1 VII Reunião de Antropologia Mercosul - VII RAM GT 34 - Políticas públicas e antropologia nas áreas de Direitos Humanos y Segurança Pública Coordenadoras: Lana Lage da Gama Lima e Maria Victoria Pita Porto Alegre – 23 a 26 de julho de 2007 Política Pública e Cultura: as delegacias especializadas de atendimento à mulher∗ Lana Lage da Gama Lima (NEEV/UENF, ISP, Brasil) lana.lage@terra.com.br lanalage@isp.rj.gov.br Introdução Este trabalho se insere no cruzamento de duas áreas de conhecimento: a Antropologia e a História, mais especificamente, a História Cultural, que importou formas de abordagem e temas desenvolvidos pelos antropólogos, mas preservou, ainda que com fronteiras sutis, um certo olhar próprio dos historiadores, em que a preocupação com a diacronia é marcante. A questão em pauta é a implantação de uma política pública de gênero na área de segurança – as Delegacias Especializadas de Atendimentos à Mulher – no Estado do Rio de Janeiro, a partir de 1986. A análise de políticas públicas tem despertado o interesse de várias Ciências Sociais, além da Ciência Política, área em que o tema é tradicionalmente localizado. No campo da Antropologia, tem sido uma das preocupações da Antropologia Política. Como afirma Miranda: A principal contribuição da Antropologia tem sido no sentido de ampliar o entendimento dos modos como as regras de controle social são definidas pelos diferentes grupos, pela forma como expressam os conflitos e as maneiras pelas quais esses conflitos são administrados. . Essa abordagem, calcada no método etnográfico, permite descrever e analisar as “interações sociais, que se constituem a partir da implantação de uma política pública”, sem deixar de lado a dimensão subjetiva dessas ações (Miranda, 2005: 3-4). Ora, esse caminho não é desconhecido pela História. Basta pensarmos na obra Os Reis Taumaturgos, de Marc Bloch, um dos fundadores da École das Annales, movimento historiográfico que esteve na origem do que hoje chamamos História Cultural (BURKE,
∗
Essa pesquisa integra o Sub-projeto “Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher: uma análise de suas práticas de administração de conflitos”, vinculado ao Projeto Sistemas de Justiça Criminal e Segurança Pública em uma perspectiva comparada: administração de conflitos e construção de verdades, coordenado por Roberto Kant de Lima, em desenvolvimento com recursos do CNPq (PRONEX) e FINEP. Participaram da pesquisa: Leonardo Mendes Barbosa, Marcella Beraldo, Paula de Carvalho Neves e Sabrina Souza Silva.
2 Peter:1991). Escrito em 1924, o livro analisa a capacidade dos reis da França e da Inglaterra de curar, pelo simples toque, os enfermos de escrófulas. Essa operação mágica se repetiu, regularmente e revestida de formalidades rituais, entre os séculos XI e XIX, e constituiu, como soube demonstrar Marc Bloch, uma das formas do exercício do poder real naqueles dois países. Como ele próprio explica: No
transcurso
dessa
investigação
tratamos
de
esclarecer
as
representações coletivas e as ambições individuais que, mesclando-se numa espécie de complexo psicológico, levaram os reis da França e da Inglaterra a reivindicar o poder taumatúrgico e aos povos reconhecê-lo. (BLOCH, 1988: 371) A cuidadosa descrição dos rituais, possível graças à existência de fontes escritas minuciosas, não fica a dever diante da etnografia apresentada por um antropólogo, após a pesquisa de campo. É, portanto, a partir de perspectivas pertinentes aos dois campos do saber – História e Antropologia – que abordo a implantação e desenvolvimento das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, que continuam a ser, até o presente, a mais significativa política pública destinada ao combate à violência de gênero.
A pesquisa A pesquisa foi realizada no período de outubro de 2005 a novembro de 2006 no âmbito do Instituto de Segurança Pública - ISP, instituição vinculada à Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro criada em dezembro de 1999, para planejar, avaliar e implementar políticas públicas de segurança e auxiliar a Secretaria de Segurança Pública no planejamento e execução de ações no estado do Rio de Janeiro. A partir de 2007, a pesquisa passou a integrar um projeto mais abrangente, intitulado Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher: uma análise de suas práticas de administração de conflitos, vinculado ao Projeto Sistemas de Justiça Criminal e Segurança Pública em uma perspectiva comparada: administração de conflitos e construção de verdades, coordenado por Roberto Kant de Lima e em desenvolvimento com recursos do CNPq (PRONEX) e FINEP. As informações utilizadas para a elaboração desta comunicação foram levantadas a partir de pesquisa histórica desenvolvida na Biblioteca Nacional em exemplares do Jornal do Brasil, dos meses de junho, julho e agosto do ano de 1986,e de entrevistas semi-estruturadas com autoridades que atuaram na criação, implantação e administração da primeira DEAM do Estado do Rio de Janeiro, hoje denominada DEAM-Centro. As
3 informações obtidas foram complementadas com a leitura de uma bibliografia específica e sites da internet relacionados à temática. Além metodologia própria da História, foi realizada pesquisa etnográfica, mediante em trabalho de campo na DEAM - Centro entre os meses de março e maio de 2006.
