas eu não sei até que ponto. Eu acho que a redução a termo é suficiente. Por exemplo, as audiências que eu faço, eu tento colocar o máximo que eu posso daquilo que foi dito. Eu acho que há 176
A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n o 9.099/95) prevê no §3º do art. 13 que apenas os atos considerados essenciais serão registrados resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas, taquigrafadas ou estenotipadas, podendo, os demais atos, serem gravados em fita magnética ou equivalente. A lei vige desde 1995 e até hoje a gravação não foi efetivada de forma institucional, havendo isoladamente determinados magistrados que, individualmente, adotam a gravação como meio de registro.
coisas que eles repetem, repetem, repetem, não há necessidade de você ficar escrevendo aquilo tudo, mas eu nunca tive nenhum problema que assim: ‘ah, se eu tivesse gravado isso talvez não teria acontecido’. Essa hipótese nunca me aconteceu.”. (Juíza Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) “A lei não prevê que se grave a audiência. Ela descreve como vai ser o procedimento. Seria ótimo gravar, pelo menos no processo civil. A Lei 9.099 ela permite, mas o CPC, por exemplo, não tem essa previsão, essa possibilidade. A parte fala e você traduz. Normalmente, você retrata o que ela falou, não necessariamente com as mesmas palavras. Você vai tirando coisas desnecessárias. Os advogados até te ajudam. Às vezes as pessoas ficam 5 minutos falando, narrando. Você não precisa registrar cada palavra. Às vezes você esquece alguma coisa, aí o advogado acha importante e fala: ‘olha Doutor, o Senhor esqueceu de reduzir a termo. A testemunha falou isso e isso.’ Aí pronto, você registra. Eu acho que tem que ser assim. Mas, seria bom gravar.”. (Juiz Titular de Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Impõe, por derradeiro, retomar a idéia inicialmente salientada de que o oral só é válido e legitimado pelo campo quando acompanha o escrito. Os Juízes procuram no escrito (nos autos processuais) a verdade, destinando-se o oral, apenas, a ratificá-la. Os advogados, por sua vez, têm sempre uma forma de perguntar que não induza diretamente a testemunha, mas que ajude a que se obtenha uma resposta confirmatória daquilo que já está escriturado. O raciocínio jurídico apresentado no campo é exatamente este. O oral não cria, reproduz. Um advogado que entrevistei, disse-me: “O importante nos depoimentos é que confirmem as alegações contidas nas nossas peças. Eu, neste caso, estou pelo autor, então, a minha inicial é o meu paradigma. Eu leio antes de vir para a audiência e procuro formular as perguntas seguindo exatamente aquilo que eu escrevi, porque, na verdade, a gente escreve, mas nem sempre temos provas. Então, por exemplo, neste caso aqui, o meu cliente disse que na loja havia várias pessoas, que no momento em que ele caiu não houve socorro por parte do estabelecimento, que havia óleo ou algo parecido no chão, que não viu nenhum funcionário fazendo a limpeza do local, que uma Senhora, também cliente, o ajudou. Tudo isso. Mas como vou provar? Então, eu venho passo a passo na inicial e faço as perguntas. Por exemplo: havia muitas pessoas no momento do acidente? Quem ajudou a vítima? Havia algum produto escorregadio no chão? Coisas assim. Então, a prova oral ela não se basta porque ela nem é muito considerada pelos Juízes. Ela vale muito quando conjugada com outros fatores levantados no processo por escrito.”.
Diante do que se descreveu, os dados sugerem que o oral nada mais é do que uma prática destinada a ratificar o escrito, pois, para fazer as perguntas certas, os Juízes e os advogados têm que ter lido as peças escritas; também assim, para responder o correto, as testemunhas e partes têm que ratificar o que sustentam os advogados nas petições e o que consta nos documentos escritos; para convencer, o perito tem que reproduzir de forma verbal aquilo que já escreveu no laudo; ou seja, o que é o oral, então, senão mera reprodução do escrito? A todo o momento, no campo do Direito, identifica-se que os operadores sentem a necessidade de escriturar o oral, como se escrever e registrar coisas fosse uma garantia absoluta de segurança e estabilidade. Mesmo com o advento da supostamente revolucionária Lei no 11.419/2006, que altera diversos dispositivos do Código de Processo Civil, instituindo o processo eletrônico, a tradição à redução a termo perdura. A escrituração do oral faz parte da cultura jurídica que, mesmo em pleno século XXI, não consegue dela se desprender. A ausência de uma forma mais fidedigna de registro das manifestações processuais orais não está próxima de ocorrer e a prova disso é, justamente, a vigência da Lei n o 11.419/2006, que poderia instituir tais práticas e não o fez, sustentando a redução a termo como ritual imprescindível177. Uma oportunidade imperdível de alterar as regras de registro em ata poderia ter surgido com o advento dessa Lei e o fato de tal chance ter sido desperdiçada é uma demonstração de que esse assunto não é uma preocupação atual do Judiciário, não fazendo parte da sua pauta. 10. Concluindo: a desconstrução dos subprincípios na prática Como visto, o princípio da oralidade não possui definição própria, sendo, o seu conceito, complementado pelas representações de seus subprincípios: imediatidade; identidade física do Juiz; concentração; e irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Os procedimentos aqui descritos sugerem que, nos termos sustentados pela dogmática, nenhum desses princípios processuais de materializa.
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A redação do art. 169 prestigia a redução a termo, valendo transcrevê-la: “Art. 169 [...] § 2 o . Quando se tratar de processo total ou parcialmente eletrônico, os atos processuais praticados na presença do juiz poderão ser produzidos e armazenados de modo integralmente digital em arquivo eletrônico inviolável, na forma da lei, mediante registro em termo que será assinado digitalmente pelo juiz e pelo escrivão ou chefe de secretaria, bem como pelos advogados das partes. § 3o . No caso do § 2o deste artigo, eventuais contradições na transcrição deverão ser suscitadas oralmente no momento da realização do ato, sob pena de preclusão, devendo o juiz decidir de plano, registrando-se a alegação e a decisão no termo.”.
O processo civil pode tramitar do início ao fim sem que a parte sequer compareça ao foro, ou seja, é viável, legítimo e jurídico que um processo transcorra do início ao fim sem que as partes jamais vejam o Juiz. A imediatidade, nesse sentido, não se manifesta, tendo em vista que a sua representação doutrinária demanda um contacto físico, direto, entre as partes e o Juiz, o que não ocorre. Nesse sentido, a empiria descarta a dogmática. Na maioria das vezes – salvo na prova oral – o Juiz delega, inclusive, a função de conduzir as audiências e de analisar os autos processuais aos seus secretários, de modo que, nem sempre, as provas são, de fato, por ele sopesadas, avaliadas ou até mesmo deferidas ou indeferidas. A imediatidade está legislada, estando consagrada no art. 446, inciso II, que dispõe: “Compete ao juiz em especial [...] II - proceder direta e pessoalmente à colheita das provas [...].”, no entanto, ainda assim, sua materialização é descartada pelos Juízes:178 “Não acho que tenhamos que ter esse contacto pessoal com as partes não. Não acho isso importante para o processo. Para a parte o que importa é a sentença e não fazer audiências é uma forma de agilizar a produção 179 de sentenças. A maioria das ações são ações em que você não precisa nem da prova testemunhal. Poucas vezes a prova testemunhal influencia no processo. Veja você mesma: estou aqui com, o quê? Acho que aqui deve ter uns 40 processos. Desses todos só marquei audiência em três. Nos outros, não preciso ouvir ninguém, não preciso marcar audiência nem nada. Tudo é por escrito e isso não me impede de julgar adequadamente a lide.”.
No processo civil, o Juiz que profere a decisão nem sempre é o Juiz que prolata a sentença, tendo em vista as exceções previstas na própria legislação. O art. 132 do CPC, como citado, prevê as diversas hipóteses que excluem a possibilidade de a sentença ser prolatada pelo mesmo Juiz que colheu a prova oral. É certo, também, que o parágrafo único do mesmo dispositivo determina que “em qualquer hipótese, o Juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.”. No entanto, a carga de trabalho que afoga os Tribunais impede que eles realizem até mesmo as audiências corriqueiras, delegando-as a funcionários, quanto mais somar à rotina diária casos excepcionais. Isso, empiricamente, não ocorre. 178
Outra exceção ao princípio da imediatidade se verifica na colheita da prova testemunhal através de carta precatória. Quando a testemunha reside em outra Comarca, ela não é obrigada a comparecer ao Juízo onde o processo tramita para prestar depoimento. Nesses casos, o Juiz que conduz o processo solicita, mediante carta precatória, a um Juiz da Comarca onde reside a testemunha, que a ouça e colha o seu depoimento, registrando-o em ata a ser reencaminhada ao Juízo onde originalmente tramita o processo (art. 410, inciso II do CPC c/c arts. 202 a 212 do CPC). 179 Atualmente, é comum a preocupação do Judiciário com as estatísticas. Trata-se de uma nova forma empresarial de administração da Justiça que vem sendo implementada sob a coordenação da Fundação Getúlio Vargas. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro existe o projeto de implantação do sistema de gestão da qualidade e certificação ISO 9001.
Nota-se, daí, a relativização ao princípio da identidade física do Juiz, reconhecida, inclusive, por parte da dogmática. Laspro (1995, p. 124) descreve: “Dentro do atual sistema judiciário, a identidade física dessa forma aduzida seria verdadeira utopia [...]”. As audiências não são unas e indivisíveis. O campo mostrou isso. É raro que na mesma audiência o Juiz decida sobre nulidades, incidentes, colha provas e ainda prolate a sentença. As audiências destinadas ao saneamento dos processos e ao deferimento ou indeferimento de provas vêm sendo delegadas, de forma que aos Juízes cabe, quase exclusivamente, presidir as audiências de instrução e julgamento, onde são colhidos pessoalmente os depoimentos orais das partes, testemunhas e peritos. De fato, na prática, as audiências de instrução sempre são presididas pelo Juiz. No entanto, a realização destas tem se restringido a casos excepcionais. A regra é não haver a produção de prova oral e, por conseguinte, não haver a audiência de instrução, resumindo-se o processo a um conjunto de atos escritos, delegados, que terminam na prolação de uma decisão judicial. Como dito outrora, o processo tem se limitado à troca de petições escritas entre os advogados e o Juiz, bem como a um ilimitado número de decisões judiciais escritas, muitas vezes proferidas por funcionários que, ao final, em algum momento determinado, acabam em uma sentença. Daí que a concentração de atos tem sido cada vez menos executada, fazendo cair por terra a previsão dogmática também deste princípio. Por derradeiro, convém destacar que o princípio da irrecorribilidade das decisões judiciais - ainda estudado pela dogmática como um subpríncipio sem o qual não se conceitua a oralidade – também não se concretiza. Aliás, este é o que menos se manifesta no processo civil brasileiro contemporâneo. O que mais há (e isto é amplamente divulgado como um tremendo obstáculo à celeridade) são recursos. Recursos estes que suspendem o curso do processo, atravancando-o até que seja proferida uma decisão na seara recursal que permita a continuidade do processo em 1º grau de jurisdição. Desde o Código Processual de 1939 as decisões proferidas no curso do processo são passíveis de recurso (mandado de segurança e agravo de instrumento). Falar em irrecorribilidade de decisões interlocutórias como uma característica crucial da oralidade é desconhecer minimamente os rituais judiciários. Uma Juíza por mim entrevistada durante a pesquisa, ratificou a inexistência, no campo prático, dos princípios que sustentam o conceito de oralidade, dizendo-me: “O nosso código, ele não adotou o princípio da oralidade na sua pureza. Por quê? Primeiro, porque o art. 132 do CPC, apesar até de acolher a identidade física do juiz, diz quais são os casos em que esse princípio pode ser mitigado. Então, muitas vezes, aquele juiz que fez a audiência não vai ser aquele juiz que vai dar a sentença. O art. 132 prevê as hipóteses. A questão
da concentração em uma ou poucas audiências, a gente vai ver isso mais especificadamente no procedimento sumário. Aí sim, o princípio da oralidade pode ser visto mais claramente. A 1ª vez que ele vem ao processo, ele já comparece em uma audiência. Mas mesmo no procedimento sumário, essa concentração dos atos ela também fica mitigada, porque se houver necessidade de provas, vai ter que se fazer outra audiência. O próprio procedimento fere esse princípio da oralidade. E a irrecorribilidade das decisões, isso não existe no nosso código. As decisões interlocutórias são passíveis de recurso. O nosso CPC não adotou o princípio puro da oralidade.”.
Na verdade, melhor dizendo, ao que me parece, a dogmática descreve os institutos jurídicos desconsiderando a empiria e trata – como citei no capítulo I – o saber jurídico como um campo abstrato do conhecimento, cuja pretensão é explicitar a forma como as práticas “devem ou têm de ser”, não como de fato são. Cuida-se de uma maneira peculiar de lidar com o conhecimento, voltada a categorizações ideais, não pragmáticas, tal como, por exemplo, se verifica no estudo da Filosofia. Esta pode ser uma justificativa para o fato de o campo “teórico” do Direito desconsiderar que todas essas questões práticas aqui destacadas estão acontecendo e permanecer sustentando que o princípio da oralidade – garantia fundamental do processo - se configura a partir da materialização dos subprincípios que o suportam. Os dados trazidos demonstram que tanto a legislação quanto as práticas judiciárias legitimam um processo do qual as partes, efetivamente, não participam. A integração dos maiores interessados na solução do conflito levado ao Judiciário – as partes - não se concretiza, empiricamente, no 1º grau de jurisdição. Sempre que possível, a sua representação é feita através de seus advogados e, igualmente, toda vez que se faz viável a adoção de práticas escritas no lugar de manifestações orais que permitiriam um diálogo ou um contacto entre todos os “atores processuais”, estas são apartadas em prol daquelas. Um processo não transcorre sem a participação dos advogados; sem a participação do Juiz; sem a participação do perito; sem a participação dos funcionários; mas o seu curso se verifica, normalmente, sem a participação das partes, seja autora seja ré. A presença física das partes no sistema processual vigente é absolutamente descartável e a audiência, característica fundamental da oralidade, transcorre perfeitamente sem o seu comparecimento. Nesse contexto, a oralidade prestigiada na teoria é, ao revés, na 1ª instância processual, afastada. É certo que existem rasgos de oralidade no processo civil; existe uma participação efetiva do Juiz na condução do processo; existe um contacto físico dele com as provas e com os advogados; existem manifestações processuais orais; mas a intensidade com que essas
manifestações ocorrem não é nada parecida ao que sustenta a dogmática, razão pela qual, alçar a oralidade à categoria de garantia, é desvirtuar e anular aquilo que se infere no cotidiano dos Tribunais. É deveras prejudicial à oralidade o fato de as partes não atuarem na condução do processo. Elas são nitidamente afastadas da relação processual, exercendo um papel de mero espectador dos atos processuais. As partes, em nosso sistema, são representadas pelos advogados; suas falas são traduzidas pelos Juízes; seu comportamento é controlado; suas manifestações subjetivamente interpretadas; sua voz não é ouvida. Assim, as partes não partilham o processo com os demais atuantes, esperando a verdade ser ditada pelo Juiz; um terceiro que, através da sua convicção íntima, escolhe qual versão dos fatos deve prevalecer (a do autor ou a do réu) na sentença. Um Juiz por mim entrevistado durante a pesquisa, esclareceu-me: “Verdade só tem uma. Você tem que buscá-la. Você usa os instrumentos jurídicos para dar a cada um o que é seu.”. A pesquisa apontou que “verdade” é aquilo que o Juiz diz que é na hora de julgar. Nesse sentido, a verdade no processo brasileiro é formada ao arbítrio das partes. Sobre o tema, Kant de Lima (1995) ressalta em sua pesquisa sobre as práticas policiais - cujos dados são perfeitamente aplicáveis às práticas judiciárias - que o processo de produção da verdade resulta mais propriamente das relações pessoais, sociais, políticas e de poder que estão subjacentes nessas práticas do que propriamente pela aplicação universal e neutra das normas jurídicas. Até mesmo porque, no caso, esta verdade, antes de ser resultado do consenso sobre os fatos produzidos durante o processo, é a interpretação autorizada e monopolizada do Estado, representado na figura do Juiz, que opera sobre fatos previamente definidos e eleitos para comprovar e ratificar uma verdade também previamente constituída. O campo do Direito está preso à idéia de que a verdade que as partes esperam é a sentença. Um Juiz por mim entrevistado disse-me isso literalmente: “O que as partes querem é a sentença.”. No entanto, ao revés, os dados mostraram que o diálogo e o consenso seriam o caminho que proporcionaria a construção de uma verdade consensual e a legitimidade do Judiciário. Outro magistrado por mim entrevistado durante a pesquisa, querendo justificar que o contacto dos cidadãos com o Judiciário não resolveria o problema da administração dos conflitos pelos Tribunais, acabou por descrever o contrário, manifestando-se:
“Essa questão da parte ter acesso direto ao juiz é lógico que é muito importante, mas ela não é a solução de todos os problemas não. Às vezes a parte vem aqui e não está preocupada em convencer o julgador, ela quer aproveitar aquela oportunidade para convencer a outra parte de que ela que está certa e isso não interessa. Ela tem que convencer o julgador, não a parte contrária. Então, você tem que intervir e mostrar a elas ‘vocês estão perdendo muito tempo porque o convencimento tem que ser do julgador, não da parte, então, não adianta bater boca’. A audiência para elas é uma catarse. As partes esquecem que não têm que resolver o problema entre elas. Elas acham que têm que falar entre elas o que querem; como estão com os seus advogados, sentem a liberdade para falar o que desejam; quando na verdade a finalidade do processo não é essa; é uma pacificação social através da concretização do Direito e isso aí é um problema sociológico, não sei, uma assistência social, enfim ... Mas as partes aproveitam o encontro no Tribunal para fazer isso, discutir.”.
Essa passagem encerra este capítulo exatamente como eu previ. O Direito não enxerga, mesmo quando é tão óbvio, que a finalidade do Judiciário é outra, que não pacificar conflitos sociais. Administrar o conflito entre as partes do processo, por via do consenso, já seria um importante papel a ser exercido pelos Tribunais. Se o Direito se contentasse com essa função, já estaria executando bastante bem o seu ideal. O problema está, talvez, entre o que o Direito quer oferecer e o que a sociedade quer que ele ofereça. A narrativa contada pelo Juiz aponta que as partes queriam conversar e aproveitaram-se daquele momento com esse intuito. Entretanto, o Juiz, representante do Estado na administração do conflito, queria buscar a verdade e desvendá-la, através da sentença, sendo certo que, nesse objetivo, a participação das partes é descartada, de modo que o diálogo entre elas configura mais um empecilho do que uma solução.
CAPÍTULO V A ESTRUTURA E O FUNCIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO: SITUANDO A ORALIDADE RECURSAL 1. Preliminarmente Expor as características estruturais e o funcionamento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde realizei a pesquisa de campo, é fundamental para a compreensão do capítulo seguinte, onde explicitarei propriamente os seus rituais de julgamento, motivo pelo qual não poderia deixar de passar por esta etapa. Antes de iniciar a descrição do citado Tribunal, considero relevante destacar que, a fim de descrever não só o funcionamento, como também os rituais dos julgamentos realizados nesse Tribunal, utilizarei como paradigma - sempre que for necessário tratar de um recurso em espécie - a Apelação Cível. E o farei porque são muitos os tipos de processos e recursos que tramitam nesse órgão, de forma que explicitar o curso e as características de todos eles seria impossível. O sistema recursal brasileiro é altamente complexo e anacrônico. Há inúmeros tipos de recursos e diversas formas de interposição dos mesmos, de modo que, conforme ressaltei desde o início do trabalho, não me proponho a relatar tal estrutura com minúcia, destacando cada um de seus pormenores, que são multifários. A intenção desta pesquisa é, simplesmente, compreender o princípio da oralidade a partir da descrição das principais práticas judiciárias que envolvem um processo vinculado à matéria cível, na Justiça do Rio de Janeiro. Para tanto, necessito ser bastante clara e objetiva – inclusive porque pretendo atingir o maior número de pessoas possível, mormente aquelas que desconhecem as rotinas dos Tribunais - de maneira que os meus parâmetros são os mais simplórios. O meu intuito e interesse não é realizar um estudo aprofundado sobre as questões processuais e técnicas do processo civil brasileiro. Deixo isso a cargo dos especialistas. A minha vontade e o meu propósito é, apenas, desvendar alguns dos obscuros e explicitar os óbvios do sistema processual civil, mas o escopo, do qual não posso me desvencilhar, é a empiria e não a teoria processual.
2. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro O Tribunal de Justiça é o único órgão de 2ª instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro. Quer dizer, é o órgão do Poder Judiciário Estadual competente para, em regra, rever as decisões proferidas pelos Juízes monocráticos, de 1ª instância, de todos os Municípios do Estado, relativamente a todas as matérias de sua competência, seja cível, criminal, de família, de órfãos e sucessões, empresarial etc., sendo composto, atualmente, por 180 (cento e oitenta) Juízes - denominados Desembargadores – distribuídos em diversos órgãos julgadores, dentre os quais as Câmaras Isoladas Cíveis, que rejulgam as sentenças proferidas pelos Juízes de Varas Cíveis, objeto deste trabalho. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é composto por diversos órgãos colegiados. No caso desta pesquisa, interessa destacar as 20 Câmaras Cíveis que o integram, cada uma constituída por 5 (cinco) Desembargadores, que têm competência para julgar diversos tipos de recursos em matéria cível, o que, em síntese, como já fora esclarecido, significa dizer: julgam tudo aquilo que não for criminal. Os recursos que aguardam julgamento pelas Câmaras Cíveis são distribuídos por sorteio, a uma das 20 (vinte) câmaras 180 e, incontinenti, tão-logo se identifique a Câmara, a distribuição se dá, também por sorteio (há previsão regimental para que se faça por rodízio, mas atualmente, se faz por sorteio), a um dos 5 (cinco) Desembargadores componentes da respectiva Câmara Cível, que será designado como relator do recurso. O relator do recurso é o Desembargador que dirige o processo, enquanto este não é submetido aos demais Desembargadores componentes do órgão julgador para a decisão conjunta. Ele é também o responsável pela elaboração do relatório (daí o nome) do processo, que seria um resumo escrito dos fatos e das questões controvertidas que envolvem a causa submetida a julgamento. O relator pode, outrossim, proferir determinadas decisões, monocraticamente, ou seja, sem submetê-las ao crivo de seus pares 181, mas, em regra, as decisões proferidas na 2ª instância devem ser colegiadas, ou seja, analisadas em conjunto, em sessão de julgamento designada para esse fim182. 180
A Lei Estadual no 4.838/2006 criou as 19ª e 20ª câmaras cíveis, cuja instalação deu-se em 08/12/2006, ocorrendo, o seu efetivo funcionamento, a partir de fevereiro de 2007, na nova sede do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, denominada “Lâmina III”, agregada ao edifício antigo do Tribunal, entretanto, construída a partir de uma nova concepção estrutural, altamente glamourosa. A Lei n o 5.165/2007 criou mais 10 (dez) cargos de Desembargador no referido Tribunal, totalizando a sua atual composição, formada por 180 (cento e oitenta) magistrados. 181 É o caso, por exemplo, de decisões que exigem urgência. Ver artigos 527, 557 e 558 do CPC. 182 Embora, na prática, seja cada vez mais comum a interpretação extensiva do artigo que permite a decisão singular, caracterizando uma busca incessante pela rapidez nos julgamentos – ainda que isso acarrete problemas
O art. 31 do Regimento Interno do TJRJ (RITJRJ) prevê a possibilidade de o relator do recurso proceder às diligências que considerar importantes e à colheita das provas que desejar, sempre que necessário ao julgamento da causa. Tal permissão legal, se utilizada na prática, possibilitaria a imediatidade, ou seja, o contacto humano dos Desembargadores com as partes e com os detalhes fáticos do processo, caracterizando o que se poderia definir como o embasamento legal ao princípio da oralidade em sede recursal, nos termos do conceito da doutrina jurídica, outrora destacado. No entanto, é possível asseverar - pelo que se retrata no campo – que é raríssimo haver instrução probatória na 2ª instância recursal, não porque não seja relevante, mas por fatores externos à causa, especialmente, a avalanche de processos aguardando julgamento; a falta de estrutura do tribunal; a incompatibilidade entre a quantidade de processos e a de desembargadores; a tradição da 2ª instância recursal como mera reapreciadora de decisões monocráticas; enfim, dentre outros que poderão vir a ser observados. Além do relator, julgam o recurso mais dois outros Desembargadores componentes da Câmara Cível em que o processo tramita. Desta forma, dos cinco integrantes da Câmara, apenas três proferem a decisão colegiada (art. 555 do CPC). Dependendo da matéria objeto do recurso os dois Desembargadores que compõem o quorum da sessão, juntamente com o relator, são chamados de “vogal”, dependendo, tem-se um revisor e um vogal. O Desembargador revisor é o que segue ao relator na ordem decrescente de antigüidade da composição da Câmara. O vogal é qualquer um dos demais presentes, adotada a ordem preferencial de antigüidade. Ou seja, o vogal é o Desembargador mais antigo na Câmara imediatamente seguinte ao revisor – quando houver – ou ao relator, mas é o mais antigo que estiver presente na sessão no momento do julgamento. Portanto, pode figurar como vogal qualquer dos Desembargadores presentes na sessão, pois, se, eventualmente, o mais antigo após o revisor ou o relator, no momento do julgamento não estiver na sala de sessão, tiver ido ao banheiro, por exemplo, vota como vogal o seguinte, na ordem da antigüidade. Dessa forma, o vogal é sempre um “elemento surpresa”. Não há como afirmar, com certeza, quem funcionará como vogal em um determinado processo. Esta certeza só existe quanto ao relator (para quem o processo é distribuído) e quanto ao revisor – quando houver – uma vez que o revisor é o seguinte ao relator, na ordem de antigüidade. O vogal, não necessariamente, é o mais antigo após o revisor. Ele é o mais antigo que estiver presente na sessão no exato momento em que o recurso for anunciado para ser julgado.
às partes – e pelo esvaziamento das prateleiras, sempre e cada dia mais, abarrotadas de processos.
A legislação processual civil, taxativamente, especifica em que casos os recursos são submetidos à revisão e em que casos a mesma não se faz necessária. A escolha dos casos em que a revisão foi imposta e daqueles em que ela foi dispensada se dá em razão da complexidade da matéria posta sob julgamento, conforme expõe a norma processual vigente (art. 551, CPC). A diferença essencial entre o revisor e o vogal é que o revisor tem contacto com o processo e, inclusive, com o relatório elaborado pelo relator, antes da sessão de julgamento do recurso e o vogal não, pois vê o processo, pela primeira vez, no dia da sessão em que o mesmo será julgado. Quer dizer, o recurso que o Desembargador vogal julga é tão estranho a ele quanto o é ao público que assiste à sessão despretensiosamente. O vogal julga os recursos a partir, simplesmente, daquilo que ouve na sessão de julgamento, conforme será melhor explicitado no capítulo seguinte. Daí a importância da oralidade nesses rituais. Nas causas em que há um revisor e um vogal, apenas um Desembargador desconhece o processo, todavia, naquelas em que dois são os vogais - geralmente causas de suposta menor complexidade183 – dois julgadores desconhecem absolutamente o processo e terão contacto com os fatos da causa pela primeira vez no dia do julgamento. Nestas situações, somente o relator fez o estudo detalhado do caso e as conseqüências disso são problemáticas para as partes, como se explicitará no capítulo posterior. É certo que a Lei prevê (art. 555, §2º do CPC), em caso de dúvida surgida no ato do julgamento, que o vogal - assim como os demais Desembargadores, mesmo o relator – pode pedir vista do processo, por uma sessão, até se sentir habilitado a proferir o seu voto, familiarizando-se com os fatos e formando o seu convencimento (se é que isso é possível apenas lendo papéis) o que, supostamente, poderia vir a suprir a insegurança causada pela própria lei ao permitir que apenas um Desembargador, dos três que julgam a causa, conheça o assunto da controvérsia. Ocorre que, na prática, isto não costuma acontecer, como demonstraram os dados colhidos em campo. É muito raro os Desembargadores pedirem vista dos processos nas sessões. Quando há pedido de vista é porque algum advogado fez sustentação oral na sessão e, a partir desta, levantou-se questão controvertida. O que é bastante comum é - ao haver dúvida na sessão - ali mesmo, com o manuseio rápido dos autos, os Desembargadores se convencerem da decisão que devem tomar.
