Sutilezas

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VERA ROCHA

SUTILEZAS contos



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VERA ROCHA

SUTILEZAS contos



7 Conto de sexta-feira 17 Olho no olho 23 Maria 29 A sorte do Agostinho 37 Por que Mário 45 Por quatro estações 57 Eu e meu pai 61 Sutilezas 69 Eixo de simetria 77 As leis da física 85 Álbum de retratos 95 Expectativas



Con to d e s e x ta- fe i r a

Tem que acabar o conto hoje. Já está escrito na sua cabeça há dias. Hoje vai sair. A Rosa já chegou com o pescado comprado na feira ali em baixo. No divórcio, Isabel abriu mão de muita coisa. Da Rosa não. A Rosa, disputada como um item do enxoval, ficou com ela. Televisão nova. Fogão novo. A Rosa era a mesma. O cheiro do feijão e o barulho da panela de pressão. Ruídos familiares que seguravam a onda da Isabel. A vassoura varrendo, a máquina de lavar. Rosa só vinha às sextas-feiras. Só às sextas feiras, esse ar de estabilidade e das coisas no lugar certo. Agradeceu em pensamento a existência da Rosa e os sinais do seu trabalho. Reconfortantes músicas domésticas. Hoje está um pouco tensa, a Rosa, normalmente alegre e cantarolante. Vai melhorar. A Isabel vai dar um jeito. A cadeira ficou menos confortável depois da lembrança do compromisso assumido. Mas vai dar. Tem o dia inteiro para o conto. Parar só para ir ao banco a duas quadras de casa, no caixa eletrônico sacar o dinheiro para a Rosa. Hoje um pouco

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mais de dinheiro que o de costume, porque a Isabel vai quebrar um galho para a Rosa. Tudo vai dar certo. Precisa de pouca coisa agora. Café ajuda. Ergueu a voz sobre os barulhos da casa: — Rosa, faz um café? Ouve o cabo de vassoura encostando-se ao azulejo. — É agora, dona Isabel. Volta pro conto. Olha a tela. Tudo esquematizado, resolvido. Só escrever. Tranquilo. Arruma os papéis em volta do computador. Guarda os livros da insônia na estante. Senta e estica os pés, alonga os antebraços. Sente o cheiro do café e ouve o barulho da xícara de louça no pires. Sente-se bem. Bota uma música. Chega o café que ela toma de um gole só. Começa. Digita rápido, os cotovelos grudados ao corpo, coluna ereta, postura perfeita, o texto crescendo na tela e as palavras brotando nos dedos. Toca o interfone. É o Joca. Estava por perto e resolveu visitá-la à moda antiga, sem aviso prévio. Mas trazia com ele aquela poetisa portuguesa de que lhe falara. Ela choraminga no fone: — Joca, tô trabalhando. — A Luzia tá no Brasil e vai embora daqui a poucos dias. Eu precisava te apresentar a ela. Pô, Isabel, arte precisa de intercâmbio, é a globalização, não dá mais pra você ficar escrevendo aí encastelada, caralho. Faz seis meses que você se mudou e não faz nada. Só dá aula, arruma a casa nova, e escreve esses contos que não deixa ninguém ler. Qualé? A Isabel suspira. — Sobe!

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Abre a porta. Apresentam-se. — Rosa, faz mais um café pra nós. O cabo da vassoura desliza, chateado, pelos azulejos e se estatela no chão. Isabel percebe a impaciência de Rosa, compreende e diz a si mesma que vai despachar as visitas e irá ao banco, tirar o dinheiro para Rosa que precisa sair de Copacabana e ir a Benfica pegar a filha adolescente e voltar com ela a Botafogo para o aborto. Um leve e vergonhoso sentimento de poder passa pelo coração de Isabel. Penitencia-se, sofrendo um pouco com a responsabilidade de seu papel. Só um pouco. Na verdade, sente-se bem por nunca ter estado em situação parecida. Com todas as loucuras, ela não ficou grávida adolescente, ela não fez a mãe dela passar por isso. Ela gosta muito da Rosa, mas afinal vai emprestar o dinheiro e parar o seu trabalho para ir ao banco. A Rosa não pode reclamar de nada. Então, porque no fundo está sendo boa, relaxa. A satisfação consigo mesma e as visitas, ali na sala, fazem com que se esqueça do conto. Luzia era uma poetisa grande. Grande mesmo, uma mulher de um metro e oitenta, bem feita de corpo, cabelos curtos, um brinco de argola minúsculo em só orelha. Uma tatuagem de cobra subia dos seios e se enrolava no pescoço. Isabel não conseguia olhá-la nos olhos, só olhava para a cobra. Decidida, Luzia não esperou ser convidada para revistar as estantes e verificar rápida e facilmente que a Isabel não lê poesia. Nunca, não. Quase nunca. Empoeirados aqui e acolá um Drummond, um Manoel de Barros, Fernando Pes-

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soa, alguns clássicos. Em contrapartida, algumas dezenas de volumes de contos deitados sobre os volumes de pé numa estante acanhada para a quantidade de livros. Por isso, ou só em parte por isso, a Isabel pensou mais tarde, a Luzia passou rapidamente pelos assuntos literários, apenas para confirmar o já entendido: a Isabel não tem nenhum contato com os jovens e performáticos poetas dos baixos Gávea e Leblon e não vai servir de ponte ou amálgama entre métricas lusófonas. Mesmo assim, Luzia se mostra encantada de estar ali. Então, a Luzia e o Joca já esquecidos do intercâmbio voltam o assunto para a programação do fim de semana, convidam e insistem. A Isabel declinando, deixando uma promessa aqui outra ali, percebendo olhares trocados entre os visitantes como notas de pé de página de uma conversa anterior. Resolvem que vão almoçar em Ipanema, a Isabel, é claro, incluída apesar dos protestos. Vencida, ela pensa que a maneira mais fácil de conseguir trabalhar é mesmo sair para almoçar, dispensá-los na sobremesa e voltar sozinha ao apartamento onde trancará as portas, deixará os telefones desligados, não sem antes ameaçar de morte o porteiro que ousar avisá-la de alguma visita. Deixa, então, o peixe para comer no jantar. No quarto, troca de roupa sem vontade e entra no banheiro, sentindo nas costas o olhar de uma Rosa ansiosa que troca os lençóis da cama. No banheiro, enquanto tenta pentear o cabelo rebelde, monta a lista das coisas que precisa fazer: almoçar, fugir, passar no banco, pegar o dinheiro, trancar

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tudo, acabar o conto. Hoje. Mente arrumada, cabelo domado. Abre a porta do banheiro. A Luzia na porta. A Luzia como uma porta barrando a passagem, os braços apoiados nos batentes, a cobra colorida subindo do peito, a boca entreaberta chegando mais perto e ameaçando pousar nos lábios despreparados de Isabel um beijo firme e prenhe de promessas. Isabel entende rápido o que é possível explicar. Entende os olhares cúmplices das visitas, a insistência do Joca. Eles achavam que Isabel, há seis meses engaiolada depois do divórcio, seria capaz de se interessar por algo mais que os versos pungentes e algo eróticos da Luzia. O pior, para Isabel foi a Rosa passar por trás da Luzia saindo do quarto, carregando a roupa de cama usada, olhando pro chão como uma camareira de hotel que não tivesse respeitado o aviso de “não Perturbe”. Isabel recuou e disse mais alto que o necessário: — Quer usar o banheiro? Pronto. Encanto desfeito, Luzia solta os braços e entra no banheiro enquanto Isabel agradece a Deus a presença de espírito que não a abandonou naquele momento. Depois, saem os três pela porta social, não sem antes a Rosa dar uma olhada direta para Isabel que avisa: — Não demoro, viu Rosa? Já volto com o teu dinheiro. Ela pega o carro e Luzia senta no banco do carona com o Joca atrás, braços nos bancos da frente, tagarelando nos ouvidos das duas. Bastou entrar na Avenida Atlântica para o Joca acender um dos baseados que carrega pronto na cartela de Marlboro no bolso da camisa.

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Mas é um desperdício fumar aquele baseado no trânsito, então porque não dar uma paradinha na Lagoa, uma caminhada pra abrir o apetite, quem sabe um chope num quiosque? E fumam e caminham. Já passou de uma hora da tarde e continuam na Lagoa. Isabel definitivamente relaxou. E caminham e fumam. Riem como de praxe. Luzia declama seus poemas com sotaque carregado. Variações sobre o desejo. Isabel estranha o ritmo da poesia, algumas palavras não consegue entender. Escolhem o quiosque mais vazio e tomam algumas cervejas. Começa bater aquela fome. Comem pastéis enquanto esperam o almoço chegar. A cerveja potencializa o baseado. Isabel começa a sentir uma tranquilidade gostosa e baixa a guarda. Os outros dois, no entanto, são atentos. Joca envolve o pescoço de Isabel com a mão áspera e grande, o polegar perigosamente parado na jugular enquanto o indicador e o dedo médio sobem e descem na nuca sob o cabelo despenteado. Como uma jogada ensaiada, Luzia pousa a mão na coxa e começa a subir o vestido de Isabel. A adrenalina funciona como o salto da válvula da panela de pressão e ela se lembra. Isabel precisa sair correndo, passar no banco, voltar para casa, dar o dinheiro à Rosa. E acabar o conto. Levanta, tira um dinheiro da carteira e deixa na mesa sob os protestos de Joca e Luzia. Pega o carro. Volta para Copacabana. É muito difícil estacionar. Larga o carro numa vaga perto demais da esquina e corre até o banco. No caminho tropeça num garoto, perto de seis

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anos, que pede esmola na porta do caixa eletrônico. Correndo, olha o menino e pensar na boa ação que está fazendo: ajudar a filha da Rosa no aborto, evitar que venha ao mundo mais um infelizinho como aquele. As filas são enormes e dá tempo dela pensar sobre o pensamento anterior, aquele de seu papel fundamental no processo de evitar a vinda de mais um carente no mundo o que equivale, quase, a dizer que o menino, ali na porta, era uma infelicidade que devia ter sido eliminada. Nessa hora, o fumo se condensou numa nuvem escura que pousou no lado de dentro do peito. Uma parte da cerveja subiu, perturbou as ideias e, outra parte desceu inflando a bexiga que começa a doer. A espera é agoniada. Por pouco não bloqueia o cartão na ansiedade. Na terceira tentativa consegue. Saca o dinheiro e sai porta a fora sem se preocupar em guardar as notas que carrega na mão. Passa pelo garoto que está a sua espera estendendo as mãos. Vira pro outro lado. “Esse menino não existe”, pensa. Do banco até em casa são duas quadras. Deixa, preocupada, o carro na vaga tão perto da esquina e vai a pé que o trânsito naquela quadra é um horror. Sobe dois andares de escada e se precipita para o banheiro. A vontade de urinar é maior que qualquer pensamento, dúvida ou terror. Fica lá, alguns minutos, esquecida de tudo. Automaticamente se dirige ao chuveiro. Depois que tirou toda a roupa se lembra da Rosa. Maconha faz isso com ela: não a deixa em marcha lenta, mas provoca um embaralhamento nas prioridades. Chega à cozinha embrulhada na toalha. A Rosa já foi. O

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feijão, o arroz e o peixe frito cobertos pelo pano de prato xadrez em cima da mesa. A casa silenciosa. Silenciosa. O computador hibernando. Pensa se vai conseguir acabar o conto. Se assusta com o telefone estridente e atende. É a Rosa. — Fui buscar Daiane e vou direto pro doutor. Precisa pagar antes. Tá marcado pras cinco. A senhora pode levar o dinheiro lá? Olha pro relógio da cozinha: quatro e quinze. Corre pro banheiro, toma uma ducha pra lavar as ideias. Corre pro quarto, enfia uma roupa enquanto realiza que não lembra o endereço que ela mesma passou pra Rosa. Acorda o computador para acessar a agenda e anotar o endereço. O conto aparece lá, aberto, se espreguiçando. Toma um táxi e enfrenta o trânsito, chegando à clinica exatamente às cinco. Entra a tempo de ver a menina, pouco mais alta que o moleque lá da porta do banco, branca como um papel, ser levada pela mulher de uniforme azul. A sala salmão, a Rosa vermelha de chorar. Percebe que não pode só pagar e ir embora. Leva a Rosa para uma cadeira, escolhe outra e fecha os olhos. O coração bate dentro dos seus ouvidos. Mulheres chegam e saem, em geral, acompanhadas por outras mulheres. Se lembra da Luzia. Se lembra do Joca. Cada um é egoísta à sua maneira. Como ela, também. De um jeito particular e cheio de culpa, mas egoísta. Quando Daiane sai, está muito abatida e assustada. Tem na mão uma receita e os olhos miúdos estão arregalados. Não dá para enfiar mãe e filha num ônibus às sete da noite em Botafogo para Benfica. A Rosa chama um táxi lembran-

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do-se do carro estacionado perto do banco, e leva as mulheres chorosas a Benfica, parando, antes, em uma farmácia e comprando os remédios. No cansaço, começou a se sentir a grande vítima da história toda, afinal ela não transou de maneira irresponsável com ninguém, não engravidou, não negou ajuda, não faltou com o respeito a ninguém e, caramba, não acabou o conto. Outro táxi de Benfica a Copacabana. O carro não está mais na vaga perto demais da esquina. Rebocado, dorme à sua espera num depósito em Caxias. Anda, de novo, até o prédio. Dois andares. Dessa vez um banho longo, demorado. Uma roupa limpa, short, camiseta, chinelo. Vê o arroz, o feijão e o peixe frito frios na mesa da cozinha. Reanima o computador. O conto. Vai acabar o conto. Olha pra tela fria como a comida na mesa da cozinha. Repassa os acontecimentos daquele dia esquisito. O quase beijo da Luzia, a mão do Joca, a ansiedade da Rosa, o desamparo da Daiane. Vai à cozinha e bota metade da comida num pote de plástico. Bate a porta do apartamento e volta até ao banco onde está o garoto adormecido. Sacode o ombro do moleque sob olhares curiosos dos passantes. O garoto acorda e pega, automaticamente, a vasilha que Isabel lhe estende e come com calma. Talvez nem tivesse fome. Acaba e agradece. — Obrigado, tia. Volta para casa, senta na cozinha e come a primeira refeição decente do dia. O arroz com feijão e o peixe frito aquecidos no micro-ondas. Depois sacode o mouse e desliga o computador. O conto fica para amanhã.