A implantação da primeira DEAM no Rio de Janeiro As delegacias especializadas no atendimento à mulher vítima de violência constituem uma política pública originalmente brasileira, implantada, em meados da década de 1980, como resposta do poder público às reivindicações do movimento feminista no Brasil. Nilo Batista, a quem coube, na qualidade de Secretário de Polícia Civil, implantar, em 1986, a primeira unidade no estado do Rio de Janeiro, nos moldes da Delegacia de Defesa da Mulher, que havia sido instalada em São Paulo, no ano anterior, no governo Franco Montoro, afirma que a criação da delegacia era uma demanda unânime de todos os grupos que compunham o movimento feminista, sobrepondo-se às divergências que existiam entre eles. Reconhece, assim, que a criação desse serviço não nasceu como uma política pública elaborada pelos quadros de governo e sim pelo movimento social, afirmando: : “...como havia uma unanimidade ali eu achei que deveria seguir a opinião”. 1 Aliás, Nilo Batista,advogado conceituado e, na época presidente da OAB, foi convidado para assumir o cargo, num momento de crise do governo, exatamente por sua conhecida articulação com os movimentos sociais e pela sua atuação na defesa dos direitos humanos. Assim, apesar de ser pessoalmente ser contrário à essa política2, sua nomeação facilitou as negociações com o movimento de mulheres, como afirmou Diva Múcio3, uma das principais líderes da campanha em prol da delegacia: “Foi mais fácil o diálogo com o Nilo Batista, nós já o conhecíamos há muito tempo, todas nós já éramos praticamente amigas dele, mas a pressão foi muito forte...” A formulação da delegacia especializada no atendimento à mulher vítima de violência implicou na incorporação, pelo movimento feminista brasileiro, de conceitos surgidos no âmbito do movimento feminista internacional. O principal deles foi o de
1
Nilo Batista -Entrevista em 03 de maio de 2006. Em entrevista Nilo Batista esclarece que por si só, não tomaria essa iniciativa, por entender que a pena pública no Brasil é fundada “em uma conjuntura de poder punitivo doméstico senhorial, que permaneceu no século XIX por causa do escravismo. Esse poder incluía, além dos escravos, os filhos e as mulheres, e ele reconhece que seus vestígios permanecem, como “uma manifestação tardia e disfuncional de um poder punitivo ilegítimo, porque sobrevieram diversas alterações legislativas que tiraram a mulher do patamar de semi-capacidade jurídica que ela ainda tinha na primeira metade do século XX...”, mas considera “uma contradição você querer resolver uma questão do poder punitivo com mais poder punitivo”. 3 Diva MúcioTeixeira – Entrevista em 26 de junho de 2006. 2
4 "violência contra a mulher", conceito derivado do conceito de “gênero” e também do conceito de “direitos humanos das mulheres”. Esse conceito deveria ser incorporado pelo Sistema de Justiça Criminal brasileiro, no qual estaria inserida a nova delegacia que se especializaria no atendimento das vítimas de determinados delitos, embora atuando de forma concorrente com outras delegacias e não exclusiva. O conceito de gênero foi forjado na década de 70 pelas feministas norteamericanas e, ao rejeitar o determinismo biológico para as diferenças sociais entre homens e mulheres, para inseri-las no campo da cultura e da história, constituiu um marco decisivo na luta pela emancipação feminina. Entendido por Joan Scott como “elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primeira se significar as relações de poder”, no dizer de Joan Scott (SCOTT:1990), o conceito de gênero foi base da formulação do conceito de ‘violência contra a mulher’, entendida como violência de gênero, isto é, como atos violentos cometido contra as mulheres, com base e motivados pelas desigualdades verificadas nas relações sociais entre homens e mulheres, entendidas como relações de gênero. Na mesma época, o conceito de direitos humanos foi base para o aparecimento de uma categoria distinta – direitos humanos das mulheres - , que implicava na crítica à concepção original dos direitos humanos, por partir de um paradigma masculino para sua definição, deixando de fora necessidades específicas das mulheres. A Declaração da ONU dos anos entre 1976 e 1985 como a Década das Nações Unidas para as Mulheres: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, provocou uma série de eventos