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Ver art. 551, caput e §3º do CPC. Destaca os casos em que não há revisor, ou seja, que são julgados apenas pelo relator e por dois vogais.
Isto se deve, segundo informações do campo, à falta de tempo dos Desembargadores, oriunda do excesso de processos que têm para julgar 184. Segundo me esclareceu um Desembargador de Câmara Cível: “É impossível dar conta do volume de processos que temos. Creio que julgamos, mais ou menos, cada um de nós, em Câmaras Cíveis – porque o volume das criminais é irrisório comparado ao nosso – em Câmaras Cíveis, mais de 100 (cem) processos por mês. E, como se não bastasse, conforme vamos julgando esses 100 (cem), vamos recebendo mais 100 (cem) processos, porque a nossa distribuição mensal é de mais de 100 (cem) processos por cada Desembargador Cível. Como se pode dar conta disso? Não se pode. Não se pode dar conta. É desumano.”.
Nesse contexto, se os Desembargadores pedirem vista, acumularão mais processos em seus gabinetes, já abarrotados, ao passo que, dirimindo-se a dúvida na própria sessão, menos um processo haverá para analisar e a prestação jurisdicional será prestada em menos tempo. Naqueles processos em que a Lei determina a revisão, também acontecem, na prática, pedidos de vista pelo vogal, entretanto, em geral, ocorrem apenas quando o Desembargador revisor julga de forma diferente do relator. Nestas situações, o vogal se vê entre a posição do relator e a do revisor, o que suscita dúvida. Porém, mesmo nesses casos, é mais comum o esclarecimento da dúvida na própria sessão do que pedidos de vista, valendo dizer que tais esclarecimentos, muitas vezes, se dão oralmente pelos próprios Desembargadores, relator e revisor, sem que seja necessário o manuseio do processo pelo vogal. O vogal, então, diante do que ouve, escolhe quem vai acompanhar e vota, ocasiões em que o resultado do julgamento se dá por maioria e não por unanimidade. Enfim, havendo ou não revisor, são, em geral 185, 03 (três) Desembargadores que julgam os recursos, mesmo sendo de 5 (cinco) a composição das Câmaras Cíveis. As sessões de julgamento das 20 (vinte) Câmaras Cíveis seguem os mesmos procedimentos, previstos no Regimento Interno (arts. 55 a 65) e no próprio Código de Processo Civil (arts. 547 a 564). Salvo nos processos em que haja “segredo de justiça” (art. 155 do CPC), todas as sessões são públicas, ressalvando, o Regimento Interno do Tribunal, a 184
Em média, nas sessões das câmaras cíveis – realizadas uma vez por semana – julgam-se 100 (cem) processos e, por mês, são distribuídos, em média, 650 (seiscentos e cinqüenta) processos para cada câmara cível. A média de processos julgados por sessão foi obtida em campo, porém a estatística de distribuição encontra-se disponível no site do próprio Tribunal de Justiça: http://www.tj.rj.gov.br/adm_geral/anuario_2006/produt_2inst_nov_2006.doc. A estatística aqui mencionada diz respeito ao mês de novembro de 2006. 185 Nem sempre o quorum é de três Desembargadores. A exceção é o recurso de embargos infringentes em que o quorum exigido é de cinco Desembargadores (art. 81, §1º do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). O Regimento Interno do TJRJ está disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/servicos/downloads.
possibilidade de, por deliberação da maioria dos Desembargadores da câmara, instituir-se o sigilo, o que não é comum (art. 49). As sessões são realizadas no prédio do foro central, porém em blocos específicos, destacados da 1ª instância e, visivelmente, muito melhor estruturados. As Câmaras - tanto as Cíveis quanto as Criminais - e também os gabinetes dos Desembargadores, situam-se na Lâmina III do Tribunal, recém-inaugurada, sendo uma edificação impactante, imponente. Vale dizer que, mesmo antes da inauguração da nova sede do Tribunal, a 2ª instância sempre esteve desagregada da primeira, situando-se em andar mais elevado, literalmente acima da 1ª, e melhor disposto. O luxo do edifício atual chama a atenção, pois discrepa da realidade daqueles que nele devem circular. Um funcionário do Tribunal que conheço há algum tempo, com quem conversei logo após a inauguração, disse-me que: “De tão suntuoso, acho que vai até assustar as pessoas mais humildes. Se até nós, que conhecemos como isso aqui funciona, ficamos meio chocados, imagine as pessoas pobres, que não têm nada, entrando aqui! Acho que realmente vão ter até medo de entrar, de tanta pompa. E o pior, olha só, esse prédio fica bem em frente ao da Defensoria Pública. Olha só o contraste. É impressionante. Não sei para quê tudo isso... ”.
O glamour não deixa de ser uma forma de distanciar e de distinguir, em busca de uma concepção sacralizada186, não mundana, de certa forma, transcendente, da Justiça. Como destaca Garapon, “O espaço judiciário é um espaço sagrado” (1997, p. 40). Kant de Lima (2004-a; p. 44), manifestando-se a respeito das salas de julgamento onde funcionam os Tribunais do Júri – o que se aplica a este contexto – destaca que sempre há “um tradicional crucifixo católico, simbolizando a “humanização” da justiça, sacralizada na fé cristã católica, embora a constituição brasileira proclame a liberdade de crença religiosa para 186
É muito comum haver crucifixos nas salas de sessões dos Tribunais Recursais, o que ratifica a simbologia do “sagrado” nesses espaços. Ruy Barbosa, em sua “Oração aos moços”, discurso proferido em 1920, registra: “Não há justiça, onde não haja Deus.”. Aliás, esta questão da influência religiosa exercida sobre o funcionamento da Justiça nos remete a várias práticas que destacam isso. Por exemplo, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em grau recursal, não é mais tão habitual que as pessoas se levantem quando os Magistrados entram nas salas de julgamento e que só tomem assento conforme determine o Presidente. Entretanto, no Tribunal do Júri esta prática é ainda rigidamente observada. Pude notar que, na Argentina, onde realizei a missão de estudos, os rituais também são comandados dessa forma. As pessoas só levantam ou sentam se e quando autorizadas por um Magistrado. Isto nos faz lembrar, irremediavelmente, as missas das Igrejas Católicas, onde, a todo o momento, o Padre determina o que os religiosos devem fazer: sentar-se ou levantar-se. É uma espécie de temor à divindade que parece circundar os corredores do Judiciário, ainda que, de certa forma, latente. O discurso de Ruy Barbosa está disponível em: BARBOSA, Ruy. Oração aos moços. Edição Popular anotada por Adriano da Gama Kury. 5ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999.
todos os cidadãos e a religião católica tenha deixado de ser a religião oficial do Estado brasileiro em 1889.”. Berman (1996), igualmente ressalta a forte ligação existente entre a tradição jurídica e a religiosa no Ocidente, na medida em que descreve que as instituições, conceitos e valores básicos dos sistemas jurídicos têm raízes nos rituais, liturgias e doutrinas propriamente religiosas, que, por sua vez, refletem novas atitudes concernentemente ao pecado, ao castigo, ao perdão e à salvação, bem como novas suposições a respeito da relação entre o divino e o humano. Berman (1996) destaca que as práticas e posturas religiosas se transformaram intensamente no curso da história, entretanto, as instituições, conceitos e valores jurídicos que delas se derivaram sobrevivem intactos. Berman menciona que “a ciência jurídica ocidental é uma teologia secular” (1996, p. 177, tradução livre), apesar de não ter mais sentido, uma vez que não se aceitam mais, socialmente, os seus pressupostos teológicos. Essa necessidade – de não estar próximo – transparece até mesmo pela estrutura dos balcões das secretarias de atendimento das Câmaras Cíveis. As salas de atendimento têm vidros acima dos balcões que separam os funcionários daqueles que solicitam o atendimento, dificultando, inclusive, o diálogo. Os gabinetes e as salas onde são realizadas as sessões de julgamento são, visivelmente, maiores e mais luxuosos do que os gabinetes e as salas de audiências da 1ª instância187. A disposição dos lugares na sala de sessão se representa de forma que o Presidente da Câmara ocupa uma mesa central – situada de maneira que aqueles que entram na sala de sessão o vêem de frente – normalmente, posta em um nível superior às demais, o que, como aponta Garapon, relaciona-se com a hierarquia e a sacralização que estruturam o sistema judicial: “[...] a hierarquização do espaço, nomeadamente a elevação do gabinete dos juízes, evoca a busca de um contacto entre os homens e o céu.”188. (GARAPON, 1997, p. 41). Ao lado do Presidente da sessão, sentam-se, à direita, o representante do Ministério Público e, à esquerda, o (a) secretário (a) da sessão. Os demais Desembargadores ficam divididos em duas mesas dispostas – uma de frente para a outra - abaixo e em cada um dos lados da mesa do Desembargador Presidente. À frente e distante da mesa do Presidente fica a
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Ressalva deve se fazer, na 1ª instância, às salas dos tribunais do júri, que são semelhantes, em termos físicos, àquelas em que se realizam as sessões da instância recursal. O júri possui uma conotação tão sagrada quanto a que o campo demonstrou existir nesses Tribunais Recursais. 188 Sobre esse assunto e até a respeito da sua vinculação com o tema da minha pesquisa, quando estive em missão de estudos, em Buenos Aires, um professor de direito processual da UBA disse-me que: “os juízes gostam de criar uma imagem de distância e de autoridade. É como se a justiça estivesse no céu e as pessoas estivessem esperando os seus mandamentos. A oralidade aproximaria demais, os juízes não gostam disso.”.
tribuna destinada à sustentação oral dos advogados. Logo atrás da tribuna ficam os lugares disponíveis ao público. O assento dos Desembargadores se dá na ordem decrescente de antiguidade, sendo que quanto mais antigo o Desembargador mais próximo ficará do Presidente. O mais antigo de todos, após o Presidente – que é o mais antigo da câmara - ocupa o primeiro assento à direita; o seu imediato ocupa o primeiro assento à esquerda e assim sucessivamente189. Os advogados sustentam as suas razões recursais de costas para o público, porém, de frente para o Presidente. Vê-se, pois, que o Presidente ocupa um lugar superior e central, de modo que todos podem vê-lo, caracterizando-se, outrossim, pelos detalhes dos assentos dos demais Desembargadores, o seu imenso prestígio. Cabe ao Presidente manter a ordem e a disciplina do recinto, advertindo ou fazendo retirar da sala quem perturbar os trabalhos, mandando prender e autuar, pela autoridade competente, os que cometerem crime ou contravenção no local, nos termos do art. 58 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Além disso, cabe ao Presidente autorizar, quando entender conveniente, que as pessoas que a ele se dirijam para falar o que quer que seja, o façam sentadas, pois, em caso contrário, todos devem estar de pé, salvo os advogados (art. 59 do RITJRJ). Ninguém fala nas sessões de julgamento sem autorização do Presidente190, nem interrompe a quem estiver usando a palavra, salvo para apartes, quando solicitados e concedidos. Na prática – como, aliás, já discorri - verifica-se que os advogados também respeitam a etiqueta exigida nesses rituais e, normalmente, quando requerem algo ou necessitam se manifestar oralmente pedem a palavra ao Presidente da sessão, dizendo: “Pela ordem 191, Sr. 189
Caput do art. 47 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “O Presidente terá assento especial no topo da mesa. O Desembargador mais antigo ocupará o primeiro assento à direita; seu imediato, o primeiro à esquerda, e assim sucessivamente. Na hipótese do art. 20, aos Desembargadores seguir-se-ão os Juízes convocados, que terão assento segundo o mesmo critério, também na ordem decrescente de antigüidade na entrância. Na mesa, o Órgão do Ministério Público ocupará a direita, e o Secretário a esquerda do Presidente.”. 190 Vale pontuar que os rituais judiciários, em geral, limitam a fala, não permitindo que a comunicação seja livre e a manifestação desvinculada de arbítrios. Para “falar” há sempre restrições, impostas para todos – ainda que de forma mais intensa para uns do que para outros – inclusive os Ministros de Tribunais Superiores. Se a parte quer falar, o advogado não deixa; quando não é o advogado, é o Juiz; se a testemunha quer falar, o Juiz restringe; se os Desembargadores querem falar, o Presidente limita; se os Ministros também o querem, o Presidente não permite que se vá além. Enfim, a fala está sempre cingida a ou mitigada por algo, de modo que não flui naturalmente. Nota-se, com freqüência, um desprestígio da oralidade que, de alguma forma, é instituído pela Lei, porém, também especialmente legitimado pelas práticas dos Tribunais. 191 O jargão advém de previsão legal, instituída no Estatuto da Advocacia (Lei n o 8.906/94), que, em seu art. 7º, inciso X, preconiza: “Art. 7º. São direitos do advogado: [...] X – usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas.”.
Presidente”. Aqueles que não agem assim são, de imediato, estigmatizados, por não estarem devidamente inseridos no campo. Todos os Desembargadores usam vestes talares e até mesmo a vestimenta exigida às partes e cidadãos para freqüentarem as sessões plenárias marca a severa hierarquia, o poder e a necessidade de distinção que o meio jurídico impõe a si mesmo. É comum, durante a realização dos julgamentos, em todas as sessões, quaisquer que seja a Câmara, garçons bem vestidos servirem água, café, sucos e sanduíches para os Desembargadores. Há, também, não em todas, mas em algumas Câmaras Cíveis, água, café e biscoitos disponíveis para os advogados que aguardam os julgamentos, algo que não é comum na 1ª instância, nem para os juízes, nem para os advogados. Iniciada a sessão, pelo Presidente são apregoados, um a um, os feitos que serão julgados, permitindo-se a preferência, geralmente, àqueles em que os advogados usarão da palavra na tribuna, bem como àqueles cujos relatores ou revisores são Desembargadores itinerantes, isto é, membros ainda não efetivos de uma determinada Câmara e que, portanto, permanecem em substituição, vinculando-se a recursos que tramitam em distintas Câmaras: é a chamada preferência regimental192. Os relatores começam o julgamento lendo o relatório, após o que se concede a palavra ao advogado do recorrente, por 15 minutos (improrrogáveis), após, ao advogado do recorrido, também por 15 minutos (improrrogáveis) 193, sendo que terminadas as defesas orais, o relator profere o seu voto. Normalmente, o relator lê o seu voto – que já vai pronto para as sessões – passando-se a palavra aos demais Desembargadores que compõem a turma julgadora (dependendo da matéria, revisor e vogal ou dois vogais) para a prolação dos seus votos. Registre-se que os votos dos relatores são elaborados antes das sessões, isto é, os Desembargadores os levam prontos para as sessões de julgamento, o que demonstra, tanto que estão fechados para o consenso e para o diálogo, quanto que o seu convencimento se forma, individualmente, sendo certo que, quando chegam à sessão, já estão convictos sobre a que parte o Direito recorre, conforme o campo sugeriu, destacando um advogado que entrevistei: “Todo mundo sabe. Os julgadores já entram para a sessão de julgamento com a decisão tomada. O entendimento é preconcebido.”.194 192
O art. 60 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça prevê, expressamente, todos os casos em que se concede preferência à ordem da pauta. 193 Os advogados não são obrigados a sustentar oralmente as suas razões recursais e há casos em que não podem usar da palavra na tribuna, mesmo que queiram. Nos termos do art. 554 do CPC, não pode haver sustentação oral quando se tratar de recurso de embargos declaratórios e de agravo. 194 Oportuno mencionar que esta prática se verifica também nos Tribunais Superiores e a questão é tão complexa que, recentemente (setembro de 2006), os Ministros da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, inclusive, independentemente de alteração regimental, passaram a distribuir, antecipadamente às sessões, aos demais
Nesse sentido, a sessão de julgamento passa a ter o papel de mero ritual burocrático 195 - onde formalismos são compulsivamente observados - não representando, como se espera, que seja o momento para o debate oral e público, onde todos os julgadores discutirão os argumentos do processo e chegarão, unanimemente, pelo diálogo, a uma decisão que reproduzirá uma verdade consensualmente concebida. Tal tópico será mais bem descrito em tópico posterior. Chegada à conclusão da decisão, na própria sessão, o Presidente lê o resultado do julgamento, representado, basicamente, nos seguintes termos: “A Xa Câmara Cível, por unanimidade de votos, deu provimento ao recurso, total ou parcialmente, nos termos do voto do relator” ou “A Xa Câmara Cível, por maioria ou por unanimidade de votos, deu provimento ou negou provimento ao recurso, total ou parcialmente, vencido o relator ou o revisor ou o vogal, Desembargador “X”, que lavrará o voto vencido.”. Ao julgamento proferido em grau recursal pelo colegiado dá-se o nome de acórdão196. A ata da sessão, nos termos do artigo 62 do Regimento Interno, deve conter, além dos dados gerais do processo, um claro resumo do ocorrido, sendo que, na prática, isto não acontece. O que se consigna na ata é, apenas, os dados do processo, os nomes dos advogados que sustentaram e o resultado do julgamento, nos termos acima transcritos; não havendo quaisquer registros de tudo mais o que ocorre em uma sessão de julgamento. Após a sessão, o processo é encaminhado para o relator, a quem cabe “redigir” o acórdão, no qual constará a ementa (resumo do objeto do recurso e do resultado), o relatório, a fundamentação – que é o voto vencedor – e o resultado do julgamento (ou dispositivo do acórdão). componentes da Turma, não apenas os relatórios, mas também as ementas e os próprios votos dos processos que serão julgados. Assim, antes mesmo do julgamento, todos os membros da Turma tomam conhecimento do posicionamento do relator, o que os coloca em contacto com o assunto a ser discutido. A prática dividiu posicionamentos porque alguns acreditam que o julgamento prévio, firmado antes da sustentação do advogado, desconsidera os argumentos da defesa oral e, por sua vez, caracteriza a inobservância ao princípio da ampla defesa, constitucionalmente assegurado (art. 5º, inciso LV). No entanto, outros, crêem não se tratar disso, uma vez que, tendo conhecimento prévio da matéria a ser discutida e do conteúdo do voto do relator, os demais Ministros têm condições de fazer um julgamento melhor e de ouvir as sustentações orais com mais interesse, permitindo, inclusive, que o relator, eventualmente, reformule o seu voto em função da sustentação oral. Os detalhes do debate sobre a prática implementada pela 2ª Turma do STJ foi divulgado em notícia do STJ, de 12/09/2006, intitulada – embora não seja o que representa o conteúdo – “ Advogados apóiam procedimentos da Segunda Turma do STJ”. O teor pode ser acessado em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp? tmp.estilo=2&tmp.area=398&tmp.texto=82774. 195 Sobre as peculiaridades do ritualismo burocrático, ver: MERTON, 1970, capítulo VI. 196 Os acórdãos são as decisões colegiadas proferidas pelos Tribunais. As decisões monocráticas prolatadas pelos Juízes são denominadas sentenças. As colegiadas são chamadas de acórdãos, em razão de, supostamente, serem fruto de um “acordo” alcançado pelos julgadores. Gramaticalmente, a palavra nada mais é do que a substantivação de ‘acordam’, flexão da 3ª pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ‘acordar’; que, no caso, obviamente, tem o sentido de ‘concordar’.
Quando houver decisão por maioria, redigirá o voto vencido, ou o revisor ou o vogal, dependendo de quem tenha primeiro “aberto a divergência” (expressão do campo para designar o voto que destoa do voto condutor, que é o voto do relator do recurso)197. A fundamentação do acórdão é o voto vencedor, mesmo que outras motivações tenham influenciado o resultado do julgamento, conforme destacarei no capítulo seguinte (art. 92, §2º, RITJRJ). Desta forma, se os Desembargadores concordam no resultado do julgamento, mas fundamentam as suas decisões por razões diversas, poderão fazer a chamada “declaração de voto” e justificar as suas razões de decidir, entretanto, isto não é obrigatório e, por conseguinte, na prática, dificilmente se faz. Este fato resvala na questão do consenso, a ser posteriormente analisada. O último ponto que considero importante mencionar – por enquanto, para fins de mera reflexão - diz respeito à verdade jurídica que se produz nos julgamentos do Tribunal de Justiça. É cediço que, quanto mais o processo “sobe” em Grau de Jurisdição, menos as questões fáticas são avaliadas pelos julgadores, de modo que tudo o que se constrói, nesse sentido, nas instâncias recursais Estaduais, tende a prevalecer até o fim definitivo do curso do processo, que se exaure, normalmente, no Supremo Tribunal Federal. Logo, a importância dos rituais de 2ª instância é substancial. Vale dizer que não realizei pesquisa de campo nos Tribunais Superiores, ou seja, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, de modo que esta pesquisa cinge-se à instância recursal Estadual. De toda sorte, convém ao menos esclarecer que a verdade construída na seara recursal dos Estados tende a perdurar até a última instância recursal. Além disso, impõe ratificar o que fora outrora pontuado, no sentido de que as instâncias recursais normalmente são mais sofisticadas, de forma que se percebe, sem maiores esforços, inclusive no Tribunal do Rio de Janeiro, uma discrepância substancial entre o atendimento e a imagem da Justiça de 1ª instância em relação àquele que se tem nas instâncias superiores; o que se denota conforme o processo vai “subindo” de grau em grau de jurisdição198. É muito clara essa manifestação. A estrutura, o luxo, o glamour e o funcionamento do espaço recursal são marcas que registram a sua importância. 197
Os procedimentos citados encontram-se no art. 556 do CPC e nos arts. 87 a 96 do RITJRJ. É assunto corrente no foro do Rio de Janeiro, de conhecimento público, que os “corredores das varas de família são os piores de todo o edifício”. Ali ficavam, também, as salas de atendimento da Defensoria Pública (hoje situada em um prédio ao lado do foro central, em frente à lâmina III). Já ouvi, diversas vezes, no exercício da profissão, pessoas reclamando de terem de atuar em varas de família por conta da péssima estrutura do local. 198
A 1ª instância, onde tramitam os processos cíveis, não aparenta distanciamento quanto à forma e à estrutura física do local. Por exemplo, não há vidros que separam partes, advogados e funcionários; em geral, são repartições simples; os funcionários não precisam trajar “passeio completo”; as partes não precisam estar de paletó e gravata ou de roupa social para comparecerem a uma vara ou a uma audiência; dentre outros fatores. Quando o processo “sobe”199 para a instância imediatamente superior – no caso, o Tribunal de Justiça Estadual - o ambiente se transforma. Exige-se traje social tanto para os funcionários, quanto para todos aqueles que queiram freqüentar as sessões de julgamento; o edifício é mais luxuoso; existem vidros que separam as partes e os advogados dos funcionários; enfim, a “etiqueta” é mais privilegiada nesse espaço. Quanto mais alta a estrutura hierárquica do Tribunal, mais rígida torna-se a “etiqueta” forense e, conseqüentemente, mais difícil é o acesso. Nesse sentido, Lucía Eilbaum (2006, p. 4) ressalta em sua pesquisa a respeito dos Tribunais portenhos: “[...] na observação de situações e espaços do Judiciário também percebi uma etiqueta e uma série de normas sociais vinculadas às hierarquias e às formas de sociabilidade próprias desse mundo. Estas não se mostraram necessariamente vinculadas às regras jurídicas, mas a formas de dialogar e interagir com outros operadores, a estilos de ornamentação das salas, a modos de recreação, entre outros aspectos.”.
Concernentemente à dinâmica sinteticamente traçada neste item, Garapon (1997, p. 42) destaca, de forma resumida, parte do que pretendi explicitar: “O espaço judiciário parece justificar uma verdadeira explosão de símbolos e de grandeza [...] é um local que não hesita em marcar as suas distâncias, com o único inconveniente de utilizar microfones para comunicar. Os dourados e todo esse dispêndio simbólico assinalam uma permuta com a força, a marca do sagrado.”. De fato, é assim que verificamos na prática, como os rituais a serem explicitados no capítulo posterior demonstrarão.
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Subir não é um verbo que me parece ser utilizado de forma aleatória. Subir significa, literalmente, ir de baixo para cima, no sentido de “elevar-se”. Ir de uma instância para outra quer dizer exatamente pôr-se em lugar mais elevado. Há uma definição interessante e representativa do que aqui se expõe para o verbo subir, no Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda: “aproximar-se do zênite”.
3. Os rituais a serem explicitados: introduzindo o tema Traçadas as características básicas dos Tribunais cujos rituais serão explicitados no capítulo seguinte, destaco que, diante do que se observará, a oralidade é bastante mitigada, em grau recursal, se comparada às manifestações produzidas na 1ª instância processual. A própria estrutura hierarquizada dos Tribunais impede que a oralidade se materialize de forma mais efetiva. Esclareci, no Capítulo II, que a representação da oralidade nos Tribunais é distinta daquele que se vislumbra na 1ª instância processual, uma vez que, em sede recursal, não há realização de audiências, com a presença de partes e testemunhas, nem mesmo colheita de provas, inexistindo aquele contacto que é mais presente na instância inicial do processo. O princípio da imediatidade, tão característico da oralidade, consoante destaca a dogmática, não se faz presente nos Tribunais. O estudo dogmático do tema não ressalta como já asseverei neste trabalho - as distintas representações da oralidade no campo, mas há – mesmo entre juristas - quem reconheça a falta de contacto entre as partes e os julgadores, em grau recursal, como um aspecto negativo.200 Destarte, a oralidade dos Tribunais está muito atenuada, atrelando-se mais à questão da ampla defesa do que propriamente da imediatidade e da identidade física do julgador. Desse modo, a oralidade se configura, nessas instâncias recursais, basicamente, pela manifestação verbal e opcional dos advogados, da tribuna, onde realizam a defesa de seus clientes201; bem assim pelo suposto diálogo efetuado entre os julgadores, no momento de proferirem os seus votos e formalizarem o acórdão 202. Pode-se dizer que a isso se resume o
200
Mendonça (1938) e Gusmão (1938) ressaltam sobre o tema: “[...] também a vantagem da imediatidade da relação do juiz com as testemunhas e partes não se estende aos julgamentos dos tribunais de segunda instância, em grau de recurso”. (MENDONÇA, 1938, p. 260); “[...] como desvantagens inerentes ao sistema oral, destacam-se à ausência de segurança e eficiência processual, em relação, em certos casos, à matéria de fato, quanto ao conhecimento da causa em segunda instância [...] na segunda instância a matéria de fato não poderia ser decidida com segurança, de vez que o debate, a inquirição das partes, testemunhas e peritos, sendo meramente oral, não constaria do processo e não haveria remédio contra a tendenciosidade do juiz.”. (GUSMÃO, 1938, p. 227). 201 A sustentação oral dos advogados das partes não é obrigatória, aliás, atualmente, por conta da desenfreada busca pela celeridade dos processos e pela suposta eficácia da prestação da tutela jurisdicional, o intuito dos órgãos recursais é que, cada vez menos, advogados “utilizem da palavra” (jargão utilizado no campo) em julgamentos, o que, não raro, é solicitado pelos próprios julgadores, expressa, pública e diretamente aos advogados, nas sessões. 202 De igual forma - assim como ocorre com a sustentação oral dos advogados - o debate entre os julgadores, no momento do julgamento, também não tem sido comum. Em geral – em nome da celeridade - o julgador incumbido de relatar o feito descreve as características da causa, lê o seu voto e os demais, simplesmente, o acompanham, sem que haja maiores discussões sobre o tema ou detalhes sobre o caso objeto do julgamento.
rasgo de oralidade existente na seara recursal, como se verá com mais detalhes no capítulo a seguir, a partir da análise dos rituais do Tribunal de Justiça pesquisado. A manifestação da oralidade em grau recursal é tão ínfima que o próprio campo a reconhece como um obstáculo à necessária aproximação entre as partes e os Tribunais, consoante ressalta Leonardo Greco: “De nada adianta exaltar as virtudes da oralidade, como o meio mais perfeito de comunicação entre o juiz, as partes e os sujeitos probatórios e pela instauração entre todos de um diálogo humano que realiza com a maior plenitude um contraditório participativo, se no julgamento dos recursos ela está totalmente inibida. O único resíduo de oralidade que sobrevive, ainda assim não em todos os recursos, é a sustentação oral pelos advogados, após a qual o diálogo se trava apenas entre os próprios juízes [...] isso significa que as instâncias recursais julgam as causas sem nenhum contacto humano com as partes e com as provas, que não têm qualquer possibilidade de influir eficazmente na decisão [...]”. (GRECO, 2005, p. 305)
A oralidade, nesse contexto, é internalizada ao campo, não havendo quaisquer participações das partes no trâmite desses recursos, de modo que a verdade a se produzir nessas instâncias não conta com a sua interveniência, mas, apenas, com a dos operadores do campo. Adiante, explicitarei as práticas judiciárias que caracterizam o sistema recursal do Estado do Rio de Janeiro.
