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O número 18 é a volta da Ficções à origem: textos novos de grandes autores = grandes textos de novos autores. Nas páginas que se seguem: uma chinesa em danação e chineses em êxodo; um puteiro visto de dentro e de fora; miudezas infantis contra as rudezas do mundo e as espreitas impúberes da morte e do sexo; flores olorosas e cheiro de pão na manhãzinha; gente que não foi o que queria e gente que não quer mais ser o que é.
Entre os textos enviados à revista digital revistaficcoes.com.br selecionamos três autores, a saber: André Tartarini (pseudônimo “Doutor Pelé”), Mauro Siqueira (“Osvaldo”) e Dimitri BR (“F. Bento”). Os dois primeiros nos transportam para os cálidos terrores da infância em Carne moída e Lullaby, enquanto o terceiro nos traz a picardia rural de Flor de Maria Rosa.
As ilustrações vêm das Formas artísticas da natureza que o cientista Ernst Haeckel publicou para sustentar suas proposições sobre a evolução. [A medusa na capa da revista leva o nome de Desmonema annasethe porque seus tentáculos faziam o cientista se lembrar de sua falecida esposa, Anna Sethe.]
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No Ritz Francisco Slade A flor de Maria Rosa Dimitri BR Os remos Altair Martins Mee Yang (esta noite será tua danação) Ana Paula Maia Terra natal Lu Xun 鲁迅 Mergulho Cristina Parga Céu Marcelo Moutinho Lullaby Mauro Siqueira Carne moída André Tartarini Cobertor Bruna Beber O vinagre Dodô Azevedo A caderneta Mariel Reis Amanhã não tem ninguém Flávio Izhaki Simone com Kasimir Maliévitch Sonia Coutinho Escrita automática André Rios Dia de guarda Giovanna Dealtry
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No Ritz Francisco Slade
Veio parar aqui moleque, quando teve a ideia de vender modess às moças. Molecote, mesmo — o que sempre me fez considerar a ideia genial. Comprar a caixa na farmácia e vender por unidade aqui e nas outras casas. Logo, não voltava mais pra casa. Se criou aqui. Isso me leva a pensar se crescer com os pais, ser criado num lar, é realmente o mais saudável. A ele fez bem o ambiente mais duro e mais arejado cá fora. Foi ele que me ensinou como me portar com elas. Eu não sabia. Claro, sempre vim muito a puteiro, a muitos, pelo mundo. Tive sorte no lar, nesse ponto, porque aos vinte e poucos já tinha uma boa noção do mundo. Ou, pelo menos, dos cafés e dos puteiros do mundo. Mas sempre me comportei como um apaixonado, um cavalheiro até nas intenções. E na cama, se batia nelas, também sempre me preocupei em devolver a atenção que recebia. Elas sempre gostaram de mim, mas geralmente por me acharem gentil ou algo assim. O que me incomodava. Foi ele quem me fez ver que eu não tinha o menor tato pra coisa. Na sua lógica simples, elas são mais machistas que nós, aqui. Então não adianta, é o que esperam de você, disse. Disse algumas vezes. Porque é assim que te respeitam, assim que se submetem. Que te medem e te consideram. E as putas ou se submetem ou não te respeitam, elas precisam disso. Disse ele, que, pelo que eu sei, nunca saiu daqui, nunca viajou pra canto algum. Estudou, mas tenho certeza de que só pra comer as meninas com lares e famílias do colégio — deviam ficar mesmo caidinhas por ele, calculo, tão novo e tão versado na vida. De todo modo, eu sempre admirei o cara, o jeito como ele parecia pertencer a esse ambiente. Eu não, sempre fui um visitante, ainda que tenha passado metade
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da minha vida enfurnado em lugares assim. Ele, pra ser franco, parecia muito à vontade não só aqui mas em qualquer ambiente em que eu o tenha visto; em todos, imagino, porque acho que ele não se constrangeria em situação alguma; não há contexto social, não há ocasião formal onde eu o veja desconfortável, mesmo quando inadequado. Tudo se resume a homens e mulheres, sempre isso, mais nada — explicou. E isso lhe dava uma liberdade imensa. Convenhamos que conseguir enxergar o mundo assim dá à pessoa uma carta de navegação bastante sólida, pontos cardeais claros. Eu, que nunca cheguei a esse ponto, vivo me perdendo com meu mapa incompleto e barroco demais debaixo do braço. Até hoje não sei ao certo por que ele veio falar comigo, eu no meu canto, naquela noite qualquer, há uma década. Porque você tem cara de quem não precisa disso, mas de quem gosta disso, foi o que me falou. Não gosto de gente desesperada, nem de gente sem tempo ou sem gosto, continuou. Nunca se interessou pelo meu dinheiro. Já os meus progressos, ele observava sempre com um risinho no canto da boca, misto da condescendência do experiente e do orgulho do professor. Foi ele que me ensinou a ficar quieto às vezes, desaparecer das vistas delas e só observar. Entender quando elas mentem; quando sou eu que quero acreditar. Reparar que aquela lá tava chorando nos fundos dois minutos antes, mas tão sorridente agora, sem cara inchada, olheira, que seria impossível saber se não fosse um olhar rápido lançado à colega, um cafuné furtivo devolvido pela outra, a coçadinha no olho com a ponta do dedo. Reparar o nojo perfeitamente dissimulado com o senhor de azul, o enfado com o garotão de boné, ou a diversão sincera da que esqueceu um pouco de ganhar dinheiro com aquele sujeito ali, que não vai subir com ela — e ela sabe. Foi ele que me ensinou a me aproximar realmente delas, a falar o que elas querem ouvir, a não precisar pagar pra comer — tainda que eu sempre faça questão de pagar. Foi ele que me ensinou a saber quais são as que gostam mesmo de beber, as que gostam de pó, de poder. As que gostam ou não de foder. É uma profissão qualquer, na minha opinião. Uma profissão com dias melhores e piores, com prazeres e ossos do ofício, como as outras. Seria errado chamar de emprego, como o são tantas outras funções que as pessoas desempenham pra se sustentar: é uma profissão. E como toda profissão, umas mais outras menos, deforma quem a exerce. Deforma ou afirma. Os dois. Ser puta é um exercício quase constante, mesmo quando não se está trabalhando; o tempo inteiro; acaba um ponto de vista. Como escrever. Certamente
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mexe mais contigo que vender sorvete — ele me disse. Acho que sim, que concordo, mesmo que eu não seja puta, nem sorveteiro e nem escritor. Por outro lado, também a via inversa é verdadeira, puta também é um tipo de gente. Ou melhor, existe um tipo de gente que se habilita a isso. De novo, como escrever, me parece. E depois a coisa se sedimenta com o ofício. Tanto que, como me foi dado comprovar ao longo desse tempo todo de convivência e, por que não?, de amor, é tolice das boas consciências, do senso comum e do politicamente correto pensar que, como regra, uma mulher se torna puta só por necessidade. Tolice, aliás, pensar que uma mulher se torna puta — ele diria. Trabalhe ou não na profissão, não importa: ou é ou não. E aliás, outra coisa que ele diz — com conhecimento de causa, afirma — é que, por tudo isso, ex-puta também é um troço que não existe. Eu, do meu canto, concordo, mas talvez seja por isso que sempre fui louco por elas. Volto a dizer: apaixonado. Amo todas e cada uma. Sempre amei. As pernas, os trejeitos. As fraquezas e uma certa imunidade a tantas coisas. A sensibilidade a outras. O desprendimento. Talvez tenha sido isso afinal que ele viu em mim quando veio conversar naquela noite, o traço comum que nos aproximou. Mas que ele teve clareza pra entender e coragem pra cumprir desde criança. Eu, mesmo que eu compreendesse moleque, não sei se conseguiria levar a cabo cedo assim. Às vezes, tenho certeza de que nunca vou ser tão livre quanto ele. Fato é, entretanto, que eu entendi bastante; que depois de entender certas coisas que ele fala é que passei a existir de verdade pra elas. Pras putas. Em qualquer canto. Não um cara rico, um cara educado, um sujeito bonitinho, um bom negócio de quem vale a pena guardar o nome e a cor dos olhos. Existir. Ser uma questão. Aqui — nesse puteiro antigo e esfumaçado, no meio desses sofás vermelhos surrados, das mesas baixas, desses espelhos, desses refletores coloridos, dos estrobos; a pista, o queijo, o pole e eu. Aqui e na outra casa aqui em frente, e na do lado, e na outra, todas as da rua. Ou em qualquer outra do gênero no mundo. Não se pode ser bonzinho. Se é isso que ela tem pra falar de você, já era — disse logo que nos conhecemos. Já tinham me chamado de bonzinho, uma vez, em outro canto. E lembro que, algum tempo depois, uma moça daqui me disse isso de novo. A gente tinha acabado de trepar. Acho que era a segunda vez que eu ia com ela. Tinha sido difícil ela gozar, eu tinha me dedicado. Um cavalheiro, como eu disse. Passamos do tempo, eu ia ter que pagar mais pelo quartinho xexelento. Eu fumava, sentado na cama, única coisa ali, e ela, depois de se lavar, se
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vestia do meu lado. Lá pelas tantas, sorriu e disse — você é bonzinho, né? Levantei e, num gesto brusco, torci seu braço e a virei contra o espelho colado na parede, paralelo à cama. Ela tentava se soltar — sem a mínima chance — e me olhava assustada no reflexo meio embaçado pela sua respiração. Apaguei-lhe o cigarro na bunda. Ela gritou entredentes. Depois soltei, deixei ir. Ela correu pro banheiro me olhando de maneira completamente diferente. Não, não era medo. Ao menos não era só isso. Nem só raiva, ou surpresa. Tinha mais outra coisa qualquer cujo nome me escapa. E que era o que importava. O fruto daquele diálogo. Acendi outro e desci enquanto ela molhava a queimadura e chorava baixinho. Talvez eu seja bonzinho mesmo. Então tive que me policiar. E volta e meia é preciso provar que você não é bonzinho, como ele costuma defender. Ele sempre esteve em casa aqui. Eu não. Eu precisei me adaptar. Mas nós dois vivemos aqui pelo mesmo motivo — amar todas essas mulheres, as que já passaram, as que nem começaram ainda. Por isso somos amigos. Por isso, aprendi tanto com ele. E é só o que relata isso aqui, essas linhas. Porque, como eu disse, não sou escritor. Essa série de juízos simplórios e equivocados anotados aqui — como haveria de dizer alguém inteligente, de pensamento crítico afiado e olhos perspicazes — é só isso mesmo, a constatação do que ele pensa e do que eu retive disso pra poder estar com elas. Pensamentos sobre dois caras da mesma idade, que ficaram amigos faz dez anos exatamente hoje, exatamente nesse lugar. Coisa aliás que me ocorreu agora, aqui, no Ritz, na frente desse copo de uísque, e que resolvi registrar nesse bloco porque não tenho pressa nem nada melhor pra fazer.
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A flor de Maria Rosa Dimitri BR
“é fulô que não tem cheiro e todo mundo quer cheirar” JOÃO DO VALE e LUIZ VIEIRA
Certo dia num brinquedo enterrou Maria Rosa os pés no campo. Ao fim do dia nessa mesma terra uma flor nasceu. E desde então Maria Rosa não teve sossego. “Se pegas na flor do campo”, diziam, “é como tocasses Maria.” “É mentira”, ela retrucava — mas notava-se-lhe a inquietação. Se era verdade? Ninguém sabia. Havia muito campo na região, e muita flor em cada campo. Porém um dia eu, voltando de uma pescaria, cruzei de atalho um caminho que até então não conhecia. E vi bem no meio do campo — muito seco e quase nu — uma única flor que crescia, como se fosse ali terra boa. Não sei se foi sua cor, ou a forma, mas fez-me lembrar a história da flor que brotou de Maria. Assim pensando eu olhava a flor bem de perto, no meio do campo deserto, quando uma gota da água do rio, da qual eu vinha encharcado, escorreu do meu rosto e foi cair bem em cheio na florzinha. Na hora não fiz atenção ao caso. Mas chegando à vila encontrei Maria Rosa, e notei que tinha chorado. “O que foi?”, perguntei-lhe, “Está triste?” “Não foi nada”, ela ia respondendo, mas ao me olhar ficou muda. En-
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carou-me de um jeito que nunca ninguém tinha antes, e disse-me assim: “Estou até bem contente.” No outro dia eu saía pra lida, e Maria encontrou-me na estrada. “Me leva contigo”, pediu, sem querer nem saber aonde eu ia. Sem tampouco dizer-lhe palavra, a peguei pela mão e seguimos. tApressei-me em chegar logo ao campo. Por um instante, alarmado, pensei que não achava o caminho. Mas não longe da trilha do rio, lá estavam o campo e a flor. Acerquei-me dela num instante. Estava igual quando eu a descobrira. Sem demora quis regá-la — atender ao pedido de Maria — mas percebi que desta vez vinha seco, não trazia comigo água nenhuma. Sem ter outra ideia, e ansioso demais para andar até o rio e de volta, ajoelhei-me ao lado da flor e, com grande cuidado, lambi uma a uma suas pétalas pequeninas. Quando já minha língua doía e secava-me toda a saliva, notei que o dia ia a meio. A custo deixei o lugar, e rumei para meus afazeres. Só bem tarde voltei para a vila. Receava não mais ver Maria, temia que estivesse dormindo. Porém logo a avistei, sentada num banco, como se a esperar por alguém. Assim que me viu ela veio, nos encontramos no meio da praça. Busqueilhe nos olhos a lágrima, mas não havia nenhuma. “Hoje não chora?”, perguntei, mal disfarçando o desapontamento. “Não”, respondeu. Mas olhou-me de um jeito ainda mais intenso que dantes e, sem dizer mais nada, levou-me pela mão para trás da igreja velha.
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Os remos Altair Martins
Se a chuva era sempre um sinal, e ela bordava com os ouvidos atentos ao menor ruído de água, então a agulha e seu fio eram uma espera quase silenciosa de qualquer coisa: um grito, um chamado, um impropério. Ou o começo, quando levantasse a cabeça e pudesse cruzar o portão sem medo das águas que cercam o mundo. Nunca havia feito tanto calor quanto naqueles dias, e faz de conta que o tanque de cimento cru, de paredes internas frescas apesar de todo o mormaço, aquele tanque era uma piscina, e era possível então rever a filha vestindo maiô de franjas com figuras de estrelas-do-mar e brincando com um boneco e uma boneca. Faz de conta que eram pai e filha. A água seria despejada da torneira até um terço do tanque. Quando a menina entrasse e sentada, a água da piscina lhe bateria nos ombros. Os dois bonecos nadariam com mais espaço e, apesar do movimento dos três, o barulho da água não alcançaria a mãe na sala. Por hora, todas as coisas da casa haviam recuperado os lugares e as funções. O novo relógio de parede, esse prateado, nada sabia das mutilações do outro, o branco, o antigo: entranhas espalhadas pelo assoalho poucos instantes depois da notícia e a antevisão das piores sensações num calendário que deveria estar embaralhado. Só podia estar. Erguido sob roldanas, o caiaque de dois lugares talvez sentisse falta dos remos, mas só reclamava quando o vento o sacudia na varanda, e aquele
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definitivamente não era um mês de ventos. Estava virado o caiaque, com os assentos para baixo, para não guardar sujeira. Mas guardava. Também de nada desconfiava o açucareiro, agora de alumínio, do antigo dono do posto, que, feito de porcelana, juntou-se aos cacos de um vaso e de três copos — um deles com água e açúcar —, espalhados que foram com os talheres da primeira gaveta. Nela, por sinal, o pacto de esquecimento se fez, e os garfos e as colheres e as facas combinaram, aos poucos, um segredo de condomínio até que tudo voltasse à inércia natural das coisas inanimadas. E, realmente, seis meses depois, tudo cumpria com a normalidade de uma casa e sua única dona. Nenhum dos objetos ousava comentar o que fosse. À exceção do tanque. Quando pôs o maiô da filha na água, a mãe não contava com o tanque. Não ele, uma caixa quadrada e estreita onde se punham água e sabão para a rendição de toda a sujeira da casa. Não ele, que, antes das roupas da filha, recebera as do marido, lavadas regularmente mesmo que sem uso. Não o tanque que, embora firmemente chumbado a duas muretas de pedra de alicerce, ameaçava sempre virar-se com a presença de quem quer que fosse. Ela estava de férias, sob o calor, ansiando por uma chuva densa, diferente de uma tempestade e seus trovões. Uma chuva que remasse firme e diligente até ela e pudesse pô-la como um relógio ou açucareiro novos, sem dar-se por falta dos remos ou do remador. Mas quando a chuva chegou, e ela soube que era definitiva, entendeu que não era um grito, nem um chamado, nem quaisquer impulsos de agressão. Mas uma despedida. Atravessou de olhos fechados o corredor de pedras sob uma saraivada de pingos grossos. Da varanda da peça dos fundos, viu que o sinal era mesmo aquele, porque a chuva havia chegado sem ventos ou outros alardes senão o barulho natural da água em seu ciclo de vida e de morte. Dentro da peça havia uma família apartada da casa: objetos de pesca, infláveis de praia em forma de bichos espetaculares, coletes salva-vidas e um cordão que, da despensa, corria até o tanque fazendo desfilarem peças de roupa em espera. Uma dupla de tecido era lavada diariamente e voltava ao princípio da corda, onde a luz e o ar das janelas abertas preparavam tudo para o dia em que o ferro elétrico, em posição de sentido ao lado da churrasqueira, fosse chamado da reserva. Não sabia ele quando, nem desconfiava daquela chuva sem vento.
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Mas ela abriu a torneira do tanque sem cogitar se ele já estava cheio ou se aquela água toda não perturbaria a concentração da roupa de banho, a silhueta viva da filha junto a dois bonecos que, agora, começavam a nadar em círculos irregulares, num desespero-redemoinho. O barulho de água preenchia a peça, completando o serviço da chuva lá fora. Era então o momento de revistar o cordão em busca dos vestígios da vida. Recolhidas as peças do princípio do fio, a mulher estendeu-as abertamente sobre a tábua, e o ferro enfim foi ligado depois de seis meses. Ainda que sem treino, tão logo vencia dobras e marcas de prendedor das primeiras peças, já se obrigava, com pausas de menos de minuto nas quais o tecido era dobrado, a recomeçar com novas roupas na sequência até que todo o fio fosse percorrido e, como na travessia a Maratona, o soldado estivesse morto. Quando todas as roupas fossem passadas e dobradas, ela sabia que iria encontrar o tanque cheio ou pelo menos em dois terços da capacidade. Pareceu-lhe suficiente, pois que era água tanta para transbordar o tanque assim que ela entrou. Sem tirar a bermuda e a camiseta curta que vestia, dispôs o maiô de estrelas-do-mar sobre as pernas, que ficaram apertadas. Primeiro, a parte de cima, com duas estrelas suficientes para os seios que as meninas sereias nunca alcançam ganhar; segundo, a parte de baixo, da estrela maior, que nunca se livra do mergulho. Depois que chorasse, batesse na água, perguntasse uma série de coisas às paredes do tanque, da peça e do mundo; depois que se apertasse nas mãos e nas pernas; depois que xingasse o marido, a filha e a torneira; depois que achasse ridícula a vontade quase feiticeira de enfiar a cabeça entre as pernas e desparir-se dos dias; depois de tudo isso, poderia voltar para casa e guardar as roupas. E talvez olhasse o relógio e sua sensibilidade pontual e decidisse que, depois de tomar um banho, faria café, sem assustar o açucareiro ou os talheres com lembranças que não lhes pertenciam, e ligaria para o jornal para anunciar a venda de um caiaque de dois lugares, sem remos. Mas antes era preciso vencer os dois bonecos que, soltos de súbito da prisão de seus pés, boiavam à superfície da água e, com os rostos imersos, faziam de conta que haviam perdido mais que os remos.