e
debates
em
que
os
direitos
das
mulheres
foram
conceituados
internacionalmente. No Brasil dos anos 80, a defesa dos direitos humanos ocupou a cena política, por força do processo de redemocratização pós-ditadura militar, incluindo a discussão sobre os direitos das mulheres como direitos humanos. Nesse contexto, o Brasil ratificou, em fevereiro de 1984, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela ONU em dezembro de 1979 (CERQUEIRA:2001, 9). No Rio de Janeiro, a chegada de Leonel Brizola ao cargo máximo do poder executivo estadual, um ano antes, significara uma mudança radical frente às prioridades da agenda política do governo anterior. Brizola iniciou o seu governo com um plano de ação política que privilegiava o diálogo com os movimentos de defesa dos negros, dos indígenas e das mulheres visando trazer o povo ao cerne da atividade política. Duas áreas de trabalho se
5 destacaram em seu governo, adquirindo marcas próprias e provocando polêmicas: a educação e a segurança pública. Na primeira, o Programa Especial de Educação, idealizado por Darcy Ribeiro, então vice-governador, criava uma nova escola, cujo emblema foram os Centros Integrados de Educação Pública -CIEP. O impacto visual dos CIEP era proposital, pois suas linhas futuristas, obra de Oscar Niemeyer, apontavam para um novo modelo educacional, que visava sobretudo à inclusão social. Na segunda, o comando do Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, Secretário de Polícia Milita, procurava reformar a polícia, orientando sua ação pelo respeito aos direitos humanos, contando nessa árdua tarefa com a colaboração do Coronel Jorge da Silva, nomeado Chefe do Estado Maior. O fato - inédito na história da corporação - do comando da Polícia Militar ter sido entregue a dois oficiais negros aliado ao empenho para mudar as práticas cotidianas arraigadas na polícia, ainda orientadas pela Doutrina de Segurança Nacional, herdada da ditadura, provocou forte resistência institucional e ásperas críticas dos setores mais conservadores da sociedade (NOBRE). Nilo Batista procura definir o eixo da política de segurança do governo Brizola do seguinte modo:
Leonel Brizola foi alguém que percebeu antes do que qualquer outro homem público, e de uma maneira mais aguda, do que qualquer outra pessoa, não só homem público mas acadêmico, a natureza política das opressões penais e ele tinha isto. Então...se eu tivesse que definir a nossa política de segurança pública, hoje eu teria essa metáfora da redução de danos, ou seja, reduzir os danos que são causados pela intervenção policial sobre a pobreza urbana e sobre as ilegalidades populares, foi um pouco isso, foi o que nós tentamos4.
A institucionalização do tema dos direitos humanos na pauta do governo ocorreu também com a criação do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, em abril de 1983, presidido pelo próprio governador ou, na sua ausência, pelo Secretário de Justiça, Vivaldo Barbosa (HOLLANDA, 2005). Dentro do Conselho, foram criadas comissões especiais, para tratar de questões e setores específicos da sociedade, entre os quais a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, instalada em 1985. Vinculado a essa comissão, passava a funcionar um Plantão 4
Nilo Batista - Entrevista em 03 de maio de 2006.
6 de Assistência Jurídica, que dava orientação para mulheres, destacando-se os casos de violência e questões familiares. Nesse mesmo ano ainda seria criado, no âmbito da polícia civil, pelo então secretário Arnaldo Campana, o Centro Policial de Atendimento à Mulher – CEPAM, que se configuraria como um avanço na luta do movimento de mulheres pela DEAM, pois, apesar de não ter se constituído como uma delegacia especializada, encaminhava os registros ali realizados para as delegacias distritais. conforme aponta a Delegada Martha Rocha5 Nessa conjuntura, nacional e internacional, é que foi implantada a primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher no Estado do Rio de Janeiro, hoje denominada DEAM – Centro.