CAPÍTULO VI OS RITUAIS DO TRIBUNAL: IMPLICAÇÕES NO CAMPO DA ORALIDADE 1. A representação da instância recursal como órgão superior Neste capítulo, pretendo explicitar, a partir das práticas desse Tribunal, a forma através da qual a oralidade se materializa nessa instância recursal e, por conseguinte, de que maneira essa materialização se vincula à produção da verdade. Isto é, aspiro relacionar os rituais dos julgamentos à forma mediante a qual a verdade vai se construindo no processo quando ele atinge esse grau de jurisdição. Percebi, em campo – embora não haja hierarquia legal entre os distintos graus de jurisdição - que as instâncias recursais são reconhecidas como hierarquicamente superiores à 1ª instância processual, o que se dá em razão de sua própria competência, que é rejulgar os processos sentenciados no 1º grau. Os Desembargadores têm mais poder e prestígio, sendo mais benquistos e respeitados do que os Juízes, comportamento que se reflete não só no campo 203, mas na sociedade de forma geral. Os serventuários, de igual sorte, detêm uma posição socialmente favorecida quando lotados no Tribunal e quanto mais alto o escalão da hierarquia Judiciária, mais expressiva torna-se a importância do cargo. Em termos estruturais, as condições de trabalho no Tribunal são melhores, como, aliás, já tive oportunidade de destacar, sendo certo que eventuais vagas surgidas para preenchimento de cargos nessa instância são bastante disputadas. Os assessores dos Desembargadores ganham melhores salários do que os secretários dos juízes (vê-se que até mesmo a nomenclatura do cargo os distancia) e, também socialmente, são mais prestigiados e tidos como mais competentes, havendo um espaço melhor reconhecido para eles, inclusive, no campo do conhecimento204. 203
Tanto é assim que, normalmente, os Juízes não se contentam em permanecer no 1º grau de jurisdição. Aspiram ser um dia Desembargadores e, quiçá, Ministros de Tribunais Superiores. É comum que os Juízes transpareçam essa idéia, de modo a agir exatamente conforme espera o Tribunal, pois, assim, pode-se conseguir, mais rapidamente, pela categoria merecimento (e não antigüidade), um lugar nesse espaço privilegiado. Um Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em conversa informal, confidenciou-me: “Eu fico orgulhoso e, ao mesmo tempo, de certa forma, aliviado por ter o meu espaço no Tribunal, que foi conquistado com árduo trabalho. Eu fui promovido a Desembargador nesse Tribunal por antigüidade, não por merecimento. Portanto, não pedi que fizessem isso por mim, trabalhei anos nessa casa e conquistei essa promoção dignamente. Agora, eu acho que eu ficaria muito frustrado se me aposentasse, depois de anos de atividade judicante, no 1º grau.”. 204 Os assessores de desembargadores recebem gratificação de representação de gabinete, destinada à compensação de despesas de apresentação inerentes ao local do exercício ou a remuneração de encargos especiais (art. 166 do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro).
Na advocacia, de alguma forma, esta visão de superioridade também se reflete. Os advogados mais experientes e os mais competentes dos escritórios é que são, preferencialmente, designados para realizar as sustentações orais no Tribunal, atividade vista como honrosa para a classe. Sustentar oralmente em tribunas é atividade para poucos, sendo um privilégio na advocacia, embora a possibilidade esteja aberta a todos os inscritos na OAB205. É muito pouco representativo o número de advogados que têm a oportunidade de “falar” e ser ouvido nos Tribunais Recursais, sendo certo que um advogado que entrevistei, disse-me o seguinte a respeito do tema: “Minha filha, é uma honra majestosa, motivo de orgulho, subir à tribuna de uma Corte recursal, na qualidade de advogado. Há muitos colegas, com anos de labuta, que jamais puderam realizar esse digno ofício.”. Em suma, em campo, infere-se que dá status e poder estar com mais freqüência nos corredores dos Tribunais recursais do que nos da 1ª instância processual, o que demonstra que a advocacia e a magistratura são corporações excludentes, o que repercute de forma negativa na legitimidade social de tais “instituições”. Um funcionário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com quem tive a oportunidade de dialogar, disse-me que: “O Tribunal é elitista demais. A vaidade e a pompa reinam nessa estrutura burocrática. E ai de quem não consegue o seu espaço aqui. Está perdido. Tem que fazer parte da ‘corporação’, se não for assim, você não consegue nada. Agora, fazer parte da ‘corporação’ não é para qualquer um não ...”. Ressalto,
desde
logo,
que
se
tem
sustentado
que
a
imprescindibilidade
reconhecidamente conferida ao duplo grau de jurisdição206 reflete uma idéia hierárquico205
Nesse sentido, texto extraído do artigo Sustentação oral. Por quê, quando e como fazer?, nos seguintes termos: “Além do argumento de ampla defesa que justifica o porquê de se sustentar oralmente, há o argumento profissional de que mais se destacam os advogados que se dispõem a esse mister. E nos casos mais complexos, onde as partes estão dispostas a remunerar melhor o profissional, normalmente se procura o profissional que está apto a utilizar-se de todos esses meios de defesa, especialmente a sustentação oral. Há situações ainda em que a contratação será exclusivamente para a sustentação oral, ou para atuar a partir dela, inclusive, o que revelará o prestígio de sua reputação no tocante a essa habilidade.”. JÚNIOR, Asdrubal. Sustentação oral. Por quê, quando e como fazer?. Disponível na internet: www.jusnavigandi.com.br. Acesso em: 24/04/2006. 206 O duplo grau de jurisdição é, em suma, o princípio que assegura o direito das partes de recorrer das decisões judiciais. Vale dizer, apenas para fins de esclarecimento, que – como outrora afirmado – toda a lógica excludente e desigual da sociedade é reproduzida no processo, de modo que, no que atine a este tópico, prevalece um privilégio, na Lei, que já está naturalizado, sendo aceito sem maiores questionamentos ou incômodos por parte dos operadores do campo: trata-se do “duplo grau obrigatório de jurisdição”. O duplo grau de jurisdição, como dito, faculta às partes o direito de recorrer, mas não as obriga a tanto. Quer dizer, para que uma sentença seja, efetivamente, reapreciada pelo órgão hierarquicamente superior é necessário que a parte prejudicada se manifeste, expressamente, por escrito, informando as suas razões de recorrer e, para tanto, é obrigatório que preencha os requisitos de admissibilidade para que o recurso possa ser julgado pelo Tribunal. Mas nem sempre é assim que acontece. Há casos, especialmente previstos no CPC, elencados no art. 475, em que, mesmo que a parte não recorra, o processo tem, necessariamente, que “subir” para ser rejulgado pelo Tribunal. Trata-se de casos que envolvam o “interesse público”, sempre preponderante ao privado. Nesses casos, o Tribunal é obrigado a se manifestar no processo e reapreciar a matéria julgada em 1ª instância, mesmo que ninguém recorra. Por isso, é chamado de duplo grau “obrigatório”, isto é, existe independentemente da vontade das partes. Existe em casos
autoritária da prestação jurisdicional, de modo que, por si só, este mecanismo gera um desprestígio dos Juízos de 1º grau. O duplo grau supõe, de certa forma, a idéia de que o Juiz monocrático não merece confiança e, por isso, a sua decisão não deve prevalecer, havendo a necessidade de rejulgamento de todas as causas a ele submetidas por um Tribunal colegiado, supostamente melhor preparado para a função de decidir. Embora represente mero expediente necessário para se passar de um a outro o exame da causa, o duplo grau é visto, na realidade, como uma reclamação contra o juiz inferior, de 1º grau, portanto, menos preparado para a função de julgar do que o de 2º grau de jurisdição. Em tópico posterior abordarei com detalhes essa problemática. É certo que se assevera, comumente, que os julgadores das instâncias recursais têm maior experiência e, por conseguinte, maior possibilidade de fazer surgir soluções adequadas aos diversos casos concretos que lhes são apresentados; no entanto, não se pode afirmar isso, pois o juiz mais antigo, que não teve qualquer contacto com as partes e com a prova, não pode ser considerado, necessariamente, como aquele que está em melhores condições de julgar, pela simples razão de ser mais experiente no exercício profissional. Fato é que, na empiria, é possível verificar a representação da instância recursal como órgão superior, ainda que a Lei assim não determine e, ainda que, para a norma, seja inadmissível, nesse contexto, a hierarquização dos Tribunais. 2. Limite de acesso: as vestes que separam As vestes que fazem parte dos rituais judiciários distinguem os operadores do campo dos demais e, também, limitam o acesso à Justiça. Trata-se de uma tradição antiga, já olvidada por diversos setores da sociedade; no entanto, ainda mantida no Tribunal. Sobre este ponto, Garapon (1997, p. 73) destaca: “Após os professores universitários terem abandonado a toga em 1968, numa altura em que os médicos vestem cada vez menos a bata e depois do Concílio Vaticano II ter dispensado os padres do uso da sotaina, os magistrados e os restantes membros da profissão judiciária continuam, contra tudo e contra todos, a usar quotidianamente a toga. Trata-se do mais antigo uso civil ainda em vigor.”.
em que a Fazenda Pública figure como parte e que seja prejudicada pela sentença monocrática. É o que preconiza o art. 475 do CPC.
Existem dois tipos de vestes sobre as quais me interessa explicitar: 1) as vestes talares, utilizadas pelos Magistrados, advogados e funcionários nas sessões do Tribunal de Justiça; 2) as vestes impostas aos cidadãos (pelos Tribunais) sempre que queiram, de alguma forma, integrar o ritual judiciário. Quanto às vestes talares usadas pelos operadores do campo nos rituais, vale dizer que a sua utilização varia conforme a instância em que o processo tramita. Na 1ª instância processual, no Rio de Janeiro, - embora a legislação imponha 207 - a utilização da toga judiciária, na prática, não é tão rígida. No entanto, no Tribunal de Justiça o rigor se intensifica e o uso da veste é obrigatório. Garapon (1997, p. 74) também ressalta este aspecto - da estrutura hierárquica dos Tribunais - aludindo a este ritual da toga como representativo do quão segmentado é o Judiciário208: “[...] o uso da toga judiciária resulta, assim, e sobretudo, do costume. Em contrapartida, a forma é extremamente precisa e hierarquizada. À medida que um magistrado progride na carreira judiciária, muda de toga; mais exactamente, cobre-se com novas togas. A toga permite identificar de imediato a pessoa que a ostenta .”.
Nas Varas Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (1ª instância), onde procedi à pesquisa de campo, verifica-se que alguns magistrados usam a toga judiciária, mas posso dizer que se trata da minoria, não sendo uma postura unanimemente adotada. Já na 2ª instância, isto é, nas Câmaras Cíveis do próprio Tribunal de Justiça, como asseverado, a utilização da toga é sempre verificada 209. Todos os Desembargadores vestem-se com a toga nas sessões de julgamento e os funcionários também utilizam uma espécie de veste talar, entretanto, bastante diferente daquela utilizada pelos Desembargadores (para identificar quem é quem) sendo um pouco mais curta e menos suntuosa. Já os advogados que fazem sustentação oral nas tribunas não utilizam a beca, nome destinado à veste talar própria dos advogados, que é também um pouco distinta daquela dos Desembargadores. 207
Resolução do TJRJ, CM nº 4, de 16/04/1998, publicada no DORJ-III, S-I 70 (24) - 20/04/1998: “Determina aos Senhores Juízes de Direito e Juízes Substitutos o uso da Capa em todas as audiências e sessões de julgamento das Varas, Juizados ou Turmas Recursais do Poder Judiciário deste Estado, e dá outras providências.”. 208 Nesse contexto, impõe sobrelevar, ainda, uma cena do filme “Justiça”, de Maria Augusta Ramos, que aponta e descreve a passagem (promoção) de uma Juíza de Vara Criminal à Desembargadora do Tribunal de Justiça. A cena mostra o ritual dessa passagem e as representações disso também na vida particular da Juíza. Em um determinado momento do filme, aparece a Juíza em seu último dia de exercício na Vara Criminal e o destaque – que mais me chamou a atenção - é, justamente, o “tortuoso” dilema pelo qual passa a Magistrada no instante em que se depara com a sua toga de Juíza e não sabe o que fará com ela, uma vez que agora, como Desembargadora, possui outra, diferente, mais suntuosa, e, portanto, a sua identidade de Desembargadora não mais convém àquela simples toga de Juíza Criminal. 209 Art. 55 do RITJRJ: “À hora marcada para a sessão, em seus lugares, os Desembargadores, os Juízes convocados, se houver (art. 20), o Secretário e os funcionários auxiliares, todos com as vestes de uso obrigatório no ato, o Presidente, ou o seu substituto dentre os presentes, verificará se existe o necessário quorum.”.
Um outro adorno que, comumente, era utilizado nos rituais judiciários, descrito por Garapon (1997), é a borla, uma espécie de chapéu. Garapon (1997, p. 77) descreve que: “A borla, chapéu ritual, quase nunca foi usada nas audiências. Na audiência solene de reabertura do ano judicial ou por ocasião de uma prestação de juramento ou de uma investidura, os magistrados exibem-na na mão esquerda.”. O mais curioso é o fato de que Garapon descreve os rituais do Judiciário Francês, no entanto, as semelhanças são tamanhas, que parece se tratar de um autor preocupado em descrever os rituais dos nossos Tribunais. De fato, no Brasil, os Magistrados também não têm o costume de usar a borla. Entretanto, em algumas solenidades mais expressivas – e aqui falo sempre do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - não se contêm e deixam-na ao seu lado esquerdo, sobre a mesa que ocupam, como que para não deixar que as pessoas esqueçam ou se desprendam da idéia de que a borla é um adorno característico desse Poder; sendo que, ao mesmo tempo, parece não terem coragem ou ser deveras ultrapassado usarem-na, de fato. Assim, num ato ambíguo, deixam as borlas sobre suas mesas, sem, no entanto, tocarem-na. Em geral, o fazem, justamente, nas cerimônias que celebram o dia da justiça, em 08 de dezembro210. Vale dizer que todas essas práticas apontam a um fim comum: o de distinguir. Garapon (1997, p. 80), narrando, historicamente, como surgiu o uso desses trajes, deixa essa idéia clara: “A história do traje judiciário confunde-se com a história da própria profissão judiciária. Ela é testemunha do desejo de igualar em dignidade, por meio da magnificência dos símbolos, a nobreza guerreira. Em Essais, Montaigne destacava já a necessidade do reconhecimento desse quarto estado de pessoas que lidavam com processos, de modo a juntá-lo aos três velhos estados: a Igreja, a Nobreza e o Povo. A toga serviu para distinguir essa nova categoria de letrados, na qual a monarquia se apoiava para afirmar o seu poder em detrimento do feudalismo [...].”.
O traje marca, portanto, a autoridade, o poder dessa categoria e a sua soberania. Eles se vestem de autoridade.
210
Em 08 de dezembro passado, 40 (quarenta) personalidades que prestaram relevantes serviços à Justiça do Rio de Janeiro, receberam o Colar do Mérito Judiciário, na cerimônia comemorativa do dia da justiça. Ali, havia alguns Desembargadores com o chapéu ritual sobre a mesa.
Juntamente com outros símbolos que marcam o Judiciário, a toga é como um dos instrumentos de passagem do ser “humano” para o ser “juiz”.211 É um distintivo que separa os celebrantes do ritual daqueles que dele não fazem parte. Garapon (1997, p. 85-88) ressalta que a toga opera um rompimento do ser “comum” para o ser “Juiz”: “A toga opera uma ruptura naquele que a veste e recorda-lhe os deveres do seu cargo. Põe temporariamente fim às imperfeições do ministro, subtraindo-o da sua condição de mortal. Inversamente, a toga é também um escudo protector [...] Essa protecção pode acabar por suscitar um sentimento de superioridade [...] a toga assinala também a vitória do parecer sobre o ser. É uma veste institucional que cobre quem a usa. O homem que a veste marca a superioridade – temporária da instituição sobre o homem: já não é ele que habita a sua veste, mas sim esta que o habita a ele [...] a toga é um traje majestoso que engrandece, não a pessoa, mas a função e até, para além dela, a ordem social que a investiu.”.
É como se a toga despersonalizasse quem a veste, tirando-o da vida normal e tornandoo um outro “ser”. Destina-se a mitificar a justiça e os seus operadores, distanciando-os do real e catapultando-os para um mundo imaginário e, necessariamente, superior. Nesse diapasão, Garapon, em “Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário”, cita uma passagem de Tocqueville, da qual vale a pena transcrever um pequeno trecho: “Quando vejo entre nós certos magistrados a tratarem bruscamente as partes ou a dirigirem-se às mesmas com bons modos, a encolherem os ombros perante os meios da defesa ou a sorrirem com complacência face à enumeração das acusações, gostaria que alguém se dispusesse a retirar-lhes a toga, para saber se, uma vez vestidos como simples cidadãos, isso não lhes traria à memória a dignidade natural da espécie humana.”. (TOCQUEVILLE, 1981 apud GARAPON, 1997, p. 85).
Destarte, a representação dos rituais é exatamente essa, de que os seus participantes estão em outro patamar, distinto daquele dos que não o integram. A outra espécie de veste que merece destaque – sobre a qual mencionei - é a que os cidadãos devem utilizar toda a vez que queiram fazer parte – ainda que apenas como reles espectadores – dos rituais judiciários. 211
Mariana Sirimarco (2004) descreve, minuciosamente, o ritual de transformação do “civil” em “policial” e, nesse sentido, aponta uma série de comportamentos que marcam essa passagem e essa troca de identidade; o que lembra, sobremaneira, essa especial metamorfose de pessoa “comum” em “Juiz”.
Vale dizer que a categoria da vestimenta exigida aos cidadãos também varia conforme a instância processual, de modo que quanto mais alto o grau de jurisdição, mais formalidade se exige. Em geral, mesmo para as partes diretamente envolvidas no processo exige-se “traje adequado ou traje social” para que possam assistir aos julgamentos. Nas Varas Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, normalmente, não se exige traje social nas audiências, podendo as partes ou mesmo os cidadãos que queiram participar ou simplesmente assistir a uma audiência usarem a roupa que melhor lhes aprouver. Alguns Juízes, mais rigorosos, exigem, por exemplo, que os estagiários e estudantes de Direito estejam de terno e gravata e as estagiárias ou estudantes, de roupa social, quando forem assistir a audiências. Todavia, a maioria dos magistrados não procede dessa forma. Quanto ao traje das partes, de igual sorte, não é comum a obrigatoriedade de roupa social, mas já tive a oportunidade de presenciar audiências em que as partes foram veementemente advertidas sobre a necessidade de estarem devidamente arrumadas no Tribunal. Certa vez, estive em uma audiência presidida por um Juiz Titular de uma Vara Cível do Tribunal do Rio de Janeiro - magistrado conhecido nos corredores do foro como arbitrário – em que uma das partes, um senhor de idade bastante humilde, foi grosseiramente informada de que, para estar ali, em Juízo, deveria “fechar até o último botão de sua camisa”, que estava aberta, sob pena de não poder participar do ritual, tendo em vista que aquela audiência se tratava de um “ato realizado em um recinto do Poder Judiciário” e, como tal, “determinadas formalidades deveriam ser observadas em respeito às normas constitucionais do País”. Registre-se que esse comportamento exagerado não é habitual, mas há casos, não tão isolados, nesse mesmo sentido. Quanto à 2ª instância do Tribunal do Rio de Janeiro, vale dizer que nas Câmaras Cíveis é obrigatório o traje social. Há algumas Câmaras que permitem o uso de calça jeans nas sessões, pelas partes ou cidadãos comuns, entretanto, a maioria dos órgãos exige o traje social212.
212
Pessoalmente, passei por uma situação constrangedora certa feita, em razão de tal formalidade. No início da minha atividade profissional como advogada, fui realizar uma sustentação oral em um recurso, em uma das Câmaras Cíveis do Tribunal do Rio de Janeiro. Convidei o meu marido para assistir ao julgamento. Ao adentrarmos na sala de sessão ele foi imediatamente convidado a se retirar, por um segurança do local, porque trajava calça jeans e uma camisa social, o que, segundo o entendimento do Presidente da Câmara, era inadequado àquele rito.
Realizei pesquisa de campo nas Câmaras Cíveis e verifiquei que não há nenhuma norma legal expressa que determine o uso de traje social nas sessões de julgamento 213, entretanto, segundo informações obtidas em tais órgãos, o Presidente de cada Câmara adota a posição que entender cabível, por isso, os procedimentos são tão variáveis. Há Câmaras que permitem o uso de calça jeans, mas sem tênis. Há outras que admitem calça jeans e tênis. Há outras que só admitem ternos e roupas sociais, mesmo para as partes. Há outras que exigem apenas roupa social, sem a necessidade de que seja terno e gravata para homens. Há Câmaras até que emprestam ternos e gravatas para as partes que compareçam “indevidamente” trajadas e há outras que, quando se trata das partes interessadas, solicita que fiquem do lado de fora, se não estiverem de roupa social, enquanto durar a sessão, convocando-as a entrarem na sala somente no momento exato do julgamento do seu próprio processo. A pesquisa que realizei apontou uma preponderância à obrigatoriedade – nas Câmaras Cíveis – de que o traje seja “passeio completo” ou “a rigor”; embora haja a possibilidade de, em muitos casos, utilizar-se “esporte fino”, que seria uma roupa social, mas não, necessariamente, para homens, terno e gravata. Entrevistei um funcionário em uma Câmara Cível que me disse: “Não precisa estar de terno e gravata. Mas também a pessoa não pode querer assistir a uma sessão de julgamento no Tribunal de Justiça parecendo uma árvore de natal, toda enfeitada e inadequadamente vestida. Nesse caso, ela pode sim ser convidada a se retirar”. E uma outra funcionária esclareceu-me: “Basta ter bom senso. Isso não é difícil. As pessoas têm que ter bom senso para saber que ocasiões distintas exigem trajes distintos. Não vamos exigir que uma pessoa sem recursos tenha roupas finas, mas tem que estar vestida de acordo com o rito, de forma adequada.”. Observa-se, nos corredores das salas de sessões das Câmaras Cíveis, que há, na maioria delas, seguranças do Tribunal que se posicionam na porta de entrada da sala, no horário da sessão, a fim, justamente, de evitar que pessoas “inadequadamente” vestidas adentrem nas salas de julgamento. Um segurança narrou-me que: “Cada Presidente decide qual é o traje. Então, quando eu sou escalado tenho que saber qual é a visão do Presidente daquela sala onde eu vou ficar. E aí, eu só posso deixar 213
Existe uma norma interna do TJRJ que proíbe o uso de bermudas, camisetas, shorts e “similares” (significado obscuro, que demanda interpretação subjetiva) no prédio do foro: Ato executivo 2.950/2003 código RADDGSEI-002, de 28/10/2204, publicado em 09/11/2004, no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, p. 3: “[...] Item 6 – Diretrizes [...] 6.6.12. Aos usuários só será permitido o acesso trajando vestimentas adequadas ao ambiente forense, não sendo permitido o ingresso de pessoas trajando bermudas, camisetas, shorts e similares.”.
entrar se for o traje que o Presidente acha correto. Se não, não posso. E se a pessoa achar errado – acontece isso às vezes – aí eu tenho que encaminhar até a secretaria para ela falar com o chefe.”.
Esta é a postura que, segundo observei, é preponderante no Tribunal do Rio de Janeiro214. As vestes representam um dos limites do acesso da população ao Tribunal. Quem puder se trajar adequadamente poderá participar – ainda que como mero espectador – dos rituais judiciários; aqueles que não possam se adequar às normas exigidas para a vestimenta, não terão acesso às sessões de julgamento nos Tribunais. Trata-se de um exemplo nítido da presença inquisitorial no processo brasileiro que, reconhecido como “público”, na verdade, empiricamente verifica-se não ser tão público assim ao impor restrições ao acesso. Impõe destacar que a Constituição da República prevê como sendo públicos todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário (art. 93, inciso X, da CF/1988). Ocorre que, consoante a empiria demonstrou, o alcance da palavra “público”, nesse contexto, está limitado às normas internas de cada Tribunal, tendo uma representação particular. 3. As decisões monocráticas em sede recursal: exceção que virou regra A possibilidade de se recorrer das sentenças de 1º grau de jurisdição é o que fundamenta o princípio do duplo grau de jurisdição. Para alguns, alçado à categoria constitucional e, para outros, não (GRECO, 2005; MARINONI, 2005).
214
As Cortes Superiores são ainda mais rigorosas. A pesquisa de campo que realizei não inclui o STJ e o STF, mas, a título de informação, vale descrever uma atitude recentemente adotada pela Ministra Cármen Lúcia - a mais nova integrante do Supremo Tribunal Federal, cuja postura destoa do conservadorismo da Corte – que virou notícia de destaque no campo, tamanho rigor que se observa na questão dos trajes exigidos para freqüentar as Cortes Superiores: a Ministra decidiu romper as tradições e usar calça comprida nas sessões de julgamento. Vê-se que a discrepância entre a realidade e os rituais judiciários é chocante. O simples uso de uma calça comprida por uma Ministra durante as sessões do STF causou tremendo impacto no campo. Notícia veiculada em 15/03/2007 na Revista Consultor Jurídico expõe o tema de forma interessante, valendo destacar alguns trechos: “O Supremo Tribunal Federal, nos seus quase 200 anos de existência, assistiu nesta quinta-feira (15/2) uma cena inédita. A ministra Cármen Lúcia, uma das mais novas integrantes da Corte, compareceu à sessão trajando calça comprida. Embora o STF tenha liberado o uso de calça para mulheres há quase sete anos, nenhuma das duas ministras do Supremo tinha participado de uma sessão com o traje [...] Constantemente, os seguranças do plenário barram as visitantes que trajam calça do tipo cosário — um pouco mais curta que a normal — mesmo que acompanhada de blazer combinando. Casaquinhos de malha mais fina também não são permitidos. Hoje, comprimento, modelo dos trajes e até o penteado dos cabelos são alvos dos seguranças. O uso de calça comprida, desde que acompanhado do blazer, foi liberado no plenário em votação administrativa. Na época o ministro Marco Aurélio Mello foi mais além e votou contra a obrigatoriedade do blazer. Acabou vencido.”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/53745,1.
O fato é que - independentemente dessa questão - o processo é estruturado de forma que se possa, sempre, recorrer de decisões que causem prejuízo à parte. O propósito é “assegurar, na medida do possível, a justiça das decisões.” (MOREIRA, 1999, p. 113)215. A idéia de duplo grau de jurisdição está atrelada, necessariamente, a do colegiado. Ao menos, foi o que o Código Processual Civil expressou ao definir como regra a apreciação de recursos por um órgão colegiado e não por um juízo monocrático. É certo que se discute, ainda, se a colegialidade das decisões dos tribunais superiores é, ou não, uma garantia fundamental do processo; no entanto, é também certo que o pluralismo do tribunal seria – se de fato efetivado - “uma importante garantia da qualidade das decisões judiciais, neutralizando os individualismos e reduzindo o risco de decisões arbitrárias”. (GRECO, 2005, p. 306). Concomitantemente a essa concepção de que é importante que as sentenças sejam revistas por um Tribunal composto por mais de um magistrado; existe, também, para o Direito, a necessidade de que, em nome da segurança jurídica, seja limitado o possível reexame das decisões judiciais. Em busca, portanto, de um suposto equilíbrio entre a relevância do reexame das sentenças e a utilidade de segurança jurídica, criaram-se determinados requisitos para que sejam admissíveis os recursos interpostos contra as decisões judiciais. São diversos os requisitos216 e, hoje em dia, a incessante procura por celeridade, tem criado, cada vez mais, requisitos (ou obstáculos) ao reexame de decisões por órgãos hierarquicamente superiores. A tendência que se mostra nas práticas judiciais é ficar, a cada dia, mais limitada a possibilidade de se recorrer. Nesse contexto, a redação do art. 557 do CPC foi alterada, a fim de preceituar: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.”.