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O lho n o olho

Não, Carmem, o começo não foi assim como você insiste em contar para os outros. Eu sei que ele era considerado um cara pedante, mas se aproximou de mim de forma muito curiosa, num sábado, durante um pôr de sol na praia, depois de me ver brigando com o Pedro, e se ateve a falar de marés, do vento, das ondas, do melhor pedaço da praia para surfar. Não tocou no nome do Pedro apesar de serem amigos. Eu até querendo, poderia, assim, destilar um pouco da raiva que sentia na hora. Muito tranquilo fez a previsão de mais um dia de sol para o domingo e se foi. Depois nos encontramos algumas vezes, você sabe, Carmem, somos trezentos. Na feijoada da Mirtes lá no Horto, sempre muito discreto, ininterruptamente bebendo e nunca ficando alterado. Um homem bonito, você há de convir. Depois naquela festa chatíssima do Carlos, aquela mania cafona do Carlos de dança de salão. Ele chegou, me tirou para dançar um samba de gafieira e deu um show. No meu ouvido sussurrou que gafieira era coisa muito antiga, mas o Carlos, tão legal, merecia que a gente se divertisse na sua festa. Ad-

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mite, Carmem, atitude elegante, não? Daí, uma cumplicidade já estabelecida, conversamos saindo da casa do Pedro. Eu chamando o táxi e ele se oferecendo: te levo. Levou. Na porta da minha casa, o assunto eram os arquétipos, o tarô, as entidades da umbanda, o horóscopo chinês. Convidei para entrar. Tinha cerveja e um terraço. No meu terraço, junto à encosta da Tijuca, da pedra úmida coberta de musgo e hera eu conseguia ter a vista do centro da cidade. Ali, no canto molhado pelas gotículas que escorriam das folhas, armamos as cadeiras de praia, aquelas de estrutura de alumínio e tecido de plástico, aquelas com três regulagens, da cadeira à espreguiçadeira. E nós dois, sem combinarmos, armamos as cadeiras na posição do meio. Nem tão deitada que não pudéssemos nos olhar, nem tão em pé que nos deixasse numa posição de enfrentamento. Na posição mediana, enrolamos a lombar e nos encaramos. Olho no olho. Falando amenidades. Pense, Carmem, o assento quase rente ao chão, deixa os joelhos em uma posição acima dos braços das cadeiras e precipita as pelves para o alto e para frente. Ficamos ali falando da posição geográfica do terraço, tão inusitada, tão na floresta, tão perto do centro da cidade. E falamos de insolação e da posição de Vênus no céu naquela noite, mas em nenhum momento despregamos os olhos de dentro dos olhos do outro, sequer para confirmar a posição anunciada de Vênus. E, conversando, olho no olho, eu podia ver, não me pergunta como, Carmem, mas eu podia ver o corpo dele crescendo dentro da calça branca. E pude ver, ainda olho no olho, quando o meu pé direito,

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também tão branco, com as unhas pintadas de vermelho, pousaram sobre o corpo dele inchado sob a calça branca. Impassivelmente, continuamos conversando, olho no olho sobre amenidades. Até que a cerveja acabou. Primeiro despreguei o pé da calça branca e só depois tirei o olho do olho e me ergui dizendo: vou buscar mais cerveja; e ele: vou com você. Descemos as escadas estreitas, eu na frente, um suave calor nas entranhas contrastando com a garrafa vazia, ainda gelada, na mão. No caminho até a cozinha, um sofá, e, sem combinarmos, a parada, as roupas no chão e o sexo. O sexo, Carmem, foi absolutamente certo. Sem preliminares, sem beijos apaixonados, sem arranhões, foi um sexo preciso. Depois, as roupas de volta, o caminho, de novo, até a geladeira, e mais amenidades olho no olho, até a hora do boa noite. Selinho. Tchau. Eu sei Carmem, você não gosta dele. Eu também não gostava, te juro. Mas das outras vezes, que eu o encontrei, não podia deixar encostar o olho no olho, senão não descolava mais e aí, você sabe. E foram muitas vezes assim. Começamos a adormecer depois do sexo e das amenidades e acordávamos juntos, às vezes mais sexo, sem preliminares tão dispensáveis numa relação que era só amenidades que valiam preliminares. Aí passamos a passear juntos, mas sempre por acaso e não regularmente. E a coisa só começou a mudar num dia em que, depois do sexo, ali, na hora de mais amenidades, a gente olho no olho, ele viu alguma coisa no fundo de mim e disse assim como diria a posição de Vênus no céu naquela noite:

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eu não te amo. E desviei pela primeira vez os olhos e percebi que eu mesma havia me armado uma armadilha e que nunca mais as amenidades seriam as mesmas. Ali, Carmem, eu tinha que ter sumido. Mas não sumi. Você sabe como a gente é. Continuei querendo aquele sexo certo e preciso que me plantou um anzol do lado de dentro do peito e, fisgada, fui arrastada para aquela zona do mar onde a luz não penetra. E eu, Carmem, meio mulher meio peixe não tenho antenas e nem radar, mas quis nadar por ali, porque a gente é meio assim mesmo. Você sabe, Carmem, mulher perde a hora de emergir. E ele foi repetindo — eu não te amo, eu não te amo — e eu aceitando mesmo não querendo, eu me desculpando afinal o sexo era tão bom e tão descomplicado, as preliminares agora me doendo durante as amenidades na espera da hora de ele me puxar pelo anzol e me arrastar. Tá certo, Carmem, quatro anos foi demais. Foi demais vê-lo com outras e não me achar no direito de reclamar, afinal, ele me disse tantas vezes eu não te amo eu não te amo eu não te amo. Foi demais passar noites e noites no terraço, a cadeira de praia vazia na frente, atrás as gotinhas escorrendo pela hera, e o único calor era das lágrimas e da garrafa de cerveja esquecida no chão. E depois ouvir a voz no interfone de novo: tá sozinha? posso subir? assim, sem avisar, mas, também, sem querer atrapalhar, tão respeitoso da minha individualidade e da minha autonomia, afinal ele não me amava não me amava não me amava, não queria ocupar espaço na minha vida, uma mulher tão inteligente. Só queria conversar amenidades que eram preliminares porque depois

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eu já sabia e ele sabia, sem combinarmos nada, no sofá ou na cama desarrumada. Quatro anos, Carmem, foi você quem contou. Eu já nem sabia, me perdi e contava o tempo pelas pequenas conquistas, antes daquele beijo mais demorado, depois do chupão que me manchou o pescoço por dias, ou quando achei que seu abraço ficou mais íntimo… Bobagens, Carmem. Um dia, acordei. Depois dos quatro anos que você me repetia, repetia, repetia. Eu não quis amenidades, nem saber a posição de Vênus, nem ficar no terraço, não quis beber. Quando ele chegou, agarrei-o imediatamente, abracei-o como fazem as esposas, com os antebraços sobre o pescoço, enfiei a língua na sua boca a perna subindo pelas pernas dele e abrindo caminho entre as pernas dele e puxando-o para a cama com todas as preliminares possíveis. Pela primeira vez me coibindo o prazer e segurando o dele, até doer, e depois os dois gozando muito e muito e depois um intervalo, sem amenidades, fica quietinho, por favor, agora vem pro chuveiro e sob a água e sôfregos, Carmem, pela primeira vez, sôfregos, descontrolados, ele me rasgando e eu o arranhando, e ele arfando, quase caindo, as pernas trêmulas, senta aí no chão, o chuveiro nas costas, agora deixa eu te enxugar, vem descansar, vem, e na cama depois do cigarro, o céu está nublado, deixa Vênus em paz, subi nele e ele me pegando toda, e sorrindo, Carmem, ele dentro de mim e sorrindo, um sorriso lindo e depois o rosto desfigurado pelo prazer e depois muito sério, caindo em si, tarde demais, olho no olho, e eu dizendo: eu não te amo mais.

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Ma r i a

Ela achou engraçado que eu demorei a me acostumar com a maneira, tão fácil, meu Deus, de dirigir aquele carrinho elétrico, igual àqueles que usam no campo de golfe. Riu muito da minha falta de jeito, quase jogando o carro no rio. Eu demorei, mas me acostumei. A Maria achava meu jeito engraçado. Quando a conheci, eu estava me acostumando que a Paula tinha me trocado por outro. Tirei duas semanas de férias, fui para um SPA num hotel de luxo. Só tinha gordo. Eu tinha perdido dez quilos só de amargura e mais uns três que perdi junto com a vontade de comer. O hotel era um lugar chique. A Paula sempre quis ir para um resort desses bem caros. Eu podia pagar, mas nunca quis ir. Depois que ela foi embora, eu fui. O lugar era lindo. A gente chegava depois de voar, andar uma hora de carro e ainda atravessar um rio largo numa barca enfeitada que parecia que eu estava indo para a Ilha da Fantasia. E eu tinha uma fantasia: esquecer a Paula. Na chegada tinha uma moça bonita vestida de baiana, balangandãs no peito e nas orelhas e eu não ganhei um drinque

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colorido, mas ganhei um colar e uma água de coco gelada que uma outra baiana bonita me deu. A Maria disse que eu estava mal mesmo, porque eu lhe contei que, nessa hora, chorei pensando como a Paula gostava de água de coco. E já tinha três meses que a Paula tinha me deixado. Depois de dois dias tomando sol e comendo bem, eu já dormia melhor, mas ainda acordava na noite com aquela vontade de ter a Paula ali. Não sei era falta da Paula ou se o que eu tinha era falta de mulher. É que eu estava acostumado que mulher era a Paula. Aí me disseram: — Já fez massagem? Vai fazer uma massagem relaxante. Vai, é muito bom. Eu fui. O lugar era mesmo muito elegante. Piscina aquecida, hidromassagem, sauna, e um corredor largo só com as salas de massagem. Entrei. Me entrevistaram atenciosamente. Respondi rapidamente porque eu estava meio envergonhado. Fui levado à uma sala e me deitei de barriga para baixo numa cama alta depois que a moça que me acompanhava tirou de cima da cama um pratinho cheio de sementes cheirosas e algumas pétalas de rosas. Ela me massageou delicadamente, como eu havia pedido lá na entrevista. Tinha um monte de nódulos de tensão nas minhas costas e ela foi desmanchando todos, muito calmamente, mas sem falar nenhuma daquelas coisas do tipo: “Você está tenso, hein?” Achei bacana. Fui relaxando e até me esqueci de onde estava. Depois ela disse para eu virar de frente e eu me virei. E ela massageou as minhas pernas, meus braços, minha barriga e minha face. Em volta dos meus olhos. Tornei a chorar. A moça não estava acostumada com isso.

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Terminou e me deixou ali descansando. Depois de uns minutos ela voltou trazendo um roupão e uns chinelos. Me chamou, baixinho, de doutor. Abri os olhos e olhei pra ela pela primeira vez. Era linda. Uma negra alta e magra. O cabelo afro, lindamente preso no alto da cabeça, e uns olhos cor de mel. — Como você se chama? — Maria. Voltei no dia seguinte. Queria fazer outra massagem, mas tinha que ser com a Maria. E ela veio. O sorriso era profissional, mas o olhar não. Ela estava olhando para um cara que tinha chorado na hora da massagem. Entrei e, como da outra vez, deitei primeiro de barriga para baixo, com a cara encostada num travesseiro que tem um furo no meio e que te deixa respirar apoiando só a testa e o queixo. Fiquei de olhos abertos e vi o pé da Maria. Um lindo pé preto com unhas pintadas de um esmalte branquinho quase transparente. A Paula sempre disse que unha branca em pé moreno era horrível e ali estava a Maria: os pés negros e as unhas brancas. Lindo. Comecei a me acostumar com a ideia de que a Paula não sabia de tudo. Quando virei de frente fiquei com os olhos bem abertos e desta vez, secos. Quando terminou e ela me trouxe o roupão e puxei assunto: — Onde você mora? — Na vila por onde o senhor chegou, do outro lado do rio. Ela estava largando o serviço e eu perguntei se podia levá-la e ela disse que tinha que andar muito até pegar a balsa que levava os funcionários, num cais diferente daquele em que eu cheguei. Era longe, mas na porta tinha um carinha

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com aquele carrinho elétrico e eu achei que sendo hóspede, pagando caro à beça, podia confiscar o carrinho para dar uma volta e devolver pro cara no mesmo ponto. O cara nem titubeou. Treinamento bom, eu pensei, o negócio é deixar o cliente feliz. Peguei o tal carrinho e me desajeitei todo dirigindo, mas consegui. A Maria achando a maior graça, ela que era uma graça toda negra assim e magrinha num vestido azul claro. Deixei-a na balsa, voltei pro meu quarto e, então, dormi, já desacostumado da Paula. Uns dias iguais assim até que fui com ela na balsa dos funcionários. Já era tarde, a balsa vazia, e sigo com ela até a vila. Na casinha pequena e arrumadinha nos amamos na sala mesmo e ficamos amantes assim depois do horário e da balsa dos funcionários, ou na hora do almoço e no meu bangalô. Ela era um pouco tímida, mas se deixava amassar e eu a queria loucamente. Eu sussurrava: Maria, ah, Maria. Até que ela perdeu a timidez e com a voz rouca, gemendo, me cravou as unhas nas costas. Achei que ela me amava mesmo quando, depois de muito arfar, se deixou cair no colchão, cansada, largando as minhas costas lanhadas, e de olhos fechados, depois de molhar os lábios, disse: — Não sou Maria. Me chamo Edilane. Fiquei emocionado. Vai entender. Jurei amor eterno. Ela não acreditou, eu já ia embora e como ela ia me achar? Ela mesma ia se mudar para a casa de uma tia carola e sisuda. A vida dela ia ficar um inferno. Mas ela estava cheia de dívidas, não conseguia manter a casinha pequena e tão simples. Eu disse: — Não vai, Maria, eu te dou dinheiro.