No ano seguinte à sua criação, foi instituído o Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro – CEDIM, com o objetivo de assessorar, formular e fomentar políticas públicas voltadas para a valorização e a promoção feminina. Após a criação da primeira DEAM outras oito Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM) foram implantadas no estado do Rio de Janeiro: as unidades de Niterói (1986); Duque de Caxias (1987); Nova Iguaçu (1990); Campo Grande (1991); São Gonçalo (1997); Jacarepaguá (2001); Belford Roxo (2001) e Volta Redonda (2002).
Os Direitos Humanos das Mulheres
Como aconteceu com suas congêneres em outras unidades da federação, a implantação da delegacia da mulher trouxe para dentro do Sistema de Justiça Criminal do Estado do Rio de Janeiro os conceitos forjados pelo movimento feminista. Foi preciso, então, que seus operadores incorporassem esses conceitos, sobretudo na polícia civil. A incorporação desses conceitos e sua transposição para práticas cotidianas de atendimento e investigação não constituíram tarefa fácil, como mostram os depoimentos das ex-delegadas que atuaram nessa unidade. O conceito de violência contra a mulher implicava a criminalização de velhas práticas, oriundas do “poder punitivo doméstico senhorial”, como denominou Nilo Batista, vindo de encontro ao modelo de família patriarcal ainda vigente nas representações de família na cultura brasileira. E, apesar da historiografia já ter apontado que esse modelo não dá conta das estruturas familiares do passado colonial brasileiro e nem mesmo das condições de vida das mulheres naquela época, ele permanece como referência para as relações de gênero e, portanto, como modelo de relações de poder (LIMA:2006). Uma leitura menos preconceituosa de autores 5
Martha Rocha – Entrevista em 23 de maio de 2006.
7 considerados referências para o estudo da família no período colonial, como Gilberto Freyre, Antônio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda, mostra que, ao enfatizarem o papel da família patriarcal na sociedade colonial estavam mais preocupados com as relações de poder do que com a estrutura patriarcal (Vainfas:1989). Ancorado num passado idealizado, o modelo de família patriarcal, ao incluir – como modelo de relações de poder - a submissão feminina, desempenha, ainda hoje, importante papel nas relações de gênero, legitimando pela tradição situações de desigualdade e de dominação entre homens e mulheres e inclusive os crimes de honra, citados por Gilberto Freyre (LIMA: 2006, 201).
Freyre, ao se referir que o modelo, extraído do estilo de vida das minorias dominantes, se estendeu por toda a sociedade, afirma, na sua prosa inconfundível:
Expressão nítida desse familismo nos parece a generalização, no Brasil patriarcal – hoje a desintegrar-se – tanto entre gente moradora de casa de pedra e cal como entre moradores de casa de taipa, de barro e de palha, Istoé, entre todas ou quase todas as camadas da população, do sentimento de honrado homem com relação à mulher (esposa ou companheira) e às filhas moças. Sentimento a que se devem numerosos crimes (Freyre:1975,p.65).
Entre os quais aquele cometido por Doca Street, ao assassinar Ângela Diniz e que deflagrou a campanha “Quem ama na mata”, que se constituiu numa forma de pressão do movimento feminista, da qual resultou a condenação do réu, que havia sido absolvido em primeira instância, fato que esteve na base das reivindicações por uma delegacia especializada para o atendimento de crimes contra a mulher. Assim, a absorção dos conceitos que alicerçavam o movimento feminista pelos policiais que iriam trabalhar nas delegacias especializadas exigia deles a crítica de sua própria visão de mundo, incluindo as representações das relações entre homens e mulheres, e os valores aí implicados. Essa questão
se evidencia na Antropologia e na História Cultural: como se
posicionar frente às diferenças culturais, tendo como referência nossa própria cultura quando se trata de práticas e valores que se chocam com a cultura dos direitos humanos, cada vez mais enfatizada, ao menos no discurso, nas democracias ocidentais?
