ANDRÉ TARTARINI EUSÉBIO GALVÃO GUSTAL MARIANA TIMÓTHEO DA COSTA RICARDO CALAZANS TATIANA CONTRERAS ULISSES MATTOS
SE7E [ cr u z ]
Se7e [cruz]
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ANDRÉ TARTARINI EUSÉBIO GALVÃO GUSTAL MARIANA TIMOTHEO DA COSTA RICARDO CALAZANS TATIANA CONTRERAS ULISSES MATTOS
SE7E [ cr u z ]
vii Os sete condenados B r u no L e w ic k i
13 “Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem.” Insira aqui um título impactante em duas linhas Tat i a n a C on t r e i r a s
27 “Em verdade eu te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.” Otário R ic a r d o C a l a z a n s
41 “Mulher, eis aí teu filho; olha aí a tua mãe.” Maria na sala
M a r i a n a T i m ot h e o da C o s ta
59 “Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Capricha, Paulinho E u s é b io G a lvão
91 “Tenho sede.” O que penso quando pensam que estou prestando atenção G u s ta l
107 “Está consumado.” O som que as gaivotas fazem A n dr é Ta rta r i n i
127 “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito.” O vingador do idioma Ul i s s e s M atto s
OS SETE CONDENADOS Seven days and seven nights The world was made and lost again Seven days and seven nights Brave men run. Sonic Youth, “Brave men run (in my family)”
A coragem é mesmo um negócio admirável — a alheia, sobretudo. O sujeito tem que ser muito impetuoso (e ter jogado muita pedra na cruz) para se ver envolvido nessa empreitada — escrever uma história a partir de uma das sete frases atribuídas a Jesus em seu calvário. Tudo bem que as histórias são curtas, como as próprias frases — apropriadas, por sinal, a alguém crucificado, já que, segundo os estudiosos, nessas circunstâncias o ar não é exatamente abundante. Ainda assim, o que o leitor tem pela sua frente são sete pequenas proezas. Há 129 anos, Joseph Haydn aceitava encomenda parecida. A dele era mais complicada, pois tinha que dar conta de todas as sete frases, transformando-as em uma peça musical para o Bispo de Cádiz utilizar na sua tradicional celebração da Semana Santa. Mas, enfim, ele era o Haydn (e, supõe-se, estava sendo muito bem pago para isso). Os sete condenados que toparam encarar as frases da cruz vivem engalfinhados com as palavras — seja profissionalmente, como jornalistas, seja de maneira mais diletante, ainda que não menos apaixonada. Mas são todos, em maior ou menor grau, iniciantes
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que entraram nessa por amor. Amor e coragem, lógico. A admiração por quem escreve ficção, sejam contos, romances ou pequenas histórias, é inevitável — não só porque deve ser um parto muito duro mas porque é uma tremenda exposição, quando nada, do inconsciente de quem pariu as palavras. Gente escolada no ramo, como Philip Roth, exaspera-se com entrevistadores que insistem em tentar descobrir até onde vai o autor e o que o separa da personagem. “Eu sou ambos e não sou nenhum, eu não olho para livros assim, o que me interessa é o solavanco estético que você sofre ao entrar nessa… coisa”, disse Roth certa vez, entre suspiros. Assim como Haydn, porém, ele é o Roth. Para novos autores é certamente mais difícil encarar tanto a folha em branco, antes, quanto o mundo de leitores, depois de expor-se. E para quem acha que escrever é um processo árido, tomar como ponto de partida uma das frases da cruz — algo tão afastado da realidade urbana, cotidiana e secular — pode ser um verdadeiro pesadelo. Imagine-se em um jogo com amigos, como naqueles programas da televisão, tendo que improvisar um breve esquete em cima de uma dessas frases. É enlouquecedor. Escrever, contudo, não tem nada a ver com isso. A não ser para quem se julga um novo Jack Kerouac (e não tem medo de aturar o esculacho do Truman Capote, para quem aquilo que o lendário beatnik fazia não era writing, era typewriting), um texto não sai de improviso; há que treinar, e muito. Este, talvez, seja o maior estímulo dos sete corajosos, inspirados nos atletas que se exercitam com pesos amarrados nas per-
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nas. Quando vão competir, evidentemente sem os pesos, não correm; voam. Quem cria, então, uma história a partir de premissa tão vaga vai deitar e rolar quando alguém lhe pedir para escrever sobre triângulos amorosos, a vida atribulada da mulher moderna ou outras prosaicas molezinhas. Até porque, se não for coragem, é maluquice mesmo, e aí é melhor nem especular. Com todo o devido respeito aos muito religiosos, quando a maluquice cruza com a cisma por citações bíblicas, sai de baixo. Nem é o caso de gastar muita tinta com os motoristas enlouquecidos que desafiam todas as leis da física ao espremer-se à toda velocidade no trânsito, pilotando vans com adesivos que nos informam que “tudo posso naquele que me fortalece”. Esses são fichinha. Um caso bem mais interessante é o de Rollen Stewart, conhecido como Rainbow Man. Rollen ganhou esse apelido por conta da multicolorida peruca afro (ou black power, em bom português) que utilizava para assistir a todos os principais eventos esportivos norte-americanos nos anos 70 e 80. Sua fama, no entanto, não vinha da cabeleira, mas sim do cartaz que empunhava (até hoje copiado nas arquibancadas do mundo) com a referência bíblica “John 3:16”. O “homem do arco-íris” viveu dias de glória, aprimorando sua técnica de sentar em locais estratégicos dos estádios e, assim, levando ao hospício vários diretores de transmissões esportivas que não conseguiam evitar que aquele mala sem alça aparecesse semanalmente em cadeia nacional. Stewart só deixou de propagar a palavra divina após uma série de intrigantes eventos entre o fim dos anos 80 e o início dos 90. Primeiro foram seguidos ataques com “bombas
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fedorentas” que ele promoveu em eventos públicos. Depois houve uma esquisitíssima história em um hotel próximo ao aeroporto de Los Angeles, quando ele acabou trancando-se em um dos quartos e fazendo três reféns (incluindo uma camareira), ameaçando atirar nos aviões que decolavam e tapando as janelas com os infames cartazes “John 3:16”. Pegou prisão perpétua. A pena dos sete condenados aqui nesse livro é bem mais branda, mas mesmo assim eles devem ser louvados. A propósito, a passagem bíblica tão citada pelo maluco do arco-íris diz, em resumo, que Deus teria amado o mundo de tal maneira que deu a ele seu único filho. De todas as analogias que são feitas entre o ato da criação artística e o da criação divina, esta pelo menos é nova (ainda que seja tão ruim quanto aquelas já manjadas): além da evidente vaidade do autor, haveria embutido em toda criação literária um gesto de amor —não apenas pelas letras em si, mas também pelo público, a quem o “filho” é oferecido. Confortavelmente instalado em sua poltrona, o leitor pode apedrejar à vontade o escritor. Sem medo de padecer como Pôncio Pilatos, pode julgar seu texto como bem quiser — e pode inclusive condená-lo à pior das penas, lavando as mãos e recusando-se a lê-lo (mas falando mal dele assim mesmo). Não pode, ou não deve, contudo, deixar de reconhecer que há um pouco de amor no compartilhamento, pelo autor, das histórias que povoam sua cabeça, principalmente pela maluquice que é fazer literatura em pleno 2012. Mas deve agradecê-lo, sobretudo, pela suprema coragem que é trazer a público sua criação.
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Não deixa, aliás, de ser significativo que o próprio autor da ideia de fazer um livro a partir das espinhosas frases da cruz — o genial Daniel Seidl — tenha preferido ficar só com os louros (que não são poucos) da centelha. Outros, cuja participação em algum momento foi cogitada, correram — caso do autor deste prólogo. Sondado, marota e romáriamente sentiu uma fisgada metafórica na coxa e achou mais prudente ficar no banco, fazendo aplicação de gelo e escrevendo estas descomprometidas palavras introdutórias. Agora que o livro está na rua e “o grupo” sagrou-se campeão, ainda tenta pegar carona na volta olímpica…
Bruno Lewicki Rio de Janeiro, Sexta-feira santa de 2009
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I nsi r a a q u i u m t í t u l o i m p actante e m d u as l in h as Tatiana Contreiras
CENA 47/IGREJA/ALTAR/INTERIOR/NOITE. CAM do ponto de vista de Maria Helena, que para e olha fixa-
mente para o altar. Ouve-se um barulho. MARIA HELENA — Quem está aí? CORTA PARA CENA 48/IGREJA/SACRISTIA/INTERIOR/NOITE.
Padre Juvenal, escondido, observa Maria Helena. CAM em close mostra uma lágrima escorrendo por seu rosto. Ele olha para cima, como se procurasse ajuda divina. PADRE JUVENAL — Maria Helena, meu peito dói de tanto
amor… “Pai, perdoai-os…” CORTA PARA
— Chega. Não dá. — Não dá o que? — Essa cafonice. Não dá. Não consigo escrever isso. — Claro que consegue. Você consegue escrever qualquer coisa. Pegue esta situação e coloque num looping infinito, oito horas por dia, seis dias por semana. “Eu consigo escrever qualquer coisa”. É o que dizem. Jura? Sério mesmo? Então vai escrever mais um imperdível capítulo de A tormenta, a 13
novela que você escolheu. Quer dizer, nem sei se você escolheu. Eu também não escolhi. Relaxa. — Então, Luísa, temos esse projeto superinovador aqui. É a sua cara. Você vai coordenar uma equipe de centenas, milhares de internautas! (Nota da redação: quando alguém diz “é a sua cara”, tenha medo. Muito medo. Você nunca sabe qual cara tem para os outros). Minha resposta: — Err… Legal? (Nota da redação, mais uma: qual a resposta certa nessas horas? “Legal”? “Bacana”? Deveria ter dito “bacana”. Tem razão). O tal “projeto superinovador” era uma novela escrita via Twitter e Facebook, com a colaboração dos telespectadores nas redes sociais. Bacana, não? A verdade: não. Aqui estamos nós, empacados em mais um capítulo inédito de “A toooooormenta” (insira aqui a voz do seu narrador de chamadas de tevê preferido. O meu é o da “Sessão da Tarde”. Só pela sensação de conforto. Ele me acalma, sabe?). @chuchuzinhaaah18: CaRa, TiPo, eLe eH Um PaDrE! NãO PoDe Se DeClaRar De CaRa!
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Isso, amigos, é com o que eu lido todos os dias. Dezenas de milhares de @chuchuzinhaaahs18. É essa gente que está pagando meu salário. Quer dizer, é o que eles dizem no Twitter. E no Facebook. E por email, já que descobriram o meu. Já desisti de checar desde o capítulo 85, em que Padre Juvenal, embevecido pela lembrança do olhar doce e gentil, sensual sem ser vulgar de sua amada Maria Helena, tira a batina e admira seu corpo nu diante do espelho. Ousado? Pois é. Mas a voz do internauta é a voz de Deus. Quer dizer, não nesse caso: Deus claramente diria que é um desrespeito, um abuso, um acinte, uma heresia existir um padre como nosso querido Juvenal. Bom, vocês entenderam. Já os pais dos internautas (Jesus amado, dá para inventar uma palavra melhor que essa? Estamos em 2012. Grata) derrubaram meu pobre endereço eletrônico. — Essa novela tá me atormentando, Zé Marcelo. Quero escrever isso mais não. Vou inventar uma estafa. Esgotamento nervoso. Depressão. Quebra a minha mão? Prometo não te botar na Maria da Penha. Diz que foi legítima defesa, que eu enlouqueci e tentei te matar com uma lapiseira 0.5 e grafite 2B alegando estar possuída pelo ritmo ragatanga. — Luísa, você sempre quis escrever uma novela. Olha a sua chance de despontar, do seu trabalho aparecer. — Se você disser que existem milhares de pessoas… — Que gostariam de estar no seu lugar! — Eu sento a mão na sua cara! Então é isso. Vou na emissora. Vou dizer que não quero
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mais essa vida. Que eu posso escrever um outro projeto. Eu posso criar um quadro novo de humor. Um quadro de mau humor. De antipiadas. Piadas depressivas. Eu não sou engraçada. Pode funcionar. Quando pensei nisso me pareceu tão genial, agora percebo que o que mais tem é piadista ruim por aí. Perdi o nicho. Droga. — Luísa, o que você tá fazendo? Acabei de ler uma nota num site de fofocas falando que os atores de A tormenta estão reclamando que os capítulos estão atrasados. — Mas é claro que estão atrasados. To ocupada demais pensando na minha carta de demissão. — De novo isso? — Zé Marcelo: eu sento a mão na sua cara. — Luísa, o que você quer fazer, então? O que eu quero fazer? De repente pareceu uma boa pensar numa lista para levar pro doutor Camargo. Curto muito essa aura de Família Soprano que dão aos donos de redes de qualquer coisa. Doutor Camargo dirige um canal de tevê, mas se fosse um supermercado ou uma franquia de material de construção também seria doutor. Taí, boa ideia. Um seriado sobre a rotina de uma loja de material de construção. Se bem que do jeito que a coisa vai não sobrou nenhum local de trabalho para ambientar uma série. Péssima idéia. Ei, Tina Fey, ei, Steve Carell, a culpa é de vocês. Just in case you didn’t notice. Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 2012.
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Prezado doutor Camargo: Venho enfrentando graves problemas psicológicos e temo não conseguir terminar de escrever a novela. Sugiro que um terremoto marque o começo de uma nova fase da trama, que poderá ser tocada por qualquer outro de seus valorosos colaboradores. Tão logo eu esteja sob controle e pare de ter ataques psicóticos nos quais tento matar meu marido voltarei ao trabalho. Um beijo e obrigada, Luísa. Em vez de fazer a lista escrevi meu bilhete de demissão. De próprio punho. Com caneta lilás. E estrelinhas. Confesso, um coraçãozinho. Para amenizar o susto, né. Doutor Camargo vai cair da cadeira. Mentira, nem vai. Ele vai me telefonar e gritar LUÍSA MARIA, VOCÊ ENLOUQUECEU? É PARA ISTO QUE EU LHE PAGO? AHN? AHN? RESPONDA, LUÍSA MARIA!
E se eu desaparecer? Posso ir para o Kiribati esperar o ano novo, lá chega antes e em agosto já deve ser Natal na Leader Magazine. É isso. Vou para o Kiribati. — Zé Marcelo, faça as malas. Nós vamos embora hoje. — Oi? — Quero esperar 2013 no Kiribati. É que eu não posso. Não aguento mais isso. O que eu quero
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fazer eu não sei. Mas o que eu não quero eu sei. E juro que não estou citando meu diário de 1996. Se eu seguisse os preceitos do meu diário de 1996 eu faria uma lista. Não vou fazer uma lista. Ok, eis a lista: COISAS QUE NÃO QUERO FAZER:
––Escrever textos sobre bloqueio criativo e sobre roteiristas que não conseguem trabalho porque não conseguem escrever e que não conseguem escrever porque não conseguem trabalho. Dinâmica Tostines. Nossa, isso nunca. Nem pensar. Fora de cogitação. Tô fora de ser autorreferencial. ––Virar professora em universidade ou inventar curso picareta para arrancar dinheiro de quem não percebe que não, não adianta mandar seu currículo e aquela novela épica ambientada na Idade da Pedra que você escreveu aos 15 anos para o dono da emissora na tentativa de ser contratado. Sabe o que todo mundo faz quando recebe esses emails? Ri. E se algo for muito ridículo vira um bordão por duas semanas. ––Ter que me humilhar e pedir meu antigo emprego de volta.
Meu antigo emprego: analista de mídias sociais da Tem Tudo Mesmo, aquela loja de departamentos. Não, eu não analisava nada. Não, lá não tem tudo mesmo. Mas o fato é que (aham, modéstia à parte) eu revolucionei o uso das mídias sociais lá na TTM — vulgo TPM, só para os mais chegados — e aí tracei
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uma carreira meteórica da internet para o Brasil. Virei twitteira. Alta social media, colegas. Não, não fui eu que participei daquele reality show. E não, eu também não esqueci que meteoro cai. Sim, usei esta expressão já pensando nisso. Tenho pesadelos com a TTM. Não quero voltar para lá. Vou telefonar. É isso. Vou telefonar. Faço uma gracinha, dou umas voltas e jogo a notícia no colo do doutor Camargo. Eu sei fazer isso: “Você viu que sábado vai estrear aquele filme no Telecine? Você quer ver? Então vamos ali comprar uma televisão nova, porque a antiga eu taquei pela janela num ataque de fúria.” [Nota da redação, outra: esta cena que acabo de narrar é genuinamente baseada em fatos. Apenas fatos. Todos os fatos são reais. Quero matar quem disse isso pela primeira vez naqueles filmes dublados do tempo de vovó mocinha. Juro. Ele não sabe o mal que causou ao mundo]. — Doutor Camargo? — Não, aqui é Artur, o contínuo. — Artur, aqui é Luísa Maria, da novela das 2h15 da manhã. Doutor Camargo pode me atender? — Vou te botar na fila pra falar com a dona Lúcia, secretária dele. — Tem muita gente na frente? — Além de você? Tem o senhor das 23h, a menina das 17h e o viadinho das 11h. — Quem? — O rapazinho das 11h.
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— Ah, tá. — Acho que até o fim do mês te boto na linha com ela. — Valeu aí. VALEU AÍ. Quantas vezes eu já disse “valeu aí”?
Uma. Essa. Podre. Esqueci de dizer que o canal do Doutor Camargo passa novela o dia inteiro. Rolam umas inéditas, umas reprises, umas séries meio toscas e é isso. Ele disse que criou a emissora pensando na classe C que ganhou espaço na tevê a cabo, mas né? Tem dinheiro aí. No bolso dele, obviamente. — Se você quer se livrar dessa novela você vai ter que apresentar outra coisa para botar no lugar. — Zé Marcelo, tem capítulo rolando o dia inteiro praticamente neste canal. Não há nada que não tenha sido feito. Até uma série sobre a rotina de avós que criaram um grupo de costura online está no ar. Tudo já foi inventado. — Ué, Luísa, então refaz o que já foi feito! Ninguém lembra de nada. Cria um conceito novo aí. Todo mundo esquece tudo mesmo. Pela primeira vez em semanas não pensei em sentar a mão na cara de Zé Marcelo. Um conceito novo + ninguém lembra de nada = o golpe do século. Se vou enganar, que seja com requinte. Uma mentira sofisticada. Aquela em que até você mesmo acredita. Essa é a melhor. 20
— Mashup dramatúrgico? — Claro, doutor Camargo. O conceito da mistura de estilos é a tendência lá fora. Quer dizer, vai ser tendência em 2014. Nós estamos nos antecipando, entende? — Isso é bom. Isso é muito bom. O bom de escrever é que você acostuma com as pausas dramáticas na vida. Em outros tempos eu estaria faniquitando (com direito a bracinhos de Caco, o Sapo. Não, me recuso a chamá-lo de Kermit). Hoje, nestes momentos, penso assim: CENA 15/EMISSORA DE TV/SALA DE DOUTOR CAMARGO/INTERIOR/DIA. CAM do ponto de vista de Luísa, que olha atentamente para
Doutor Camargo. O silêncio paira no ar. CORTA PARA
Não é muito mais fácil viver assim, com progressões dramáticas? — Eu quero uma sinopse. — Já tenho uma ideia. Imagina: Gabriela, que tem aroma de cravo e pele de canela, vai parar numa cidadezinha onde uma senhora gorda explode e um shopping também. Todos suspeitam de um rapaz com problemas mentais e que faz esculturas de areia, mas ele é batalhador e se associa a uma moça que vende sanduíche na praia e, pouco tempo depois, consegue montar seu restaurante. Ao mesmo tempo uma dona tenta engravidar e não consegue, e aí contrata uma jo21
vem do Marrocos especialista em dança do ventre para carregar seu filho na barriga. Só que, depois disso tudo, ela se envolve com um rapaz que acabou de se separar de sua própria mãe e descobre que tem leucemia. — Parece bom. — Essa é só uma das ideias, doutor Camargo. São infinitas possibilidades. Uma mulher sai da cadeia disposta a conquistar sua filha, criada por sua irmã. Mas a menina já está trabalhando como modelo de uma famosa marca de roupas, além de ser amiga de uma cantora de hábitos noturnos. Uma vampira, vamos dizer assim. Mas a sugadora de sangue nutre amor verdadeiro por um rapaz que ganha a vida em rodeios, e logo depois descobrimos que ele tem um irmão gêmeo — o segredo é que ele é um clone. São tramas curtas, são uma verdadeira homenagem à teledramaturgia brasileira. [Nota da redação, espero que a última: saiba quando usar clichês. Eles podem salvar sua vida]. — E o que eu faço com a sua novela? — Eu tive um colapso nervoso e vou ser substituída por colaboradores enquanto me recupero do esgotamento provocado pelo excesso de horas online. Aquela moça daquele programa de domingo faz uma entrevista comigo num spa e pronto. — Tudo bem. Mas eu quero a sinopse até o fim do mês. — O senhor não vai se arrepender, doutor Camargo! “O senhor não vai se arrepender”. Que frase mais burgue-
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sa. Só faltou dizer “é só uma lembrancinha” e “não repara a bagunça”. Luísa, sua credibilidade é zero. Mas você conseguiu o que queria. Excelente, parabéns. — E este conceito de mashup dramatúrgico… — Veja bem, Marília, eu sempre tentei inovar. Depois da novela feita com base em sugestões e comentários no Twitter, eu precisava ir além. — E de onde vêm as ideias, Luísa? — Ah, Marília, a televisão brasileira é um grande manancial de ideias e possibilidades. São talentos, histórias, personagens tão ricos que nunca se esgotam. Ninguém faz como nós fazemos. É um dom que nós temos, você não acha? (Nota da redação, agora a última: mais uma vez, a importância dos clichês. E nunca se impressione com essas entrevistas. São iguais àquelas feitas por departamentos de pessoal, em que perguntam “qual o seu maior defeito?”, e você responde “sou muito perfeccionista”. Este mundo, meus amigos, é uma selva. Welcome to the jungle, diga o que querem ouvir e pule mais uma casinha em seu tabuleiro). *** — E então? — Achei interessante. — Interessante nunca é bom… — No seu caso, sim. Você é jovem, tem muito tempo e experiências pela frente. — Eu tenho 32 anos. Quem inventou essa moda de que
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existe juventude após os 30? — O mercado imobiliário, certamente. — É, taí uma verdade. Ou uma associação de analistas, cansados de atender gente pirando por ter quase 40 anos e ainda morar com os pais. Ou não conseguir pagar as contas no fim do mês. — Por causa do mercado imobiliário. Olha o aluguel alto aí. — Fato. — Mas não rola mesmo? — A ideia é boa, mas meio mal amarrada. — Mal amarrada? Eu já vi séries sobre a rotina dos vendedores de um armarinho. Um bazar. Desses que vendem linha, lã, laço de fita. — Algo pitoresco. A rotina de um roteirista, ou de um repórter, não é nada exótica. — Como não? — Jornalista é pobre, não tem glamour. Ninguém se interessa. O personagem tem que ser ou muito rico, ou muito pobre. Classe média não desperta simpatia. — Aham, claro. Vou até anotar aqui para lembrar da próxima vez. — Não precisa ser irônica, eu quero te ajudar. — Ô. Imagina se não quisesse. — Vida de roteirista não interessa a ninguém. Referência pop, frase em inglês, isso não vende. — Compreendo. — Sabe o que eu acho que você deveria fazer? — Desistir de escrever e virar imigrante ilegal na Finlândia? — Engraçada você é. Você deveria escrever um blog. — Um blog? 24
— Um blog. — Por qual motivo? — Vitrine, minha querida. E todo mundo gosta de ter a sensação de descobrir algo que ninguém conhece. Bom, todo mundo neste meio. — Mas eu não preciso que você me descubra. — Claro que sim. — Claro que não. — Tanto faz. Deixa seu projeto aí, se quiser, mas já te dei meu conselho: faça um blog. *** Nada como contar a boa nova de um fracasso via Skype a quem se ama. Recomendo a todos esse lindo momento de comoção. — E você já fez o blog? — Claro que fiz. — Qual o link? — AGÁTÊTÊPÊDOISPONTOSBARRABARRA eles não sabem o que fazem PONTO blogspot PONTO com. — Achei a alfinetada sutil. — Claro que não, eu fui grossa. — Eu sei, tava brincando.