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— Me chamo Edilane. — Tá, Edilane. Você não quer morar com a sua tia. Não se aborreça. Eu te dou o dinheiro, a gente vai mesmo se casar. Eu já vendo a Maria, digo a Edilane, de vestido branco como as unhas com o esmalte quase transparente. Fui ao município mais próximo, uns cinquenta quilômetros. Lá, na única agência bancária daquele fim de mundo consegui sacar um cheque. Entreguei para Maria, nascida Edilane, e era o último dia que eu podia ficar ali. Dei o dinheiro para ela quase como uma garantia. Como a gente dá um sinal na compra de um apartamento para segurar o negócio e, se o cara vender para outro a gente processa e recebe o que pagou em dobro. Eu estava acostumado a fazer negócio. Dois meses depois eu volto apressado para ver a Maria. Depois da viagem longa, não pego a balsa, quero ficar na vila. Vou à casa dela. Fechada. Pergunto à vizinha por Maria. Ela sabe de quem estou falando. — Edilane? Mudou faz uns dois meses. Quase enfarto. Mas não desisto. Pego a balsa. Ela deve estar no hotel. Deve ter se mudado para o hotel. Na chegada vejo, no cais, a baiana dos balangandãs. Não era Edilane, não. E a outra a da água de coco, também não era. Todas as mulheres pareciam Edilane, mas nenhuma era ela. Perguntei na portaria. Estranharam. — Edilane, a massagista? Não trabalha mais aqui. Casou faz quase uns dois meses. Eu não consigo disfarçar a surpresa. Nem tanto pela traição dela, mas pela minha ingenuidade. De novo ali e, de

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novo, amargurado. Tinha pouco tempo dessa vez. Resolvi não chorar e para me provar, fui fazer uma massagem. Entrei, fiz a entrevista. Fui sozinho para a sala de massagem, eu já sabia o caminho. Quando a moça entrou olhei-a de cima a baixo. Miudinha. Parecia uma boneca de louça. A pele branquinha como leite ralo, quase transparente. Os olhos azuis grandes e infantis enfeitados por caracóis de cabelos muito louros. Me estendeu o roupão e eu perguntei: — Como é o seu nome? E ela disse, sorrindo: — Maria. Sorri também. Eu estava começando a me acostumar.

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A sor t e d o Agost i n ho

LOV. Não, o Agostinho não estava nada romântico. Deixou passar. Parou no sinal o KCT 4567. Anotou. KCT tinha tudo a ver com o estado de espírito dele. O sinal abriu e ele se pôs a relacionar as letras. K= 11, C=3, T=20. Por enquanto não precisava somar. Pediu mais um chopp, escorregando meio de lado no tamborete pequeno para o corpanzil do Agostinho. Sinal fechado de novo. Na primeira linha de carros junto ao meio fio parou um fusca muito velho. MOF 9650. Não lhe disse nada. Não anotou. A probabilidade de uma pessoa ganhar na mega-sena jogando seis números é de 1 para 50.000.000. Muito difícil. Mas o Agostinho acreditava que se os números fossem ditados por um anjo, ele ganharia. Tinha dias que ele ficava por horas naquele botequim da Barata Ribeiro, sentado no tamborete em frente ao sinal, e ao final da tarde, saía de cara cheia e o bolso mais vazio, sem uma dicazinha. Hoje até que estava bom. No terceiro sinal parou um Siena cinza, placa JVN 3245. JVN lembrou “juventude” para o Agostinho.

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Juventude é aquele momento em que temos mais vida para viver do que para contar. E no caso do Agostinho, agora já não sobrava muito nem para uma coisa nem para a outra. Por isso, o Agostinho tinha pressa. Difícil acreditar nisso olhando o cara gordo erguendo vagarosamente o dedo indicador para pedir o terceiro chopp. A pressa do Agostinho era interna. Tanta coisa que ele queria fazer. Tinha pouco tempo e pouca grana. Sempre faltara grana para as coisas bacanas que o Agostinho queria fazer. Para o essencial não, os anjos não dormiram no ponto. Casa, comida, médico, tudo isso o seu salário de bancário tinha assegurado e até algumas férias no Nordeste pagas à prazo em suaves prestações. LSD 2431. “Ah, não. Essa placa o cara pagou pra ter. Ah, pagou… Eu nunca tinha visto”. Anotou. L=12, S=19, D=4. Riu sozinho. Na adolescência experimentara umas pilulinhas. Na época se dizia: tinha tomado bolinha. Bolinha era o nome genérico que tinha o remédio ingerido com álcool. No caso dele tinha sido uns comprimidinhos chamados Optalidon que engoliu com um copo cheio de uísque para dar onda. A memória às vezes lhe dava uns presentes assim: lembrar do nome da pilulinha. Não lembrava mais nem do efeito, mas lembrou que apanhou do pai pela ousadia. Na cara, na porta de casa e na frente dos amigos. Riscou o 12 o 19 e o 4. Essa combinação já não valia. Tinha perdido a graça. “Oba”, pensou, “essa placa é boa: ALG 1209 – ‘Alegria’”. Ele sorriu e começou a anotar. Mas “Álgebra” apareceu no papel na sua frente e ele desistiu. O Agostinho nunca se deu bem em matemática. Aliás, nunca se deu bem em matéria nenhuma.

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“JBL 3368” – “Jubilado”. Será que ainda se usava essa palavra para designar o aluno incapaz de aprender, aquele que de tanta reprovação a escola desistia, e mandava embora? Jubilado. Ele foi. Descartou as letras dando de ombros e fingindo para si mesmo certo desdém. Do colégio, o Agostinho lembrava poucas coisas. Do primário lembrava das meninas brincando de roda. Gostava muito da Marina, uma lourinha que usava brincos de argola, grandes, de ouro. Menina fina. Ele era um garoto gordo, feio e pobre. A Marina era muito bacana. Ela ajudava o Agostinho nas matérias e nos deveres de casa. Porque em casa mesmo o Agostinho não tinha ajuda nenhuma. Os pais do Agostinho só sabiam ler e escrever e, mesmo assim, mais ou menos. Mas a Marina era inteligente e linda. A mais bonita da ciranda, e ele chegava a ter vontade de entrar na roda só para ter motivo de pegar na mão dela. Um dia, os garotos se juntaram no recreio e em vez do futebol combinaram estragar a brincadeira das meninas. O plano era esperar umas duas músicas e de repente avançar contra a roda batendo com as mãos na boca e gritando uuuuuuu como os índios dos filmes americanos. O Agostinho não gostou da ideia, tentou fazer a galera desistir, mas foi desafiado. O Rogério chamou o Agostinho de mariquinhas e apelou: — Ih, gente, acho que o Agostinho quer brincar de roda. Vai ver ele é a própria Terezinha de Jesus. E o Agostinho, covardemente, concordou. A fila de meninos índios atravessou o pátio e entrou desfazendo a ciranda e derrubando meninas. Na confusão a Marina saiu com a orelha rasgada pelo brinco de argola. Repreensão geral. Castigo

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para toda a turma. Findo o recreio, a Marina chegou da enfermaria, a orelha vermelha de mercúrio cromo. A professora interrogou a menina na frente da turma toda. Quis saber quem fez aquilo com ela. A Marina baixou os olhos e não disse nada. As meninas todas começaram a gritar que tinha sido o Agostinho, o gordo, os brutamontes do Agostinho. — Ele empurrou ela. — Eu vi! E uma outra: — Eu vi também. A Marina com o rosto abaixado. A professora insistiu e a menina, tão lindinha, tão bacana, levantou a cabeça, olhando pro infinito no fundo da sala e disse: — Foi o Agostinho. VXM 0845. Vexame. Anotou essa sem pressa colocando os números lado a lado. Entre o 22 e o 23, parou pra pedir mais um na pressão. Por causa daquele evento, o Agostinho foi suspenso por uma semana. Nos primeiros dias conseguiu esconder dos pais. Saía de casa na hora do colégio e ficava vadiando na rua até a hora de voltar. Até que o pai o viu. O Agostinho apanhou muito. Quando voltou para a escola, ainda tinha os braços roxos do aperto das mãos fortes do pai quando o sacudiu. A verdade da história é que o Agostinho não tinha nem chegado perto da Marina. Mas ele não conseguiu se defender porque se sentia culpado de ter aceitado a proposta do Rogério, de ter se acovardado. Ele, o cara mais alto de todos se curvara a uma brincadeira que não queria fazer apenas para ser aceito na turma. E a brincadeira machucara a Marina. Mas a coisa que doía nele, mais do que a acusação injusta,

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mais do que as pancadas do pai, foi ter visto no rosto da Marina que ela sabia que ele era inocente. Sentiu vergonha por ela também. Já eram quatro horas, ele precisava resolver logo a sequência de números. Viu as letras que tinha anotado: K= 11, C=3, T=20 J=10, V= 22, N= 14, V=22, X=23, M=13. O método do Agostinho para ouvir os anjos não era simples: Sentado no tamborete do boteco, ficava de olho nas placas dos carros que paravam no sinal. Só valia a fila mais próxima ao meio-fio ao seu lado. Se as três letras imediatamente lembrassem a ele alguma palavra que fizesse sentido, ele anotava. Depois separava o valor das letras repetidas e somava, multiplicava ou dividia pelos números que ficassem em sequência conforme a possibilidade de obter resultados de 1 a 60. Só marcava seis números. Ia marcar o 3, pegar o 10 e somar com o número repetido (22) e marcar 32, pegar o 11 e somar com o mais perto dele, o 13, e marcar 24, marcar o 14, marcar o 20, pegar os dois últimos números e somar: 45. 3, 14, 20, 24, 32, 45 Não gostou do resultado. Ia continuar recolhendo os números. Pediu um Steinhaeger para acompanhar o décimo primeiro chopp. — Olhe, seu Agostinho, não vá tomar outra carraspana aqui no meu balcão, hein. Toda sexta feira é a mesma coisa. — Seu Joaquim, alguma vez eu dei prejuízo pro senhor, deixei de pagar a conta? — Não, isso não, mas acho que o senhor anda exagerando. Olha que não é mais garoto.

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SDD 2356. Naquela tarde, os pensamentos tinham levado o Agostinho a sentir saudades. Saudade do tempo em que tinha tempo para fazer opções. Na história da ciranda ele tinha errado, mas se consolava porque a Marina, também. Depois da suspensão ficou ainda mais invisível para os colegas na escola. Passados algumas semanas do acontecido, a menina se aproximou dele. Torcendo os cabelos bonitos com as mãos veio lhe pediu desculpas. E, como se fosse justificativa, contou que as outras meninas não gostavam dele. Ela só o acusara, porque era o que as outras esperavam dela. Ele não sabia, mas as meninas eram cruéis. Já andavam até espalhando que ela gostava dele. — Uma coisa horrível, isso. Você entende? O Agostinho não entendeu. — E como foi que você machucou a orelha? — O fecho do brinco prendeu no casaco do Rogério. Ele correu e a minha orelha rasgou. O ódio subiu na garganta do Agostinho. Depois, como sempre, desceu. Mas nunca mais foram amigos. TRN-2112. Terno. Eterno. O Agostinho casou e teve quatro filhas. As filhas casaram, ele enviuvou. A agonia da Léa durou cinco anos. Acabou. Agora, o Agostinho era um bancário aposentado e viúvo. Tinha pressa. Tinha feito tudo o que esperavam dele. Agora, ia mudar de vida. Tinha pressa. Pressa, além de quatorze chopps e três Steinhaeger na cabeça. Jogou dinheiro no balcão. Ia ficar rico e mudar de vida. Reviu os números, pensou em calcular de outro jeito. Em vez de somar, multiplicar. Teve dificuldades na multiplicação, mas não quis pedir ajuda. Lembrou que foi jubilado. Teve

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vergonha de ter calado a inocência e engolido a injustiça. Ninguém o defendeu. Nem ele mesmo. Quis voltar atrás, reagir e reescrever a história. Se fosse hoje ia ser diferente. Ia dar na cara do Rogério, espalhar que comeu a cretina da Marina no muro atrás da escola. Ia colar e passar de ano. Talvez chegasse a banqueiro. Ia fazer um filho homem. Ia levar a Léa pros Estados Unidos. Ia curar a Léa. Tentou marcar os números no volante. Faltava alguma coisa para a sequência ficar legal. Tinha que escolher mais uma placa, mas não estava enxergando direito. As luzes da rua já estavam acesas, mas ele tinha os olhos embaçados de chopp e derrota. VLH 0612. Velho. Estava velho. Escorregou do tamborete e se estatelou no chão. O corpo grande e pesado. Difícil se levantar. O Seu Joaquim abanando a cabeça: — Vais ficar aí no chão um pouquinho para ver se aprendes. O Agostinho viu as pessoas olhando pra ele, algumas com dó, outras achando graça, mas ninguém fez nada. E nem os anjos vieram ajudar. Nem os anjos.