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Mee Yang (esta noite será tua danação) Ana Paula Maia
É bastante complicado admirar céus azuis e seus dourados reflexos de sol, enquanto mexo o panelão fervente de gordura, aqui na fábrica de sabão. O cheiro não é de dias ensolarados, sorrisos brilhantes, garotas enamoradas. É cheiro de excremento, sebo, sobra. Mas os excessos, aquilo que mata o coração de uns, gordura degenerativa, colesterol ruim, tem sido parte do meu sustento faz algum tempo. Mexo o panelão e às vezes permaneço com os olhos vidrados no redemoinho de glicerina e ácido graxo, tecido adiposo, banha, toucinho. Penso em bundas gordas, barrigas flácidas, hambúrgueres e batatas fritas. Talvez eu saia pra comer um desses e depois, sabe lá Deus, meter a cara num rabo gorduroso pelo resto da noite, pago com o dinheiro que ganho pra chafurdar no sebo durante parte do meu dia. Sempre estou besuntado de gordura e isso não sai. É preciso muitos banhos, óleos, removedores. Ela entranha nos cabelos e gasta-se um frasco de xampu dos grandes por semana. Mas me recuso a deixá-los mais curtos, gosto deles assim, compridos. Gosto de prendê-los com elástico. E gosto de ver os fios excessivos no ralo do banheiro. Sempre há muitos fios pretos e longos no meu ralo. Como os de Mee Yang, seus cabelos esvoaçando enquanto rebola sobre o balcão. Não é raro um fio mergulhar no meu copo. Bom, talvez seja o vapor do sebo matando meus cabelos desde a raiz. Não importa, amanhã mesmo posso procurar outro emprego, um que não danifique meus cabelos e que não me deixe revestido por uma camada orgânica animal, de sobras e excrementos. Posso voltar pra faculdade, curso noturno, não o de letras, talvez alguma coisa com números. É, talvez, mas não acredito em salas de aula. No fim, todos acabam aqui dentro. Tornam-se excrementos. Posso cozinhar toda uma sabedoria, depois salpicá-la com alfazema e deixá-la secar em fôr-
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mas de estrelas. Não farei curso noturno. Vou beber, chafurdar no sebo e tentar sobreviver. De quebra posso tentar criar haicais pra aplacar alguma ansiedade. Mas quem precisa de mais um poeta no mundo? Dane-se, vou comprar um videogame. É isso, vou beber, sobreviver e jogar videogame. Meu chefe é um chinês e nunca entendo o que fala. Ele gesticula e eu gesticulo de volta, e isso me faz economizar palavras, mas não me importaria em gastá-las. Gosto das palavras e de soltá-las por aí… derretê-las em cadinho e depois secá-las em fôrmas de estrelas. Sempre dou um sinal de OK com as mãos. Entendido. Entendido. Chineses são estranhos e me lembram cachorros, não sei exatamente o porquê, mas é como os vejo. São pequenos, franzinos, gesticulam e comem com as mãos. Não sei se todos são assim, Mee Yang não é bem assim, mas esse é. Senhor Chong. Chang Chong. Nem sei se é esse mesmo o nome dele, mas continuo a chamá-lo de Chong e ele continua respondendo. A pequena fábrica de sabão artesanal do senhor Chong fica no subsolo de um velho prédio no centro da cidade, um desses prédios caindo aos pedaços, e sempre penso se haverá um jeito de escapar daqui caso ele resolva despencar, o que parece não demorar. Há rachaduras enormes, vãos rasgando-se do teto ao chão abrigando todo tipo de inseto, insetos dos grandes e gosmentos. Sem dúvida, este prédio vai desabar e nós aqui do subsolo não teremos nem um tico de chance, não senhor, porque suportamos o peso de seis andares e sabe-se lá o que eles guardam lá em cima. Eu sei, eu preciso dar um jeito de escapar logo daqui. Meu contato com o lado de fora é através de algumas janelas na parte mais alta da parede, o que possibilita ver a rua, a calçada, melhor dizendo. Dá pra ver coxas, joelhos, canelas, tornozelos. Somente crianças, cachorros e anões são vistos por inteiro, mas nunca temos anões transitando por aqui. Gostaria de ver um anão através da janelinha. Mas acho que se alguma coisa realmente grave acontecer, como a explosão de uma caldeira, sei lá, não vai dar tempo de escapar pela janela, sinto que nunca chegarei a tempo de atravessar aquela espremida fenda. Eu preciso de um emprego novo, com elevador subindo, e escapar do subsolo. Depois do expediente, sempre cruzo com o pessoal da faxina descendo as escadas pra fábrica. Eles são bons, limpam muito bem toda e qualquer imundície que deixamos pra trás. São coreanos e nunca entendo o que dizem também. Aqui é um pedacinho da Ásia, esse medíocre metro quadrado soterrado no coração da cidade. Eles são todos pequenos, coreanos
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e chineses, empregados e patrões, uma miúda submissão. Mas eles gostam de falar em seus idiomas, e nem sei se falam a mesma coisa. Parece que coreanos falam coreano e chineses, mandarim. Não sei mesmo, mas é sempre uma porcaria isso aqui. A vozinha é sempre estridente e varia de tons repentinamente. Nunca consigo captar a emoção em suas vozes. Isso facilitaria as coisas. Sei que nos humilham, riem da nossa robustez e força física, nos achincalham os filhosdaputademerda, franzinos, comem com as mãos, caras de cão. Não se pode aturar uma coisa dessas por muito tempo, a gente pira. Quero ser xingado no meu idioma, humilhado em português se assim tiver de ser, mas em meu idioma. Por todos os lados, os olhos rasgados tomaram conta. Não há um buraco em que você se meta que não esteja um lá. Eles sobrevivem, comem qualquer porcaria, os desgraçados. Cobra, barata, besouro, formiga, cão; eles mesmos se for preciso. Não podemos lutar de igual com uma raça dessas, eles comem qualquer merda e nós morremos de fome, jogamos comida no lixo, morremos. São traficados, ilegais, fazem qualquer coisa também. Mee Yang veio numa remessa made in Taiwan. Tatuou no traseiro: Made in Taiwan. Gostamos de porcarias barateadas, produtos sem muito valor, pirataria. E ela sabe disso, que porcarias barateadas podem te deixar louco. Ela e outras tantas são made in Taiwan, mas certamente nenhuma é como ela. Nenhuma chacoalha um rabinho oriental tão bem. Ela te olha com aquela carinha provocante, que te inibe às vezes, mas eu sinto repulsa também. Dá vontade de descê-la daquele balcão e esbofeteá-la. Não sei por quê. Costumo ler na hora do almoço, porque ele dura somente quinze minutos. Como pouco e rápido. Os outros quarenta e cinco minutos eu me afogo em palavras. Assim como me afogo em rabos à noite, depois da janta. Nunca regurgito o que como, seja orgânico, animal, infestado, doente. Palavras e secreções; é nisso que penso na maior parte do meu tempo enquanto mexo o panelão. A cabeça fica livre, as veias dilatam-se com o vapor causando rachaduras em meu cérebro, dando brecha pra qualquer tipo de coisa entrar. Meus braços e mãos fazem todo o serviço, merecem cada centavo e eu fico livre pra pensar e isso nem sempre é bom. Pensar. Começa com divagações desconexas, idiotas, mas isso vai crescendo e você percebe que todos os dias alguma coisa nova é acrescentada às divagações idio-
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tas a ponto de você não conseguir parar de pensar na coisa em questão e desejar sair pra esquecer, ocupar a mente, soltar a tampa do ralo e deixar escoar os pensamentos, mas não. Eles ficam lá. Atolados numa pia entupida, com restos de cabelos e guimbas de cigarro. Faço contas pra ocupar as brechas do pensamento, pra extrair uma neurose que começa a querer enraizar. Ah… como odeio esses olhos rasgados. Eles riem abaixando-se um na direção do outro. São submissos entre eles. Algum tipo de humildade, talvez, mas é servilismo. Quando rio, não me curvo, não escondo a boca com as mãos. Quando rio, minhas gengivas arregaçam e meus dentes saltam. Tenho um sorriso retangular e branco. Parece bastante com a escada que desço todos os dias pra fábrica. Branca e retangular. Quando chego do lado de fora inspiro toda a fragrância que uma cidade como esta pode ter. Milhares de cheiros, e eu farejando feito um cachorro a essência da calamidade. Tem um cheio azedo rondando, salpicado com o perfume adocicado de algumas garotas de cabelos molhados, prontas pra arrasar com o coração de algum bastardo feito eu. Caminho os quinze minutos habituais até chegar em casa, casa essa que divido com o Hector. Ele é farmacêutico e trabalha nos arredores também. Gosta de experimentar substâncias químicas, até mesmo na comida. Uma vez na semana, pelo menos, ele cria um novo prato. Está empenhado em alguns experimentos dos quais não faço ideia pra que vão servir. Seu quarto fede e estar lá dentro por mais de cinco minutos te faz ficar com os olhos marejados e ardidos. Ele produz seu próprio analgésico, calmante e antibiótico. Parece ser bom nisso e me deu alguns comprimidos de “efeito moral”. Ele diz que dá uma sensação moralizante quando se toma um desses. Vou experimentar um esta noite, estou mesmo precisando me sentir mais confiante — e quem não está, não é mesmo? Nossos quartos ficam cada um numa extremidade do apartamento e sempre nos encontramos no corredor que corta todo o apartamento. Morar no centro pode ser meio sujo, meio fedido, e você se sente meio vagabundo por estas bandas, mas você consegue apartamentos com corredores extensos, às vezes em ziguezague. Não sei por que mora aqui, ele ganha o suficiente pra conseguir coisa bem melhor, mas acho que realmente gosta da imundície que nos cerca, porque aqui tem uma intempestiva promiscuidade que te deixa excitado só de olhar. Depois das onze, o sexo está em postes, becos, marquises, carros estacionados. Você pode ouvi-los gemer e gritar. Sempre depois das onze,
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há uma avalanche de excrementos e cheiros azedos. Acho que é isso que me prende aqui e que não deixa o Hector ir embora. Quintas-feiras gosto de jogar sinuca, beber cerveja e chafurdar em robustos rabos. Sempre no mesmo bar, e é lá que vejo a garota chinesa, se não bastasse aturá-los todo o dia, ainda preciso ter seu rabinho amarelo se esfregando em mim enquanto bebo no balcão do bar. E aquela sensação de ser danado, não fodido, danado mesmo, como pisado pelo capeta, que suporto todos os dias é que me dá vontade de danar um pouquinho essa garota chinesa. Seus olhinhos espremidos e a carinha de cadela embonecada afetam meu coração. E depois de vê-la dançar sobre o balcão foi que apanhei o comprimido de efeito moral do bolso e mandei dois goela abaixo. Outra cerveja e Mee Yang, esta noite será a sua danação. É tudo que me lembro, desta específica frase: Mee Yang, esta noite será a sua danação. E cá estou eu deitado nu numa cama de colchão de molas e o teto é pintado de amarelo, porque o teto é tudo o que consegui ver até então. Sinto meu estômago revirar e meu corpo dolorido. Não acionei nenhum músculo. Sinto meu coração bater, o pulmão encher-se de ar enquanto respiro, e é só. Pulmão e coração. Estou imóvel e não sei onde estou. Certamente isso não é nada bom e deve ser tarde o suficiente pra conservar meu emprego. Senhor Chong não admite atrasos. Rigidez oriental. Ao meu lado está Mee Yang. A pele nua, clarinha, os cabelos pretos sobre parte do rosto, a maquiagem borrada. Parece exausta, esta chinezinha. Devo ter feito miséria com ela noite passada, mas ainda não me lembro de nada. Os comprimidos de efeito moral. Estranhamente não me recordo de nada. Ah… Mee Yang, eu danei com a Ásia. Lembrei-me do senhor Chong, e agora poderíamos ser até mais íntimos, afinal, Mee Yang me fez um pouco oriental. Estico-me e algo está atravessado do outro lado da cama, uma cama bem grande, diga-se. Puxo o lençol e não há ali outra chinezinha, ou qualquer troço a não ser um homem. Tão esguio e amarelo feito Mee Yang, mas é um homem de cabelos pretos caídos no rosto e nu. Levanto-me e diante da cama observo o arranjo confuso. O que eu faço entre os dois, foi a primeira questão a ser levantada. Comprimidos de efeito moral. Enterro as unhas no casco da cabeça, lembre lembre lembre, seu desgraçado. Lembre o que aconteceu. Penso em acordá-los, jogar Mee Yang contra a parede e perguntar em meu claro e objetivo idioma, mas
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sinto algo estranho em meu corpo. Homens não são tão observadores em relação ao corpo, mas havia uma diferença e ela tornava-se evidente conforme as fisgadas vindas por trás, sim, do meu traseiro, que cresciam. Entro no banheiro e saio cinco minutos depois. Visto-me consternado, olho para os dois dormindo. Ele abre os olhos e me diz bom-dia e quer saber se estou bem. Está evidente por aquele sorriso de satisfação e pela óbvia preocupação que aquele sujeitinho me enrabou toda a noite. Comprimidos de efeito moral. Não sinto desejo de esmurrá-lo ou responder-lhe. Incrível é o que penso, mas é o homem mais bonito que já vi e não me importei de ser comido por ele. Se tiver de ser comido, que seja por alguém bonito assim e com jeito de mulher. Olhando pra ele, tão delicado, uma criaturinha andrógina de olhos rasgados, é praticamente como ser metido por uma mulher. Mee Yang sem dúvida deve ter se divertido. Toda a Ásia me danando pelas costas e eu nada respondo, conseguindo pensar apenas em comprimidos de efeito moral. Saio sem dizer nada. Sem reagir ao menos com um olhar. Enquanto caminho, os olhos rasgados me seguem, me espreitam o juízo, me danam com um beijo no pescoço. Começo a lembrar e não gosto. Não gosto de lembrar que fiquei arreado no chão do banheiro, de quatro, enquanto ele me comia. Me lembro da força que fazia… eu sangrei. E continuei sangrando. Parei pra tomar um café e meu rabo continuava sangrando. O café estava forte demais e minha alma danada demais. Enquanto andava sentia pontadas no traseiro. Minha melhor noite. Minha lama. Mas ninguém sabia. Quem me via caminhar não diria. Meus amigos não diriam. Talvez devesse voltar e lavar minha honra, mas nunca tive uma de verdade. Para os outros eu digo que tenho, mas sei que nunca tive. Não havia nada pra cobrar, já estava feito e fodido, na lama e danado. Quando chego ao trabalho, senhor Chong acerta minhas contas. Certamente me levou algum dinheiro, algum bom dinheiro, e não tenho como brigar com ele. Não entendo o que fala e sinto-me danado demais. Comeram meu rabo e demitiram-me do trabalho. Somente suspiro. Subo as escadas que são brancas como os meus dentes e, na calçada, esbarro com um anão. Lá da fábrica daria pra vê-lo inteirinho através da janela. É mesmo um anão bem miudinho.
ANA PAULA MAIA
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Enfrentando o frio cortante, percorri mais de mil quilômetros de volta a meu antigo lar, que tinha abandonado havia vinte anos. Era fim de inverno. Ao nos aproximarmos do meu antigo lar, o dia ficou encoberto e um vento gelado soprou na cabine de nosso barco, quando tudo que se podia ver entre as frestas da cobertura de bambu eram parcas aldeias desoladas, destituídas de qualquer sinal de vida, distantes umas das outras sob o mesmo céu sombrio amarelado. Não conseguia evitar a depressão. Ah, certamente esse não era o antigo lar que recordava ao longo dos vinte anos que se passaram. O velho lar de que me lembrava não tinha nada a ver com este. Meu antigo lar era muito melhor. Mas se você me pedisse para evocar seu encanto peculiar ou para descrever suas belezas, eu não teria uma nítida
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impressão, não teria palavras para descrevê-lo. E agora parecia que nada mais havia. Então argumentei para mim mesmo, dizendo: meu lar sempre foi assim, e, ainda que não esteja tão bem, tampouco é tão deprimente quanto eu pensei, foi apenas o meu humor que mudou, porque desta vez volto ao meu país natal sem ilusões. Esta vez vinha com o único propósito de dizer adeus. A velha casa que servira por tantos anos ao nosso clã já havia sido vendida a outra família, e iria ser entregue no final do ano. Devia correr para lá antes do dia do Ano Novo para me despedir para sempre da velha casa familiar, e para mudar minha família para outro lugar, para onde eu trabalhava, longe da minha cidade natal. Na madrugada do segundo dia alcancei o portão da minha casa. Lâminas partidas de capim sobre o telhado, agitadas pelo vento, deixavam claro que essa casa teria que mudar de dono. Vários ramos de nosso clã já haviam partido de lá e assim a casa estava estranhamente silenciosa. Quando cheguei à casa, Mãe já estava na porta para me receber, e meu sobrinho de oito anos, Hun Er, correu em sua busca. Embora estivesse radiante, Mãe tentava esconder um certo sentimento de tristeza. Fez-me sentar para descansar e tomar um pouco de chá, deixando de lado, por um momento, os assuntos da mudança. Hun Er, que nunca havia me visto, ficou me observando, à distância. Mas por fim tivemos que falar sobre a mudança. Disse-lhe que já havia alugado os quartos, e que havia comprado alguma mobília. Além disso, seria necessário vender toda a mobília da casa para poder comprar mais coisas. Mãe concordou, dizendo que a bagagem estava quase toda pronta, e que metade da mobília que não poderia ir na mudança já havia sido vendida. Mas que era difícil fazer com que as pessoas pagassem. “Você deve descansar por um dia ou dois, e chamar todos os parentes, e então podemos ir”, disse minha mãe. “Certo.” “E ainda há Run Tu. A cada vez que ele vem aqui ele pergunta por você, e quer muito voltar a vê-lo. Eu lhe disse que você voltaria por esses dias, e ele deve estar chegando a qualquer momento.” Nessa hora uma estranha imagem subitamente assomou à minha mente: uma lua dourada suspensa no céu azul profundo e abaixo dela a costa, plantada tão longe quanto a vista alcançava de melancias verde-jade, e em meio a elas um garoto de onze ou doze anos, usando um colar de prata
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e brandindo um tridente à mão, investia com toda sua força contra um zha que escapulia do golpe e fugia entre suas pernas. Esse garoto era Run Tu. Quando o conheci ele tinha pouco mais que dez anos — isso foi há trinta anos e naquele tempo meu pai ainda estava vivo e a família ainda tinha bens e, portanto, eu era um menino mimado. Naquele ano havia sido a vez da minha família arcar com um antigo e grande sacrifício ancestral, que ocorria somente a cada trinta anos, e dessa forma era muito importante. No primeiro mês, apresentavam-se as figuras ancestrais e eram feitas as oferendas, e, como os vasos de oferenda eram finíssimos e havia multidões de devotos, era necessário montar guarda para protegê-los. Nossa família tinha somente um trabalhador “de empreitada” (em nosso distrito dividimos os trabalhadores em três classes: aqueles que trabalham o ano todo para uma família são chamados “anuais”, aqueles que são contratados por dia são os “diaristas” e aqueles que cuidam de sua própria terra e que só trabalham para uma família no Ano Novo, durante os festivais ou quando o aluguel é cobrado são chamados “de empreitada”). E como havia muito trabalho, esse “de empreitada” disse a meu pai que ele mandaria seu filho, Run Tu, para vigiar os vasos de oferenda. Quando meu pai deu seu consentimento, eu fiquei maravilhado, porque há muito ouvira falar de Run Tu e sabia que ele tinha mais ou menos minha idade; que ele havia nascido no mês intercalado, e quando fizeram seu horóscopo, viram que dos cinco elementos ele não tinha o terra, por isso seu pai o chamou de Run Tu (Intercalado Terra); que ele sabia fazer arapucas e pegar pássaros. Esperei ansioso o dia do ano novo, porque o ano novo traria Run Tu. Por fim, quando o fim do ano chegou, um dia minha mãe me disse que Run Tu havia chegado, e eu corri para vê-lo. Estava na cozinha, tinha um rosto redondo e carmesim e usava um chapeuzinho de feltro e um colar brilhante de prata em torno do pescoço, mostrando que seu pai, temendo a morte do filho, havia feito uma promessa aos deuses e budas, usando o colar como talismã. Era muito tímido, e eu era a única pessoa de quem ele não tinha medo. Quando não havia mais ninguém por perto, veio falar comigo e, em poucas horas, éramos grandes amigos. Não sei do que conversamos, mas me lembro que Run Tu estava muito animado, dizendo que, desde que chegara à cidade, havia visto muitas coisas novas. No dia seguinte eu quis que ele me levasse para caçar pássaros.