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O t á r io Ricardo Calazans
Não era uma loura qualquer. Era “a Loura”. E não havia um sujeito sequer na cidade que não houvesse metido a mão no bolso para vê-la naquele verão. Ela cantava mal, mas dançava à beça e enlouquecia os homens. Só isso. Insinuava um striptease em cena. Não ia muito longe, mas hipnotizava a todos com aquelas pernas indescritíveis. Ela no palco, meio dentro meio fora de um vestidinho branco, mínimo, menor que isso, e a plateia em órbita. Vou te dizer: eu estava completamente perturbado. Não era paixãozinha adolescente. Não era amor platônico. Eu era uma vítima da Indústria Cultural: pra todo lado que olhasse, só via a Loura. Em jornais, outdoors, na tevê, em revistas caretas, em revistas pornográficas, em revistas-cabeça, em revistas alternativas, camisetas, outdoors, internet, celular, o diabo. Ela era um fenômeno pop. Eu era um obcecado. A Loura fora descoberta na praia. O homem do olho de vidro (o outro era verde) enxergou nela uma reluzente e curvilínea mina de ouro, no pouco que restava para ver além do seu biquininho. Verão, calor… Com dois ou três movimentos ela seria capaz, disse o Olho de Vidro, de elevar ainda mais a temperatura da cidade. E piscou para a Loura com um contrato artístico dos mais convencionais. Ela, que não fazia nada da vida além de retocar ad aeternum o corpo irretocá27
vel, topou. Virou “stripper chic”, incensada por repórteres tarados, apresentadoras de tevê excitadas, blogueiros solitários, gente em geral e publicitários fora de si, como eu. Eu estava, como já se sabe, completamente perturbado. Ainda que da primeira vez eu tenha ido quase inocentemente ao show da Loura. Todo mundo estava indo. Era vulgar, e daí? , as pessoas se orgulhavam em dizer a quem quisesse ouvir, e mais ainda a quem não quisesse, sobre seu apreço por aquela vulgaridade. Provocadores, isso sim. No fim, não resisti. Mas não estava preparado para ver o que vi. Ela, um microfone, um pedestal e três sujeitos gordos no fundo, empunhando baixo, guitarra e bateria como se fossem tacos de beisebol ou tanques de guerra (no caso do baterista, evidentemente). A missão dos gordos era fazer com que ninguém percebesse (muito) como a Loura desconhecia por completo a matemática musical. Então eles tocavam alto, e tocavam rápido, e furiosamente, e aquele barulho todo, naquela casa de shows calorenta e abafada, já era atordoante o suficiente para mim. Os gordos suavam, o público suava, o ar ficava elétrico, a tensão o tornava sufocante. Eu adorava. Era assim no princípio. Então ela entrava no palco. Cantava com a menor voz do mundo e se mexia por ali, alheia a nós. Fervi. O verão se tornou insuportável. No trabalho, suava frio quando não era terça ou quarta-feira. À noite, nesses dias, eu não fazia outra coisa: estava lá, sentado cada vez mais próximo ao palco, cada vez mais perto, semana após semana, o verão inteiro. Eu estava inteiramente perdido.
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Aí ela sumiu. Um mês sem ler uma notícia, sem uma foto inédita em revistas, sem que a página da Loura fosse atualizada. Eu me senti abandonado. Mas fui adiante. O tempo passou. Logo vieram os boatos de que a moça voltaria. Houve fila na porta do Teatro Municipal para ver seu novo espetáculo. Pelo dobro do preço. Tumulto do lado de fora, comoção lá dentro. Os gordos, dessa vez, usavam uns terninhos apertados, e suavam ainda mais com o novo figurino. Por ordem da produção, o ar-condicionado do Municipal foi cortado para manter o clima original da apresentação: azedo, pesado e espesso. Sufocante. Pervertido. Eu estava em casa outra vez. O caso é que a gente nunca sabe no que as coisas que a gente faz vão dar. Mas elas sempre dão em algo. Resolvi arriscar. A Loura ficaria em cartaz por duas semanas. Duas semanas inteiras de confusão na porta do teatro. Empenhei meu salário em ingressos antecipados para as oito apresentações. Estava decidido; mas só tomei coragem no quinto dia. Imaginava (sonhava) que ela já havia me notado ali, sempre à esquerda do palco, do ponto de vista de quem vê de cima, com a boca meio aberta, como de hábito. No quinto dia, cheguei ao teatro com um escandaloso buquê de rosas debaixo do braço. Escondi-o debaixo da mesa até a hora-chave. Que era, se você quer saber, a hora em que sempre estourava confusão: ela ia até a beira do palco e deixava que passássemos as mãos por seu corpo. Podíamos apalpar onde quiséssemos, apertar o que quiséssemos. Era
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muita generosidade. O mais incrível é que ninguém nunca avançou nenhum sinal: ela era nosso patrimônio público, zelávamos por sua integridade. Pelo menos ali dentro. Mas eu não queria me contentar em fazer parte da turma que se contentava em tirar um sarro da Loura. Postei-me na sua frente e estendi corajosamente o buquê. Ela deu dois passos na minha direção, até a beira do palco, olhou para mim por um instante (a vida diante dos olhos) e se inclinou para pegar as flores. Então jogou o buquê de lado. Enquanto a multidão se atirava canina sobre rosas e espinhos eu permanecia parado, de pé, o idiota, o imbecil. Ela virou as costas. O show acabou. Eu continuei imóvel por séculos, enquanto a horda deixava o Teatro com rosas entre orelhas, dentes, nos cabelos, nas narinas. As rosas que eu havia dado pra ela. O Olho de Vidro se aproximou com um sorriso, passou o braço sobre meus ombros e disse no meu ouvido: — Isso acontece todos os dias. Não liga. Volte sempre. Continuei indo aos shows (ora) mas não tive coragem de sentar perto do palco. Escondi-me atrás de uma pilastra e ali fiquei até o fim da temporada. Acabaram os shows, e minha vida também terminou. Quer dizer, a Loura continuava ativa, virara um ícone pop, dava entrevistas para “talk shows” enervantes, posava para campanhas vulgares de lingerie, tinha sua vida esquadrinhada por periódicos refinados (falavam mal da moça) e jornalecos sensacionalistas (falavam qualquer coisa sobre ela). Eu? Continuava obcecado por ela. Vaguei meses a fio pela cidade. Vasculhei canais a cabo, invadi peep shows, chafurdei
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em bancas de jornais — nada. Logo descobri que mudar o alvo do meu voyerismo não resolveria o problema — eu era adicto da Loura, e teria que aprender a conviver com meu vício solitário. Ou… Havia um prêmio a ser disputado. Os donos das melhores campanhas, os mais criativos e espertos ganhariam prestígio, algum dinheiro, talvez uma mudança de cargo ou emprego e, o mais importante, o direito de receber o prêmio das mãos de uma personalidade qualquer, à escolha dos premiados. Pensei: — Se venço, escolho a Loura! Não havia chance de ela recusar. Ela receberia um cachê. Então eu trabalhei. Passei dias e noites, semanas e semanas escravizando o pobre Padeiro, o diretor de arte. Era o nome dele: Antônio Carlos Padeiro. O que ele poderia fazer? Eu inventaria outro nome pra mim, mas o Padeiro curtia essa história de carregar a história da família na assinatura. E criou comigo algumas peças bem originais, tão brilhantes que jamais pegariam poeira na traseira de ônibus ou em laterais de edifícios. Seu esplendor merecia ser apreciado apenas em volumosos catálogos de ficção publicitária. No calendário em cima da minha mesa, engordurado por minhas mãos de pizza e hambúrguer, o dia 11 de setembro estava circundado em um vermelho desesperado: era o prazo final de inscrição para o concurso. No dia, enviei quatro peças. O Padeiro não me aguentava
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mais. Eu não me aguentava mais. Estava exausto, flácido e esperançoso. No fim do túnel, estava a Loura. Ou um buraco sem fim, caso eu não vencesse. Mas venci. Contra todas as probabilidades eu venci. Na categoria anúncios impressos. Quando soube, vivi os dez segundos mais longos da minha vida. Antecipei minha escolha: — Quero receber o prêmio das mãos da Loura! Subiria ao topo do prédio inteligente onde trabalhávamos e faria uma cena de cinema, “I’m the king of the world”. A Loura receberia o convite por telefone. Aceitaria, é claro, e ficaria excitada para me conhecer. Em duas semanas, eu faria um intensivo na academia de ginástica que oferecia descontos de 20 por cento e tinha os melhores professores da cidade e as técnicas mais modernas para deixar o corpo de um publicitário molenga como eu em forma antes do dia fatal. O dia em que a Loura me daria o prêmio. O tempo passaria em rotação compassada, organizada; eu entraria em forma, cresceria cinco centímetros, nasceriam pêlos em meu peito caído e eu descobriria que podia voar. Planando sobre a cidade, eu pousaria, sob holofotes, sirenes de bombeiros e espocar de fogos, no Salão Gigante do Hotel Mayor, onde cem mil pessoas, entre elas o Papa, o presidente da República, minha mãe e os moleques que não me deixavam jogar bola na adolescência, e aquelas meninas que riam de mim pelas costas, e aquele filho da puta que cismou que eu era seu escravo naquele emprego de merda, todos eles me aplaudiriam com entusiasmo e calor.
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Então eu subiria ao palco, com sorriso brilhante e roupa impecável, e avistaria, no centro dele, no centro do mundo, a Loura. Ela me entregaria o prêmio, eu lhe daria um beijo, ela desfaleceria, a plateia entraria em êxtase e eu a levaria, voando, para o alto e avante, para um lugar onde mortal algum jamais esteve. Ou… Dez segundos depois, eu suava frio ao telefone. Gaguejei aos organizadores do concurso que queria a Loura como madrinha do meu triunfo. Engasguei ao ouvir o sujeito do outro lado da linha elogiar minha escolha. — Der mole você fatura a mina no fim da noite! Agora estava feito. E se ela se desfizesse de mim outra vez, como no dia das flores? Seria humilhado em público de novo? Eu poderia processá-la por isso? Eu poderia me matar na frente da plateia, mas isso só lhe daria mais publicidade. “Publicitário otário dá fim à vida por amor à Loura”, estampariam os jornais no dia seguinte, cheios de crase. Melhor era ficar quieto e rezar para que ela não me rejeitasse outra vez. E se meu rosto pálido ganhasse um beijo eu já poderia me dar por satisfeito. Fazia já um tempinho que a Loura saíra de cartaz, e as suas três tentativas de recuperar a fama perdida resultaram em humilhação, difamação e desrespeito, nesta ordem. Nem o Olho de Vidro queria saber mais dela. Havia uma má vontade coletiva contra a moça. Mas não me importei quando o Padeiro, a mamãe, meu chefe e o rapaz da portaria fizeram coro
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contra minha decisão. — Vagabunda! — Démodé!, disseram-me, a título de convencimento. Temi por minha reputação, mas logo fiz a pergunta exata: que reputação? Fiquei firme na Loura. Aí veio a Maria. A Maria apareceu na minha vida dez minutos depois que o pessoal da agência soube que o prêmio era meu. Era morena, trabalhava na agência, tinha olhos imensos (grandes mesmo) e nosso único diálogo até ali acontecera na porta do elevador, uns meses atrás. — Tá cego?! — Foi mal. E mais não disséramos. Até ali. Veio o prêmio e vieram os tapinhas nas costas, os “aí, hein?”. Veio uma conversa reservada com os diretores da agência. Vieram algumas noites regadas a uísque (eles pagaram). E veio a Maria. Vieram um sorriso e um “tudo bem?” melado. Foi o suficiente. E foi assim, por causa da Loura, que me levou a ganhar o prêmio, o respeito e a bajulação dos colegas, e fez a Maria prestar atenção em mim e se tornar minha namorada, foi por causa da Loura, repito, que eu finalmente me libertei da Loura. Ou quase. Havia ainda a cerimônia de entrega do prêmio, e eu tinha contas a acertar com o passado. Já não temia a Loura. Já não sofria antecipadamente a hipótese de uma rejeição. Sentia-me na obrigação de prestar uma homenagem a ela, a essa
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altura tão vilipendiada publicamente. — Vagabunda! — Démodé! A Loura mudara minha vida. Se gostar dela era cafona ou de mau gosto, pouco me importava. Eu ganhara um prêmio. Em breve estaria na moda. Era só ser fotografado na cerimônia. Com a Loura ao meu lado isso haveria de acontecer. Duas horas antes da cerimônia eu já circulava pelo Salão Gigante do Hotel Mayor, entre oitocentas pessoas arrogantes, arrivistas, perfumadas e enjoadas. Os meus novos amigos estavam todos lá, observando meus últimos instantes de anonimato. Logo eu subiria ao palco, diante dos olhos da Maria e daquela multidão de narizes empinados, e me tornaria célebre. Pelo menos por alguns minutos. Mas isso poderia me render convites para outras agências, aumentos de salário, um cartão com a palavra “diretor de…” ou “vice tal”, bajuladores atrás de mim e, quem sabe, um dia, eu me tornaria jurado do Prêmio. A vida prometia. E havia a Loura, mas agora pouco me importava. Não poderia mesmo dar muita atenção a ela enquanto estivesse recebendo meu prêmio, posando para fotos, dando entrevistas, deixando de ser fracassado. E a Maria estava lá. Não ia pegar bem. Entre os narizes empinados o assunto éramos a Loura e eu. — Tem um cara aí que escolheu a Loura pra entregar o prêmio. — Um desses babaquinhas que se acham geniais. — A Loura aqui? Ai que brega!
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— Vai ser o máximo. — Essas vagabundas fazem qualquer coisa para aparecer. — É celebridade instantânea. Vive disso. — Li que o culto às celebridades é a transformação do cotidiano em mercadoria… — Quer tomar no cu agora ou mais tarde? — Ó, é até um favor que o garoto faz a ela. E uma grande sacada. — O quê? — Isso de chamar a piranha pra entregar o prêmio. Fica engraçado e vai sair em tudo que é site de fofoca amanhã, e nas revistas da semana que vem. — Porra, você chama isso de salmão? — Me desculpe, senhor. — Bem capaz de ele ter chamado a puta só pela piada. — Olha lá a vagabunda. — Rapaz, mas o que é que é isso… — Tá bem, ela. — Tá bêbada. — Também. Mas continua ótima. O cara vai é se dar bem com ela. — Admito: tô com inveja. — É. “Ainda hoje estareis comigo no Paraíso.” — O quê? — Nunca ouviu? — Não. — É Fernando Pessoa. — Ah, sei… Em que agência ele trabalha?
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Não pude deixar de sentir uma agradável ponta de orgulho. Ponta não; um iceberg inteiro de satisfação veio ao meu encontro. Fizera bem em ficar firme na Loura. Minha escolha era um sucesso antecipado. E finalmente fui chamado ao palco. Chegara a hora. Caminhei em sua direção. Olhei para baixo e notei que meus pés mal tocavam o solo. Eu flutuava e o Padeiro lá embaixo, com as mãos nos bolsos e a cara emburrada. Ele detestava aparecer. Mas eu não. Eu estava lá em cima e havia acabado de cumprimentar o mestre de cerimônias quando vi a Loura surgir, em meio a flashes, assovios e aplausos, pela direita do imenso palco do Hotel Mayor. Caminhou na minha direção com o troféu nas mãos, um sorriso desenhado no rosto e dois olhos incandescentes em mim. Lembrei na hora de tudo o que fizera questão de esquecer. Os flashes, aplausos e assovios continuaram, mas eu não podia mais ouvi-los. Os doze passos que ela deu até mim duraram um mês inteiro. Pisava firme mas vinha leve, linda num vestido azul, loura como sempre. Cada passo vibrava em meus ouvidos. Investiguei nervosamente a plateia, procurei a Maria com os olhos, mas não consegui enxergar nada além da Loura na minha frente. E os flashes. E ela olhou nos meus olhos e me fez arder e os flashes me cegaram e ela me deu um beijo quente, muito quente, no rosto. E me disse, com a voz cheia de vinho tinto, “Parabéns”. Era como se houvessem enfiado pernas-de-pau sob meus pés e depois serrado. Eu me virei lá do alto, troncho e desequilibrado, com medo de cair. Só então os sons do mundo voltaram, num estampido seco, como todos os estampidos. Ouvi os
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aplausos, assovios e os gritos para a Loura, que sorria e acenava. Tonto, vi a Maria, e ela sorria para mim. Descemos as escadas os três — eu, a Loura e o Padeiro. Fui soterrado por um desabamento de tapinhas nas costas. Em poucos segundos, perdi a Loura de vista. Atordoado, fui levado ao Salão de Festas do Hotel Mayor. Destilados e cocaína, luzes lindíssimas, som anestesiante: acabara de entrar em uma nova dimensão. Já devidamente celebrizado, com a Maria pendurada em meu braço, eu me sentia o próprio anfitrião da noite. Acenava, dava beijinhos, trocava cartões com gente que eu nunca havia visto, mas que queria muito tornar a ver. E tentava me recuperar da visão da Loura. Foi numa dessas horas em que a Maria resolveu passar pó no nariz. Eu, feliz da vida, cambaleei pela pista de dança com meu copo, observado de longe pelo Padeiro enfastiado. Umas gostosinhas vieram dançar perto de mim. Procurei a Maria… Se não fosse a Maria… A Maria… Que se dane a Maria… Pensava nisso quando uma delas se aproximou mais, linda. E Loura. Era ela. A Própria. Começou a dançar ao meu lado, e a se encostar, e logo estava dançando de frente para mim. Digo, colada em mim. Bem juntinho mesmo. A diferença entre ela e as outras gostosinhas é que ela dançava, pra mim, como dançava no palco praquelas multidões de celerados de um ano atrás. Eu estava, outra vez, completamente perturbado. — Vamos? — O quê? Vamos? Pra onde? O quê? — Você não quer sair daqui? 38
— O quê? Era como se houvesse um círculo, e eu e a Loura estivéssemos no meio, e todos nos observassem. Quer dizer, quando ela começou a se esfregar com um pouco mais de vontade em mim, havia um círculo de curiosos de verdade à nossa volta. E todo mundo nos olhava. Era assustador. Mas ela nem ligava. — Você não quer sair daqui comigo? Ela tinha ainda mais vinho na voz. — É que eu… Caramba, era tudo o que eu mais queria na vida. Um convite da Loura para sair dali com ela. O que viria depois era mistério, mas não foi para descobrir o que viria depois que eu ganhara aquele prêmio? Não foi esse o início da história? — … é que eu… Tinha que assumir meu desejo. Tinha que dizer pra ela. Tinha que dizer agora. — … é que eu… Ela era ainda mais linda assim, frente a frente. Eu poderia mesmo sumir com ela. Uma noite apenas, ou a vida inteira. Ela era real, e era como nos meus sonhos. — … é que eu tenho namorada. E me afastei o mais covardemente que pude. Empurrei-a de leve, dei as costas, três passos e olhei para trás. A Loura estava parada e me encarava. E aí ela chorou. Não disse nada. As lágrimas apenas caíram, e ela desapareceu novamente. Então, quando me virei para o outro lado, dei de cara com a Maria.
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— O que aconteceu? Fui rápido. — Você tinha razão. Essa Loura é uma vagabunda. E démodé. E… Quando me virei de novo para ver se a Loura havia sumido, vi, caminhando em minha direção, um sujeito alto, bem forte, de expressão dura e com uma tatuagem no braço direito que não consegui identificar. Foi rápido. O soco me fez ver estrelas. É impressionante como aquelas cenas de desenho animado se transformam em realidade num instante. No outro, estava no chão. Espirrava sangue do meu nariz — agora eu era, definitivamente, o centro das atenções. O sujeito de expressão dura e tatuagem do Pernalonga (soube depois) ainda me chutou a perna esquerda. — Isso é por fazer a minha amiga chorar, teu cuzão. A Loura seguiu atrás dele, cambaleante, com a maquiagem borrada. Pelo menos foi o que eu consegui ver. Meus olhos ardiam. Quando pude me levantar, fui procurar a Maria. Um tapa violento amassou meu rosto. Ela me encontrara antes. — Isso o que você acabou de fazer, seu babaca, não se faz. E me acertou outro tapa. — Maria!… O que eu fiz com você? — Comigo, não, otário. Com ela. E saiu, na direção oposta à da Loura.