8 A pergunta, tanto pode ser feita aos protagonistas sociais de momentos de marcante mudança de paradigmas culturais, como foram as décadas de 60 a 80, como aos antropólogos e historiadores da cultura quando estudam aspectos da própria cultura. Não por acaso, o debate sobre os limites da tolerância para com moralidades diferentes ou mesmo contrárias, marcou as décadas de 60 e 70, e as etnografias, sobretudo relacionadas às temáticas de gênero, alimentaram os movimentos sociais com suas críticas antinaturalistas., já que a cultura dos direitos humanos “propõe a defesa dos direitos individuais, com a garantia de proteção cultural e moral a certos grupos mais vulneráveis” (Diniz, 2001: 35), entre eles as mulheres. Daniela Cordovil Corrêa dos Santos chama a atenção para o fato de que os direitos humanos são um conjunto de normas de direito internacional, e como tal, formalizados principalmente por tratados, cujos princípios os países signatários se comprometem a efetivar, mediante legislação própria, a despeito de suas diferenças culturais. E, assim, problematiza a adoção dessas categorias, sobretudos em países periféricos como o Brasil, enfatizando que as políticas de direitos humanos não se desenvolvem numa arena internacional inteiramente democrática. ”As diferenças de poder entre os países ricos do Ocidente, exportadores da cultura dos direitos humanos, pode fazer com que sua defesa alimente uma nova forma de colonialismo sobre os países ditos periféricos, e que os ativistas, organismos internacionais, organizações não governamentais, e outros atores dessa rede internacional acabem por “defender interesses que talvez não sejam os mais importantes para aqueles que têm seus direitos violados nesses países” (Santos, 2003:26). Para Rosinaldo Silva de Sousa, no entanto, a categoria direitos humanos, a despeito de sua origem, tem sido utilizada com sucesso como meio de luta por direitos pelas minorias sociais e esse fato deve impossibilitar uma “leitura simplista” dessa cultura como mais um instrumento de dominação do Ocidente (SOUSA, 71). Essa é portanto, uma discussão que deve estar presente quando se analisam políticas públicas ancoradas na categoria direitos humanos, da qual derivou o conceito de direitos humanos das mulheres, que sustentou a implantação das delegacias especializadas no atendimento das vítimas da violência de gênero. Como também deve ser levado em conta que o pesquisador brasileiro da atualidade isto é, após a “invasão” da cultura dos direitos humanos no Brasil, incluindo os direitos humanos das mulheres, partilha, ao mesmo tempo e em certa medida, tanto dos valores culturais que conformam
9 as duas categorias direitos humanos, quanto dos valores culturais que essas categorias colocam em xeque e pretendem transformar, o que exige um constante exercício de discernimento e de crítica de si mesmo. Essa mesma dificuldade se coloca para aqueles profissionais que foram recrutados para trabalhar nas DEAM do Rio de Janeiro, sobretudo para aqueles que não estiveram engajados na luta pela sua criação, como foi o caso de algumas de suas delegadas, que até hoje militam na defesa dos direitos da mulher, mesmo atuando em outras unidades policiais. Assim, a pesquisa de campo mostrou que muitos policiais dessa delegacia especializada utilizavam categorias nascidas do modelo patriarcal de família e das representações das relações entre homens e mulheres derivadas desse modelo, para qualificar os atores e a dinâmica dos casos que atendiam. Comparando os resultados da pesquisa de campo realizada entre outubro de 2005 e novembro de 2006, com os resultados de outra, realizada por Elaine Reis Brandão entre 1995 e 1996 também em uma DEAM do Rio de Janeiro (BRANDÃO:1998), podemos perceber que muitas práticas observadas dez anos antes continuam a se verificar, espelhando maneiras de pensar e preconceitos que denotam a não incorporação dos conceitos e valores que configuram os direitos humanos das mulheres. Entre outras práticas, pudemos observar a persistência de uma desqualificação, no meio policial, do trabalho realizado nas DEAM. No jargão policial, esse tipo de ocorrência criminal ainda é classificado depreciativamente como “feijoada”, isto é, como delito sem importância, o que, conseqüentemente, desqualifica também os que trabalham com eles. Por outro lado, a representação do trabalho policial como um trabalho masculino, caracterizado pela possibilidade de atirar e matar, tem também como conseqüência a desqualificação das atividades desenvolvidas na DEAM, por serem consideradas mais um trabalho feminino, ou assistencial , do que propriamente policial. Essa pouca valorização, que , desde os primeiros tempos de sua criação, se refletiram nos poucos recursos alocados na DEAM - Centro, problema que persiste ainda hoje também em outras unidades. A persistências de práticas informadas por antigas representações de gênero se verifica também nas formas de avaliar e classificar as vítimas, que são reduzidas a dois grupos, as sem vergonha, descaradas, que gostam de apanhar, e as pobres coitadas, submissas. Essa dicotomia simplificadora reflete o universo simbólico das representações de gênero na civilização cristã ocidental, em que se sobressaem os símbolos de Eva e Maria (LIMA: 2007).
