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Dégradés pós-industriais no Porto Oriental — upgrades, degradações, reconversões, demolições e outras soluções Inês Moreira

Arquiteta e investigadora em Pós-Doutoramento na NOVA/FCSH. Coordenadora do Cluster «Curating the Contemporary: on Architectures, Territories and Networks» inexmoreira@gmail.com

Pastiche. Desenho a caneta. Patrícia Azevedo Santos, 2020.

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As transformações advindas da desindustrialização trouxeram forte impacto às cidades que cresceram com a indústria. As pujantes chaminés improdutivas passam a pontificar o abandono, as fachadas das fábricas deixam de simbolizar o poder económico, as sólidas arquiteturas tornam-se desagradáveis testemunhos de falência. Com reflexos socioeconómicos e culturais, os desmantelamentos aceleraram a degradação trazendo necessidade de revitalização económica, social, espacial e, também, de ressignificação do imaginário coletivo. Hoje, como se reinventam?

Olha-se para os espaços pós-industriais do Porto Oriental, cidade burguesa, mas pouco afirmativa da sua herança industrial, ensaiando um dégradé de diferentes estados, apontando projetos arquitetónicos sonantes a par de outros contidos, ocupações anónimas, alguns locais em risco e demolições recentes, considerando também olhares artísticos sobre o edificado industrial. Longe de soluções sistémicas para esta questão, no Porto a pós-industrialidade arquitetónica reinventa-se em gradações de interesse (ou desinteresse) que, por ora, têm sido pouquíssimo atentas a questões patrimoniais.

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Interrupção, após a indústria

temunhos instáveis da passagem do tempo e da viragem de ideias e mentalidades. Regenerar ou revitalizar o existente é um processo lento. Move-se por novos interesses económicos que mobilizem investimento privado ou, então, carece de sensibilidade e reconhecimento do interesse cultural e social do edificado, justificando a inscrição nas preocupações públicas sobre cidade e arquitetura que conduzam ao investimento público. Entre ambos os catalisadores, economia e cultura, existe um leque de possibilidades de intervenção, que incluem o restauro e reabilitação, diversos modos de reconversão, a demolição de qualquer vestígio industrial (com reserva das resistentes chaminés de tijolo), e outra ocupação temporária. Junta-se o panorama de arruinamento progressivo que, a seu modo, vai exibindo tanto a passagem do tempo como a ausência de planos.

pobreza daqueles que aí estavam estabelecidos, ou daqueles que se lhes juntaram nos bairros sociais construídos na segunda metade do século xx. Tanto o auge da industrialização como a queda do fenómeno industrial trouxeram o estigma de pertença — primeiro, confuso, insalubre e ruidoso, depois, abandonado, perigoso e pobre. O desafio é regenerar e revitalizar a zona, ganhar estabilidade e criar infraestrutura, fixar pessoas e atividades, ressignificando os estigmas. O eixo Bonfim/Campanhã está a passar por processos de transformação apenas comparáveis àqueles que lhes deram vida nos inícios da industrialização. Com a pressão imobiliária sobre o centro e a sobrecarga dos fenómenos turísticos na zona histórica, as zonas orientais adquiriram novo relevo, seja na reconversão do edificado e dos tecidos económicos e sociais, seja pelo terreno entendido como livre e reutilizável para novos usos. As mudanças ocorrem pela tentativa de consolidação dos tecidos económicos e sociais, seja pelo espaço/terreno entendido como livre e reconvertível para novos usos, com dinâmicas atratoras distintas daquelas dos centros urbanos. O motor das reconversões são atividades várias — além das estritamente turísticas —, como o armazenamento e a venda a retalho e, progressivamente, os escritórios de arquitetura e engenharia, galerias de arte, lofts para artistas e criativos, estúdios de som. O processo de transformação é, contudo, lento e disperso, não sendo comparável à velocidade dos processos de regeneração e gentrificação em curso em Marvila/Xabregas/Beato, em Lisboa. Relativamente ao edificado, veremos que, no Porto e cidades adjacentes, não existe qualquer edificado industrial classificado como património de interesse público ou Monumento Nacional, que salvaguarde a sua integridade. Veremos também que, à exceção da reconversão do quarteirão da Real