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Ma r ia na sa l A Mariana Timotheo da Costa
A sala era como a de um consultório médico qualquer: um sofá forrado de azul claro, até que bem confortável, poltronas forradas com panos da mesma cor, talvez um pouco mais claros, almofadas com estampas inspiradas na Provença. Impressionante como os decoradores de consultórios médicos no Brasil adoram as florzinhas da Provença. Uma mesinha de centro em que repousavam revistas semanais, de assuntos mais sérios e, claro, as de fofoca. Ela gostava das revistas sobre a vida de celebridades, e sempre arrumava um tempo para lê-las, especialmente quando ia aos salões de beleza, para fazer as unhas ou uma hidratação que demorava horas no cabelo. Ou, como no caso de agora, ao médico. Nos salões de beleza, tentava equilibrar as revistas entre uma manicure e outra, havia sempre duas manicures com ela, uma fazendo os pés, a outra as mãos. Muitas vezes, levava bronca: “Como você vai equilibrar uma revista com os pés e as mãos ocupados”? Mas sempre arrancava risadas contando alguma história que, no trabalho, tinha ouvido sobre este ou aquele famoso. E com comentários do tipo: “Como fulano engordou” ou “(ele ou ela) tem a pele feia, não é?”. Ou “sabia que beltrano trai direto a mulher com sicrano”? Nunca era sua intenção perder tempo. Se já fazia algo tão chato como ir ao salão, achava que deveria conciliar os tratamentos. Já que estava ali parada, esperando para ficar um 41
pouco mais bela, poderia muito bem se inteirar das fofocas das celebridades. E, afinal de contas, precisava estar bem informada. Tinha 31 anos, e era uma bem-sucedida produtora de um programa de sucesso na tevê a cabo, sobre beleza e terapias alternativas para o bem-estar. Volta e meia precisava entrevistar aquelas pessoas das capas das revistas. “O que você faz para ter esta pele? A prática da ioga realmente deixa a pessoa com este corpão? É mesmo péssimo comer carboidratos à noite”? Ela nunca comprou a idéia da ioga. Ficava puta quando entrevistava uma pessoa para o seu programa, que falava que ficava magra e com a barriga definida daquele jeito “só praticando ioga”. Não dava. Fazia ioga há anos, havia até cismado e passado uns meses no melhor ashram de Mysore, respirava bem, meditava, a prática a acalmava de uma maneira que poucas coisas a acalmavam. Mesmo assim, com frequência se achava um ser um pouco mal diagramado: uma barriguinha ali, um culotinho acolá, adiposidades e celulites ao longo da coxa, sempre três ou quatro quilos a perder. Será que é por que ela comia carboidrato à noite? Adoraria seguir à risca tudo o que seu programa de tevê recomendava. Chope engorda, vinho engorda, saquê e sushi engordam. Chocolate e mousse de maracujá, nem pensar. Só não tinha a intenção de cair na lábia dos médicos tidos como ortomoleculares, que prescreviam anfetaminas para pacientes ávidas por perder peso. No entanto, ao longo dos anos, aprendeu que sua história seria muito mais divertida se ela optasse por não ser uma personagem bem-construída. Coerência não era o seu
forte, nem nunca seria. Não havia, por exemplo, se casado com os colegas certinhos da escola, que tinham toda a vida burguesa programada para eles. Casar, ter um carro do ano, uma casa bacana, filhos e uma mulher linda para cuidar de tudo. Era uma péssima dona de casa e, durante muitos anos, não sustentou o sonho de casar. Pelo menos não de véu e grinalda, na igreja, ou numa festa para oitocentos convidados e bem-casados de doce de leite. Preferiu desbravar o mundo, foi meditar na Índia, viveu um tempo num orfanato que tratava de crianças com hiv em Angola, como voluntária de uma ong humanitária, presenciou um atentado terrorista em Sharm El Sheik. Conhecia um pouco da Torre de Babel mundial, que fez com que tivesse dois amigos mortos nos atentados às Torres Gêmeas, e quatro sobreviventes à tsunami no Sri Lanka. Apaixonou-se tomando sorvete em Veneza, viajou de cogumelos num festival em Reading, viu o pôr-do-sol de Fira, passou dias e horas lendo Baudelaire (“Quanto mais se quer, melhor se quer”) pelos cafés de Paris. Gostava de ajudar doentes com Aids com a mesma intensidade que curtia o sol na Grécia. Era capaz de ver um desfile de moda da Semana em Nova York com a mesma desenvoltura livre-de-preconceitos com a qual visitaria um hospital no Soweto, em que viu várias crianças de dois anos internadas com hiv porque homens ali acham que fazer sexo com uma virgem os livra da doença. Entre os giros pelo mundo, nas férias, ou nos feriados bem aproveitados, fazia análise, sempre lacaniana. Agora, depois de alguns anos fora, estava fixa no Rio e ia duas vezes por se-
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mana ao consultório do analista. Guardava, talvez, certa prepotência de que sua vida era dinâmica, interessante e tinha historia demais para ser revirada apenas uma vez por semana. Só sabia que Lacan era francês, estruturalista e que seus seguidores adoravam interromper as sessões no meio do raciocínio do pobre coitado do paciente. O analista dela por vezes fazia isso. Na análise, mexeu no passado, reviu inseguranças, a relação com os pais, a necessidade de tanta fuga para outros países, a falta de sintonia com o irmão perfeito demais, careta, belo e pouco contestador. Achava que muitos dos seus problemas vinham dali. Mas, pensando bem, nem tinha tantos problemas assim e culpar os pais não levaria a nada. Mal ou bem, mesmo que às vezes aos trancos e barrancos, ou vivendo uma solidão com a qual havia se acostumado, e até aprendido a gostar, tinha tido, até então, uma vida interessante para desperdiçar a relevância de seus atos e sentimentos com culpa ou rancor de terceiros. Deve ser difícil criar um filho, e os pais fazem o que podem. Hoje tinha a consciência disso, de que cada um leva a vida que consegue ou pode levar, e não a que deseja. Até que tinha sido privilegiada por, durante anos, acreditar no contrário. Achava que podia tudo, e por isso tinha feito muita coisa realmente desejada. Buscou sua independência financeira e emocional, conhecer o mundo, fazer amigos e se apaixonar perdidamente por eles. Viver os momentos com plenitude, embora às vezes achasse que tantas mudanças de sede e a falta de raízes eram, na verdade, uma maneira de fugir da profundidade. Costumava dizer, quando seus relacionamentos amorosos ficavam mais sérios, que não dava mesmo para aquilo, que iria acabar
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sozinha, velhinha, numa casa rodeada de cachorros. E olha que nem gostava tanto de cachorros assim. Bom, isso foi mais durante seus vinte anos, a década da fuga e da experimentação. Tinha a audácia de achar que poderia controlar seus sentimentos, que poderia ser exatamente quem desejasse. A vida, com a ajuda de alguns tombos e, principalmente com a consciência de que não morreria por causa deles, lhe ensinou a perceber que certas coisas são incontroláveis. E chegou à conclusão de que o pior a fazer era seguir sua trajetória como se fosse uma linha reta, com vários “podes” e “não podes”. A partir disso, foi percebendo alguns comportamentos recorrentes deliciosamente contraditórios. Adorava, por exemplo, sair com os amigos. Tomava às vezes muitos chopes, adorava vinho. Pelo menos uma vez por semana comia sushi, e não curtia muito o sashimi, este sim recomendável nas dietas que a tornariam uma gostosa. Sabia que só seria boazuda se vivesse uma outra encarnação. Porém tinha lá seus atributos. Era inteligente, bem-informada, viajada. Cuidava do cabelo, embora sempre o achasse incrível justamente no dia de cortá-lo, ou quando decidia passar do preto ao ruivo. Estava longe de se achar linda a ponto de só usar uma camiseta branca e uma calça jeans — gostava e achava necessário se produzir. Invejava as mulheres que saíam por aí de cara lavada. Mas, por vezes, gostava muito de seu rosto e, quando perdia uns quilinhos, o que ainda era capaz de fazer sem relativo esforço, até que nem se achava tão mal diagramada assim. Passava cremes, tinha a pele boa e ainda não sentia os efeitos da idade. Fazia exercícios, se alimentava bem e ti45
nha uma saúde impecável. Boa genética, sem dúvida. Vinha de uma família longeva, ainda tinha um avô e duas avós vivos. Os pais estavam envelhecendo bem, o irmão, um típico garotão saudável da zona sul do Rio, era sarado e rejeitava qualquer tipo de pança. Era ele quem a reprimia mais quando fumava um cigarro — um ou dois por dia, não mais. Achava um terrorismo as campanhas antifumo, embora soubesse dos malefícios do cigarro e seu fôlego ficasse bem melhor sem nenhum. O irmão sempre odiou quando ela puxava um fuminho nos fins de semana, apesar do hábito, após os trinta, ter se tornado menos frequente. Não aguentava mais ficar chapada. Noitadas diminuíram, a ressaca no dia seguinte era de grandes proporções, na medida em que a idade a atingia. Ecstasy e ácido, nem pensar. Nunca tinha sido consumidora voraz de drogas ilícitas, mas teve sua fase de experimentação, como acha que qualquer jovem que se preza deveria ter. Especialmente o ácido lhe causava uma sensação maravilhosa, de viajar no tempo e no espaço, ver uma nova cartela de cores, um relevo diferente no chão. Certa vez foi a um concerto de rock em Londres — as bandas inglesas sempre foram e sempre serão as melhores — e viu uma girafa imensa atrás do palco, tocando bateria. Quando é que, em épocas de miséria, aquecimento global, desencontros entre homens e mulheres, terrorismo, individualismo, psicopatias, etecetera e etecetera… poder-se-ia viver momento tão lúdico? Ácido, sem dúvida, era a sua droga preferida, se tivesse que eleger uma. Agora era uma profissional séria, respeitada e, por mais que por vezes achasse que enxergar uma girafa gigantes-
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ca ajudaria em seu processo criativo, tinha medo de ter um ataque do coração, ou um derrame, e não tomava mais nada disso. Apesar dos males do cigarro, achava quase impossível deixá-lo completamente porque, assim como quando era adolescente amava a música dos Titãs que esbravejava “eu não confio em ninguém com mais de trinta…”, hoje ainda acreditava ser impossível confiar em alguém que não tivesse uma quedinha, nem que pequenina, por um vício. Sem mais girafas, apenas um cigarrinho de vez em quando. Impressionante como envelhecer trazia à tona alguns medos que jamais sentira antes. Se agora era mais segura quanto ao corpo, ao trabalho, e estava aprendendo que sempre seria incoerente e nunca uma Poliana bem-construída — e era esta a graça da vida —, tinha medo de ter câncer, aneurisma, gastrite, diverticulite, pânico, depressão, trombose ao ficar horas dentro de um avião. Tinha certo medo de envelhecer, uma pena danada de deixar de existir porque, embora meditasse para os deuses da astanga ioga, tinha muita dificuldade de acreditar em Deus, para ela um ser tão complexo a ponto de reger o rumo da vida das seis bilhões de pessoas do planeta. Jesus Cristo, sim, foi um cara realmente incrível, assim como John Lennon. Grandes ídolos seus. Antes de deixar de existir, tinha que fazer mais trabalhos humanitários na África, passar a noite dentro de um caminhão no Delta do Okavango, conhecer as Cataratas Vitória. Visitar o amigo neozelandês que abandonou o mercado financeiro de Manhattan para voltar para casa e abrir uma pousada de turismo de aventura no interior. Ainda tinha que percorrer a rota Moscou-Pequim pela Transiberiana, pas-
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sando não apenas pela gelada Sibéria (sempre quis muito ir à Sibéria), e conhecer o Deserto de Gobi. Precisava concluir Anna Karenina, A montanha mágica e ler todas as obras de Coetzee, Murakami, Dostoiévski e Ian McEwan. Ainda tinha que escrever um livro, ou pelo menos um conto triste. Ainda tinha que ter um filho. Mas se não era de fugir de seus sonhos e nem das oportunidades que a vida lhe apresentava, o que estava, então, fazendo neste consultório médico de poltronas com estampas inspiradas nas flores e nas cores da Provença e revistas de celebridades? E também de paredes espessas, portas pesadas e com trincos reforçados para, a qualquer momento, isolar o local do mundo, denunciando a prática ilegal que os profissionais ali fazem? Sem falar de mulheres com caras tristes e assustadas, como ela, agora. Estava grávida, de quase três meses e esperava, na ante-sala do consultório, por alguém que resolvesse o problema. O que mais a angustiava era saber se estava tomando a decisão certa. Tinha 31 anos, condições de se sustentar e a um filho, vontade de ser mãe. Um cara legal seria o pai. O que mais poderia querer? Era um grande amigo dela, de colégio. Havia sido um one night stand, desta vez. Os dois já haviam ficado bastante na época do colégio, quando ela não tinha a menor intenção de dar para ele. Queria deixar de ser virgem com um grande amor, que foi só aparecer na faculdade. Depois do grande amor, que durou pouco, na medida em que às vezes os grandes amores, especialmente os puros como aquele, deveriam durar, namorou bastante. Compromissadamente e descompromissadamente, mais descompromis-
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sadamente, até. Um excesso de confiança nunca havia sido seu forte para relacionamentos de longo prazo. Talvez por medo de perder alguém que lhe era caro demais, talvez por ter a sensação de que estava deixando passar alguém melhor. Não era incoerente? Estava tentando descobrir seu caminho. O que queria da vida, o que lhe era essencial numa relação. Era honesta demais para fazer um cara perder tempo com suas lamúrias. Ou será que o que cultivava era, na verdade, um medo danado de se apaixonar? Este dilema permeou a maioria de suas relações mais longas. Porém, a curto prazo, podia até se considerar uma pessoa que se garantia: flertava, puxava papo, aceitava propostas de beijos, amassos, ou rápidas noites a dois. Teve sua parcela de namorados considerados areia demais para o seu caminhão. Aspirantes a modelo, em especial. Era vaidosa, a ponto de desfilar com eles apenas por sua beleza. Tinha certa tolerância com os homens de pouco conteúdo, desde que fossem divertidos, belos e a fizessem rir. Mas, nas relações mais longas e duradouras, optava pelos homens de cultura, inteligência, polidez, sensibilidade, beleza não era o essencial. Com estes, dois ou três amores mais sólidos, venceu o medo e pode-se dizer que amou. Amores que acabaram por motivos variados, desinteresse, distância, traição, uma viagem. Sua, a maior parte das vezes. Embora ainda fosse recorrente o sentimento de que acabaria sozinha e cercada por cachorros, amadurecia. Achava que poderia ser feliz tendo uma família, um filho. Por que não levá-los na Transiberiana? Por que não ir morar no Japão com eles?
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Certa vez, um amigo inglês lhe falou que lá na aldeia celta de onde vinham seus antepassados se contava uma história, de que a vida era sobre os três l — “live, learn and leave a legacy”. Viver, aprender e deixar um legado. Não é à toa, pensava, a ordem dos l. Primeiro, era preciso existir; depois, a vida vai lhe ensinando uma série de coisas, até você aprender o suficiente para gerar uma nova vida dentro de você. Se pelo menos a maioria das pessoas seguisse a ordem desta máxima celta, o mundo seria diferente. Impressionava-se com a quantidade de pais completamente despreparados ou sem saco para cuidar de uma criança. Isso se manifestava de variadas formas, desde a contratação de babás até para ninar os filhos à noite, até o medo de amamentar da mãe, ou dificuldade de educar, dizer não. O filho de uma amiga, de apenas cinco anos, já perguntava quando o cartão de crédito da mãe virava, para ele poder fazer compras de brinquedos e games pela internet. Tinha a sensação de que dizer não ou rejeitar um desejo do filho era muito difícil para alguns pais, talvez por uma falha no próprio diálogo, por obstáculos dos próprios em se expor e falar sobre sentimentos. O dinheiro, o ter, estava substituindo o ser, o afeto, a tolerância e a ética. Pais que trabalhavam muitas horas fora tentavam compensar o amor proporcionando aos filhos muitos bens materiais. Ela lutaria ao máximo para não ser uma mãe assim. Existia também o outro lado desta moeda, as dummies mommies. Adorou esta expressão que leu certa vez numa revista estrangeira, sobre as mulheres antes interessantes que viravam mães bobocas. Ao contrário das culpadas por não estar presentes na vida dos filhos, resolviam largar tudo para
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cuidar deles. Paravam de trabalhar, aceitavam prontamente passar a ser sustentadas pelos maridos, só eram capazes de falar da fralda de maior custo benefício do supermercado, ou do melhor ponto da praia ou da pracinha para o filhote passar as manhãs. Eram mães excessivamente cuidadosas, que a qualquer tombo ou febre do filho já piravam e davam um sorriso amarelo quando alguém pegasse a criança no colo, por medo dela cair ou ser contaminada por bactérias. Ela também lutaria o máximo para não ser uma mãe assim. Queria ser uma mãe livre porque só assim criaria um ser humano livre também. Achava que fazia parte do processo acordar durante a noite, quantas vezes necessário, ir à farmácia comprar remédio na hora em que o filho ficasse doente, aninhá-lo no colo quando ele, mais grandinho, precisasse de conforto. Também lhe negaria bens materiais, para ele crescer conhecendo o valor do dinheiro e das coisas realmente importantes como afeto, conversa, paz de espírito, administração de frustrações. SUGESTÃO: Não foi com o amigo lá de trás, da época do
colégio — aquele que a engravidaria mais tarde — que ela perdeu a virgindade. O amigo que a engravidou, lá atrás, quando no colégio, não perdeu a virgindade com ele. Foram transar pela primeira vez na faculdade, depois do grande amor e de alguns outros flertes, durante uma festa, altinhos de cerveja. Nunca foi apaixonada por ele, mas, ao longo dos anos, foram um porto seguro um para o outro e o amava por este papel importante que adquiriu em sua história. Sempre que terminava um namoro, ou voltava para o Brasil entre viagens ou
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relações curtas e longas, os dois se encontravam e, quando calhava de estarem com o coração triste, ou desocupado, ficavam juntos. Quando isso não acontecia, tudo bem também. Ao longo dos anos, as transas ficaram mais escassas e a amizade, mais forte. Se tinha uma relação descomplicada, era com este amigo de colégio. Tão diferente dela, mas sempre tão meigo, tão leal. Sentia-se cada vez mais pronta para tê-lo somente como o grande amigo que era. Estava há dois anos solteira, e se divertia com os caras errados enquanto o cara certo não aparecia. Queria e estava preparada para um novo e grande amor. Desta vez, sentia-se apta para viver a relação de forma diferente, mais madura, mais serena, aceitando melhor não apenas os seus, mas os defeitos e as limitações do outro. Daí, há três meses, após mais um término desastrado de um casinho sem importância, estava com o amigo num bar. Beberam chopes, fumaram cigarros e tudo aconteceu naturalmente como sempre. Era bom trepar com ele, mas os dois sabiam que não era um com o outro que gostariam de construir uma vida. Poderia ser infantilidade, bobeira, excesso de romantismo, imaturidade, mas o fato é que ali não havia mistério, não havia desejo, apenas uma cumplicidade e, de vez em quando, uma carência devidamente proporcional a ela. Os dois deram muita bobeira de transar sem camisinha. Não sabe dele, mas ela nunca transava sem. Mesmo quando namorava alguém por mais tempo e os dois faziam todos os testes, como todo casal consciente, em tempos de Aids, hepatite, candidíase (como as doenças tinham nomes feios,
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Deus) deveria fazer, e dessem negativo, odiava tomar anticoncepcional. Sempre teve muita tpm, era muito sensível e influenciável pelos hormônios. Agora então, grávida, já podia sentir os enjoos, o peito crescer, o corpo alargar. Já sentia o filho dentro dela. Biologicamente, já era mãe. O que queria era desejar este filho. Pensava que desejo era um sentimento muito claro, ou você desejava ou não. Se existia dúvida, era porque não desejava. E não desejar o filho que esperava lhe causou uma tristeza imensa. Chorou sem parar quando o exame da farmácia deu positivo. Telefonou logo para o amigo, que veio correndo do trabalho. Por que eles haviam feito aquilo? Não conseguiria nunca se perdoar do excesso de confiança de transar sem proteção. O que se passou na cabeça deles? Era até aceitável um casal de dezessete, dezoito anos, dar bobeira. Mas ela, aos trinta e poucos, nunca. Nunca tinha engravidado. Que ele soubesse, também nunca tinha engravidado ninguém. Certamente ele nunca tinha estado durante horas numa sala de espera de uma clínica clandestina, enquanto ela esperava na ante-sala do consultório, ou melhor, centro cirúrgico, para fazer um aborto. Claro que consideraram ter o filho. Ela até mais do que ele que, logo, apesar do sofrimento, expôs a opinião de que o aborto seria a melhor opção. Ela nem conseguiria culpá-lo. Sabia que, no fundo, estava sozinha nessa. Como toda mulher, se ela quisesse realmente ter o bebê, teria. A decisão é sempre de quem sente as mudanças no corpo e na mente geradas por uma gravidez, desejada ou não.
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Nunca foi contra o aborto. Era contra, claro, como método anticoncepcional, mas achava que as mulheres tinham o direito de decidir sobre o que fazer com o corpo. Falta de ética , cristã ou não, era deixá-las, aos milhares, serem submetidas a práticas clandestinas e a carniceiros. Falta de ética era deixar uma menina de nove anos ter um filho após engravidar sendo violentada por pai, irmão, padrasto. Pelo menos ela tinha a sorte de pagar por um tratamento, numa clínica higiênica, de paredes espessas e atendentes simpáticas. Com todas as mudanças em seu corpo e mente, entendia por que muitas mulheres que optavam por tirar um filho relatavam a experiência como a decisão mais difícil de suas vidas. Entendia a solidão nela e nas outras três mulheres que esperavam ao seu lado, na ante-sala. Sabia que, se aquelas quatro mulheres desejassem — ou fossem corajosas o suficiente para levar adiante uma gestação que hoje lhes causava mais dor do que júbilo, porque mais adiante, com o filho nascido, teriam a certeza de que o amor incondicional de mãe superaria tudo —, teriam os bebês. Porque ninguém era capaz de separar uma mãe de um filho. Os homens nessas horas não apitam na decisão, a lei não era delas, era da natureza. Nunca achou as mulheres tão só e tão guerreiras ao mesmo tempo. Evitava falar de sua intimidade para estranhos. Mas aquela situação de vulnerabilidade a fez não apenas ouvir, mas contar sua história para as mulheres na sala de espera. Cada uma angustiada à sua maneira, embora as situações fossem diferentes. A primeira tinha 37 anos, era mãe de dois filhos, do mesmo pai, com quem foi casada durante mais de
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10 anos, até descobrir que o marido tinha uma amante há cinco, e tê-lo em seguida posto para fora de casa. Um dia ele foi pegar os filhos, ela estava frágil, tinha bebido um pouco demais e, sozinha que estava, resolveu “matar as saudades dele”. Pronto, estava grávida mais uma vez. Nem contou para ele, o cara já estava com a nova mulher, ela já era mãe. Nunca tinha abortado, estava com medo de sangrar, medo de ser castigada por Deus, mas certa de sua decisão. A segunda tinha vinte anos e chorava muito. Nem tinha contado para o casinho da cidade vizinha que estava grávida. A melhor amiga era quem a esperava na clínica. Disse que teria o filho mesmo sem ele ser amado pelo pai, se ela tivesse condições para sustentá-lo. Mas estudava ainda, morava com os pais. Naquele momento, não teria como levar uma gravidez adiante. A terceira pouco falou, mas estava em seu quarto aborto. Dizia-se desligada demais para tomar pílula, e o namorado da vez odiava usar camisinha. Estava triste, achava que quatro abortos poderiam machucar, mas só lhe restava, disse, torcer para que pudesse engravidar quando realmente desejasse. A mulher de 37 anos, quando ouviu a sua história — que tinha engravidado do amigo, trabalhava num programa de tevê e queria ser uma mãe legal — lhe perguntou: “Ué, mas por que você não quer ter? “ A partir daí, uma série de perguntas tomariam conta da sua mente. Por que ela não queria ter? O pai não seria presente, não reconheceria e educaria o filho? Ela não tinha vontade e condições financeiras de ser
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mãe? Certo era tirar um bebê ao engravidar de um canalha, ou não ter dinheiro, ou não ter condições psicológicas de sustentar um filho. Errado era uma Igreja que diz amar o povo excomungar médicos que façam um aborto em meninas violentadas sexualmente. Errado era gerar um filho que seria um vegetal durante toda a existência. Por que não conseguiria saber o que era certo e errado para ela? Estaria errada por querer perseguir seu sonho, ter um bebê com um cara que amasse, que a amasse também, que quisesse construir uma família com ela? Estaria ela sendo romântica e fantasiosa demais? Mais uma vez, na vida, algo fugia do seu controle, e ela tinha uma dificuldade enorme com coisas que fugissem de seu controle, por mais que lutasse contra isso. Estava aprendendo que isso era uma grande besteira, que ninguém é capaz de controlar nada mesmo. Só não precisava, acreditava, o destino sedimentar isso desta forma, com um filho na barriga. Um filho que gerava angústia e muito medo. Mas com quem também já tinha uma ligação grande e natural, que já se mexia dentro dela, que já atuava em seus hormônios, fazendo-a enjoar e chorar. Nunca se sentiu tão sozinha. Sabia que, se entrasse naquele centro cirúrgico, sempre que visse um bebê na rua pensaria no filho que resolveu não ter. Sabia que iria sangrar e sentir cólica por muito tempo, além de um vazio, durante muito tempo, e que, dali a seis meses, ficaria deprimida por saber que estaria, numa realidade paralela, na nona semana de gestação. Sabia que jamais passaria incólume pela rua daquela clínica, tão pertinho de sua casa. Nunca teria certeza de que havia tomado a decisão certa, só esperava que a vida e a natureza lhe dessem outra chance. 56
Quando ela crescesse e se tornasse uma mulher menos oscilante, mais apaixonada e amada por um homem, não que assumisse o filho simplesmente porque isso era o certo a fazer, mas que desejasse a criança tanto quanto ela. Quando ela merecesse receber o afeto tão grande e tão importante de um filho. Porque toda mulher e toda mãe que carregou, um dia, um filho no ventre, tendo o abortado ou resolvido lhe dar vida, merecia todas as chances do mundo. Ela lutaria pela dela. Era a quarta da fila na ante-sala. Aos poucos, uma a uma daquelas mulheres entravam no centro cirúrgico. Até que uma enfermeira simpática chamou seu nome: “Venha, Maria, é a sua vez… “
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C a p r ic h a , Pa u l in h o Eusébio Galvão
Na segunda-feira, Paulo chegou cedo ao Instituto Flores. Não encontrou ninguém do time, mas também não procurou. Só parou quando viu o professor Pedro Henrique. *** Paulinho desde sempre gostava de futebol, gritava gol, assistia a jogos. Ganhou uma bola cedo e bicava a redonda pela casa toda. Relógios de parede, abajures, um rádio. Os prejuízos eram enormes e Alberto e Mariana decidiram sair do apartamento, raspar as economias e comprar uma casa. Aquele garoto precisava de espaço. *** Quando Paulinho tinha 4 anos, Mariana teve uma amostra do que estava por vir. Era um sábado e ela iria levá-lo à feira para comprar verduras e legumes frescos. O dia estava bonito, então renderia um passeio. Na volta, talvez tomassem uma água de coco. Ou até um sorvete. Ela amava sorvete. Paulinho nem ligava tanto, mas a Mariana era tarada por picolé. — Não. — Por que não, filho? Você sempre gostou dessa camiseta. — Mas não quero. Quero ir com a camisa do Fluminense. 59
Mariana consentiu. Pegou a camisa do Fluminense, presente do Alberto, que estava em viagem de trabalho no Recife. Vestiu Paulinho. — O short. — Hein? — O short. — Que short, Paulinho? — Do Fluminense. Quero usar o short do Fluminense. Mariana bufou. Não de raiva, mas pelo tempo perdido. Paulinho era criança, ela sabia disso. Mas custava dizer de uma vez o que queria antes? Ir de gota em gota era um saco. Pegou o short. E se antecipou. — Vai querer a meia também? — Claro, ué! Ninguém podia dizer que Paulinho não era assertivo. *** Paulinho se chamaria, a princípio, Thiago. Mas seu Paulo, pai de Mariana, teve um enfarte fatal durante a gestação e não ficou vivo para ver o primeiro neto. Thiago virou Paulo em sua homenagem. O garoto era esperto, agitado. Mais agitado que esperto, na verdade. As notas na escola estavam no limite entre vermelho e azul. Os professores eram unânimes em dizer que Paulo não parava quieto e isso afetava seu rendimento escolar. Os pais achavam normal. “Eu me preocuparia se meu filho fosse uma mosca morta. Criança tem que ser espevitada”, explicou Alberto à diretora, dona Alaíde. Ele esta-
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va mal-humorado por ter de perder uma reunião com um cliente para ir à escola. Mariana contou a história do vovô Paulo num dia em que ela e Paulinho, então com 12 anos, estavam na praia de Ipanema, à tarde. Ele cheio de orégano grudado nos dentes por causa do queijo coalho. Ela com um picolé Itália de coco nas mãos. — Filho, você sabia que seu nome ia ser Thiago? Paulinho fechou a cara. Mariana se assustou. — Que foi, meu amor? — E por que não é? — arguiu o moleque (Paulinho às vezes tinha um tom muito insolente para a pouca idade, isso era inegável). — Porque o vovô Paulo morreu antes de você nascer e ele queria muito te conhecer. Vovô Paulo era um cara incrível, você ia adorar ficar com ele — Mariana explicou. — Mas eu queria ser Thiago! Queria ser Thiago! Algumas barracas da praia olharam para os dois, meio constrangidas pelo chilique. — Filho, Paulo é um nome tão bonito… — Eu queria ser Thiago Neves! — Mas Paulinho, seu sobrenome é Gomes! — Isso eu não ia contar isso pra ninguém. Ia ser Thiago Neves e pronto! Paulinho ficou emburrado. Um mate com limão, um biscoito Globo sal e mais dois mergulhos amoleceram aquele coração tricolor. Mas que ele queria ser Thiago, queria. ***
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Alberto viajava muito, mas amava Paulinho e tentava ser bem presente na vida dele, apesar do trabalho com horários caóticos. Para compensar as ausências, ficava com o filho todo o tempo possível. Por isso vivia na correria, chegava atrasado à agência, perdia um ou outro compromisso. Sempre que conseguia uma brecha, levava e buscava o moleque na escola. Ia com ele à capoeira, à aula de inglês. Paulinho era filho único. Depois da lenha que foi para uma gravidez vingar, Alberto e Mariana optaram por se resguardar de outro sofrimento e investir todo o amor que tinham naquele filho mesmo. *** Na nova e espaçosa casa, uma das maiores alegrias do ambiente era quando Alberto encontrava tempo para bater bola com o filho. Paulinho ficava em polvorosa. Alberto era bom de bola, quando jovem foi até do juvenil do Botafogo, mas não levou a carreira adiante. Preferiu estudar e não passar pela incerteza de tentar a sorte no mundo do futebol. Os amigos diziam que tinha futuro. Mas eram amigos. Paulinho herdou do pai a paixão pelo esporte. Não dava pinta de ter herdado nada além. — Paulinho, bate de primeira! — De quê, pai? — De primeira, assim, ó. Quando ela chega pra você, chuta de uma vez. — Alberto ensinou. Paulinho se enrolava e sempre matava a bola. Não tinha
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confiança para tentar o chute. — Não consigo, pai. — Consegue sim. É só se concentrar e treinar. Vamos lá. Algumas tentativas e o sucesso estava próximo. Alberto rolou a bola mansa, a grama estava bem aparada, Paulinho fincou o apoio na perna esquerda, inclinou o corpo levemente para o mesmo lado e esperou. Na hora h, Alberto deu o comando. — Capricha, Paulinho! O moleque pegou em cheio. Isolou a bola, quebrou um vaso de comigo-ninguém-pode da Mariana, berrou “gol!”, saiu correndo, deu um soco no ar, se jogou no colo do pai, se desvencilhou do pai, correu mais um pouco, escorregou de joelhos na grama, fez o sinal da cruz e apontou os dois indicadores para o céu. Aprendera a ser craque. Teve a certeza. Alberto nunca tinha visto Paulinho mais eufórico. *** Paulinho foi pela primeira vez ao Maracanã com 10 anos. Normalmente as crianças estreiam mais cedo no estádio, mas Alberto e Mariana eram meio cabreiros. Foram com o filho num sábado à tarde, jogo do campeonato carioca contra time pequeno. Sem estresse. Antes de sair de casa, Paulinho estava elétrico. — Pai, será que o Tuta vai chutar uma bola que vai cair na minha mão lá na arquibancada? — Acho difícil, filho. O Maracanã é bem grandão — explicou Alberto.