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P or q ue Má r i o

Não gosto de nada cor de rosa. Sinto enjoo. E entre tantas embarcações pintadas com cores fortes, alegres, barcos de cartão postal, cá estou eu me preparando para entrar numa traineira cor de rosa com bordas lilases, de nome Glaucyara. Eu preciso fazer algum tipo de terapia para entender porque não consigo dizer “não” a Mário. Ele tem uma capacidade de contar histórias que prende a atenção da gente. Quando pega a nossa atenção é como se pegasse uma linha de pipa: vai puxando, soltando, manobrando, dando linha e a gente vai que nem bobo, voando. Quando vê já está dentro da história. Fica difícil dizer “não, Mário” sem parecer bobo. Sempre assim. Mário é um sedutor, para o bem e para o mal. A história dessa vez tinha a ver com as minhas férias. Eu caí na besteira de dizer que tiraria férias em maio para viajar para o Nordeste com mais tranquilidade, uma vez que as férias escolares já teriam acabado. Imediatamente, ele e Maria Clara, sua mulher, se puseram a falar que eu tinha que ir para Porto Seguro. Chegaram de lá havia pouco mais de um mês. E Porto Seguro isso, Porto Seguro aquilo. E o melhor: Tran-

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coso. E falaram de Arraial d’Ajuda e dos passeios a pé, mas, principalmente, e acima de tudo: Trancoso. As praias, e a praça principal com os restaurantes iluminados só por velas à noite, aquilo tudo me parecendo um pouco anos setenta de mentirinha, mas vá lá. E não perder o passeio de barco. Inúmeros barcos, mas o melhor era o Glaucyara. Todo cor de rosa (a cafonice já virando uma qualidade), o Glaucyara pertencia a um pescador beirando os cinquenta (idade de Mário), muito bonito e charmoso (opinião de Maria Clara) um verdadeiro palhaço (opinião do Mário) que cantava Caymmi o tempo todo enquanto pilotava. Ele levava os turistas para os melhores lugares e a gente podia ver as gaivotas atacando os barcos pesqueiros ao fim da tarde. Um passeio lindo, diziam, que durava seis horas e o tempo passava rápido. A caipirinha do cara era sensacional (opinião da Maria Clara) e a mulher do cara era sensacional (opinião do Mário – naturalmente depois que a Maria Clara se afastou). O ex-pescador que tinha virado guia de turistas era casado com uma moça de vinte e cinco anos, o que para Mário era suficiente para rechear algumas fantasias. Mas além disso ainda tinha alguns agravantes. A moça era linda, doce. Era pedagoga, orientadora educacional a caminho do mestrado em Salvador, até que foi passar umas férias em Trancoso, e, num passeio, assim como aquele que eles estavam me aconselhando, ela se apaixonou pelo cara e largou tudo: mestrado, trabalho e família que, horrorizada, viu a filha mais nova virar “marinheira”. Por algum motivo, que a minha pessoa racional não entendia, essa história romântica entrou no imaginário deles e ficou marcada. Para Maria Clara, uma espécie de contos

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e fadas ao contrário onde a princesa larga o trono para virar gata borralheira por causa de um príncipe trabalhador. Para Mário, a certeza que um cinquentão podia virar a cabeça de uma moça novinha e fazê-la largar uma vida confortável e intelectual por um estado de permanente aventura. Tudo bem para todo mundo, eu pensei. Não estou nem aí para a tal da Glaucyara (o nome dela batizando o barco nas suas cores preferidas: esse tinha sido o presente do marido quando ela resolveu casar com ele), nem aí para o marido garanhão do mar, para as fantasias de Maria Clara ou do Mário. Eu só queria férias e de preferência onde eu não conhecesse ninguém e não tivesse chance de travar nenhum conhecimento. Trancoso me pareceu bom. Só com muito azar eu encontraria alguém conhecido ali, fora da temporada. E comprei passagem e reservei pousada. Fiz a mala. O mínimo possível. Eu já estava viajando, só preparando a viagem. Eram apenas só quinze dias, mas quinze dias que eu me queria calada, nada além de bom dia, boa tarde, uma caipirinha, por favor, as coisas inevitáveis e as que fazem parte do espírito de férias. Então (sempre tem um “então” nas minhas férias), o Mário me liga e pergunta: — E aí, as férias? O que vai fazer? E eu, bobona, toda alegre: — Pois é, vou lá para Trancoso, ver a maravilha. É longe o bastante, você sabe, para me isolar. E o Mário: — Vamos tomar um chopp, às sete? Te encontro aí nesse boteco ao lado do Fórum. Pronto. Plantou-se em mim um incômodo. Eu não tinha

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ainda entendido o quê, mas sabia que convite do Mário era extraordinário, ou seja, aí vinha mais algum pedido estapafúrdio. E veio. Chegou pontualmente, falou do trabalho, deu mais e mais dicas de viagem e tirou do paletó um envelope que me estendeu e, falando baixo, apesar de estarmos sozinhos, disse: — Entrega pra Glaucyara, uma hora que ela estiver sozinha. Aliás, você está tentando fugir de multidão, né? Faz o passeio na terça feira, não vai quase ninguém, a cidade costuma ficar vazia, você vai poder dar pra ela sem o Túlio (era o marido) perceber. Fiquei passada e me sentindo imediatamente traída. Então esse era o motivo do entusiasmo dele em me mandar para Trancoso. Ele estava me fazendo de mula. De novo. Tentei argumentar, ainda que debilmente. A mulher era casada. O cara a adorava, porque ele ia se meter nessa história? — Só exercício, ele disse. — Exercício? — É pra não perder a forma, sabe. Eu estou com a Maria Clara há 25 anos… — A idade da moça, né, Mário? Eu interrompi. — Não tem nada disso. Eu não quero nada com ela. Imagina. Mora lá em cima, eu cá em baixo. É só brincadeira. Ela me falou que tinha loucura de conhecer o Rio, aí coloquei uns cartões postais pra ela no envelope. É só brincadeira. — E você espera resposta? — Não. — Não deixo o teu telefone?

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— Não. Relaxa. Isso não é uma cantada. E com uma cara sacana, arrematou: — É só uma lembrança. Aí eu não entendi nada mesmo. Mas ele fez parecer uma coisa inocente. E eu, mesmo não querendo, peguei o envelope. Lá ia eu ter que conversar com alguém e com uma mulher maluca que larga tudo por um cara com o dobro da idade dela, para estragar a pele no sol, sabe Deus em que condições e que, ainda por cima, adora cor de rosa! Tentei não me preocupar, mas cheguei naquela praia já constrangida. Pensei em simplesmente não entregar nada, dizer que entreguei e que ela abriu e perguntou quem era esse Seu Mário dando um muxoxo e jogando os cartões no lixo. Depois pensei em dizer que ela viu os cartões, adorou, lembrou dele e mandou um abraço. Depois pensei em dizer que tinha esquecido. Depois pensei em várias versões do que aconteceria se ela abrisse o envelope, sem nenhuma intenção de entregar-lhe o dito cujo. O meu constrangimento era justificado. A mulher era casada! O marido estava ali do lado! Ela não ia lembrar do Mário, ora bolas. Quantos turistas devem dizer gracinhas para a moça todos os dias? Se ela lembrasse, podia lembrar de algum olhar maldoso ou uma piadinha de duplo sentido que o Mário era mestre em dizer. E aí eu ia estar ali como cúmplice do cara sem graça e inconveniente. Cúmplice. A palavra me incomodava e me deixou vendida antes mesmo de entrar no barco e já sorrir para Túlio, um cara bonito, sem dúvida, apesar do rosto marcado pelo sol, o verde das íris boiando no meio de olhos vermelhos típicos de ressaca. Grande. E agressivo, constato, apesar da viagem ter

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apenas começado. A imagem cantarolante que meus amigos me descreveram devia ser um recurso profissional dedicado apenas aos dias de barco cheio. Hoje, ele dá ordens a Glaucyara a torto e a direito, como se ela fosse empregada dele. A moça é bonita, sim, mas nada deslumbrante como a descrição do Mário. Uma moça magra, cabelos compridos e louros, as pontas ressecadas. A pele queimada já coberta de sardas. Usa um vestido longo de algodão cintado abaixo dos seios fartos soltos dentro do vestido. Parece triste. Tenho medo de entregar o pacote e adio o mais que posso. O barco para junto a uma ilha, os poucos passageiros mergulham. Eu fico e espero que Túlio também mergulhe para que eu possa falar com Glaucyara a sós. Ele não sai. Bebe. Me traz uma caipirinha e puxa assunto. A caipirinha é deliciosa e ele tem um sorriso bonito. Chama Glaucyara e manda que ela traga queijo para nós enquanto conta como e por que deixou a vida de pescador para fazer transporte de turismo. É um bronco, só fala do dinheiro que ganha e do que ganhava pescando (Maria Clara não deve ter trocado dois monossílabos com ele ou não teria ficado tão impressionada. Ou então está todo mundo sofrendo uma gigantesca crise de meia idade) Não falo nada. Mexo de leve com a cabeça e sorrio de vez em quando. Tensa. Glaucyara traz o queijo e nossos olhos se encontram. E o que vejo é uma Cinderela arrependida. E agora? O envelope na bolsa só falta gritar. Mas quem grita agora é Túlio, grita com Glaucyara porque as frutas ainda não estão na mesa e as pessoas voltarão ao barco em instantes e vão querer comer. Ele desce e sobe trazendo as frutas. O cara é perigoso, eu pensei. Aproveitando que o traba-

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lho distrai os dois, resolvo dar uma olhada nos cartões que Mário mandou. Rasgo o envelope, porque já sei que não o entregarei a ela. Dentro do envelope não há nenhum cartão postal. Uma passagem de avião para o Rio para daqui a três semanas, um cheque de mil reais, o número de celular de Mário e o endereço de um hotel na Praia do Flamengo. E um poema de Vinícius, com que Mário pretende competir com Caymmi. Não acredito no que vejo e imagino vários cenários. A moça abrindo o envelope e me dizendo que não está entendendo nada e não sabe quem é Mário. A moça sendo surpreendida por Túlio que entende tudo e espanca a coitada, que não fez nada, por causa de Mário. Os dois se unem contra mim como se eu estivesse aliciando a moça. Ai, socorro. Pego o conteúdo do envelope e vou mergulhando na água até que cada papel se desmanche e afunde ou boie, sob o olhar curioso de um menino de uns quatro anos. Me sinto ao mesmo tempo culpada e aliviada. Só preciso pensar como dizer ao Mário que a moça rasgou tudo bem na minha frente e me deu um sermão sobre como ama aquele homem do mar e sua vida e do atrevimento dele e, bom, preciso pensar bem, não vejo uma moça de vinte e cinco anos falando em atrevimento — qual seria mesmo a palavra que ela usaria? Estou pensando nisso e vejo a silhueta de Glaucyara na proa. O vestido de algodão e o vento desenham a silhueta de um corpo esguio com a característica protuberância abdominal das grávidas de pouco tempo. Me enterneço. Por ela e pela minha decisão de destruir a “lembrancinha” de Mário. Mário inconsequente. Imagine

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essa moça com esse marido desequilibrado. E grávida, meu Deus! Quando nossos olhos se encontram eu a chamo com um aceno e ela vem, humilde. — De quanto tempo você está? E, enquanto pergunto, avalio a correção da minha entonação. Surpresa, ela começa a girar a cabeça de um lado para o outro querendo obviamente esconder do marido a resposta: — Quase três meses, como soube? Por favor, não fale nada. Ele não sabe. — E porque ele ainda não sabe? — Ele não pode ter filhos. Se souber que o traí me espanca e é capaz de me matar. — Por que você o traiu se sabe que ele é capaz de tamanha violência? — Foi com um turista. Fez um passeio com a esposa e uns amigos. Voltou outro dia sozinho e me achou na praia arrumando as cordas. Foi gentil. Me encontrei com ele à noite na praia mesmo. Túlio estava bêbado. Foi só uma vez. Tive medo, mas ele foi muito insistente. — E nunca mais você o viu. — É. Mas me deu o número do celular e nos falamos algumas vezes. Me disse que mandaria uma passagem para eu fugir daqui. Para o Rio. Estou esperando. Saio daqui sem o Túlio saber. Mas espero que não demore. Daqui a pouco vai dar para perceber. Balancei a cabeça afirmativamente enquanto via pedaços do bilhete aéreo boiando em volta do barco. Por que, raios, o Mário faz essas coisas comigo?