10 Com relação aos acusados também são usados critérios estereotipados, valorizando os que são considerados trabalhadores e bons provedores, o que se dá a partir de dados como suas atividades profissionais e mesmo o traje com que se apresentam ou outros estereótipos usados pela polícia em seu trabalho de vigilância (KANT: 1995). Em suma, podemos concluir as falhas apontadas no atendimento prestado hoje pelas DEAM, verificadas por usuárias, pesquisadores ou mesmo por alguns operadores; bem como as dificuldades enfrentadas por aqueles que participaram e se engajaram no seu processo de criação, derivam, em grande parte, do fato de que os conceitos construídos pelo movimento feminista, em nível internacional e nacional, que serviram de justificativa e base para sua implantação não foram ainda totalmente assimilados por todos aqueles que foram ou são responsáveis pela execução dessa política pública de gênero, no nível político ou no nível operacional. Portanto, a eficácia desse serviço policial e da rede de atendimento que o complementa depende do êxito que o movimento de mulheres tiver na arena pública e na absorção pelo Sistema de Justiça Criminal e Segurança Pública brasileiro das categorias que configuram os direitos humanos das mulheres. Recentes vitórias no âmbito do Legislativo, como a Lei 11.340 ou Maria da Penha, e no âmbito do Judiciário, como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, determinados por essa lei, apontam um futuro de muitas lutas, mas promissor, para os direitos humanos das mulheres no Brasil. BIBLIOGRAFIA BLOCH, Marc - Los Reyes Taumaturgos. México: Fondo de Cultura Económica, 1988. BRANDÃO, Elaine Reis - Violência conjugal e o recurso feminino à polícia. In: Bruschini, Cristina e Holanda, Heloisa Buarque de (orgs.) – Horizontes Plurais. Novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo:FCC – São Paulo:Editora 34, 1998. BURKE, Peter – A Escola dos Annales. 1929 – 1989. A Revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1991. CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth – Polícia e Gênero. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 2001. DINIZ, Débora – Antropologia e os limites dos direitos humanos: o dilema moral de TASHI. In: KANT de LIMA, Roberto e NOVAES, Regina (orgs) - Antropologia e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: EdUFF, 2001. FREYRE, Gilberto – Casa-grande e Senzala. 17ª edição. Rio de Janeiro: José |Olympio, 1975. HOLLANDA, Cristina Buarque. Polícia e Direitos Humanos: política de segurança pública no primeiro governo Brizola (Rio de Janeiro: 1983 – 1986). Rio de Janeiro: Revan, 2005.
11 KANT DE LIMA, Roberto - A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Seus Dilemas e Paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995. LIMA, Lana Lage da Gama - Penitentes e solicitantes: gênero, etnia e poder no Brasil colonial in: Silva, Gilvan Ventura; Nader, Maria Beatriz e Franco, Sebastião Pimentel (orgs) Memória, Mulher e Poder, Vitória: EDUFES, 2006 ______________________ - As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no Rio de Janeiro: uma análise de suas práticas de administração de conflitos.In: Nader, Maria Beatriz e LIMA, Lana Lage da Gama - Família, Mulher e Violência, Vitória, EDUFES, 2007. MIRANDA, Ana Paula Mendes de et alii – Antropologia e Políticas Públicas: notas sobre a avaliação do trabalho policial em Delegacias Legais, 2005. NOBRE, Carlos - Coronel Nazareth Cerqueira: um exemplo de ascensão negra na Polícia Militar do Rio de Janeiro - bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/nobre.rtf. Acesso em 17 de julho de 2007. SANTOS, Daniela Cordovil Corrêa. Antropologia e Direitos Humanos no Brasil. In: KANT de LIMA, Roberto (org) - Antropologia e Direitos Humanos 2. Rio de Janeiro: EdUFF, 2001. SOUSA, Rosinaldo Silva de . Direitos Humanos através da história recente de uma perspectiva antropológica. In: KANT de LIMA, Roberto e NOVAES, Regina (orgs) - Antropologia e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: EdUFF, 2001.
SCOTT, Joan – Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Tradução de Christine Dabat e Maria Betânia Ávila. Recife:SOS Corpo, 1990. VAINFAS, Ronaldo – Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro:Graal, 1989.
ENTREVISTAS Nilo Batista: 03 de maio de 2006 Teresa Pezza: 19 de maio de 2006 Martha Rocha: 23 de maio de 2006 Catarina Noble: 24 de maio de 2006 Inamara Pereira da Costa: 25 de maio de 2006 Maricyr Praça: 31 de maio de 2006 Diva MúcioTeixeira: 26 de junho de 2006 Leila Linhares Basterd: 04 de julho de 2006