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Naquele ano em que Paulinho estreou no Maracanã, o Fluminense foi campeão em cima do Volta Redonda com um gol salvador aos 47 minutos do segundo tempo. Na mesma noite, o garoto começou a rever seus planos de ser fabricante de jogos eletrônicos (ele tinha muitas ressalvas aos videogames existentes no mercado — o Wii anda não era uma realidade). Ser jogador de futebol era o seu destino. “Vou fazer gol antes pra torcida ficar mais calma”, pensou. A intenção era nobre. Na segunda-feira, Paulinho pediu ao pai que o ajudasse a procurar na internet informações sobre a peneira do Fluminense. E perguntou o quanto Xerém era longe. — Xerém é em Caxias, Paulinho. É um pouco longe — Alberto logo cortou. — Mas vocês vão me visitar, né? Nessa hora Mariana tremeu. Achou que a obsessão do filho estava indo longe demais. Ela e Alberto tiveram uma pequena discussão na cama, já tarde da noite. — Alberto, isso não tem cabimento! Não vou deixar o Paulo ir pra Caxias morar com um monte de desconhecidos! Quando quebrou o silêncio, Alberto foi, ao mesmo tempo, tranquilizador para Mariana e impiedoso para seu orgulho paterno. — Calma, Mari. Ele não vai passar no teste. *** Triste, mas verdade, Paulinho não passou. Mariana, discretamente, vibrou. Alberto levantou o astral do garoto dizendo que a vida é feita de superação, que ele era muito
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novo, que ainda tinha todo um futuro brilhante pela frente. Quando crescesse, ele poderia ser o que quisesse, contanto que se empenhasse. Então, se era empenho a chave do sucesso, Paulinho secou as lágrimas. Precisava ser forte se quisesse cumprir o destino planejado para ele. — Tem razão, papai. Não preciso chorar. Tenho é que treinar. Vou entrar pro time da escola. *** Paulinho abordou o professor Marcelo na porta da sala de professores, quando o sinal já tinha anunciado o fim do recreio. — Paulo, você sabe que futebol aqui é só no quarto bimestre. — Eu sei, professor. Mas eu quero entrar pro time. — O time já foi selecionado, Paulo. — Eu sei, professor. Mas é que não passei pra escolinha do Fluminense. E se eu quiser ser jogador, preciso me manter em atividade pra quando a chance surgir. Eu quero muito jogar —, suplicou. Marcelo era professor de educação física por realmente acreditar que o esporte é um jeito certeiro de desenvolver não só crianças saudáveis, mas cidadãos respeitosos, tolerantes, companheiros. Por isso, até insistiu para que fosse ele o técnico do time de futebol do Instituto Flores. A partir do momento em que uma criança entende que, para conseguir o que quer, vai ter que cooperar com mais dez cole-
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guinhas, ela entende que ninguém na vida é sozinho. Que companheirismo ajuda qualquer um a conseguir alcançar suas metas. Mais que um técnico, era um professor. Era leitor do Lair Ribeiro também. — Terça que vem tem treino às duas da tarde. Pode vir. Mas antes você tem que saber que, pra ficar no time, é importante ter sempre notas boas. Se o preço para a glória era estudar, Paulinho topou o sacrifício. *** Nos treinos, Paulinho surpreendia pela dedicação. Era destaque em todos os exercícios de fundamentos. Sempre pela intensidade com que executava as orientações do professor Marcelo. Traquejo e habilidade não eram seu forte. Mas queria tê-los. Treinava para isso. Depois de anos só de treinos, aprendeu a chutar de peito de pé, de chapa, até mesmo de trivela. Já não apelava para o bico. Mesmo assim, insistiu para que Alberto o ajudasse. Já estava maior, foram três temporadas com o Professor Marcelo, mas aquela maldita forma de pegar uma bola de primeira ainda era um mistério insondável. Via garotos da sua idade — todos no seu time, vários nos times adversários — chutando bolas de primeira como quem diz “fala, maluco, beleza?”. E ele tropeçava. Furava. Caía. Ele precisava matar a bola, era uma questão de física — não conseguia ter a sustentação necessária para manter o equilíbrio. Um parêntese. Paulinho era perfeitamente saudável. Ti-
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nha boa compleição física. Pernas do mesmo tamanho uma da outra. Não era gordo. Era alto, forte, tinha boa impulsão. Não tinha era jeito para a coisa mesmo. Mas isso não passava pela cabeça dele. Alberto se comovia com o empenho do filho. — Mari, me aperta o coração ver o Paulinho querendo muito jogar. — Beto, o que a gente pode fazer é dar suporte. Ele precisa de um background emocional — decretou Mariana (que era gerente de rh de um grande banco). — Mariana, ele é um pereba — Alberto foi enfático quando pronunciou “pereba”. — Mas essa vontade toda de ser jogador melhorou as notas do nosso bebê. Como ele não quer sair do time, passou a estudar. Periga até passar direto — replicou Mariana. Alberto enxergou os benefícios do futebol na vida do seu filho. — Tá. Bom, vou ajudar de toda forma que puder. *** Paulinho não sabia ao certo que horas o pai viria do trabalho, mas esperava ansioso. Porque a partir daquela conversa com Mariana, sempre que podia, ao chegar da agência, Alberto batia bola com o filho. Queria passar um pouco da sua experiência. — Filho, vamos lá. Uma coisa que você precisa entender: você é alto, então é útil saber usar a cabeça. — Beleza, pai.
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— Vamos começar com cabeceio. Foram meses de treino desse fundamento. Pela esquerda, pela direita, com a testa para o chão, de peixinho. A cada bola que cruzava, Alberto repetia o comando dado anos antes. — Capricha, Paulinho! Depois de um tempo, Paulinho até que dava para o gasto. *** Quando tinha 13 anos, Paulinho viveu a época mais mágica da sua vida. O Fluminense atropelou Deus e o mundo na Taça Libertadores da América. Despachou o poderoso São Paulo, desclassificou o temido Boca Juniors, da Argentina. Na cabeça do entusiasmado torcedor-mirim, não seria uma jornada infeliz em Quito no primeiro jogo da decisão (derrota por 4 a 2) que atrapalharia o caminho rumo ao Japão, onde o campeão da Libertadores disputa um torneio com outros campeões continentais para ver quem é o campeão do mundo. Desde cedo ele gritava pela rua que nem um maluco. — Ô ô ô ô ô ô ô ôôôô. Eu acredito! O Fluminense conseguiu impressionantes 3 a 1 (três gols de Thiago Neves, o camisa 10, ídolo do Paulinho) e levou o jogo para os pênaltis. O título era possível. Paulo só deixou de acreditar quando o equatoriano Ceballos, goleiro da LDU, pegou o pênalti batido por… Thiago Neves. Foi um baque. — Não, Thiago! — berrou Paulinho, na arquibancada verde à direita das cabines de rádio do Maracanã.
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A LDU foi campeã continental e seriam eles a viajar para o Japão, não o Fluminense. Paulo só parou de chorar quando dormiu. Teve até dor de cabeça. Antes de dormir, naquela hora em que os pensamentos são nebulosos e a pessoa está meio acordada, meio apagada, chegou a balbuciar. — Ainda bem que eu não me chamo Thiago. Sou Paulo. Paulinho. Gooooool, Paulinho! Paulinho!! O Fluminense é campeão do muuuuundo! Paulinhoooooooo — e depois o sono venceu. *** Paulinho, que por anos só treinou e ficou no banco (entrava faltando dois, três minutos, mais para ganhar tempo), achava que deveria ter uma oportunidade no time da escola. O professor Marcelo sabia que ele achava isso e não deixava de concordar. O jogo do sábado era contra um time fraco. Seria uma boa chance de botar o Paulo em campo. — Pai! Mãe! Vou jogar! Vou jogar! — Paulinho estava louco quando chegou em casa. Mariana chorou, beijou o filho na bochecha. Ela não estava nem aí para futebol, mas sabia o quanto aquilo era importante para o filho. Alberto, de certa forma, se sentiu orgulhoso, um técnico de futuro. Afinal, continuava a treinar fundamentos com o filho. *** No sábado, às nove da manhã, Paulo entrou em campo com a camisa número sete do Instituto Flores. Na arquiban69
cada, Mariana gritava “Flo-res! Flo-res!”. Alberto só gritava entre um gole e outro de cerveja (era Mariana quem dirigiria o carro na volta). O Colégio Nossa Senhora Imaculada tinha um time fraco, mas logo naquele dia eles resolveram jogar duro. O Flores tinha poupado alguns de seus principais garotos, então a pelada estava um horror. Paulinho, visivelmente nervoso, tropeçava nas próprias pernas, enrolava-se com a bola, saía sozinho pela lateral. Teria até sido substituído se um dos zagueiros não tivesse torcido o tornozelo e o professor Marcelo se visse obrigado a queimar a terceira troca. Aos 37 do segundo tempo, Júlio César, o lateral direito, tomou uma bola no meio e se desembestou pelo flanco. Paulinho acompanhou por dentro, marcado pelo cabeça-de-área do Imaculada. Quando estava perto da linha de fundo, Júlio cruzou para o meio. O cruzamento foi impreciso, adiantado. O goleiro preferiu não ir. Da arquibancada, Alberto não se conteve. — Capricha, Paulinho! Paulo, no meio da passada, pôs os dois pés juntos e deu impulso. Inclinou o tronco para a frente e levantou a cabeça para usar a testa. O peixinho foi certeiro, no canto esquerdo do goleiro, que vinha de lá para o meio. A bola no contrapé foi indefensável. Na comemoração, Paulinho se pendurou no alambrado, faz um coração na direção da mãe, bateu no peito olhando para o pai, tirou a camisa e rodou no ar. Foi por isso advertido com cartão amarelo (mas será possível que até no futebol da molecada insistem com essa chatice?).
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No fim do jogo, os responsáveis pela jogada se abraçaram. — Ah, moleque! — elogiou Júlio. — Eu sou foda! — respondeu Paulinho. *** Júlio César era da mesma série do Paulinho, mas de turma diferente. Isso não os impediu de engatar uma amizade forte. Moravam perto, então iam e voltavam juntos para a escola. Júlio era um garoto divertido e sempre tirava sarro do amigo. Paulo, que não gostava muito de folga, não conseguia ficar irritado: as pilhas do Júlio eram tão engraçadas que ele mesmo acabava rindo. Mas o que o amigo tinha de engraçado, carregava também de timidez quando tinha que lidar com as meninas. Era a fim da Tati, mas jamais teve coragem de chegar perto dela. — Deixa de boiolice, Julinho. Chega na moral — Paulo aconselhava. — E digo o quê? Ela não vai querer nada comigo! Paulo não teve resposta para uma questão tão bem colocada. Mas lhe ocorreu uma solução. — Se a gente for campeão, chega com a medalha que vai! Júlio até achou que a ideia era mesmo boa. *** Nem o professor Marcelo imaginava o quanto aquele gol seria importante. O time era bom, a campanha era animadora. E, numa grande surpresa, a Escola Anglo-Saxônica
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perdeu para o Imaculada. O Flores estava isolado no topo da tabela, e se terminasse assim jogaria semifinal e final na sua sede. *** Paulinho não virou titular, mas arrumou uma namorada. A fama repentina de goleador (embora aquele fosse o único gol feito por ele no campeonato) abriu sorrisos nas meninas mais bonitas. Num aniversário de uma das garotas da sala, pegou a Flavinha, linda, moreninha de cabelo liso e comprido, covinha no queijo e corpo esguio e elegante, sonho de boa parte dos garotos do Flores — a outra parte sonhava com a Isabela, que, rezava a lenda, já se permitia maiores ousadias. Da festa em diante, não se desgrudaram. Flávia era filha de um alto diretor da Petrobras. Morava numa casa no Alto Gávea, estudava inglês e francês, fazia sapateado e natação. Era naturalmente bonita e ainda estava na fase em que cuidar do cabelo era o máximo de produção que usava para sair de casa. Na verdade, cuidar do cabelo e passar batom. Se bem que Flavinha já pensava em pedir para a mãe lápis de olho e rouge. Ia também fazer mais dois furos na orelha. Quando Paulinho chegou com ela em casa, Mariana ficou feliz pelo fato de o filho ter conseguido uma namoradinha e ainda mais contente por ser uma menina tão educada e inteligente. Alberto pensou: “Meu filho é pegador! E pega bem pra caceta!” Preferiu não contar para a Mariana. — Ela nada, né? Que bom. Acho importante que essa ju-
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ventude se dedique aos esportes. — É mesmo. E dança também. Vai ficar com um corpão. Aliás, já está. A barriga sequinha, as pernas grossas. Viu? — perguntou Mariana. — Nem me liguei. Ela não estava de calça comprida? — Que calça, Beto? Nesse calor? A menina estava de saia. Onde você anda com a cabeça? *** Numa das conversas em que compartilhavam seus projetos para o futuro, Paulinho contou para a Flavinha como se via lá na frente (Flávia queria ser médica, só não sabia ainda se pediatra ou obstetra). Paulo tinha certeza absoluta do seu futuro, os planos estavam traçados. Primeiro ajudaria o Flores a ser campeão. E, como campeão, faria novamente teste no Fluminense. Tinha 13 anos, ainda era possível conseguir. *** Paulinho passou a entrar mais nos jogos, mas isso não queria dizer que estivesse jogando bem. Pelo menos corria, dava carrinho, brigava pela bola. Isso contava muito para Marcelo quando queria ganhar tempo e segurar um resultado. Gol, nem pensar. Já errara alguns depois do peixinho perfeito. Os colegas até evitavam passar a bola para ele em situações mais claras. Felipinho, camisa 10, achava que era um desperdício de ataque. Geralmente, pisava na bola e recomeçava as ações com outro alguém.
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*** O namoro com Flavinha ia bem. Muito bem mesmo. Paulinho estava conhecendo umas coisas que não sabia que existiam. Mas sabia que o futebol o ajudara a chegar lá e era grato ao esporte por isso. Flávia gostava de ver Paulo chegando do treino. Ele passava em sua casa sempre na volta. Era uma hora em que os pais dela ainda não tinham voltado do trabalho. *** Futebol tem dessas coisas e a Escola Anglo-Saxônica perdeu os dois últimos jogos da fase de classificação. Uma surpresa para todos. Eles eram bicampeões do Torneio Estudantil Municipal. Caíram para quarto e isso os colocou no caminho do Flores rumo à final. Colégio Carioca e Escola Estadual Governador Marcelo Alencar fariam a outra semifinal, uma semana antes. *** Na festa de aniversário da Ana Carina, Paulo disse para a Flávia que iria embora. — Mas já? — Amanhã preciso acordar cedo. — Para quê? Amanhã é sábado! — Vou ver Carioca e Marcelo Alencar. Preciso estudar
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nossos possíveis adversários. Paulinho estava irredutível. Pediu para o Alberto ir buscá-lo e no dia seguinte pegou o 158 de manhã cedo para a Central. De lá, entrou num trem do ramal de Deodoro rumo a Piedade. O Marcelo Alencar se classificou com tranquilos 3 a 0. *** O Flores não era um colégio sem tradição no Municipal. Pelo contrário. Tivera bons times ao longo dos anos. Mas não fazia boa campanha já havia alguns campeonatos. O último título fora conquistado nove anos antes. Levando em conta que a faixa etária do time ia até 14, ninguém ali sabia sequer escrever quando a glória foi alcançada. E todos estavam imbuídos da vontade de “entrar para a história do colégio”. O jogo estava marcado para sábado, 1º de novembro de 2008, às dez horas da manhã. A final seria dia 8. *** — É o seguinte. Vamulá. Vamulá porque ganhar essa parada vai ser sinistro, tá ligado? A gente tá em casa e tá cheio de mulher na arquibancada. É ganhar hoje e pegar geral depois. A gente chegou até aqui com fé e humildade. Vamo entrar lá, correr. Vamo ganhar, galera! — Paulinho tinha pedido a palavra na corrente. Mas começaria o jogo no banco.
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*** Mariana e Alberto estavam desde cedo na arquibancada. Foram a todos os jogos desde a estreia do filho contra o Imaculada. Mariana sempre esperando outro gol com coraçãozinho. Alberto sempre com uma cervejinha. Os moleques da Anglo-Saxônica eram grandes e os colegas de time do Paulinho sabiam que pra ganhar tinha que ser na bola e no tranco. Os adversários não eram violentos — o professor deles repudiava violência. Mas se valiam do tamanho nas disputas de bola. Jogavam pelas regras e lá não dizia que era proibido ser maior do que o oponente. O jogo, como se previra, começou pegado. Muita luta e pouco futebol. Divididas por todos os lados. Carrinhos, bolas fora de jogo pelas laterais. Felipe Borja (o Felipinho, é que ele achava que jogador de futebol que se preza tem que ter nome e sobrenome, não quis o apelido na camisa) não conseguia fazer o Flores andar (e essa era sua função, ele era o camisa 10). Mas quem devia organizar a Anglo-Saxônica também não o fazia, então o jogo era mais para pelada do que para semifinal entre bons times. No banco, o professor Marcelo mal sentava. Não se desesperava, mas orientava a todo momento seus meninos. Chamava a atenção, corrigia o posicionamento, incentivava. Paulinho também. Não orientava nem posicionava ninguém, mas gritava horrores. — Vamo! Vamo! Marca! Júlio César, nas suas costas. Nas suas coooostaaaas! O técnico da Anglo-Saxônica mal falava. E quando o fazia,
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era em inglês. Para evitar que os adversários entendessem suas orientações. Num dos raros momentos em que a marcação afrouxou, o Júlio César teve espaço para pensar um pouco mais e virou uma bola na esquerda para o Cristiano, camisa número 6. Ele avançou, tabelou com Felipe Borja e cruzou rasteiro para o meio. Fábio, o 9, esticou a perna, escorou a bola. Mas ela beliscou a trave e saiu. — Beleza, Fábio! — incentivou Paulinho. O lance assustou os visitantes, que trataram de se fechar. Mais do que já se fechavam. O que era ruim piorou e o jogo ficou horroroso. Quando o juiz apitou o fim do primeiro tempo, Alberto se sentiu até aliviado. Mas faltou coragem de comentar isso com Mariana. Teve medo de ser mal interpretado. No vestiário, os jogadores que estavam em campo foram recebidos com parabéns e palavrões a título de incentivo. Faltavam 45 minutos ainda. Professor Marcelo ia conversar com todo mundo sobre o primeiro tempo, analisar o desempenho do time e orientar a equipe sobre o que fazer na segunda etapa. Futebol não muda muito, seja ele estudantil, profissional, de masters ou pelada mesmo. Na cabeça de Paulinho, as palavras foram algo como: — Valeu, pessoal, isso aí. O jogo tá duro, bla bla bla. A bola bla bla bla, porque bla bla bla e bla bla bla o ponta deles. É isso, ele joga como ponta ali pela esquerda, bla bla, bla. Tem que ter disposição, tem que bla bla bla. Eles são fortes, bla bla bla. Por isso, bla bla bla, Paulo, você vai entrar. Só aí ele prestou realmente atenção. O Fábio tinha tomado
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um tostão (involuntário) no lance em que escorou a bola na trave e sentia agora um incômodo muscular. Isso só serviu para amadurecer a ideia que ocorrera a Marcelo lá pelos 30 minutos. Fábio era esperto, mas franzino. Felipe Borja também. Bom de bola, até relativamente alto, mas magrinho. Paulo era o garoto mais forte fisicamente de que o professor dispunha. E num jogo como aquele, isso podia contar a favor. Paulo começou a se alongar no vestiário. O titular, que era de uma série acima da dele, abraçou-o carinhosamente. Fábio era um dos garotos mais legais da escola. — Boa sorte, maluco. Na volta para o campo, Paulinho entrou por último, porque o juiz reserva precisava avisar ao árbitro sobre a substituição. (O Torneio Municipal tinha juízes, bandeiras, árbitros reservas. Todos iniciantes do quadro da Federação, que aproveitava o campeonato para treinar seus novatos. Isso dava ao Municipal status de competição séria.) Mariana deu saltos de alegria na arquibancada ao ver que o filho disputaria um jogo tão importante. Ela sabia o quanto ele levava aquilo tudo a sério. Alberto também estava orgulhoso. Quando foi autorizado a entrar em campo, Paulinho teve o cuidado de pisar primeiro com o pé direito. Da arquibancada, Alberto berrou. — Capricha, Paulinho! O filho deles deu dois socos com o punho cerrado no lado esquerdo do peito, em cima do escudo do Flores. Pensou em fazer um gol para mandar outro coraçãozinho daqueles. Dessa vez, para a Flavinha. Estava apaixonado.
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*** Flávia assistia ao jogo com as amigas, um pouco afastada de Alberto e Mariana. Quando viu que Paulinho ia entrar, sentiu ao mesmo tempo alegria por ele e orgulho por poder tirar onda com as outras garotas de que o seu namorado estava em campo na semifinal do campeonato. Gritou com uma voz aguda toda vida. — Chuchuuuuu, faz um gol pra miiiim! Te adoroooo! Paulinho se virou na direção dela e piscou o olho direito. E pensou que não conseguia fazer isso com o esquerdo, não entendia a razão. Flavinha sorriu agradecida. A covinha do queixo ficou ainda maior. *** Não houve muita diferença entre o fim do primeiro tempo e o começo do segundo. Jogo truncado, muito lateral, a bola ficava entre uma intermediária e outra. Num desses ataques em que o time adversário fica todo atrás, o Flores girou a bola para lá e para cá, de pé em pé. Mas não conseguia aprofundá-la, era difícil entrar na área. Quando ela parou no pé do Paulo, ele não pensou duas vezes. Ajeitou para a direita e mandou de longe mesmo. Muito forte, muito alta. Na arquibancada até houve quem gritasse “uuh!”, mas não levou nenhum perigo. Paulo levantou o braço em direção aos companheiros, pedindo desculpas pela tentativa frustrada.
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— Foi mal. Achei que dava pra meter. Aos 25 minutos a partida começou a tomar ares de tragédia. Paulinho cortou um ataque da Anglo-Saxônica e tocou para o Felipe Borja puxar o contra-ataque. Felipe devolveu e abriu para receber de volta. Paulo e Júlio César ficaram indecisos sobre quem deveria receber a bola recuada e a indecisão deu chance a um garoto da Anglo-Saxônica, o número 5, de tomar a bola e criar um contra-ataque sobre o contra-ataque. A defesa do Flores estava desmontada, a cobertura custou a chegar e isso deu tempo de ele avançar até a entrada da área. Pegou forte, de canhota, cruzado, no canto direito do goleiro. 1 a 0. *** Flavinha gritou “ai, não!”. Pôs as mãos na cabeça. Ela e todas as meninas ficaram atônitas. Ana Carina, Isabela, Patrícia, Carla, Raquel, Tatiana, Fernanda e Thamires. Todas namoravam jogadores (menos a Isabela, que não namorava ninguém porque preferia a solteirice) e um gol daqueles era uma facada no orgulho. Do campo, Paulinho ouviu o desabafo desesperado da Flávia. O que só o deixou mais torturado pela desatenção. *** O que se viu depois foi um time que tentava atacar de todas as formas contra outro que botou 11 atrás da linha do meio de campo.