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Por q uat r o estaç ões

Por conta do horário de verão, ainda estava escuro quando Eliza saiu do metrô na Praça Afonso Pena e seguiu a pé pela Campos Sales até a Haddock Lobo, onde a fila na porta da Igreja de São Sebastião já era grande. Como ela, uma multidão de fiéis iria lotar a igreja naquela sexta feira de janeiro, a primeira do ano, a fim de receber a tradicional bênção dos Capuchinhos. Dentro da bolsa levava o telefone celular do marido. Era bom levar um objeto que permanecesse junto da pessoa a ser abençoada e não havia nada que ficasse mais junto do marido do que o telefone celular. E ele sempre atendia as ligações, mesmo no meio de uma grande discussão. As coisas não andavam de todo mal entre eles. Também não andavam bem. Viviam numa montanha russa onde alternavam momentos de muita tensão com outros de grande ternura. O que a enlouquecia era justamente não entender onde um momento terminava e outro começava. Às vezes uma frase à toa, dita até por galhofa. Às vezes uma reclamação. Às vezes um pedido. O marido, um sujeito normalmente

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bem-humorado, carinhoso e conhecido brincalhão, virava o tempo e o céu azul do relacionamento se cobria de nuvens escuras [e choviam impropérios e xingamentos como se o apocalipse do relacionamento tivesse chegado sem profecias, — o Juízo Final sem tempo para arrependimentos.] Por isso, naquela manhã cedinho, ela se arriscara a mais uma tempestade. Fingindo ter se enganado pegou o celular dele e rumou para a Igreja dos Capuchinhos a fim de tentar que a água benta encantasse o telefone e que esse passasse a transmitir, além das ondas eletromagnéticas, um pouco de paciência e tranquilidade ao espírito de ambos. Não demorou muito e já estava próxima ao padre. A sua volta, as pessoas, na maioria mulheres, levantavam as mãos que seguravam carteiras de trabalho, cadernetas de vacinação infantil, radiografias, cartas, fotografias, e ela, muito sem graça, ergueu o telefone em direção à chuva de água benta. O padre mergulhou um enorme pincel na bacia e aspergiu a água no momento em que o telefone começou a tocar chamando a atenção das pessoas ao redor. Sem graça, atendeu o aparelho molhado e explicou ao marido que havia se enganado. Do outro lado da linha ele perguntou se ela iria demorar. Estava com saudades e sugeriu que tomassem juntos o café da manhã. Eliza se ajoelhou e se benzeu três vezes. A água benta já começava a funcionar. O carnaval encontrou o casal apaixonado descendo uma ladeira ao som da bateria do Suvaco de Cristo. Como sempre, o prazer dele com o carnaval se estendia do alto da Rua Faro até o bar Jóia, onde, depois que o bloco saía, ele con-


tinuava bebendo até tarde. Eliza gostava do bloco e queria ir atrás, mas que fazer? No ano anterior ela insistira e ele resolvera decidira que devia haver algum motivo para isto. Havia alguém interessante? Como era o nome do sujeito? E, aliás, aquele grandalhão, fantasiado de Chapolim, não era o Arnaldo, ex-namorado dela? Era atrás dele que ela queria ir? E por aí foi. Esse evento no sábado antes do carnaval havia azedado toda a Quaresma e só terminara no domingo de Páscoa, quando ele a presenteou com uma enorme caixa de bombons como se nada houvesse acontecido. Por isso, agora ela nada sugeria no carnaval, apenas tratava de aproveitar a folia da forma que pudesse. Dessa vez, estranhamente, ele quis ir atrás do cordão. Arrastaram os pés até a Lopes Quintas e pararam, esperando a bateria. Ela não quis se preocupar, mas achou que a folia dele morreu ali mesmo quando a fadinha de azul claro (de onde é que ela a conhecia?) passou agarrada ao marombeiro tatuado, um jovem atarracado dispensando fantasias, ele mesmo uma alegoria de Popeye depois do espinafre. Março, chovendo ou não, sempre aumentava a distância entre eles. Professores, os dois se enfronhavam nas aulas, reuniões de departamento, teses, fazendo a roda girar mais rápido, confundindo o prazo de duração das crises e da bonança. Ele era um professor universitário com um lote de alunas, todas jovens e lindas, a segui-lo, o que somava às angústias de Eliza um leque de sentimentos: ciúmes, insegurança, medo de ser ridícula, medo de ele ser ridículo. Apenas um pouco mais velho que ela, o marido acenava com uma ve-

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lhice inconformada, fosse pelo gosto pelas piadas bobas de cunho sexual, fosse pela preocupação excessiva com a queda dos (ainda fartos) cabelos. A verdade é que era um belo homem, em boa forma graças ao futebol semanal e ao cuidado com a alimentação. E foi por ela comentar a vaidade dele que, de novo, aconteceu. Eliza observou que ele ficava mais bonito às quintas-feiras de manhã, quando iam juntos para a PUC. Languidamente perguntou se era por causa da companhia dela. Ou seria de outra? E só. E o bastante. Com uma freada escandalosa ele parou em plena Marques de São Vicente, atrapalhando o tráfego, e mandou-a descer. Envergonhada, fingiu que descera para entrar no primeiro prédio. Não podia entrar. Tinha porteiro e grade. Fingiu que esperava alguém. Sentada na escada do prédio, viu o porteiro, de longe, sinalizar para que se levantasse. Mas, afinal, qual era o problema de sentar na escada? Não havia movimento, não estava no caminho de ninguém. Cheia de melancolia, viu o lixeiro na calçada pegar a lixeira verde, olhar lá dentro, e derrubar todo o conteúdo de pilhas e baterias no caminhão basculante com o lixo comum. Levantou-se, enraivecida: “Sociedade medíocre. Regras demais, resultados de menos.” Na sala do departamento, já tinha um aluno à espera. Um pós-adolescente procurando orientação para o trabalho de graduação. Eles chegam aqui cada vez mais cedo, ela pensou. E mais arrogantes, teve tempo de perceber antes do “bom dia”. Cumprimentaram-se, e ele foi logo explicando porque

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havia escolhido Eliza. O blá blá blá do garoto foi confirmando o que já era esperado. Era mais um idiotinha fascinado pelos jargões da hora. E Eliza era da geração pré-domínio do “marketing”. Para ela, “gestão” era “direção”, o “diferencial” era “destaque” e “provocação” — por Deus — era motivo para briga. Novamente divagou sobre a mediocridade reinante. Percebeu que o menino encerrara a falação, posto que sorria. E que sorriso lindo, pensou. Fosse ela, um homem e ele, uma menina, teria dito: “Não, não fala nada, só sorri. Sorri assim, que eu te oriento toda”. Mas ela era uma mulher, e quarentona, e casada. Lembrou de um conto de Josué Montello que lera aos 12 anos, em que uma coroa enxuta, deprimida pelo casamento da filha se envolve com um universitário que podia ser seu filho. Lembrou, primeiro, do que a história tinha de excitante e de humano. E, depois, lembrou do final. A personagem morta atropelada por um ônibus no momento exato em que resolve se separar do marido e ir para a Europa com o jovem amante. Não… Melhor se concentrar no trabalho. Sua chance de ir para a Europa era mínima. Já a chance de ser atropelada… Achou esse pensamento pouco glamouroso e devolveu o sorriso. Dentro da sua cabeça ainda ecoavam as desculpas de praxe – estava ocupada, tinha muitos orientandos, o assunto não era sua especialidade, ela se sentia no dever de indicar o fulano – enquanto se ouvia elogiando a originalidade do trabalho e já sugerindo a bibliografia.

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Lembrou do marido ranzinza e, sem culpa nenhuma, reforçou a simpatia. As semanas passaram rápido até o primeiro feriado prolongado. A semana santa chegou sepultando os planos de reviver o início do namoro nas ladeiras de Ouro Preto. Ficaram mesmo no Rio aproveitando o veranico em Ipanema. Reencontraram amigos antigos e isso bastou para deixar o marido de bom humor e mais amoroso, e ela se contentou mesmo com as ladeiras de Santa Teresa, renovando, como a ressurreição anual do Cristo, a certeza de que ainda estavam juntos e tudo, afinal, podia entrar nos trilhos. Esse clima foi esquentando a medida que tempo passava. E eles passaram a ficar mais tempo juntos, lembrando as boas lembranças e até, com ironia, as lembranças ruins foram promovidas a testemunhas de que o verdadeiro amor tudo supera. A temperatura começou a esfriar já era junho, mês do aniversário de casamento. Na noite “de festa”, ele foi recebido de forma especial. Um jantar bacana, vinho na medida, velas, aquela música, roupa nova. Ele foi chegando e descalçando os sapatos. Olhou para a mesa, abraçou-a suavemente e disse que a mesa estava linda, ela estava linda… Mas dava para eles jantarem logo, porque às nove horas começava o jogo e ele não podia perder? Diante do olhar decepcionado de Eliza, ele novamente a abraçou e disse: “Ah, não faz drama, vai, podia ser pior. Eu podia ter conseguido o ingresso!” Mas, Eliza não se abalou. Conhecia seu homem. Ele não ligava para essas convenções burguesas, aliás, nem ela mes-

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ma. Orgulhavam-se de não frequentar clubes ou confrarias como as que alguns amigos mantinham, do tipo: a turma dos maridos que cozinham aos sábados, a turma dos que jogam pôquer nas segundas quintas feiras do mês e coisas assim. As pequenas férias de julho passaram sem maiores problemas. Convidado a dar umas consultorias no sul, o marido ficou quinze dias fora. Nos dias em que a casa era só dela, Eliza se sentia mais confortável dentro da própria pele. A pequena cobertura de casal sem filhos na Senador Vergueiro era agradável e prática. Quando Eliza se deitava no terraço conseguia, até, ver estrelas, ignorando as luzes dos edifícios mais altos, e se sentir isolada do mundo, abstraindo as freadas dos ônibus e as buzinas dos carros. Nessas horas, Eliza era pura abstração. O marido voltou no início de agosto e, como era mês do desgosto, voltou azedo. Que o sul é que era bom de morar, o Rio estava essa desgraça, com esse povinho que não sabia votar, jogava o lixo no chão, mijava nas praças e tinha cachorros em apartamentos, cachorros demais, que latiam demais, sujavam as calçadas demais, o Rio de Janeiro estava demais! Ela não o reconheceu. Logo ele que sempre defendera a cidade e os cariocas, o bom-humor, o savoir-faire, o dolce far niente, qualquer argumento para pleitear o direito de viver na cidade que a cada dia ficava menor, espremida entre as zonas de risco. E, agora, ela era culpada, ela nunca quisera nem pensar em sair do Rio, ela limitara as opções deles. Num surto quase esquizofrênico, ele colocava Eliza numa situação de poder que ela jamais pudera experimentar na relação. Ela balbuciou a carreira dele, a universidade, o

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inusitado daquele desejo que ele alardeava estar havia tanto tempo reprimido. O olhar dele congelou a discussão por mais ou menos um mês, período suficiente para o frio de setembro trazer coisas comuns ao casal, como o mesmo edredom, o desejo de um vinho tinto e um certo jeito de olhar a chuva pela janela, como quem sofre por amor. Lentamente, foram se reaproximando. Veio o festival de cinema, e tantos filmes, e tantas mesas de bar, e eles sempre gostando igual dos mesmos filmes e dos mesmos diretores, as mesmas cenas. É verdade que ele sempre entendendo mais do que ela, a intenção daquele corte, a escolha deliberada daquela atriz, tinha que ser, não era possível outra, o physique du rôle, e a música de fundo, não percebeu? E a cor, não reparou? Eliza foi deslizando de volta ao conhecido terreno da relação. Desta vez, porém, a sensação era mais complexa. Um pouco do alívio de sempre, pela constatação de que eram, de novo, um casal, e um pouco de incômodo, como se fizesse falta uma explicação para o gradativo esquecimento dele das maravilhas das cidades do sul do país e o gradativo esquecimento dela da dor e da solidão das últimas semanas. Dentro dela, em algum lugar que devia ser o pâncreas, que ela nunca soube onde ficava, estava nascendo um tumor. Não, não era físico, era um bolo, que ela sabia como esfarelar até não ser percebido, mas que, sem saber por que, sentia certa vontade de fermentar. O feriado da padroeira emendou com o dia dos mestres e outubro presenteou-os com quase uma semana inteira sem compromissos com a universidade. Apesar das tarefas extra-classe que se acumulavam, Eliza se rendeu ao apelo

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da sua consciência e se deixou divagar sobre seus desejos. Livros sobre a mesa, escondida atrás do laptop, aproveitava para observar o marido dentro de casa. Dono do pedaço, ele circulava com desenvoltura entre a televisão, o som, o computador, o jornal, a geladeira e longos períodos de contemplação no terraço. Ela ficou imaginando aquela casa sem ele, sem a papelada espalhada, sem os copos sujos que pareciam brotar do chão atrás das poltronas. Mas, também, sem as plantas, porque era ele quem cuidava das plantas. E sem o cheiro dele, que era bom. Amoleceu. Aproveitou que ele estava ali e namoraram como há tempos não faziam. No dia de Finados teve vontade de enterrá-lo depois de atender o telefonema de uma mulher com sotaque de gaúcha com quem ele falou por vários minutos trocando palavras de duplo sentido que a deixaram infeliz, dividida, sem saber se estava paranoica ou sendo feita de trouxa. Ele percebeu o ciúme, achou divertido e, reafirmando que o casamento deles era indestrutível, tornou-se mais e mais atencioso. A correria característica do fim de ano não dava muito espaço para dúvidas. Há anos que, para facilitar as negociações, o Natal era na casa dos pais dela e o Ano Novo na casa da mãe dele. Viúva, a sogra conseguia, com uma dose precisa de chantagem emocional, reunir as quatro filhas e o único filho homem em sua casa. Com os filhos vinham os netos, os primos e parentes mais distantes. A grande festa, que contrastava com a simplicidade da festa de Natal, ocupava o tempo e alma do marido. Sendo o único filho homem, e sem filhos, sobrava para ele, e, consequentemente, para ela, a parte pesada da festa: a logística das compras, bebidas, gelo, o café da