Encarar as cidades e os territórios enquanto extensões de sistemas produtivos de extração, transformação, produção e distribuição permite compreender o edificado industrial enquanto nós em redes complexas1: as fábricas, os armazéns, as centrais de energia, as redes de transporte, os bairros operários, as oficinas, os armazéns comerciais, etc., são partes integrantes de redes tecno-culturais e socioeconómicas que ativam e definem os territórios, as cidades, os bairros. Interromper as redes tecno-culturais e socioeconómicas traz repercussões a todo o território, às comunidades que neles habitam e, importa aqui, aos ciclos de vida do edificado que as estruturam e fazem funcionar. As sociedades ditas pós-industriais apostam na desmaterialização, nos serviços, no digital e no trabalho intelectual, dispensando dos centros urbanos as matérias-primas, as máquinas e as mercadorias, que ficam à distância, noutros continentes. O desmantelamento das redes e atividades produtivas nas cidades, seja por decisão de gestão urbanística e/ou como consequência da falência económica, traduz-se em edifícios, terrenos, casas, oficinas e espaços que, vazios, são poderosos testemunhos do que foi a presença tecnológica e material das indústrias, oferecendo metáforas visuais apocalípticas sobre a passagem do tempo. As cidades e zonas pós-industriais descartam máquinas e suspendem edifícios, criando assentamentos em lenta oxidação, ou, quando justificado, em rápida demolição para novos planos e funções (ainda que vários não saiam do papel). Improdutivas, as pujantes chaminés passam a pontificar o abandono, as fachadas das fábricas deixam de ostentar o poder económico e as sólidas arquiteturas tornam-se tes-

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The wrong side of town, Porto Oriental O binómio Ocidente/Oriente das cidades europeias industrializadas diz-nos que a ocidente cresceu a cidade burguesa da abundância, dos palacetes, parques e jardins, enquanto a oriente se instalou o sistema de produção com as fábricas, infraestruturas viárias e de energia, a habitação operária e outras estruturas de apoio. Assim o demonstram Porto e Lisboa, ainda que a ocidente também existisse indústria, como em Alcântara ou ao longo da Boavista, e a oriente existissem também palacetes, conventos e jardins como no Beato e no Freixo. O lado oriental do Porto tem sido o wrong side of town. É consensual que a zona Leste foi epicentro do crescimento industrial e hoje é a zona pós-industrial. A desindustrialização exponenciou a latência dos problemas sociais, desemprego e

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Mapa com a localização dos edifícios do Open House 2018. Dedicado à Arquitetura Industrial, abriu cerca de 65 edifícios nas cidades de Matosinhos, Porto e Gaia, revelando a rede de produção, seja em funcionamento, em reconversão ou em abandono. Curadores: Inês Moreira e João Paulo Rapagão. Organização: Casa da Arquitectura. https://2018. openhouseporto.com.

Vinícola, em Matosinhos (2017), ainda não existem casos concretos de reconversão movidos pelo interesse cultural e arquitetónico do edifício ou do conjunto. Também por este motivo nos parece pertinente listar os dégradés de intervenção, considerando a degradação e a demolição, pois fazem parte dos processos em curso.