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*** Foi Isabela quem levantou o ânimo das amigas e puxou o grito de incentivo. — Vamo virar, Florêêêês! As meninas acompanharam. Davam pequenos saltos enquanto gritavam. *** Mariana estava com o coração apertado com tudo o que via. O lance de indecisão deixou Paulo muito cabisbaixo. E não há nada pior para uma mãe do que ver o filho sofrer. — Ai, Beto, tadinho dele. — Calma, Mari. Acontece, é do jogo. — Nossa, Alberto! Será que você não vê que nosso bebê está triste?! — Mariana reagiu, já num misto de indignação e irritação. — Mariana, é só um jogo — Alberto repetiu, dessa vez com um maior espaçamento entre as sílabas. — Alberto, você está ouvindo o que está dizendo? Já está bêbado? As famílias em volta começavam a olhar de soslaio o princípio de entrevero, ficou um clima chato no ar. Até que uma mãe qualquer daquelas lá interveio com um berro: — Olha! Olha o ataque do Flores! Alberto e Mariana viraram os olhos para o campo a tempo de ver o Júlio César arrancando pela direita (ele sentiu muito menos o gol que o Paulinho). Alberto, que sempre assistia
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aos jogos analisando detalhadamente o aspecto tático, não entendeu como, numa partida tão amarrada, de repente surgiu aquele espação todo pelo canto. O Júlio César conduziu a bola desde a linha do meio de campo. Quando se aproximou da área, mais um zagueiro foi dar combate. Júlio então cortou para dentro e percebeu que Paulo abriu na ponta. Deu um tapa na redonda e abriu o jogo no fundo. Mas o zagueiro que estava na cobertura e que reinava na área percebeu a jogada e se antecipou. Tomou a frente e esperou que a bola saísse pela linha de fundo em tiro de meta. A jogada fora desmontada. Da arquibancada, Alberto, mais para ficar bem com Mariana que por convicção de que algo bom pudesse surgir dali, deu seu recado de torcedor. — Capricha, Paulinho! E Paulo não se deu por vencido. Inclinou o tronco para a esquerda. O zagueiro notou o movimento e girou o corpo para manter a bola protegida à sua frente, mas o atacante, com espantosa rapidez, deu a volta pela direita e tomou a pelota já quase na linha de fundo. Tocou-a mais para a frente de forma que pudesse progredir até a área e enquanto isso levantou a cabeça em busca de um companheiro bem colocado. O zagueiro, vencido pela ginga de Paulinho, continuou no seu encalço, impávido, determinado. Já na linha da grande área, os dois se embolaram e foram ao chão — o zagueiro querendo empurrar para escanteio e Paulo na tentativa de colocar o balão nos pés de alguém do Flores. A jogada foi confusa e a bola espirrou para trás. Sem pensar muito, Júlio César decidiu bater de primeira na direção do gol. O chute foi rasteiro e ainda desviou na perna de um
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defensor, o que mudou a trajetória da bola. Nessa hora, muitos chegaram a gritar gol. Mas o goleiro da Anglo-Saxônica, num reflexo espetacular, conseguiu fazer a defesa com o pé esquerdo e caiu de bunda no chão. O rebote caiu no pé do Felipe Borja, dentro da pequena área. Como percebeu que havia um beque desesperado se jogando à sua frente, Felipinho raciocinou rápido e soube que o mais seguro seria bater no alto. Ele pegou de primeira, embaixo da bola, e empatou o jogo. Eram jogados 38 minutos do segundo tempo. Foi uma catarse. Todo mundo gritou mais do que imaginava que gritaria. Professor Marcelo, inspetores, pais de jogadores, colegas de jogadores, pais de colegas de jogadores, namoradas dos alunos. A explosão pelo empate tomou conta de arquibancada e campo. O Flores estava vivo. Paulinho ganhou um beijo na testa do Júlio César por ter salvado uma jogada que parecia perdida. — Valeu, Paulinho, valeu. Tamo no jogo. — Vamo ganhar essa porra! Toda vez que algo dava certo para o Paulo, ele ficava valente. Júlio César achava tão engraçado que sempre ria. *** Da arquibancada, Flavinha elogiou. — Lindooooooo! Paulinho sabia que era com ele. Tentou piscar com o olho esquerdo e acabou fechando os dois ao mesmo tempo. Flávia suspirou.
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*** Mariana jamais se envolvera tanto com uma partida de futebol. Por um momento achou que tinha compreendido o que levava o Alberto a gostar tanto do jogo e, especialmente, o que fez o filho, desde tão menino, ser apaixonado por esse esporte. Ela se lembrou das vezes em que Paulo chorou por derrotas do Fluminense. Numa decisão de campeonato estadual em que o Vasco se sagrou campeão, ele não quis sequer comer. O que mais perturbava a cabeça dele era lembrar que o vascaíno Léo Lima tinha cruzado uma bola de letra no gol do título. Mariana não se conteve e chegou mesmo a ralhar com o filho, cobrando dele que parasse com aquela baboseira e se alimentasse direito. — Se você se preocupasse na escola tanto quanto se preocupa com futebol, suas notas seriam melhores. Muito melhores! E agora Mariana estava entregue àquele torpor tribal que se manifesta em torcedores quando eles vão aos estádios. Berrava “Flooooreeees!” a plenos pulmões, exortava o filho e seus companheiros a atacar. O futebol alcançou aquele ponto do cerebelo em que este começa a comandar as ações em função do que vê no campo e tudo o mais passa a esperar os 90 minutos se esgotarem. Mari puxou Beto pelo braço e desceu quatro degraus de arquibancada para ficar colada na grade. Queria ver de perto aquele final tão emocionante. E queria que todos ouvissem seus incentivos também. — Vamo, Beto! Grita! A gente vai ganhar! Floooreeees. A gente vai ganhar!!
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— Peraí, Mari, assim eu caio, calma! Calma, porra! Alberto nunca tinha visto Marina possessa daquela forma. *** A Anglo-Saxônica sentiu o gol e o Flores percebeu que nos últimos sete minutos (sem contar o acréscimos) ainda havia a chance de virar a partida e ir para a final. Com aquela testosterona que começava a embaralhar as cabeças púberes dos jogadores, todos se lançavam à bola com rispidez até. E depois reclamavam que o juiz marcava falta. Professor Marcelo pedia calma porque sabia que, daquela forma atabalhoada, o time poderia se desorganizar e isso às vezes custa caro. Mas ninguém ouvia. Era a hora da superação. Era a hora da raça. O campo do Flores virara um caldeirão. E a Anglo-Saxônica sentia o calor sair da grama e subir pelas suas panturrilhas. Aos 43 minutos, Paulo deu um carrinho certeiro na direita da sua intermediária de defesa e tomou a bola de um jogador da Anglo-Saxônica. Levantou ágil e virou o jogo para o Cristiano, do outro lado do campo. O pensamento rápido se mostrou a melhor decisão porque, a exemplo do que acontecera no primeiro gol do jogo, a defesa do time que perdeu a bola estava totalmente desprevenida. Cristiano matou no peito, botou no chão e tocou no meio para Felipe Borja, que já puxava o contra-ataque. Eram três contra três. Felipe conduzia a bola pelo meio com um marcador a cercá-lo. Cristiano abrira pela esquerda e o lateral estava na sua cola. Pela direita corria Paulo, também marcado. Felipe Borja mantinha a bola sempre perto do corpo
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para dar o mínimo de chance ao cabeça-de-área e, na primeira bobeada, driblou-o. Então a jogada clareou. Felipe se concentrou ao máximo para tomar a decisão correta e, muito importante, na hora certa. Esperou para ver quem viria na cobertura. Torcia para ser o lateral-direito, porque isso deixaria Cristiano sozinho e o Cris era muito habilidoso. Mas, para sua tristeza, quem veio para o combate foi o marcador de Paulinho. Tão logo percebeu que ficaria livre, Paulo se esgoelou. — Aqui! Na direita! Direitáááá! Felipe não queria dar sopa ao azar. Sabia que Paulinho teria dificuldades. Então, numa fração de segundo, julgou que o melhor a ser feito era segurar o máximo possível e deixar para tocar na última hora. Se seus cálculos estivessem corretos, pegaria o Paulo na passada certa e ele poderia emendar de primeira, na corrida, com força. Mais alguns centésimos e fez o toque. *** Quando percebeu onde receberia a bola, Paulinho tentou se concentrar para fazer a jogada certa. Já vacilara no primeiro gol da Anglo-Saxônica e não queria errar outra vez. Tinha que conseguir. Não tinha a certeza de quando fazer o quê, mas sabia que uma voz lhe diria. Sabia que na sua cabeça haveria um comando. *** A bola chegara.
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O silêncio que tomou as sinapses do Paulo foi pontualmente quebrado por alguns gritos que vinham, ao que parecia, da arquibancada. O que soou estranho foi que todos eles tinham eco. A Flavinha parecia berrar “aaah!”, mas ele não estava bem certo. Pensou que precisava parar de pensar naquilo. Tinha que se concentrar no jogo. O jogo, isso. A bola. O que eu preciso fazer? Porra, Paulo, agora, foco. Deixa comigo. Tá acabando, né? É fazer e matar o jogo. O jogo. A bola. Tá chegando. Bom, não tem marcação. O goleiro tá saindo? Acho que tá. Bolão, Felipinho, bolão! Ah, moleque. Vamo ganhar essa porra. Vou ganhar essa porra!! É nós na final, porra! A Flávia vai ficar orgulhosa! Minha mãe também. E meu pai! Porra, pai, também sei como se faz, né? *** Mariana, completamente descontrolada, exaurida pela tensão, cravou as unhas no braço de Alberto. O marido ficou tão assustado com aquela dor que lhe foi na carne que engasgou com o gole de cerveja. No lugar do “Capricha, Paulinho!” que estava pronto para gritar só conseguiu dizer “cof!”. *** Paulo não ouviu. O tempo tinha parado para ele. A solução estava ali, límpida, cristalina: pegar de primeira. A bola vinha em câmera lenta em sua direção, enquanto as imagens se sobrepunham: o vaso de comigo-ninguém-pode, o abra-
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ço no pai, a deslizada sobre a grama, os indicadores para o céu… Ele era capaz. Quando a bola chegou, Paulinho voltou ao mundo real. Matou a bola. O goleiro ganhou tempo, saiu aos seus pés e frustrou o chute. A bola ainda sobrou, Felipe Borja tentou um carrinho, mas o cabeça-de-área que ele driblara chegou antes e isolou pela lateral. Paulo se agachou na grama e enxugou algumas lágrimas. Felipinho nem olhou para ele. — Puta quiu pariu! O jogo terminou 1 a 1. Nos pênaltis deu Anglo-Saxônica 4, Flores 3. *** No fim, Paulinho foi dos poucos jogadores do Flores a não chorar. Flavinha o abraçou aos prantos, mas ele não emitiu som algum. Mudo, calado. Beirou a catatonia. Despediu-se da Flávia com um beijo mixuruca. Foi para casa olhando para o chão. Dessa vez almoçou, pelo menos. Mariana fez questão de preparar seu prato predileto: bife à milanesa, arroz, feijão e farofa. No lanche da noite, comeram uma pizza. Mas Paulo sequer disse obrigado. Só foi falar quando estava sozinho, já quase dormindo. Lembrou de Felipinho praguejando no lance perdido no finzinho. — Babaca. Flamenguista babaca. ***
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Na segunda-feira, Paulo chegou cedo ao Flores. Não encontrou ninguém do time, mas também não procurou. Só parou quando viu o professor Pedro Henrique, que dava aula de educação física para as meninas e era treinador de uma das equipes mais competitivas da escola. — Professor Pedro Henrique, bom dia. Como eu faço pra entrar pro time de vôlei?
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o q u e p enso q u ando p ensa m q u e esto u p r estando aten ç ã o Gustal
Ouvindo uma explicação detalhada de uma mulher sem atrativos “Acho que um dia eu vou ser preso por causa desta menina. Um dia eu vou enfiar a mão na cara dela e dizer ‘FALA LOGO, CARALHO’. E toda a máscara da minha civilidade vai cair. Na
verdade, este comportamento comedido de hoje só vai piorar minha situação depois que eu tiver plantado um tapa na fuça dessa imbecil. ‘Eu sempre achei ele esquisito, calminho demais, lembra?’, ‘e o jeito que ele olhava para a gente?’, ‘é, todo solícito, todo bem-humorado, estes são os mais malucos’. A minha normalidade pregressa só vai ressaltar a minha súbita alteração. Tenho de dar um jeito de reduzir ao mínimo a entrada na minha caixa craniana deste som irritantemente baixo, tênue, desta voz que parece nunca se cansar de se prolongar em dizer o que eu não quero saber. Talvez pensando em outra coisa enquanto ela fala… mas não é isso que estou fazendo? Não está funcionando. Ou está? Ela nem parece tão feia assim. Poderia ser um pouco melhor? Se arrumasse este cabelo, talvez. E usasse decote. Por que ela não tenta usar um decote? Se ela usasse decote, eu olharia para a fenda entre seus peitos, e isso me distrairia de sua chatice. Isso distrairia qualquer um de sua chatice. 91
Chatice vindo — olhe para baixo, concentre-se nos decote. Mas ela não usa decote. Isso só ressalta sua chatice. A chatice é uma mulher que fala muito e não usa decote. Não há um espaço para contemplar pintas, uma nesga de carne mais fofa, se perguntar em como seria uma gota de suor entrando naquela ravina formada por duas protuberâncias naquele corpo. Não há espaço para a imaginação. Só para absorver a chatice que sai da sua boca. Que, aliás, precisa ser consertada. Ou não? O que ela tem? É prognata? É bruxismo? Alguns dentes parecem se projetar para a frente. Lembra um pouco o monstro de Alien. O monstro de Alien seria uma metáfora, uma analogia da castração que uma mulher pode impor ao homem, apenas pela boca, isso é, falando sem parar? Para isso aqueles dentes afiados na boca? Seria o simbolismo da loquacidade feminina, voraz em devorar nossos corpos a partir das orelhas? Deve ser, afinal de contas, em um dos filmes, o alien vira mãe, não é isso? E cai numa disputa com a Sigourney Weaver, que adota uma criança em uma estação espacial atacada. Não era isso? Era, foi o primeiro filme de James Cameron a fazer sucesso. Ele agradeceu a Sigourney Weaver a colocando no elenco de Avatar. Filme chatíssimo. Talvez se eu tivesse visto em 3D gostaria mais. Mas me lembrou muito Iracema: o conquistador do novo mundo se apaixona pela índia etc. José de Alencar também é horroroso. Por que as escolas enfiam livros chatos na fuça dos alunos? Por que insistem em que consideremos um escritor digno de nota, só porque ele é chato, difícil de ler? Quem dá a alguém esta autoridade? Alguma mulher chata sem decote? Desde criança eu ouço
histórias de complôs criados para dominar o mundo. ‘Os maçons é quem têm o poder’, dizia tio Naldo. Coitado, foi abandonado pela tia Miúda e se matou. ‘Os judeus dominam o mundo’, dizia o primo Antenor. Coitado, virou militante de esquerda na faculdade, foi jubilado no curso de biblioteconomia e hoje vive esperando aquele cargo comissionado que nunca sai. ‘O PT domina a educação no Brasil hoje’, dizia o Otávio, para explicar por que não passou no concurso de auditor da Receita. E se o mundo for dominado por um complô de mulheres chatas sem decote? Elas se reuniriam em algum lugar? Um convento? Um templo wicca? Um terreiro de umbanda? No apartamento de uma delas, para trocar tupperwares? Enquanto isso combinariam como dominam o mundo? E como devem dominar? Ocupando postos-chave na administração das empresas e governos, mas sem chamar muita atenção, em funções como secretária e assistentes sêniores? ‘Hoje eu não avisei ao meu chefe que a amante dele ligou para deixa-lo irritado e ele não sancionar aquela lei’; ‘hoje eu falei tanto nos ouvidos do meu chefe que ele ficou entorpecido e assinou aquela ordem de compra absurda’. Ela continua falando. Será que vai reparar que eu não estou prestando atenção? E se descobrir, irá ficar magoada? Serei eu o último de uma longa linhagem de homens que não prestaram atenção nela, a começar pelo pai? Passando pelo priminho por quem ela foi apaixonada, pelo coleguinha de escola bonito que nunca a olhou? Seria este o motivo deste nhenhenhén na voz, parecendo uma criança de cinco anos, desta loquacidade inútil toda, deste cabelo fechando o rosto, da ausência de decote? Uma vida inteira de rejeições e des-
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caso de pessoas de quem ela esperava afeto? E ainda espera? Coitadinha. Será que não há um tesouro a ser descoberto aí? Uma personalidade rica, autêntica, cultivada em anos de solidão, como forma de passar o tempo em que ficou isolada e rejeitada? Talvez ela tenha mundos inexplorados nesta cabecinha, bastando apenas serem dilapidados como um diamante bruto enfiado no meio de uma terra árida e perdida no interior de Minas Gerais. Desejos, informações, sapiência. E eu serei aquele que revelarei isto ao mundo, apenas com um pouco de atenção, o único a ter notado o que ninguém mais deve a sensibilidade e a argúcia de notar. Transformar esta mondronguinha em uma mulher, eis um desafio que vale a pena. Estou sonhando de novo. Volte um pouco a fita. Quantas mulheres burras você já ajudou, apenas por serem mulheres? E quantas vezes elas te ultrapassaram, te deixaram para trás, não reconheceram, seguiram em frente, sem sequer notar que você as ajudou, ou se as ajudou? Por que esta ânsia de ser solícito com os outros? Por que se importar com os outros, em último caso, se ninguém se importa mais com ninguém? É este o código social vigente, imposto por uma nova geração de educadores, de programas de televisão, de colunas de autoajuda em revistas e jornais dominicais. Cada um por si. O falar sem fim desta figura tronchinha na minha frente apenas representa isso — ela não está se importando se eu tenho mais o que fazer, se tenho outro compromisso. É preciso cuidado com os burros. Os burros são mais perigosos do que os inteligentes. Porque os inteligentes são descuidados em sua inteligência, muitas vezes, apaixonados
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pela própria inteligência, viciados em raciocinar, em estudar, em saber, deixam de lado o mundo material, físico, dos ganhos e perdas concretas. Os burros não, estão prestando muita atenção no mundo material em volta, até porque não conseguem imaginar outro. Eles estão sempre atentos ao novo cargo, ao aumento de salário, às taxas de juros, às melhores oportunidades de adquirir uma casa própria, a quantas vezes você pode parcelar um crediário. Para eles, não há outro mundo. E assim, eis que eles são mais eficientes na luta pela vida, na disputa do dia-a-dia que define quem é bem-sucedido e quem fracassa — os burros são mais focados. E, para piorar, sabem que são burros. Assim, sabem que tem de prestar muita atenção em tudo o que fazem, têm que ter cuidado com o que dizem, como agem. Os inteligentes não; sempre arrogantes, saem por aí agressivos, intimidantes, assustadores, em tudo o que falem e dizem, mesmo sem ter tal intenção. Mas este é o efeito que causam nos burros, porque os burros têm medo de tudo que não entendem, e eles não entendem muita coisa. Mas uma coisa eles entendem: de se valer da piedade e da generosidade dos mais inteligentes, que acham que nenhum dano sofrerão se pararem por alguns minutos suas máquinas de genialidade para dar uma carona à burrice alheia. O que é um erro. É com esta carona que os burros tomam o volante. De onde veio este ímpeto de proteger, de guardar, de ajudar? É algo ligado aos genes masculinos? Somos mais altruístas, naturalmente, como uma forma de protegermos as mães e os bebês quando eles nascem? Foi um mecanismo evolucionário? Ou é um subproduto insano da nossa sensação de
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superioridade, dada pelo fato de conseguirmos mijar de pé? O pênis, apenas em sua própria existência, dá ao homem uma ilusória sensação de superioridade? Esta mesma ilusão poderia ser criada pela grande bunda ou peitos bonitos em uma mulher? Não dá para testar esta teoria agora, ouvindo essa mulher sem decote.”
Com um conquistador barato relatando sua última façanha amorosa “Ele é chato. Mas come muita mulher. Porque é chato. Será que eu sou invejoso por isso? Isso me torna também chato? Para comermos muita mulher temos de ser irremediavelmente chatos e falastrões, vide Queda que as mulheres têm pelos tolos, de Machado de Assis? É mais nobre manter uma postura digna e contida suportando os ‘nãos’ e ‘você é só meu amiguinho’ com que nos alvejam as bucetas enfurecidas, ou, lutando contra um mar de rejeições, tomar de uma máscara de mentiras, arrogância e estupidez manipulável, e, por oposição, comê-las? Eu não devia estar copiando Shakespeare. Devia estar variando minhas leituras para copiar outras citações. Aliás, será que alguém entende quando eu faço citações de Shakespeare? Ou só funcionava com o cara do C.S.I? Por que ele saiu da série, por falar nisso? E entrou no lugar dele o negão que fez Otelo no cinema. Isso quer dizer algo? Meu Deus, ele não para de falar. Será que era assim que ele conquista as mulheres? Se joga para elas com um zumbido enlouquecedor até paralisá-las e bombardeá-las, como os bombardei-
ros Stukas faziam com a cavalaria polonesa em 1939? Eu não devia estar pensando nisso, nas táticas bem-sucedidas de conquista de um idiota. Afinal de contas, estou aqui ao lado da minha amada namorada… que neste momento está conversando animadamente com o resto da mesa, de pilequinho, pouco se importando para o fato de que eu estou aos poucos adquirindo uma doença respiratória de tanto prender o ar para conseguir me manter tentando ouvir essa história chata. Sem contar com as rugas e sulcos que minha cara está produzindo apenas pelo gesto inútil de ser educado com alguém tão chato que o resto da mesa ignora. Todos já estão falando de outra coisa e me deixaram aqui montando guarda. Reparei que o garçom serviu a última rodada de chope sem perguntar se eu queria — ele terá notado o pesadelo em que me meti e estará com medo de ser tragado também pelo relato interminável deste idiota? Volta, garçom, você pelo menos tem de olhar para mim, você é pago para isso! Volta, tenho sede. Tenho sede. Tenho fome. Tenho sede de uma conversa que me interesse. Tenho fome de alguém inteligente com quem dialogar. E me deixam preso aqui, montando guarda, com o dedo enfiado no orifício do dique de chatice, que pode se romper a qualquer instante, a não ser que eu permaneça de guarda. ALÔÔÔ? ALGUÉM AQUI ESTÁ ME VENDO? ALGUÉM PERCEBE O MEU SACRIFÍCIO INDIVIDUAL PELO GRUPÔÔ? Al-
guém percebe que enquanto dou cobertura a esse bombardeio de chatice, todos se refastelam em conversas mais animadas, incluindo minha namorada? PAIXÃO DA MINHA VIDA, se existe uma hora de dar uma prova de amor, é esta, se mais
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tarde você não resistir ao charme do porteiro quando eu estiver viajando, eu perdoo. Mas ME TIRE DAQUI, por favor. PERCEBA como eu estou sofrendo.
Taí: em quantas e quantas mesas, por pura educação, eu acabei suportando os chatos enquanto o resto das pessoas se divertia às minhas costas? Esse esforço foi recompensado mais tarde? Ou, enquanto eu tentava segurar as pontas da solteirona cachaceira, a gostosa vistosa do outro lado da mesa olhou para mim? Claro que não. Ela ficou com o chato. Que não parava de falar no ouvido dela, pouco notando o meu drama, é claro. Bando de ingratos. Eu pensei que já havia dito para ele que não gosto de ouvir estas coisas. Então por que ele insiste? Por que eu não gosto? Ele insiste porque sabe que eu não gosto, e é uma maneira de testar meus limites? Uma forma sádica de se vangloriar de alguma buceta que jamais comerei? Com que intuito ele faria isso? As relações sociais são no fundo extremamente sádicas. Quanto mais legais e francas parecem, mais sadismo envolvem. A intimidade abre a porta para que pessoas distantes e diferentes em seus valores possam ser sádicas com você, crueis, mentirosas, e você nem possa reagir. Uma vez franqueada a nossa intimidade, é de crer que fazemos isso a quem conhecemos bem, que saibamos escolher nossos amigos — reagir contra a agressividade de um próximo seria no fundo declarar aos outros que não somos tão perspicazes assim ao formarmos nosso círculo de amizades. E para não passarmos a mensagem de que somos burros ou podemos ser manipulados por pessoas mais maliciosas e dispostas a exercitar sua crueldade sem qualquer tipo de remorso, nos
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permitimos ser manipulados por pessoas mais maliciosas e dispostas sua crueldade sem qualquer tipo de remorso. Assim, como fazer para se afastar de quem pode lhe incomodar tanto sendo apenas o que é? Acho que apenas se afastando, e pronto. Sem dar explicações. Dar explicações, arrumar desculpas, para o caso de o afastamento vir a ser cobrado, é outra convenção social que acaba nos prendendo a pessoas com quem não queremos mais partilhar nossa vida. Ele continua falando, com um sorriso pretensamente safadinho nos lábios, sobre a sua conquista. Por que eu quereria saber isso? O que ele quer? Se não é apenas uma exibição de sadismo, é uma tentativa de se afirmar? Por quê? E por que comigo? Ele tem inveja de mim por algum motivo? Ou é atração homossexual escondida? E por que isso me incomoda tanto, aliás? Eu tenho inveja dele? Tenho inveja dele por causa desta conquista? Esta mulher de quem ele falou, até cinco minutos atrás, não existia para mim. Mas bastou ele falar de como a conquistou, como passou uma noite com ela, de como a ludibriou, bastou imitar a sua voz fina em duas ou três frases que ela disse demonstrando o que parece ser sua inocência diante das mentiras do meu amigo, que eu já lamento não ter cometido esta façanha. O invejoso então sou eu? Ou eu serei o homossexual? Uma mulher só se torna desejável se outro a deseja? Então eu não a desejo, eu desejo o desejo do outro? René Girard tinha razão? Se ele tinha razão, então a revelação, o fim dos tempos, está vindo por aí?”