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manhã do dia seguinte, e preparar o apartamento de quatro quartos em Copacabana para abrigar os que não conseguiriam voltar para casa. Esse ano, o marido passou uma semana inteira dividido entre Flamengo e Copacabana. No dia da festa ele fez questão de conferir cada detalhe e de pensar nos convidados individualmente, lembrando a comida preferida de cada um e não deixando nenhum copo vazio. Ah, como Eliza conhecia aqueles movimentos… O que era novo, de verdade, era um certo carinho que sentia por ele nesse momento. O bolo dentro dela começou a solar, um cozimento desigual, umas partes duras e o miolo molengo. Depois de tantos anos, ela sabia, ia ser difícil começar uma vida sem ele. Por outro lado ansiava por uma autonomia que não tinha sido capaz de conquistar dentro do casamento. Ele era forte demais, e decidia, sempre, o rumo que a vida dos dois tomava, desde o destino das férias ao apartamento que comprariam e, seria ele, ela sabia, quem decidiria a hora de acabar. Entre um bolinho de bacalhau e uma rabanada pensou em todas as vezes que já participara desse espetáculo. Eliza queria fazer diferente. Queria não ter que ir para a praia, não ter que ver os fogos, não ter que abraçar as cunhadas e a sogra e as sogras das cunhadas. Queria estar em lugar no meio do mato onde não houvesse sinal algum de que o ano mudou. Talvez assim alguma coisa mudasse. Talvez as mudanças pudessem ser simples como virar a folha do calendário. Como viramos todos os outros meses do ano sem estardalhaço. Mas ele não admitiria sequer pensar em estar longe dos seus. E Eliza era um dos seus.

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O ritual se cumpriu, mais uma vez, como devia ser. A contagem regressiva, os primeiros estouros. Eliza correspondeu ao doce beijo que se seguiu ao brinde da meia-noite, e languidamente, cabeça apoiada no ombro dele, olhou para o alto, para os fogos que anunciavam um novo ano, enquanto comia, uma a uma, as sete uvas verdes que lhe davam direito a sete pedidos. A cada uva fez o mesmo pedido: que ele se apaixonasse por outra. E que fosse uma paixão visceral, daquelas que fazem um homem perder a cabeça e mudar toda a vida. Mas que fosse logo. O carnaval naquele ano era no início de fevereiro, não ia dar tempo. Mas na festa junina, com vestido de caipira, ela pretendia resolver, sozinha, a hora de sair e a hora de voltar para casa.

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E u e m e u pa i

Naquele tempo, éramos meu pai e eu. E minha mãe. Quando ele não estava em casa, eu estava sozinha, mas quando ele chegava, a casa ficava menor. Quase sempre ele ficava na sala, na chaise longue junto à janela, ou no escritório que era só dele, sob a luz da luminária de mesa e sobre a máquina de escrever. Dois dedos apenas. Um matraquear contínuo seguido de longos descansos quando girava a cadeira para a janela e fumava, pensando. Palavras dentro de casa, poucas. Nos livros, nos papéis dentro da cesta debaixo da mesa, muitas. Meu pai sabia muitas coisas. Até meus onze anos cumpria estritamente o esperado de um pai, subsistência, presentes de natal, viagens no verão. No verão as palavras ficavam mais frequentes. No verão em que completei onze anos, pareceu lembrar que eu existia, quando disse à minha mãe me apontando com o queixo: — Ela não tem nenhuma capacidade de abstração. Fiquei suspensa no ar ao perceber que ele me observava. Que considerava as minhas capacidades e, uma delas, ele já

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avaliara que eu não tinha: abstração. Eu não sabia o que significava, mas me senti imediatamente frágil e merecedora de colo e carinho. Eu não era capaz de uma coisa que tinha um nome tão vibrante que deveria abrir caminhos na vida das pessoas. Acostumada que estava, não perguntei. Anotei e na volta para casa fui ao dicionário. Eu não tinha “capacidade de separar mentalmente um ou mais elementos de uma totalidade complexa”. Anotei nas últimas páginas do meu caderno de matemática; eu era muito boa em Matemática. Passei a observar que meu pai, se não falava muito comigo, muitas vezes falava de mim com minha mãe. E quase sempre essas conversas vinham coalhadas de nomes novos que eu, na minha falta de capacidade de abstração, ficava sem entender. Passei a anotar os nomes e suas definições, muitas vezes curiosa, outras, assustada. Uma vez anotei: “complexo: ‘que abrange e ou encerra muitos elementos ou partes de’”. De novo a questão das partes, do todo e dos complexos. Só entendia que, em mim, faltava algo que eu não seria capaz de aprender. A adolescência traz problemas e dores próprios, com ou sem pais amorosos, e, para mim não foi mais fácil. De não entendimento em desentendimento, fui preenchendo as folhas do caderno que acabou e desisti de entender ou abstrair. Aos quatorze, eu praticamente não parava em casa, escola, natação, as amigas. Com as amigas escutei de uma delas: — Vem ver a minha mãe com o namorado novo. Fomos espiá-los, cheias de curiosidade. Avistamos o casal. A mulher, feliz, prendendo e soltando os cabelos. Com ela, um sujeito alto e forte, um velho conhecido: meu pai. Só

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o sorriso eu não conhecia. Custou a notar a minha presença, como sempre. Primeiro brincou com a pretensa enteada e só então me viu. Deve ter sido a primeira vez que meu pai me encarou. Devido a sua enorme capacidade de abstração, não deu bandeira nenhuma. Eu quase não respirava, mas intuitivamente sabia o que fazer. Fui disfarçando com uma dor de cabeça e saí dali rapidamente. À noite, quando ele chegou, eu estava trancada no quarto simulando um resfriado e dormi sem jantar. Meu pai nunca tocou no assunto. Eu também não. Gradualmente ele foi aumentando o nosso contato, que eu julguei ser a tentativa de estabelecer cumplicidade. Na mesa das refeições, me fazia perguntas sobre o meu dia e, agora, eu podia ver que uma de suas íris era um pouco mais esverdeada que a outra. Também passei a vê-lo conversando com minha mãe sobre mim, e pude perceber que ela se preocupava cada vez mais. Ela passou a me perguntar coisas sobre a minha saúde e se eu dormia bem, se sonhava, se me acontecia de confundir sonho com realidade, se eu me esquecia das coisas. Percebi a intenção de meu pai. A descoberta, longe de me abater, me deixou mais confiante. Meu pai precisava se prevenir de mim, afinal, ele não desistira do romance. Um dia, na rua com minha mãe, eu os vejo sentados num café envidraçado. Convido minha mãe para um lanche. Ao abrir a porta ela os vê: as mãos dadas sobre a mesa. Para por rápidos instantes, depois vai até a mesa e diz apenas: — Walter! E girando nos calcanhares sai porta a fora. Eu espero um

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pouco para que ele se conscientize da minha presença. E saio também. Na rua, minha mãe já estava longe. Eu resolvo andar e ando todo o resto da tarde. Chego em casa, na hora do jantar, ansiosa pelo desfecho da situação. Encontro minha mãe na cozinha. Ela anuncia a sopa de ervilhas do jantar. Meu pai chega e jantamos. Como antes, eles conversam pouco entre si e nada comigo. Numa espécie de revelação, compreendo que aquelas pessoas conhecem suas limitações, e que na impossibilidade de viverem uma gratificante totalidade complexa, esquartejam a vida em cotidianos pedaços palatáveis que lhes permita lidar com a própria frustração e covardia. A possibilidade de alguém de fora ser atingido faz parte do risco que esse outro assume ou não. Em outras palavras, eu estava abstraindo. Depois desse dia, nunca mais a minha pupila se conectou novamente com a pupila de meu pai. Nunca mais ele me endereçou qualquer crítica ou provocação, seja diretamente ou por intermédio da mãe. Ele sabia que eu tinha aprendido muita coisa. Joguei fora o caderno de matemática antigo. E foi nessa época que começou um novo tempo. Nesse novo tempo, éramos eu e meu pai.

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S ut i le zas

Sutileza nunca foi o meu forte. Foi a Teresa que disse. Ela não disse, mas, no início, eu não fui é perspicaz. Não fui capaz de observar as pequenas bandeiras que a Teresa deu. Nos conhecemos na entrevista de estágio. Eu era engenheiro há vinte e cinco anos, casado há vinte, e ela só tinha vinte e dois. Bonita. Gostosa. Me deu bola. Eu não pensei duas vezes. Devia ter pensado. “Que coincidência”, você faz aniversário no mesmo dia que minha filha mais nova”, eu disse. “Ela tem sete anos”. “Nossa, há sete anos, eu estava fazendo a minha festa de quinze…” Ela disse isso com a naturalidade que os jovens têm de achar que já viveram muito. E rimos. Ela, feliz como uma debutante. Tive logo certeza que ela me escolhera para a valsa principal. E, de fato, dancei. Em quatro meses, deixei a Heloisa, já gasta, doze anos mais nova que eu, pela Teresa, doze anos mais jovem que ela. Deixei a casa, as duas filhas, o cachorro e o carro. Fui morar num apart-hotel, com mordomias e sem compromissos.

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Rejuvenesci. Passei a malhar. Desfilei a Teresa pelas mesas dos amigos invejosos, imaginando os pensamentos libidinosos que ela certamente provocava. Mas não admitia nenhuma pilhéria. Eu estava completamente apaixonado por ela e fiz exatamente como fiz no meu começo com a Heloísa, entreguei minha história nas mãos dela. Se não podia garantir o futuro, entreguei todo o meu passado. Nós conversávamos muito. Nosso melhor programa era ficar em casa, um copo de vinho, batendo papo. Geralmente, eu falava mais. Mais vivido. Mais experiente. Uma vida com alguns altos e baixos. Nenhum momento muito alto e nem muito baixo. Mas aos ouvidos da jovem Teresa, a minha vida mediana soava como um filme épico, cheio de lances, intrigas, riscos e, claro, com muitas oportunidades de eu me mostrar capaz de resolver os problemas de forma inteligente e madura, como uma jovem mulher espera de um homem de verdade. Muitas vezes eu a adormecia lendo trechos dos meus livros favoritos. Comungávamos um fervor quase religioso pela literatura e pelo sabor das palavras. Eu tinha me esquecido que as palavras também provocam dor. Nessa história, na verdade, a dor veio do uso que a Teresa fez das minhas palavras. Vou chegar lá. Juntei minhas economias e comprei um apartamento para nós. A Teresa tinha medo de morar numa casa. Abri mão de ter um cachorro. Ela não gostava do cheiro. Não gostava dos pelos. Não gostava mesmo de bichos. Tinha que levar na rua, no veterinário. “E depois”, ela disse, “cachorro em apartamento não é

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legal”. O condomínio permitia e eu levaria o bicho a passear todo dia, mas abri mão. O apartamento era amplo, ensolarado e podíamos passear, juntos, pela Lagoa, pelo menos nos fins de semana. Num sábado, que não consigo precisar a data, mas do qual só esqueci a data, encontramos o Fernandinho correndo. Antes de me ver, ele viu a Teresa e percebi que diminuiu a velocidade. O Fernandinho era diretor de uma grande construtora. Daquele tipo de engenheiro, que sobe na hierarquia da empresa exatamente porque não sabe nada de engenharia, mas sabe tudo de negócios. O Fernandinho era bom em qualquer negócio. Negócio de mulher, então, era com ele mesmo. Farejava uma aventura de longe, tinha sensibilidade para mulher disponível. Foi isso que me incomodou quando percebi os olhos de raposa brilhando. Raposa já meio velha, mas raposa. Eu não o via há uns cinco anos, mais ou menos, mas continuava em excelente forma física, bronzeado, bem disposto. Na mão segurava uma coleira, e, na ponta da coleira um rottweiler. Um cachorro enorme, que o Fernandinho não era homem de ter cachorro pequeno. Quando me viu, fez um movimento rápido levando os olhos para Teresa e depois para mim, e de novo para a Teresa e, então, vagarosamente para mim. Parecia, de alguma forma, surpreso. O que não me agradou, também. Paramos. “E aí? Quanto tempo..”, essas coisas. Na parte interna da minha nuca, nascia um sentimento de que ele nem pararia a corrida, me acenando de longe, se não fosse a Teresa, ali, do meu lado.