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Distintamente do que se verifica nas Cortes Superiores, os Tribunais Estaduais, por determinação legal, reapreciam, em sede recursal, todo o conteúdo do processo, tanto questões fáticas quanto questões meramente jurídicas, de maneira que ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é permitido rejulgar tudo o que fora discutido no curso do processo na instância anterior. O Código de Processo Civil prevê, expressamente, a reapreciação de toda a matéria do processo pelo Tribunal, em sede de recurso, nos artigos 515, 516 e 517. 216 Ratifico que a minha proposta não é realizar um profundo estudo sobre questões processuais complexas, de modo que, em razão disso, não adentrarei ao tema dos requisitos e de tudo que eles envolvem, nem mesmo às peculiaridades do sistema recursal brasileiro, altamente rico e abrangente. Cito determinadas matérias, apenas, para contextualizar o objeto do estudo.
Referido dispositivo concedeu ao relator – juntamente com o art. 527, inciso III, que trata, especificamente, dos recursos de Apelação Cível 217 - enorme poder, deixando, exclusivamente, ao seu arbítrio, a decisão de, em que casos, a sentença será revista pelo colegiado e, em que casos, será julgada singularmente, por ele próprio e por escrito. Nessa circunstância, o aumento da probabilidade de acerto e de justiça da decisão, característica fulcral do duplo grau de jurisdição, “cai por terra”, ficando “grandemente comprometida pela monocratização dos julgamentos das instâncias superiores, fenômeno recentemente agravado entre nós com a vulgarização dos julgamentos por despachos unipessoais do relator, com fundamento nas alterações que a Lei 9.756/98 introduziu no artigo 557 do CPC.”. (GRECO, 2005, p. 306). O art. 557 se aplica em todas as instâncias recursais, de modo que, comumente, em qualquer grau de jurisdição, pode acontecer de o processo não ser levado a julgamento pelo Tribunal colegiado, limitando-se à apreciação do julgador monocrático (relator do recurso). Nesse caso, a decisão proferida não prestigia a oralidade, uma vez que é prolata por escrito, monocraticamente pelo relator, e sem a participação das partes, bem como de seus advogados, a quem não é concedida, em casos tais, a possibilidade de quaisquer manifestações orais. Quando isso ocorre, o recurso é julgado, individualmente, pelo relator, sendo que, contra esta decisão cabe outro recurso. Este recurso – interposto contra a decisão individual do relator - será apreciado pelo Tribunal, entretanto, aos advogados também neste ato não é concedida a palavra. Além disso, o julgamento de tal recurso não é incluído em pauta, não sendo publicada a sua data em Diário Oficial. Desta forma, é comum que os advogados não tomem ciência sequer do dia do julgamento do recurso e, portanto, muitas vezes, sequer estão presentes na sessão de julgamento do mesmo. Trata-se, ainda assim, de procedimento legítimo e legal, que descarta solenemente a oralidade processual e que vem sendo, freqüentemente, cada vez com mais intensidade, adotado como prática nos Tribunais recursais, inclusive, o do Rio de Janeiro218. O problema dessa prática é que está sendo desvirtuada e aplicada sem critérios objetivos. Isto é, cada Juiz, de forma particularizada e, portanto, subjetiva, define quando levará o processo ao colegiado e quando o julgará monocraticamente. Tal opção faz com que, 217
Apelação Cível é uma espécie de recurso. É cabível contra as sentenças monocráticas proferidas em 1º Grau de Jurisdição. A redação do art. 527, III, é a seguinte: “Recebido o agravo de instrumento no tribunal, e distribuído incontinenti, o relator [...] III - poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão [...]”. 218 As estatísticas apresentadas pelo próprio Tribunal pesquisado – TJRJ – aponta que ainda é preponderante o número de decisões colegiadas, entretanto, em média, quase metade dos recursos julgados, o são por decisão monocrática do relator. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/adm_geral/anuario_2006/produt_2inst_nov_2006.doc.
na prática, casos semelhantes tenham tramitação distinta, variável de acordo com o entendimento do magistrado ao qual o recurso tenha sido distribuído. Um advogado que entrevistei, informalmente, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, disse-me que, a seu ver, o julgamento monocrático está virando uma obsessão, à qual ele nomeou: “síndrome do juízo monocrático”. Outro mecanismo destinado a impedir que processos cheguem às instâncias recursais é a súmula impeditiva de recurso, instituída pela recente Lei no 11.276, de 07/02/2006, que modificou a redação do Art. 518, §1º, do CPC, nos seguintes termos: “Art. 518. [...] § 1o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula219 do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.”. Isto significa que, quando a sentença estiver em consonância com o entendimento dos Tribunais Superiores, sequer caberá recurso, não podendo a parte nada fazer, devendo cumpri-la, de imediato. Vêse, neste caso, o afastamento absoluto e a total inaplicabilidade do duplo grau de jurisdição220. Todos os instrumentos que vêm sendo inseridos na legislação processual e adotados na prática forense, com o escopo de esvaziar as prateleiras dos Tribunais, têm, como pano de fundo, a idéia deliberada e recorrente de que: “Está mais do que na hora de os Tribunais, especialmente o Supremo, parar de julgar briga de vizinho e roubo de chinelo havaiana”221. Além disso, também é motivadora dessas políticas a necessidade e a corrida desenfreada pela celeridade processual. Exige-se que recursos que demoraram anos para serem julgados em 1ª instância sejam reapreciados nos Tribunais Recursais em meses ou até em dias.
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Súmula é a síntese do entendimento de um Tribunal sobre uma determinada matéria que já teve sucessivos julgamentos iguais e reiteradas decisões no mesmo sentido. 220 Embora o STJ e o STF não tenham sido objeto da minha pesquisa de campo, vale mencionar que se torna cada vez mais difícil atingir a prestação jurisdicional nessas instâncias. Exemplo disso é a aprovação da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral, instrumentos jurídicos muito recentemente introduzidos na legislação processual, com o intuito de impedir que processos cheguem ao STJ e STF, limitando a discussão de casos tidos como irrelevantes às instâncias estaduais. A Súmula Vinculante vai permitir que casos de repetição sejam evitados. Vai ser utilizada para processos em massa. Cuida-se de instrumento introduzido pela Lei n o 11.417, de 19/12/2006, em vigor desde 20/03/2007. Através dele, quando o STF decidir reiteradamente determinada questão, poderá aprovar a Súmula Vinculante e o seu teor terá de ser observado, obrigatoriamente, por todos os Juízes do País. Não se trata de uma orientação de julgamento – como outrora – mas sim de um instrumento que impedirá que juízes decidam de forma contrária ao entendimento do STF. Já a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário é um novo requisito de admissibilidade. Implementada pela Lei n o 11.418, de 19/12/2006, passou a vigorar a partir de 20/02/2007. Permite que o STF decida se a questão que lhe chega por recurso tem relevância para ser julgada nesse Grau de Jurisdição ou não. Trata-se de instrumento que concede ao STF a possibilidade de escolher o que vai julgar de acordo com a relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico. 221 Expressão utilizada pelo Professor José Levi Mello do Amaral Júnior, Doutor em Direito, em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico, em 04/05/2006, e que resume, de certa maneira, a visão geral do campo a respeito da competência e do papel, tanto do STJ, quanto do STF, no mundo jurídico. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/44064,1.
Os Tribunais se orgulham de levar poucos meses para rejulgar um recurso como se isso fosse extremamente positivo para o sistema processual brasileiro. O que não se percebe – e só o campo permite explicitar – é que o objetivo de celeridade a qualquer preço é contraditório com o sistema recursal e com o próprio sistema probatório da 1ª instância, onde o processo inicia e pelo qual, necessariamente, tem de tramitar222. O formalismo - ao invés de acabar - se exacerba, diante de tantos obstáculos colocados no caminho do processo em sede recursal. Em vez de as práticas tornarem-se mais simples, menos rígidas, “com base nos princípios da efetividade”, o formalismo “se exacerba através de entendimentos jurisprudenciais cujo intuito manifesto é apenas o de esvaziar as prateleiras.”. (GRECO, 2005, p. 299). O excesso de requisitos imprescindíveis à admissibilidade de um recurso - tais como, a necessidade de que determinadas cópias inúteis sejam juntadas no recurso; ou ainda a imprescindibilidade de sua autenticidade; assim como a obrigatoriedade de que certos carimbos, absolutamente desnecessários à apreciação do recurso, estejam totalmente legíveis, sob pena de, se um pouco falhos, não serem reconhecidos pelo Tribunal – está criando obstáculos desmedidos e até mesmo levando à denegação da prestação jurisdicional. Leonardo Greco exemplifica o que assevero, manifestando-se nos seguintes termos: “[...] Ainda outro abuso de forma é a exigência de juntada ao agravo contra despacho denegatório de recurso especial ou extraordinário de peças absolutamente inúteis, a pretexto de que são essenciais para a compreensão da controvérsia (Súmula 288 do STF). Centenas de recursos deixam o STF e o STJ de conhecer pela ausência do traslado de peças absolutamente inúteis. Recentemente, alguns agravos não foram conhecidos no STF porque o carimbo do protocolo era ilegível, embora ninguém questionasse a tempestividade do apelo.” (GRECO, 2005, p. 304-305).
A oralidade, nesse contexto, é totalmente desconsiderada, tendo em vista que, em um sistema de tradição inquisitorial, se nem mesmo os escritos chegam às mais altas Cortes do País, o que dizer das manifestações orais? Praticamente, inexiste espaço para o oral, limitando-se às exíguas sustentações realizadas por advogados e aos poucos debates firmados entre os julgadores, conforme adiante se descreverá.
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A reapreciação de processos pelos Tribunais Superiores (STJ e STF) tem se tornado cada vez mais rara e, se assim perdurar, chegará um momento em que será quase um “luxo”, um motivo de prestígio e de orgulho, quando alguém conseguir que o seu processo chegue a ser apreciado, no mérito, pela mais alta Corte do País.
4. Sustentação oral: a suposta materialização da oralidade no Tribunal A possibilidade de os advogados sustentarem oralmente as suas razões recursais seria, por força da legislação processual civil, a principal forma de efetivação da oralidade nos Tribunais recursais. Ocorre que, embora se materialize apenas em alguns casos - pois não é permitida a sustentação em todos os tipos de recursos 223 - o princípio da oralidade não atende ao fim dogmático a que se propõe, qual seja, o de aproximar as partes do julgador, o de fazê-lo ter um contacto direto com a prova dos autos e, com isso, formar melhor o seu convencimento. No Tribunal, mesmo nos casos em que se permite a sustentação, a oralidade é opcional, ou seja, independe da parte ou do juiz, sendo a sua efetivação uma escolha exclusiva do advogado, que pode ir ou não ao julgamento e nele pode se manifestar ou não. Este dado já é um complicador quando se imagina que, conforme defende a dogmática, a oralidade é um instrumento que leva a um processo justo, democrático e igualitário, constituindo, nesse sentido, uma garantia da parte. Se fosse uma garantia, a materialização desse princípio não poderia variar de acordo com o advogado que a parte contrata. Ademais, no que pertine ao aspecto da igualdade das partes, vale dizer que a opção legal concedida ao advogado de escolher se vai ou não defender oralmente o seu cliente no julgamento do recurso, a impossibilita. Por exemplo, a Defensoria Pública – órgão que presta assistência judiciária às pessoas de baixa renda - dificilmente, tem condições estruturais de disponibilizar Defensores para sustentarem oralmente nos processos que acompanham, tendo em vista o imenso volume de trabalho que os assola. Por outro lado, os grandes escritórios de advocacia ocupam as tribunas com freqüência, pois este serviço, além de normalmente estar incluído nos honorários contratados, é motivo de prestígio profissional. A sustentação, nos termos expostos no capítulo anterior, é feita logo após a leitura do relatório, pelo Desembargador relator do recurso, e imediatamente antes da prolação do seu
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Há recursos em que a sustentação oral é proibida (art. 554 do CPC e normas regimentais já mencionadas neste trabalho). Vale registrar que há um projeto de lei (PL 4729/2004) estendendo a sustentação oral a outros casos, no entanto, ainda não houve aprovação.
voto224. Assim, aberta a sessão e apregoado o recurso, dá-se a palavra ao relator, após o que a mesma é concedida aos advogados e, logo então, devolvida ao relator para a prolação do voto. A sustentação oral pelos advogados possui diversos aspectos sob o ponto de vista processual. Ela pode ser um bom instrumento para a defesa da parte e modificar, de fato, o resultado de um julgamento225. Entretanto, também pode ser um mero ritual burocrático 226 sem maiores conseqüências processuais. Um advogado que entrevistei no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, entusiasta da idéia de que a sustentação oral deve ser, sempre, privilegiada, disse-me: “Não é raro alcançarmos mudanças de julgamento por força da sustentação oral. Entendo extremamente importante a sustentação oral. Já assisti a inúmeros julgamentos que poderiam ter outro resultado se o advogado tivesse sustentado oralmente. Tenho certeza de que a sustentação oral bem feita pode não só modificar o julgamento, como também consagrar o patrono orador, tornando-o respeitado e admirado no seio do Tribunal.”.
Por outro lado, uma advogada com quem também conversei sobre o tema, asseverou: “A sustentação pode até mudar o voto do relator, quando o advogado suscita um aspecto probatório novo, não percebido ou até mesmo quando uma matéria de direito importante é ressaltada, mas não é comum. É mais freqüente que o advogado fale, mas os magistrados não considerem isso como algo fundamental para a sua decisão.”.
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O art. 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) preconizava, em seu inciso IX, a sustentação oral pelos advogados após o voto do relator. A Associação dos Magistrados Brasileiros, há quase 12 anos — logo após a aprovação do Estatuto – ajuizou uma ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1105-7), questionando a validade de diversos dispositivos constantes do Estatuto. Na ação, dentre outras questões, discutiu-se, exaustivamente, o inciso IX do Estatuto, a fim de definir o momento em que a defesa oral dos advogados deveria se realizar: antes ou depois do voto do relator. Alguns sustentavam (especialmente a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil) que, conhecendo o teor da decisão, os advogados poderiam intervir no julgamento, com base na fundamentação do voto, convencendo, os demais julgadores, de forma mais objetiva, uma vez que se discutiria somente as questões traçadas pelo voto, o que seria positivo e repercutiria numa decisão mais justa e num julgamento com mais qualidade e precisão. Outros viam tal possibilidade como algo negativo, uma vez que consubstanciaria intervenção no resultado do julgamento, sendo certo que, a atividade de “julgar” seria tarefa exclusiva do Judiciário, não admitindo participação externa. A ADI declarou inconstitucional, em 17/05/2006, o inciso IX do art. 7º do Estatuto, com fulcro, justamente, no entendimento de que a sustentação após o voto representaria interferência dos advogados no ato de julgar. Por isso, perdura, na prática, a ordem de atos segundo narrei: o relator lê o relatório; os advogados sustentam as suas razões e, somente após, o relator lê o voto. 225 Sobre o tema, ver: JÚNIOR, Asdrubal. Sustentação oral. Por quê, quando e como fazer?. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 648, 17 abr. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6437>. Acesso em: 24 abr. 2006. 226 Sobre ritualismo burocrático, ver: MERTON (1970).
Permito-me dizer, na qualidade de profissional, que é raro os julgadores modificarem o seu posicionamento simplesmente por força da sustentação dos advogados, embora, com efeito, ocorra vez ou outra. Para que a sustentação oral seja um efetivo instrumento na produção da verdade processual é preciso que os julgadores se inteirem do processo e estejam atentos à argumentação dos advogados, o que nem sempre ocorre, tornando tal ato mero rito que necessariamente faz parte do curso do processo. Em sendo mera fase processual, a sustentação nada mais é do que a ratificação de tudo aquilo que já está registrado nos autos, sendo, de certa forma, uma simples oralização do escrito. É como se os advogados utilizassem esse mecanismo apenas para despertar os julgadores para aquilo que já consta no processo, mas que eles sabem que pode ter sido desconsiderado, por falta de leitura. Em tese, a sustentação oral é o que possibilita ao advogado chamar a atenção do julgador para as provas e fatos do processo que não tenham sido destacados e, com isso, conduzir o julgamento para o caminho que melhor lhe convém. Ela se torna fundamental na medida em que é prática cada vez mais institucionalizada a delegação de funções a servidores públicos, tendo em vista a avassaladora carga de trabalho que recai sobre os Desembargadores. Os assessores dos Desembargadores relatores, muitas vezes, são os verdadeiros responsáveis pela leitura dos processos e, por razões óbvias, podem não atentar para fatos relevantes que deverão ser destacados pelos advogados, justamente, no momento da sustentação oral. Em campo, colhi algumas opiniões de advogados que expressavam a delegação de funções nos Tribunais como um dos principais motivos de seu mau funcionamento, destacando-se: “É fato de conhecimento público que os Desembargadores de todos os Tribunais do País, mesmo de instância extraordinária, não relatam os processos em que figuram como relatores e não revisam os processos em que figuram como revisores. Muitas vezes, sequer os seus votos elaboram. Tudo, todo o trabalho, é feito pelos seus assessores. Ocorre que a função de assessor não é essa. Se fosse, os recursos deveriam ser distribuídos para assessores e não para magistrados.”. “Os Desembargadores têm outras ocupações além das suas atividades como magistrados. São juristas, são professores, são palestrantes ... não há tempo que condicione esse excesso de atividades. E aí, obviamente, delegam as suas funções a seus assessores, que lêem os processos, fazem relatórios, às vezes até mesmo os votos.”.
“É muito trabalho. Não há condição deles lerem tudo. É óbvio que eles delegam suas funções. É óbvio. Vemos isso todos os dias. Há erros crassos que sabemos não serem cometidos por Desembargadores ou Ministros, fora o notório constrangimento demonstrado quando eles são questionados por algum colega, vogal ou até revisor, e não sabem como agir porque não leram o processo, ficam titubeando, folheando os autos em busca de informações.”.
Além desse fato, existe a questão da presença dos vogais, que são os julgadores que não lêem o processo antes da sessão, conhecendo-o, pela primeira vez, no dia do julgamento. A importância do voto dos vogais é fulcral e os advogados, ocasionalmente – sabendo que eles não conhecem o processo com minúcias – maliciosamente, utilizam-se de tal fato para, de forma irresponsável, manipularem a verdade conforme lhes pertine, criando dados, omitindo fatos, desvirtuando provas, enfim, induzindo a decisão com fulcro em argumentos infundados e não comprovados. Os advogados sabem a importância do voto do vogal, justamente porque - por não conhecer a matéria e não ter lido o processo - este julgador é mais facilmente influenciável pela oratória do que aquele que já conhece os autos, ainda que não tão profundamente. Um advogado falou-me certa vez sobre a necessidade de, em julgamentos recursais, focalizar o vogal, manifestando-se: “Quando você sabe que os outros vão julgar contra você, você tem que focar o vogal; você tem que convencer o vogal porque ele é a sua única chance. Como ele não leu mesmo o processo e não sabe detalhes do assunto, não viu documentos etc. - e os outros também não conhecem as provas a esse ponto - você tem que induzi-lo. Ele é mais facilmente manipulado pelo seu argumento do que os demais, o relator e o revisor.”.
Como se não bastasse, existe, ainda, a questão da oratória jurídica. Os advogados são tecnicamente treinados para, por meio da palavra, “convencer”, melhor dizendo, guiar o processo para o caminho que lhes aprouver. O “poder da palavra falada” e a sua “potencialidade mágica” assumem um papel de destaque nesse contexto (ONG, 1998). Nessas circunstâncias, a ambigüidade própria dos discursos retóricos favorece os advogados, pois é “frequentemente difícil separar a arte de tornar uma idéia ininteligível do poder de manipular a percepção dos ouvintes.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002, p. 10). O “dom da palavra”, destacado por Alessandra Rinaldi (1999), acaba sendo, também, um diferencial. Aqueles advogados que jogam com as palavras acabam tendo vantagem e
“conquistando” os julgadores. Tal “dom” pode levar o advogado a ganhar uma causa perdida, com a mera utilização de artifícios retóricos 227, capazes de driblar até mesmo as provas produzidas nos autos. Rinaldi (1999) descreve parte de discursos de advogados que atuam no Tribunal do Júri, por ela entrevistados em campo, destacando-se - na esteira do que asseverei e reportando tais falas ao que se identifica no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - por exemplo: “inocentei o réu apesar de provas contrárias no processo” (p. 40); “[...] iniciei, então, contestando essas alegações, porém isso não era suficiente para contestar as provas. Iniciei, então, uma fala emotiva e venci o Júri” (p. 41); “sempre há um julgamento com dramatização e acho que o Júri é ganho aí” (p. 43). Jack Goody (1988, p. 61), ao descrever a transição do sistema escrito para o oral nas sociedades, aborda essa temática, nos seguintes termos: “Por meio da retórica, da loquacidade, os ‘truques’ e artimanhas do demagogo manipulam um público mais diretamente do que a palavra escrita. O que aqui está em questão é em parte a imediaticidade do contacto cara-a-cara, da gestualidade visual e das entoações de voz características da comunicação oral [...] a forma oral é intrinsecamente mais persuasiva porque se expõe menos à crítica.”.
Este assunto será melhor trabalhado, ainda neste capítulo, ao se mencionar os problemas decorrentes da ausência de registro dos rituais de julgamento nos Tribunais e as implicações disso na questão da manipulação retórica da construção da verdade. No entanto, impõe asseverar a importância que - nos rituais recursais - a palavra guarda na produção da verdade; e, outrossim, a relevância de os advogados dizerem exatamente aquilo que os julgadores precisam ouvir para decidirem em seu favor. Nesse mesmo contexto, há, outrossim, a questão da “malha de relações” ressaltada por Kant de Lima (1995) e por DaMatta (1979; 1984) e sobre a qual já mencionei no capítulo I deste trabalho. Os advogados mais prestigiados no campo, mais conhecidos e influentes no Tribunal os “iluminados” e os “figurões” - sem dúvida, tornam-se mais convincentes e possuem maior
227
Sobre os usos da retórica, suas técnicas e recursos empreendidos com o fim de manipular a lógica do contrário para vencer um enfrentamento dialético, ver: CATTANI, Adelino. Los usos de la retórica. Madrid: Alianza Editorial, 2003; e Walter Ong (1998; p. 125-133).
credibilidade do que aqueles que estão iniciando 228, o que é salientado por Rinaldi (1999), com extrema propriedade. Desta forma, diante de tantos fatores importantes para o processo, mas que estão “fora dele” – quero dizer, fora do mundo dos papéis e dos registros - o que se verifica é que se constrói, em sede recursal e pela via oral, uma verdade, muitas vezes, distinta da anterior. Verdade esta que se eterniza sem que seja contrariada, uma vez que, como apontei anteriormente, a cada instância hierárquica superior, menos contacto com a prova dos autos os Tribunais têm e, conseqüentemente, menos condição de desfazer o que até então foi produzido. 229 A questão se complica quando se infere, empiricamente, que, a cada dia, torna-se menos prestigiada a prática dos advogados de sustentarem oralmente nas tribunas recursais. A pressa por resultados, nesse particular, tem dificultado a atividade profissional dos advogados em termos de manifestações orais, havendo, por parte dos Desembargadores, um patente desestímulo às sustentações, o que torna os julgamentos cada vez mais mecânicos e burocráticos. Asseguro que, para alguém que não seja do campo, é impactante assistir a uma sessão de julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. As causas são julgadas sem que haja qualquer tipo de debate se sem que os julgadores, sequer, manifestem a sua opinião230. Salvo raras exceções, julgam-se processos como se ali não estivessem vidas e relações pessoais e sociais envolvidas. Os atos são quase sempre robóticos e muito bem determinados: o Presidente anuncia o recurso a ser julgado; o relator lê o relatório; se houver advogados, eles fazem a sustentação oral; se não houver, o relator imediatamente lê o seu voto; quando solicitado – o que é raro – lê o voto integral; quando não, lê simplesmente a ementa (que é um resumo de poucas palavras do conteúdo básico do voto); após isso, os demais julgadores
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Morato (1938, p. 146) ao analisar o tema, assim se manifesta: “[...] nada pode haver de mais esdrúxulo do que permitir-se a advogados recém-formados exercitar nas cortes, em competição com colegas encanecidos no oficio, com o objetivo de esclarecer julgadores também avançados no tempo, na ciência e na hierarquia judiciária.”. 229 O STJ e o STF, em especial, nos termos em que destaquei acima, por força das súmulas 7 e 279, respectivamente, não podem reexaminar as provas dos autos, julgando, apenas, questões jurídicas (de Direito), o que dificulta ainda mais a apuração dos equívocos cometidos nas fases anteriores. 230 Há um discurso no campo de que os julgamentos colegiados – pela publicidade – tornam-se espetáculos da Justiça e, portanto, os Magistrados querem se manifestar, a fim de, por vaidade, demonstrar conhecimento e erudição. Mario A. Oderigo (1961) em “El lenguaje del proceso” destaca o tema em relação ao processo argentino. Para ele, o processo oral e a publicidade dos juízos têm por único objetivo dar aos olhos do público uma decoração custosa, convertendo o governo, representado pelo judiciário, em “empresário de espetáculos”. No Brasil, Guedes (2003, p. 30), que realiza um estudo profundo sobre o princípio da oralidade no processo, tratando das vantagens e desvantagens dos sistemas escrito e oral, destaca: “Como vantagem do sistema da oralidade destacam-se a fácil condução do processo, a rejeição às armadilhas das partes e a celeridade, tendo em contrapartida os defeitos de prestar-se à espetaculosidade e de superestimar a memória do magistrado.”.
dizem se acompanham o voto ou não; lê-se o resultado e, assim, finda-se o julgamento. É questão de minutos. A participação dos advogados nos julgamentos do Tribunal do Rio de Janeiro vem sendo cada vez desestimulada, de modo que é muito pouco comum ver as tribunas ocupadas231. Sempre que podem, os julgadores tentam limitar o uso da palavra pelos advogados eles não têm mais paciência para ouvi-los232 - seja anunciando que votarão a seu favor e, portanto, a defesa oral não se faz necessária; seja solicitando que sejam rápidos 233; seja comendo, conversando entre si ou cochilando enquanto falam; seja interrompendo quando entendem que os advogados se repetem 234; enfim, criando obstáculos os mais diversificados possíveis para impedir que os advogados os façam gastar tempo ouvindo-os, até mesmo 231
Vale dizer que, na prática, não é comum que os advogados exerçam a opção de sustentarem oralmente nos Tribunais. Muitas vezes, os advogados têm receio; a formalidade os assusta; ou mesmo acham que não é necessário, já que os julgadores decidem como desejam; há, também, aqueles que não fazem a sustentação por entenderem que o valor dos honorários que cobrou não custeia o trabalho da preparação da defesa oral; enfim, diversos fatores. O fato é que a tribuna, mesmo na seara Estadual, não é ocupada com tanta freqüência. Posso dizer que é mais comum não haver defesa oral do que haver, embora eu não possua, objetivamente, estatísticas sobre esse assunto. No entanto, na pesquisa de campo e mesmo na atividade profissional, isso fica claro. 232 Um dos obstáculos à implementação da oralidade no processo civil brasileiro - que foi muito discutido antes do Código de 1939 - relacionou-se à preocupação dos juristas com a parolagem dos advogados. A relação entre Juízes e advogados sempre foi conflituosa e já naquela época isto funcionou como bandeira dos doutrinadores contrários à nova sistemática oral do processo. Em defesa ao sistema oral, Morato (1938, p. 145) destacara: “Os oradores hão de imediatamente amoldar-se a ele, compreendendo por bem do próprio desempenho profissional que o estilo da tribuna judiciária tem de ser sóbrio, singelo, conciso e diáfano. Contra as demasias e divagações de discursadores derramados, acodem dois remédios, um de emergência, o controle do juiz dentro do tempo e da matéria; outro de ordem geral, o de restringir-se, na medida do tirocínio, do grau cientifico e do preparo, o número de advogados permitidos a pleitear perante os tribunais de apelação.”. Nota-se, ao final do discurso, que, desde sempre, houve espaço para as relações pessoais. 233 O monopólio da palavra não deixa de ser uma forma de conservação do poder. Nesse sentido, o Presidente das Câmaras e Turmas estão, sempre, encontrando uma maneira de, pela palavra, conservar o seu status. Uma distinção que se verifica na empiria é, justamente, o tempo destinado para cada operador no uso da palavra. Os advogados têm o prazo improrrogável de 15 minutos para manifestações orais e, mesmo assim, na medida do possível, são forçado a utilizar menos tempo. Existe um despertador que toca quando completados exatos 15 minutos, sendo que, quando faltam 5 minutos, o Presidente já comunica ao advogado que o tempo está se esgotando, a fim de que o mesmo não ocupe a tribuna nem um segundo a mais. É comum, aliás, que o advogado deseje concluir apenas o raciocínio, mas seja impedido de fazê-lo, tendo de encerrar a sua manifestação oral imediatamente. Ao tocar o despertador, é comum que o advogado não possa falar nada mais. Ao contrário, os julgadores não têm prazo fixo para as suas manifestações. Normalmente, os magistrados falam o tempo que desejam falar. Por fim, às partes – maiores interessadas na administração do conflito – não é concedido 1 (um) segundo sequer para se manifestar. Vê-se que a distribuição do tempo, no que tange ao uso da palavra, é também desigual, variando conforme o lugar ocupado por cada um no processo. 234 Ocorreu comigo, pessoalmente, certa vez, em uma das minhas primeiras sustentações orais no Tribunal, de o Presidente de uma Câmara Cível do TJRJ interromper-me, no meio da defesa oral, por julgar que eu estaria repetindo os argumentos e não haveria tempo para isso. Tratava-se do julgamento de um recurso já conhecido da Câmara e, de fato, eu estava ali sustentando argumentos conhecidos da turma julgadora, mas sempre há, em cada caso, peculiaridades e estas devem ser explicitadas, justamente, porque, como os julgadores não têm tempo para ler o processo com minúcia, podem deixar passar as particularidades do caso. Enfim, o fato é que, independentemente dessas questões, o que importa aos julgadores é não perder tempo e, em nome disso, eles passam por cima das mais elementares regras – até de etiqueta – de tão comprometidos que estão com a celeridade. A mim, por força legal, cabiam 15 (quinze) minutos; mas, nem mesmo estes 15 minutos, o Presidente podia gastar ouvindo aquilo que não era de seu interesse.