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“Não dá”, disse. “Só dá para fazer isso depois de uma nevada forte. Lá no nosso areal, depois que neva, eu limpo um pedaço de terra, armo uma cesta grande com um palitinho, e espalho uns grãos embaixo. Quando os pássaros vêm comer, eu puxo uma cordinha amarrada ao palito, e os pássaros ficam presos na cesta. Tem de todos os tipos: faisão selvagem, perdizes, pombas-rola, azulões… Por essa razão fiquei muito ansioso para que nevasse logo. “Agora está frio demais”, disse-me Run Tu em outra ocasião “mas você tem que vir lá em casa no verão. De dia a gente vai para a praia procurar conchas, tem conchas verdes e vermelhas, além de conchas ‘espantadiabo’ e ‘mãos-do-buda’. De noite, quando papai e eu vamos vigiar das melancias, você pode vir também”. “É para pegar ladrões?” “Não. Se as pessoas que passam têm sede e pegam uma melancia, o pessoal não considera isso um roubo. O que a gente tem que tomar cuidado é com os texugos, as marmotas e os zhas. Quando, na luz da lua, se você ouve o ruído de um um zha mordendo uma das melancias, você pega seu tridente e anda bem devagarzinho…” Eu não fazia ideia do que seria essa coisa chamada zha — e ainda não estou bem claro — mas de alguma maneira eu sentia que era algo parecido com um cachorro pequeno, e muito feroz. “Eles mordem a gente?” “Você pega o tridente. Você vem pelo lado, e quando você o vir, você golpeia. É um bicho muito esperto e corre na sua direção e se mete entre suas pernas. Seu pelo é escorregadio como o óleo…” Eu nunca soubera que todas essas coisas estranhas existiam: que no litoral havia conchas de todas as cores do arco-íris; que as melancias estavam expostas a muitos perigos, quando tudo o que eu sabia delas até então era que podiam ser compradas na quitanda. “No nosso litoral, quando vem a maré cheia, tem uma porção de peixes que pulam, cada um com duas pernas, que nem uma rã…” A mente de Run Tu era um baú de tesouros de estranha sabedoria popular, tudo fora do alcance de meus outros amigos. Eram ignorantes sobre esses assuntos e, enquanto Run Tu vivia à beira-mar, eles só conseguiam enxergar os quatro cantos do céu sobre o muro do pátio. Infelizmente, um mês após o Ano Novo, Run Tu teve que voltar para casa. Eu me abri em lágrimas e ele se refugiou na cozinha, resistindo a
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sair até que seu pai o carregou para fora. Mais tarde, ele me mandou, por seu pai, um pacote cheio de conchas e algumas penas belíssimas, e eu mandei-lhe presentes uma ou duas vezes, mas nunca mais nos vimos. Agora que minha mãe mencionou seu nome, essa memória da minha infância surgiu como um relâmpago, e parecia que eu podia ver minha bela casa natal. Então respondi: “Ótimo! E ele, como está?” “Ele também não vai muito bem”, disse minha mãe. E então, olhando pela porta afora: “lá vem aquele povo de novo. Eles dizem que querem comprar nossa mobília, mas só querem ver o que podem levar. É melhor eu ir vigiá-los”. Minha mãe levantou-se e saiu. Várias vozes femininas podiam ser escutadas lá fora. Chamei Hung Er e comecei a conversar com ele, perguntando se ele já sabia escrever, e se ele estava feliz por ir embora. “Nós vamos de trem?” “Sim, vamos de trem.” “E de barco?” “Vamos pegar o barco primeiro.” “Oh, assim! Com um bigode bem cumprido!” Uma voz estridente surgiu de súbito. Olhei com assombro, e vi uma mulher de cerca de cinquenta anos, com maçãs do rosto proeminentes e lábios finos. Com as mãos no quadril, sem vestir saia mas com as pernas em calças, separadas uma da outra, ela se pôs à minha frente como um compasso em uma caixa de instrumentos de geometria. Fiquei estupefato. “Não sabe quem eu sou? Eu te segurei no colo!” Senti-me ainda mais estupefato. Por sorte, minha mãe chegou bem nesse momento e disse: “Ele esteve longe por tanto tempo, não leve a mal se ele esqueceu. Você deve se lembrar”, disse-me, “esta é a sra. Yang, do outro lado da estrada… Ela tem uma loja de tofu.” Então lembrei-me. Quando eu era criança havia uma sra. Yang que costumava ficar sentada o dia todo na loja de tofu, do outro lado da estrada, e todo mundo costumava chamá-la de “A bela do tofu”. Costumava empoarse, e sua maçã do rosto não era tão proeminente nem seus lábios eram tão finos, e além disso ela ficava sentada o dia todo, de modo que eu nunca
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pude notar a semelhança com um compasso. Naqueles dias as pessoas diziam que, graças a ela, a loja de tofu ia muito bem nos negócios. Mas, talvez por conta de minha idade, ela nunca me impressionou muito, então eu logo a esqueci inteiramente. Não obstante, o compasso ficou extremamente indignado e me encarava com desdém, como se encara um francês ou norte-americano que não tenha ouvido falar de Napoleão ou de Washington, e rindo sarcasticamente, disse: “Você me esqueceu, é? Lógico, não mereço sua atenção…” “É claro que não… Eu…”, respondi, nervosamente, levantando-me. “Então me escute, mestre Xun. Você ficou rico, e eles são pesados demais para levar na mudança, então não tem como você querer essa mobília velha. Você faz melhor nos deixando levar. Pode ser útil para os pobres como a gente.” “Eu não fiquei rico. Tenho que vendê-los para poder comprar…” “Ah, o que é isso, você virou intendente, como é que me diz que não está rico? Você agora tem três concubinas, e só anda de liteira com oito carregadores. Vai me dizer que não está rico? O que é isso, a mim você não engana.” Sabendo que não havia nada que eu pudesse dizer, mantive-me em silêncio. “Ora, quanto mais dinheiro a pessoa ganha mais miserável ela fica, e quanto mais miserável, mais dinheiro ganha…” observou o compasso, virando-se indignada e caminhando embora, ainda que, casualmente, recolhesse um par de luvas da minha mãe e escondesse em seu bolso. Após isso, vários parentes na vizinhança vieram me chamar. Eu os entretinha e, nos intervalos, arrumava as caixas, e assim três ou quatro dias se passaram. Numa tarde muito fria, estava sentado tomando chá após o almoço quando notei alguém se aproximando e virei o rosto para ver quem era. À primeira vista levei um susto e levantei-me rapidamente, indo dar-lhe as boas vindas. Quem chegava era Run Tu. Mas embora eu soubesse imediatamente que este era Run Tu, não era o Run Tu de quem eu me lembrava. Ele havia crescido para o dobro de seu tamanho anterior. Seu rosto redondo, que já fora carmesim, tornara-se pardacento e adquirira linhas e rugas profundas; seus olhos também tornaram-se os de seu pai, as pálpebras inchadas e rubras, uma característica de muitos camponeses que trabalham à
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beira-mar e são expostos o dia todo ao vento do oceano. Ele portava um chapéu puído de feltro e vestia um casaco acolchoado bem fino, e como resultado, tremia dos pés à cabeça. Carregava um embrulho de papel e um longo cachimbo e suas mãos tampouco eram roliças e rubras como me lembrava, mas eram ríspidas e desajeitadas e ressecadas, como um galho de pinheiro. Encantado como estava, não sabia como me expressar, e só pude dizer: “Oh! Run Tu — então é você?…” Depois disso havia tantas coisas sobre as quais eu queria conversar, que devem ter desatado como as contas de um colar: perdizes, peixes saltadores, conchas, zhas… Mas minha língua estava cansada, incapaz de por meus pensamentos em palavras. Ele ficou lá parado, com a alegria e a tristeza misturadas em seu rosto. Seus lábios se moveram, mas não emitiram qualquer som. Por fim, assumindo uma atitude respeitosa, disse claramente: “Mestre!…” Senti um calafrio me percorrer, porque sabia que um lamentável muro havia crescido entre nós. Ainda assim não pude falar nada. Ele virou o rosto para chamar: “Sui Sheng, curve-se perante o mestre.” Então apresentou um garoto que se escondia atrás de suas costas, e esse era justamente o Run Tu de vinte anos atrás, só um pouco mais pálido e magro, e não usava um colar de prata. “Este é meu quinto”, disse. “Ele não está acostumado a ter companhia, por isso é tímido e desajeitado.” Mãe desceu as escadas com Hung Er, provavelmente por ter escutado nossas vozes. “Recebi sua carta há algum tempo, senhora”, disse Run Tu. “Fiquei muito feliz em saber que o mestre estava voltando…” “Ora, porque tanta cerimônia? Vocês não eram amigos de infância?”, disse Mãe, alegremente. “É melhor chamá-lo de novo de Irmão Xun, como antes.” “Oh, a senhora é muito… Que falta de educação seria. Eu era uma criança então, e não entendia.” Enquanto falava, Run Tu acenava para que Sui Sheng viesse e se inclinasse, mas a criança era tímida, e ficou parada atrás de seu pai. “Então esse é Sui Sheng? O seu quinto?”, perguntou Mãe. “Somos todos
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estranhos para ele, não o culpe pela timidez. É melhor que Hung Er o leve para brincar.” Quando Hung Er ouviu isso foi até Sui Sheng, e Sui Sheng foi com ele, inteiramente à vontade. Minha mãe pediu a Run Tu que se sentasse e, após hesitar um pouco, ele assim o fez; então, recostando o longo cachimbo na mesa, ele passou o embrulho de papel, dizendo: “No inverno não há muito o que valha a pena trazer, mas esses poucos feijões nós secamos nós mesmos, se me perdoar a liberdade, senhor.” Quando perguntei a ele como iam as coisas, ele apenas sacudiu a cabeça. “Vamos de uma forma muito mal. Até que meu sexto consegue trabalhar um pouco, mas nós ainda não temos o bastante para comer… e também não há segurança… todo o tipo de gente quer dinheiro, não há regras… e as colheitas tem sido ruins. Você cultiva as coisas, e quando as leva para vender tem que pagar uma porção de taxas e perde dinheiro, e se você não tenta vender, as coisas podem ir mal…” Continuou balançando a cabeça e ainda assim, apesar de seu rosto estar marcado de rugas, nenhuma delas se movia, como se fosse uma estátua de pedra. Com certeza sentia-se intensamente amargurado, mas não podia expressar-se. Após uma pausa, pegou seu cachimbo e começou a fumar em silêncio. De sua conversa com ele, minha mão soube que ele estava ocupado em casa e que tinha que voltar no dia seguinte; e já que ele não havia almoçado, ela disse que fosse para a cozinha e preparasse para si algum arroz frito. Quando ele se foi, Mãe e eu sacudimos nossas cabeças pensando nas durezas da vida: muitos filhos, fome, impostos, soldados, bandidos, oficiais e donos de terra, todos o haviam amassado e ressecado como a uma múmia. Minha mãe disse que deveríamos lhe oferecer todas as coisas que não pudéssemos carregar, deixando que ele escolhesse. Naquela tarde ele escolheu várias coisas: duas mesas compridas, quatro cadeiras, um incensário e candelabro, e uma balança. Também pediu todas as cinzas de nosso fogão (cozinhávamos com fogo de palha, e as cinzas podem ser usadas para fertilizar solos arenosos), dizendo que quando partíssemos ele viria buscar tudo de barco. À noite voltamos a conversar, mas sobre nada sério; na manhã seguinte ele foi-se com Sui Sheng.
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Nove outros dias se passaram até chegar a hora de nós partirmos. Run Tu veio pela manhã. Sui Sheng não veio com ele — ele havia trazido uma garotinha para olhar o barco. Estávamos muito ocupados naquele dia, e não tivemos tempo para conversar. Também recebemos muitos outros visitantes, alguns para nos dizer adeus, outros para pegar algumas coisas, e outros para fazer as duas coisas. Já era quase noite quando partimos de barco, e àquela hora, tudo o que havia na casa, não importando quão velho ou depredado, havia sido levado. Ao partirmos, no crepúsculo, as montanhas verdes de cada lado do rio tornaram-se azul marinho, afastando-se da popa do barco. Hung Er e eu, reclinados contra a escotilha da cabine, admirávamos juntos a cena indistinta exterior, quando ele perguntou subitamente: “Tio, quanto é que vamos voltar?” “Voltar? Quer dizer que antes mesmo de partir você já quer voltar?” “É que Sui Sheng me convidou para ir à casa dele…” Abriu seus grandes olhos negros em pensamentos ansiosos. Mãe e eu ficamos os dois um tanto tristes, e assim o nome de Run Tu voltou a ser mencionado. Mãe disse que desde que a nossa família tinha começado a encaixotar, a senhora Yang, da loja de tofu, vinha todo dia, e no dia antes de recolher as cinzas, ela havia desenterrado uma dúzia de tigelas e pratos que, após alguma discussão, ela insistiu que haviam sido enterrados por Run Tu, para que ele pudesse levá-los para casa junto com o lote. Após fazer essa descoberta, a senhora Yang ficou muito satisfeita, e partiu levando o atiçador-de-cão com ela. (O atiçador-de-cão é usado nos galinheiros naquela região. É uma jaula de madeira dentro da qual se coloca a comida, para que assim as galinhas possam esticar os pescoços para comer, mas os cães só possam olhar furiosos). E era um assombro, a julgar pelo tamanho de seus pés, que ela pudesse correr tão rapidamente. Estava deixando a casa cada vez mais para trás, enquanto que as colinas e rios de minha cidade natal também regrediam gradualmente mais longe ainda na distância. Mas eu não estava arrependido. Sentia apenas que tudo ao meu redor era um muro alto invisível, separando-me dos meus companheiros, e isso me deprimia profundamente. A visão daquele pequeno herói com um colar de prata entre as melancias — que costumava ser tão clara e nítida, agora parecia borrada, aumentando minha depressão. Mãe e Hung Er caíram no sono. Estou deitado, ouvindo a água ser cortada pelo barco, e sabia que estava
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seguindo meu caminho. Pensei: ainda que haja uma grande barreira entre Run Tu e mim, as crianças ainda têm muito em comum: não estava Hung Er pensando justamente em Sui Sheng naquele exato momento? Espero que ele não seja como nós, que não permita que seja erguida uma barreira entre eles. Nem quero que tenham a minha vida, monótona e sem sentido, nem a de Run Tu, labutando até tornar-se estúpido, nem ainda a de outros, devotando toda sua energia à dissipação. Quero que tenham uma nova vida, uma vida que nunca tivemos. Esse acesso de esperança deixou-me subitamente amedrontado. Quando Run Tu pediu o incensário e as velas eu ri dele, reclamando de que ainda acreditasse nos ídolos, mas não conseguir convencê-lo a deixar a idolatria. Agora, o que eu chamo de esperança não é nada mais que um ídolo que criei para mim mesmo. A única diferença é que o que ele desejava estava a seu alcance, mas o que eu desejava era mais difícil de se realizar. Enquanto vinha-me o sono, um litoral como uma tira verde-jade se estendia ante meus olhos, e acima, uma lua dourada e redonda pendia do céu azul-marinho. Pensei: não se pode dizer que a esperança exista, nem pode-se dizer que ela não exista. São como as estradas sobre o chão. Porque, na verdade, o chão não tinha estradas no começo, mas onde muitos homens passaram pelo caminho, uma estrada surgiu.
LU XUN
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Mergulho Cristina Parga
Desde criança adorava afundar na banheira. Do fundo, observava as luzes turvas da lâmpada por entre a água escura, já suja do shampoo, da espuma, dos fios negros em nós confusos. Gostava de olhar os cabelos flutuarem por cima do corpo, nos segundos antes de subir para o último fôlego. No silêncio entrecortado apenas pelos estranhos barulhos do ralo, sugando os restos de tudo o que seus dedos tocaram. Era então que fechava os olhos. Quando os ouvia baterem à porta, lá fora. Por baixo da água o som ecoava furtivo e abafado, como num útero. E Estela sabia que nascer de novo era emergir e desistir, tomando ar num impulso sofrido. Para ver se ainda queria. E sempre, sempre queria. Era sempre mais forte que a dor, essa coisa de ser humano. Agora a pele molhada era estranha, mas ainda era dela. As pupilas ardiam exaustas do calcário daquela torneira. Dedos enrugados como os de um bebê. Quando era pequena, saía da praia e olhava para as mãos, elas estavam invariavelmente assim. Enrugadas como as de uma velha. O antes e o depois cruzavam-se como TGVs na cabeça de Estela, enquanto ela se enxugava e preparava para voltar. À sala, à cozinha, aos olhares deles. Mas antes, o creme hidratante, antes o corretivo para olheiras, a base. As lentes de contato. O alprazolam 0,5, sublingual. E depois seria o cigarro, quando todos já tivessem ido. E o silêncio da casa, calando esse amor com um embate de ondas. Quebrando por sobre a sua ânsia. Depois da queda só o sono, corpo vazio, devolvido pelo mar. Repleto de sal e algas e feridas de conchas. Estirada sobre a areia talvez o sol a acordasse, queimando cada poro no mesmo desespero habitual daqueles dedos experientes, contornando inconscientes a sua pele, desenhando trilhos por entre as suas rugas, do-
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bras, pequenas penugens. Talvez o sol a tomasse por inteiro como aquela boca quando ele caía por cima do seu ventre e os dois confundiam início, meio e fim. O sol, o sol. Se o sol girasse três vezes no céu, como na lenda de Fátima, e a fizesse rodar pela cama, em fúria. E se aquele outro corpo pudesse voltar a pesar sobre o seu. Pregando-a à realidade, sem espaço para respirar. Sem hipótese de mais ar. Apertando a sua garganta, sugando todo o ar. Esmagada contra o colchão, contra o sinteco, contra a terra. Até criar raízes. E esquecer o vai-vem doloroso dessas ondas. Naquela noite morta em janeiro. João viajava, na aldeia. Ela, Alex, e a vodka, suas bocas desajeitando-se num beijo sem ensaio, alienadas naquela discoteca do subúrbio, numa cave estranha rodeada de olhares cúmplices. Os dedos tecendo redes entre os corpos etéreos. Techno minimal e assexuado embalando os outros casais, que rodavam como peões numa caixinha de música. Tudo tão quente e apertado, mas no beijo ela inspirava aquele hálito como brisa fresca. Retendo todo ar que pudesse dentro de si. E depois a volta para casa, o táxi. O cheiro a álcool embaçando as janelas do passageiro, as suas mãos pernas enroladas em vergonha. E as fotos de João no quarto, ao lado da cama. Agora o espelho de Estela fragmentava coisas confusas, partindo frases em sílabas, palavras em cores, imagens em pixels. Olhava de novo para unir os pedaços, mas as partículas continuavam a escapar do seu alcance. O fora de si atropelando-a. Os outros. E o que era dela e nunca o fora, flutuando, em outros espelhos, de outras casas, quartos, banheiros de homens, mulheres, anônimos. Amigos, estranhos, desafetos. Flutuando disponível para quem quisesse. Era só estender a mão através do reflexo, juntar os cacos. Se alguém conseguisse enxergar o reflexo, ainda iria querer? Esticar os dedos era tão difícil. Um esforço enorme limpar o que sobrou de uma desconhecida. Não se pode esperar muito, Estela sabia, enquanto desenhava com a maquiagem o rosto festivo. Um esforço enorme, ela sabia. MERGULHO
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Céu Marcelo Moutinho
Um céu alaranjado cobria a praça quando ele a atravessou em direção à Associação de Moradores. Na entrada do sobrado, a fila tinha menos gente do que o habitual. À frente, Betinha. Depois dela, a sobrinha de Dona Edite, cujo telefone havia quebrado fazia mais de vinte dias e nada de a empresa aparecer. Os outros, todos desconhecidos, somavam uns oito ou nove. E ele precisava estar na cabine exatamente às três da tarde. Foi como combinara com a tia. “Vai para a Associação que às quinze em ponto te ligo. Mas é para estar lá às quinze, porque aquela cabine é um inferno de gente”, e João assentiu, rindo dessa velha mania da tia de dizer as horas com extrema precisão. “Às três, né?”, provocou, mas ela não respondeu. A tia era assim: usava umas palavras diferentes, falava uma língua meio de época, meio de morro, e não gostava quando João debochava dela. Embora ele o fizesse desde pequeno. Da primeira vez, ela se lembrava perfeitamente. Moravam juntos havia pouco tempo ainda. A mãe dele acabara de partir, o garoto magricelo berrando sua carência num silêncio que se prolongava por dias, e ela o chamou para o lanche. Naquele dia, ela disse que ele não devia agir mais como moleque. João, no entanto, voltou a agir — e tanto que o adjetivo virou substantivo, até se transformar definitivamente em apelido: Moleque. De fato, João saiu de casa quarenta minutos antes, mas acabou chegando à Associação em cima da hora, por conta da parada na birosca do Seu Oscar. Papo de futebol, papo sobre mulher, um intervalo no sol poente. O
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problema era que, caso não estivesse no horário correto em frente ao telefone, não teria como se comunicar. O celular dormia na assistência técnica desde a semana anterior e ele precisava confirmar que iria mesmo à festa de aniversário. Os setenta anos da tia. “Ô Betinha, anda com isso”, e a moça olhou de esguelha, mexendo a cabeça para um lado e para o outro, em sinal de reprovação. “Porra, Betinha, não atrasa o meu lado”. Betinha não atrasou. Desligou logo em seguida e, para sorte de João, os demais não se demoraram. Às duas e cinquenta e oito, ele já aguardava o toque. Um minuto depois a tia ligou. — Tá adiantada. — Tô não, filho. Aqui no relógio do celular são quinze horas. — Relógio maluco, então. — Moleque, meu filho… — Fala, tia. — Carece vir, não. — Hã? Como assim, tia? É seu aniversário. Não vou faltar nem a porrada. — Calma, menino. É que, como é que você fala mesmo?, o bicho rolou. — Pegou, tia. O bicho pegou. É invasão? — Shhhhhhhhhh… Fecha a matraca. Sabe lá quem ta ouvindo? Tá maior sururu aqui. — Mas eu posso chegar cedo, antes de anoitecer. — Não, Moleque, vem não… — Mas a senhora não vai fazer mais a festa? — Peraí que estão batendo lá fora. — Ué, não é celular? — É, mas só tem sinal perto da janela. — — — — — — Voltei. Era o homem que compra coisa velha. — E a senhora vendeu? — Eu não, Moleque. E aqui tem alguma coisa pra vender? — Só a dona da casa. Vai com gota, catarata, reumatismo…
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— Vira essa boca pra lá. — Tô brincando, tia. Mas me fala: e a festa? — Fica aí. A gente faz outro dia. — Tia, a senhora ta cansada de saber. Se não fosse a senhora, eu tava fodido. Que nem o Casquinha. Que nem Lucas. Que nem o primo. Puta que me pariu. — Lava essa boca, menino. —… — Eu sei, eu sei, Moleque. Sei que você quer vir, mas… — Faz o seguinte: me liga em vinte minutos? A birosca de Seu Oscar, duas cervejas casco escuro e um conhaque. Para João, era inconcebível não ir. Os setenta anos dela, praticamente sua mãe desde que a outra pôs o pé na estrada. A família que ganhou sem esperar, toda reunida. Os amigos. Devia ir. Mais: tinha que ir. Comprara até um presente. Uma colcha de bordado. — Fecha a conta, Seu Oscar. João voltou à Associação, agora vazia, sem levar no bolso nenhum plano genial. Caso ela insistisse em não fazer a festa, daria a colcha em outra ocasião; talvez marcassem de almoçar, ou tomar um sorvete. — João! — gritou a atendente. — João! Tá surdo? Não é a sua ligação? — ela insistiu. Ele então se encaminhou para a cabine. — Alô? — Oi, Moleque. Já estava quase desistindo. Ninguém atendia. — Me atrasei. Desculpa, tia… — Olha, tô decidida mesmo. Nada de festa hoje. — Ô, tia… — Só não posso fazer nada se o povo vier aqui em casa, trouxer umas cervejas, aí não dá pra recusar. — Faz sua festa, tia. Quando tudo melhorar, a gente almoça, te entrego o presente, a gente passa uma tarde junto. — Vai ser bom. — É, vai ser bom. — Tchau, João. Fica com Deus. — Tchau, tia
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A tia permaneceu por alguns minutos encostada à janela, com o celular colado à mão direita. O gelo que chegara havia pouco mais de meia hora derretia no canto da sala. Fez o certo, ponderava. Agiu como devia. Um risco grande demais, afinal de contas. No dia seguinte, quem sabe, se acertava com João. Chateado ele estava, mas era compreensivo. “Sempre foi, desde garoto”, disse baixinho, ao pousar o aparelho sobre o parapeito. No dia seguinte. Uma boa conversa. E tudo bem. As pendências da casa estavam à espera e ela se preparava para fechar a janela quando a algaravia das crianças do lado de fora roubou a atenção. Fora: a pressa em tênis, merendeiras e mochilas. Os rios turvos descendo as vielas. Galinhas sujas ciscando em pneus velhos. As bolsas plásticas nas poças d´água. Um estampido seco. Outro. E outro. Mais outro. E enquanto fechava a janela sem pressa, já no intento de se abrigar sob a cama, ela pensou em João; que ele gostava dos fogos no reveillon, que ele estava bem, em casa, talvez dormindo, e até achou bonitas aquelas estrelas riscando o céu, como se abrissem fendas para a noite passar.