Assistindo a uma palestra num fórum de economia “Todo ano eles estão aqui. Há pelo menos vinte anos. Todos sabem exatamente o que cada um vai falar. Eles vivem lendo os artigos de uns dos outros. E não são exatamente surpreendentes. Aquele velhote de blazer e camisa meio amarfanhada que era keynesiano em 1990 continua ferrenhamente keynesiano em 2011. Não há motivo para mudança. Não se trata de fazer pesquisas e testar suas ideias sobre economia no mundo real. A questão é: que time é teu no Rio? Keynes? Milton Friedman? Keynes seria Flamengo e Corinthians, e Milton Friedman, São Paulo e Fluminense. Mas ele seria menos do que Fluminense. Seria algum time para o qual os torcedores teriam vergonha de torcer, embora ganhem muitos prêmios — dinheiro — com ele. Mas é embaraçoso admitir que as pessoas gostam de ganhar e gastar dinheiro, e de ganhar dinheiro com estes impulsos humanos operando no mercado de capitais. Aqui, ao menos. Isso faria mais sucesso numa boate no Leblon, com um bando de mulheres de cabelo alisado, sapatos com saltinho e blusas com alcinhas deixando o sutiã aparecer, dançando música eletrônica repetitiva em volta de você. Taí, por que não me mandam assistir uma noitada de operadores do mercado financeiro jovens no Leblon, em vez de um seminário cheio de velhos caquéticos que não mudam o discurso desde o primeiro período da faculdade de economia? Não só eu sairia de lá com as ideias reais que movem o nosso mundo, eu veria gente mais bonita. Aqui, eu
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só consigo me distrair tentando identificar os sintomas de cada doença que irá fulminar cada uma destas carcaças velhas nestes ternos azuis e sapatos lustrados. Aquele gordo vai ser levado pelo coração; mal consegue virar a cabeça sem suar e bufar. O que está tremendo as pernas está impaciente ou é o Parkinson? Será que todos repetem todo ano mais ou menos as mesmas ideias porque são vítimas de uma Alzheimer coletiva? Seminários de discussão sobre economia são um fator social que dispara o Alzheimer dentro de nós? Será que eu também serei vítima deste fenômeno? Ou já sou? O que eu pensei no seminário passado? Consigo me lembrar do que já disseram? Não consigo pensar em uma ideia que tenha saído destes seminários que tenha se transformado em uma medida prática que tenha melhorado a vida de qualquer um. Isto é efeito do Alzheimer ou é porque não existe esta ideia mesmo? Chegou o momento da ironia. Da piada para temperar o speech. Dá para sentir. Lá vem, lá vem… passou. Ele solta o dito espirituoso. Todos riem e sacodem a parte superior do tronco, para confirmar que acharam realmente engraçado a improvisação irônica no meio da palestra sobre exportação de manufaturados. Funciona sempre, graças a uma série de sinais prévios dados pelo palestrante aos ouvintes, para alertá-los de que daqui a pouco eles terão de bufar risadinhas. Sinais aos quais eles respondem com a presteza de um cachorro do Pavlov. Geralmente o primeiro é a menção de alguém que não tem nada a ver com o assunto, mas cujo nome esteja em voga, como forma de demonstrar que o palestrante não é só um catador de notas de pés de página de
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livros impenetráveis de economia e sociologia. ‘Como diz aquela música’, ‘É como no seriado…’, ‘Já dizia aquele samba…’ — comece por aí e em seguida forre com carne e sangue vibrantes de uma ironia qualquer um esqueleto seco e branco de um discurso árido sobre algum assunto sem graça, cuidadosamente escolhido para não incomodar ou contrariar nenhum dos caquéticos reunidos na sala. Também funciona no sentido inverso: citar frase de historiador da Roma Antiga, piada atribuída a filósofo pré-socrático, dito atribuído a Napoleão. Fazer a citação em latim causa um efeito melhor ainda. A tradução exata da frase nem importa. O que importa é o sentido subjacente ao momento todo, àquele pedaço deste ritual de magia com os velhos feiticeiros de terno, que é, no fim das contas, o que é isso aqui: ‘só digo isso para vocês para ressaltar o caráter exclusivo dos nossos conhecimentos, diferenciar o nosso clubinho do restante do povão, e ainda deixar em suas cabeças a desconfiança de que eu sou mais sabido porque falei uma obviedade numa língua morta que talvez vocês não soubessem que havia sido escrita’”.
Ouvindo uma piada “Por que as pessoas ainda contam piadas? Como forma de socialização? Por que eu vou me aproximar mais de alguém porque ele sabe como ofender portugueses ou viados? Por que isso mostra que ele é uma pessoa que tem humor, esperteza é um pouco safadinho, e, portanto, é como nós, ‘os
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machos’, caso a piada envolva algum comentário derrisório sobre bicha ou mulher? Mas quem disse que eu acho graça disso? Quem disse que o humor tem de vir de uma ficção ligeira que envolva um recurso fantástico, uma impossibilidade na vida real, como um guarda-chuva aberto no cu de alguém, um papagaio capaz de raciocínio abstrato, um corcunda com um pênis de tamanho descomunal? Quem disse, aliás, que o humor tem de ser engraçado? Há situações que eu acho extremamente engraçadas mesmo não havendo um pingo de humor nelas. Um relatório pode ser engraçado. ‘Comunicamos que a destinação dos recursos conforme acertado na reunião de avaliação será submetido a um checklist’. Isso é muito engraçado, se você for levar em conta que se usou uma linguagem pomposa para avisar que a forma como o dinheiro será gasto vai ser vigiada. Um aviso que deveria ser desnecessário, se confiássemos na sanidade ou honestidade de quem irá gastá-lo. Se não confiamos, por que perder tempo com este aviso? E se não confiamos, quem botou a mão de um provável lunático ou hipotético ladrão no saco de dinheiro? Por que esta pessoa ainda está empregada? Na verdade, este pretenso piadista está me fazendo perder meu tempo ouvindo um relato fictício e absurdo cujo objetivo é me fazer rir porque ele encerra alguma conclusão que rebaixe alguma minoria, ou no fundo seja uma reprovação moralista contra o fato óbvio de que mulheres gostam de sexo tanto ou mais que os homens. Minha vida parou, e eu tenho de me submeter a este ritual ilógico, para dar a ele a chance de conquistar minha admiração e proximida-
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de. Como se isso fosse algo importante para ele se enturmar com o resto do grupo, sugerindo que eu me sinta parte de algum grupo — isso também é engraçado. É isso aê! Somos machos! Somos iguais! Somos muito grossos! Muito decididos! Mulher é tudo puta! Viado é tudo bicha (não quer dizer nada, mas é o possível de ser enunciado na confraternização machal)! Tocaquêmermão! Agora vamos coçar o saco, cuspir no chão e peidar juntos! Uma hora eu teria de enfrentar este momento. Estou há uma semana rindo com o canto da boca das pequenas brincadeiras e tiradas que ele faz sobre futebol, ironizando os times rivais daquele para quem torce. Ele deve ter achado que eu sou um grande fã de futebol, e mais ainda, um grande fã de criticar, ironizar, sacanear torcedores do time rival. Mas apenas o fato de um dos dois cantos da minha boca fazer uma pequena curva em direção à bochecha o autoriza a pensar que me deleito com a frustração das paixões alheias e a confirmação das minhas paixões? E as paixões dirigidas a algo sobre o que não tenho o menor controle? Por que eu deixaria que uma disputa pela posse de uma bola entre 22 sujeitos que eu não conheço e que jamais saberão da minha existência domine meu ânimo, minhas esperanças, meus desejos? Por que eu deixaria de empregar o furor que emprego olhando as coxas das moças no metrô ou a marca da calcinha na saia apertada da recepcionista para me importar mais com homens de perna de fora? Paixão pelo futebol é homossexualismo enrustido? Por que os comentaristas de futebol que eu vejo na televisão parecem todos tão fora de forma? Para você ter alguma opinião sobre um sujeito obri-
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gado a correr como um cavalo durante 90 minutos, duas vezes por semana, o requisito mínimo não deveria ser não parecer uma baleia, cujo único esforço parece o de ser criar duzentas maneiras diferentes de falar ‘o time ganhou porque fez mais gol’ ou ‘fulano é um bom jogador’”?
— … Tô falando demais? Você parece disperso. — De forma alguma, pode continuar.
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O so m q u e as g ai v otas f a z e m André Tartarini
Uma multidão sem rosto passava apressada por mim, com destinos baseados em escolhas e ligados a escolhas de outrora. Todos tinham um lugar para onde ir, e estavam mais felizes em suas algemas invisíveis do que estariam se confrontados com a liberdade. Edward Bunker, Nem os mais ferozes.
1. Eu não precisava de um décimo do tempo que levei para arrumar a bolsa no bagageiro sobre a poltrona. Demorei porque era impossível ficar apenas sentado, esperando o ônibus entrar em movimento. Queria ganhar a estrada imediatamente, mas também queria que a vida se resumisse ao instante de antes da viagem. Sentei na poltrona da janela e dei um gole comedido na Fanta. Por que um gole comedido? Abri de novo a garrafa e dei um gole demorado, intenso, ouvi os músculos da garganta trabalhando, quase engasguei, e senti a Fanta atravessar o esôfago, volumosa, meio azeda, refrescante. Ah, os prazeres do excesso… Não mais coisas aos poucos. Não mais aquela mediocridade ponderada. Na poltrona da frente, duas garotas, não deviam ter mais de vinte, sentaram risonhas e, pelo sotaque, vi que não estavam
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indo, como eu. Estavam voltando. Talvez fosse o fim de uma temporada de férias no Rio, e elas regressariam a suas vidas, trabalho de dia, faculdade à noite, reencontrariam os namorados que estariam no último período de engenharia, direito, medicina, casariam dali a alguns anos e tudo ficaria bem. Agora eu encontrava a resposta para o desconforto que sentia quando me deparava com pessoas como aquelas. Acho que sempre soube, mas finalmente pude enfrentar essas ideias sem a necessidade de pensar rápido em outra coisa. Era desconfortável não ter casos para contar de um passado bem vivido, talvez uma viagem com meus pais a uma estação de esqui em Aspen, ou uma praia no Nordeste, coisas assim. Não que eu achasse que ter histórias de viagens caras para contar, ou quadros na parede, por exemplo, fosse fundamental. Mas são símbolos de uma vida livre de preocupações banais, como preço do feijão, conta de luz, iptu. Não pense que não me torturei, tentando me convencer de que o que eu devia era estudar, fazer um concurso público, garantir um salário, trabalhar, comprar um apartamento, casar, ter filhos e continuar economizando. Garantir uma sobrevivência direita, e isso não é menos digno. Não se trata de ser mais ou menos digno. Eu precisava não me sentir inferiorizado por conhecer menos lugares, menos livros, menos segredos do mundo. Talvez só se tratasse de mudar minha maneira de encarar os fatos, não me sentir pior por ter menos, ou por ser menos, como eu julgava ser. Ou de adquirir conhecimento. Ler, ver filmes, aprender palavras difíceis, ir a museus. Mas ali no ônibus, pela primeira vez, me aproximei das garotas sem me sentir por baixo. E isso aconteceu porque agora eu
tinha dinheiro. Não precisei, portanto, mudar a maneira de encarar o mundo. Nem ler, ir a museus ou aprender palavras difíceis. Eu só precisava de dinheiro. Não lembro do assunto de que me vali para fazer contato. Talvez tenha perguntado a que horas o ônibus chegaria, e engrenamos uma conversa despretensiosa. Era a intenção. Procurava um meio de dissipar a ansiedade e a vontade de fazer alguma coisa que eu não sabia o que era. Mesmo assim, a conversa foi morrendo, não sei se por causa do meu visível nervosismo depois que o ônibus começou a andar, ou se pela falta de assunto mesmo, e não tive outro remédio a não ser me contentar com a paisagem e meus pensamentos não tão agradáveis quanto os sorrisos delas. Dei outro gole grande na Fanta, e a sensação de que alguma coisa estava mais fresca dentro de mim transcendeu o mero efeito de engolir o refrigerante. O som das gaivotas reapareceu em algum lugar da memória. Talvez liberdade fosse como se a sua alma estivesse bebendo uma Fanta espiritual. De todo modo, isso não deve fazer o menor sentido. Parecia não existir sentimento que se encaixasse. Eu não sentia nada. E sentia isso intensamente. Tinha passado a noite em claro, esperando a hora de ir à rodoviária, e imaginei que quando estivesse no ônibus, dormiria imediatamente. Mas continuei acordado, olhando a paisagem veloz pela janela. Buscava algo que me distraísse e afastasse os pensamentos das coisas em que eu não queria pensar. Tentei organizar as ideias, olhar para os fatos que me levaram até aquele ponto como se pudessem ser expostos lado a lado, arrumados como fichas em ordem. Foi confuso,
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mas engraçado, pensar em mim aos sete anos, começando a planejar um golpe que daria tanto tempo depois, e na época eu nem tinha ideia de que era exatamente isso que estava fazendo.
2. Toda semana, os moleques da rua escreviam os nomes em pedaços de papel e sorteavam dois. Tinha um terreno baldio onde os sorteados se atracavam até que ficasse claro que um tinha vencido o outro. Gostava de ver os amigos se estapeando, mas nunca entendi por que aquilo. Desde que eu não fosse sorteado, tudo bem. E demorou bastante até que meu nome saísse para uma luta. O Luizinho era o menor do grupo, magrinho, o pai era pobre, a gente tinha pena dele. Eu não tinha nada contra o Luizinho, não podia simplesmente meter a porrada nele, sem motivo. Além do mais, seria covardia. Tentei dizer isso, mas meus amigos não queriam saber, nossos nomes já estavam presos com durex no poste do terreno baldio. Começaram a me chamar de bicha, e eu ainda nem tinha explicado direito. Quando os argumentos se esgotaram, tentei ir embora, mas eles me seguraram. Alguém disse: Mete a porrada nele. O Luizinho tinha me ouvido dizer que era covardia, e ele sabia que não teria chance se eu me dispusesse a entrar numa. Mas quando os garotos me seguraram e mandaram que ele me batesse, o que eu dissera segundos antes se tornou irrelevante. Ele começou a socar minha barriga. No
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meio dos socos, se aproximou do meu ouvido e falou baixinho, desculpa, mas continuou batendo. Se estava fazendo aquilo só para os outros verem, podia pelo menos ter batido mais fraco. Quando terminou, eles me deixaram deitado lá, sem conseguir respirar direito. Passei a explorar outros cantos do bairro, porque depois daquele dia, quando encontrava os garotos, eles ameaçavam me cobrir de porrada de novo, e conheci o Gotinha, que não tinha outros amigos e morava a uns três quarteirões da minha rua. Um dia eu encho o saco, compro uma casa longe daqui e sumo. Comprar casa com que dinheiro? Arrumo um revólver e assalto uma velha. Meu novo amigo dizia essas coisas tão naturalmente que parecia mesmo capaz de fazê-las. Escolhe o mais fraco. Sempre tem um menor. Esse aí que te bateu, esse é bom. O menorzinho, né? Vai nele. Mas não pode ficar com pena. Pensa em alguma coisa que te deixa com muita raiva, muita raiva, cara, pensa em alguma coisa horrível, a pior coisa que já fizeram contigo. Aí você bate sem pena. Sem pena, entendeu? Deixa para ficar com pena depois. Vai na covardia, chuta o saco, como se fosse a última coisa da tua vida. Se ele cair, chuta a cara. Vai que nem bicho. Mesmo com todo mundo em volta, eles não vão fazer nada. Da minha janela, dava para ver o alto da ladeira, e os garotos descendo. Esperei o momento em que eles passariam em frente à porta e saí. O mais velho me chamou de bundão. Os outros riram, inclusive o Luizinho. Naquela hora, tive
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mesmo raiva do Luizinho. Subiu tudo junto: a raiva de morar com uma tia alcoólatra, viciada em remédio, fumadora de maconha, a raiva de não saber quem eram meus pais, que nunca me procuravam, minha tia desconversando quando eu perguntava, acendendo um cigarro, tomando uma pílula e virando aquele uísque fedorento, os caras que às vezes dormiam com ela, minha incapacidade de reclamar, minha vida estagnada, as coisas que eu queria que acontecessem comigo e só aconteciam com os outros, nunca eu, sempre os outros, e veio a certeza de que não adiantaria tentar mudar os fatos, tudo já estava consumado e mesmo que eu tentasse, não conseguiria alterar nada. Isso me deu uma gana esquisita e parecia que o Luizinho era o obstáculo que travava tudo. Parti para cima dele. Os outros chegaram a abrir caminho. Mordi a orelha do Luizinho com toda a força e tirei um pedaço. Os garotos me olhavam boquiabertos, enquanto eu cuspia o pedaço vermelho da orelha no chão e saía correndo. Contei para o Gotinha e ele riu. Até isso a gente tinha em comum. Ele também era criado por uma tia. Dizia que os pais viajavam muito, para justificar, mas eu sabia que era mentira, porque tinha a mesma vergonha. E ele parecia perceber isso. Mas a gente se respeitava, como se conviver com a mentira dele fosse uma condição para que se convivesse com a minha mentira, e vice-versa. E logo no início da nossa amizade, ele, sem saber, me entregou um ingresso para o mundo da tia dele, uma coroa clássica, estilo antigamente, rica, cheia de brincos dourados, colares grossos, dessas que falam “restorante”. Já a minha tia só se segurava com a mesada que meu pai mandava de algum lugar do Norte, por
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imposição da lei. Vivia bêbada, deprimida, com bafo de cigarro, a casa sempre suja, desarrumada. As contas atrasadas. O Gotinha engatava um assunto em outro, respirava rápido e continuava, repetia as palavras, sorriso frouxo, pinta de maluco, fala rápida. Achei que fosse uma mentira aleatória, mas ele insistiu que não. A tia dele achava mesmo que algum dia Jesus Cristo disfarçado tocaria a campainha pedindo comida. Uns cinco ou seis mendigos tinham dado a sorte de pedir uma quentinha, e voltavam sempre. A empregada vinha de cara amarrada, não gostava da obrigação de servir almoço para mendigo, sentia-se humilhada. Ele ria e insistia: É verdade. A minha tia é maluca, cara. Aquela casa. Um dia eu sumo.
3. Eu dormia quando ele sentou na poltrona ao meu lado, e só acordei com o ônibus já em movimento, ele lendo o meu livro e comentando rindo que aquilo era muito chato e, apesar dos mais de dez anos que eu não o via, reconheci na hora as marcas que salpicavam o pescoço e o ombro, duas ou três na bochecha, pequenas cicatrizes circulares, queloides espalhados pela pele. A fala desesperada era a mesma, mas a pinta de maluco era incrivelmente maior. Não me reconheceu. As catarinenses olhavam para trás, curiosas, e ele fez um gesto de cabeça, como que apontando para as duas discretamente, e riu, talvez sugerindo que puxássemos assunto com elas. Eu tinha dormido por umas quatro horas, mas a surpresa de encontrar o Gotinha ao meu lado me despertou, ainda que
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pudesse parecer que eu permanecia sonolento. Tentei não mostrar espanto, mas ele não perceberia mudanças sutis na minha expressão. Perguntou por que eu estava lendo aquele livro, e eu disse que tinha comprado em um sebo, me pareceu bom para ler naquela viagem, era a história de um cara que sai da prisão e tenta se adaptar à vida em liberdade, mas ele já não prestava atenção, me cutucando e apontando com o queixo para as meninas, perguntando o que eu estava indo fazer em Florianópolis. Passeio. Fui lá uma vez com um amigo, e foi uma viagem boa, mas ele já olhava para outra coisa. Mal sabia que o amigo em questão era ele mesmo. Perguntei o que ele estava indo fazer lá. Vender umas coisas, coisas minhas, não posso falar porque é assunto particular, veja bem, eu nem te conheço, se te conhecesse eu falava, cara, quem sabe você me ajuda a vender as minhas coisas, já que você está viajando de férias, sei lá, você está de férias? Não importa, mas olha, nem sei teu nome, cara, pode ser que a gente se encontre. A gente pode se encontrar, sair junto, chamar umas gatas — e apontava outra vez com o queixo para as meninas na frente —, aí a gente vende as minhas coisas, tem uns caras lá, gente boa os caras, tudo família, mas eu nem sei teu nome, o meu é Guilherme, prazer, Guilherme. Pegou a minha Fanta, abriu, bebeu um gole, fechou. Depois perguntou: Essa Fanta é tua? É. Deu outro gole. Posso beber um pouco? Pode, pode. Abriu a garrafa pela terceira vez e acabou com ela. Fechou, guardou no mesmo lugar e perguntou:
Qual o teu? O meu o quê? Teu nome, cara. O meu é Guilherme. Prazer, Guilherme. E o teu? Arnaldo. Prazer. Você é limpeza. Mas depois eu te conto o que vou fazer em Floripa. É que eu tenho um filho que mora lá, ele parece comigo, tem até esse nariz grandão que eu tenho, há, há, o moleque é demais, mas eu não tenho mais nada com a mãe dele, Alberto, quer dizer, Arnaldo, desculpa, cara, eu esqueço o nome das pessoas, esqueço até o meu às vezes, há, há, só não esqueço mesmo é o nome do meu filho, ele me chama de Guilherme, não me chama de pai não, fala que a gente é mais amigo que pai e filho, é ele que fala isso, eu adoro aquele sacana, o moleque é demais, você ia gostar dele. Ele não notou. Meu nome não é Arnaldo.
4. Eu não era virgem, mas estava longe de ser experiente. Entretanto, por mais absurdo que possa parecer, foi justamente com a Rute a primeira vez que eu estava cem por cento confiante na cama, e isso fez com que me sentisse mais homem que garoto, apesar de ela ser significativamente mais velha. Sua maneira de se deixar levar me pareceu mais inexperiência que simples submissão. Ela vivia sozinha fazia tempo, eu sabia. Eu era parte da vida de rua do sobrinho, uma vida da qual ela preferia não tomar conhecimento. O Gota estava sempre
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na rua, só voltava para casa para dormir, e a relação com a tia não se abalava, desde que um não interferisse nos limites do outro. Eu aprendera com ele os detalhes da casa ao longo dos anos, ouvia e fingia que não estava ligando, enquanto a Rute nem fazia ideia da minha existência. Foi fácil, portanto, dar a impressão de que talvez eu fosse mesmo Jesus Cristo disfarçado tocando a campainha. O sobrinho já tinha se mandado, como vivia prometendo na infância. Se ele ainda vivesse lá, acho que eu não teria feito nada daquilo. Bem, não sei. Talvez ele achasse até divertido dividir os lucros do golpe que eu começava a executar quando toquei a campainha. A Rute tinha uns sessenta anos. Eu, uns vinte. E não demorou para que eu passasse de “possível reencarnação de Jesus Cristo na forma de desconhecido que bate à porta” a “rapaz sensível que a leva para a cama, mas, ainda assim, realmente uma provável reencarnação de Jesus Cristo”. Eu conduzia o teatro com facilidade. Não há pessoa mais fácil para se enganar do que aquela que quer ser enganada. A ideia, que me acompanhava desde pequeno, de que nada se modificaria e tudo já estava consumado na minha vida, e mesmo que eu tentasse mudar isso, nada aconteceria, essa ideia já não estava mais tão clara na minha cabeça. A presença da Rute sugeria que eu poderia interferir no que estava programado para mim. Ou, talvez, invadir a vida dela fosse parte do meu destino desde sempre. De qualquer maneira, essa hipótese já era uma mudança. Tinha certeza de que não escaparia de uma existência igual à da minha tia. Pensava nela, deprimida, virando um uísque atrás do outro, se entupindo de tranquilizante, fumando como uma chaminé, a televisão ligada
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madrugada adentro e ela dormindo com a boca escancarada às seis da manhã em frente aos traços verticais da tela, o aparelho apitando um som contínuo insuportável. Eu ia do meu quarto minúsculo à sala para desligar aquele barulho e a encontrava com os olhos não completamente fechados, o cigarro às vezes aceso entre os dedos, buracos queimados no braço do sofá e um vidro de tranquilizantes aberto. Talvez eu devesse ter feito um curso preparatório e me enfiado em uma carreira militar para escapar. Mas eu buscava um futuro mais livre. E a possibilidade de invadir o mundo da Rute sempre fora a opção número um, desde o dia em que, ainda pirralho, o Gotinha deixou o caminho das pedras escapar da sua boca como se fosse um comentário banal. Quando terminamos, ela não deixou que eu me afastasse e me abraçou com uma força desproporcional. Perguntou por que eu não ia morar lá. Essa casa é tão grande, meu amor. Eu fico tão sozinha. Sinto tanta falta de um homem por perto… Ela me chamava de meu amor e achava que eu, que aparecera meses atrás, aos vinte e poucos anos, poderia ser o homem da casa. Desesperada. Desesperadíssima. Pedindo para ser enganada. Batedores em motocicletas oficiais iam pela avenida à frente da limusine de onde eu acenava para a multidão, que gritava meu nome e agitava bandeirinhas com a minha cara estampada. Era como eu me sentia, invadindo facilmente a vida da Rute.