porque, de fato, na maioria das vezes, o que os advogados fazem é oralizar o escrito 235; escrito este ao qual os julgadores, supostamente, já tiveram acesso - ou sustentam terem tido - pois, se há algo sagrado nesse sentido é o discurso de que os julgadores sempre lêem os processos e dele tomam minucioso conhecimento. Isto é sagrado, ainda que seja de conhecimento público, que, por razões óbvias, por mais que um Desembargador trabalhe, jamais poderá dar conta de tudo o que lhe é submetido a apreciação.236 Vale dizer que, nem sempre, a sustentação oral é um suplício para os julgadores. Certa vez, um Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em conversa informal, disse-me que “quando o advogado é bom, fala bem, é competente e a causa é diferente do que se vê habitualmente, é interessante o julgamento” e, em geral, os Desembargadores gostam de ouvir a sustentação. Mas, quando o advogado lê237 a sustentação ou quando são causas corriqueiras, eles não têm paciência, ficam cansados e, realmente, não dão atenção ao que se fala da tribuna. Paulo Gabriel Hilu (1999, p. 177), em sua pesquisa a respeito das práticas acadêmicas, desenvolve esse tema e, em certo tópico, destaca um dado colhido em campo, onde se menciona justamente o assunto tratado acima: “[...] os trabalhos lidos dão a impressão de que o autor não tem muita vivência com o assunto ou que não sabe se comunicar.”. Aqui, vê-se a oralidade como um instrumento que deve sobrepor à escrita. Um Juiz de Vara Cível que, eventualmente, é convocado para prestar auxílio ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com quem conversei, informalmente, disse-me: “Se o advogado vai à tribuna para ler um documento escrito é melhor que junte este documento aos autos processuais porque o que os julgadores esperam de alguém que sobe à tribuna para falar é que fale, não que leia.”. O fato é que a celeridade; a necessidade de uma produção em série; de resultados imediatos; da obrigatoriedade em se cumprir estatísticas; está produzindo um verdadeiro “fordismo jurídico”. Cada vez mais se tem a necessidade – criada não se sabe nem bem por quem e nem porquê – de implementar a política do “Mc Donald’s” no Tribunal. As sentenças 235
Os advogados normalmente preparam a defesa oral com base, exclusivamente, naquilo que já consta nos autos. É como se a sustentação oral existisse para chamar a atenção do julgador para os dados que constam no processo, por escrito, mas que o advogado não tem certeza de que tenham sido lidos ou considerados. Cappelletti (1972) destaca – a respeito do processo italiano - que o debate oral praticamente não inclui a produção das provas, limitando-se à sustentação dos advogados, que, na prática, está sendo abandonada. Segundo ele, em geral, quando os advogados se utilizam desse instrumento, é apenas para se referir a escritos anteriores e corroborá-los diante do julgador. 236 O TJRJ recebeu, em 2006, quase 110.000 novos processos para julgamento. Com esses números é impossível que cada julgador leia, com detalhe, cada processo. 237 Um dado que desperta atenção é a questão da leitura. São mal vistos os advogados que levam escritos para ler da tribuna. No entanto, os Desembargadores habitualmente lêem os seus votos. É muito raro que se manifestem verbalmente, sem que leiam os seus escritos.
têm de ser prolatadas em tempo recorde e os julgadores têm de – para serem os melhores – superarem a si mesmos. Isto é uma constatação. Não se trata de fazer um denuncismo descomprometido. O meu intuito é explicitar as práticas judiciárias e, a partir delas, refletir sobre a estrutura do sistema. O fato é que o que registro aqui ocorre todos os dias nos Tribunais e merece ser pensado pelos operadores do campo. Tudo isso tem limitado, em muito, a extensão da oralidade nesse campo. Não há mais espaço para o diálogo; a necessidade é a produção e, obviamente, produzir rápido não combina com ouvir pessoas; debater temas; buscar consenso. O diálogo, mesmo interno, entre os julgadores de um mesmo órgão, não tem se efetivado. Publicamente, são muito raros os debates entre os julgadores e mesmo as corriqueiras discussões e conversas informais (internas e extrajudiciais) realizadas entre julgadores a respeito das causas mais importantes ou de maior repercussão social têm sido incomuns238. Pessoalmente, já tive a oportunidade de presenciar, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, discussões fervorosas entre Desembargadores do mesmo órgão porque, por exemplo, um queria ler o voto e discuti-lo com calma, detalhadamente, entre os votantes, e o outro, com mais pressa, pedia que ele lesse o voto pela ementa (resumo da matéria julgada) porque havia muito trabalho a ser ainda feito. Trata-se de uma realidade que o Judiciário vem enfrentando e que, no campo da oralidade, tem sido prejudicial, uma vez que se tem cada vez menos oportunidade de solucionar os conflitos por consenso, através do diálogo que só o sistema oral permite e proporciona. 5. O tempo destinado a cada processo: desproporcionalidade Na pesquisa, chama a atenção o tempo destinado à análise de cada recurso nas sessões de julgamento realizadas pelos Tribunais. No TJRJ, verificou-se que, cada Câmara Cível, julga, em média, 100 (cem) processos por sessão, o que significa dizer, num período de 4 (quatro) horas239. Ou seja, o julgamento de cada processo dura, em média 2 (dois) minutos e 238
Obviamente que as “malhas de relações” funcionam nessa instância recursal, de modo que os julgadores debatem certos assuntos, antes das sessões de julgamento, quando solicitados ou quando o caso a ser decidido possui maior repercussão no Tribunal. No entanto, essas conversas informais e secretas realizadas entre os julgadores são excepcionais. Normalmente, as causas julgadas pelos órgãos colegiados estaduais não são debatidas nem antes nem durante as sessões. 239 As sessões se realizam das 13h às 17h, nos termos do art. 48 do Regimento Interno.
meio e, neste cálculo, não se pode esquecer daqueles processos – embora poucos - em que há sustentações orais pelos advogados das partes, em que se gasta 15 (quinze) minutos para cada um. Nesse contexto, para os demais processos, em que não haja advogados presentes na sessão, restam poucos segundos. É, de fato, impossível, em tais condições, o princípio da oralidade se efetivar da forma como se idealiza. Em tão poucos minutos não resta mesmo tempo para a reflexão e para o diálogo amadurecido entre os julgadores, nem mesmo paciência e disposição para ouvir os advogados da tribuna. O mais relevante na interpretação deste dado é o fato de que se trata do julgamento de processos que, muitas vezes, levaram anos para serem decididos em 1ª instância. Isto é, um processo que foi instruído e decidido, em 1º grau de Jurisdição, é rejulgado em poucos minutos no Tribunal que, muitas vezes, pode manter as decisões, entretanto, em muitas outras pode modificá-la, integralmente.240 Ou seja, a lógica recursal acaba por anular e desconsiderar toda a lógica que produz o processo em 1ª instância, sem que os operadores dêem conta disso e, sequer, se questionem sobre – até que ponto – é válido sustentar um esquema fundamentado dessa forma. Na prática, o que acontece é que o Tribunal colegiado reaprecia, em aproximados 2 (dois) minutos, um processo que demorou anos para ser decidido. Muitas vezes, o Tribunal julga, simplesmente, de acordo com o que vê e com o que ouve no dia da sessão 241. Obviamente, não há tempo para se analisar, com minúcia, todas as provas que foram produzidas, nem ler todas as peças produzidas pelos advogados, nem analisar todos os documentos acostados aos autos. Nesse sentido, a verdade construída na 1ª instância é sempre superada pela que é produzida na instância recursal. Mantendo a decisão ou reformando-a, o que vale é que ao Tribunal cabe legitimar ou anular tudo o que fora efetivado na fase anterior processual. É exatamente assim que o sistema funciona. 6. Votos prontos: o convencimento é formado nas sessões? 240
Em média, 44% das decisões de 1º Grau são confirmadas pelo Tribunal do Rio de Janeiro. Estatística disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/adm_geral/anuario_2006/produt_2inst_nov_2006.doc. 241 Morato (1938, p. 146) destaca isso em seu trabalho sobre o processo oral: “A oralidade tem muitas vantagens quando aplicada na instância recursal [...] a publicidade dos votos e decisões, celeridade e economia dos feitos, poupança de tempo e memoriais para os advogados e magistrados; que, em regra, não serão forçados a ler os autos e terão de pronunciar pelos elementos de convicção oriunda da simples assistência aos debates .”. Aqui, teoricamente, o oral prevalece, já que se julga com base naquilo que ocorre durante a sessão, mas, mesmo assim, não se trata do sistema oral que a doutrina previu e idealizou e, nem mesmo, da maior parte dos recursos. Em geral, se julga, de fato, com base naquilo que se lê, sendo expressivamente minoritários os casos decididos levando em conta o que se procedeu na hora da sessão.
Uma prática não legislada, porém hegemônica, observada nos rituais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, diz respeito à elaboração prévia dos votos pelos relatores, independentemente do que se vai discutir nas sessões de julgamento, conforme já citei neste trabalho. Os relatores elaboram os seus votos por escrito e unilateralmente, antes mesmo de tomarem ciência da argumentação oral dos advogados e, independentemente do debate a ser travado entre os demais julgadores, publicamente, no dia da sessão. Isto é, o ritual do julgamento nada mais é do que mero compromisso burocrático, tendo em vista que o convencimento do relator se forma livre, isolada e previamente. Tal prática sugere que, com efeito, tudo aquilo que é sustentado oralmente na sessão, seja pelos advogados, seja pelos demais julgadores com poder de decisão, têm muito pouca ou nenhuma influência no julgamento, pois, tanto o relator quanto o revisor – quando há revisão já têm os seus votos definidos previamente, sendo difícil que modifiquem a posição tomada no aconchego dos seus gabinetes por uma outra, a ser adotada em uma sessão de julgamento que se realiza da forma como descrevi, com pressa e sem maiores cautelas. A sessão de julgamento, desta feita, só se realiza para dar cumprimento à lei. Por conseguinte, a oralidade (ou melhor, os resquícios de oralidade que sobrevivem no sistema recursal) é mero formalismo, uma vez que nada contribui para a formação da verdade processual ou do convencimento dos magistrados, sendo, logo, ato de somenos importância para o resultado do processo que, mais uma vez, se representa como sendo escrito e inquisitorial. A sessão que é prevista, legalmente, para ser pública e oral é substituída por uma prática não legislada – mas legitimada – que privilegia o segredo (o voto é oriundo da convicção não revelada do relator) e a escrita. Obviamente, que há isoladas exceções a essa regra e que, em alguns casos, o relator se permite ser convencido por argumentos levantados na sessão, mas, em regra, isso não ocorre. É muito raro, como explicitei anteriormente, o julgador mudar de posição e redigir de novo o seu voto em razão de algum evento importante surgido no ato do julgamento. A discussão e o debate oral, que poderiam possibilitar a construção de uma verdade jurídica oriunda do consenso, são substituídos por rituais formais desvinculados dessa preocupação. O intuito é esvaziar prateleiras e não administrar conflitos. Laspro (1995, p. 133) destaca isso em seu estudo sobre o duplo grau de jurisdição:
“[...] o julgamento e os debates em segundo grau estão distantes de um sistema em que os votos dos julgadores nascem da discussão das questões, mas sim, resume-se a uma simples leitura de votos já anteriormente preparados, nos moldes, ainda que um pouco modificados, das tenções, que prevaleceram até 1928 nos Tribunais da Relação.”.
Morato (1938, p. 141 e 147) também resume, com propriedade, a idéia que pretendi expressar nesse item, valendo transcrever um trecho de seu discurso: “Nas superiores instâncias, tratando-se de juízos colegiados, predomina um procedimento escrito em relação às partes e à prova, e oral em relação ao ato de julgamento; o que está nas leis apenas, porque os julgamentos colegiados não se fazem por debates e conferência, conforme devem ser, senão realmente por ‘tenções’, segundo se praticavam nas usanças de outrora [...] Prevaleceu entre nós até 1828 o sistema deste julgamento nas Relações, no qual cada desembargador examinava o feito, escrevia seu voto em papel apartado e passava os autos ao seu imediato e assim de conseguinte até que, completa a revisão, colavam-se aos autos tais papéis que se denominavam tenções e de acordo com a maioria dos votos escritos lavrava-se a sentença. A lei de 18 de setembro de 1828 acabou com o sistema das tenções, passando os feitos a ser despachados em conferência e discussão pública. Aboliram-se as tenções, mas de fato o que temos é o julgamento no seu sistema, pois nos Tribunais de Apelação os magistrados de ordinário não emitem seus votos em debates, trazem-nos escritos para leitura em mesa; o que tudo torna ocioso o aparato de reuniões das câmaras e ainda mais gravoso o costume das tenções. Ocioso o aparato, porque bastaria que os desembargadores enviassem à mesa seus votos; mais gravoso o costume, porque nas tenções antigas os desembargadores enunciavam seus votos lendo os dos colegas e nas atuais lavra cada qual o seu, separadamente.”. (grifou-se)
Vê-se que as práticas atuais apenas reproduzem antigas tradições. Como se nota, na pesquisa de campo, verifiquei que aquilo que constatei sobre a forma como se produzem os votos dos julgadores, na verdade, ocorre desde 1828, e, até hoje, perdura sem questionamentos. É certo que o discurso dos advogados aponta certo desconforto quanto a esse dado. No entanto, os julgadores (autores do fato) sequer mencionam essa prática como um obstáculo à materialização da oralidade no processo e como uma forma inquisitorial de lidar com a administração dos conflitos. “Embora não haja previsão legal, os Desembargadores - e também os Ministros - já vão para a sessão com a idéia formada de que o assunto deve ser decidido como o
colega relatou. Todo mundo sabe que isso é assim. Hoje em dia, não há mais tempo para decidir tudo como antigamente. O Tribunal é como uma indústria, não dá mais para pensar que cada caso vai ser analisado com precisão e cuidado.”. (Advogado entrevistado informalmente antes do início de uma sessão de julgamento realizada no TJRJ)
Garapon (2003) destaca que o valor da deliberação reside menos na manifestação da diversidade de pontos de vista do que propriamente no processo de discussão em si. Para se chegar ao consenso, o processo de discussão faz com que cada um defenda publicamente o seu argumento e aí estaria o verdadeiro valor da deliberação. Nos Tribunais isso não ocorre, aliás, o que menos se estimula é a deliberação. 7. Os memoriais: o oral legitimando o escrito Outra prática não legislada, porém instituída nos Tribunais 242, é a entrega pessoal de memoriais pelos advogados aos Desembargadores, antes das sessões de julgamento. Os memoriais constituem um resumo do processo e são elaborados pelos advogados das partes de forma a ressaltar aquilo que mais lhes convier e de forma a chamar a atenção dos julgadores para a necessidade de uma análise mais minuciosa do seu processo. O objetivo fundamental da entrega dos memoriais é, portanto, distinguir um processo específico de outros, uma vez que, no momento em que o advogado deixa os memoriais com os julgadores e tem com eles um contacto pessoal antes da sessão, ele se destaca individualmente dos demais, inclusive, no momento de eventual sustentação oral na tribuna. Cuidam-se, os memoriais, de um instrumento escrito que só adquire valor se for apresentado pessoal e oralmente pelo advogado aos julgadores do recurso. Trata-se de um mecanismo que legitima uma espécie de oralidade velada. Não têm previsão legal e não estão descritos, sequer, na doutrina. Portanto, só reconhece os memoriais quem atua no cotidiano dos Tribunais, o que significa dizer tratar-se de um instrumento representativo de um conhecimento exclusivo, isto é, aqueles que o detêm possuem certa vantagem sobre aqueles que não o detêm. Devem ser apresentados antes da sessão de julgamento tanto para chamar a atenção dos vogais (que são os julgadores que não lêem o processo antes do dia do julgamento) sobre o processo; quanto, e especialmente, para influenciar na formação do convencimento do 242
Impõe relembrar que na 1ª instância processual existem os memoriais, previstos no §3º do art. 454 do CPC. Trata-se de peça escrita protocolizada pelos advogados antes da prolação da sentença, quando a causa, por ser complexa, impede a realização de alegações finais orais em audiência. Nos Tribunais não existe qualquer previsão para entrega de memoriais.
relator (cujo voto, geralmente, é o condutor do acórdão), pois, como acima explicitado, os relatores levam os seus votos prontos para a sessão e, para os advogados, é muito mais seguro convencer o magistrado de votar a seu favor antes da sessão do que no ato da sessão. Vale dizer que, de fato, devem ser entregues nos gabinetes dos julgadores com antecedência, mas também não devem sê-lo imediatamente antes à sessão, pois o objetivo é influenciar o relator. Assim, considerando que o relator elabora o voto antes do dia do julgamento, é razoável que os memoriais sejam entregues alguns dias antes da data oficial do julgamento. Por outro lado, “alguns dias antes” não significa dizer muito tempo antes da sessão porque também se destinam ao convencimento dos vogais, de modo que, se entregues a eles muito tempo antes da sessão, na data marcada eles já terão esquecido o seu teor e, conseqüentemente, os memoriais não atingirão o seu duplo objetivo. A entrega de memoriais é uma prática judiciária que tem representações distintas para advogados e magistrados: os advogados a adotam por receio de que os magistrados não leiam com a minúcia necessária o seu recurso243 e, por conseguinte, não profiram uma decisão que leve em conta pontos, para eles, fulcrais; por outro lado, os magistrados se dividem: alguns compreendem a adoção de tal prática conforme os advogados e também a consideram uma forma importante e útil de evitar decisões que omitam fundamentos recursais e que depois possam, inclusive, ser objeto de novos recursos; outros, porém, entendem tal prática como antidemocrática244, por ser uma forma de distinção, uma vez que nem todos podem ou sabem como adotá-la.
243
A prática habitual dos advogados de se utilizarem de relações pessoais para obterem vantagens em seus processos – não só nos julgamentos, mas durante todo o seu curso - é também conhecida nos corredores dos Tribunais como “embargos auriculares”. Embargos são uma espécie de recurso que visam a sanar omissões, contradições e obscuridades das decisões judiciais. Analógica e satiricamente, adotou-se o nome para descrever a prática dos advogados acostumados à advocacia do “corpo-a-corpo”, de proximidade com o magistrado, a fim de obter regalias. Impõe destacar que não trato aqui de corrupção e não me refiro a vantagens ilícitas obtidas nos processos. Explicito aqui uma prática que é, também, diariamente reproduzida nos diversos outros setores sociais, baseada na lógica que rege, de fato, as relações sociais no nosso País, e que diz respeito ao privilégio e à facilitação de favores aos amigos; facilitação esta que não implica em ilicitude, mas em mera reciprocidade (DaMatta, 1979). 244 Por exemplo, em artigo publicado no site www.nagib.net, sob o título “Manifestações orais extemporâneas são processualmente ilícitas”, o Professor e Desembargador Nagib Slaibi Filho critica as práticas orais adotadas pelos advogados pessoalmente nos gabinetes dos magistrados, bem como destaca os motivos pelos quais considera que os memoriais devam ser juntados aos autos do processo, transformando-se em manifestação puramente escrita e não oral. (acesso obtido em: 06 /11/2006). O Ministro Joaquim Barbosa também não é adepto à advocacia de gabinete. Segundo matéria veiculada na Revista Consultor Jurídico, em 23/11/2006, sob o título “Pedido de preferência: Ministro acusa Maurício Corrêa de tráfico de influência”, ele costuma dizer, entre amigos, que acha um absurdo, além de inconstitucional, a promiscuidade entre advogados e julgadores. Ele acredita que esta prática consagra privilégios e viola a igualdade de armas que deve nortear a prestação jurisdicional. Segundo a Revista, o Ministro já revelou, inclusive, a sua esperança de que mais cedo ou mais tarde o Congresso estabeleça limites quanto a isso. Matéria disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/50422,1.
Para alguns magistrados, avessos ao contacto imediato com os advogados, a escrita é uma salvaguarda, pois elimina a necessidade do contacto interpessoal na transmissão de informações. Jack Goody (1988, p. 26) ressalta que as relações tornaram-se mais impessoais com a adoção de modalidades escritas de comunicação. Ele descreve que as técnicas da escritura estiveram “intimamente ligadas ao desenvolvimento de sistemas de governo mais amplos, mais abstractos e mais despersonalizados [...] a substituição das relações orais teve como conseqüência a importância cada vez menor das situações face-a-face [...]”. Um adendo merece ser feito. De fato, o relacionamento entre advogados e magistrados é espinhoso e isso se verifica, facilmente, no campo. Um Ministro do STJ, em palestra proferida recentemente sobre o tema (“Relacionamento da advocacia com a magistratura”) reconheceu isso, manifestando-se no sentido de que o excesso de processos é um complicador que dificulta deveras o relacionamento entre juízes e advogados245. Em uma determinada ocasião, tive contacto com um estagiário que estava inconsolável justamente porque havia ido entregar memoriais a um Desembargador do TJRJ e este o havia recebido pessoalmente em seu gabinete só para lhe dizer: “Eu não recebo memoriais de advogados. Para mim, advogado tem que escrever, não falar. Tudo deve vir a mim por escrito. Não tenho de ouvir advogados nem despachar petições em mãos. O protocolo existe para isso, para que os advogados deixem as suas manifestações escritas.246”. A diferença de tratamento concedida aos advogados é o maior problema da prática de entrega dos memoriais. Os julgadores não têm condição de receber todos os advogados em seus gabinetes, com isso, os advogados mais prestigiados ou aqueles que conhecem os julgadores logram êxito e têm a oportunidade de serem recebidos pessoalmente; outros, porém, são levados a deixarem os memoriais escritos com os assessores dos magistrados, não sendo recebidos pessoalmente. Nesse sentido, para alguns, os memoriais alcançam o fim a que se destina, para outros, entretanto, não. Considerando a influência que a entrega pessoal dos memoriais exerce no resultado dos julgamentos dos recursos, nota-se que os memoriais são uma prática “oral” que influencia sobremaneira a construção de uma verdade processual diferenciada, excludente e dependente de fatores externos ao processo e à Lei.
245
Notícia veiculada pelo STJ em 31/08/2006. Disponível em: http://cramer.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=82703. 246 A contrariedade que circunda o campo do Direito se faz tão presente que, concomitantemente a manifestações como a desse Desembargador, há outras, nos seguintes termos: “[...] a advocacia não é oficio dos que não sabem falar. Os que não sabem falar que sigam o conselho de BENTHAM, preparem os dados e elementos para os que sabem.”. MORATO (1938, p. 146).
Trata-se de uma prática que denota a complementaridade existente entre a escritura e a oralidade no processo. O escrito delimita o foco da discussão e o oral contextualiza o escrito, em conversas de gabinetes oriundas de relações pessoais247. Além disso, há ainda a possibilidade de os memoriais suscitarem discussões internas entre os julgadores antes de sessão. Considerando que todos os componentes da turma julgadora recebem uma via dos memoriais, pode ser que, em uma causa mais interessante, menos corriqueira, alguma questão seja objeto de debate internamente, o que, como já mencionei, embora não seja habitual, pode vir a acontecer. Nesses casos, as relações pessoais também se fazem presentes. É comum, quando o advogado é conhecido de alguns ou mesmo de um único membro da Câmara em que o recurso vai ser julgado, solicitar-lhe que, por amizade, converse, antes da sessão, com os colegas e ressalte a importância do tema, a fim de contribuir para que se tenha mais atenção e cautela em seu julgamento. O conhecimento pessoal não significa um favorecimento direto no processo, mas uma atenção mais efetiva e uma maior disposição e paciência em discuti-lo e julgá-lo na sessão. É aqui que transparece a “pessoalização do conflito” (PINTO, 2001)248. Gabriela Hilu da Rocha Pinto, advogada que também optou por descrever o Direito a partir do “olhar antropológico”, destaca, a respeito da apresentação de memoriais antes dos julgamentos administrativos dos processos de cobrança do imposto de renda, que: “[...] apesar das petições escritas serem determinantes para fornecer elementos jurídicos à defesa e permitirem a manipulação tanto física quanto teórica do processo, 247
Sobre a importância - em um sistema de regramento universalizante - das relações pessoais e da reciprocidade necessariamente daí advindas, ver: OLIVEIRA, María José Sarrabayrouse. La justicia penal y los universos coexistentes. Reglas universales y relaciones personales. In: TISCORNIA, Sofía (Org.). Burocracias y violencia: estudios de antropologia jurídica. Buenos Aires: Antropofagia, 2004. p. 203-238. 248 A questão da influência das relações pessoais nos julgamentos é delicada e se faz presente em todas as instâncias dos Tribunais. Vale destacar, como exemplo, que, há pouco tempo, houve um conflito dramático entre o Ex-presidente do STF, Ministro Maurício Corrêa, e o atual Ministro do STF Joaquim Barbosa a respeito desse tema. A desavença iniciou por causa do julgamento de uma Reclamação da União em um processo de indenização por desapropriação de terras no Paraná, cujo montante equivale a quase R$ 100 milhões. No momento da sustentação oral, o Ministro Joaquim Barbosa estranhou que quem se preparava para subir à tribuna não era o Ministro, hoje advogado, Maurício Corrêa. Segundo o Ministro Joaquim Barbosa, o Expresidente Maurício Corrêa havia telefonado inúmeras vezes, para a sua residência, solicitando celeridade na tramitação do processo, o que lhe foi concedido. No momento em que não se preparou para a defesa oral, o Ministro Joaquim Barbosa desconfiou que, supostamente, em não sendo Maurício Corrêa o advogado do processo, teria ele, então, exercido tráfico de influência no STF, a fim de beneficiar terceiros, o que, em suas palavras “precisava ser apurado”. O fato é que, segundo foi divulgado posteriormente, o Ministro Maurício Corrêa participava sim do processo e tinha instrumento de procuração nos autos, o que o fez exclamar que: “Se o Ministro Joaquim tivesse lido o processo direito, isso não teria acontecido”. Após o evento, o Ministro Maurício Corrêa foi desagravado pela Ordem dos Advogados do Brasil e manifestou interesse em adotar medidas judiciais contra Joaquim Barbosa, caso ele não se retratasse. O exemplo mostra o quão conflituosas são essas questões e creio que é elucidativo, de alguma forma, também para outros temas aqui levantados.
elas sozinhas não são suficientes para ‘convencer’ os julgadores. Complementar à instrumentação do saber jurídico está a mediação oral exercida pelos advogados. Essa mediação se dá nas relações pessoais mantidas entre os advogados e os julgadores, ou pessoas que tenham acesso a eles, e em diversas técnicas orais de ‘individualizar’ as questões de um determinado processo ou o próprio processo: ou seja, o processo deixa de ser mais um entre milhares de processos e passa a ter uma atenção especial de quem vai julgá-lo. Essa mediação oral geralmente se dá através dos contatos mantidos entre os advogados e os julgadores. Quando o processo vai ser julgado no Conselho de Contribuintes, antes do julgamento, os advogados procuram as pessoas que irão participar do mesmo para explicar o processo. Isso acontece porque, inicialmente, só quem tem acesso aos autos é o relator e, ainda que ele faça um relato oral do processo antes de dar o seu voto, pode não dar a ênfase que o advogado precisa para reforçar em determinado argumento ou prova. Para motivar essas conversas os advogados preparam ‘memoriais’ [...].”. (PINTO, 2001, p. 112-113).