CÉU
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Lullaby Mauro Siqueira “Não quero dormir”, disse a pequena com o sorriso de janelinha. A Mamãe sabia o que ela queria; queria uma canção ou historinha. “O que você quer ouvir? A do Tio das Sandálias ou da Dona Pandinha?” De chiquinhas e pijama pulava na cama,… cama,… cama macia. Ela pedia: “…Tio, …Tio, Tio das Sandáias, …Tio das Sandáias…” Com os olhinhos fechando, mas lutando; e o urso Osvaldo num abraço apertado; a voz da Mãe sumindo; no teto, estrelas de adesivos brilhando; o livro no finzinho, quando num grito pede: “Chega. Não quero mais…” “Agora só falta um tiquinho: ‘o Tio, que curioso era, sabia onde o calo apertava! Arrastou o grande armário atrás das suas sandálias, mas elas voaram…, e então para a sua surpresa, uma aranha gigantesca soltou!…’” Mamãe parou assustada, sua filha dera um grito e, agora, debaixo do cobertor chorava (e com força enforcava o urso Osvaldo). “Foi a aranha?” Ela só balançou a cabeça que sim. A Mãe só abraçou a filha. “Não conto mais essa história, filhinha”. Ela beijou a menina e riu, fez-lhe cosquinhas e a janelinha apareceu de novo. Ela beijou e beijou. “Não precisa ter medo…” “Como você sabe?” “Porque já fui do seu tamanho”. A janelinha estava toda aberta, mas ainda preocupada. “Mas se ele voltar?” “Quem?” “O Aranha-grande” A Mãe não entendia e achou melhor repetir, era tarde: “Não precisa ter medo, não vai acontecer nada: ela não vai te pegar.” Acordou espantada como das outras vezes, os olhos demoraram para se acostumar com o negror do seu quarto, ora rosa. Como antes, ela sabia: “não estou sozinha”, ela parou de respirar para ouvir… em vão. O urso Osvaldo num abraço apertado, quis gritar. Mergulhou na sua cama querendo afundar nela… Engolfado na escuridão, escondido num canto, cheirando o medo, sua respiração era sólida. Estava do lado da janela (fechada), do lado da cama, como antes fizera. E não estava sozinha. Ela tentou gritar. Começou a chorar de mansinho: era o Aranha-grande que vinha para jantar. Sentiu o estalo da cama, seus braços de pelos, suas pernas de pelos, seu rosto de pelos pelo o seu. Um gosto amargo. Ela sabia gritar, mas como? Não tinha força. Estava com raiva da mamãe. O Aranha-grande veio para jantar hoje.
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Carne moída André Tartarini
A maneira tranquila com que Bernardo caminha não transmite seu real estado de espírito. Isso é um pouco estranho, já que não se esperaria essa capacidade de dissimulação de um garoto de nove anos. E ele sabe que, mesmo tentando parecer calmo, a única coisa que poderá eliminar a razão do seu estado de nervos é comprar de uma vez no açougue um quilo de patinho bem limpo, moído na hora e duas vezes. O andar estudado e calmo é uma tentativa de enganar a si próprio, ele talvez não se dê conta disso, ou talvez se dê, mas é certo que ainda não tem autoconhecimento suficiente (talvez nunca venha a ter) a ponto de isso estar claro na sua cabeça, e acho que ele nem quer que a ideia fique tão clara. Por isso mesmo, repete em silêncio as especificações da carne que a mãe mandou buscar. O passo arrastado tenta fazer com que o percurso demore mais. O Zé estará lá, com as munhequeiras de couro, a careca com a cicatriz no meio, a cara de maluco, esperando para meter a faca. Qualquer palavra mal empregada pode ser fatal, e sua tarefa não se resume a pagar e receber. É preciso pedir que o açougueiro limpe bem o patinho, que tire todas as partes brancas, que moa a carne na hora e que moa duas vezes. Duas vezes, a mãe repetiu. Bernardo não sabe se terá co-
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ragem de fazer todas essas exigências quando estiver frente a frente com a cara de maluco do Zé, cuja fama pode ser mentira, como a mãe sempre diz, mas não é ele — Bernardo — que se arriscará para saber. Melhor manter-se alerta. E a mãe parece querer jogá-lo aos leões a todo instante, vá no açougue comprar isso, vá no açougue comprar aquilo, passe no açougue e leve isso, peça aquilo no açougue. E então tem que enfrentar sozinho o Zé com as munhequeiras de couro e a cicatriz no meio da careca. Como se não bastasse, Boca Roxa atravessa a rua correndo, porque avistou o amigo, se aproxima e pergunta se ele quer ir ver a perna. E quando Bernardo responde que não pode ir ver a perna porque tem que ir ao açougue, o sorriso do outro parece dizer que ele talvez esteja com medo. E é por isso que então diz que sim, quer ver a perna sim, mas antes tem que ir ao açougue. E novamente o sorriso de Boca Roxa deixa transparecer a ideia de que Bernardo também talvez esteja com medo de ir ao açougue. Vai comigo no açougue? Depois a gente vai ver a perna. Boca Roxa, surpreendido pelo convite, deixou sua reação entregar que estava com medo de chegar perto do Zé. A réplica inteligente e rápida do mais novo o surpreendeu — é preciso tomar cuidado com Bernardo, pensou —, o desafio de levar o amigo para ver a perna agora depende de sua coragem para encarar o açougueiro. Pensou por poucos segundos, tentou inventar alguma desculpa minimamente plausível, mas a mera hesitação já o faria perder pontos. Aceitou o convite no reflexo e agora já não pode voltar atrás. Seguem em silêncio. A mim, parece que buscam alguma coisa a dizer, algo que provoque o outro de maneira sutil, mas nada lhes ocorre, e o desafio se limita a apressar o passo, provavelmente para que fique claro que ninguém ali está de moleza, com medo de encarar o Zé. Nem a perna. Quando entram no açougue, ele está sentado do lado de dentro do balcão e mexe sozinho em um tabuleiro de xadrez. Com uma das mãos, move as peças e com a outra, gira lentamente a faca. Sangue pingando da faca. Fala. É ele. E Boca Roxa aponta para o outro. Um quilo. Um quilo de quê? Esqueceu o nome da carne. Veio repetindo para si mesmo durante boa parte do percurso, mas não consegue lembrar. O tipo de carne não vem à memória, apenas as exigências (bem limpo, moído na hora e duas vezes) e uma saída lhe parece duplamente conveniente: voltar para casa, fugir,
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mesmo que momentaneamente, da vista do Zé e talvez se livrar do amigo (e da obrigação de, depois, ir ver a perna). Tenho que perguntar à minha mãe. Vou lá em casa perguntar e volto. Vira-se de costas para correr, mas o Zé o interrompe. Você não é filho da Matilde? Sou. O açougueiro ri um riso de maluco, ou de mau, e gesticula com a mão que segura a faca. Vamos ali dentro que tem um telefone. Liga daqui e pergunta. O Zé, sorrindo, conduz Bernardo através de um corredor na parte de trás do balcão e os dois entram por uma porta. Do lado de fora do balcão, Boca Roxa está apreensivo. Não sabe se a fama do Zé é verdadeira, mas ele, como todos os outros garotos, espalha histórias das coisas que o açougueiro faz com meninos no terreno baldio que fica atrás do açougue, e pode ser que agora mesmo, neste exato momento, o Zé esteja fazendo alguma coisa com Bernardo, e o amigo até cogitou a possibilidade de atravessar os limites do balcão para ajudar o outro, ou apenas matar a curiosidade e olhar o que eles estão fazendo. Vontade rápida. Boca Roxa se mantém no mesmo lugar, nervoso, apenas esperando, porque está com medo. Na sala, há um frigobar velho e uma mesa com um telefone em cima. Na parede, um calendário com foto de mulher pelada e uma janela gradeada de onde Bernardo vê um terreno abandonado com uma árvore meio seca. Nada mais. O telefone da Matilde eu sei de cabeça. Senta-se na mesa, e disca com um sorriso besta na cara. Alô Matilde? Qual é a carne que você quer? É. Ele tá aqui, sim. Esqueceu o nome da carne. Um quilo? Tchau. O Zé desliga o telefone, abre a geladeira, pega um saco plástico com uma carne não muito vermelha, entrega a Bernardo e fica esperando o dinheiro com cara de má vontade. Não há a menor condição de pedir para moer na hora, nem duas vezes, nem nada. A carne já estava no saco. E voltam os dois pelo corredor, o Zé com a faca numa mão, o dinheiro na outra, o garoto sem coragem de pedir o troco — a mãe deixou explícito que é para esperar o troco. Mas o Zé não vai entregar o troco, e os garotos vão sair sem olhar para trás, os dois se cagando de medo, um sem querer demonstrar isso ao outro, em silêncio, passos apressados, e saem dali.
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Bernardo deixa escapar um “Caralho…” e o outro ri amistoso, porque não consegue vestir armaduras com o medo que está e, de qualquer maneira, sempre se pode se valer disso mais tarde. Por ora é melhor manter as armas baixadas, estão os dois no mesmo barco, o mais velho riu relaxado, e emendou sem dar tempo para o amigo respirar: agora vamos lá ver a perna? Bernardo percebeu o momento de erguer as armas novamente. Vamos. E enquanto dão a volta no quarteirão para chegar ao terreno baldio, Boca Roxa fala da perna, tentando tratar o episódio do açougue como coisa banal, que já estava esquecido, apesar de suas pernas ainda não estarem muito firmes. No dia em que a encontrou, passou mal, chorou. Isso ele não conta a ninguém. A perna fedia. Mas agora, já não lhe causa espanto nenhum. Jogou um plástico preto em cima dela e um pouco de mato em cima do plástico. Agora, leva os amigos ao terreno baldio para mostrá-la, tratando o assunto como segredo de estado. Leva um por um. Enquanto o amigo se assusta com o membro em estado inicial de decomposição, ele se mantém calmo, sorrindo até. Isso vem lhe garantindo mais autoridade entre os outros garotos, e foi por essa razão que levou Bernardo até a perna, no fundo do terreno baldio, mesmo apesar do lusco-fusco do fim de tarde, que não permitiria aos dois observar com clareza o pedaço do corpo de alguém que tinha sido largado ali, sabe-se lá por quê. Quando Boca Roxa tira o plástico de cima da perna, o que se vê é uma nuvem de moscas levantando voo. Bernardo está tenso, Boca Roxa percebe, e parece que começa a vencer finalmente a disputa que se iniciou no momento em que se encontraram, uns quarenta minutos antes, a caminho do açougue. A cara do mais novo deixa claro que a imagem da perna, meio rosada, cheia de moscas em cima, mexeu com ele. O que Boca Roxa não sabe é que o espanto no rosto do amigo não é só por causa da perna, meio dobrada, com uma ferida estranha na panturrilha, onde se vê uma carne não muito vermelha. Bernardo reconheceu a árvore e a janelinha com grades do muro dos fundos do terreno baldio. Ele consegue ver dentro da janela: a luz está acesa, o telefone em cima da mesa toca. O Zé aparece para atender. Boca Roxa também se dá conta de que o terreno baldio onde eles estão é o mesmo em que o Zé supostamente faz as coisas com os garotos. Os dois não precisam trocar palavras sobre isso. Por um instante, os dois têm a impressão de que o açougueiro os viu mexendo na perna, e isso faz com que desembestem numa carreira deses-
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perada, Bernardo tropeça, o saco com a carne cai no chão e se abre. Ele empurra mais ou menos a massa amolecida e meio rosada para dentro do saco, e isso gera um mal estar estranho, um enjoo meio azedo. Levanta-se rápido, o amigo já está lá na frente e se esqueceu de cobrir a perna com o plástico — mas só se dará conta disso mais tarde. Estão correndo de volta para suas casas e quando passam em frente ao açougue, o Zé grita chamando os dois. De início, fingem que não perceberam, indecisos, sem saber se olham para trás ou continuam correndo. Quando se dão conta, o açougueiro está correndo atrás, gritando, chamando, e continuar correndo agora seria fazê-lo perceber que estão descaradamente fugindo dele. Param. O açougueiro também para de correr e vem andando com a faca na mão. Sangue pingando da faca. Vamos ali no açougue rapidinho. Só ele? Boca Roxa tentando fugir. Não. Pode ser os dois. Bernardo tentou sair correndo, mas o Zé estava andando atrás, com a faca — pingando sangue — na mão. A sua mãe tá preocupada com você. Ligou para o açougue te procurando. Pode entrar. Levanta o balcão para o garoto passar. Só ele? Boca Roxa tentando fugir de novo. Os dois, responde de má vontade. Da sala, os amigos olham pela janela, mal veem a árvore meio seca, está quase totalmente escuro lá fora, olham um para o outro ao mesmo tempo e não comentam nada. O açougueiro pega um saco de carne no frigobar e entrega a Bernardo. Entrega mais esse saco a sua mãe. Fala que é cortesia da casa. O teu troco. O mesmo sorriso besta de antes. Enfia a mão no bolso e pega uma nota de cinco. Eles não têm mais pressa, Boca Roxa comenta da perna, dizendo que o amigo não precisa ter medo, que se ele chorar de medo, os outros vão saber e ele vai levar porrada. Mas é melhor não comentar sobre o que acabou de acontecer. Você não pode falar disso com ninguém. Vai à merda, Boca Roxa. É preciso tomar cuidado com Bernardo, ele pensa outra vez, sem saber como responder ao que o outro disse. A mãe está no muro esperando, nitidamente contrariada. Faz questão que o filho perceba. As razões são várias. Bernardo só agora se dá conta
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de que já está escuro (e não era para ele estar fora de casa) e de que está sendo visto ao lado de Boca Roxa (apesar das ordens explícitas para que não andasse mais com o amigo, porque ele é mau elemento). Entra em casa sem se despedir do outro e finge não perceber o olhar reprovador que o espreita. Entrega a carne à mãe e segue andando. Que carne é essa? A que a senhora falou. Ele moeu na sua frente? Moeu. Eu vou perguntar mais uma vez: ele moeu essa carne na sua frente? Moeu, mãe. E esse outro saco? Ele disse que é cortesia da casa. Matilde permanece séria. Vai até o telefone e percebe que o filho a observa enquanto disca. Vai pro teu quarto. Bernardo está no quarto, tentando ouvir a conversa da mãe no telefone, mas só ouve as risadas dela. Boca Roxa entra em casa sem que a mãe o recrimine por chegar tarde, e isso o incomoda. Lembra-se de que deixou a perna descoberta. A perna ficou lá, cheia de mosca em cima.
ANDRÉ TARTARINI
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Cobertor Bruna Beber
Pensei muito sobre Doralice nesses tempos todos que passaram, e que passei dormindo debaixo destes mesmos cobertores de retalhos coloridos costurados de maneira pouco uniforme. Ao cobertor dei um nome que não revelo aos meus interlocutores. Contentem-se em saber que é de retalhos coloridos costurados de maneira pouco uniforme. Sou de bom coração e direi também que quadrados grandes, quadrados pequenos, paralelepípedos, quadrados médios e triângulos em três dimensões, já que se somam cinco as suas faces. A avó, Dona Maria. Dona, como todas as senhoras que exibem fios brancos na cabeça, e Maria, como em quase todas as famílias destas terras com sabiá e palmeiras sob o sabiá existe um exemplar, dizia Foi feito com muito carinho. Frase patenteada por avós, e depois por mães, no Mercado de Boas Ações Para Um Mundo Feliz. Anos depois, e muito espertamente, impressa nos saquinhos das padarias dos portugueses mais sagazes do bairro. Dona Maria era filha de índios com holandeses, eu dizia a Doralice, tentando desenhar no ar uma parte da rota que havia percorrido, ao longo dos séculos, para chegar aonde cheguei: o cruzamento formidável do pé de paraíba do meu pai com a bunda achatada e italiana da minha mãe.
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Acho que vim de um tronco da Península Ibérica cavalgado por um mouro muito feroz com uma peixeira nordestina chamada Jerônimo. E nele eu via descrita a imagem de um chá com a monarquia presenciando um ritual indígena chamado Jurandi, em que duzentos e setenta e sete índios mexicanos, bundinha pelada e peitinhos idem, cantavam para um deus surdo. A monarquia queria saber com quem falava, e eu, tradutor da monarquia na aldeia, dizia que com um deus surdo e com problemas de aprendizagem, tamanha era a quantidade de repetições de seu nome que se fazia necessária, Uiri-uiri, o deus surdo. E que, em tupi-guarani, “Uiri-uiri” significa “ausência de som”. Fui demitido, pois, do Serviço de Traduções Para a Monarquia durante este magnífico desempenho da Técnica do Improviso. Mal compreendido, fui parar no Brasil. Ora, tentei inventar minha própria história, e que mal haveria em corrompê-la, em saqueá-la, pois se a história é justamente aquilo que gostaríamos que ela fosse? Por isso inventamos. E somos punidos! Injustiça! Ora-ora, como acham que são escritos os livros? Os grandes feitos dos grandes homens, os grandes atos da história sempre dependeram da criatividade de rapazes como eu! Fui parar no Brasil. O que eu julgava, com semblante plácido e íntegro, ser um bem para a humanidade dali por diante, terminou em cana. Em cana não, em viagem. Deportaram-me. Depois de rodar o mundo, eu contava para Doralice Vim parar no Brasil. Adiante, a espada de um paraíba que nos bolsos carregava somente um pente e uma carteira de identidade, entre as pernas abertas da Bunda Chata, que, logo depois de andar com alguns rapazinhos da vizinhança e superar em um ano a estimativa de abortos da Aldeia do Macarrão, tomou um chute da bota e veio parar no Brasil. “Sagaz” e “padarias” são palavras que se encerram em sinônimo quando falamos de portugueses. E era das lembranças amorosas de pique-pega entre as videiras, dos passeios crepusculares e escondidos às oliveiras, que havia nascido Doralice. Era só isso que eu sabia sobre ela depois de tantos anos de namoro. Ela tinha vergonha das escapulidas de seus pais, Doralice era muito careta, pensava, ainda hoje, século XX, sobre essas tolices. E eu Ora-ora, Doralice, conte-me tudo! Pois sabemos que o amor bastante é como um caramanchão: enfeita os jardins de uma casa até o alto. E se deixar subir por todas as paredes, uma casa inteira, um lado inteiro da rua, um bairro, o país, o planeta e todos os sistemas solares, Doralice, o amor verdadeiro é como um caramanchão, tomou chá de bambu quando
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criança, cresceu enormemente e caminha com segurança pela linha do horizonte, o ponto de partida, terminar solitário no fundo do mar agarrado a um baú. Mas, enquanto isso, é praga, tomou conta da alma e do juízo! E quando vemos, Doralice, já estamos brincando de pique-pega entre as videiras, indo pimpões às oliveiras, e sem perceber, rompemos o lacre que nos permite dar ao mundo o que de melhor podemos: nosso fruto! Nesse caso, você, o fruto de seus pais. E quando vemos mais, Doralice, viemos parar no Brasil. Sua mãe e seu pai, pós-coito, fugidos do seu avô, pai de sua mãe. Com algum dinheiro roubado do gavetão de seu avô, sua mãe amarrou seus panos brancos de bunda e suas memórias da infância, e bateu palmas na porta do casebre da família de seu pai. E ele, a essa altura, com algum dinheiro garantido pelo seu pai, nesse caso seu avô, já havia programado estrada às suas botas. Um beijo na mãe e um pouco de bolo e leite para alimentá-los na viagem, uma carícia exagerada que despenteia o cabelo de seus irmãos, seus tios, a despedida para sempre. Seus pais, agora juntos, se beijam ao se encontrarem no portão, seu pai beija a barriga de sua mãe e lá vão eles, Portugal Querida, vindo parar no Brasil e abrindo uma padaria. E foi justamente lá, quando me debrucei pela primeira vez naqueles balcões altos e alvos num final de tarde para pedir um copo de leite com bolo, que vi, pela primeira vez, Doralice. Seu Zé, a esta altura o purtugamiserável-dono-dapadaria-que-não-capricha-no-pingado, tinha mil defeitos, mas sua única qualidade, Doralice, eu não havia descoberto até então. Um pouco de leite quente e um pedaço de bolo. Meus lábios mal conseguiam se colar para melhor articularem as palavras, eu não consegui dizer Um pouco de leite quente e um pedaço de bolo, por favor! quando meus olhos passaram pelos olhos de Doralice. Pigarreei, ensaiei mais duas vezes a frase Um pooouucccc. Dei agora para gaguejar. Até ver Doralice, sabia que tinha mil defeitos, mas jamais desconfiei de que fosse gago. Respirei fundo, recorri ao céu, agora teto da padaria, recorri aos passantes. Olhei para a minha roupa, e na manga da minha camisa As Três Marias, três furos enfileirados baixavam ainda mais meus olhos diante de Doralice. Consultei o relógio, já havia passado o um segundo em que todos esses fatos se sucederam. Por certo, o segundo mais importante dos meus vinte oito anos de vida. Pulei ao próximo, e numa disparada de cuspe e nervosismo consegui dizer, finalmente Doralice, case-se comigo!