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5. O exercício de imaginar a vida em fichas, de certa maneira, serviu como companhia, ou distração, ou não sei que papel desempenhou na minha cabeça depois que vi a imagem do Gotinha de repente ao meu lado no ônibus, como um fantasma. Eu precisava de algo em que me concentrar e que ajustasse as ideias, e fui realmente acalmando, mas não parecia ser por isso que os fatos iam surgindo e se encadeando involuntariamente. Eu tocando a campainha. A empregada desconfiada indo atender. A própria Rute, curiosa, se aproximando com um prato de lasanha. Eu a chamando de “minha ovelhinha querida” e seus olhos se iluminando. Ela me convidando para entrar. Eu tomando banho no banheiro da empregada, esfregando o rosto, previamente sujo, na toalha branca, sabendo que a patroa associaria a mancha ao santo sudário. Eu falando coisas em sentido figurado, que a rigor não significavam nada, mas ela parecia decifrar mensagens, e eu já tomando banho no banheiro social. As calças quase sem uso que ela me dava, os sapatos. A campainha como um som mecânico, repetido, os almoços diários com ela já na mesa da sala, eu abrindo a geladeira sem pedir, pegando sempre água, coisas de pouco valor, demonstrando falta de interesse por tudo em volta, e ela mais e mais convencida de que eu era o Homem, perguntando-
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-me coisas sobre o mundo, nunca de onde eu tinha vindo, ou quem eu era. Minhas respostas vagas. Ela achava que até meus espirros eram mensagens cifradas. Ela beijando minhas mãos. Eu beijando as dela. Minhas caras e bocas, dicas engolidas avidamente. A empregada abrindo o portão de mau humor. Comentei com a Rute, e ela me deu uma cópia da chave. Isso com três, quatro meses. Jantares demorados. Conversas intermináveis. Frases vagas, com mensagens para quem as quisesse achar. Coisas como “sábio é quem alimenta os pássaros, pois só assim as sementes se espalharão”, ao pôr a comida na gaiola. O convite para que eu morasse lá. Minha recusa. As noites. Ela pedindo para que pelo menos eu dormisse até o dia seguinte. A insistência para eu não ir embora. Roupas novas. Relógios. Eu negando. Ela insistia, queria dar vazão ao amor guardado por tanto tempo. Eu relutava, mas aceitava uma coisa ou outra, sempre manifestando desconforto, dizendo “o que importa é entrar no reino dos céus”, coisas assim, ela já entregue, eu nem precisava mais elaborar as frases, já podia dizer qualquer coisa. Linete, a empregada, enfastiada, trazia o café da manhã numa bandeja, eu acordava tarde, Rute regando as plantas, o sorriso crédulo. O casamento, só nós e quatro testemunhas. Ela era solitária. Eu só tinha a fumadora de maconha, que talvez estivesse no lugar de sempre, dormindo de boca aberta em frente à tevê fora do ar com o cigarro aceso entre os dedos, os olhos meio fechados, meio abertos. A Rute, por outro lado, me
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tratava bem e gostava de mim. Uma troca de benefícios, assim eu via. Ela regando as plantas, refeições longas e tranquilas, as noites de amor comedido, os olhinhos dela lacrimejando de felicidade, ou prazer, ou dor, ou tudo misturado, ou seja lá por que seus olhos lacrimejavam naquelas horas. Poucos passeios. Muitas conversas. As frases — quanto mais vagas, melhor. Rute passando mal. As faltas de ar. Dores no peito. Internações. Médicos chegando às pressas. O cheiro de remédio do quarto branco. As frases vagas que agora pareciam prepará-la. Minha crise forjada de depressão por duas semanas depois da morte. Enquanto eu arrumava as fichas, meu companheiro de viagem dialogava com as catarinenses, e isso me fez lembrar de nós dois, eu e ele, uns dez anos antes, juntando dinheiro para viajar no verão. Os dois entrando no ônibus. A areia. As louras que caminhavam lentas e eram menos arredias que as cariocas. E a cara da Sonia apareceu enorme, uma memória nítida, a lembrança de nós conversando sentados na areia da Praia Mole, depois de ela ter se aproximado e perguntado se eu era do Rio, as amigas chamando e ela dizendo, podem ir, eu sem acreditar naquela beleza querendo ficar do meu lado, e a sensação de que tudo já estava consumado passou a incluir a existência dela, como se nós dois estarmos juntos fosse parte dos planos do mundo, e se isso era verdade, então as coisas programadas para acontecer comigo não eram tão ruins assim. Se nada adiantasse tentar mudar os fatos — e eu seguia pensando assim, por mais que tentasse não pensar —, pelo menos os fatos, mutáveis ou não, incluiriam a presença
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dela. O tempo era leve, lento, bom, quando ela estava por perto. Todas as outras meninas lindas sumiram, e o próprio Gotinha reclamava que eu não queria sair mais com ele para beber, ou conhecer outras garotas. Eu só queria saber da Sonia, e as amigas reclamavam que ela só queria ficar comigo — nós deitados na areia, com o som das gaivotas que voavam por perto. E a memória das gaivotas fez com que eu quase as ouvisse novamente, agora dentro do ônibus. E na véspera do dia em que eu iria embora, a Sonia disse que viajaria ao Rio nas férias do ano seguinte. Pela primeira vez naquele mês inteiro do lado dela, o tempo voou. Quando passei no quarto para pegar minha bagagem, encontrei o Gota e ele disse que não iria comigo. Não vou, cara. Vou ficar por aqui. Vou trabalhar com uns caras. A Rute não vai ligar. Sou maior de idade. Lembro dos dois acenando lado a lado, o Gota tentando sorrir, eu já no ônibus, chorando porque a Sonia ia ficar, ela chorava também, e veio a suspeita de que eu não a encontraria nunca mais, como o Gota tinha dito, isso é coisa de verão, cara, não se apaixona, você vai cair do cavalo, mas ao mesmo tempo algo me dizia que estar com ela fazia parte do plano da minha vida. Isso foi abafando aos poucos a suspeita de que eu não a encontraria mais. Talvez essa certeza incerta, infantil, tenha me deixado menos triste, enquanto o ônibus voltava para o Rio, no sentido oposto ao que eu fazia agora, dez anos depois, para, acima de qualquer outra coisa, tentar me encontrar novamente com ela.
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6. Por alguns momentos, tive vontade de abrir o jogo com o Gotinha, dizer quem eu era, falar da infância, mas tive medo de que ele resolvesse me desmascarar, contar que eu era uma fraude, ou contratar um advogado para tomar a herança, já que era o único parente vivo da tia recém-falecida. Mas eu era o viúvo. Talvez tivesse mais direito que ele. Não sei. Optei por ficar na minha, não arriscar, enquanto ele pegava os telefones das catarinenses para que elas lhe mostrassem a cidade, e me cutucava por baixo, enquanto falava que o Arnaldo — eu — iria também, e perguntava tudo sobre as vidas delas que, aparentemente, estavam achando a maior graça. Falei que não conheço a cidade para elas darem os telefones, cara, elas vão sair com a gente, mas antes você vai conhecer meu filho, o moleque é engraçado, tem um nariz igual ao meu, há, há, você é limpeza, cara. Grande Arnaldo. Alberto. Aliás, Arnaldo. Grande Arnaldo. Passei as duas semanas depois da morte da Rute fingindo estar deprimido, para que não ficasse tão óbvio que era agora que começaria a brincadeira. Quando eu disse para a Linete ficar na casa e ainda aumentei seu salário, ela passou a me levar chazinho de manhã, perguntava se eu queria mais alguma coisa, só me chamava de doutor, e ficou realmente preocupada com minha falta de apetite. O dinheiro e seus milagres. A viagem então veio como algo que eu merecesse. Minha cara de tristeza convencia até a mim mesmo e, já com o jogo ganho, resolvi que seria Floripa. Não sabia onde me
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hospedaria, nem quanto tempo permaneceria por lá, mas acho que foi exatamente essa incerteza, a possibilidade de modificar os planos a qualquer hora, o que mais me seduziu. Conforme o ônibus se aproximava, fui me dando conta de que talvez não soubesse o que fazer. A liberdade tão sonhada que me caíra nas mãos era apenas uma maneira de chegar a um destino ao qual eu queria estar preso. A cara da Sonia era um pop-up, estourando na minha cabeça sem ser convidada. Hotel? Que hotel? Praia? Tudo era insólito. Poder fazer qualquer coisa me deu a sensação de que eu não podia fazer nada. Foi por isso que, inicialmente, a opção de seguir com o Gotinha pareceu válida. Mesmo com tudo o que estar ao lado dele significava. Achei que nunca mais o veria, e seria melhor assim. Mas ali estava uma ameaça à minha condição de herdeiro de velha rica e, ao mesmo tempo, uma salvação imediata. Eu estava perdido em um deserto enorme sob o sol inclemente, com sede, sem sombra nem água, e não foi bom constatar que era essa a sensação da liberdade total.
7. A mãe cozinha. Na sala, o filho escala a estante para alcançar o pote de bombons. A estante balança e vira com o garoto. O pote de se espatifa no chão. A mãe vai até a sala assustada com o barulho e vê a estante caída, os vasos de cerâmica quebrados, e o garoto, ignorando o joelho que sangra, debruçado indiferente sobre os bombons. A mãe já não aguenta mais aquele filho, aquele diabo. Sem pensar, vai até a co-
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zinha, pega a panela, volta à sala e joga a panela com toda a força na direção do garoto. As gotas de óleo quente respigam na pele do filho, salpicando-lhe o ombro, o pescoço, duas ou três na bochecha, e aqueles queloides acompanhariam o Guilherme para sempre. Só vim a saber da história das marcas na pele do Gotinha pela Sonia, no mesmo lugar da praia onde nos deitávamos ouvindo as gaivotas antes. Apesar de eu ter dado a ele um apelido que fazia referência direta às cicatrizes, nunca me sentira à vontade para perguntar sobre a origem delas, e a Sonia só me contou aquilo porque parecia se sentir em dívida, era um prêmio de consolação: o constrangimento, amarelo, na cara dela. Eu, mais constrangido ainda. Entrei na casa com o Gotinha para visitar o filho, e me deparei com a mãe do moleque — a Sonia. Fiz as contas rapidamente e vi que o garoto devia ter de idade mais ou menos o tempo passado desde que a gente tinha se conhecido, e essa associação atropelada de ideias me levou a uma pergunta: tinha acontecido antes ou depois de eu ir embora? O garoto pulava no pescoço do pai, e a mãe me reconheceu no ato, mas percebeu que o Gota, não. A minha surpresa era tão grande quanto a dela — os dois sem saber onde se enfiar —, e arranjei uma desculpa qualquer para sair dali. Sentei na areia da praia, no mesmo lugar de antes, esperando ouvir as gaivotas, mas não. Talvez elas nunca tivessem estado lá, e desconfiei de que o som das gaivotas pudesse ser uma invenção da minha cabeça, uma trilha sonora inventada para aquelas memórias. E com isso, veio um pensamento
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estranho: se eu realmente não podia fazer nada para alterar o futuro, talvez existisse algo que pudesse fazer para enganar o passado, como enfiar umas gaivotas fazendo barulho, mesmo que elas não tivessem estado ali. De qualquer maneira, lembrar das gaivotas me afastou do pensamento tenebroso de que o Gotinha e a Sonia tinham um filho. Tentei lembrar da imagem dos dois se despedindo de mim enquanto o ônibus se afastava. Os dois abraçados. Mas não sei se eu estava ajustando os fatos à memória ou a memória aos fatos, e imaginar que o passado era mais passível de ser mudado que o futuro me pareceu fato consumado. Não sei. Foi no meio desse turbilhão que ela apareceu, perguntando se podia sentar do meu lado. Estava mais gorda. Talvez, um pouco mais envelhecida. Mas continuava linda, pelo menos para mim. Dez anos. E quando ela sentou, achei ter ouvido as gaivotas em algum lugar, mas pode ter sido impressão. Foi sem eu perguntar que ela contou a história das cicatrizes. E, como se pagasse uma dívida, seguiu explicando algo sobre o filho, mas o que ela dizia não era definido, parecia outra língua. Eu fingia compreender, mas já não me interessava, eu só pensava na ideia de que é mais fácil mudar o passado que o futuro, e tive o impulso de dividir isso com ela, como faria dez anos atrás, mas preferi ficar calado. Ela me abraçou, talvez eu estivesse chorando, mas acho que não. Quando dei por mim, vi que ela também estava calada. Então me abraçou mais apertado, beijou meu rosto e pediu desculpas. Eu nem sabia por que ela estava pedindo desculpas.
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Acho que foi para quebrar o silĂŞncio que perguntei: CadĂŞ as gaivotas? Ela, sorrindo: Gaivotas?
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O v in g ado r do idio m a Ulisses Mattos
Algumas poucas pessoas nascem com um dom. E um número ainda menor inventa seu próprio dom. É o caso de Renato, que depois de anos sem achar um talento especial para algo grandioso descobriu que, com muita aplicação e treino, poderia detectar quaisquer falhas de português. Não aquelas dos lusitanos de anedotas, perpetradas por manuéis e joaquins radicados no Brasil. Estamos falando de erros contra o idioma que Cabral plantou aqui e foi crescendo em meio a línguas indígenas até se tornar praticamente a única nestas terras. Renato tornou-se um craque em bater os olhos sobre pequenas multidões de palavras e encontrar ali no meio algum mau elemento que estivesse criando tumulto, desrespeitando as regras da língua. Como entre seus amigos e colegas de escola aquela habilidade não era muito comum, passou a valorizá-la ainda mais, sempre arrumando um jeito de mostrá-la a quem estivesse por perto. Na lanchonete, apontava erros na grafia de mistos-quentes com “x” ou de hambúrgueres sem acentos. “Olha ali, cara! O ‘hamburgues’ tá errado. Ou é ‘hamburgers’, em inglês, ou ‘hambúrgueres’, na adaptação para o português. Moço, avisa a quem escreve a tabela de preços que isso tem que ser mudado!”. Nessas ocasiões, as observações não causavam muito impacto em quem o acompanhava na hora do lanche, muito 127
menos nos funcionários dos estabelecimentos, que nem chegavam a se irritar a ponto de precisarem cuspir nos sanduíches de Renato para se vingar. Ninguém ligava. Mas o rapaz acabou encontrando alguma utilidade em seus comentários quando passou a denunciar aos colegas, durante as aulas, erros de crase cometidos por professores no quadro negro. Um de seus amigos passou a fotografar com seu celular os erros dedurados por Renato e jogou em um blog apócrifo, no qual os mestres eram ridicularizados, com direito a ranking com os docentes que mais maltratavam o português. Os acessos ao blog abastecido graças ao dom de Renato foram crescendo e o site virou assunto obrigatório. Tanto que a liderança do professor de geometria na lista dos que mais erravam garantiu-lhe o apelido de “Besta Quadrilátera”. A troça aos mestres trouxe certa popularidade a Renato. O bastante para que passasse a ser chamado para mais festas e — o mais importante — que conseguisse ficar com mais meninas na noite. “Oi, gata! Sabe o blog com os erros dos professores? Sou quem produz o conteúdo! E sabe que olhando pra você, não encontro erro nenhum?” Assim eram as cantadas que soltava nos breves diálogos que se seguem antes que meninos e meninas comecem a rápida troca de salivas. Não que Renato não fosse capaz de pegar garotas quando saía para dançar com sua galera. Mas quando não era ainda tão estimado, beijava apenas uma ou duas por noite, o que era bem abaixo do que sua gangue de hormônios clamava ou que seus amigos estabeleciam como meta. As informações que abasteciam o tal blog para des-
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moralização dos professores deu um jeito nisso. Pelo menos por um tempo. Sabemos como são os jovens. Logo se desinteressam pelas coisas quando deixam de ser novidade, exatamente como fazem os mais velhos. O blog foi útil por um tempo, mas logo ninguém mais o acessava para rir dos professores. E também os erros foram escasseando, já que a diretora da escola cobrou dos mestres mais cuidado. Alguns dos professores realmente estudaram para não cometer gafes. Outros, como a Besta Quadrilátera, deixaram de escrever no quadro negro. E a fama de Renato foi minguando. Mas a experiência deixou um gostinho mais forte que os beijos de Halls Extra Forte da boca das meninas que já não mais o beijavam. Ele teve uma sensação de realização. Foi bom demais mostrar sua habilidade. Melhor ainda perceber que os erros nos quadros negros haviam diminuído. Ele tinha feito a diferença. Percebeu que podia ter uma missão nesse mundo. Ou, pelo menos, nesse país. Deveria consertar o que estava errado no que se lia por aí. Renato precisava disso. Afinal, não há nada como uma obsessão para nos deixar felizes, nem que seja apenas nos instantes em que as realizamos. A ideia surgiu quando viu uma loja de roupas de aluguel, a Só à Rigor. Era como se aquela crase tivesse voado do letreiro e se fincado em seu coração. Na verdade, se houvesse mesmo ido a seu peito, ainda assim a crase estaria em lugar melhor do que diante de um substantivo masculino. Pensou em mandar uma carta, um e-mail ou mesmo telefonar para a direção da loja e pedir providências. Aquilo não podia ficar assim. Era realmente um ultraje a rigor. Aliás, como dizia a banda (que não cometeu o erro de crase em seu próprio ba129
tismo), “a gente não sabemos tomar conta da gente”. Mas Renato tomaria conta da gente. E começaria com rigor. Traçou seu plano e foi para a rua. De madrugada, pegou emprestado o carro da mãe, mesmo sem idade para ter sua carteira de habilitação. Por que não poderia dirigir aos 16 anos? Se com essa idade ninguém se importava de servir-lhe bebida alcoólica, por que se importaria se infringisse a lei dirigindo? E se tinha um título de eleitor, tirado naquele ano de 2012, que iria usar para votar para presidente nas eleições de 2014, ajudando a dirigir um país, que mal havia em conduzir um carro? Até um bêbado consegue dirigir e ainda ter a frieza de subornar policiais que o interceptam. “Um cidadão eleitor de dezesseis anos é bem mais apto para dirigir do que um corruptor bêbado com maioridade legal” Era o que pensava sempre que pegava escondido o carro da mãe. E dessa vez, o velho Corsa estaria em uma nobre missão. Renato estava todo vestido de preto. Era sua idéia de camuflagem, mesmo que a noite na cidade não seja negra. Já eram três da manhã quando saiu do carro estacionado em frente à loja Só à Rigor. Há meia hora não passava mais ninguém por ali. Saiu sorrateiramente do Corsa e pôs-se a escalar o prédio. Chegou à altura do letreiro, abriu a mochila preta e tirou a lata de tinta em spray. O nervosismo era pouco diante da excitação. Com seu jovem equilíbrio, segurou-se em uma janela com uma das mãos e com a outra orientou a lata em direção à crase que tanto mal estava causando à sociedade. Passou uns dois minutos rabiscando a crase com
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o spray, deixando claro a todos que ela estava errada, que estava sendo punida, como um boneco de Judas. Desceu correndo, entrou no carro, deu uma última olhada em sua obra e arrancou na toda com o carro, percebendo que na direção a adrenalina pode ser mais perigosa do que o álcool. Mas chegou em segurança. No dia seguinte, voltou ao local e gastou um bom tempo admirando a crase denunciada e contabilizando as pessoas que olhavam para o letreiro. Aproximou-se mais da loja quando vizinhos do estabelecimento foram se solidarizar com o gerente da Só a Rigor (agora podia ser lido assim, sem crase), maldizendo o vandalismo e se perguntando por que alguém faria aquilo. Não se tratava de uma pichação comum. Afinal, não haviam assinado nenhum apelido. Renato não se conteve diante das especulações e contou a proposta do “vândalo”, mas sem ser tão eloquente quanto um artista contemporâneo que tenta explicar o significado de seus rabiscos coloridos em uma tela. “Vai ver o pichador fez isso porque essa crase estava errada”. Os vendedores se entreolharam e o gerente da loja disse que era possível, já que alguns clientes o alertaram algumas vezes sobre o erro no nome da loja. Mas o dono nunca se importou com isso e a crase foi se acomodando, intocável. Até aquele dia. Os homens ainda falaram que isso não justificaria o ataque, pois há erros assim em todos os cantos da cidade, inclusive em placas do governo. “Talvez em breve não haja mais”. Pensativos, os lojistas só não tiveram suspeitas sobre
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o rapaz porque não lhes passou pela cabeça que um jovem daquela idade pudesse ter conhecimentos ou motivação para fazer os acertos nos erros de português. Mas também não pensaram no quanto seria difícil um professor de mais de 30 anos saindo por aí e escalando prédios para pichar por cima dos crimes contra o idioma. Ainda naquela semana, Renato foi a outra filial da Só à Rigor e repetiu a façanha. A mesma roupa preta, o mesmo Corsa emprestado da mãe, a mesma vigília, a mesma fácil escalada, a mesma lata de spray. E mais uma crase foi rigorosamente alvejada pela tinta, deixando de ser um acento para se tornar apenas parte de uma massa de rabiscos. De diferente, apenas a forma como Renato deixou o local. Em vez da correria abastecida a adrenalina, um sentimento de justiça que lhe transmitiu uma calma inacreditável. No dia seguinte, não quis voltar à cena do anticrime e se arriscar a explicar o motivo aos novos lojistas revoltados com o atentado ao letreiro. Não sentia mesmo necessidade, pois sabia que o dono da loja informaria ao gerente local o que estava acontecendo. E o responsável pela filial explicaria à vizinhança. Talvez um boato corresse, fazendo com que comerciantes checassem seus letreiros, suas faixas, seus anúncios, seus slogans. Mas não houve repercussão. Todos os outros erros de português continuavam se exibindo pela cidade. A frustração foi se transformando em desafio. Não desistiria facilmente. Com paciência, escolheu seu próximo alvo. Seriam os avisos de “entregas a domicílio”, com ou sem crase. O plano era pintar o “a” — e eventuais crases que o acompanhassem — e escrever acima do borrão a preposição “em”. Sim, “entre-
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gas em domicílio”. Uma farmácia foi a primeira a ganhar o remédio para seu mau português. Na semana seguinte, em um mesmo dia, dois restaurantes tiveram que engolir a correção. Em seguida, duas locadoras de vídeos ganharam legendas para seus letreiros (Renato se deu ao requinte de escrever o remendo não acima do erro, mas embaixo, como se fosse uma legenda traduzindo o incompreensível para nossa língua). Já não esperava mais nenhum reconhecimento. Estava ficando satisfeito com o trabalho. E a falta de atenção para o que estava fazendo o deixava despreocupado para continuar agindo. Mas a repercussão acabou chegando. Pela internet. Um belo dia, alguém comentou no Twitter que o restaurante em frente a sua casa teve a faixa de “entrega a domicílio” corrigida com spray. Outros comentários surgiram narrando eventos semelhantes. Em pouco tempo, dezenas de pessoas estavam na rede social contando onde viram letreiros e anúncios pichados. O assunto tomou vulto quando um blog exibiu um vídeo feito com câmera de telefone celular flagrando um rapaz vestido de preto corrigindo a faixa de uma farmácia. Renato se assustou com as imagens, pois não tinha percebido que havia sido visto em ação. Não adiantava tomar cuidado apenas com transeuntes nas ruas. O vídeo foi registrado por alguém em um apartamento em frente à farmácia, pela janela. Por sorte, seu rosto não foi mostrado. A preocupação e a raiva por ter sido descuidado logo o abandonaram, pois não havia espaço para elas quando o orgulho começou a crescer dentro de si. As mensagens de apoio e admiração pelo “Vingador do Idioma” deixaram o sujeito
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em êxtase. Pois é. “Vingador do Idioma”. Agora Renato tinha um codinome, dado popularmente. Não era assim que acontecia com os super-heróis dos quadrinhos? Em algumas histórias, o povo começava a falar espontaneamente sobre o tal vigilante, dando-lhe um nome. Com ele estava sendo assim. Em outros quadrinhos, eram os jornais que batizavam o novo herói. O mesmo acontecia agora, já que alguns blogs são — como não? — a nova geração dos jornais. Renato agora era o Vingador do Idioma. Preferia que sua alcunha fosse um nome só, curto. Algo como “Batman”, seu herói favorito. Mas quem era ele para contrariar a sabedoria popular? Diante de outras formas como também o chamaram em alguns comentários — Senhor Corretivo e Liquid-Paper Man —, acabou aceitando o Vingador do Idioma como a melhor opção, embora no íntimo torcesse para que um dia abreviassem o termo e criassem algo como “Vingoma”. “Sim… Vingoma seria sensacional!” Ele não sabe se foi por medo de ser novamente filmado ou se foi a empolgação em ter um codinome, mas o fato é que na missão seguinte já passou a usar uma máscara. Pensou em vestir uma capa também, mas resistiu. Foi mascarado e desencapado que partiu para a nova empreitada, contra o “funcionando de 9h as 18h” e similares. Era hora de estarem de acordo com a norma culta. Durante duas semanas, o Vingador do Idioma fez com que dezenas de placas sinalizando horários acertassem os ponteiros com a língua portuguesa. Postos de correios passaram a abrir “de segunda a sexta” sem crase; supermercados começaram a funcionar “das 8h
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às 22h” ou “de 8h a 22h”, dependendo da decisão de Renato. Sua fama começou a se espalhar na internet, a ponto de alguém abrir um perfil no Twitter usando a alcunha de Vingador do Idioma e se vangloriar dos feitos de Renato. Isso o irritou tanto quanto a comunidade no Orkut chamada de “Eu conheço o Vingador do Idioma”, com diferentes membros contando como amigos haviam lhes confidenciado serem os autores das correções. E uma pessoa desmentia a outra, dando informações intencionalmente superficiais sobre o verdadeiro Vingador do Idioma, com cuidado para não revelar a identidade do sujeito. Já havia até gente dizendo que existiam, na verdade, vários vingadores executando o trabalho. Nesse momento, Renato tinha duas opções. Na verdade, se formos criativos, tinha inúmeras alternativas, como viajar para o Suriname, ou comprar um furão como bicho de estimação, ou começar a guardas suas unhas cortadas ou arranjar uma metralhadora e matar 17 pessoas em sua escola. Mas vamos nos ater às duas opções mais sensatas e diretamente relacionadas ao fato de haver várias pessoas se fazendo passar pelo novo herói. Ou ficava calado e deixava o mistério sobre a existência ou não de apenas um Vingador do Idioma, ou dava um jeito para dizer que ele era único, sem revelar sua identidade. A segunda opção, mais egoísta e, consequentemente, mais humana, foi a escolhida. Para isso, abriu um novo perfil no Twitter. Como já haviam criado o “Vingador do Idioma”, teve que bolar outro nome para a conta. Foi com um sorriso que digitou “Vingoma” em seu login. Contatou alguns usuários da ferramenta e
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deixou sua mensagem: “Eu sou Vingoma, o verdadeiro Vingador do Idioma. E posso provar”. Na mensagem seguinte, disse que naquela noite corrigiria um erro de português e pela manhã daria as instruções para que todos checassem a veracidade da autoria. Vestiu a roupa preta e a máscara. A capa continuava a ser uma tentação vencida. Mas permitiu-se comprar um cinto com uma fivela em forma de “v”. Lembrou-se do cinto de utilidades de Batman e mais uma vez se sentiu como o herói favorito. Como o Homem Morcego, não tinha superpoderes, atuava de noite e se vestia com roupas escuras. E o grande defeito que via na mitologia de Batman agora considerava como mais uma semelhança com o cavalheiro das trevas. Renato sempre se perguntou como um personagem tão complexo e sombrio podia ter inimigos tão ridículos. O Coringa é muito interessante quando bem contextualizado nos quadrinhos ou caracterizado no cinema. Mas o fato de Coringa ser um palhaço deixa margem a representações ridículas, inclusive já perpetradas na tevê. E o que dizer do Pinguim? Que espécie de inimigo é esse? Um senhor obeso que porta um guarda-chuva e anda como uma das aves mais limitadas entre sua classe, que não sabe voar nem caminhar direito, além de contar com hábitos de procriação praticamente suicidas! E que tal o Charada, com seu uniforme colante verde cheio de pontos de interrogação, viciado em palavras cruzadas e quebra-cabeças, como um aposentado sem amigos? “Assim como o Batman, Vingoma tem inimigos ridículos. Os erros de português que ele combate são risíveis. Patéticos!”