Morato (1938) ressalta em seu estudo sobre a oralidade que uma outra vantagem que se lhe destaca é a possibilidade que este instrumento dá aos advogados para serem ouvidos antes da prolação do voto do julgador, o que nos remete a essa questão dos memoriais. Segundo a doutrina da época era muito difícil os magistrados reconhecerem os erros cometidos na decisão e retificarem-na, assim como ocorre hoje. No entanto, a viabilidade de o advogado contribuir na formação do convencimento do julgador – antes – por via da oralidade, mostrava-se uma chance de êxito bastante presente. Nesse sentido, merece destaque: “[...] para os advogados é mérito da medida [oralidade] o de evadir que eles [juízes] formem opinião antes de ouvir os patronos dos pleiteantes. Sabe-se quanto é difícil confessar o homem o próprio erro e mudar de opinião; quase que só os santos conhecem esta virtude. A obstinação é um pecadilho dos homens retos. Os magistrados na grande maioria padecem da fraqueza geral da humanidade e não se deixam corrigir pelo próximo; seguem a jurisprudência de PILATOS – quod scripsi, scripsi249. Neste particular a solércia é um trabalho de profilaxia forense; antecipa seus argumentos à consciência jurídica ainda virgem dos julgadores, para que acompanhem a boa razão sem necessidade de emendar-se.”. (MORATO, 1938, p. 146)
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O significado da expressão é “o que escrevi, escrevi”.
Consoante menciono desde o Capítulo II, depreende-se que o sistema processual brasileiro se mescla o tempo todo entre a escritura e a oralidade: ora o escrito precisa do oral; ora o oral precisa do escrito.
8. Esclarecimento de fato: uma prática legislada, porém não reconhecida
O art. 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) prevê, expressamente, no inciso X, que é direito do advogado utilizar a expressão “pela ordem” em qualquer Juízo ou Tribunal para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que possam influenciar no julgamento da causa, podendo, ainda, replicar acusação ou eventual censura que lhe seja imputada na sessão. Tal previsão facilita a condução do processo, pois qualquer dúvida ou questão mal resolvida no momento do julgamento do recurso pode ser imediatamente sanada, na presença do advogado e dos magistrados, na própria sessão, sem que seja necessário, depois, ser remediada por outras vias incidentais. Então, por exemplo, se durante o julgamento de um recurso interposto em uma ação de divórcio judicial, algum dos julgadores, por equívoco, menciona que o casal não possuía bens, nem filhos, quando, de fato, os possui, basta ao advogado, presente na sessão, utilizando-se da etiqueta exigida, solicitar a palavra ao Presidente da Câmara e mencionar que deseja prestar um “esclarecimento de fato”, a fim de evitar uma decisão que venha a ser consubstanciada em um dado incorreto. Nesses termos, o advogado, no momento do julgamento, informa aos julgadores que o casal possui bens e filhos, indicando no processo onde se encontram os respectivos documentos comprobatórios da assertiva e tudo é sanado de imediato. Entretanto, é prática corriqueira no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a impossibilidade de os advogados se manifestarem, sobre qualquer aspecto da causa, após a sustentação oral a que oficialmente fazem jus. Embora o Estatuto preveja esta possibilidade, os Desembargadores não costumam concedê-la porque entendem que se trata de uma interrupção do julgamento e que eles não podem intervir em nada depois do momento de que dispõem para falar. E, assim, negam as solicitações de esclarecimentos por parte dos advogados, habitualmente.
Ou seja, ainda que se constate equívoco fundamental para o resultado do julgamento e que sobre ele pode influir, na prática, o advogado, mesmo estando na sessão e verificando o erro, não poderá intervir no julgamento, calando-se e utilizando-se de um recurso próprio previsto na legislação – embargos de declaração – para sanar omissões, contradições e obscuridades dos julgados. Em um sistema fulcrado sob condições de oralidade, é possível identificar os problemas e resolvê-los trabalhando em conjunto, de imediato, pois não há nada que obstaculize tais relações, mais interventivas, nas culturas de tradição oral. A cultura escrita, por outro lado, provoca uma ruptura no todo, no momento em que promove a iniciativa individual, isolada e solitária na identificação e solução de problemas. (PATTANAYAK, 1995). Nesse sentido, trata-se de uma prática - a que impede a possibilidade de os advogados prestarem esclarecimentos de fato nas sessões - que desprestigia a manifestação do princípio da oralidade mesmo diante da previsão constante em legislação federal. Tal postura adotada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, assim como por outros órgãos recursais, não apenas denega a possibilidade de materialização de uma suposta garantia da parte (oralidade), como cria obstáculos à tão propalada celeridade processual, uma vez que, não podendo o advogado esclarecer dados durante a sessão, utilizar-se-á de recursos incidentes para fazê-lo, o que contribuirá para emperrar o processo e acumular papel nos autos. Além do que demonstra a distância e a separação que os Tribunais fazem questão de propagar. Vê-se, com isso, que a todo o momento são criados obstáculos às manifestações processuais orais, o que sugere, de fato, uma preponderância e uma preferência dos operadores do campo pelo processo escrito, ainda que, dogmaticamente, sustentem o contrário. 9. Consensualizando o resultado, não a argumentação Manifestando-se em 1938, numa revista especializada (Revista Forense), que foi publicada justamente para tratar da reforma de 1939 que implementou a oralidade no processo civil brasileiro, Morato (1938) parecia estar discursando a respeito das práticas judiciárias hodiernas, por mais estranho que possa parecer, uma vez que já se passam quase 70 anos desde então. Morato (1938), juntamente com os demais doutrinadores que discorreram sobre o tema à época, criticava a forma como os julgamentos recursais eram realizados e depositava na inserção da oralidade no processo as suas esperanças de uma melhora no sistema,
especialmente, no sentido da maior efetivação do diálogo entre os magistrados no ato de julgamento, por conta da colegialidade. Ocorre que a reforma não melhorou isso. Inseriu-se na lei a idéia, entretanto, as práticas não a absorveram, perdurando idênticas, fulcradas na tradição escrita e nãoconsensual do processo. O que, aliás, mais uma vez, demonstra que não adianta o Direito querer: a dogmática positivista não vai transmudar a realidade porque nem mesmo os próprios operadores do campo agem segundo as determinações legais250. As decisões dos Tribunais, claramente, não se formam por consenso, sendo o colegiado mero requisito legal burocraticamente mantido nos rituais. Os julgadores costumam adotar o mesmo posicionamento quanto ao resultado do julgamento, entretanto, as razões que o fundamentam são as mais diversas possíveis, reproduzindo o contraditório das partes ao dos julgadores, configurando um típico “contraditório interno”. Cada magistrado, ao apresentar o seu voto, o faz com base em um argumento distinto do anterior, fazendo parecer, inclusive, que quanto mais fundamentos diferentes houver na decisão, mais justa ela será, o que sugere, outrossim, que, quanto mais robusta a decisão, ainda que contraditoriamente fundada, mais Justiça terá sido concretizada. O diálogo não é travado de forma a se atingir um consenso na argumentação. Entendese que o diálogo se instaura pelo simples fato de haver a possibilidade de cada Desembargador se manifestar verbalmente. O significado da palavra “diálogo” é representado de uma forma peculiar nos Tribunais: entende-se por diálogo a simples viabilidade de os julgadores serem livres para se manifestar. Trata-se de uma característica do sistema contraditório, base em que se funda o processo brasileiro, onde sempre há teses contrárias e afastadas - vencedor e vencido inexistindo compromisso das partes e dos julgadores com a construção de uma verdade processual consubstanciada no consenso. As convicções dos magistrados, por mais contraditórias, são absolutas e incontestáveis individualmente. É como se o colegiado digladiasse consigo mesmo. As argumentações dos julgadores podem ser representadas conforme o são as teses das partes, isto é, lutam entre si, com a idéia de que haverá, sempre, uma melhor do que a outra; uma mais verdadeira que a outra, e esta será a que prevalecerá. 250
Kant de Lima (1995) destaca em seu livro sobre a polícia do Rio de Janeiro um caso que, por ter observado, na íntegra, todos os procedimentos legais, foi representado como atípico na Delegacia. O título do capítulo é “A Polícia do Rio de Janeiro, obedecendo a Lei: a exceção que confirma a regra”.
Fortalecendo essa concepção, existem as normas regimentais, que absorvem essa lógica contraditória e legitimam as práticas dela advindas. A “declaração de voto” é, justamente, a fórmula “mágica” que permite e legitima o ritual. Como cediço, a fundamentação do acórdão é o voto vencedor 251, mesmo que outras motivações tenham influenciado no resultado do julgamento. Desta forma, se os magistrados concordam no resultado do julgamento, mas alicerçam as suas decisões em argumentos diversos, poderão fazer a chamada “declaração de voto”252 e justificar as suas razões de decidir em separado. Tal conduta não é obrigatória e, por conseguinte, na prática, verifica-se que dificilmente se faz “declaração de voto”. No entanto, impõe observar que se trata de um procedimento legal que legitima a contradição dos argumentos nos acórdãos, permitindo e reconhecendo como natural a existência de decisões colegiadas consensuais, apenas, no resultado. O dissenso convicto na argumentação de cada magistrado julgador resulta também, muitas vezes, em decisões proferidas “por maioria”, isto é, acórdãos que não convergem nem nos argumentos, nem no resultado253. A oralidade - no caso específico trabalhado neste tópico - não é o fator preponderante, uma vez que, embora presente, não atinge o fim dialogal. As pessoas, em tese, falam e ouvem umas às outras, entretanto, uma concepção de verdade internalizada nos operadores desse campo os impede de vislumbrar que não adianta que cada um tenha um raciocínio, quando o importante é chegar a um consenso que possibilite que, sempre, em casos semelhantes, independentemente do posicionamento individual de cada magistrado, os cidadãos tenham uma decisão equivalente. 251
O §2º do art. 92 do RITJ define que a fundamentação do acórdão será exclusivamente a vencedora (voto vencedor). 252 Nos termos do parágrafo único do art. 82 c/c art. 93, ambos do RITJ, a declaração de voto é feita quando o magistrado deseja expor as razões do seu voto sempre que este for convergente no resultado, entretanto, divergente na fundamentação. Quando se trata de um magistrado que não concorda nem com a fundamentação, nem com o resultado (conclusão) do julgamento, o instrumento que lhe pertine elaborar não é a “declaração de voto” (vencedor), mas sim a “justificação de voto” (vencido). 253 Esses casos são complicados porque resultam na “loteria” do Judiciário, onde o resultado do processo resulta mais do fator sorte do que das previsões legais. Se no dia do seu julgamento houver dois magistrados que costumam decidir casos equivalentes ao seu, a seu favor, e apenas um magistrado que geralmente decide contra; ótimo, você ganhará a causa, pois a maioria se fará presente. Entretanto, se um deles se levantar para ir ao banheiro e o seu processo, nesse ínterim, for julgado por outro membro da sessão, será preciso ter sorte para que este também adote uma posição favorável, senão, você perderá a causa, por maioria. Isso não tem a ver, apenas, com a questão da falta de consenso nos julgamentos, mas também com a estrutura de funcionamento das sessões, que permite que existam vogais que, sem conhecerem o processo, têm poder de voto. Os vogais – como já esclareci neste trabalho - são, na ordem de antigüidade, os magistrados que estiverem presentes no momento do julgamento do recurso. Pode ser qualquer julgador presente. Por isso que, quando oferecemos memoriais nos gabinetes, temos de entregá-los a todos os membros porque qualquer um pode vir a ter de decidir o recurso.
O fato é que, tal como estruturado o “saber jurídico”, torna-se impossível que cada magistrado abdique da sua posição individual em prol de uma terceira posição, consensualizada, como ocorre entre as partes nos sistemas adversariais, onde, cada uma, embora tenha uma versão dos fatos, abre mão desta em prol de uma terceira, consensual e que ponha fim ao conflito instaurado. A idéia exposta neste trabalho, de que existe uma verdade absoluta, sagrada, que está em algum lugar a ser descoberto pelo Juiz, obstaculiza a negociação da verdade, de forma que engessa o sistema de uma forma, nesse ponto, praticamente irremediável. 10. A oralidade como obstáculo à celeridade e a celeridade como obstáculo à oralidade A oralidade - conforme destaquei - é um princípio alçado à categoria de garantia, muito prestigiado pela dogmática, malgrado os rituais tenham demonstrado que não é assim que se verifica na prática. Ocorre que, igualmente, a celeridade é um princípio processual muito valorizado e – ao contrário da oralidade – tão prestigiado na teoria quanto na prática. Com efeito, a celeridade tem sido, conforme tentei demonstrar, cada vez mais perseguida pelos Tribunais. A dogmática moderna considera a morosidade do Judiciário o maior problema atual do processo e, objetivando extirpá-la, a qualquer custo, os Tribunais não ousam sacrificar garantias: a oralidade é uma dessas garantias que vem perdendo espaço para a celeridade. Diante disso, a oralidade deixa de ser um objetivo do processo para se tornar uma pedra no caminho da celeridade e, para “chutar esta pedra”, na prática, os Tribunais, na maior parte dos casos, utilizam-se de diversas “táticas”: pedem – como já dito - explicitamente, no início da sessão, que os advogados sejam compreensivos e falem da tribuna apenas o estritamente necessário e quando necessário; justificam que têm muitos processos para julgar naquela sessão e que é preciso que sejam todos breves; esclarecem que já leram o processo (embora todos saibam que isso não acontece sempre e que quando acontece nunca pode ser uma leitura detalhada porque eles não têm tempo porque são sufocados pela carga de trabalho que lhes é imposta); interrompem os advogados; ficam, nitidamente, desestimulados e impacientes quando os advogados insistem para sustentar razões que eles consideram sem importância, o que, certamente, influencia no resultado do julgamento; ganham tempo assinando papéis e trabalhando em outros processos, proferindo decisões; levantam-se para resolver problemas em seus gabinetes; enfim, utilizam o tempo destinado à oralidade com
outros afazeres, uma vez que não conseguem dar conta de todo o trabalho no horário de expediente. Alguns advogados que entrevistei, consultados a respeito da impossibilidade de se manifestarem oralmente em Tribunais, disseram-me: “Acontece com freqüência de advogados serem privados da oportunidade de sustentar oralmente as suas razões da tribuna. Isso acontece quando o Desembargador já tem o voto formado a favor de quem iria sustentar.”. “Já aconteceu várias vezes comigo de o Desembargador dizer que eu não precisava sustentar. Geralmente, isso acontece em duas ocasiões: ou quando o relator já prolatou o seu voto em favor de quem quer sustentar; ou quando a turma julgadora, ou melhor, a Câmara mesmo, já tem uma opinião formada sobre o assunto, por exemplo, quando se trata de um assunto corriqueiro, julgado com freqüência pela Câmara.”. “Acontece muito, comigo nunca aconteceu, mas já vi acontecer com colegas de serem proibidos de falar da tribuna. Isso decorre das pautas longas e lotadas. Não vejo prejuízo nisso não. Se quem vai sustentar já ganhou o recurso, para que quer falar? O importante é ganhar. É uma prática importante para dar celeridade aos processos.”.
Nesse sentido, o princípio da celeridade se torna um obstáculo ao da oralidade, pois, para a prestação jurisdicional ser concedida no menor tempo possível, não se pode gastar tempo com longos debates e longas defesas orais em cada processo que tenha que ser julgado pelo Tribunal e, por outro lado, a oralidade se torna um obstáculo à celeridade, pois, se for, de fato, observada, atravancará a necessária rapidez dos julgamentos254. Sobre o tema, um advogado manifestou-se, nos seguintes termos: “Hoje, o Desembargador rejeita liminarmente, em seu gabinete, o recurso [nos termos do art. 557 do CPC, acima mencionado], o advogado, por sua vez, recorre da decisão, este recurso é levado a julgamento sem possibilidade de sustentação oral e todos
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A oralidade é tão desconsiderada na prática dos Tribunais, que a atual Presidenta do STF, no julgamento de uma ADIN – Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, em que se discutia a possibilidade do terceiro interessado no processo (amicus curiae) sustentar oralmente as suas razões, manifestou-se da seguinte forma: “Essa Corte precisa cuidar de sua própria sobrevivência. Não temos sequer condições de julgar os processos que recebemos (...) os amicus curiae, a essa altura, já são inimigos curiae porque atrapalham o funcionamento do Tribunal.”. (ADI 2.675/PE e ADI 2.777/SP. Discutia-se nas ações se a figura do amicus curiae (amigo da corte) um terceiro interessado no julgamento de uma ação em que não é parte direta - poderia sustentar oralmente as suas razões recursais. Hoje, admite-se, sem maiores discussões, a sustentação oral pelo amicus curiae. A Ministra Presidenta da Corte foi voto vencido nos julgamentos mencionados.
concordam com o relator sem fundamentar as razões. Sob o argumento da celeridade, exclui-se a possibilidade de discussão da causa.”.
São práticas habituais nas sessões do Tribunal do Rio de Janeiro - adotadas em nome da celeridade processual e em desprestígio à oralidade e ao debate público que, supostamente, deveria se dar nos julgamentos colegiados – a leitura dos relatórios dos recursos “pela ementa”, em vez do voto na sua integralidade; e o simples “acompanho o relator” no lugar da fundamentação da decisão, constitucionalmente exigida. Julgar “pela ementa” significa dizer que os Desembargadores relatores dos recursos, no momento de anunciarem a sua decisão, em vez de pronunciarem o voto, fundamentando-o, não o fazem. Ao contrário, simples e mecanicamente, por devoção aos regramentos (MERTON, 1970) fazem uma leitura rápida da ementa, que, nada mais é do que um resumo do voto, elaborado em poucas palavras e, muitas vezes, sequer auto-explicável. Por exemplo, a ementa de uma ação de despejo por falta de pagamento que tramita desde 2006, na qual foram levantadas diversas questões jurídicas e que, havendo recurso, foi julgada pelo Tribunal em 2007, é, simplesmente, a seguinte: “Ação de despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança dos aluguéis e encargos. Não emendada a mora, há que ser rescindido o contrato de locação, com o pagamento dos aluguéis devidos. Correta a sentença de primeiro grau. Não provimento do recurso.”. (Processo no 2006.001.5566-0, julgado pela 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 07/02/2007255). Os relatores, então, ao invés de explicitarem, na sessão, todos os argumentos que fundamentaram a sua decisão, lêem a ementa do voto, geralmente elaborada nos mesmos moldes do exemplo trazido acima. E só. Com base nesta ementa, produzida nesses moldes e, por razões óbvias, nada esclarecedora dos detalhes do processo, os demais julgadores - que sequer leram o processo e estão tendo contacto com a causa pela primeira vez no ato da sessão – decidem e votam. Se por acaso acham que a ementa é razoável e concordam com os seus termos, dizem, simplesmente, “acompanho o relator” – mesmo sem saber as peculiaridades do caso – no entanto, se, por alguma razão, não acham que a ementa é pertinente, fazem algumas perguntas básicas ao relator, solicitam esclarecimentos e votam em sentido contrário, mesmo sem analisar os autos processuais, confiando, exclusivamente, nas informações prestadas pelo colega.
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Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/
Presenciei um julgamento realizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em que uma Desembargadora, funcionando como vogal no julgamento de um recurso, não compreendeu um determinado aspecto da ementa lida pelo relator e o questionou. Este, por sua vez, esclareceu, resumidamente à vogal, o assunto discutido no processo, no entanto, não localizou, de imediato, ao folhear os autos, a prova que justificava a sua explicação. A vogal, prontamente, deu-se por satisfeita, exclamando: “V. Exa. certamente leu os autos com cautela, de maneira que, confiando no seu trabalho, o acompanho.”. Tal prática, embora não legislada, está institucionalizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo naturalizada pelos operadores do campo. Algumas poucas opiniões dissidentes – normalmente advindas de Juízes de 1º grau, não de Desembargadores - foram verificadas na pesquisa de campo, destacando-se as que transcrevo adiante: “Na minha opinião, no momento em que alguém diz na sessão ‘acompanho’, você parte do princípio de que ele deve, necessariamente, dizer acompanho porque ... Pelo princípio da motivação, que se aplica inclusive ao revisor e ao vogal, o simplesmente ‘acompanho’ eu acho meio insuficiente. É duro, mas a realidade é essa, teria que ser assim. Todo julgador, seja de 1ª instância, de 2ª ou Ministro, tem que motivar o voto. Você pode até pensar, mas para quê que ele vai escrever e motivar um voto que é igualzinho ao dos outros? Não interessa. O sistema está montado para que ele dê a opinião dele. O simplesmente ‘acompanho’, pela teoria da motivação, é pouco. Não precisa nem fazer um voto tão detalhado como o do Relator, mas simplesmente ‘acompanho’? Tem que ter o mínimo ... Porque, por exemplo, acompanha quais os argumentos do Relator? Todos? Bem, mesmo que sejam todos, o que são todos? Quais são todos? Ele tem que dizer para caracterizar a opinião dele. Nesses casos, a oralidade poderia ser aplicada e o registro em papel ou em gravador também. O fato é que ia se perder muito mais tempo e temos outros princípios que também temos que atender. Por exemplo, o da razoabilidade. O que é razoável? Gastar muito tempo?”. (Entrevista formal concedida por um Juiz Titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
“Eu acho que se quiséssemos pensar a nível de princípios, na hora que o revisor e o vogal dissessem ‘acompanho’ e não falassem mais nada estaria errado. Acompanha por quê? Acompanho integralmente com as razões do relator. Bem, quais são as razões dele que o Senhor está acompanhando? 100%? Ou só nisso e nisso? Ele teria que justificar. Mesmo que ele acompanhasse todos os argumentos, acho que ele deveria registrar em uma ata ‘acompanho integralmente os votos do relator’ e assinasse abaixo. Assim, haveria um registro de que ele estaria endossando o voto, na íntegra.”.
(Entrevista formal concedida por um Juiz Titular de Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro)
É assim que se constrói a verdade na seara recursal e é desta forma, que os processos julgados em 1ª instância são revistos. Quando descrevo o sistema recursal como robótico, o faço em função desse procedimento. A dinâmica da sessão, não em todos os casos, mas em sua grande maioria, é essa, ou seja, em poucos minutos, o relator lê o relatório (feito pelo seu assessor); se for o caso, o advogado sustenta as suas razões; o relator lê a ementa e os vogais dizem “acompanho o relator”. Impõe salientar que o “acompanho o relator”, quanto aos vogais, está legislado internamente no TJRJ. O Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro dispõe, no parágrafo único do art. 72, de forma expressa: “Os vogais que estiverem de acordo com o voto e a fundamentação do relator, do revisor ou do primeiro voto vencido poderão se limitar a declarar a sua concordância, a menos que regra especial lhes imponha fundamentar seus votos.”. Registre-se que a regra especial que determina aos magistrados fundamentarem as suas decisões é o art. 131 do CPC cumulado com o art. 93, inciso X, da Constituição da República, que constituem o princípio da motivação das decisões judiciais. Tratam-se (a leitura pela ementa e o “acompanho o relator”) de formas mecânicas, sistemáticas e usualmente adotadas pelo Tribunal para administrar os conflitos. Como é possível, nesse contexto, falar-se em oralidade, consenso e diálogo? Por isso assevero que a dogmática é autista quando trabalha essas questões, pois romancear o princípio da oralidade e reconhecê-lo como uma garantia que, necessariamente, deve ser efetivada nos processos, de modo a aproximar as partes do Juiz e permitir um diálogo entre os envolvidos no conflito, é desconsiderar o dia-a-dia dos Tribunais. Quem ainda acredita nesses ideais nunca esteve em um Tribunal porque o que descrevi, até então, é exatamente o que acontece na prática. Os julgamentos são assim e, certamente, isso não ocorre apenas no Rio de Janeiro: julga-se pela ementa e acompanha-se o relator. Entende-se que esse é o único jeito, diante das circunstâncias que se apresentam, de dar conta da excessiva demanda processual. É certo que nos casos mais complexos ou nos menos corriqueiros e, também, em algumas situações, quando há advogados das partes presentes nos julgamentos, a sistemática não é tão apressada. Ocorre de, em certas ocasiões, em respeito à presença dos advogados, os
relatores lerem o voto, por inteiro, e, eventualmente, explicarem uma ou outra circunstância fática ou jurídica importante para a compreensão do caso pelos demais votantes. Porém, com efeito, não é o que normalmente se verifica. O que normalmente se verifica é o julgamento mecânico - que descrevi mais acima - e, por conseguinte, incompatível com a oralidade. Ler o voto não significa atender à oralidade. Esta exige um debate minucioso sobre os fundamentos do recurso e as suas implicações. A leitura, por si só, é a mera verbalização da escrita, nada mais do que isso e, portanto, não representa a essência da oralidade. Os julgamentos atuais são instantâneos: apenas se lê e se diz “acompanho”. Desse modo, a relevância passa a estar centrada na “ementa”, não na discussão. Nesse sentido, surge um outro problema não raro de se ver. Diante do excesso de trabalho, narrei que é comum a delegação de funções nos Tribunais. A “ementa”, portanto, muitas vezes é elaborada pelos assessores do relator, sem que este dela tome conhecimento. Assim, já vi ocorrer, na prática, de o relator julgar um recurso como se fosse uma ação de indenização, quando, na verdade, se tratava de um despejo, decorrendo, o equívoco, da elaboração incorreta da “ementa”, copiada e colada no voto errado. Inexistindo a oralidade nesses julgamentos, a omissão é sanada por outras vias, escritas, demoradas e nem sempre objetivas. Prestigiando-se a oralidade, tais equívocos seriam facilmente detectados, até mesmo por outro julgador, no momento da sessão – ou mesmo pelo advogado, a quem fosse concedida a palavra - sem maiores repercussões processuais256. Nesse diapasão, transcrevo a manifestação de Leonardo Greco, nos seguintes termos: “[...] Tão ruim quanto o monocratismo em 2º grau é a falsa colegialidade, através de julgamentos-relâmpago ou em pilhas, em que todos acompanham o voto do relator sem saber o que estão decidindo e sem uma análise cuidadosa dos fatos, provas e alegações apresentados pelas partes. Ou a falsa colegialidade, em que apenas um ou dois de todos os participantes do órgão julgador examinaram previamente os autos [...] cada juiz somente pode formar a sua convicção sobre as alegações das partes, os fatos e as provas, se tiver exercido efetiva cognição sobre todos os atos do processo.”. (GRECO, 2005, p. 307) 256
A facilidade que os computadores proporcionam, às vezes, pode ser ingrata, de forma que, diante da grande quantidade de processos, copiar a ementa de um voto em outro é algo absolutamente razoável. O problema é que, quando o erro é cometido pelo Tribunal, as conseqüências não são tão severas, uma vez que se pode corrigi-lo, de ofício, ou mesmo por decisão judicial proferida em embargos declaratórios, recurso que se destina a, dentre outras questões, sanar omissões, obscuridades e dúvidas constantes nas decisões judiciais. Entretanto, quando o erro é cometido pelos advogados – representantes das partes – as conseqüências são sérias: normalmente, o não conhecimento do recurso ou o seu desprovimento.