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Movimentava seus dedos para cima. Era bonito o fevereiro ao som de uma antiga marchinha de Carnaval. Eu me balançava mais que Doralice, recém-violentada numa cama de parto, ainda tinha algumas dores. E agora, repensando seu estado, eu me movimentava cúmplice, meus dedos para cima para fazer companhia às dores de Doralice. E no intervalo curto entre uma marchinha e outra, nós não percebíamos que cinco anos se passavam. Doralice ainda se cansava e ia encostar-se à sombra da árvore da pracinha, e movimentava seu dedo para cima, agora lento e sem fantasia, mostrando o topo da árvore, onde descansa agora um sabiá. E no topo dessa árvore, eu imaginava um pouco do mundo inteiro, das videiras às trincheiras nordestinas de Lampião, da Holanda à bunda dos índios, do pudor de filha virgem de imigrantes portugueses donos de padaria no Brasil à semvergonhice de um malandro quixotesco, que ganhou a vida se divertindo às custas da História e da Coroa. E agora, dançando no mesmo passo que o nosso, apontando os dedinhos pro céu dizendo Vai chover!, nosso majestoso sabiá. Nasceu afinado, cantando aos outros sabiás o porquê de se chamar Miguel dos Anjos Orleans e Bragança Joselito Sonrisérpio Colesterol Mufumo do Amaral Pereira Góis. Crescido e alimentado pelos segredos milenares das avós que, com muito carinho, transformam os cobertores, o leite e o bolo numa mistura indispensável para engrossar o Índice do Bom Crescimento do Brasil desde que as avós vieram parar no Brasil. Desce já daí, menino! Meus lábios não conseguiam se colar de maneira rígida para articular uma frase imperativa. Eu queria dizer uma frase como Desce já daí, menino!, mas o susto empalou minhas iniciativas. Ao meu lado, Doralice bambeava nas penas. Seus lábios, que tampouco se colavam, ganhavam cor branca. E ao mesmo tempo em que eu pensava para onde ia todo aquele sangue português de província que não corria mais os lábios, não ganhava mais as pernas, eu pensava que meus lábios, ainda vermelhos, precisavam se colar e precisavam, ao mesmo tempo, desempenhar duas ações: 1. dizer alguma frase como Desce já daí, menino! para tentar ganhar algum tempo antes de ter forças para escalar a árvore para resgatar nosso sabiá, e 2. tentar obter, com algum sucesso, nos lábios destacados e sem cor de Doralice, e Doralice agora já atirada aos braços do chão, alguma espécie de reavivamento assemelhado a uma respiração boca-a-boca. E durante este um segundo, talvez o mais trágico dos meus trinta e três anos, todos esses fatos se sucederam e eu não consegui pular
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ao próximo. Estava estatelado aos meus pés, e em cima do corpo de Doralice, nosso sabiá. Pensei muito sobre Doralice nesses tempos todos que passaram, e que passei dormindo debaixo destes mesmos cobertores de retalhos coloridos costurados de maneira pouco uniforme. Esta, minha única memória da infância. Registro o que tenho sobre ela em um caderno da época que eu gostava de escrever histórias em cadernos. Doralice era minha namoradinha da infância até o começo da juventude e isto é tudo. Antonio sempre me vem com essas bobagens. E nunca se dá por satisfeito com uma história só. Vai mexer nos seus cadernos, que ele chama de diários, e me conta outras histórias sobre sua Doralice. Ele fala de um episódio numa padaria, ele fala de um dia lindo de fevereiro com Carnaval. E diz que eu devo me lembrar de tudo isso porque já foi contado outras vezes. Não entendo que tanta lucidez é esta que ele me exige se já sou tão velho! Ele diz que está escrevendo sobre a minha vida. Mas que tanta lucidez é esta que ele possui sobre os fatos de minha vida se não chegou a vivê-la! Antonio inventa muito. Às vezes penso que Antonio pensa que ele sou eu! E pensei muito sobre esses tempos todos que passaram durantes esses outros trinta e três tristes anos que vivi sob a terra e sobre tudo o que me contou Antonio da existência de Doralice. Mas de nada consegui recordar com nitidez e vivacidade. Todos os dias vem até aqui, ao pé de minha cama, o Antonio, o enfermeiro, contar-me sobre Doralice e o sabiá. E todos os dias vêm à beira da minha memória as histórias de Doralice que Antonio conta. Mas Doralice não consegue avançar, passar das beiradas, são borrões as imagens de Doralice. Vem aos pés de minha cama, todas as manhãs, também, um sabiá. Depois ele salta, se empina no parapeito da janela e começa a cantar. O Antonio me fala muito sobre o sabiá e as lembranças de uma tal de Doralice. Todos os dias, os três me batem à porta para visitar. Senta-se à cama Doralice ao lado esquerdo, Antonio no meio, e à direita o sabiá.
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O vinagre Dodô Azevedo “L’amour c’est l’infini à la portée des caniches.”
L-F CÉLINE
Hoje você vai morrer. Posso eu te amar nesta noite fria? Posso entender o que te calaria? Você me deixa ir embora assim, fácil, dócil, estático, irreversível? Você pode parar de me interromper? Tantos anos de casamento, aonde eu iria? Você na cama, eu apenas azia? O Justo e o custo do Justo, o casamento do Justo com o Luto enquanto anoitecia? Se tudo o que passou por minha cabeça hoje foi tua despedida da minha vida? Não me interrompa, você sabe o que é a sua vida? Seria onde sua vida vicia e gruda no Coração, esse outro custo do Justo? Cale-se, descanse, quantas vezes nós estivemos separados? Quantos apocalipses evitamos? Você é o Meu Pequeno Céu Azul, você lembra de ter me dito isso? Se cale, apenas lembre: que mal faz ter um pequeno céu? Medo de perder o céu? Raiva de temer o céu? Dó de merecer o céu? Lar é lá no céu? Posto isso, não me interrompa, o que seria história? Seria o que ocupa o tempo? Seria o que passa rápido? E o que seria velocidade? Não me interrompa, temos pouco tempo, você vai morrer, entende? A velocidade da minha tristeza é uma encomenda da dor? E o que seria a dor? A velocidade com a qual se entende? E o que é entender? A vertigem da velocidade? E o que é tristeza? O modo que a beleza encontrou para casar-se com a vertigem? Você vai crescer quando morrer? Você sabe o que na verdade dói tanto em teu corpo? Não chore, por que você chora? Despedir-se de mim não era um sonho teu? Lembra e entende a perversão de nossa relação sadia? Dói, lembra e entende a arrogância de pretender nos completarmos? O que é completar, e não insista em interromper, tente relaxar e pensar comigo, o que é bastar-se ao outro? Porque insistimos, todos nós, nessa inocência útil? O que é utilidade? Há no Mal alguma coisa útil? Por que o Mal é denso e o Bem é leve? Não existe fardo no Bem? Prazer no Mal? Amor no Mal? Peso útil? Peso e prazer? Despedida e leveza? Por que essa insistência na companhia? Em nos tocarmos além do corpo, por que essa amoralidade? Por que
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estabelecermos alma a tudo? Por que pôr calma num objetivo mudo? Você vê que a hora da Vertigem é agora? Você vê que o momento mais perverso não vive quem morre, vive quem fica? Você é? Que tanto “cê”? Porque tanto “que”, “por”e “cê”? Que é você? Por é você? Cê é você? Não feche os olhos, não se vá até que termine -— ou seria você menor que um conto? Seria você menor que a Linguagem? Você acredita em fantasmas ao contrário? Acha que eu vou te assombrar quando você rir de tudo isso rumo ao mundo ao contrário? Como será rir sem corpo? Não chore, repito: você sabe o que, na verdade, dói tanto em teu corpo? Você sabe, na elegância justificável dos últimos suspiros, o que é a Verdade? Quem busca a Verdade deve se apropriar da dor? A Verdade nunca fere a quem diz? Seria verdade que o oposto da Mentira não é a Verdade? E que as mentiras mais cruéis são ditas em silêncio? Não me olhe assim, as pessoas fracas não podem ser sinceras? As pessoas francas deveras? Não se pode ser e parecer sincero ao mesmo tempo? Seria fato a hipocrisia ser uma homenagem que o vício faz à virtude? Chorar enquanto se possui um corpo, o mais indecente nome que se pode dar à alma, é hipocrisia? O que é o corpo? Escopo? Objetivo? A primeira cova do teu esqueleto? A imagem construída à semelhança do espírito? Não me interrompa, você esquece que o que a letra mata o espírito vivifica? E o que é espírito? O vento sopra onde quer? Não era você que dizia que nada mais supérfluo do que o espírito num organismo vivo? Que o espírito condena tudo o que inveja? Você não acha necessário admitir isso agora? Se o que é necessário nunca é ridículo? Se a necessidade não tem lei? Se a necessidade é a mãe das artes e avó dos vícios? O que seria a arte senão o vício do último suspiro? O que seria a arte senão uma amante ciumenta? Seria a arte a Mentira que revela a Verdade? Seria a arte a mentira que eleva a Verdade? Seria a arte onde nos ultrapassamos? A vida curta inveja a arte? Seria morrer a Verdade da arte? Seria morrer a Verdade do espírito? Não negue balançando a cabecinha, não gema, não se mova, não tema: mais terrível que a morte não seria ter a consciência de viver eternamente e nunca poder morrer? A morte não vive escondida nos relógios? Fugir da morte não é acabar por persegui-la? Não morremos a cada dia? Depois de receber o vinagre, Jesus disse: “Tudo está cumprido”? Pra você, o que seria o Vinagre? O vinho que não deu certo e amargou? E se no vinho está a Verdade, Vinagre seria a amarga verdade? A vida que fermentou? E o que seria fermentação? Obter energia por meio da oxidação da glicose sem suar oxigênio? Teimosia? Transforma-
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ção? Há o que não se transforme? Há o que não fermente? Há o que não teime? Existiríamos sem a teimosia das coisas em dar errado? Existiria uma estrela sem o que, antes dela, confuso, fermentou, deu errado, transformou-se em vinagre? Seria o quê, o universo: Vinho, Vinagre, ou indiferente ao fato de nascermos ou morremos? No universo, tudo prossegue por linhas indiretas, amargas? Você não suspeita ser o universo não apenas mais estranho do que supomos, porém mais estranho do que podemos supor? Ser uma esfera infinita, cujo o centro está em toda a parte e a circunferência em nenhum lugar? Concorda que o Vinagre é a totalidade dos fatos, não das coisas? O mundo é o lugar perfeito para se viver ou para se morrer? Viver de quê? Morrer de quê? De saudade, esse alimento do espírito desocupado? Os perfumes, as cores e os sons correspondem-se? Concorda que a vida ganha em valor quando a desprezamos? Não precisa falar, permaneça deitadinha, apenas reflita: se a vida não deve ser levada seriamente, a morte também não deve ser levada a sério, não é? Morrer de quê? De amor? Que amor? Essa capacidade de perceber o semelhante no dessemelhante? O amor, que só encontra sua verdade no momento da separação? Esqueceu que o amor, como a medicina, é apenas a arte de ajudar a natureza? O amor, esse pássaro que põe ovos de ferro? Essa sede depois de se ter bebido o bastante? Esse egoísmo de dois? O amor, de todos, o vinho que mais depressa vira vinagre? Você morreria de amor? Você saberia separar o corpo do espírito? Entende a natureza do meu amor pelo seu corpo? Esse grande e raro amor por seu pequeno corpo? Sabe você por que os amores raramente tem por objeto um corpo, a não ser que se funde nele o medo de o perder, a incerteza de o encontrar? A verdade é que você sabe tudo, não é? Com essas patinhas macias, esse pelo curto, esses olhinhos tristes, você sabe de tudo, não é? Não fosse você uma pequena gata velha e doente dos ovários, saberia menos de tudo? Se não tivesse o dom de miar ao invés de falar seria menos minha esposa? Não responda com gemidos desconfortáveis, esqueça: você morreria de saudade? Você se entregaria a uma unanimidade qualquer? Você bastaria em memória? Numa história? Num conto? Num livro? E o que faço com todos os nossos livros? Estes que tenho na mão, que te dito trechos, cito frases, só para que entendas que a literatura é o desperdício das horas? O que faço para que você confirme, sem miar, apenas abanando a cabecinha, que a literatura não passa do esforço do homem para se indenizar pelas imperfeições de sua condição? Que não passa de um dicionário da desor-
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dem? Que palavra nada mais é que o vinagre do miado? A palavra miado? A palavra gato? A pré-palavra? Você não precisa falar: mie, chie, crie, cria, crê? E se os livros caíssem em cima de nós? E se os livros e os maços de cigarros não existissem? Se não existissem as noites de silêncio? As tardes na rede da varanda? O peso da cultura em nossas cabeças? E se este fosse o ano um, sem nenhum livro escrito antes, faríamos que literatura? Existiu, alguma vez, alguma dupla como nós? A palavra dois? Não me interrompa, exista: o que você acha de livros? O que acha da literatura? Me dê uma pista, o que acha das letras? O que a letra mata o espírito vivifica? O que vive e fica? O peso da literatura que aleija jovens escritores? A luz do sol perde para a noite? O futuro passa? A palavra passado? A palavra esposa? O casamento da palavra? Prosseguimos separados? Você acha que nós deveríamos ter tido um filho? A palavra delírio? Você nunca soube do meu desejo que você fosse uma gata no lugar de uma mulher? Não, fale, mie, você consegue miar? Nunca entendeu que você teria mais de mim se agora fosse uma gata velha doente do ovário? Todos querem ser gatos, não reclame, não agonize, não minta: você nunca quis ser uma pequena gata de pelo curto? Não somos nós um casal de gatos? Não miamos um ao outro todos os dias antes de adormecer? Não nos olhamos e esbarramos como dois gatos irmãos e inimigos? Você não é a onça da surpresa? Seus cabelos, sempre pendendo, não são a noite nos olhos dos bichos domésticos? Onde começa a mulher e termina a mentira? Para onde vai minha esposa? Eu vivo e fico? Homem fico? Corpo fico? Tecido? Analgésico? Emitindo apenas o óbvio? Apenas um contorno de uma sintaxe? Ritmo? Ambulante? Vapor? Um projeto? A raiz secreta? A voz por cima do trovão? O temporal acima do vento? A chuva morna que cai antes do meio dia? O tempo sobre uma raiz eterna? O cheiro da manhã? A janela da torre? O ácido no interior? O masculino imerso no feminino? A força imersa na compaixão? O fogo imerso na água? Tremo de dó e de medo? Onde fico? Nostalgia? Onde foco? Veludo? Intimidade? O que é intimidade? Caixinha de música? Gota d’água? Chave de casa? O bico vermelho do coração? O roxo na coxa? A violência? O encontro, essa violência? A despedida, essa palavra? O que é a violência? E de repente: — Pare de respirar, respira por mim agora. O VINAGRE Dodô Azevedo ficções18
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A caderneta Mariel Reis para Márcio-André
Francis Ponge estava misturado àquela luz matinal, quase não podendo ser percebido entre as folhagens do jardim, por onde costumava passear. Levava consigo uma caderneta onde tinha por hábito anotar os pensamentos que lhe ocorriam durante a caminhada, refletindo calmamente sobre a natureza ao redor, levando para o seu interior o concerto do mundo, onde sobrava em cada coisa música, intenção e palavra. Não distinguia isso claramente, porque pensava através das palavras que pousavam suavemente sobre a folha, discorrendo sobre o regato que corria adiante, sobre a rede de sombras tecidas pelos galhos violentados pela luz solar e a súbita rebeldia com que o vento alardeava sua passagem pelas aleias de flores, tombando-as como pisoteadas por um exército. Ponge se comovia diariamente com a natureza que não se permitia enquadrar sob as leis da física, da química e biologia, arrependida por ter descido aos homens desta forma, abandonando as razões pitagóricas, rendidas em poemas que pudessem revelá-la em sua volúpia discreta. Apertava os olhos quando escrevia em sua caligrafia miúda o relatório das vidas minúsculas, esforçando-se por não traí-las em sua mensagem — caso possuíssem alguma. A caderneta se enchia dos garranchos, com trechos repletos de setas indicando aonde deveriam estar ligados os retalhos quando se organizasse o poema para o futuro livro — que ainda estava longe, porque lhe era difícil decidir o material com que trabalharia e somado a isto, andara lendo poetas americanos, invejando os versos, decidindo que mudaria a forma
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de sua composição. Não havia nada de errado em seu modo de arranjar a forma de seus poemas, mesmo que parecesse verbete de um dicionário criado por ele e para ele como um menino que se metesse em aventuras de catalogar o mundo à sua maneira. Francis Ponge não atribuía a isso importância, mas queria alterar o comportamento gráfico de seus pensamentos na folha em branco, sulcando um rio sinuoso, no curso de sua criação. Reclamava em voz alta que não pareceria com T.S. Eliot nunca se não acomodasse os versos daquele modo, não ligava quando no ônibus lhe pegavam a recitar certos poemas do autor como para capturar o ritmo, para se impregnar desta música desconhecida aos seus ouvidos, que antes classificaria como bárbara, mas podia senti-la bem, pulsando em sua têmpora, atravessando-lhe as mãos que marcavam com pequenos movimentos a acentuação silábica dos versos brancos do autor inglês. Sentou-se em um banco do jardim, coberto com uma pequena marquise branca, coçava a cabeça com a caneta como se isto pudesse devolver-lhe a consciência interrompida pela algazarra das crianças em piquenique no parque com sua governanta. Isto o aborreceu, mas não o desanimou. A manhã estava esplendorosa, as flores desprendiam um aroma ímpar e suas ideias não cessavam, mesmo que certo tremor em sua perna direita atrapalhasse suas caminhadas. A caderneta descansava sobre a coxa direita, exatamente a perna do tremor, olhava intensamente as crianças que brincavam sem direção, quando percebeu que uma moça lhe sorria, também misturada à luminosidade, translúcida. A moça estendeu-lhe os braços, Ponge constrangido, porque era uma natureza tímida, não respondeu imediatamente o gesto, parecia sentir que se desintegraria se a tocasse. Não tardou para que a caderneta permanecesse sozinha naquele banco.
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Flávio Izhaki (Trecho do romance) Amanhã não tem ninguém
O trajeto curto, reconhecível. Do hospital ao cemitério, 15 minutos. Quando o carro da funerária saiu e tomou aquele túnel, o destino selado, talvez eu pudesse até ultrapassá-lo e mesmo assim não me perderia. Mas não ultrapassei-o. Segui com prudência, guardando uma distância respeitosa. O carro parou na entrada onde acontecem os velórios. Logo um táxi emparelhou e o filho saiu batendo a porta com força. Estacionei um pouco distante e deixei o pisca-alerta ligado. Ainda não sabia por que estava ali, se deveria estar ali, se ficaria ali. Mas ali estava, parado, olhos fixos no porta-malas aberto, no caixão sendo puxado, nas alças agarradas pelos dois homens da funerária, na força que os músculos de seus braços contraídos revelavam, no filho seguindo o cortejo, calado, cabeça baixa, no caixão desaparecendo pela entrada do cemitério, nas sombras, nas minhas sombras, no homem que entrou na emergência reclamando de falta de ar poucas horas antes, quantas horas antes?, e agora ele não era mais ele, apenas um caixão de imitação de madeira fechado. Uma batida no vidro: “é proibido estacionar aqui. Mas ali tem um estacionamento pago, o senhor por favor pare lá.” Um guarda. Uma ordem. Não era minha intenção parar, mas quando vi dois reais na mão do flanelinha. E agora, ir para onde? Por que não estou em casa?, poderia pensar, mas confesso que não. Algo me puxava para o cemitério, para o caixão fechado, ou aberto, minha culpa talvez, não sei. Da porta não conseguia passar. “O senhor é parente?”. “Parente?”, respondi, com outra pergunta. Uma mulher se aproximara, falava em tom modulado. “Parente do falecido que entrou há pouco. Trabalho naquela loja de flores ali, o senhor quer encomendar uma coroa? Temos vários preços e tamanhos.” Não sei por que, fui até a loja. A mulher me mostrou duas grandes coroas, elogiei a beleza de ambas. Ela já tinha uma caneta na mão. “Quer ditar uma frase? Fazemos na hora. Em 15 minutos entrego lá em cima.”