Levantamentos, leituras e visitas às arquiteturas Compreender como o quotidiano dos edifícios industriais do Porto vai mudando é um processo empírico para o qual são possíveis múltiplas abordagens e metodologias de observação. Dos estudos urbanos à antropologia, da economia à história, da sociologia à arqueologia, do património à fotografia, ou mesmo ao jornalismo e às revistas de tendências, são diversos os processos e as motivações que ativam os olhares. A leitura em dégradé que aqui se ensaia assenta no cruzamento de três tipos de leitura/levantamento realizados nos últimos dois anos (2018 e 2019) a propósito de três programas culturais e editoriais que nos foram encomendados por três instituições — a Casa da Arquitectura (com os Municípios do Porto, Matosinhos e Maia), o Jornal Arquitectos (da Ordem dos Arquitectos), e o programa de pensamento crítico Plaka, do Município do Porto. As motivações da arquitetura, do urbanismo, do pensamento crítico e, mesmo, as práticas artísticas contemporâneas são diversas pelo que, na sua intersecção, oferecem diversos recortes e leituras sobre a cidade contemporânea e o edificado industrial na atualidade. Considerar a condição pós-industrial da arquitetura é, necessariamente, uma leitura distinta daquelas mais específicas ao património, pelo que se clarifica

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Porto Oriental

Seleção Inês Moreira Textos AA Alexandra Areia, CMM Carlos Machado e Moura, IM Inês Moreira, IO Ivo Oliveira

Mapeamento em 2018

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 Mapeamento do Porto Oriental 2018, coordenado por Inês Moreira, com a colaboração de Alexandra Areia, Carlos Machado e Moura e Ivo Oliveira e publicado no Jornal Arquitectos #257 com o tema Epicentros Pós-Industriais: um futuro a Oriente editado por Inês Moreira e Paula Melâneo. http://www.jornalarquitectos. pt/pt/jornal/epicentros-pos-industriais.

Matadouro Matadouro Industrial Industrial do do Porto Porto Parque Oriental da Cidade Parque Oriental da Cidade do do Porto Porto Terminal Terminal Intermodal Intermodal de de Campanhã Campanhã Ponte Ponte D. D. António António Francisco Francisco dos dos Santos Santos Ilha Ilha da da Bela Bela Vista Vista Ilha Ilha da da Rua Rua das das Antas Antas Bairro Bairro do do Lagarteiro Lagarteiro Quinta Quinta de de Baixo Baixo

9 Miraflor Miraflor — — Galerias Galerias ee Lofts Lofts 10 Blip Blip Web Web Engineers Engineers 11 A400 A400 — — Engenharia Engenharia 12 B+B B+B Arquitectos Arquitectos 13 Garcia Garcia ee Albuquerque Albuquerque Arquitectos Arquitectos 14 Iperforma Iperforma — — Arquitectura Arquitectura ee Engenharia Engenharia

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15 Metro Metro Nasoni Nasoni ++ Metro Metro Nau Nau Vitoria Vitoria 16 Avenida 25 de Abril + Hospital Avenida 25 de Abril + Hospital Privado Privado de Campanhã de Campanhã 17 Reservatórios de Água + Jardins de Nova Sintra Reservatórios de Água + Jardins de Nova Sintra 18 Cace Cultural do Freixo Cace Cultural do Freixo 19 Palácio do Freixo + Moagens Harmonia Palácio do Freixo + Moagens Harmonia 20 Quiosque do Piorio Quiosque do Piorio 21 Linhas e túneis ferroviários Linhas e túneis ferroviários 22 Antigas indústrias e oficinas Antigas indústrias e oficinas 23 Ruínas da Central Elétrica do Freixo Ruínas da Central Eléctrica do Freixo 24 Encostas do rio Douro Encostas do rio Douro 25 Companhia Portuguesa do Cobre [demolição] Companhia Portuguesa do Cobre [demolição] 26 Quarteirão da Garagem Ford Quarteirão da Garagem Ford