Vê-se, portanto, que os julgamentos são rituais meramente burocráticos que reproduzem práticas rotinizadas e se destinam a conformar o sistema, sem que haja efetivo compromisso com a justiça e efetividade das decisões e com a administração dos conflitos. Uma característica importante do ritualismo burocrático – que parece ocorrer no Tribunal de Justiça - é a conduta de se seguir “compulsivamente” as normas instituídas, sem que se questione a sua finalidade e a sua eficácia no contexto empírico, gerando uma “superconformidade” paralisante. (MERTON, 1970, p. 223; 261). 11. A ausência de registro No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro as sessões de julgamento das Câmaras Cíveis não são registradas, uma vez que não há serviço de taquigrafia, nem gravação e transmissão televisionada desses rituais, tal como ocorre, por exemplo, nas Cortes Superiores (STJ e STF)257. A ausência de qualquer meio de gravação dos atos processuais realizados é um problema que repercute na construção da verdade jurídica. Em 1ª instância, como esclareci, mesmo não havendo meios especiais de registro, por força da Lei processual, exige-se, ao menos, a redução a termo (transcrição em ata) dos fatos ocorridos nas audiências, prática que, embora não seja ideal - uma vez que as transcrições não refletem exatamente as manifestações ocorridas nas sessões - representa maior eficácia do que a falta total e absoluta de registro escrito da dinâmica e da sistemática processual dos rituais judiciários. Na instância recursal, conforme verifiquei em campo, as eventuais discussões travadas entre os julgadores e as sustentações orais dos advogados não são registradas, de modo que, o que se fala nesses rituais não se escreve e faz parte de um campo restrito, atingindo um número limitado de pessoas: somente aquelas que estiverem presentes nas sessões de julgamento.
257
A Lei no 11.419/2006, em vigor desde 20/03/2007, altera diversos dispositivos do Código de Processo Civil a fim de instituir o processo eletrônico. Quanto ao registro dos atos processuais orais realizados nas sessões de julgamento dos Tribunais, insere uma relevante modificação ao alterar a redação do art. 556, fazendo-o, nos seguintes termos: “Art. 556 [...] Parágrafo único. Os votos, acórdãos e demais atos processuais podem ser registrados em arquivo eletrônico inviolável e assinados eletronicamente, na forma da lei, devendo ser impressos para juntada aos autos do processo quando este não for eletrônico.".
A ausência de registro das manifestações orais realizadas no curso do processo causa problemas de diversas ordens. Em determinada ocasião, atuando profissionalmente, vivenciei uma conseqüência disso que trouxe sérias repercussões, valendo destacá-la como um exemplo representativo do prejuízo causado por não se gravar as sessões do Tribunal, no Rio de Janeiro. Um adendo merece ser feito, antes da narrativa do fato. Segundo descrevi neste trabalho, o único registro que resta das sessões dos Tribunais Estaduais é a ata, onde consta, simplesmente, o resultado do julgamento, isto é, se o recurso foi ou não provido e se o foi por maioria ou unanimidade. Há casos, no entanto, em que o pedido recursal é parcial 258. Em circunstâncias tais, o resultado do julgamento que consta da ata registra, apenas: “A Câmara deu provimento parcial ao recurso, nos termos do voto do relator.”. Aí reside o problema. Diante dessa ata só é possível saber a abrangência da “parcialidade” lendo o voto do relator, que, na verdade, embora seja por ele previamente redigido, não é um documento oficial e, conseqüentemente, não fica acessível de imediato, no dia da sessão. De qualquer maneira, normalmente, quando o resultado do julgamento acolhe o voto do relator, não há maiores repercussões porque, de fato, a parcialidade estará registrada no voto que ele levou para a sessão e leu publicamente. O problema está quando a “parcialidade” resulta de uma discussão surgida na hora do julgamento e que, portanto, não esteja consignada no voto previamente preparado pelo relator. Isto é, o problema existe quando surge, verbalmente, na hora da sessão, um argumento novo, que influencia o resultado do julgamento. Nesses casos, só aquelas pessoas que estiveram presentes na sessão é que têm como saber a abrangência da parcialidade, ou seja, só elas saberão para que fins e em que termos o resultado do julgamento foi parcial. Até aí, tudo bem. Mas, e quando inexiste registro? Onde se vai consignar o novo argumento surgido na hora da sessão? E se, após a sessão, envolto por centenas de processos, o Desembargador relator esquece o argumento levantado na hora da sessão e não inclui em 258
Por exemplo: em uma ação de despejo cumulada com cobrança de alugueres atrasados o Juiz, em 1º Grau, prolata a sentença julgando procedente o pedido, todavia, em parte, isto é, apenas quanto ao despejo, portanto, não condenando o Réu ao pagamento dos aluguéis atrasados. Nesse caso, o valor dos honorários do advogado do Autor é arbitrado em montante determinando, não incidindo sobre percentual a ser fixado com base no valor da cobrança dos ditos aluguéis. O advogado do Autor recorre para o TJRJ requerendo a reforma da sentença, a fim de que haja a condenação do Réu ao pagamento dos atrasados e, por conseguinte, pleiteando honorários de 20% sobre o valor da condenação. Em sessão de julgamento, o TJRJ julga o recurso, dando-lhe provimento parcial, apenas para condenar o Réu ao pagamento dos aluguéis atrasados; não arbitrando novos honorários, mantendo, portanto, aqueles fixados na sentença. Trata-se, pois, de um caso de provimento parcial de um recurso.
seu voto a questão ali surgida, deixando o seu voto intacto, nos termos em que foi redigido antes da sessão? Aí está uma séria problemática oriunda da ausência de registro oficial de tais rituais. O advogado só terá ciência de que no voto do relator não foi incluída a questão travada na sessão após a publicação do acórdão, que pode demorar alguns meses. O que lhe restará fazer? Restar-lhe-á, nada mais nada menos do que convencer o relator e os demais julgadores de que certo dia de julgamento, eles discutiram oralmente determinada questão, acolherem parte de um pedido feito pelo advogado, mas que – como não se registram as sessões – não há como provar que assim se procedeu, contando, o advogado, apenas, com a memória dos magistrados e com a sua boa vontade de, ao lembrar do evento, julgar de novo o processo e sanar a omissão contida no acórdão. Pois bem, no caso que me ocorreu narrar aqui, foi complexo solucionar a problemática, pois foi exatamente isso que aconteceu. Tratava-se de uma ação de indenização por acidente de trabalho, em que o empregado pleiteava danos morais e materiais. Na sentença, a empresa foi condenada a pagar 2/3 do valor do dano sofrido pelo empregado, uma vez que não foi reconhecida a culpa recíproca no acidente, isto é, o mesmo grau de negligência do empregado e da empresa, casos em que a indenização é compartida. Em sede recursal, a empresa pleiteou a improcedência total do pedido – alegando culpa exclusiva do empregado – mas, alternativamente - caso o Tribunal assim não entendesse – que fosse reconhecida a culpa recíproca, de forma a ser minorado, de 2/3 para 50% o valor da indenização a ser paga pela empresa. Pois bem, no dia do julgamento, durante a sessão, os julgadores debateram diversas outras questões envolvidas no processo e entenderam – diferentemente do que havia entendido o relator - que parte da culpa do acidente foi do próprio empregado e, assim, reduziram de 2/3 para 50% o valor da indenização. Ocorre que não restou consignado no acórdão que a indenização fora minorada pela metade, constando, somente, que a culpa tinha de ser compartida entre empregado e empregador, sem percentuais definidos. A culpa compartida já havia sido determinada desde a sentença, uma vez que o Juiz, reconhecendo a atitude negligente do empregado, condenou a empresa a pagar apenas 2/3 do valor do dano e não a sua integralidade. Isso já estava, portanto, definido. O que o Tribunal não fez constar no acórdão foi o percentual que passou de 2/3 para 50%. E para resolver a omissão? A solução do problema custou meses de idas e vindas nos gabinetes dos magistrados que participaram da sessão para fazer-lhes recordar-se de que o julgamento havia favorecido a empresa. Ao final, por sorte, tudo ocorreu bem, mas se os julgadores, por qualquer razão, não reconhecessem isso, a empresa teria de arcar com 2/3 ao invés de 50% do
valor da indenização, uma vez que não haveria como provar, de forma nenhuma, o que ocorreu entre os muros da sala de sessão no dia do julgamento. Administrar conflitos contando com a memória dos magistrados é algo que merece, no mínimo, uma reflexão mais aprofundada, até mesmo porque a escrita existe, também, para resgatar a memória do oral (ONG, 1998) e, nesse sentido, deve ser utilizada, não rechaçada, como se faz nos rituais do Tribunal objeto desta pesquisa. No TJRJ, toda e qualquer questão nova, levantada pelo advogado da tribuna, no momento da sessão, não é registrada, ficando, o advogado, também nesses casos, sem quaisquer garantias de que o debate oral dos magistrados e o que dele se extrair, de fato, se efetivará. A posição eventualmente adotada pelos vogais, que, obviamente, não levam votos prontos e escritos para as sessões, já que sequer conhecem os processos que vão julgar nessa qualidade – de vogais – também não fica consignada em ata. O resultado do julgamento se registra, mas as razões que porventura sustentaram determinada posição do vogal não ficam consignadas, de forma que, a única maneira de haver algum registro é o próprio Desembargador fazer a “declaração de voto”, quando for o caso, comprometendo-se na sessão a elaborá-la. O compromisso de redigir a declaração de voto, este sim, fica consignado na ata do julgamento. Nota-se, portanto, que não haver registro oficial das sessões de julgamento dos Tribunais é um obstáculo que pode resultar em verdadeira denegação da Justiça, trazendo conseqüências drásticas e até irremediáveis para as partes envolvidas em um processo. A oralidade se esvai nos julgamentos e não deixa rastros, por isso necessita ser complementada pela escritura. É característica das manifestações orais desaparecer tão logo seja pronunciada (ONG, 1998). A escrita, ao contrário, possibilita “o controle da informação e da memória” (ONG, 1998, p. 84) e possui a característica de ser intemporal (GOODY, 1988). No caso vivenciado por mim, surge, ainda, um outro aspecto para o qual Kant de Lima chama a atenção em “A antropologia da academia: quando os índios somos nós” (1997) e Paulo Gabriel Hilu (1999) também, ao trabalhar em sua pesquisa o papel da oralidade nas práticas acadêmicas: o de que a escrita e a literalidade têm um conteúdo universal, ao passo que a oralidade valoriza a informação particularizadamente acessada. Kant de Lima (1997, p. 49) menciona que: “o alcance da oralidade é mais limitado, o auditório mais seleto, privado e controlável”. A oralidade acaba proporcionando um conhecimento exclusivo àqueles que participam dos seus rituais, pois, “a palavra falada
agrupa os seres humanos de forma coesa [...] a escrita e a impressão isolam.”. (ONG, 1998, p. 88). Trata-se, o registro, de um mecanismo que vincularia o oral ao escrito e, a partir daí, imprimiria maior segurança às decisões dos Tribunais. Há quem defenda que gravar os atos processuais é inviável por ser custoso demais e que registrar tudo o que ocorre no processo gasta muito tempo. De fato, parece que tais entendimentos decorrem de traços inquisitoriais que ainda perduram na cultura jurídica brasileira. A resistência, até hoje, à publicidade absoluta dos atos processuais não é razoável quando comparada ao grau de desenvolvimento tecnológico a que a sociedade chegou. Imaginar que é custoso para um Tribunal do porte do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro implementar um sistema que permita o registro – ainda que seja em fitas de gravadores antigos – da dinâmica de uma sessão do Tribunal é estar por demais atrelado às tradições inquisitoriais do processo brasileiro. Fato é que - embora não seja nem caro, nem difícil – ao que parece, não faz parte dos planos estratégicos dos Tribunais difundir meios de registro dos atos processuais e das manifestações orais realizadas em audiências e julgamento. Ao menos, no caso do TJRJ, isso não é algo que está para ser executado. Uma demonstração clara dessa assertiva é o fato de o TJRJ ter acabado de construir a lâmina III do Tribunal, equipada com câmeras nos corredores para controlarem o movimento no prédio do foro; bem como com instrumentos altamente técnicos para a utilização de microfones de qualidade nas sessões, sem se cogitar a possibilidade de as câmeras gravarem as sessões e de o sistema de som instalado nas salas de julgamento destinar-se, também, à gravação dos debates e das sustentações dos advogados259. Na data da inauguração, estive no TJRJ conversando com alguns servidores. Perguntei à secretária de uma Câmara Cível que estava em sessão, se a mesa de som existente na sala – que não havia nas instalações antigas do Tribunal – era para gravar as sessões, sustentações e debates. Ela me contestou, dizendo: “É o primeiro dia de sessão nessa nova lâmina, não sei bem como as coisas funcionam, mas para gravar a sessão? Não é não. Com certeza não é. Eu nunca ouvi tratarem esse assunto aqui. Aquele aparelho deve ser só mesmo para a luz e o som, para os microfones dos Desembargadores.”.
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O valor gasto para a construção da lâmina III do TJRJ, amplamente divulgado pelo próprio Tribunal, montou a cerca de R$ 60 milhões. Nesses termos, o argumento de que o sistema de registro de atos processuais não é executado no Judiciário Fluminense por ser custoso não parece suficiente. Notícia que divulga o valor da obra, disponível no site do TJRJ: http://srv7.tj.rj.gov.br/publicador/exibirnoticia.do?acao=exibirnoticia&ultimasNoticias=1379.
Enquanto não se adotar ou se refletir sobre formas de registro do oral, ele representará apenas uma forma de manifestação ou de expressão verbal que, em vez de contribuir para a construção de uma verdade jurídica segura; instrumentalizará decisões desvirtuadas do contexto real do julgamento, trazendo danos às partes, às vezes irreversíveis. Há quem entenda que a publicidade dos atos processuais, incluindo-se sessões de julgamentos em Tribunais Recursais, resulta, negativamente, em espetáculo do Judiciário. Destaque-se, como exemplo, o discurso do Ministro Eros Grau, do STF, a respeito do tema260: “Os atos do Poder Judiciário e os atos do Supremo Tribunal Federal devem ser públicos, mas eles não podem ser transformados em espetáculo público. No exterior isso causa grande espanto. Estive recentemente em um encontro de juízes na França e em outro na Argentina. Eles simplesmente não conseguem entender como é possível que as sessões de julgamento sejam televisionadas. O juiz tem de ser olhado com recato. Isso não significa que ele tenha que fazer qualquer coisa que não seja pública. Ele tem que respeitar a sociedade, mas também tem que ser respeitado pela sociedade. Não acho que a transmissão de um julgamento inteiro seja uma boa coisa.”.
A idéia de denegar publicidade aos atos do Judiciário – ainda muito comum nas práticas judiciárias - sugere uma vinculação à tradição inquisitorial à qual o processo brasileiro está arraigado. O segredo é um dos pontos fulcrais característicos do sistema inquisitorial, de modo que, por mais que os juristas queiram identificar o processo brasileiro como acusatorial, as práticas e os rituais diariamente verificados nos Tribunais não permitem um total desprendimento das raízes inquisitoriais. O fato de não se poder registrar os atos públicos do Judiciário - como por exemplo, as audiências e julgamentos - obviamente decorre dessa tradição inquisitorial presente em nosso sistema até os dias atuais.
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Entrevista concedida pelo Ministro à Revista Consultor Jurídico em 26/04/2006, intitulada “Vozes do Supremo”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/43844,1.
Existe um princípio, o da publicidade, que rege o sistema processual, mas que, na prática, é notória e regularmente desconsiderado261-262. A publicidade dos atos processuais, malgrado seja uma garantia constitucional e processualmente assegurada (arts. 5º, LX e 93, IX, da CF/88 e art. 155 do CPC), na prática, é relativizada, dependendo, sempre, da interpretação dos magistrados sobre o que ofende, ou não, a intimidade ou o interesse social, expressões universalizantes previstas no art. 5º da CF (que trata dos direitos e garantias individuais), como restritivas da publicidade263. Segundo asseverei acima, o que ora ratifico, a importância de gravar as sessões está atrelada também à questão da segurança das decisões judiciais. O questionamento a respeito do conteúdo dos debates e das decisões proferidas pelos Tribunais colegiados é facilmente evitado no momento em que se gravam as sessões de julgamento264. 261
O vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Seccional Paulista da OAB, em 2005, o advogado David Teixeira de Azevedo, em sustentação oral realizada em um Mandado de Segurança, julgado pela 4ª Câmara Criminal Tribunal de Justiça de São Paulo, em que se discutia a possibilidade, ou não, de se gravar atos processuais públicos – no caso, tratava-se de uma audiência criminal, à qual um advogado havia comparecido de posse de um gravador que foi impedido de usar - criticou ferozmente a atuação dos Tribunais Brasileiros, mencionando práticas inquisitórias até hoje presentes; citando que “O Poder Judiciário sempre se confundiu historicamente com a divindade” e destacando diversas posturas que têm distanciado, cada vez mais, o Judiciário dos cidadãos. A respeito da gravação dos atos processuais em si, manifestou-se de forma bastante elucidativa e que se relaciona ao que aqui me propus a expor, destacando-se o seguinte trecho de sua defesa oral: “Digo aos senhores desembargadores: não é advogado que quer gravar audiência para “pegar” juiz, não se trata de nada disso não. O anseio do advogado, hoje em dia, em gravar uma ou outra audiência, especialmente as audiências complexas, reside principalmente na estenotipia. Estenotipia que antes era uma faculdade: “O advogado permite que seja feita a estenotipia?” O advogado permitia e ela era feita. Agora não adianta o advogado se opor. Ele tem de assinar o termo no escuro e confiar na verdadeira judicatura de um escrevente. Porque este último, na consignação das palavras, as faz do modo que quer, de boa ou má fé, confundindo termos e idéias. Na redação do termo, na redação da ata, no que de conteúdo eles terão, no que fizer o estenotipista é que estará a verdadeira judicatura.”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/34932,1 262 Recentemente, a Revista Consultor Jurídico, em 29/03/2006, divulgou o resultado do julgamento de um Mandado de Segurança (RMS 23.036/STF) em que se discutiu, justamente, a possibilidade, ou não, de se ter acesso a fitas e registros dos julgamentos realizados no Superior Tribunal Militar. O entendimento foi firmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que, ao analisar o pedido, concedeu a segurança permitindo o acesso às gravações. O STM, ao negar o acesso dos advogados às fitas, considerou que as gravações dos debates dos ministros e das sustentações orais não integram os processos e são de uso interno do tribunal e de acesso privativo, destinando-se à auxiliar internamente a elaboração dos acórdãos. O relator no Supremo, à época da impetração do Mandado de Segurança, negou provimento ao recurso, acolhendo a tese do STM. Ao retomar o julgamento, ainda não concluído, o atual relator, excluiu da análise a existência ou não de exercício da advocacia já que o “impetrante [advogado] não age como advogado e sim como pesquisador em busca de dados históricos para produção de obra que resgata a memória de trabalho judiciário”. Para o Ministro relator, o tema envolvia o direito à informação e não o direito de acesso dos registros pelo advogado. De toda sorte, o atual relator adentrou na discussão sobre o acesso de advogados às gravações dos julgamentos, prestigiando tal prática. Segundo ele, a atuação da TV Justiça é um bom exemplo do prestígio ao princípio constitucional da publicidade. Para o ministro, ao contrário do que pensam alguns juristas, a transmissão das sessões não fere a imagem dos ministros ou dos advogados que sustentam na tribuna, pois eles atuam com uma função pública. O inteiro do teor do Mandado de Segurança encontra-se disponível em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. 263 Art. 5º, LX, CF/88: “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.”. 264 A relevância disso é tamanha que, recentemente, em janeiro de 2007, o próprio Conselho Nacional de Justiça passou por um problema desagradável que, graças à existência de registro dos atos praticados em suas sessões
Outro fato – já mencionado, embora não pormenorizado, no princípio deste capítulo que merece ser descrito relativamente à ausência de registro dos atos processuais, diz respeito às técnicas da oratória e de manipulação da verdade. Sabe-se que, na ausência de registro, as pessoas sentem-se mais à vontade para induzir o julgamento e a construção da verdade, ainda que, para isso, tenham de omitir alguns fatos, subverter outros, enfatizar o que não está provado, enfim, convencer com palavras àqueles que terão o poder de decidir a causa, registrando, apenas em suas memórias, aquilo que lhes interessar. Em se tratando de julgamentos em Tribunais, a questão torna-se ainda mais complexa, pois os julgadores, nesses casos, conforme expliquei anteriormente, decidem - logo após as sustentações orais dos advogados - o recurso que lhes foi levado a julgamento, sofrendo influência direta da retórica, sem ter a oportunidade, sequer, de reflexão. Rinaldi (1999, p. 17) destaca a oratória como sendo um ofício visto pelo campo como um saber prático e especializado, capaz de “proporcionar reconhecimento quando através dela o orador consegue persuadir seus ouvintes”, tornando-se um instrumento de monopólio do poder de “dizer o Direito”; um produto “mágico” que brota das palavras daqueles que as proferem. Destacada a questão do prestígio que o “saber oral” - reproduzido através das técnicas da oratória – proporciona265, vale dizer que o poder de construir dados pela enunciação, isto é, de produzir verdades através da palavra, se constitui como algo “simbólico” 266 e, sendo assim,
administrativas, certamente será contornado. Um Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo teve de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (Ação Cautelar 1531/STF) para solicitar a cópia da fita que gravou uma reunião do CNJ em razão de dúvida surgida a respeito do exato teor de uma decisão tomada pelo Conselho durante a citada reunião. O Desembargador interpretou a decisão de forma distinta do relator da matéria que, em razão da dúvida, mencionou que o Desembargador teria levantado “grave aleivosia” ao afirmar que ele, relator, havia inserido no acórdão matéria não decidida na sessão. O desacordo sobre o que foi ou não decidido, efetivamente, na sessão do CNJ, só será superado porque as reuniões desse órgão são gravadas. Caso contrário, a palavra de um seria refutada pela do outro sem que se soubesse ao certo, sequer, qual fora o conteúdo e os termos da decisão. Matéria detalhada divulgada na Revista Consultor Jurídico, em 12 de janeiro de 2007, sob o título “Imbróglio do regimento: Desembargador de SP quer cópia da fita de sessão do CNJ”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/51838,1. 265 Excluo deste trabalho o estudo minucioso sobre as técnicas da retórica e da oratória porque, na minha pesquisa, estas questões, embora recorrentes, não são, diretamente, o foco principal. Sobre o tema, ver os estudos de Rinaldi (1999) e o livro, outrora mencionado, de Adelino Cattani, “Los usos de la retórica”. 266 Bourdieu, em “O poder simbólico” (1989, p. 14-15), descreve esta questão da seguinte forma: “[...] o pdoer simbólico como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo, e deste modo, a ação sobre o mundo, e portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força [...] entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se reproduz e se produz a crença o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou a de subverter é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.”.
é capaz de transformar mentiras em verdades ou verdades em mentiras; evidências em provas irrefutáveis e fatos inventados em fatos jurídicos. A oratória tem por fim, segundo descreve Rinaldi (1999, p. 29-30), a partir de sua interpretação do campo, “expressar versões construídas pelos próprios oficiantes.”. Ela narra parte do discurso de um advogado, no qual cita: “a prova é uma construção, assim como o discurso do júri”; podendo aqui, reportar-se tal idéia, facilmente, ao discurso dos Tribunais. O papel da oralidade, nessa seara, é fulcral, uma vez que, muito comumente, a argumentação oral distingue-se sobremaneira do que consta no processo escrito. Destarte, em se estruturando os Tribunais da forma que mencionei, a verdade recursal acaba por reproduzir uma lógica contraditória, já que os julgadores, em grau recursal, sob a influência direta e imediata da palavra, podem acabar concedendo mais valor ao que se diz da tribuna do que ao que consta nos autos, especialmente, pela falta de tempo que os assola e a impossibilidade de um tempo maior para análise e reflexão detalhada de forma a se poder comparar o que se ouviu com o que se comprovou, documentalmente, no decorrer do processo. Rinaldi (1999, p. 72) aponta em sua pesquisa que: “as ‘partes’, ao construírem seus argumentos nos julgamentos dizem estar fundamentando-os nas ‘provas dos autos’ e afirmam a importância do que consta no processo escrito [...] no entanto, na prática, essas ‘provas dos autos’, ou seja, o que está escrito (laudos, requerimentos, depoimentos) são pouco utilizadas. Há situações em que o orador chega a dizer que irá deixar o processo escrito de lado e passar aos fatos [...]”.
A escrita amplia as possibilidades de atividade crítica em relação à oralidade, já que permite a revisão do discurso independentemente da atividade da memória, possibilitando um exame mais minucioso do oral, a ponto de se poderem vislumbrar eventuais contradições e incoerências (PINTO, 1999). A posse de um registro escrito de manifestações orais permite que se reavalie, estude, reinterprete o oral (GOODY, 1988; OLSON; TORRANCE, 1995). Jack Goody (1988, p. 23) enuncia: “é certamente mais fácil perceber as contradições na escrita do que na fala, em parte porque é possível formalizar as proposições de um modo silogístico e, em parte, porque a escrita trava o fluxo da conversação oral, permitindo comparar enunciados emitidos em tempos e lugares diferentes.”. Logo, em diversas ocasiões - assim como Paulo Gabriel Hilu (1999, p. 82) ressalta a respeito do ensino universitário - também no Direito dos Tribunais “o acesso ao saber se dá
somente através do discurso do expositor”, que se torna a peça primordial no processo de convencimento do julgador. O oral e o escrito se complementam a todo o momento, de forma que, às vezes, não se sabe bem o que, de fato, importa: ora, o que está escrito é mais eficaz; ora, o que se diz é crucial. Nas práticas acadêmicas – com representações incrivelmente similares às judiciárias – Paulo Gabriel Hilu (1999, p. 92) também verificou essa transmutação do escrito em oral, de forma a demonstrar que, empiricamente, “o saber escrito é englobado e redimensionado pela oralidade”. Nos Tribunais, os advogados fazem, através do oral, com que a escrita, constante dos autos processuais seja remodelada de forma a lhes beneficiar. Jack Goody (1988, p. 100) resume a idéia descrevendo que ao ser passada para a forma escrita, a oralidade recebe simultaneamente uma maior estabilidade (registro); uma maior flexibilidade (advinda da possibilidade de reordenamento) e uma maior segurança (desnecessidade de se recorrer à memória a longo prazo). Nessa lógica intercalada, entre o oral e o escrito, a ausência de registro é, sem dúvida, um complicador. Segundo destaca Walter Ong (1998, p. 115): “De fato, a escrita foi, em certo sentido, inventada em boa medida para fazer coisas como registros.”. 12. Explicitação de um paradoxo: oralidade x duplo grau de jurisdição Desde 1972, Cappelletti destaca a ausência da imediação (um dos elementos essenciais da oralidade) nos colegiados como um aspecto negativo. Ele considera prejudicial a revisão da sentença de um Juiz por um órgão colegiado que analisa apenas escritos e atas para rejulgar, ao invés de ter – como, em geral, o juiz monocrático tem - o contacto imediato com as partes, testemunhas e peritos. Laspro (1995), na mesma esteira de Cappelletti, ressalta a ausência da identidade física do Juiz (também um dos elementos essenciais da oralidade) como um problema que se agrava no sistema colegiado, uma vez que, em casos tais, há uma cisão entre a produção das provas e a decisão e, citando Chiovenda, menciona a idéia de que, mesmo no colegiado, o ideal seria que todos os juízes participassem da produção das provas, o que, de fato, não ocorre. Apesar dessas considerações, constata-se que o duplo grau de jurisdição tem uma eficácia simbólica considerável. Existe uma representação social de que o colegiado dá mais segurança às decisões judiciais.
O duplo grau é tão prestigiado que - mesmo contribuindo para dilatar o prazo da prestação da tutela jurisdicional e, portanto, indo de encontro ao objetivo mais urgente do Judiciário, que é a celeridade – permanece fortemente enfatizado. Nessa esteira, Marinoni (1999) destaca que existe uma espécie de sacralização do duplo grau de jurisdição que, para sustentá-lo, acaba por retirar do Poder Judiciário até mesmo a oportunidade de imprimir rapidez aos processos, uma vez que, em nome desse princípio, toda a decisão é passível de reapreciação por um Tribunal. É recorrente, portanto, a concepção de que a finalidade do duplo grau de jurisdição é aumentar a probabilidade de acerto e de justiça nas decisões judiciais, de modo a privilegiar a sua concretização, havendo entendimentos dogmáticos que, inclusive, o erguem à categoria de garantia267. Nesse contexto, Leonardo Greco (2005, p. 306) destaca o pluralismo do Tribunal colegiado – consectário direto do duplo grau de jurisdição - como “uma importante garantia da qualidade das decisões judiciais, neutralizando os individualismos e reduzindo o risco de decisões arbitrárias.”. Em se tratando, o Direito, de um campo de luta interna (BOURDIEU, 1987), há espaço também para severas críticas ao princípio do duplo grau de jurisdição de forma a reconhecê-lo como paradoxal. As censuras decorrem do entendimento de que, na verdade, o duplo grau é um paradoxo, na medida em que, partindo de uma idéia hierárquica e excludente, desprestigia todo o trabalho realizado por um magistrado, em 1º grau de jurisdição, a fim de valorizar uma decisão colegiada a ser proferida por um Tribunal que, sequer, tem contacto com as partes e com as provas produzidas no processo que rejulgará. Entende-se que tal princípio incorpora a lógica de que o juiz de 1º grau não merece confiança – ainda que tenha tido aproximação com as partes e com a prova - e, por isso, as suas decisões não tem validade, o que contradiz o sistema processual tal como articulado. Marinoni, nessa trilha, assevera: “Na realidade, se o juiz que preside a instrução tem contato direto com as partes e profere uma decisão que, para produzir efeitos, necessariamente tem que passar pelo crivo de um colegiado, o juiz singular não é propriamente um julgador, porém mais precisamente um instrutor. A sua decisão pode ser vista, no máximo, como um projeto da única e verdadeira decisão, que é a do tribunal.”. 267
Há discussão doutrinária acirrada a respeito de se o duplo grau de jurisdição é ou não é uma garantia constitucional e, portanto, se deve ser sempre observado na administração da justiça ou não, isto é, se pode ser relativizado. Sobre o tema, ver: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. V, 10. ed., 2002; ALVIM; NERY JÚNIOR, WAMBIER (2000) e GRECO (2005).