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Não só parou, como esticou o assunto, lembrou noitadas juvenis, o tempo da faculdade, essas coisas. “Muito prazer”, ele disse. E ela, “Teresa”. E ele: “Fernando”. “Fernandinho”, eu emendei, que também não ia deixar barato. Ele fez que se esqueceu dela. E eu também, que eu não ia encher a bola dela. Fiquei meio de lado, e quando me voltei a fim de abraçá-la e sair dali, me deparei com uma cena insólita. A Teresa agachada, acarinhando aquela fera de quatro patas, cara a cara como quem vai beijar: “É fêmea, não é?” ela perguntou sorrindo. E o Fernandinho: “É”. “Então te cuida”, eu tive vontade de dizer, mas o Fernandinho não precisava desses conselhos. Ele insistiu num reencontro, gravamos os números nos celulares e continuamos a caminhada. Eu, pensando na Teresa e no seu desinteresse por cachorros. Aquilo era um rottweiler! E a Teresa pensando… Eu não quero pensar no que ela estava pensando. E calou-se por alguns dias. Depois retornou daquela ausência. Porém, comecei a sentir um desconforto crescente. Até ali, eu era, para a Teresa, um homem completo. A primeira falta que ela sentiu em mim foi de sutileza: “Você não sabe mesmo o que é ser sutil, não é?” Não me lembro nem qual era o assunto, mas a frase caiu na mesa como um chopp derramado e eu fiquei com cara de pano de chão. Engoli a indelicadeza dela com dois goles gelados. Eu já tinha ouvido coisas até piores de outras mulheres, mas eu


dera motivo e não eram a minha esposa. Eu não dava motivos para minhas esposas me tratarem mal. As outras, sim. Sim, porque eu tivera outras. Durante o casamento com a Heloísa. E o pior, é que eu contara tudo para a Teresa. Ela parecera não prestar atenção. Mas, agora, posso dizer que ela não só registrou como catalogou todas as minhas aventuras em ordem cronológica e também por intensidade e tempo de duração. E assim, começou algo que eu usei chamar de Pequena história comentada de meus delitos. Cada um. Cada pequeno erro era um capítulo. Ela lembrava datas, nomes, lugares, sensações que eu teria descrito. O que antes ela escutara divertida, agora devolvia rancorosa. Eu não era confiável. Eu costumava enganar a Heloisa, os amigos, e porque não ela? Depois das histórias antigas, ela começou a pontuar as minhas falas recentes. Eu tinha que tomar cuidado com tudo que dissesse. Comecei a falar cada vez menos. De casa para o trabalho, depois para casa. Parei de malhar. Ela, por sua vez, começou a ficar preocupada com o próprio corpo. Eu vi que estava indo para um mau caminho, quando ela engavetou o diploma de Engenharia e entrou na Faculdade de Direito. Teresa descobrira um novo uso para as palavras. Ia acabar promotora e treinava lá em casa. Fora de casa, não sei o que andava treinando. Sei que passou a correr, na Lagoa, todo santo dia. Depois faltaram em mim, segundo a Teresa, coerência e bom senso. Eu pensei que podia correr junto com ela, nos dias em que os compromissos com o trabalho me permitissem.

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“Correr, como assim, você correr? Você sempre detestou correr. E o seu joelho ferrado? E com essa idade, sem fazer check-up? Ninguém começa a correr na sua idade de uma hora para outra. E depois, é a hora que eu tenho para ficar sozinha.” É. Pelo visto, eu também estava ficando inconveniente. Depois de um tempo, resolvi que precisava abrir fogo, se quisesse conservar aquele amor que já fora tão cheio de poesia e ameaçava virar um romance ruim, excessivo nos adjetivos e esvaziado de conteúdo. Fiz reservas numa pousada, Araras, tipo lua de mel. Ela se deixou levar e passou os dias correndo e brincando com os cachorros da pousada. À noite, eu ficava sozinho porque ela dormia cedo. Fresquinho assim, lhe dava sono. O que eu podia fazer para ajeitar as coisas? Vi que não ia dar para consertar quando ela trancou a Faculdade de Direito e foi fazer Psicologia. Queria ser psicanalista. “Não vai prestar”, pensei. A Teresa começou a psicanalisar. Primeiro as minhas filhas, depois o meu passado. A Heloísa, coitada. E todas as minhas histórias, aquelas que eu contei lá atrás, com o copo de vinho na mão e enfeitadas com a minha empáfia de macho na hora do “’tô agradando, vou continuar”. E depois, é claro, resolveu psicanalisar a relação. Aí, eu entreguei os pontos. Voltei para o apart-hotel. Envelheci. Passei a andar na Lagoa, só pela esperança de vê-la correr. E um dia, vi. Primeiro vi o cachorro, o rottweiler, e na outra ponta da coleira, a

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Teresa. O frugal café da manhã embolou no estômago com o peso de uma feijoada. Eram fêmeas, né? Duas cachorras, ligadas pela mesma coleira. Fui pro nosso apartamento. Vomitei o café da manhã. Ela chegou, suada. Perguntei pela cadela. Vomitei os adjetivos. Vomitei a raiva, o tempo perdido, as tentativas, a traição. Ela nem chorou. Altiva, psicanalisou. Depois, arrumou as malas, muitas malas, e meus livros preferidos, que ainda achou mais um jeito de me irritar, a maldita. E foi bater na porta do Fernandinho. Eu fiquei ali ruminando a minha burrice, fruto da minha imensa vaidade. Depois, fui relaxando. Chamei as meninas para me ajudar na redecoração da casa e comprei um poodle, que eu não preciso de um cachorro grande. Às vezes passeava pela Lagoa e via Teresa e a cadela. E um dia, pouco tempo depois, vi o Fernandinho, no calçadão da praia, correndo com uma mulata de parar maratona. Passou correndo, e só me acenou. Estranhei, mas não era problema meu. Um domingo de tarde, enroscado com uma filha no sofá, enquanto a outra preparava um lanchinho, toca o telefone. Atendo. A Teresa. Precisava conversar, tudo muito estranho… “Somos ainda tão íntimos, não é?” disse ela com a voz trêmula. O Fernando, ela não sabia bem, não conseguia conhecê-lo. Ele falava pouco dele. Ela queria uns conselhos. Ora, se eu ainda tivesse alguma conversa para ter com a Teresa, não ia ser sobre o Fernandinho. Eu lhe disse para correr um pou-

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co, umas duas voltas na Lagoa, que era bom para a ansiedade. Bateu o telefone na minha cara. Voltei a malhar. Algumas semanas depois, o Armando me conta que o Fernandinho levou a mãe dele, idosa, 80 anos e esclerosada, para morar com ele. “Um sujeito formidável, o Fernandinho”. E me contou que a senhora morava já há cinco anos numa casa de repouso, mas o filho, tomado pela certeza que o fim estava próximo, quis tê-la por perto. E aparelhara toda a casa, inclusive contratando uma enfermeira. “Meu irmão, que mulata…” Mal reconheci a Teresa ao encontrá-la na padaria. Abatida, me disse que estava morando com a mãe. Achava que o Fernandinho não deixara espaço na vida dele para ela. E além do mais, não suportara os cuidados com a sogra irascível na sua esclerose. Era quase impossível fazê-la se alimentar e, mesmo, tomar os remédios. E eu fazendo cara de surpresa: “Ué, não tinha uma enfermeira para ajudar?” A Teresa me olhou fundo e não respondeu. Virou-me as costas para sempre. Ás vezes, eu penso nele. No Fernandinho. Taí um sujeito que sabe o que é sutileza.

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E i xo d e s i m e t r i a

As dúvidas dos últimos meses desapareceram de um instante para o outro, sem aviso, que é como as dúvidas viram certezas nos casos que independem dos fatos, ou seja, nos casos em que basta a vontade de ir ser maior que a vontade de ficar e a vontade é sempre de um só mesmo. A decisão é que implica em mais de um. Se Alice tivesse que escolher um divisor de águas diria que tinha sido o instante em que Heitor começara a deslizar a lâmina pelo rosto recolhendo a espuma feita com sabonete, que na casa de Alice não tinha creme de barbear e não teria mesmo que ter, se Alice morava sozinha, se nunca fora mesmo casada ou tivera um caso mais longo desses que levam escovas e apetrechos de outro a fazer parte do banheiro de um e se tornam prova de estabilidade e esperança de continuidade. Heitor deslizava a lâmina e assobiava, e esse assobio afinado e bonito acordou em Alice a lembrança do pai, uma lembrança muito viva como se tivesse sido ontem, ela e as irmãs no banheiro da casa velha, azulejos até o teto amplificando a melodia, que ela quase podia ver. O pai sempre assobiava

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enquanto se barbeava e adorava ter ao seu lado as três filhas, as três fascinadas pela música. Às vezes ele saia correndo atrás delas com o rosto ensaboado e as agarrava esfregando o creme cheiroso contra o rosto delas, e sob o creme, a barba dura de todos os dias, machucando, marcando e gravando sob a pele a alegria do amor seguro. Nunca aprenderam a assobiar, nenhuma das três. Nunca lembraram, juntas, aqueles momentos, um pouco por pudor, um pouco por ciúmes, para ter a sensação de ser uma emoção exclusiva. Ou por medo de quebrar o encanto. Por isso ou por outro motivo qualquer, nunca falaram do assobio do pai. Se Ana ou Aída falaram entre si, Alice não sabia e não perguntaria. Agora Alice arrumava as roupas na mala e tinha pressa, e dizia a si mesma — “mistura tudo, Alice, arruma depois” — enquanto dobrava meticulosamente peça a peça, a camisola, o vestido florido, calcinhas no saco de calcinhas, meias no saco para meias, poucas, apenas para duas semanas, apenas para fazer o estrago, para criar o irreversível, acelerar os acontecimentos. O biquíni, afinal teria o mar, e então tinha que ir ao armário do banheiro pegar o protetor solar e não se conter, passar o rosto no rosto de Heitor arrastando o sabão e calando o assobio com o beijo na boca, e sentando na borda da banheira esperar que ele passasse de novo o sabão no rosto e voltasse a assobiar, menina de novo, esquecendo a mala por fazer e o dever de casa, mas não tinha mais dever de casa. Não era mais uma menina, tinha feito uma escolha, uma escolha difícil, mas ela queria estar com aquele homem, e assim seria, pelo menos no que dependesse dela, respirando fundo e se levantando da banheira ao lembrar de

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que dependia dela acabar a mala e ligar para Ana, que ligaria para Aída, mas não imediatamente. Teria que deixar baixar a surpresa, mas também não esperando muito, afinal, a responsabilidade de Ana seria sempre tentar evitar a dor de Aída, porque o que não tem mais jeito precisa ser encarado como definitivo. Ana sempre achava um jeito de dar as notícias ruins para Aída, desde a morte da cachorra, a mudança para o apartamento (porque sem o pai não dava para manter a casa tão grande). Mas Ana não acharia que era definitivo, acharia que era um capricho de Alice, mais um capricho de Alice, dessa vez fora de proporções, com os limites esgarçados. Então o assobio calou no momento em que Alice fechava a mala meticulosamente arrumada e a pousava no chão, ao lado do cachorro que ficaria com a vizinha, a mesma que atentamente conferia todas as vezes em que Heitor tocava a campainha de Alice, no início de mãos dadas com Aída e depois, cada vez mais, sozinho. Alice adiou a ligação montando na cabeça o roteiro da conversa, aparentemente buscando uma ou duas desculpas — no comportamento de Aída, na sua própria carência, mas também porque buscava um meio de garantir a imparcialidade de Ana —, para salvaguardar uma relação razoável com a irmã que era até fisicamente o equilíbrio entre as outras duas. Aída e Alice tinham a mesma altura e a mesma silhueta arredondada, enquanto Ana era alta e muito magra, a representação do fiel da balança. As duas eram temperamentais, Ana era racional, mental, a irmã do meio, de um jeito ou de outro, Ana era sempre a mesma: a segurança do palíndromo.

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Manter o equilíbrio exige atenção e força, além de muita disciplina, o que em alguns momentos deixa Ana exausta e de mau humor porque calou o som do celular, mas o aparelho continua vibrando e sacudindo a pequena mesa e a xícara sobre o pires e Ana sabe que é Aída de novo. Aída que já ligou mil vezes e encheu a secretaria eletrônica de recados até se convencer que Ana não estava em casa e recomeçar o assédio, agora pelo celular. Ana sabe que é Aída e que é Aída chorando e procurando Heitor que há tempos está estranho e que ontem saiu com a mala menor, não o esperasse até dali a duas semanas. É Aída tão parecida com a mãe, desde o nome até o romantismo. O pai não aguentou. Um dia beijou as filhas e se foi. Beijou de um jeito diferente dos outros dias. Quando chegava em casa Alice disparava pelo corredor ao ouvir o barulho da chave do pai e pulava no seu pescoço, os olhos já tão pequenos se fechando em dois simples riscos, como quando a gente olha direto para o sol. Depois, saciado da saudade de casa pelo carinho da caçula, era Aída que fazia questão de abraçá-lo e levá-lo até a sala e mostrar os poemas que lera ou até mesmo os que ousara escrever. O pai não se esquecia de Ana que esperava pacientemente pelo beijo que sabia que viria, mas que não tinha coragem de ir tomar. Ana se lembra do ultimo beijo, o pai abraçando, como sempre, primeiro Alice, depois Aída e a ela, por fim, soprando no seu ouvido que cuidasse das irmãs porque ela era, ele sabia, a mais equilibrada, e Ana foi assumindo o papel que já era seu. A novidade era Ana sentir a mesma gratidão que sentiam os escravos libertos por poder continuar trabalhando para os antigos senhores.