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em seguida o enquadramento, objetivo e metodologia empregue nos três mapeamentos/leituras. O programa Open House Porto 20182 (co-curadoria Inês Moreira e João Paulo Rapagão) dedicou-se à divulgação e promoção de edifícios de arquitetura e de equipamentos industriais em três cidades — Porto, Matosinhos e Gaia —, tendo sido especialmente criada uma nova categoria funcional, «Indústria e Pós-Industrial», a propósito da seleção proposta. Revelar locais usualmente encerrados com critérios seletivos de qualidade espacial e arquitetónica implica a generosidade para abertura pelos seus proprietários. Na seleção de 2018, a par da segurança das visitas públicas, acrescia o cumprimento da higiene e segurança na produção industrial, critérios que apertam e estreitam a amplitude do espectro, apontando para espaços particularmente estáveis, seguros, e que ostentam com orgulho a sua arquitetura e desenho. Uma leitura macro do conjunto das obras (de arquitetura e de «arte» de engenharia) incluídas no Open House Porto 2018 revela características específicas dos processos em curso na região: o Porto, desindustrializado, alberga reconversões de fábricas, armazéns e oficinas em novas funções e pequenos espaços, existindo ainda pequenos mesteres e ofícios ativos no centro, enquanto os grandes edifícios e complexos industriais já quase desapareceram ou se encontram em estado de profunda degradação. Em Matosinhos laboram ainda grandes indústrias3, a par de inúmeras empresas que convertem edifícios para os seus novos programas, como a Lionesa ou as antigas conserveiras em Matosinhos Sul, onde também se situa a única reconversão/restauro de edifício industrial nestas cidades por iniciativa pública, o quarteirão da Real Vinícola (Casa da Arquitectura e Orquestra Jazz Matosinhos). A cidade de Gaia ostenta grandes infraestruturas (pontes, torre) que apoiam o desenvolvimento da região e pontua-se de requalificações de Caves de Vinho do Porto e reconversões de caves e armazéns para o crescente turismo. Ante as características das três cidades, o OHP18 reuniu edifícios ainda em uso original, outros reconvertidos através de projetos de desenho assinalável — nomeadamente para serviços, cultura e hotelaria —, abre-se um par de exemplares com valor histórico, arquitetónico e cultural em estado de grande carência — exemplos: a Fábrica de Chumbo de Caça (Ribeira) e a Cooperativa dos Pedreiros do Porto. Curiosamente, neste levantamento, a zona oriental do Porto é pouco representada, o que se deve sobretudo a questões de falta de segurança e estabilidade. Destacam-se com brilho próprio o Palácio do Freixo/Moagens Harmonia e um interessante conjunto de escritórios de arquitetura, engenharia e galerias de arte, que detalharemos na listagem — Iperforma, A400, Blip Web Engineers, Espaço Mira e Mira Fórum.

O Mapeamento do Porto Oriental4 é um levantamento editorial realizado para o Jornal Arquitectos #257 que foi dedicado aos «Epicentros Pós-Industriais» das cidades portuguesas e cobriu Porto, Lisboa, Guimarães, Covilhã e Caldas da Rainha. O mapeamento encadeia escalas e estratégias da transformação, relacionando reconversões de armazéns, garagens e pequenas fábricas por privados, que também veremos abaixo, com os planos públicos para a zona. Fazem parte da estratégia para a zona: o novo parque oriental da cidade, a futura plataforma intermodal de transportes públicos, a futura ponte sobre o rio Douro e as existentes infraestruturas do metro — com o projeto arquitetónico que servirá de «âncora» de desenvolvimento — a reconversão do Matadouro Municipal em polo cultural e empresarial, na versão do projeto de Kengo Kuma e OODA. Por entre estes futuros planos mantém-se no estado próximo do original um edifício industrial de propriedade municipal apropriado desde 2001 para cultura e empreendedorismo, o Cace Cultural do Freixo, onde também se instala a companhia Circolando. O mapeamento arquitetónico aponta ainda complexos icónicos que estão arruinados: a Central Termoeléctrica do Freixo, o quarteirão da Garagem Ford, e a recentemente demolida Companhia do Cobre. Junta-se-lhes a ambígua extensão territorial ao longo do rio, entre propriedades privadas e zonas públicas, com túneis de serviço, linhas de comboio, viadutos e as encostas abandonadas. Um terceiro tipo de levantamento e iniciativas que tem permitido progressivamente mapear o instável território oriental, mais precisamente a zona do Freixo, é o conjunto de cursos avançados e encontros com convidados dos países bálticos, Práticas Pós-Nostálgicas/Post-Nostalgic Knowings5. Reunindo arquitetos, artistas e curadores que trabalham em zonas pós-industriais europeias, os encontros exercitaram olhares e observações ao longo da extensão territorial referida seja em leituras teóricas ou trabalho de campo ao longo dos túneis, linhas de comboio e encostas onde a sociedade burguesa e industrial já não opera. Estes exercícios, mais especulativos, teóricos, performativos e/ou fotográficos, situados e balizados no tempo, permitem o reconhecimento do estado atual do território, isto é, eles revelam as apropriações e outras pequenas intervenções de consolidação que vão ocorrendo, a par das degradações e destruições que acontecem enquanto se aguarda o upgrade da zona. Segundo Anton Kats, artista ucraniano convidado, a zona passa por um processo progressivo de demência, com perda de faculdades e memória, no qual a repetição de rituais quotidianos permite ir mantendo espaços e lugares que não se permitem interromper ou pensar outros futuros. Dando seguimento a estes trabalhos, em fevereiro de 2020, segue-se o encontro Rubbish, Heritage, Fetish? Curating Territorial Conundrums6 dedicado especificamente às abordagens interdisciplinares à pós-industrialidade, na sua patrimonialização, celebração ou erradicação, dedicando-se a conhecimento específico sobre a zona do Freixo.