(MARINONI, 1999, p. 221)
A incompatibilidade do princípio da oralidade com o duplo grau de jurisdição – nos termos em que o sistema está estruturado - é patente e se verifica a partir do momento em que aquela se fundamenta na imediatidade e na identidade física do juiz; e este, não. Ao revés, o duplo grau internaliza uma forma peculiar de manifestação oral, em que só há participação dos operadores internos do campo, sem produção de provas e sem contacto físico com fatos ou dados articulados na fase probatória do processo. Nesse sentido, parece incoerente falar-se em oralidade e em duplo grau de jurisdição. Aliás, Laspro (1995, p. 132) ressalta que: “a efetivação da oralidade, perante o sistema do duplo grau de jurisdição, merece bastante atenção, na medida em que surgem sérias dificuldades, senão uma incompatibilidade de sistemas.” Com efeito, nos termos postos pela dogmática, os princípios são incongruentes, o que, aliás, é reconhecido pelo próprio campo – tanto empiricamente 268, quanto a partir de vozes isoladas da doutrina – consoante refletem as manifestações a seguir destacadas: “O sistema processual em vigor, portanto, se por um lado procura garantir a oralidade e seus consectários lógicos, a fim de que profira a sentença o julgador que participou do processo e teve contato direto com as provas, de outro possibilita que essa decisão seja substituída por uma decisão cujo prolator não teve nenhum contato com a produção das provas e que julga, portanto, com base na documentação dos atos processuais. Podemos concluir, então, que o procedimento em segundo grau é um procedimento escrito. Destarte, no sistema processual brasileiro, afasta-se com o duplo grau a grande vantagem do sistema oral que é a valorização da percepção do julgador, que, em contato direto com as partes e com a produção de provas, tem melhores condições de extrair a verdade dos fatos.”. (LASPRO, 1995, p. 133)269
268
Em matéria veiculada na Revista Consultor Jurídico, intitulada “Justiça humana: para julgar não basta a lei é preciso reflexão”, em 01/10/2006, discutiu-se, exatamente, o aparente paradoxo, aqui explicitado, que envolve o sistema processual. Diz a matéria: “Ao julgar um caso de família o juiz de primeira instância quase passa a fazer parte da família. Antes de dar uma decisão, ele debruça-se sobre os detalhes do caso, conhece as pessoas, seu modo de vida, suas posses e suas carências. Depois de muito estudo ela dá a sentença e então a parte recorre e o caso vai para o Tribunal de Justiça, onde um desembargador, que não tem nenhuma afinidade com a situação, vai ter de analisar os fatos. Casos como esse, que ajudam a tornar a Justiça mais lenta e ineficiente, são muito freqüentes e costumam exasperar o desembargador Carlos Teixeira Leite Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “A não ser que haja alguma questão de Direito, e isso é raro acontecer, tem de prevalecer nestes casos a decisão do juiz de primeira instância, que conversou com as partes e tem os elementos concretos para saber realmente o que é justo [...]”. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/48801,1 269 A idéia oposta de verdade e mentira não pode prevalecer no campo do Direito porque neste o que há são versões distintas para o mesmo fato. A idéia de mentira supõe que existe uma verdade em algum lugar a ser desvendada, quando, em realidade, não há. A verdade processual é a versão que o Juiz escolhe na hora de decidir.
“[...] se o julgador tem contacto direto com as partes e a prova, e isso lhe permite formar um ‘juízo’ mais preciso sobre os fatos, não há como se imaginar que um colegiado composto por juízes que não participaram da instrução possa estar em condições mais favoráveis para apreciar o mérito. A necessidade de um duplo juízo sobre o mérito simplesmente anula a principal vantagem da oralidade.”. (MARINONI, 1999, p. 211).
“A prova oral permite que o julgador sinta ‘epidermicamente’ a sensação do momento, os vacilos dos depoimentos, a insegurança das testemunhas, as reações das partes, ao contrário do que ocorre quando da apreciação da prova pelo segundo grau, em que se agrava a dificuldade desse sentimento.”. (Decisão proferida pelo Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, 2ª Câmara Cível, nos autos da Apelação Cível 196.032.916, julgada em 25/04/96. Desembargador Relator: Carlos Alberto Bencke) 270 “Eu, particularmente, acho muito melhor, no julgamento de recursos, em que os Juízes não estiveram presentes em uma audiência, ouvir o que foi dito na audiência, da maneira como foi dito, com todos os suspiros e falhas e hesitações da pessoa, do que ler um texto anotado ou então às vezes digitado pelo juiz, que coloca aquilo num discurso indireto e às vezes perde algum detalhe que seja interessante para o deslinde da causa [...] é um ganho enorme você poder levar às Cortes Superiores, a qualquer juiz e a qualquer pessoa que tenha que trabalhar com aquele processo, aquilo que realmente aconteceu na audiência. Isso é muito melhor do que apenas ler. O Juiz, só de passar para o discurso indireto, ele perde coisas.”. (Entrevista formal concedida por uma Juíza Federal que coordena Juizados Especiais Eletrônicos)
Várias foram as críticas feitas – nesse contexto (oralidade x duplo grau) à inserção da oralidade no processo civil através do advento do CPC de 1939. Cunha Barreto (1938, p. 205), citando o Ministro Arthur Ribeiro, crítico ferrenho da transformação do sistema escrito em oral, ressalta - ao tratar da incongruência da existência de um sistema oral em 1ª instância e de um outro sistema, recursal, que, embora também oral, reproduz e privilegia uma outra lógica, que, por sua vez, anula e desconsidera a anterior – o seguinte: “Ou se aproveita o serviço feito na primeira instância para julgamento na segunda, ou se renova nesta tudo quanto se fez na primeira. Aceitando-se a primeira solução, além do princípio da identidade física do juiz, cujo desaparecimento é corolário da 270
Disponível em: www.tj.rs.gov.br
dualidade das instâncias, vão de roldão os princípios essenciais do sistema. No segundo, achando-se o tribunal de segunda instância longe do local do feito, das partes, das testemunhas, senão também do objeto do litígio, a impraticabilidade do princípio oral é indiscutível.”.
A oralidade se destina a permitir um contacto maior entre o juiz e as partes, testemunhas, advogados, bem como aproximá-lo da coleta da prova. O duplo grau de jurisdição, ao contrário, desconhece a instrução processual, destinando-se, simplesmente, a assegurar a reapreciação da causa por um tribunal colegiado, o que se dá – como explicitei – pela análise escrita do processo conjugada à eventual manifestação oral dos advogados no dia da sessão de julgamento. O duplo grau, ao preponderar o escrito sobre o oral, caracteriza-se como estando mais distante da realidade. A escrita é entendida, historicamente, como uma forma de comunicação desligada do contexto real. No pensamento tradicional, “palavras, idéias e realidade estão intrinsecamente ligadas [...].”. (GOODY, 1988; ONG, 1998). Logo, como harmonizar essas duas antagônicas propostas? Como se viu, em análise aos rituais recursais, a causa não é depurada, discutida a fundo e oriunda de um processo de reflexão e diálogo entre os julgadores. Nesse sentido, a pesquisa sugere que a cognição da 1ª instância é até um pouco mais eficaz, pois o juiz monocrático ao menos tem como função ouvir as partes e colher pessoalmente as provas. 271 Para quê serve, então, o duplo grau? O colegiado acaba funcionando apenas como instância revisora hierárquica e burocraticamente superior à 1ª, julgando apenas a decisão do juiz e não a causa em si272. Esse fato revela os Tribunais como órgãos estruturados com base, simplesmente, no poder e na hierarquia, pois, ainda que o conhecimento dos fatos pelo juiz de 1º grau seja maior; que o contacto com a prova seja maior e que a possibilidade de proferir uma decisão mais justa seja maior; é a decisão dos Tribunais que vale mais. O duplo grau, nesse sentido, acaba por se destinar a, simplesmente, reforçar a hierarquia fortemente estabelecida na estrutura dos Tribunais. 13. A verdade recursal 271
Mesmo que também haja sérios problemas com a oralidade em 1º grau de jurisdição, é inquestionável que o contacto do juiz monocrático com o processo e com a prova é bem maior do que o do tribunal. 272 Embora, na prática, o foco das decisões do tribunal seja a sentença do juiz, não é isso o que determina a Lei. Quando um processo é encaminhado ao tribunal, este deve analisar todas as questões de fato e de direito que tenham sido suscitadas na causa, mesmo aquelas anteriores à sentença (art. 516 do CPC).
O intuito foi descrever, neste capítulo, as práticas adotadas pelas instâncias recursais e, com isso, identificar a verdade que se constrói a partir de tais rituais. Nota-se que a idéia dogmática de oralidade não aparece nesses rituais, uma vez que as partes deles sequer fazem parte. A verdade que se reproduz é oriunda dos próprios operadores que, quando podem, de forma irresponsável, manipulam-na. Os julgadores, muitas vezes, desconhecem o processo que vão julgar e, mesmo assim, reformam as decisões adotadas pelos Juízes de 1ª instância – que, de alguma forma, tiveram um contacto maior com as partes e com as provas. Utilizando-se da verdade construída na 1ª instância processual, os julgadores das instâncias recursais ou a recriam ou a transformam ou, mesmo, a anulam; formando outra verdade, surgida a partir de distintas lógicas. Os resultados dos julgamentos colegiados não se dão por consenso e o diálogo, também nessa fase processual, é desconsiderado; de forma que os resquícios de oralidade que se verificam em grau recursal não se destinam a integrar as partes; ao revés, as afastam, deixando-as entregues, inteiramente, aos operadores do campo, que, representando-as, por elas responde. Segundo ressalta Leonardo Greco (2005, p. 298-299), em “A falência do sistema de recursos”, os Tribunais imprimem cada vez mais mecanismos para emperrar o processo e não deixar as partes recorrerem, tentando atingir uma rápida prestação jurisdicional, sem lograr êxito, pois: “Os tribunais, congestionados com o excesso de recursos, proferem julgamentos de qualidade sempre pior, porque não dão vazão à quantidade. Não têm mais tempo para examinar as alegações e provas dos autos e de discuti-las colegiadamente. Julgam processos, presumivelmente iguais, em pilhas. Não têm mais paciência para ouvir os advogados. Não têm mais tempo, sequer, para ouvir os relatórios e votos dos seus próprios membros. O próprio STF naufraga nessa avalanche.”
A oralidade se manifesta de maneira peculiar no processo civil brasileiro, em especial, nos recursos. Embora tratada como fundamental para que se atinja uma decisão justa, na prática, acaba por ser desconsiderada, mesmo nos momentos em que, aparentemente, se materializa.
De nada adianta os advogados poderem falar, sem serem ouvidos; de nada adianta permitir a fala dos advogados, se ela pode ser manipulada por fatores externos; de nada adianta serem três magistrados a julgar o recurso, se só um deles conhece e lê o processo; de nada adianta serem três magistrados a julgar se nenhum dos três desejar construir uma decisão consensual; de nada adianta haver debate, se nada ficar registrado; de nada adianta transferir a reapreciação dos fatos para uma instância superior se os juízes desta instância não tiverem contacto nenhum com a prova que constitui o fundamento do processo e com as partes nele envolvidas; de nada adianta julgar rápido, se não houver cautela e eficiência; de nada adianta permitir a interposição de recursos, se, na prática, adotam-se mecanismos para impedir o seu julgamento, em nome de formalidades inventadas; enfim, não adianta prever na Lei a existência de uma garantia que não se efetivará. A lei, definitivamente, não se realiza por si só. A lógica mesclada do oral e do escrito é reafirmada nessa análise, de forma que os memoriais exemplificam essa concepção. Uma contrariedade do sistema que o campo aponta e que tentei explicitar neste capítulo, diz respeito à anulação, pela instância recursal, da maioria dos atos realizados na instância processual anterior. Isto é, verifica-se pelos rituais descritos, que aquilo que a 1ª instância demora, às vezes, anos para formular, através de audiências, oitiva de testemunhas, análise de documentos etc.; é, em poucos minutos, praticamente desconstruído na fase recursal. Obviamente, que cabe aos julgadores decidir se vão ou não confirmar a verdade formada na 1ª instância processual, pois, querendo, podem denegar o recurso e reafirmar a sentença do Juiz, mas, reformando a decisão, o que o Tribunal faz é, nada mais nada menos, do que anular a verdade anteriormente firmada. E o que me parece que mais chama a atenção é o fato de isto ocorrer, simplesmente, numa sessão de julgamento onde mais de 100 (cem) processos são julgados em 4 (quatro) horas. Por derradeiro, vale dizer que, tal como estruturado o sistema, prepondera, na seara recursal, a lógica escrita, tendo em vista que os seus rituais obscurecem a oralidade sempre que podem em função da necessidade de imprimir celeridade à prestação jurisdicional. Nesse contexto, transcrevo a opinião de um advogado que corrobora a assertiva: “O que vale nos Tribunais é o papel. E o pergaminho vai ficando cada vez mais velho e mofado à proporção que o processo caminha nos graus de jurisdição. De nada adianta a sustentação oral dos advogados porque o mais importante na justiça é o papel. Julgam-se papéis.”.
CONCLUSÃO O CAMINHO DA VERDADE VIA ORALIDADE: LÓGICAS PROCESSUAIS EXCLUDENTES Ao traçar o caminho do processo civil, com algumas de suas bifurcações, desvios, curvas e obstáculos, espero ter atingido o objetivo de descrever as práticas judiciárias de forma a explicitar as incongruências do sistema judicial brasileiro. Fundamentalmente, creio que a principal questão que envolve o tema da oralidade, nesse contexto, diz respeito à constatação de que neste sistema não há processo consensual de formação da verdade jurídica, pois, nas palavras de Kant de Lima (2004-a): “os fatos descritos não são construídos pelo acordo sistemático entre as partes litigantes, mas são fruto das representações obrigatoriamente contraditórias delas, registradas nos autos através das interpretações que as autoridades judiciárias fazem a partir da perspectiva dos participantes – operadores jurídicos, partes ou testemunhas – quando reduzem a termo os atos processuais. Assim, sempre uma tese (oposição) perde e outra ganha: não pode haver consenso.” (KANT DE LIMA, 2004-a, p. 14)
Além disso, a estrutura processual vigente, em que o trâmite predominantemente escrito da 1ª instância é, em certas circunstâncias, totalmente desqualificado pelos procedimentos das instâncias recursais, cria verdades jurídicas sobrepostas, perpetuando a lógica do contraditório 273 internamente. Nesse sentido, além do contraditório das partes, Oportuno ratificar que o sistema processual brasileiro é contraditório e não adversarial. Quer dizer, as lógicas que o reproduzem são necessariamente opostas e excludentes, pois, apenas uma pode prevalecer. Aliás, a título de mera reflexão, o nome é bastante sugestivo. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda, as palavras significam: “contraditório: diz-se de duas proposições tais que uma afirma o que a outra nega. Adversário: que luta contra.”. 273
que digladiam as suas versões no curso do processo, o nosso sistema estabelece o contraditório das verdades construídas pelos magistrados nas decisões judiciais proferidas nos distintos graus de jurisdição. Em algumas ocasiões, a verdade produzida na instância recursal coincide com a verdade da 1ª instância processual, e, nesses casos, a sentença proferida pelo Juiz monocrático é mantida pelo Tribunal; todavia, há casos em que o Tribunal reforma a decisão do Juiz singular e, assim, contradiz toda a versão formulada no 1º grau de jurisdição, afastando a verdade ali construída e, por conseguinte, formulando outra, que se manterá firme, provisoriamente, até que a instância imediatamente superior não a modifique. Essa sistemática produz um “contraditório de verdades jurídicas” e, nesse sentido, torna legítima a possibilidade de o processo ser estruturado segundo lógicas, concomitante e infinitamente, distintas e excludentes. O que marca esse contraditório interno ao campo e estabelece a verdade processual prevalecente é a hierarquia. Quer dizer, a verdade do Juiz singular de 1ª instância é, necessariamente, reavaliada pelo Tribunal de 2ª instância, que pode mantê-la ou afastá-la por completo. Sendo que, para manter ou afastar a verdade construída na instância hierarquicamente inferior, o Tribunal utilizará lógica absolutamente distinta. A verdade da 1ª instância é construída de uma forma predominantemente escrita, embora o Juiz, ainda que em raras ocasiões, tenha mecanismos que possibilitam o seu contacto físico com as partes e com as provas. Já a verdade da instância recursal, ainda que também seja produzida de forma prioritariamente escrita, sofre uma influência crucial e definitiva do oral, nos momentos em que ele se faz presente, já que, no curso do julgamento é possível aos magistrados prolatar uma decisão que se consubstancie exclusivamente naquilo que se produziu verbalmente na sessão, mesmo que o órgão colegiado, diferentemente do juiz singular, sequer conheça as partes, que são totalmente descartadas nesta fase, bem como não tenha tido qualquer contacto imediato com as provas produzidas nos autos. Assim, por um lado, o procedimento na seara recursal não valoriza o contacto físico com a realidade que rejulga; e, por outro, o procedimento de 1ª instância, embora predominantemente escrito, prioriza esse contacto físico do julgador com as partes e com as provas. A lógica escrita da 1ª instância está mesclada com rasgos de oralidade e, por sua vez, a lógica oral das instâncias recursais, na verdade, sofre influência profunda dos
escritos elaborados na 1ª fase processual. Ou seja, os escritos do 1º momento do processo não são totalmente escritos e o oral do 2º momento não é totalmente oral, uma vez que considera, para reavaliar o julgamento, tudo o que consta, por escrito, nos autos processuais. Assim, mais uma vez, citando Kant de Lima (2004-a), os dados da pesquisa apontam que o sistema judicial brasileiro: “se organiza de maneira a sobrepor distintos sistemas de produção da verdade jurídica, que obedecem a princípios distintos e, portanto, desqualificam mutuamente seus produtos, as verdades judiciárias neles produzidas [...]
Assim
sendo, em cada etapa do processo judicial pode ser reconhecida uma verdade diferente da anterior.”.
O sistema judicial é um “mosaico de sistemas de verdade” e estes diferentes sistemas ou regimes de verdade coexistem e convivem entre si, sendo que as suas lógicas são distintas e, em sendo usadas – como, de fato, são – alternativa e alternadamente, criam, ao serem aplicadas na prática, paradoxos que não são reconhecidos pelo campo, pois este não percebe que está lidando com formas de administração de conflitos que, por serem contraditórias, se anulam e se “desqualificam”. (KANT DE LIMA, 1996; AMORIM, KANT DE LIMA, BURGOS, 2003). Segundo explicitei no decorrer deste trabalho, em questão de minutos as instâncias recursais desconstroem uma verdade que pode ter levado anos para ser formada na 1ª instância processual. Ou seja, ao se sustentar em lógicas distintas e em procedimentos judiciários hierarquizados, o sistema processual brasileiro incentiva a competição interna pela “melhor verdade” (contraditório interno) e acaba produzindo uma progressiva desqualificação de um ritual sobre o outro, que, como antes asseverado, não tende a ter solução consensual, uma vez que as diferentes verdades são produzidas de acordo com diferentes processos, todos legítimos diante do próprio sistema. (KANT DE LIMA, 1996). As distintas verdades produzidas nas instâncias processuais, entremeadas entre escritura e oralidade, fazem com que o sistema perca legitimidade perante a sociedade e, ademais, o alto grau de subjetividade expressado na legislação e nas práticas judiciárias permite que situações idênticas tenham representações e soluções distintas, dependendo da pessoa que pleiteia; do Juiz que aplica a norma; e da fase em que se encontra o processo.
A minha hipótese inicial era de que a oralidade poderia viabilizar uma verdade consensual no processo. Ela seria um instrumento que possibilitaria a constituição de uma verdade jurídica legitimada pelo diálogo. Entretanto, em campo, os dados mostraram a inexistência do diálogo, a total ausência de incentivo ao consenso e a reprodução de uma lógica contraditória que regula o sistema interna e externamente. O diálogo requer um reconhecimento mútuo em vez de afirmar categoricamente a superioridade de uma parte sobre a outra. Nesse sentido, em uma sociedade hierárquica e desigual como a brasileira é, de fato, complexo igualar as partes num processo judicial que, obviamente, internaliza essa hierarquia e essa desigualdade, sendo certo que não há nada mais revelador da intimidade de uma sociedade que um processo (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2003). Em diversos momentos explicitados no decorrer da pesquisa, tentei demonstrar que, no curso do processo civil, o oral remodela o escrito e o escrito remodela o oral. Nos Tribunais, por exemplo, a oratória da tribuna e dos memoriais faz com que os advogados, utilizando-se do oral, dêem nova forma ao que consta por escrito nos autos, assim como, por outro lado, os Juízes, quando reduzem depoimentos a termo, por via escrita remodelam o oral, dando àquele o tom que melhor convém às técnicas processuais. O escrito redimensiona o oral e é essa interdependência entre a oralidade e a escritura que permite esse entrelace no processo (SANDERS, 1995). Nesse sentido, o processo civil brasileiro se apresenta predominantemente de forma escrita e, mesmo os rasgos de oralidade que perduram na legislação são, empiricamente, por força dos rituais, tolhidos e, em sendo assim, a administração dos conflitos é imposta à sociedade, através da decisão judicial, de modo que, em não sendo legitimada pelos interessados, o conflito é devolvido do Judiciário para a própria sociedade, em vez de ser solucionado (KANT DE LIMA, AMORIM, BURGOS, 2003). A ausência de comunicação é característica de sistemas jurídicos que abrigam procedimentos inquisitoriais e de “consensualização minimizada”, inexistindo, por conseguinte, uma ética discursiva no campo do Direito (AMORIM, KANT DE LIMA, BURGOS, 2003). Diferentemente do que se infere no modelo da common law, onde a “oralidade, a explicitação e a literalidade” são a força condutora do processo, aqui no Brasil as partes são excluídas da discussão do conflito que lhes diz respeito (KANT DE LIMA, 1996). A verdade é, pois, fruto da interpretação do julgador a respeito dos fatos que a ele chegam em forma de versões contraditórias.
Garapon (1997, p. 213-214) chama a atenção para a necessidade cada vez mais premente de participação ativa dos cidadãos na administração dos conflitos sociais: “a justiça deve esforçar-se em criar novas maneiras mais dialogadas e participativas para garantir a ordem social [...] é o uso público da palavra que hoje é exigido. É certamente o sujeito político, o cidadão, que é solicitado e não o indivíduo. E isso só é possível na condição de reconhecê-lo como autor de uma palavra própria, capaz de ser dita, de promover convenções [...]”.
Um outro aspecto da pesquisa que me despertou a atenção e que, certamente, só foi perceptível porque eu fui, literalmente, a campo - uma vez que estas constatações não nos são apontadas em livros - foi a nítida ausência de reflexão dos operadores do Direito sobre o exercício de sua própria atividade. Os Juízes e advogados que entrevistei demonstravam nunca terem pensado sobre questões óbvias para o aprimoramento da prestação jurisdicional, como, por exemplo, a possibilidade de os atos processuais serem gravados, em vez de reduzidos a termo. Pareceu-me que esses operadores do campo realizam a sua profissão de forma tão mecânica e burocrática que acabam por não se permitir enxergar e questionar os seus próprios rituais. Talvez esta seja, inclusive, a principal razão para as práticas judiciárias serem naturalizadas e, por conseguinte, ofuscadas e reproduzidas impensada e automaticamente. Oportuno ressaltar, ainda, que o conteúdo deste trabalho representa o universo específico do meu campo, não sendo a minha pretensão generalizar condutas ou reconhecer as práticas judiciárias aqui descritas como o pensamento uniforme de todos os setores do Judiciário. Os dados que expus são representativos e específicos da minha pesquisa, realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o que significa que os exemplos e os fatos por mim narrados são apenas parte de um conjunto de rituais praticados naquele Tribunal. A contribuição acadêmica que eu tentei fornecer com esta pesquisa foi aflorar situações práticas do Direito que estão encobertas pelo fenômeno da “naturalização”, que nos impede de visualizar os problemas que obstaculizam a prestação jurisdicional pretendida pela sociedade. A solução não é o escopo deste trabalho. A realidade empírica foi o meu ponto de partida e é o meu ponto de chegada. Tenho a sensibilidade – despertada pela pesquisa - de que enquanto a aplicação dos preceitos jurídicos permanecer atrelada a uma estrutura judicial hierárquica, haverá uma enorme discrepância entre a aplicação eqüitativa dos princípios do Direito e a realidade
seletiva e elitista da ação judiciária (KANT DE LIMA, 1995; DAMATTA, 1979). E mais, enquanto o Direito se utilizar dos seus próprios mecanismos teóricos para buscar o aprimoramento do seu sistema, as mudanças não se efetivarão. Ao chegar ao final deste trabalho, faço minhas as palavras de Maria Stella de Amorim, Roberto Kant de Lima e Regina Lúcia Teixeira Mendes (2005), que resumem com precisão o que eu, pessoalmente, almejei – e internalizei - ao dialogar com a antropologia: “[...] a explicitação deste e de outros paradoxos poderia contribuir, tanto para que reformas e mudanças legais acrescentassem maior qualidade e racionalidade ao Direito, como para que houvesse a democratização da sociedade brasileira. Na medida em que fossem conhecidos e explicitados tais paradoxos, ficariam delimitadas as fronteiras entre o direito idealizado e o direito possível, abrindo-se um canal para que relações mais próximas entre o Judiciário e a sociedade fossem estabelecidas, bem como permitissem a socialização e a internalização de regras consensualizadas entre o direito, os tribunais e a sociedade civil. Entretanto, esta meta ainda parece estar distante para os brasileiros, que já se acostumaram a “naturalizar” a separação abissal existente entre a sociedade civil e o campo do direito no Brasil [...]”.
Por derradeiro, revelo uma sensação que eu tinha quando iniciei a pesquisa e que acabou por ser constada no campo. Parece-me que o ideal do “dever-ser” incorporado pelo Direito como um dogma, causa certo torpor filosófico e ético no campo que acaba angustiando, inquietando e, eventualmente, até mesmo amargurando alguns de seus operadores. A proposta que motivou do início ao fim este trabalho foi revelar os obscuros e, eventualmente, os óbvios que circundam o sistema judicial brasileiro e que não são explicitados pelo campo do Direito. E para quê? Para tentar permitir a reflexão e o eventual aprimoramento da estrutura Judiciária. Aprendi, durante o mestrado, que enxergar as práticas é a melhor forma de repensá--las, e que o Direito não faz isso. O Direito, ao revés, assumindo a idéia de que a verdade jurídica é transcendente, internaliza a concepção de que as soluções também o são e, portanto, em algum momento serão reveladas magicamente. Ocorre que, de fato, as soluções do Judiciário não serão reveladas se os próprios operadores do campo não se utilizarem de outros (novos) mecanismos para, ao menos, refletirem sobre a sua atividade e, com isso, aprimorá-las.
O princípio da oralidade poderia ser um instrumento eficaz a proporcionar uma nova forma de administração dos conflitos pelo Judiciário, legitimada pelo consenso, mas, por enquanto, por mais paradoxal que possa parecer, a oralidade está restrita aos papéis impressos nos manuais da dogmática.
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