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Pensou em voz alta, um pouco assustado depois de se dar conta que referiu-se a si mesmo na terceira pessoa e já lhe autoatribuindo uma identidade paralela. De qualquer forma, era hora de executar mais um corretivo, em um alvo previamente escolhido. Vingoma foi até um outdoor onde se via um anúncio garantindo que determinado curso de inglês ia “de encontro” às necessidades do aluno. O corsário da boa grafia estacionou o Corsa com as quatro rodas na calçada, subiu no teto e alcançou o outdoor. Com o spray, cancelou o “de” e escreveu acima um “ao”, enquanto pensava como era irônico um curso de idioma cometer um erro assim. Fez uma foto da façanha com uma câmera digital e partiu no carro. No caminho de volta, ainda parou para consertar um “aluga-se quartos” em uma plaquinha afixada na porta de uma casa, colocando um “m” acima do hífen. De volta ao lar, foi para o computador e finalizou o plano para mostrar quem era o Vingoma. Em seu perfil no Twitter, escreveu: “Corrigi o outdoor de um curso de inglês. Vá até o blog http://vingoma.wordpress.com e veja que esse era meu plano” Ao acessar o blog, que havia criado há uma semana sem avisar ninguém, os internautas viam a foto da mais nova correção de Vingoma. Abaixo dessa postagem, a foto do outdoor ainda ostentando o erro gramatical, feita dois dias antes, e lengendada com a frase “Eis o próximo alvo de Vingoma”. A data de cada postagem não deixava dúvidas. Só quem estava se pronunciando, naquele perfil do Twitter, como “Vingoma” sabia da existência do blog que trazia a foto do outdoor antes e depois da intervenção. Aquele sujei-
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to que afirmava ser o único e verdadeiro Vingador do Idioma era realmente quem dizia ser. E foi assim que todos passaram a entrar em contato com o novo herói da cidade, agora saudado como Vingoma. Passou a dedicar boa parte de seu tempo livre, que ganhou corpo nas férias escolares, respondendo a fãs e recebendo sugestões de novos alvos. Um dia, recebeu também um pedido de entrevista de um jornal. Finalmente a grande imprensa se tocou de algo que já era comentado há semanas na rede. Vingoma deu entrevistas por e-mail e viu sua popularidade crescer pelas manchetes dos jornais, que anunciavam cada novo feito. Logo as emissoras de televisão também procuraram por ele. O efeito de uma jovem mascarado na tevê falando sobre seus feitos foi tão insólito quanto impactante. A mídia e o público se apaixonaram por Vingoma. Renato já estava começando a se preocupar com o que deveria fazer no fim daquele ano. Com a chegada de 2013, a adoção do Acordo Ortográfico de 2009 se tornaria obrigatória. Vingoma talvez não desse conta de tantos hifens, acentos e tremas subitamente entrando para a marginalidade. A questão ia além das placas, cartazes, letreiros, painéis, outdoors e faixas que vinha corrigindo (ou que foram sendo corrigidas espontaneamente por comerciantes e até o governo, para evitar a ação do justiceiro e/ou a exposição nas várias reportagens que mostravam alvos em potencial do Vingoma). O que fazer com livros e revistas publicados em anos anteriores? Não iriam se igualar às propagandas com erros de português? “E as legendas na tevê e nos dvds, meu Deus?”
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Já não estava mais se contendo diante desses tipos de erros. A inviabilidade de pichar por cima de legendas o deixaria ainda mais nervoso quando a nova ortografia ganhasse força de lei, trazendo uma enxurrada de novos erros. Sua saúde mental só não lhe deixou mais preocupado porque surgiu algo físico que parecia requerer mais atenção. Em uma das noites como Vingoma, cortou-se com um caco vidro em um muro. O corte não foi profundo, mas o sangramento não parava. Foi depois de muito tempo que a ferida finalmente coagulou. Precisou ir ao médico com a mãe. “Essa sua dificuldade para coagular talvez seja falta de sono, meu filho. Se você fizer como eu e tomar uns remedinhos para dormir, sua saúde pode melhorar.” “Ah, sim. E ficaria tão apagado que não ouviria nem meu filho sair de madrugada de casa levando meu carro várias semanas seguidas”, pensou em silêncio. A consulta não foi tão leve como a mãe supôs. O médico pareceu preocupado além da conta. Mas a segunda consulta, para avaliar o resultado dos exames pedidos, foi pior. O doutor explicou que Renato estava com um problema raro de falta de absorção da vitamina k, que agia no mecanismo de coagulação. Tentaria-se um tratamento, embora as perspectivas não fosse muito boas. Nada boas, na verdade. Péssimas, sejamos sinceros. Havia poucos casos assim na literatura médica e nenhum registro de cura foi documentado. Quando o médico, diante de uma mãe às lágrimas e um garoto atônito, perguntou a Renato se ele estava entendendo o que estava sendo explicado, recebeu de volta uma observação insólita:
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“Falta de vitamina k? Mas o ‘k’ voltou para o alfabeto…” Depois um mês sem intervenções, as pessoas começaram a se perguntar onde estaria Vingoma. Renato realmente não sabia o que fazer. O tratamento para sua rara doença não parecia surtir efeito. Quando sangrava, por menor que fosse a ferida, o fluxo de líquido rubro que fugia de seu corpo sem bilhete de volta era impressionante. Assustador. Uma vez, levou dois dias para estancar um ferimento tolo, quando ralou o cotovelo numa parede. E parecia estar piorando. Subir um muro e corrigir um letreiro passou a representar um risco muito maior que o de apenas ser pego pela polícia e processado por vandalismo. Uma vida extremamente sedentária seria a melhor forma de se preservar vivo. Mas, como advertiu o médico, logo Renato deveria passar à fase dos sangramentos internos espontâneos, como os hemofílicos. Ou mais graves que os deles. Renato poderia tentar se manter saudável fisicamente, mas sendo sincero consigo, sabia que o mais difícil seria manter a cabeça no lugar. Começar a ler a Bíblia, embora tenha despertado um lado religioso no rapaz, ajudou menos do que precisava. Os erros de português continuavam à solta por aí, com hifens impondo divórcio de palavras que se amavam, crases espetadas no crânio de vogais sem estrutura para isso, singulares estuprando vozes passivas e toda sorte de violência e barbárie maltratando mais a língua do que uma xícara de café fervendo. Manter Vingoma enclausurado em um corpo amordaçado com artérias frágeis e incompetentes estava deixando Renato ainda mais doente. Deixar de ser Vingoma era deixar de ser brilhante, deixar de ser im-
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portante, deixar de fazer a diferença, deixar de deixar de ser medíocre. Ainda assim, mesmo que não estivesse preso em um corpo sem k, como Vingoma faria justiça diante de tantos erros que cairiam sobre nossas cabeças com a chegada do ano de 2013? Renato estava entre a cruz e a espada. A cruz de ser um cruzado contra os infiéis do idioma e a espada afiada que lhe sangrava por dentro. Deveria viver (por mais quanto tempo?) sem ser Vingoma ou voltar aos trajes negros e ao spray de tinta e, ainda assim, perder a luta para os erros que chegariam em hordas com o Ano Novo? O que Batman faria diante dessa charada? O que Renato/Vingoma deveria escolher? Pensou. Penou. Pesou… “E se… E se talvez eu não tenha que fazer nem uma coisa nem outra? E se eu fizer algo diferente, que resolva as duas questões?” Renato se perguntou enquanto olhava para fora da janela e via o Cristo Redentor. Há algumas semanas, vinha se perguntando o que fazer sobre a estátua no alto do morro do Corcovado. O Cristo estava com uma gigantesca faixa posta por uma ONG, que permaneceria ali por dois meses. Nela se lia solidariedade. não fique apenas na platéia. adote essa idéia. Ficou sabendo do conteúdo da faixa ainda antes da doença, quando uma coluna de jornal comentou a mensagem, chamando a atenção para os últimos traços de resistência ou falta de atenção para o novo acordo ortográfico. No final, o
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colunista soltou a frase que mais parecia um recado ou um desafio para Vingoma: “A essa altura, vai ser difícil alguém pichar os que não mudaram”. Trocadilhos! Só podiam ser trocadilhos! “Altura” devia estar relacionando o tempo que se passou desde que a mudança entrou em vigor e os metros que separavam a faixa do solo. O outro trocadilho brincava com o verbo “pichar”, que ali tanto podia ser “reclamar das pessoas que ainda não adotaram o acordo” ou “tacar tinta nos acentos que estão errados”. Talvez o tal colunista não tivesse se dado conta de que Vingoma não estava corrigindo frases em desacordo com a nova regulamentação ortográfica. Havia ainda a opção de as pessoas não mudarem seus hábitos de hifens, manterem seus tremas de estimação e conviverem mais tempo com seus velhos acentos em ditongos abertos “ei” e “oi”. No entanto, o ano de 2013 chegaria e passaria a dar razão ao colunista. O novo ano traria a obrigação de Vingoma encarar aquela altura e pichar os que não mudaram. Porém, por mais que pensasse, não via como executar a missão em segurança. Nem com toda a ajuda de Deus teria como subir a estátua e consertar a faixa sem correr riscos. Mas agora que estava com aquela doença, a parte do risco à vida já não era importante. Deixava de ser um obstáculo. Tornava-se um incentivo. As semanas que se passaram até o último dia de 2012 foram desconfortáveis. A ansiedade era grande e incomodava tanto quanto um passageiro no metrô ouvindo funk em seu celular sem os fones de ouvido. Finalmente, na noite de
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Réveillon, botou sua roupa preta e assentou a mochila em suas costas. O traje negro foi vestido apenas por questões simbólicas, já que a missão de Vingoma seria realizada na manhã do dia seguinte, à luz do sol. Além disso, camuflagem alguma o ajudaria a ficar incógnito (se é que algum dia ajudou). Renato havia avisado à mãe que passaria a virada do ano com amigos e foi se despedir dela apenas com um beijo em sua testa, evitando o abraço que poderia lhe trazer lágrimas denunciatórias. A mãe não desconfiou de nada, até porque estava feliz em ver o filho doente voltando a sair às ruas, em vez de ficar na cama lendo a Bíblia e livros de Paulo Coelho. Deixar a casa não era algo comum desde que os sangramentos se intensificaram. Antes de passar pela porta, Renato disse: “Sabe, mãe… Deus escreve certo sempre. Mesmo que por linhas tortas”. E pôs-se a caminho da estátua mais famosa do filho Dele, dar um jeito na faixa que envergonhava o Cristo. No ônibus, foi pensando em outro ditado que envolvia o Pai: “A voz do povo é a voz de Deus”. “Quem sabe. Talvez até seja verdade. A voz do povo pode ser a Dele. Mas a escrita definitivamente não é.” Sentia inchar a área de seu cérebro reservada à criação de pensamentos religiosos. As considerações sobre Deus e tudo que O envolve vinham se tornando mais frequentes. A leitura do livro sagrado não o salvou da leve depressão causada por sua enfermidade, nem lhe tirou a obsessão em justiçar o idioma. Mas trouxe certa sensação de conformidade, uma certeza de que tudo era planejado por uma força maior, de
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que sua vida não pertencia exatamente a ele mesmo, mas a um pai universal que um dia tomaria de volta a energia emprestada aos filhos. E foi com essa calma que Renato subiu a trilha do morro do Corcovado e se embrenhou pela mata da região, onde ficaria escondido até a manhã. Seu Réveillon seria ali no mato mesmo. Copiaria a ação dos nove ativistas do Greenpeace que escalaram o Cristo em 2002, passando a noite escondidos na mata. Pela manhã, ainda no horário que o monumento não estava aberto ao público, os militantes saíram do mato, partiram para o Cristo e escalaram a estátua para pregar uma faixa de conscientização sobre uma conferência das Nações Unidas na cidade, que trataria do meio ambiente e do crescimento sustentável. O plano deu certo e a faixa foi fixada. Quando desceram, foram presos. Mas a possibilidade de ser detido não seria problema para Renato. As primeiras horas da noite no mato foram tranquilas e o rapaz conseguiu tirar umas horinhas de sono até ser acordado quando os fogos do Ano Novo estouraram no céu em vários pontos da cidade. Já era 2013 e Renato ficou surpreso com o novo sentimento que lhe preencheu. A pressão sobre sua cabeça era indescritível. Não por causa da missão que executaria naquele dia, mas devido ao horror que sentiu ao saber que naquele momento havia erros de português por todos os lados. Pensou nos exames de “ultra-som”, nas “auto-escolas”, nos livros de “auto-ajuda”, nos “antiinflamatórios”e nos “microônibus”. Realmente seria difícil conviver com os escândalos ortográficos que brotaram à meia-noite com a obrigatoriedade da adoção do novo acordo. Esse sufocante
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mal-estar só fez confirmar a necessidade de Renato dar cabo do plano que estudou naqueles últimos dias. Sem conseguir mais dormir, sofrendo com os erros soltos por aí, ficou acordado até que o sol finalmente mandasse seus primeiros raios e iluminasse o caminho. Sorrateiramente, como quando saía do Corsa da mãe para subir muros, Vingoma — já estava com a máscara, tão desnecessária quanto a roupa preta — foi até o Cristo e pôs-se a escalar a estátua, exatamente como mostrado no dvd que o Greenpeace lançou quando comemorou os 10 anos da façanha de 2002. O rapaz só precisou pegar emprestado o equipamento com um amigo que fazia escaladas. Sua subida foi mais lenta que a da equipe de ecologistas, pois a experiência em subir muros e telhados não era suficiente para subir com rapidez o Cristo. No caminho, foi lembrando de uma cena que viu na tevê, quando Renato Aragão também escalou o Cristo Redentor em nome da campanha Criança Esperança. “Aquilo foi legal. Podiam fazer todo ano só essa escalada, em vez de interromper a programação da tevê com aquela coisa chata que passa o dia inteiro no Criança Esperança. Eu nunca fiz contribuição para campanha porque não gosto do que mostram na tevê. Aquelas atrações chatas e sentimentalistas. Na verdade, eu seria capaz de doar dinheiro se o objetivo fosse não realizar o Criança Esperança na televisão. Aí sim eu daria alguma quantia. Seria interessante ver o anúncio ‘Faça sua colaboração, ou faremos o Criança Esperança na tevê’. Isso seria legal!” Foi pensando nisso e lamentando não poder contar para ninguém essa ideia, já que a missão que estava prestes a
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completar não o permitiria. Vingoma estava agora no ombro do Cristo Redentor. Lá embaixo, podia ver o público que já tinha sua entrada liberada no local. É claro que todo o viram lá em cima. Começou o tumulto. Em alguns minutos chegou um helicóptero da imprensa para mostrar ao vivo o aventureiro na estátua, vestindo roupas pretas. O close na figura mostrou a máscara. Foi o suficiente para que muitos o reconhecessem como o vingador do idioma. Quem havia recebido no dia 31 de dezembro seu recado pelo Twitter ou visto sua mensagem no blog, prontamente entendeu o que Vingoma estava fazendo no Cristo. Sua última frase ao público não deixava dúvidas: “No primeiro dia de 2013, parto para minha última missão. Pai, em tuas mãos entrego meu espírito”. Também foi essa frase que Vingoma falou em voz alta ao chegar à mão direita do Cristo e segurar uma das pontas da faixa. Aquele enorme pedaço de pano continha uma frase que continha dois erros de português desde que o Ano Novo chegara. Já que não tinha como pichar os acentos de “platéia” e “idéia”… que a faixa fosse abaixo, servindo como exemplo do que deveria ser feito com todos os erros que passaram a existir com a obrigatoriedade da adoção do acordo ortográfico. Vingoma iria pegar a faixa para Cristo. Nem que precisasse morrer para isso. Entregou seu espírito nas mãos do Pai e em suas próprias mãos tomou a faixa da mão do Filho. Segurou firme o tecido e se lançou no ar, como que fazendo o pano de cipó. Por alguns instantes, quem assistia ao espetáculo, transmitido ao vivo para todo o país, teve a esperança de que o rapaz ficasse
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apenas pendurado. Torciam para que a outra extremidade da faixa não se soltasse da mão esquerda do Cristo. Mas Vingoma sabia que ela não aguentaria. Sempre soube. Assim que recebeu o peso de seu corpo, o painel se soltou da outra mão do Cristo, indo abaixo com Vingoma. Dizem que na iminência da morte, toda sua vida passa diante de seus olhos, como num filme. Renato contava com isso e se decepcionou muito ao descobrir que era apenas um mito. A queda livre lhe trouxe um turbilhão de pensamentos, todos desencontrados e sem sentido, impossíveis de serem identificados como uma sequência de registros de sua existência. Nem de seus momentos de glória como Vingoma se lembrou durante os poucos segundos que o conduziram ao chão. Mas talvez em breve algum cineasta devesse fazer o filme que Renato desejou ter visto nos últimos momentos, contando sua vida. Impossível que ninguém pensasse em narrar essa história nos cinemas depois de vislumbrar tal cena verdadeiramente cinematográfica: um corpo mascarado caindo no chão e sendo aos poucos coberto por uma faixa branca, caindo lentamente sobre o cadáver. Que efeito. Por algumas horas, o corpo do justiceiro da língua, o paladino das letras, o corsário da ortografia, o vingador do idioma ficou aos pés do Cristo. A polícia chegou e depois a ambulância, para fazer apenas o trabalho de um carro funerário. Depois que o show terminou e tudo ficou tranquilo de novo, um funcionário que trabalhava no Cristo se aproximou. Olhou para o local de onde retiraram o corpo e fez algumas anotações sobre uma prancheta, no papel com as
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providências que deveriam ser executadas por algum subalterno no dia seguinte, quando o monumento fosse reaberto ao público: “Por favor, dêem uma boa limpada no local da queda. O corpo deixou uma marca ensangüentada no chão.” Que bom que Vingoma não estava vivo para ver o circunflexo e o trema nessa frase sobre os vestígios de seu ato heróico. Ou melhor, heroico.
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a u to r es André Tartarini nasceu e vive no Rio de Janeiro. Escreveu em 2008 Mormaço também queima (contos), participou do coletivo Tertúlia (2012) e tem textos publicados em alguns sites (releituras.com.br, mojobooks.com) e em revistas, como Ficções e M… No momento, prepara uma seleção de textos para um segundo volume de contos. Gustavo Alves da Silva, o Gustal (contração do início do nome e do sobrenome que adotou como ID nas redes de computador de lugares onde trabalhou) nasceu em 1969, em Colatina, Espírito Santo. Trabalhou como jornalista no Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro, onde mora desde 1996, em funções como redator de noticiário de rádios, produtor e editor de tevê, jornalista de cultura, repórter de economia e chefe de reportagem. Também trabalhou na Editora Desiderata, onde lançou o Dicionário dos Sexos, surgido a partir de uma brincadeira numa tarde na redação de O Globo. Ricardo Calazans é um jornalista carioca do século passado. Formado pela UFRJ em 1993, passou os últimos 18 anos entre as redações dos três principais jornais cariocas. Entre outros temas, escreveu profissionalmente sobre política cultural, finais de campeonato, festivais de rock, romances policiais e viagens de turismo. É casado, pais de dois filhos, edita o site de Cultura do jornal O Globo e toca guitarra numa banda de rock furiosa.
Ulisses Mattos deixou o jornalismo tradicional em 2005, quando era editor do Caderno B do Jornal do Brasil, para seguir o caminho aberto em 2001 como colunista do polêmico site Cocadaboa. Desde então, editou a revista M… e o projeto @na_Kombi, perfil de humor no Twitter que ganhou coletânea em livro. Atualmente, escreve para dois sitcoms e um humorístico exibidos no Multishow, além de fazer stand-up comedy e conteúdo online para agências de publicidade. Em 2011 tinha 39 anos e é carioca da Zona Norte para sempre. Eusébio Galvão é jornalista desde 1998, quando começou a escrever para o Jornal do Brasil como repórter esportivo. Depois alternou as atividades profissionais entre esportes, cultura e política. Cobriu e trabalhou na produção de grandes festivais de rock; foi do Comitê Organizador dos Jogos Pan-americanos Rio 2007; esteve na cobertura dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008. Nas horas vagas, estufa as redes adversárias em peladas com amigos e comemora as vitórias com cerveja gelada. Mariana Timotheo da Costa tem uma relação especial com o número 7, nasceu em 7/7 — o ano também tem 7, mas o último número torna-se cada vez mais irrelevante depois dos 30. O 7 fez de Mariana uma sensível canceriana, com ascedente em Peixes e lua em Câncer, que agora experimenta a ficção depois de anos de realidade. Jornalista de O Globo, foi correspondente do jornal em Caracas e já passou pelas redações do Jornal do Brasil, de O Dia, além da BBC, em Londres, onde morou por quatro anos. Agora viajar — dos cinco continentes só lhe falta conhecer a
Oceania — e desde pequena gosta de fugir da realidade: tinha até um amigo imaginário, o Zé Batista, que de vez em quando gostaria de rever. Tatiana Contreiras tem 30 anos e canta, dança e sapateia — no sentido figurado, obviamente. É jornalista e roteirista, escreve sobre tevê, internet, cultura pop, comportamento e o que mais aparecer. E, claro, ama muito tudo isso — de seriados a novela das oito, do rock ao pancadão. Escreve no site www. figurinhas.net.
Poder ao autor
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copyright ©2012 Autores copyright ©2012 desta edição, Ímã Editorial
Se7e [cruz] : André Tartarini (org.), Eusébio Galvão, Gustal, Mariana Timotheo da Costa, Ricardo Calazans, Tatiana Contreras, Ulisses Mattos— Rio de Janeiro : Motor : Ímã Editorial, 2012, 156 p; 21 cm.
isbn 978-85-64528-12-3
1. Contos. I Tartarini, André (org). II Título. III Série cdd bisac
869.3
FIC003000, FIC048000 regional 5.0.3.0.0.1.0
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