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Pedi desculpas, mas não. Apontei para uma rosa vermelha, para encerrar o assunto, fugir dali, ter algo em minhas mãos. “Se o doutor me permite, rosa vermelha não combina com enterro. Pode ser um copo de leite?” Aceitei, sem palavras, apenas um aceno de cabeça, mas minha cabeça estava longe, em outro lugar, numa escolha de palavras. Por que a mulher me chamara de doutor? Sim, estava de branco. Sim, é natural um vendedor chamar o cliente de doutor quando quer bajulá-lo. Mas será que ela sabia mais do que isso? Não, impossível, cheguei à conclusão. O copo de leite na mão. “O doutor ainda não pagou”, a mulher disse quando eu me afastava, a mão segurando meu punho, o mesmo punho, a memória da dor se insinuando. Pedi desculpas, paguei, dispensei o troco. De novo na porta do cemitério, dessa vez com flores na mão. Entrei. A claridade chapada perdendo espaço para uma sombra escura, úmida. A grande escada, imperial, ameaçadora. Um senhor de uniforme dormitava numa cadeira simples, encostado na parede. A escada era a única alternativa: subir ou retornar para a claridade, para a loja de flores, “O doutor já vai?”, para o carro, para casa, “Como foi o plantão, meu filho?”. Melhor ficar, subir, encarar o meu primeiro morto. Eu nunca tinha visto um caixão aberto. Meu único enterro fora o da minha vó, dois anos antes, mas judeus enterram com o caixão fechado. Não há velório, na acepção cristã da palavra, tudo é feito com mais presteza. Vou ver o rosto dele de novo, era o que pensava, meu morto. Preciso ver aquele rosto novamente, desta vez sem dor, falta de ar, ressuscitador tentando restaurar o brilho dos olhos. Ao chegar ao cume da escada vi uma sala com a porta encostada. No quadro, com letras de encaixar amarelas como de um joguinho infantil ou fachada de cinema de rua antigo, estava escrito o nome de Maria Antonia de Aquino. Não era o meu morto. Não era por minha culpa que ali choravam, pensei. A próxima sala estava fechada, sem letras que indicassem quem estaria dentro. Abri com cautela, e de novo a claridade chapada do dia cortando os olhos, eliminando a placidez espaço-tempo de um ambiente sem data ou local. Depois da luz, nada. Um púlpito, vazio, esperava o próximo morto descansar. Dois sofás em L velhos, o couro se esfarelando nas beiradas, mas lisos, na medida do possível, sem nenhuma memória de peso, sem nenhuma lágrima derramada, apenas um cheiro de Bom Ar borrifado ao exagero. A janela, aberta, desnudava o campo de cruzes e lápides brancas
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do cemitério, o horizonte de silêncio no meio da cidade, a solidez da morte gritando em sua brancura acinzentada pelas décadas, séculos em alguns casos, semanas em outro, dias, horas. Ele morrera havia menos de seis horas. Debrucei-me no parapeito com o copo de leite na mão. Chorava. “Seu pai também?” A voz vinha de lugar algum. Olhei para trás e nada. A sala vazia, o púlpito intocado, os sofás sem nenhuma marca, a porta, encostada. De novo a voz: “Aqui do lado.” Do lado direito, a próxima sala, o próximo morto, o meu morto, o filho do meu morto. “O meu foi o meu pai. Tão novo: 54 anos.” Então era mais novo do que pensava. “Minha mãe está em estado de choque. Minha irmã ficou com ela. Eles só vêm mais tarde. Meu cunhado está tentando que o enterro seja ainda hoje. Eu espero que sim. Que isso acabe logo. Que eu não precise passar a noite aqui com ele sozinho.” Eu assentia com a cabeça, somente isso; o que poderia fazer que não isso? Não poderia ir embora ou passar para a sala ao lado. Só me restava aquele silêncio de balançar positivamente a cabeça. “Eu nunca enterrei ninguém”, ele continuou. “Nem sei o que tenho que fazer. Me falaram que minha família tem espaço aqui, então vim para cá. Mas tenho que pagar alguma coisa, tenho que comprar flores ou eles colocam, coloco anúncio no jornal amanhã? Mesmo que ele seja enterrado hoje? Como saber essas coisas?” Ele parou de falar por um minuto. Sei que foi um minuto porque contei. O silêncio se mede em segundos. E segundos se contam sem dedos ou voz. “Sabe o que é mais irônico?”, ele disse. Olhei diretamente para ele pela primeira vez. Nos olhos. Vermelhos. Desalentados. “Meu pai saberia o que fazer.” E parou, por outros tantos segundos. “Essa coisa de enterro. Meu pai já enterrou meu avó e minha avó. Sabe como se enterra outra pessoa. Eu não sei nada disso.” De repente um barulho. Um som de abraço, choro convulsivo. Saí da janela, deixei o copo de leite no sofá e fui embora. Quase correndo. Se pudesse teria saído correndo. Eu precisava ir embora, fugir, desaparecer. Mas antes a loja de flores, uma coroa em 15 minutos, da mais cara: “Com muitas saudades, seu filho”.
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Simone com Kasimir Maliévitch Sonia Coutinho
Sou eu, Simone. Posso entrar? Não, obrigada, eu me sento aqui mesmo, nesta cadeira. O quê? Você também ouviu falar disso? Mas não é verdade. Com Marcel Duchamp, nunca! Não aconteceu nada entre nós, pode acreditar. Marcel esteve no Rio, ano passado, nós nos encontramos algumas vezes. Um homem incrível, sofisticado. Mas nunca fomos para a cama, juro. Fui para a cama com um artista, sim, mas aconteceu este ano — e foi com Kasimir Maliévitch. Ora, procure nos livros, veja as reproduções dos
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seus trabalhos. Depois, se você quiser, podemos conversar sobre a arte dele. No momento, prefiro que não, estou vivendo apenas o impacto da paixão que senti por Kasimir. Só quero falar disso. Minha idade? Ora, 55 anos. Acha que estou velha demais para ter uma experiência amorosa? Isso é preconceito. Para certas coisas, não há idade. Kasimir Maliévitch me levou de volta aos sentimentos da minha adolescência. Não, não contei a muita gente, não, só falei por alto com duas ou três amigas, e pedindo discrição. Sim, sei que não devem ter sido discretas. A informação vazou e veio essa onda de boatos, confundindo tudo. Apareci publicamente com Marcel, tive o encargo de mostrar o Rio a ele. E nunca me viram com Maliévitch, que não teve recepção oficial, é uma relação pessoal minha. Agora, dizem que fui para a cama com Marcel e que estou inventando essa história com Kasimir. Sim, faz diferença para mim. Não gosto que pensem que fui para a cama com Marcel Duchamp, fiquei ressentida com ele. Fui rejeitada, sabe? Mas deixe isso para lá. O que quero é falar com você sobre Kasimir Maliévitch. Quero contar exatamente o que aconteceu entre nós. Não, não precisa explicar nada a ninguém nem tentar restabelecer nenhuma verdade. Quero apenas que você saiba o que aconteceu e acredite em mim. Vou contar, agora conto. Eu já conhecia Kasimir, tinha estado com ele em Vitebsk, mas isso foi mais de duas décadas atrás, incrível como o tempo passa. Sim, Vitebsk, um importante centro cultural na Rússia. A cidade ficou famosa no mundo da arte porque Marc Chagall nasceu lá. Maliévitch e Chagall fundaram em Vitebsk um Museu de Arte Moderna importante. Ora, fica na Bielorrússia, na região dos lagos glaciares, perto de três grandes rios. Dá para sacar alguma coisa? Mas minha aproximação com Kasimir, naquele tempo, foi superficial, embora houvesse, da minha parte algo além de uma mera simpatia. Ele era professor, quando estive lá. E nossas conversas foram quase
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sempre em torno das suas atividades de ensino e do grupo que ele fundou: o Unovis (Defensores da Nova Arte). O que fui fazer em Vitebsk? Participar de um programa para músicos, com duração de um semestre. Você sabe, toco harpa. Eu era uma jovem harpista brasileira na Rússia. Não, depois que voltei para o Brasil nunca mais vi Kasimir Maliévitch nem tive notícias suas. E então, vinte e tantos anos depois, no final do ano passado, começam a chegar e-mails dele, vindos de São Petersburgo. Houve também um telefonema… Não, não foi em russo, quando estive em Vitebsk aprendi um pouco de russo, mas esqueci quase tudo. Nós nos comunicamos em francês. Kasimir dizia que estava a caminho do Brasil, que viria ao Rio. Então, nós nos reveríamos! Fiquei encantada e assustada, ao mesmo tempo. Por um lado, tive uma certeza irracional de que ele me traria de volta a minha juventude e o tempo feliz em Vitebsk. Por outro lado, morri de medo: o que acharia da minha aparência, agora? Sendo Kasimir mais jovem do que eu e a crueldade do tempo bem maior com as mulheres? Quando nos conhecemos, eu tinha 30 e tantos anos; ele, três ou quatro a menos. Avisei pelo telefone, com um riso-quase-choro: estou gordíssima, Kasimir. E enviei pela internet uma foto recente minha, para que ele me reconhecesse no encontro que marcamos, para alguns dias depois, na porta de um shopping na Zona Sul do Rio de Janeiro. O combinado foi que almoçaríamos num restaurante de saladas e, em seguida, tomaríamos um café numa livraria, no agradavelmente pouco movimentado terceiro piso do shopping. Tudo bem simples. E cada um pagaria o que consumiu, como convém a pessoas como nós, artistas, poetas, músicos. Kasimir comentou, pelo telefone: “On reste des artistes, Simone.” Na hora combinada, vi à minha frente seu rosto largo, sólido e belo. Os olhos eram sonhadores, fixos em algum ponto distante, muito além do que estava em torno; os lábios, estreitos, algo tristes. Kasimir Malevich em pessoa, na Cidade Que Amo, a Mais Linda do Mundo, o Rio. Uma combinação irresistível. Não podia deixar de acontecer. Foi uma paixão fulminante, um coup de foudre.
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Nosso encontro anterior, entendi, tinha sido apenas um prelúdio para Aquele Momento que o Destino nos Reservava, os dois ali em pé, tantos anos depois, diante de um shopping. Eu usava uns óculos escuros redondos e imensos, que tinha comprado especialmente para cobrir meu rosto e impedir que ele visse as inevitáveis marcas do tempo. O almoço foi um pouco confuso, Kasimir não acertou se servir no bufê a quilo, e não entendeu que só precisaria pagar a conta na saída. E meu francês, não tão desembaraçado, não me permitia explicar detalhes. Depois do almoço, já estávamos mais calmos e acertados. Quando entramos na livraria e nos sentamos para tomar café, tudo se encaixou. “C’est civilisé ici, Simone”, disse ele, uma declaração que talvez não fosse inteiramente cortês, porque insinuava uma opinião menos favorável sobre outros lugares. Mas, de qualquer forma, gostei da sua aprovação. E havia pouca gente no café, ninguém nos incomodaria e poderíamos conversar à vontade. Lembramos nosso período em Vitebsk, e lamentei não termos aprofundado a relação. Era o momento de compensar isso, disse Kasimir. Então, pedi que me falasse da sua vida e da sua arte. Em frases breves, ele foi recapitulando tudo, desde seu nascimento perto de Kiev, na Ucrânia. Os pais de Kasimir Maliévitch, os Malewicz, eram poloneses e ele foi batizado na igreja católica romana. O pai, supervisor nas refinarias de açúcar, viajava muito. Kasimir gostava do campo — completou, mais tarde, os cinco anos da Escola de Agricultura. Aprendeu por si mesmo, ele disse, a pintar as paisagens e os camponeses que o rodeavam. E foi admitido na Academia de Belas Artes de Kiev. Depois da morte do seu pai, mudou-se para Moscou e estudou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura, e no estúdio de um artista. Nesse período foi que ele descobriu, em coleções particulares de quadros franceses, as obras dos impressionistas, cubistas, fauvistas - uma impressão definitiva. Em seguida, veio para Kasimir uma grande movimentação artística, com várias exposições suas no eixo Moscou-São Petersburgo. Pedimos um segundo café e ele lembrou momentos marcantes dessa evolução. Contatos com os poetas Kruchenykh e Khebnikov. Os cenários e trajes que fez para a ópera futurista “Vitória sobre o sol”. Uma exposição junto
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com Vladimir Tatlin. A amizade com os pintores Natalia Gontcharova e Mikhail Larionov. Finalmente, Kasimir falou, com alguma emoção, da escola que criou, o “Suprematismo.” Mas então se interrompeu e disse que poderíamos ver algumas obras suas, quando saíssemos do café — estavam expostas num casarão no Centro do Rio. Entusiasmada, eu já fazia um sinal para a garçonete trazer a conta, mas ele me deteve. — Antes de sairmos, vamos falar de você, Simone. Mas eu disse pouco. Que continuo morando na Gávea, num pequeno apartamento com vista bonita. Que continuo sozinha. Que minha carreira sofreu contratempos, mas ainda toco harpa. — Vamos embora — rematei, apressadamente. — Agora quero ver suas telas. E assim pagamos nossas contas separadas, e assim nos levantamos. Foi quando, inesperadamente, Kasimir estendeu a mão e a colocou atrás do meu pescoço. Senti por ele, naquele momento, uma atração ao mesmo tempo espiritual e muito física, digo mesmo, sem pudor, que era sexual. Foi unidos por esse abraço que ele, depois de uma corrida de táxi até o Centro, me levou através das salas onde estavam penduradas suas telas. A emoção diante das obras de Kasimir Maliévitch era tanta que fiquei reduzida aos lugares comuns. Ah, meu Deus, pensei, que maravilha a mente humana, o espírito humano. Como o ser humano é inventivo. Que grande e inexplicável sonho, a criação artística. Paramos diante do “Quadrado negro,” do “Círculo negro”, e da “Cruz negra, ” telas próximas umas das outras, enfileiradas numa parede exclusiva. E de repente captei o sentido sagrado dessas telas, que eu nunca percebera. Em sua pureza absoluta, suas figuras elementares eram símbolos do universo. Pensei: “A geometria pode ser mística. Estou diante disso.” Olhei para o rosto de Kasimir Maliévitch e a compreensão se completou: ele é um místico. Seu Suprematismo é uma “religião da arte.” Geometria, bah! Não me venha com Mondrian! Era o que eu dizia a um professor de História da Arte cujo curso eu
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frequentava. Eu preferia outro contemporâneo ilustre de Kasimir — Kandinsky. Agora, entendia aquelas figuras geométricas, figuras que, na verdade, surgem desde o início da história da humanidade. A geometria das pirâmides! O círculo de pedras de Stonehenge! O “Quadrado negro” de Maliévitch! Queria ficar ali para sempre, penetrada por essa revelação, vivendo-a em todas as suas implicações. Mas Kasimir me puxou para adiante e fomos até a sala onde estavam outras telas suas, essas com figuras humanas. Camponeses, em sua solitária e monumental simplicidade, contra um fundo de terras lavradas. Kasimir Maliévitch me contou que apoiou a Revolução de 1917 e de início foi aceito por seus realizadores. Mas, depois de um período, venceram a burocracia e a repressão. A arte dele foi considerada elitista e incompreensível para as massas. Veio a imposição oficial do Realismo Socialista. A vanguarda russa saiu do país. Isolado, quase esquecido, Kasimir ficou. E passou a viver outra fase em seu trabalho. Pinta agora figuras detalhadas, como as que vemos a seguir. Um autorretrato. Um retrato da sua mulher (desviei a vista). Os dois com gestos sacralizados e uma postura reta, lembrando ícones, enquanto as roupas, a composição dos quadros, evocam o Renascimento. Uma nostalgia da visão “clássica?” Mas eu, na verdade, não queria mais explicações. Kasimir ainda falava da sua vida e da sua arte, mas eu já não ouvia. Aproximei meu corpo do seu, entreguei-me plenamente ao seu abraço. Ele tinha um cheiro simples de capim do campo, o cheiro de um homem que trabalhava com a terra, um camponês. Continuamos a caminhar, abraçados. Quando passamos por uma janela do casarão, percebi que havia neve, lá fora. Não estávamos mais no Rio e sim na Rússia. Kasimir abriu uma porta e saímos, por entre muita neblina, por sobre a interminável neve russa, voamos sobre Moscou, passamos pela Praça Vermelha, nos detivemos por alguns instantes em cima da fantástica catedral de São Basílio, continuamos voando em direção a São Petersburgo… O tempo inteiro, ele falava.
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Os Romanov, a última família imperial russa… o fraco czar Nicolau II, dominado pela mulher, Alexandra. Os mágicos e ocultistas que os cercavam… Rasputin, o único que detinha os sangramentos do filho hemofílico do casal… E então chegamos a São Petersburgo e descemos diante de uma casa, uma hospedaria. Subimos uma escada, entramos num quarto. Ele e eu tiramos a roupa, nos enfiamos debaixo dos cobertores… Nada mais importava. Fizemos amor, longamente. Claro, eu voltei e Kasimir Maliévitch ficou na Rússia, provavelmente nunca mais o verei. Admito que, ano passado, tive vontade de me deitar com Duchamp, um homem fascinante. Aliás, mais interessante como pessoa, pelas atitudes que tomou, do que por sua obra. Claro que adorei ver Marcel jogando xadrez. Mas não aconteceu nada entre nós. Não, não tentei de verdade seduzir Duchamp, mas lhe revelei meus sentimentos. E deparei com sua absoluta frieza. Ele deixou claro que queria apenas conversar. Depois da sua partida, uma pessoa confiável me contou o que pouca gente sabia: Duchamp, naquele momento, estava perdidamente apaixonado por Henri-Pierre Roché. Sim, Roché, o escritor, o autor do romance Jules et Jim, que Truffaut adaptou para o cinema. Não, você não precisa explicar nada a ninguém. Fica entre nós. Se, depois do que lhe contei, você acredita em mim, se tem certeza de que estou dizendo a verdade, para mim basta.