Dégradés no Porto No Porto as arquiteturas industriais reinventam-se à margem da patrimonialização e, até à data, à margem de intervenções por grandes projetos públicos que a salvaguardem. Não sendo especificamente do âmbito deste levantamento, importa referir que, com exceção das infraestruturas Ponte D. Maria Pia7, de D. Luís8 e da Estação de S. Bento8, e de equipamentos

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modernistas como a Lota de Peixe de Massarelos10, no Porto não existe património industrial classificado, apesar dos esforços sobre os Fornos da Cerâmica de Massarelos11, a Fábrica do Bonfim/Manuel Pinto de Azevedo (balneário, cantina e creche), da antiga Fábrica de Moagem Harmonia12, e esteja a correr a Companhia Aurifícia13. Após a retirada do estado das Moagens Harmonia, e sem que se solucione o caso do Matadouro, são as iniciativas privadas aquelas que avançam. Acentua-se um vasto dégradé, das valorizações e upgrades imobiliários, às desaparições em curso. É com interesse pelas dinâmicas do nosso próprio tempo e considerando uma certa amplitude temporal, cultural, histórica que tentamos a listagem: upgrades, degradações, reconversões, demolições e outras ações.

Upgrade — turismo vs. cultura A intervenção e valorização do aspeto específico da arquitetura industrial no complexo Freixo/Harmonia é paradigmático, nele se relacionam as tensões entre arquitetura erudita, barroca e contemporânea, e o património industrial. O complexo integra o Palácio do Freixo (Monumento Nacional) e a Fábrica de Moagens Harmonia (com tentativa falhada de classificação do seu interesse patrimonial) e as intervenções arquitetónicas que

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se sucederam sobre ambas as construções profundamente degradadas iniciaram-se no final do século xx, com o restauro do palácio barroco pelo arquiteto Fernando Távora (2000-2003), a recuperação das Moagens Harmonia para abertura do Museu da Indústria e da Ciência pelos arquitetos João Rapagão e César Fernandes (1996-2001). Posteriormente, o conjunto perdeu a vocação pública tendo sido encerrado o Museu da Indústria e da Ciência com a finalidade da atual concessão do complexo ao hoteleiro Grupo Pestana. O novo upgrade que se seguiu tratou da demolição dos interiores da moagem onde se instalou o museu para construção de um bloco de quartos e da transformação do próprio Palácio do Freixo na zona social do hotel. Entre ambos foi criada uma piscina e um deque, com vista para a solitária chaminé de tijolo e para o Rio Douro. Valorizando a excelência da arquitetura barroca e a localização junto ao rio e marina fluvial, por fins turísticos o edifício público perdeu a vocação pública e o Museu da Indústria e da Ciência vê-se encerrado há quase uma década.

Degradação vs. upgrade Dois edifícios icónicos e em zonas estratégicas a Oriente encontram-se em profunda degradação: a antiga Central Termoeléctrica do Freixo e o Matadouro Industrial do Porto. A an-

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tiga Central Termoeléctrica do Freixo, assente na encosta em local de grande visibilidade, marca o skyline da cidade Oriental e a entrada pelas pontes ferroviária e da A1. Longe da importância histórica que teve no passado e da solidez que transmite, é hoje um conjunto descoberto de paredes erguidas que em dez anos perdeu a cobertura e os interiores de betão. A sua propriedade é privada e desconhecem-se planos de futuro (a degradação acelerou nos anos recentes). O Matadouro Industrial do Porto, de propriedade municipal, foi recentemente ator principal dos debates de política municipal sobre a regeneração urbana oriental, tendo os seus dois projetos de arquitetura recentes servido como «âncora» para o desenvolvimento de Campanhã/Corujeira. Inversamente ao exemplo anterior, o Matadouro é discreto e está ofuscado pelo traçado viário que o esconde, e afunda. O seu estado de conservação foi-se degradando, estando devoluto e com coberturas e secções dos edifícios em risco. O upgrade projetado inicialmente por Garcia e Albuquerque Arquitectos, agentes locais e vizinhos do recinto, propunha uma reconversão não-invasiva do complexo para usos culturais e empresariais em relação com a comunidade local (estabelecendo novas ligações com o metro). Seguiu-se novo projeto do consórcio Kengo Kuma e OODA com Mota Engil, que tendo sido travado pelo Tribunal de Contas, deixou em suspenso o

  h Curso Práticas Pós-Nostálgicas / Post-Nostalgic Knowings concebido por Inês Moreira e Aneta Szylak, com organização da Câmara Municipal do Porto, na Estação Elevatória do Freixo, outubro de 2019. Renato Cruz Santos, 2019.

afirmativo projeto de transformação de uso e imagem dos edifícios, que aposta numa ondulante cobertura escultórica como novo ícone para a zona oriental. Sob a cobertura reconvertia-se o complexo, cobrindo os espaços exteriores. Enquanto o upgrade não acontece, a degradação evolui.

Reconversão Das reconversões que se vão sucedendo nas freguesias do Bonfim e Campanhã destacam-se aquelas para instalação de escritórios e sedes de empresas de engenharia e arquitetura, bem como galerias de arte e espaços de produção musical.

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 Cartaz The Oblique Think Tank #2, dedicado ao tema: Rubbish, Heritage, Fetish? Curating Territorial Conundrums, coordenado por Inês Moreira, com organização do Ateneu Comercial do Porto. https:// www.xxateneuxxi.com. Palácio do Freixo, imagem de pesquisa. Orlando Vieira Francisco, 2020.

cio sede da Iperforma (2009) responde ao lugar, é eclético e assume diversos caracteres, entre a reabilitação de antigos edifícios habitacionais que enquadram três volumes industriais marcadamente contemporâneos. A uni-los, um novo terraço tira partido das vistas sobre o rio Douro e sobre a zona verde exterior. Projetado pela própria empresa para albergar os seus serviços de arquitetura e engenharia, o edifício ostenta uma linguagem técnica industrial com espacialidade e organização em diversos lofts, oferecendo na entrada uma galeria pública de exposições e eventos.