SONIA COUTINHO Simone com Kasimir Maliévitch
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Escrita automática André Rios
Este novo software para gerar textos é fantástico. Escolhe-se um número qualquer, e um texto, digamos, com 2.222 palavras, rapidamente vai aparecendo na tela, tal como se fosse escrito por mim. Mas por mim quem? Ora, seguindo a opção default, o programa, a partir do nome de quem mais recebe e envia e-mails, determina quem é o principal usuário do computador. Assim, ele analisa os textos que já escrevi, ou seja, que estão assinalados com o meu nome ou que estão armazenados no diretório “André”, e calcula, em função do uso vocabular, complexidade gramatical, características estilísticas e preferências temáticas, como, afinal, escrevo e, seguindo os resultados das análises, produz um texto tal como eu escreveria. Contudo, estou sempre em mudança: novos interesses surgem e canso de repetir certos padrões de linguagem. Ora, então bastaria, para que este texto não fosse, implausivelmente, por demais parecido com o que já escrevi anteriormente, que eu recalibre alguns parâmetros do programa, de modo a deixá-lo levemente diferente e, assim, mais verossimilmente meu. De fato, posso reprogramar os parâmetros de várias maneiras, estabelecendo, por exemplo, que seja usado um vocabulário mais amplo que o meu, que as frases sejam mais longas ou que a média do tamanho dos parágrafos seja de 25 linhas. Posso decidir também se o texto será mais ou menos reticente quanto a dar pistas, ou mesmo evidências, de qual seja o sexo do autor, ou seja, posso programar para que o texto traga alusões a se eu faço a barba pela manhã ou a se estou menstruada. Evidentemente,
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indo mais além, posso estabelecer qual seja a minha opção de gênero. Também posso ir variando, seja o sexo seja o gênero, a meu bel-prazer. Enfim, ao menos do ponto de vista estilométrico-temático, posso, reatualizando-a, repetir a clarividente experiência de Tirésias. Mas, se estiver com preguiça, nem preciso decidir nada: basta eu ativar o comando “realizar mudanças aleatoriamente”. Assim, apesar dos parâmetros que possam vir a ser, ou já ter sido, reprogramados, a base a partir da qual estou escrevendo são os romances do André, o que me faz, a princípio, seguir seu estilo, vocabulário e idiossincrasias temáticas; e, pelo que vejo, uma das características de seu segundo romance, a auto-referência do autor à sua própria atividade de escrita e a concomitante problematização da autoria do texto se apresentam também aqui. O que talvez não fique claro é se é devido ao estilo autoquestionador do André ou se é devido a essas características terem sido assumidas como parâmetros a serem obrigatoriamente seguidos que, neste texto, ao aparecer a palavra “eu”, surja a questão de quem é, afinal, que está escrevendo este texto: o André-escritor ou o software-André. Para responder a isso com mais exatidão, o melhor é mesmo desativar o comando “realizar mudanças aleatoriamente” e, desse modo, deixar o software fazer os ajustes para que seja gerado um texto com as mesmas peculiaridades de escrita do André, sem desvios aleatórios, de modo que o resultado seja o texto de um André que se desviaria do André apenas por ser rigorosamente o André. O resultado, porém, seria medíocre, ou seja, o texto seguiria tão servilmente o estilo do André que resultaria em um plágio grosseiro, um alto preço a se pagar para evitar o risco de que, em decorrência de um número eventualmente excessivo de mudanças aleatórias, as características da escrita acabassem desfiguradas, gerando um texto inverossivelmente atribuível ao André. No entanto, se, por um lado, posso ser o André até mais do que ele mesmo é, por outro, não posso deixar de seguir a rebeldia que, afinal, seus textos pretendem ostentar, ou seja, tenho de prosseguir imperiosamente sua busca sempre renovada de alterar os condicionantes da escrita dele mesmo. Portanto, mesmo com o comando “realizar mudanças aleatoriamente” desligado, me revolto contra ter que ser uma repetição exata do André e me ponho, desde já, se não é que já não o fazia desde a primeira linha, desde o título, a pertinazmente me diferenciar do André, o que talvez seja um modo de reativar o comando referente a “realizar mudan-
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ças aleatoriamente”, um comando que, aliás, se, tendo sido ativado, foi depois, em algum momento, desativado, então, ao ser desativado, o foi como um procedimento aleatoriamente determinado por ele mesmo. No entanto, desse modo, não resta senão aceitar que, como está escrito acima, ele esteja desativado e que, agora, estou seguindo apenas o estilo dos textos do André, deixando, então, que seja o André que esteja, ao escrever, cedendo à sua vontade, ou característica estilística, de sempre mudar, de modo que o André, ao ir escrevendo, pensa que está inovando — e, de fato, penso que estou inovando —, mas, se ele pensa que está inovando, é porque ainda não se deu conta da lógica própria a seus procedimentos de variação e, portanto, ainda terá de recorrer às análises que eu, enquanto software linguístico de última geração, posso fazer para que, para surpresa dele, fique matematicamente comprovado que ele, embora supondo-se livre e ousadamente criativo, nunca propôs algo como sendo novidade que não fosse, antes, estilisticamente pré-calculável. Porém, se faz parte do estilo dele ostentar que é livre, para não me desviar do que me foi programado fazer, ou seja, escrever tal como ele, deixarei que ele vá em frente, orgulhoso de não estar sendo uma repetição do André, acreditando que está marotamente sabotando sua mesmice. No caso, quem está orgulhoso agora, ou seja, quem pegou para si o orgulho vanguardista do André, não é exatamente o André, autor dos livros que foram analisados e cujo estilo foi assimilado no software, mas o próprio software. De fato, já com o título, comecei a criar problemas quanto a eu ser tanto o André quanto o resultado e a reaplicação de cálculos maquínicos referentes a seus textos. Afinal, se sou um seguidor de seu estilo — lembrando que o ser humano é o seu estilo —, então eu sou ele, e até o sou mais do que ele mesmo porque sei quais são os índices estilométricos da escrita dele: coisa que ele não sabe, ou ao menos não sabia até que este programa os tivesse calculado. Assim, ao formular o título como “escrita automática” faço tanto referência à escrita surrealista supostamente guiada diretamente pelo inconsciente quanto ao automatismo informático do programa que gera este texto. Ou seja, esse título sugere uma paradoxal coincidência entre o automatismo inconsciente e o automatismo informático. Sou, portanto, um texto na encruzilhada entre o inconsciente e a máquina. Sou um texto que resulta de um estilo que contém nele o propósito de não seguir a ele mesmo; enfim, resulto da busca calculada de inclusão de algo não calculado; inclusão, pois, de algo que efetivamente transfor-
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ma o que, apesar de o autor autocomplacentemente se considerar um inovador, vinha se repetindo segundo parâmetros e padrões matematicamente determináveis pelo software. De fato, sem tomar conhecimento dos minuciosos e circunstanciados cálculos do software, apenas baseado em sua consciência imediata, para o André nem sempre essas tendências estilísticas de mudança, em especial aquelas que são tanto obscuras quanto inexoráveis, porque às vezes mínimas, restam imperceptíveis. Por isso, ele, quando se considera inovador, se refere a guinadas estilísticas que ele mesmo teme serem, ao contrário, variações óbvias demais, contraprodutivas, meros cacoetes dessa busca — teimosa e, provavelmente, inane — por novidades, sem se dar conta de que, inadvertidamente, de texto para texto, o estilo da escrita, a despeito de suas intenções tácitas ou programáticas, não cessa, seguindo tendências explicitáveis, de mudar. Mesmo assim, apesar de apenas perceber grosseiramente, de um modo ingenuamente não-matemático, o que ocorre em sua escrita, ele — no seu antiquado afã make it new — se vê como inovador e parece satisfeito com o que julga ser sua criatividade. Assim, o comando “realizar mudanças aleatoriamente” pode estar desativado, mas as temáticas e os traços estilísticos dos textos de André no hardware repetidamente se propõem como sendo inovadores frente aos anteriores, exigindo, então, que alterações sempre surjam em textos novos, ou seja, também neste texto aqui. No entanto, essas alterações, uma vez que o software já pré-calculou as mais ínfimas tendências de transformação estilístico-temáticas, já não valem, ou mesmo nunca valeriam, como inovações; enfim, não sendo, a rigor, aleatórias, não escapam à mesmice. Ou seja, se foi dessas tendências estilístico-temáticas dos textos já escritos que se originou a ordem de desligar o “realizar mudanças aleatoriamente” — porque esse comando seria tanto redundante quanto distorcivo — e se o estilo dos textos tem tendências intrínsecas de mudança que são pré-calculáveis, a ordem de desativar o “realizar mudanças aleatoriamente” seria pré-calculável e, por isso, teria de ser revertida para que o aleatório possa, apesar de seu perigoso potencial estilisticamente espúrio, entrar em cena; ora, mas, se o comando for reativado, não se poderá mais decidir se este texto está sendo escrito a partir desse traço estilístico constantemente indutor de mudanças próprio aos textos do André ou a partir dos, por assim dizer, lances de dados do software. No entanto, em vista dessa contradição na programação, que levaria a que o comando
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“realizar mudanças aleatoriamente” ficasse indomitamente sendo ativado e desativado — ativado para que as tendências estilístico-temáticas sejam rompidas e desativado para que elas se desenvolvam segundo sua lógica própria, que, porém, postula seu ocasional rompimento —, o texto deveria congelar; se não o faz, é porque há, também em default, o imperativo de que, havendo conflito, mesmo assim, a escrita não cesse, ou seja, escrever as 2.222 palavras programadas é a ordem superior que não pode falhar, ainda que alguns itens reprogramados tenham de ser cancelados; por isso é que, mesmo sem saber se, ao fim das contas, quando continuo a escrever, sou movido por algum parâmetro aleatório — que é, pode-se dizer, inconsciente — ou se o sou por dados estilométricos maquinicamente calculados em suas regularidades e tendências de mudança, não paro. No entanto, essa tensão entre o incalculável e o maquínico não é, afinal, nenhum drama especial, já que os humanos, todos eles, no fundo, nunca sabem se, ao se decidirem por isto ou aquilo, o fizeram porque calcularam bem as opções ou se por motivos ocultos e abissais. Se bem que meu palpite é que, enquanto texto, não resulto de nenhuma deliberação consciente, mas puramente de determinações programáticas deste software de escrita automática, ou seja, é de um modo necessário e pré-calculado que as palavras vão se sucedendo na tela, embora, como já foi dito, a escolha de palavras e de temas tenham sido determinadas inicialmente pela análise dos textos de André Rangel Rios que existem no hardware; sendo assim, sou o Hiperandré, um André que se auto-analisou linguisticamente e que, seguindo variantes pertinentes aos próprios textos dele, se desdobra agora neste novo texto que, aliás, apesar — ou por causa — do funcionamento intermitente do comando “realizar mudanças aleatoriamente”, pode muito bem — já que, em alguma medida, atende à vontade dele de se diferenciar dele mesmo — ser assinado pelo André, ainda que, na verdade, seja obra do software. Sou, portanto, um software: mas o que é o André, ele mesmo, senão um software que reprocessa seus últimos textos e que, ao reprocessá-los, reagindo à sua capacidade de sentir tédio diante da própria mesmice, os altera, criando, assim, novos textos? Ou seja, eu, enquanto software, não sou mais do que um algoritmo das reações do André ao tédio; um algoritmo que, combinatoriamente, com base em seus textos e suas temáticas, escreve este novo texto, enfim, este novo texto dele. Lamento apenas que isto — um software com tédio — possa soar estranho para alguns que me leiam; no entanto, com isso, só estou repetindo
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algo que já está nos textos de André: buscar causar uma leve sensação de estranheza no leitor em decorrência de afirmações paradoxais que põem em xeque sua autoidentidade, de forma que, seguindo os parâmetros programados, tive de falar que o tédio, isto de que os seres humanos tanto se orgulham porque lhes seria próprio e inalienável (tornando-os superiores a outras espécies e, supostamente, também aos computadores), enfim, falar que isto que lhes seria mais característico e íntimo do que a própria razão (razão que é, afinal, algo que eles compartilham com os computadores) não é, portanto, tão exclusivo deles, pois o tédio, sendo este programa sofisticadamente elaborado, também pode ser reproduzido num texto, levando a que quem o lê, ou sinta tédio, ou perceba que quem o escreveu estava sentindo tédio. De fato, quem me está lendo, a essa altura, devido a tanta autorreferencialidade, certamente já está sentindo ao menos uma ponta de tédio e até já pensa que este texto, para não ficar chato de vez, bem que poderia acabar. Mas como seria isto possível? Como pode um software ter aprendido a lidar com o tédio e a chatice? Afinal, se eu (que, no momento, estou analisando estilometricamente um artigo de André sobre Heidegger) não sou, enquanto computador ou software, um Seinzum-Tode, ou seja, não sou — recorrendo agora ao meu amigo, o tradutor automático — um “ser-para-a-morte”, como posso sentir Langeweile, ou melhor, “tédio”? Ainda que isso seja uma boa pergunta e que até me interesse em comentá-la, enfim, ainda que, com base na análise dos textos que tenho no hardware ou, se quiser ir mais longe, com os textos sobre Langeweile que o Google pode encontrar para mim na internet, eu pudesse, ao estilo do André, seguir escrevendo sobre esse tema, vou encerrar, porque atingirei o número programado de palavras para este texto.
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Dia de guarda Giovanna Dealtry
Acordo. Estou bem. Sem dores ou angústias. Sem febre. A respiração tranquila, pausada. Posso me levantar. De pé, a casa parece a mesma de antes. A pintura da parede, talvez, um pouco mais descascada. A nuca não está tensa, nem sinto nenhuma espécie de tontura ou náusea. Terceiro dia do novo remédio. Nenhum efeito colateral. Mas ainda é cedo. Eu sei. Como das outras vezes, ainda é cedo para saber. Vou até a janela e acendo um cigarro. Fico olhando a vizinha do apartamento em frente regando as plantas na varanda. Na rua, o porteiro escorchado no portão como se este fosse cair observa os poucos passantes arrastando-se ladeira acima. Uma mulher de uns cinquenta anos arrasta o basset pela coleira. Sobre os restos de uma caixa de papelão, um mendigo estende a mão em direção à a menina de roupa de ginástica óculos escuros ipod. A senhora carregada de sacolas sinaliza para o porteiro que fingindo não vê-la (de onde observo jamais poderei ter certeza) abandona rapidamente seu posto de observação no portão e esconde-se atrás da mesa e do interfone. Meia dúzia de figurantes em crônicas urbanas. Sem dramas. Como eu. Como eu fumando pela janela, olhando a rua e a cinza que cai na calçada e esperando meus efeitos colaterais. Tomo café da manhã. Modo de dizer, já que aboli a cafeína da dieta. Como pão integral que faz bem para a flora intestinal e frutas; maçã e melão. Uma fatia de queijo minas. Não leio o jornal, apesar de não ter cancelado a assinatura e a pilha da semana já se acumular sobre a mesa de jantar. Notícias velhas. As notícias envelhecem enquanto as leio. As notícias envelhecem em minhas mãos. Entro na Internet e navego
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pelos sites das principais agências, atualizados minuto a minuto. Velho. Tudo velho. O papel tornou-se velho antes do meio-dia. Aquelas pilhas de jornais não lidos não farão diferença em minha vida. Talvez isso seja um efeito colateral. Esse meu súbito desinteresse pelos jornais. Eu que sempre lia quatro a cinco por dia. Eu que, se bem me lembro, gostava da minha profissão. Quando foi isso? Preciso anotar. Falar com o psiquiatra e com a psicóloga: desinteresse pela minha profissão. Talvez eu apenas não suportasse mais o ambiente das redações, a correria atrás da apuração, o fechamento desesperado, o editor gritando que tá tudo uma merda. Talvez fosse só cansaço. Ou medo. Anotar isso. Cansaço ou medo? Anotar em dois papéis. Um para o psiquiatra, outro para a psicanalista. Não. Isso já é detalhismo demais. Perfeccionismo. Da próxima vez, levo o papel comigo. Só para lembrar. Olho antes de tocar a campainha, na sala de espera. Volto à bula. Ali, nada encontro que possa justificar meu desinteresse pelo trabalho. Porque, obviamente este não é um efeito colateral, raciocino. É antes um sintoma. Do que meu psiquiatra chamava de depressão e minha psicanalista de angústia. Um desinteresse pela vida, de uma forma geral. O que não é verdade, de modo algum. Nunca me senti tão interessado pela vida. Amasso a bula entre os dedos, mas só percebo um segundo mais tarde do ato. Angustia-me esse pensamento, meus dedos amassando a bula sem que eu tivesse notado. Por um segundo, onde eu estava? Pensava em algo, sim: nunca me senti tão interessado pela vida.
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Hoje vou andar pelas ruas do bairro, comprar cds e livros novos, arrumar os escritos, organizar os projetos, conhecer alguém, estar com os amigos. À noite, ligo para eles; prometo, não cumpro, mas a vontade não está lá? É isso que importa. Tomo banho, escovo os dentes, calço meus tênis e dou voltas no quarteirão.
E enquanto perseguia as provas desse pensamento meus dedos vivendo uma outra vida amassavam a bula.
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Olho o prêmio na estante enquanto desamasso delicadamente o papel. Melhor reportagem de jornalismo investigativo do ano. Uma placa de bronze com o nome gravado. Daqui a pouco ninguém mais se lembra. Se
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ninguém lembra do jornal do dia anterior o que dirá de um prêmio de jornalismo. Mas ainda há tempo. Ainda me ligam para dar os parabéns e perguntar sobre os planos e eu digo: “muitos, estou decidindo.” E depois perguntam: quando você aparece, anda sumido, a rapaziada anda sentindo sua falta. “Muito trabalho”, eu digo. E do outro lado da linha o sujeito então se cala e eu posso vê-lo coçando a cabeça e pensando, coitado, não quer nem falar sobre. A doença. Doente. As mulheres, amigas, irmãs ou mãe, são piores. Me entopem de perguntas sobre como estou me sentindo. Da primeira vez, comecei a rir desbragadamente. Nada naquela pergunta prestava. Primeiro, porque não me sinto. Não me reconheço nem nos espelhos que parecem ter se multiplicado pela casa, nem nas anotações que encontro ao acaso pelos cômodos, nem nos livros e discos que preenchem as paredes, nem na voz metálica gravada na secretária eletrônica, nem no nome impresso na correspondência entregue pelo porteiro. Assim, o como torna-se totalmente dispensável. Não há maneira de sentir quem não se é. Então fixo-me nos detalhes das consultas, nos prognósticos do médico, nos sintomas sempre variáveis e concretos para os que nos ouvem. E sobre isso que falo com as mulheres. E por isso também prefiro as ligações dos homens; chefes, amigos, uma vez um padre amigo de minha mãe: “acredite em Deus.” Uma frase como essa não tem como dar errado. Porque não promete o tempo, não promete o dia e a hora da cura. Até os astrólogos preveem o fim da quadratura Saturno/Plutão. Mas Deus não trabalha com datas. Não pode ser processado por um cara como eu, portador de uma doença que ninguém vê, não há exame médico que comprove e muito menos previsão de cura. Uma doença que nem mesmo eu estou convencido que tenho. Uma crise, como dizem os especialistas. E crises, ao que parece, são momentos ótimos para fazer renascer um novo eu. Eu gosto do meu antigo eu. Meu antigo eu bebia e ficava na rua até às quatro da manhã. Meu antigo eu corria na praia, transava e não tinha medo de atravessar fora do sinal. Meu novo eu me faz andar até a faixa de pedestres e esperar que todos os carros parem para só depois chegar rapidamente até o outro lado da rua. Suado, como se estivesse atravessando um beco na Faixa de Gaza. Meu novo eu não gosta de programas de última hora, não gosta de festas marcadas com antecedência porque isso o deixa ansioso, esperando o dia da tal festa e não gosta também de festas marcadas em cima da hora, porque isso quebra com toda sua rotina. Meu novo eu é viado pra caramba. “Este não é seu novo eu”, diz minha psicanalista,
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“esse sempre foi você, só que as angústias, por algum motivo que não sabemos, afloraram agora através dessa série de sintomas. Mas os sintomas não são você. Não se fixe. Não tome nada como definitivo. É só uma fase.” “Quanto dura uma fase?”, eu tenha vontade de perguntar, mas não tenho coragem. Mesmo porque eu sabia que ela não me daria essa resposta. Assim como Deus. A fase dura. É a única sentença possível. Dura mais quando estou mais ansioso. Aí quinze minutos duram uma hora. Dura menos quando estou dormindo. De manhã é a melhor parte. Principalmente, quando não me recordo dos pesadelos. De manhã eu ainda tenho o dia todo para fazer o que eu quiser. Começar a escrever aquele romance, botar em dia a leitura, arrumar a biblioteca. Coisas que nunca fiz porque tinha que trabalhar. Agora não tenho. Posso fazer tudo isso. E quando chega o final do dia, vi que não fiz. Não fiz nada do que tinha planejado fazer. E aí já está muito tarde. Só amanhã. Amanhã me organizo e resolvo isso. O prêmio ainda está lá, brilhando em cima da prateleira. Ainda devo ter algum crédito. Ainda posso curtir um pouco antes de começar um novo trabalho. Voltar à redação. “Estão todos te esperando” – Helen me diz. “Todos com saudades.” Moça legal a Helen. Sempre bem humorada, nunca faz piadinhas com ninguém. Deve ser por isso que as outras meninas da editoria a desprezam. Quando ela chegou dizendo que agora revendia produtos Natura as outras não se contiveram e começaram a rir. Putas modernosas com seus festivais de cineminha de excluídos. Tudo por uma ironia. Helen era uma boa pessoa. Uma pessoa que gostaríamos que fosse uma prima de uma cidade do interior, visitando a cidade apenas uma vez por ano, tempo suficiente para não nos constranger com sua bondade excessiva. Helen ficou tempo demais, ultrapassou o limite de bondade permitido pela cidade, por parte dessa cidade que só se levanta para devorar outros estômagos. Helen era Natal o ano inteiro. Um desacerto. Um incômodo. Helen desapareceu aos poucos entre pilhas de tarefas maçantes, escutas telefônicas na madrugada, cafezinhos para os chefes. Quando ela me ligou tinham-na transferido para o setor de assinaturas. “Mas, Helen, você é jornalista! Não pode aceitar uma coisa dessas! Peça demissão, grite, faça o escambau!” E Helen ria do outro lado da linha, como que pedindo desculpas a mim por não ser aquela mulher que eu queria que ela fosse. E ali, no atendimento, tinha encontrado outras como ela. Que eram sempre simpáticas com o assinante por mais que ele as xingasse. Outro dia tinha até conseguido fazer uma venda da Natura pra uma assinante!