Demolições

Da fachada em granito decorado da antiga garagem Porto Nascente, na Avenida Camilo, ressalta hoje uma inscrição em pedra: Blip Web Engineers. Trata-se do reuso do local onde o industrial Manuel Pinto de Azevedo mantinha a sua coleção de automóveis, ícones de modernidade e estatuto económico. A empresa tecnológica — onde em vez de mecânica se produz agora código e se programam aplicações de apostas — instalou-se com uma estratégia amovível e respeitadora do edifício. Com projeto de Inception Architects Studio (2016), a BLIP segue uma conceção e organização espacial orgânica e informal, onde se interligam espaços de trabalho em open space, salas de reunião, cozinha, sala de meditação e massagens, salas de videojogos, lounges e uma horta comunitária, garantindo uma ligação entre o trabalho e a vida. O projeto mantém a espacialidade da garagem, ganhando um empilhado de contentores no centro e mantendo as zonas laterais em open space, agora para longas mesas de trabalho. Na mesma avenida, de Camilo, o dentilhado das coberturas na fachada vermelha e cega denota a reconversão de um conjunto de quatro armazéns existentes dentro do quarteirão. Reconvertidos por António Barbosa (2010) para alojar a própria sede da empresa de engenharia A400, o edifício assume as estruturas metálicas e as asnas de madeira da cobertura para, em open space, definir através de um labirinto de biombos os vários núcleos de especialidades da engenharia, da preparação de obra e do projeto: eletricidade, estruturas, modelação 3D e salas de reuniões, entre outros. Dentro do mesmo quarteirão, alguns armazéns renovados albergam garagens, outros estão ainda ao abandono e aguardam pelo momento de uma futura reconstrução. Próximo da estação ferroviária de Campanhã, uma porta de entrada e de acesso à cidade industrializada, antigo lugar de grandes quintas e casas burguesas, encontra-se a microgeografia dos bairros operários. Na Rua de Miraflor, entre os acessos a casas de ilha e a armazéns de apoio à estação de caminho-de-ferro, numa série de armazéns iguais, construídos entre 1908 e 1917, surgem os Espaços Mira e Mira Fórum. Estes armazéns assumem nos seus cerca de 200 metros quadrados as asnas de madeira, as paredes de granito e as portas amplas, reconvertidos por Adriana Floret (2013) e hoje dedicados à fotografia, exposições, encontros e residências artísticas. Nas traseiras, sob a ramada, pode aproveitar-se a sombra do lounge. No extremo oriental do Porto, um conjunto edificado remata a rotunda que dá acesso à marginal do rio bem como à saída da cidade na direção de Gondomar, assinalando a transformação que é ansiada para o Freixo e Campanhã. O edifí-

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PATRIMÓNIO, CIDADE E TERRITÓRIO

Ao longo de décadas ocorreram demolições, por iniciativa pública para dar origem a novas avenidas e praças, como a Praça das Flores e a Avenida 25 de Abril — onde se localizam chaminés isoladas — ou privada, para a construção de novos edifícios comerciais e habitacionais, como a recentemente desaparecida Fábrica da Companhia do Cobre, junto aos centros comerciais na Circunvalação, e a Fábrica do Sabão junto às Moagens Harmonia, onde surge novo edifício anexo ao Palácio do Freixo. O processo assemelha-se a desaparição de edifícios e complexos na Avenida da Boavista — Fábricas das Sedas, Aviz, e de Fibra Comercial Lusitana —, ou da França — Ach. Brito —, onde encontramos nova habitação, estacionamento e, mesmo, novos baldios. A ausência de proteção das pouquíssimas construções industriais restantes, como a Companhia Aurifícia, ou as mencionadas Companhia Termoeléctrica do Freixo e Matadouro Industrial, leva a olhar as ações a oriente com expectativa, não apenas as iniciativas privadas, mas também a concretização das iniciativas públicas anunciadas. Os edifícios morrem de pé, apenas o interesse os faz demolir, contudo, a gravidade e os elementos naturais podem também fazê-los ruir caso não se intervenha.

Ocupação e reuso Vários usos informais e de pequena intrusão na arquitetura vão-se sucedendo na zona, podemos destacar projetos culturais como o Espaço Campanhã, numa rua privada de armazéns em busca de novos usos, ou a utilização de armazéns no Cace Cultural pela Companhia Circolando — previamente instalado num armazém na mesma rua privada. Ainda que muito esporádica, a ocupação ilegal também tem lugar nestes locais, como a da ruína icónica Garagem Ford, em novembro de 2018, apropriada durante um fim de semana para uma exposição de artes visuais, intitulada «Para Inglês Ver», e organizada pelo coletivo Malta do Porto como ação ativista e artística pelo acesso a espaços industriais que possam ser utilizados para fins culturais e de produção artística.

Entre passado e futuro A década que agora inicia, 2020, com as suas dinâmicas económicas e imobiliárias parece ser um ponto de viragem, talvez de não retorno, relativamente ao que ainda resta da indústria. Após as demolições a ocidente, é a oriente que ainda existe algum edificado de grandes dimensões, ou de arquitetura distintiva. Longe de novas soluções sistémicas para a pós-industrialidade, a arquitetura industrial vai-se reinventando casuisticamente por interesses dos seus proprietários, quase exclusivamente privados.

Mesmo abraçando as condições, os processos e as contingências da contemporaneidade, isto é, sem desejar resistir à passagem do tempo e à evolução da cidade, ou forçar ideias passadistas e nostálgicas, assistir à progressiva degradação e demolição do edificado (privado e não classificado) levanta a questão: porque renuncia a cidade burguesa, liberal e industrial ao testemunho construído do seu passado industrial? AGRADECIMENTOS A autora agradece à Dr.ª Maria da Luz Sampaio, ao arquiteto João Paulo Rapagão, à arquiteta Paula Melâneo e à curadora Aneta Szylak pela coautoria e/ou pela partilha de elementos das suas pesquisas. NOTA Em consequência de determinações legais a que a INCM e a DGPC estão obrigadas, a edição deste texto observa as normas estabelecidas pelo Acordo Ortográfico de 1990, normas com as quais a autora não concorda e que não usa. 1. LATOUR, B. (1997) — On Actor Network Theory: A few clarifications. 2. O evento de divulgação de arquitetura Open House 2018 foi dedicado à arquitetura industrial e abriu cerca de 65 edifícios nas cidades de Matosinhos, Porto e Gaia, revelando a rede de produção industrial, seja em funcionamento, em reconversão ou em abandono. Curadores: Inês Moreira e João Paulo Rapagão. Organização: Casa da Arquitectura. O evento Open House Porto consiste na abertura ao público de edifícios de arquitetura singular e é anualmente organizado pela Casa da Arquitectura em colaboração com os Municípios do Porto, Matosinhos e Gaia. Programa consultável em: https://2018.openhouseporto.com. 3. Dos edifícios industriais em uso destacam-se os Silos de Cereais de Leixões, a Moagem Ceres, a Central de Cervejas ou a Fábrica de Conservas Pinhais (todos em Matosinhos). 4. Moreira, Inês (coord.) — Mapeamento do Porto Oriental 2018. In Melâneo, Paula e Inês Moreira (ed.) Epicentros Pós-Industriais: um futuro a Oriente. Jornal Arquitectos #257, 2018. Consultável em: http://www.jornalarquitectos.pt/pt/ jornal/epicentros-pos-industriais. O Jornal Arquitectos dedica-se à crítica de arquitetura e pertence à Ordem dos Arquitectos. 5. O curso avançado de pensamento crítico e curadoria Práticas Pós-Nostálgicas/Post-Nostalgic Knowings decorreu em outubro de 2019 com coordenação de Inês Moreira e Aneta Szylak e organização da Câmara Municipal do Porto. Programa consultável em: https://postnostalgic.wordpress.com. 6. O encontro cultural, cívico e de investigação The Oblique Think Tank #2 dedicado ao tema: Rubbish, Heritage, Fetish? Curating Territorial Conundrums, coordenado por Inês Moreira, com organização do Ateneu Comercial do Porto. https://www.xxateneuxxi.com. 7. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/itinerarios/ industrial/20. 8. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/itinerarios/ industrial/22. 9. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/itinerarios/ industrial/23. 10. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/itinerarios/ arquitetura/03. 11. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonioimovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-declassificacao/geral/view/71229. 12. http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/itinerarios/ arquitetura/19. 13. Processo submetido à DGPC em 2019.

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