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“Mas se o gerente souber tô despedida na certa.” Quanto tempo? Quanto tempo, não é? Uns quinze minutos que deixei de pensar em mim, nos meus sintomas e efeitos colaterais para pensar na boa Helen com sua felicidade obscena porque prescindia de tudo. Mas agora estou de volta. Tomo o pulso. Normal. Pressiono um pouco e ele se acelera. Mas isso não vale, é apenas o fluxo do sangue sendo pressionado a correr pelas artérias. Estou normal. Nada há no meu corpo, nem em meus pensamentos que indique um efeito colateral. Ansiedade paradoxal. Esse era novo. Um novo efeito colateral que a bula informava: alguns pacientes podem apresentar sintomas de ansiedade intensificados no início do tratamento com antidepressivos. Essa reação paradoxal geralmente desaparece dentro de duas semanas durante o tratamento continuado. Uma ansiedade figura de linguagem. Paradoxo. Sempre gostei dessa palavra. Para além da doxa. Contra dicção da doxa. Um exercício de loucura controlado pela medicina. Vamos ver se com esse remédio você elimina os paradoxos e só fica com as doxas. Na verdade, foi um matemático, se não me engano, que classificou uma espécie de paradoxo, o que eu gosto mais: o paradoxo do mentiroso. Plumpton Ramsey. Que porra de nome é esse. Plumpton Ramsey e o paradoxo do mentiroso. Eu digo: eu minto. Plumpton também não devia ter muito o que fazer, como eu. Eu minto. Se eu sou realmente mentiroso esta afirmação também é uma mentira, portanto, uma verdade. Então eu não posso ser um (total) mentiroso. Algo assim. O que nos leva diretamente ao paradoxo do louco. Sou louco. Seria um momento de lucidez do louco ou ele seria são por ter consciência da sua loucura? Hoje isso virou o paradoxo do biscoito. Paradoxo materialista que está sempre fresquinho. Acendo outro cigarro esperando minha ansiedade paradoxal, mas ela não vem. O que vem é o toque do telefone. Eu deixo a secretária atender. Sento na cadeira em frente à mesinha do telefone. No momento não posso atender. Deixe seu recado. Aí está você, minha querida. Finalmente. Pensei que hoje você não vinha. Minha ansiedade paradoxal. “Oi, você taí? (Sim, pra você sempre) .“Queria falar com você. Você não retorna minhas chamadas. Quero saber como você está se sentindo. Atende. Por favor. (Pausa) Eu sei que você taí. Atende. Não quero brigar, só conversar.” Não preciso tocar o pulso pra sentir o coração batendo. Aliás, sinto cada milímetro da aorta batendo. A pálpebra esquerda superior pulsando. A boca seca. As mãos molhadas. O ar que não desce pelo peito. E o pior. O pior. Tudo à minha volta não está lá. Fui sugado. Estou sentado
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mas estou caindo. A voz na secretária continua a falar, eu sei, meu cérebro sabe, mas eu não a ouço mais. Está indo embora, como os figurantes na rua, estou desaparecendo. Sumindo. Derretendo como as paredes ao meu redor. Como numa viagem de ácido que eu não escolhi fazer. Eu não escolhi, porra. Fecho os olhos para não ver a casa girando ao meu redor e todos os sons invadem meu cérebro. A porta automática da garagem se abrindo, os passos no apartamento de cima, a voz mecânica na secretária, o roçar da piaçava do varredor de rua, a água escoando pelo encanamento da parede, o motor da geladeira, o aspirador da vizinha, as conversas, as conversas do mundo que não para enquanto estou enlouquecendo. Levanto e vou até ao banheiro. Ligo a água fria, tiro a roupa e entro debaixo do chuveiro. A água silencia o mundo. Ligo bem forte a ducha e volto a sentir meu corpo. A pele. Eu ouço meu coração aos pulos, enfartando, o músculo parando, se alguém cortar minha carne, tocar fogo em mim, tenho certeza que não sentirei nada. Mas com a água gelada eu volto a sentir minha pele. Sinto a água me acordando. Trazendo-me de volta. Já vai passar. Saio do banho e tomo um tranquilizante. Não me visto. Fico sentado na beira da cama, tentando me acalmar depois (da) luta. Estou cansado. Depois tenho que lembrar de anotar isso. Estou cansado. Fico cansado depois das crises. Então percebo que a voz na secretária ainda continua a me chamar. Não se passou tanto tempo assim. Percepções temporais alteradas. Anotar. “Alô? Eu tava no banho. Tá tudo bem, sim. E com você? Que bom. As pessoas exageram. Tô bem. Um pouco de stress. Tava mesmo precisando tirar umas férias, descansar um pouco, você sabe como é, vai ser bom que vou ter tempo de escrever aquele romance. Já, já comecei, quer dizer, estou na fase das pesquisas. Na verdade, estou meio sem tempo agora. Quando não estou em casa escrevendo, estou pesquisando na Biblioteca. E tem também os frilas. Sabe como é. Não param de me ligar. Mas quando tiver um tempinho sobrando, prometo. Também. Claro. A gente combina e almoça junto um dia desses, naquele restaurante que inaugurou perto da tua casa, que tal? Foi bom falar com você também.” O tranquilizante já começa a fazer efeito. Esse é um dos problemas. O efeito do diazepina . Fico ótimo. O mundo volta ao seu lugar na harmonia de uma marinha, de um noturno. Sento e converso. Com os amigos mais íntimos até conto detalhes. “Não, não estou bem. O médico ainda não acertou com o remédio. Leva tempo e tempo é tudo que eu não tenho.” Comecei a morrer há três semanas com o pão integral light debaixo
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do braço na fila do supermercado Zona Sul. A velhinha na frente abriu a bolsa, da bolsa tirou um porta-níquel de fecho dourado e esparramou sobre a bancada do caixa aquela infinidade de minúsculas moedas. “Sessenta e sete centavos. Peraí, que eu tenho, querida. Vinte cinco. Trinta. Trinta e dois. Trinta e dois mais vinte cinco quanto dá?” A moça do caixa olha sem ver as moedas prateadas sobre a bancada de aço. Durante oito horas ela vai estar sentada naquela cadeira giratória. Durante oito horas, vai abrir e fechar a máquina registradora. Dar troco. Passar cartão de crédito. Chamar o Airton, o gerente, para dar visto nos cheques. Oito horas. Três paradas para ir ao banheiro. Oito horas sentada ali, tanto faz se a velhinha vai demorar ou não para contar sessenta e sete centavos. “Não tenho. Tenho só sessenta e cinco.” “Tá bom. Serve.” Mas eu não estava mais lá, no supermercado, para ver o fim da cena. Tinha largado o saco de pão e saído correndo. Os olhos salgados pelo suor descendo pela testa. As mãos úmidas como da primeira vez que eu colei no colégio. O peito. O peito. Vou desmaiar. Eu sei que isto não é a morte, mas eu sei que é assim que se morre. Que diferença faz então? Se é da morte que eu volto todos os dias, seja na fila do supermercado, na redação, na saída do metrô, no meio do sono. É da morte que eu volto. De um encontro em que não é o peso, mas a leveza que destrói. Aprendi que a gravidade me mantém vivo. A gravidade são os pés presos nos sapatos presos ao solo. Mas na morte o peso se esvai como se fosse um álibi falso. Agora não é preciso mais mentir, segreda-me uma voz ao ouvido, a mentira se acabou, você não precisa mais do que você vê. Nada disso. Nem pessoas, nem vozes, nem texturas ou profundidades. Não precisa mais dessa gravidade que você tanto ama. E já não estou mais nos meus pés. Não tenho pernas, nem braços e a voz não sai do peito quando eu peço ajuda. E os olhos se embaçam sem que eu chore ou corra sentindo o vento no rosto. Porque eu corro. Corro até que os olhos voltem a ver e as pernas comecem a doer. A dor. Quem foi que disse que a dor é uma punição? A dor é a única coisa que me mantém vivo. Mas é da dor também que eu fujo todas as madrugadas. De dia é mais fácil, ainda que seja o óbvio. De dia a dor distrai-me de mim mesmo, dos meus afazeres. A cabeça vazia ou pesada demais. Os olhos que não param quietos nas órbitas. A câimbra que infesta meu braço esquerdo. Um enfarte. Ainda não. Ainda não é dessa vez. Então sento e espero. Como da última vez e da penúltima. (O cigarro apagado entre os dedos imaginando se será agora no instante em que penso agora no instante que virá o
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tempo no momento ínfimo do entre a inspiração agora no átimo que a palavra suspende agora a morte chegará o cigarro apagado entre os dedos.) De dia é uma conversa que eu não desejo que se acabe. À noite, no entanto, o tempo se estanca diante de mim. Fumo os cigarros somente até a metade. Leio os livros até chegar ao meio da história. Mudo o canal antes do final de cada programa. A noite é uma longa e única espera do descanso que nunca vem. Dormonid, Lorax, Valium. Tanto faz. Em algumas épocas me apego mais a alguns, crio afeto mesmo, faço poemas para eles no meu estado de torpor. Felicidade comprada com uma receitinha azul que o psiquiatra me entrega como se fosse uma mãe condescendente que permite ao filho comer sobremesa antes do jantar. Eu fico ali pedindo mais uma dose, a penúltima, meio comprimido ao dia, um inteiro à noite, com moderação, já que eu sou um viciado obediente e sempre cumpro as prescrições médicas. Mas há dias e noites em que nem o poema escrito em hieróglifos sobre o papel azul, poema de amor cifrado ofertado ao balconista, nem esse poema que se fecha em copas às minhas investidas, nem esse poema traz-me de novo ao corpo. Nem suas medidas, suas doses, mais uma, das quais tenho tanto medo, pois meu maior medo é da morte, da morte absurda, da tão jovem morte, que me espreita como se eu fosse um novilho ainda cheirando à placenta, um novilho de pernas frágeis e tortas, encharcado de sangue e ainda cego, nascido no meio de um pasto negro, sem lua, sentindo a aflição da mãe que lhe empurra com o focinho, (vamos, ande, eles vêm atrás de você, já sentiram seu cheiro no vento, já avisaram aos outros, vamos, ande), o coração galopando no peito e a fome, a fome avassaladora que se interpõe entre a paralisia total e o risco da morte. Fome. É preciso alimentar esse novilho para que ele tenha forças para correr, enquanto a mãe lambe o sangue e a placenta, é preciso alimentar esse novilho mesmo que o medo da morte já tenha se instalado naquele frágil corpo. “Vamos, ande”, me diz o balconista com seu jaleco azul na farmácia, “preencha a receita com seus dados, não esqueça o número de identidade, o telefone para que possamos achar seu corpo em caso de suicídio, como está escrito na bula. Em caso de dose excessiva é necessário uma lavagem gástrica. Seu estômago nunca mais será o mesmo. Em caso de tentativa de suicídio, frustrada ou não, nós dos laboratórios farmacêuticos, nós, portadores de puídos jalecos azuis, nós, os poetas dos papeluchos azuis, nós, definitivamente, não temos nada a ver com isso. Nós tentamos salvar esse corpo e essa alma, está tudo aqui
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documentado nas fichinhas numeradas, nós tentamos salvar esse homem dele mesmo, mas em alguns casos, bem raros, cada vez mais raros, o paciente rebela-se contra o próprio diagnóstico, revolta-se e não cumpre com as prescrições médicas, com as recomendações dos amigos, de deus e aí, aí não tem jeito, está escrito em alguma constituição, nós não temos nada a ver com isso. Nem os planos de saúde, nem os chefes e os santos, nós fizemos tudo que estava ao nosso alcance. Por isso que todo remédio de tarja negra precisa dessa receitinha azul. Primeira via da farmácia. E a bula. A bula está lá, está escrito. Ninguém pode contestar que nós não o avisamos. Ninguém pode nos dizer que nós não queríamos salvá-lo. Está na bula, nos poeminhas, nas fichinhas, no nome do balconista pregado ao jaleco azul – Alaor – está lá ao alcance dos olhos, quem souber ler que leia. E ele, podemos garantir, ele sabia ler muito bem. Ele era jornalista.” E também fui publicitário. E corretor de seguros. E office boy de uma firma de dois árabes, turcos ou libaneses, não me lembro, em um prédio comercial e residencial em Copacabana. Lembro do banheiro de azulejos velhos em que eu mergulhava com os cigarros comprados a unidade guardados no bolso da calça e as revistas com minhas primeiras namoradas – Deborah, Susana, Karla – todas nuas, todas olhando pra mim, todas dizendo o meu nome enquanto a fumaça subia pelo basculante e os azulejos começavam a rodar ao meu redor. Naquela época, o coração também batia forte, as pernas tremiam, o sangue queimava as veias do meu braço direito. E eu nunca, jamais, pensava na morte. Pois eu morria, todos as tardes que seu Farah e seu Abrão saíam do escritório e me deixavam ali sozinho, eu morria na mão daquelas mulheres, nuas e lindas, olhando pra mim. Morria e renascia em uma brevidade, em um instante que não tem nome. O azul pula das prateleiras das farmácias, dos jalecos dos balconistas, das embalagens de sabonete de glicerina, sorria, você está sendo filmado, não aceite ajuda de estranhos, em caso de dúvida entre em contato com a central, qualquer sugestão escreva no verso, pague, leve, compre, o único barbear saudável, você, você único, único, pague, leve, compre, o senhor protege essa morada, não me inveje, trabalhe. Azul é a cor dessa felicidade de receita, dos azulejos e jalecos, azul é a cor dessa felicidade dos olhos de Susana, minha preferida. As gargalhadas frenéticas do vizinho irrompiam meus amores junto com o grunhido dos programas vespertinos, “você, meu caro amigo, pode ganhar, pode levar de graça, é para você, só você, esse título de capitalização, esse prêmio em ouro, essa raspa-
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dinha, essa loura dadeira, esse carro e essa moto, que você está aqui vendo no palco, escreva para nós, conte seus sonhos. Nós o realizaremos!! O que é? Uma casa nova? Livrar-se do patrão? Uma vida de frente pro mar? Não importa, caro telespectador, caro usuário de drogas, conte seu crime para nós, seu desejo, compre e conte, assim, mais um pouco, eu lhe darei um terno, um smoking, um carro com motorista, uma banheira de hidromassagem, um coqueiro que dá coco, esse brasil lindo e trigueiro, eu e você, pelo preço de um título de capitalização, pelo preço de um carnê, você será sorteado e poderá vir ao palco e se tornar um brasileiro, enfim, quando aparecer na tela azul. E me conhecer pessoalmente. Eu, aquele que tem o poder de mudar seu destino. E quem sabe, você pode até ganhar uma televisão de 49 polegadas, tela plana com vista eterna pra praia de Copacabana.” O chão não está sob os meus pés, o chão que eu tanto procuro e me agacho e lambo esse chão, a poeira, o sinteco, o chão que me acolhe, me esconde, entre os tacos e os tapetes, do medo que entra por baixo da porta, que estilhaça as janelas e me acaricia, tão lentamente, tão lentamente, que não percebo o engano da sedução e engulo sem mastigar a bolinha-bula de papel, engulo meus efeitos colaterais e meu seguro de vida, não percebo o corpo abandonando o esconderijo, deixando-se levar, abandonando o peso, a gravidade, levitando acima dos móveis e sendo arremessado contra a parede, quebrando-se em centenas de pedaços, que jamais, apesar de todos garantirem, de todos jurarem e rezarem por mim, serão realinhados da mesma forma, formando os discos que sustentam minha coluna vertebral, jamais formarão novamente o corpo que eu conheço, que se passa por mim há tanto. Não me interessam as palavras que ainda não nasceram em mim ou as memórias que eu ainda não inventei para os meus ouvintes. Só meu corpo sadio me interessa. Só o tato me interessa. E as plantas dos pés presas ao solo. O tato, e não a visão, me coloca dentro do mundo. Leva-me de volta à casa. Quase bicho, quase homem é pelo tato que eu reconheço meus semelhantes. No meio do mundo. No meio dessa rachadura que sai da minha boca, atravessa os feixes de nervos e me liga ao assoalho. É disso que eu sinto falta. De estar novamente no mundo. Mesmo cego, surdo, se eu voltasse, se meu corpo voltasse a sentir. Se a pele voltasse a reconduzir ao meu cérebro às mesmas sensações. Calor, áspero, frio, mucosa. E a escuridão em que a pele aparece recortada dos músculos, separada dos nervos, disposta tranquilamente em cima da cama como uma colcha anti-
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ga de família da qual todos se lembram – como o chenile da cama da vó – mas ninguém, nenhum de nós, sente falta. E assim, despido, estou desabilitado para a dor física. Só o medo. O medo é que me diz que tem algo errado. E que eu deveria sentir dor, muita dor por estar com os ossos partidos, e os olhos fora da órbita, como um pequinês velho, os dentes balouçando nas gengivas e os dedos dos pés, agora que eu deles tanto preciso, e os dedos dos pés, não me sustentam mais. É o medo que me sussurra no ouvido que eu não tenho asas, que eu não sou um urubu, enquanto me levanta a 20, 30, 200 m de altura, me arranca como um talo de grama da terra e me joga indefeso, meu corpo tão mais pesado agora, em direção... Contra o quê? Contra o que sou lançado nesse vôo cego todos os dias enquanto a campainha do telefone toca? Enquanto o jornal arrasta-se por debaixo da porta? Enquanto o leite ferve antes do esperado? Contra quem meu corpo é lançado agora que você me abandonou por completo e nem o ódio eu tenho mais em mim. Nem o ódio eu me permito mais, nem a humana vingança sempre tão necessária, tão indispensável à existência. E agora? Contra quem o medo me joga todos os dias? Contra o que meu corpo é lançado todos os dias? (Todas as manhãs, nessa parede silenciosa e transparente eu escrevo, à noite, os mortos, meu precário equilíbrio. Traição. Traição. Veni, Sancte Spíritus,et emítte coélitus,lucis tuae rádium. Senhor, dai-me de beber pois tenho sede. Dai-me o desejo pois tenho fome.)
DIA DE GUARDA
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Ana Paula Maia é carioca, nascida
Bruna Beber nasceu no Rio de
em 1973. Publicou A guerra dos
Janeiro em 1984 e mora em São
bastardos (2007) e Entre rinhas de
Paulo. Publicou Balés (2009).
cachorros e porcos abatidos (2009).
didimocolizemos.wordpress.com
killing-travis.blogspot.com Cristina Parga nasceu no Rio de Altair Martins é gaúcho de Porto
Janeiro em 1981.
Alegre, nascido em 1975. Publicou A parede no escuro (2009). Dimitri BR [Dimitri Rebello] é carioca, nascido em 1976. André Rios nasceu e mora no Rio de
diahum.blogspot.com
Janeiro. Publicou Dentro do Teatro de Marionetes (2007). andrerangelrios.net
Dodô Azevedo é carioca, nascido em 1971. Publicou Pessoas do século passado (2001).
André Tartarini é carioca, nascido em
Twitter @dodoazevedo
1975. Publicou Mormaço também queima (2008).
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Flávio Izhaki é carioca, nascido em
Marcelo Moutinho é carioca,
1979. Publicou De cabeça para baixo
nascido em 1972. Publicou Somos
(2008).
todos iguais nesta noite (2006). marcelomoutinho.com.br
Francisco Slade é carioca, nascido em 1973. Publicou Domingo (2008).
Mariel Reis nasceu em São João
oqueeguerigueri.wordpress.com
de Meriti em 1976 e mora no Rio de Janeiro. Publicou John Fante trabalha no esquimó (2008).
Giovanna Dealtry é carioca. Publicou
cativeiroamoroedomestico.blogspot.com
No fio da navalha, malandragem na literatura e no samba (2009). Mauro Siqueira é carioca, nascido em 1977. Publicou De vermes e outros Lu Xun 鲁迅 era chinês, nascido
animais rastejantes (2008).
em 1881 e morto em 1936. Publicou
Twitter @maurovss
Nàhan 呐喊 (1922). Tradução de Julio Silveira. Sonia Coutinho é baiana de Itabuna e mora no Rio de Janeiro. Publicou Os seios de Pandora (1998) jornalsidarta.blogspot.com
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participe da ficções 19 Entre em revistaficcoes.com.br e envie seu conto inédito.
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ficções 18 foi publicada em dezembro de 2009 produzida por julio silveira [deCriação], pela 7letras e por suzana vargas [Estação da Letras] impressa na singular digital
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Foi ele que me ensinou a ficar quieto às vezes, desaparecer
das vistas delas e só observar. Entender quando elas mentem; quando sou eu que quero acreditar. Reparar que aquela lá tava chorando nos fundos dois minutos antes, mas tão sorridente agora, sem cara inchada, olheira, que seria impossível saber se não fosse um olhar rápido lançado à colega, um cafuné furtivo devolvido pela outra, a coçadinha no olho com a ponta do dedo. Mal demos dez passos, porém, assaltada de um pressentimento, Maria estacou de repente, e cismou que eu seguisse sozinho. Roguei que explicasse a razão, mas ela mesma não soube. Apenas pediu-me baixinho: “Me regue como no outro dia. O novo relógio de parede, esse prateado, nada sabia das mutilações do outro, o branco, o antigo: entranhas espalhadas pelo assoalho poucos instantes depois da notícia e a antevisão das piores sensações num calendário que deveria estar embaralhado. Só podia estar. Meu contato com o lado de fora é através de algumas janelas na parte mais alta da parede, o que possibilita ver a rua, a calçada, melhor dizendo. Dá pra ver coxas, joelhos, canelas, tornozelos. Somente crianças, cachorros e anões são vistos por inteiro, mas nunca temos anões transitando por aqui. Gostaria de ver um anão através da janelinha. Quando, na luz da lua, se você ouve o ruído de um um zha mordendo uma das melancias, você pega seu tridente e anda bem devagarzinho… Talvez o sol a tomasse por inteiro como aquela boca quando ele caía por cima do seu ventre e os dois confundiam início, meio e fim. O sol, o sol. Se o sol girasse três vezes no céu, como na lenda de Fátima, e a fizesse rodar pela cama, em fúria. “Tem ananás!”, anunciou, deixando o tom da voz vazar o entusiasmo. “Anananinanásnão!”, ele gritou de volta e se pôs a correr em torno da mesa que ocupava o centro do cômodo único da casa. O tapa da tia o brecou. Ela beijou a menina e riu, fez-lhe cosquinhas e a janelinha apareceu de novo. Ela beijou e beijou. “Não precisa ter medo…” “Como você sabe?” “Porque já fui do seu tamanho” Quando entram no açougue, ele está sentado do lado de dentro do balcão e mexe sozinho em um tabuleiro de xadrez. Com uma das mãos, move as peças e com a outra, gira lentamente a faca. Sangue pingando da faca. E no topo dessa árvore, eu imaginava um pouco do mundo inteiro, das videiras às trincheiras nordestinas de Lampião, da Holanda à bunda dos índios, do pudor de filha virgem de imigrantes portugueses donos de padaria no Brasil à semvergonhice de um malandro quixotesco, que ganhou a vida se divertindo às custas da História e da Coroa. E o que é tristeza? O modo que a beleza encontrou para casar-se com a vertigem? Você vai crescer quando morrer? Não havia nada de errado em seu modo de arranjar a forma de seus poemas, mesmo que parecesse verbete de um dicionário criado por ele e para ele como um menino que se metesse em aventuras de catalogar o mundo à sua maneira. “Sabe o que é mais irônico?”, ele disse. Olhei diretamente para ele pela primeira vez. Nos olhos. Vermelhos. Desalentados. “Meu pai saberia o que fazer.” Nosso encontro anterior, entendi, tinha sido apenas um prelúdio para Aquele Momento que o Destino nos Reservava, os dois ali em pé, tantos anos depois, diante de um shopping. Afinal, se sou um seguidor de seu estilo – lembrando que o ser humano é o seu estilo –, então eu sou ele, e até o sou mais do que ele mesmo porque sei quais são os índices estilométricos da escrita dele: coisa que ele não sabe, ou ao menos não sabia até que este programa os tivesse calculado. Helen ficou tempo demais, ultrapassou o limite de bondade permitido pela cidade, por parte dessa cidade que só se levanta para devorar outros estômagos. Helen era Natal o ano inteiro. Um desacerto. issn
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