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Mais um recado na caixa postal e é o telefone da sala que toca estridente pondo à prova a paciência de Ana. Suspira e caminha até a sala a tempo de ouvir o recado. Não é Aída, é Alice, mas àquela hora Alice? A essa hora Alice devia estar dormindo e claro, sonhando, que não havia ninguém que sonhasse tanto quanto Alice. No café da manhã na casa antiga ela tinha sempre um sonho para contar, sonhos mirabolantes, cheios de reviravoltas, verdadeiros enredos de filmes de ação. Sonhos que prendiam a atenção do pai até Aída questionar a veracidade do sonho, a frequência, coisas que ela, Ana, também se perguntava, mas não falando nada, evitando qualquer disputa com as irmãs. E o pai diante de todos ignorando as observações de Aída dizia a Alice — “Sonhe, Alice, sonhe muito, sonhe o que quiser, que os sonhos são livres”. Ana ouve o recado que Alice está gravando na secretária e se assombra. Não vai atender esse telefonema e sabe que não irá retornar. Sabe que Alice ligará de novo daqui a mais ou menos quinze dias quando então Ana terá digerido mais essa travessura de Alice, a quem o pai ensinou que os sonhos são livres, mas esqueceu de dizer que eles não são imortais. “Em algum lugar existe um mar onde se afogam os sonhos de amor desfeitos”. O verso, escrito por Aída em um dos seus longos poemas não lhe servia de consolo agora. Deitada na cama grande do casal, os olhos inchados, abraçada ao travesseiro do marido, não consegue odiá-lo, diferente da mãe naquilo que nem Ana conseguiu identificar, a mãe com o seu amor vaidoso que queria exclusividade. Ela não, ela tolerava as infidelidades de Heitor como próprias de um homem,

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afinal, tão especial. Não cobrava fidelidade, não procurava nos bolsos ou no celular, não perguntava. Aída não fazia cenas para Heitor, apenas para Ana que ouvia cada lamúria, cada suspeita de novo caso. Para Ana porque era a irmã mais próxima dela, “a que tinha mais cabeça”, como o pai dizia. Porque Ana, o respeito em pessoa, não iria contar a ninguém do seu desespero. Para Heitor, só o amor e a certeza que as aventuras iriam acabar. E não adianta dizer a Aída que ela já passou por isso outras vezes, que Ana não atende mais o telefone porque já conhece essa história de cor, que Ana não quer ouvir porque não quer mais repetir o mais de cem vezes dito, que Heitor é assim, é deixá-lo ou deixar de sofrer por causa dos seus desvios, ser coerente. Não adianta nada repetir porque Aída aciona o botão de rediscagem e tenta mais uma vez e imediatamente mais outra porque o número de Ana deu sinal de ocupado e ela não sabe que era Alice deixando o recado, Alice dizendo a Ana o que Aída quer saber, onde está Heitor e se ele volta. Volta, mas daqui a mais ou menos quinze dias, junto com Alice e talvez com a decisão tomada de acabar o que parecia eterno, de mudar a vida de todos, inclusive de Ana, que terá que contornar os nervos de Aída e esclarecer até onde vai a inocência de Alice. Alice largou o telefone depois do recado e sabia que não ligaria mais até a volta, e que Ana não esperaria pela sua volta para preparar o terreno, para preparar Aída, fazendo tudo funcionar da melhor maneira possível, como sempre fez e como deve ser, enquanto Ana junta cacos de sensações mais do que de lembranças, Alice e Aída e Heitor, e a insistên-

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cia de Alice em estreitar o contato depois da mãe morta e do casamento de Aída, logo Alice, tão desapegada das convenções, a insistir nos almoços de domingo. Ana revendo no rosto de Alice, o sorriso de lado e os olhos, então, reduzidos a dois traços, mesmo nos dias nublados. Aída não consegue se levantar ou tomar uma atitude, o que para ela significa ir à casa de Ana, porque não vê outra saída, porque sabe que Ana está em casa e que não atende ao telefone. Aída passou a noite em claro e, mesmo com Heitor ao lado, nunca consegue mesmo dormir bem, talvez porque a ela o pai não ensinou a sonhar como fez com Alice, e a lembrança da caçula chega à Aída pela primeira vez com um algum ressentimento, como se, de repente, reconhecesse Alice como a preferida do pai, e logo Alice tão tonta e tão pequena quando o pai se foi, o que será que Alice lembra dele, o que será que Alice lembra do tempo em que as três eram meninas sentadas na borda da banheira assistindo o pai se barbear enquanto assobiava, como contara a Heitor que, por amor, só havia de ser por amor, passara a assobiar para ela durante a barba nos dias em que estavam felizes e, principalmente, depois do amor em jejum. Depois das coisas acontecerem é comum percebermos os sinais que devíamos ter percebido antes para que as coisas pudessem ter sido diferentes. O telefone toca mais uma vez na casa de Ana e parece que toca mais devagar como se também o aparelho se deixasse ficar juntando pedaços e intuições. Ana atende já sabendo que é Aída e sabe que Aída já sabe. Mas se cercam de cuidados, uma e outra, para não dizer o que, se ainda não dito, não chega a ser verdade, evi-

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tar algumas conclusões que precipitadas não voltam atrás, mas lentamente ir assumindo. Ana com o cuidado de sempre, mas dessa vez um cuidado que não é natural, automático como das outras vezes, porque também ela não sabe o quanto pode dizer naquela situação que é tanto mais das três do que de Heitor, o quanto será que Aída se lembra do tempo de criança, e o que será que Aída consegue perceber do que se passa no mundo fora do círculo que desenhou em volta da sua paixão por Heitor. E trocam observações e espantos, e se deixam duvidar e não compreender e se perguntar, mas como pode ser com Alice, como pode ser Alice e Heitor. E conversando vão se acalmando e se aproximando, e lembrando Alice pequena e depois elas mesmas até chegar a falar de Heitor e da paixão de Aída, de Heitor e do seu jeito que foi sempre tão familiar, de Heitor, como foi ele chegar e, na mesma hora, já ser parte da história delas, e Ana, distraída nos seus pensamentos, dizendo a Aída — ele assobia como o papai enquanto se barbeia. Então Aída e Ana se calam porque sabem que falaram demais. Aída recomeça a chorar um choro lento e silencioso, um fio de azeite denso, um choro novo no rosto de Aída, um choro tão diferente que eu já não sei mais se é pela perda do pai, de Heitor ou da simetria de Ana.

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As le i s da fí s i ca

Há tempos tento convencer Horácio de que ele não é tão infeliz como supõe. O fato de manter a clareza de ideias quando tudo a sua volta conspira a favor da aceitação e do insumo da mediocridade reinante deveria ser um consolo, e eu o incentivo a ir além, e afirmar não só suas ideias, mas seus desejos. E é nesse ponto que tudo se complica. É preciso que se diga que Horácio não é exatamente um revolucionário. A cabeça cheia de ideias e o espírito crítico tão aguçado não têm sido suficientes para fazê-lo mudar uma linha do script que traçou para seu dia a dia. Não digo nem para sua vida, mas para o acúmulo de discursos, um após o outro em que se transformou a sua existência. À mente ágil corresponde um corpo acostumado à inércia, e sinto que Horácio está na ponta do trampolim, mas não olha para frente e sim para baixo, avalia a altura, respira fundo e permanece. Mas se não ousa, professa racionalismos e sufoca sensibilidades que o expõem e envergonham. Sim, Horácio, você sabe que um dia terá que fazê-lo. Terá que saltar do alto do trampolim, de olhos fechados e com os

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braços amarrados. Mas te asseguro que não dói. É um tato quente e forte comprimindo o peito e apertando os pulmões até quase não se respirar. E o alívio logo depois com a descoberta de um segredo, que, afinal, era a seu favor. Há a possibilidade de durar pouco e você pensar em derrota, mas esqueça isso. Qualquer pouco desta sensação vale a pena. E sempre restará a lembrança. Não deixe que a frustração estrague a lembrança. Isso devia ser punido por lei. E depois, Horácio, só existe o amor porque existe o tempo. E o tempo acaba. Pode parecer que o tempo passou, mas na verdade ele acabou. Cada tempo se acaba, a gente vivendo ou não. Horácio é pragmático. Aponta um sorriso de desdém para quem alardeia fenômenos que não possam ser comprovados. Fui levada a contradizê-lo e insinuar transcendências, apesar de ser também um tanto cética. Não sei o que me levou a isso. Acho que foi reação ao seu discurso um tanto arrogante, que abraça desde a constatação da impossibilidade do amor à inutilidade de qualquer iniciativa de reverter a iniquidade humana. Exaltada, disse-lhe que, a continuar dessa forma, ele poderia esbravejar pessimismos por mais uns quinze anos, que afinal passam rápido, e então relaxar, pois estaria velho o bastante para se estabelecer na condição especial de profeta do caos, enfim, uma espécie de campeão moral em prognósticos sombrios. Minha ironia o surpreendeu e me transformou em confidente sensorial de sua infelicidade. De conversa em conversa tomou meu café e conheceu meu jardim. Na verdade o que eu chamava de meu jardim, um cantinho no fundo do quintal um pouco além da área

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de deixar a roupa ao sol. Algumas árvores e um canteirinho bem cuidado, um banquinho, o cheiro de terra molhada. Segundo Horácio (e nessa hora nos tornamos amigos) o lugar era a minha cara, e eu, baixando a guarda, resisti à tentação de questionar em que critérios científicos ele se baseara para fazer tal afirmação. Um dia, deixei que Horácio passasse as tardes a ler no meu jardim. Foi na parte mais escura e úmida do quintal que ele pediu para ficar. Sozinho. Percebi que havia uma leve intenção de me seduzir naquele jeito indefeso de falar sussurrando, os olhos cabisbaixos. Ali o deixei e fui cuidar da minha vida. Também tenho uma vida, e ela está um tanto confusa, principalmente depois que passei a dedicar mais tempo ao meu amigo. No entanto, não pude deixar de sentir uma, então, inexplicável angústia e chorei mansinho e baixinho, temendo que ele escutasse, mesmo estando no canto mais longe, escuro e frio do meu jardim. Não, Horácio, não é se enroscando comigo que você vai saltar de forma segura. Comigo não seria um salto livre, seria como cair agarrado a uma boia e flutuar tranquila e insatisfatoriamente até a borda. Pode enganar os outros, mas não a mim, nem a você. Você quer um ensaio para a disponibilidade. Quer experimentar sem riscos, viver uma paixão ensaiada dentro da sua cabeça. Quer certezas, tomar cuidados. Mais um pouco e vai mesmo jogar a toalha e descer as escadas, afinal, está ventando e água deve estar gelada. E depois, Horácio, certeza é também só um momento, e esse momento passa muito depressa e o bom é a aposta, a

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adrenalina, a surpresa, ainda que fugaz. Tenho que arrumar o armário de sapatos, comprar panelas que as minhas estão muito velhas e também mandar pintar a parte externa da casa. Tenho muitas coisas a fazer, além de cumprir meu horário na escola com um bando de crianças desajustadas. Tenho que mandar limpar o jardim, ou fazê-lo eu mesma. Mas desde que Horácio resolveu aparecer por lá sem avisar, me assustando por cima do muro, eu não consigo. As folhas se amontoam, o limo tomou conta do chão que está escorregadio, mas ele parece não notar. Se não me vê, entra trazendo um livro, e passa horas, aparentemente imerso no prazer da leitura. Mas eu o conheço. Entende tudo com extrema facilidade e tece teorias e aponta contradições. Analisa romances como se fossem orçamentos, percebe as intenções, mas se alija da emoção. Se me vê, me chama, me abraça, conversa animadamente. Quer me emprestar o livro, quer me levar ao cinema, destrincha o filme. Sabe um bar novo, se alegra, e cai em contradição. Diz que eu pareço cansada, muito distante, que só eu o entendo. Me dá um bombom e faz um muxoxo para deixar claro que ainda está infeliz. Penso que ele é mais uma criança desajustada, um despreparado, esperando de mim a lição fundamental. Não, Horácio, não é tão fácil quanto no cinema. Não é um filme carregado de simbolismos que temos que decifrar como um desafio. Não conhecemos o vocabulário, não vai achar o verbete na Enciclopédia, não se prova matematicamente, enfim, não há receita. A sopa da nossa história é feita dos ingredientes que escolhemos a cada minuto. Você pode

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misturar, pode prever a consequência de certas escolhas e outras escolhas são experimentos que podem resultar num caldo salgado ou um tanto ralo, e é preciso criatividade para acertar o ponto e fazê-lo agradável ao paladar. Mas, Horácio, é preciso, sobretudo, conhecer as possibilidades. É preciso olhar, apertar, cheirar, provar as oportunidades com todos os riscos embutidos. Foi no meio de uma discussão. Eu penso ter visto Horácio aflito para ser convencido. Ele me puxou e pensei que se eu pudesse falar, estaria argumentando que era possível sentir que dois corpos, podem trocar mais do que diferenças de temperatura. E então eu saltei. Com os olhos fechados e as mãos amarradas, mas feliz. Do trampolim mais alto, ao seu lado, eu pulei de pé, confiante, e, com um frio na barriga, fui caindo, caindo. E mergulhei, afundei, afundei, e o fundo não chegava. Perdi velocidade, esperava pelo empuxo. O empuxo não veio. Impossível ter acontecido. Abri os olhos e virei na direção de Horácio, mas ele não estava lá. Só azulejos brancos azulados iluminados de sol e silêncio. Fiz o que pude com as mãos amarradas e subi. Os pulmões encharcados, os olhos embaçados, e uma náusea que custou muito a passar. O Horácio ficara lá, no trampolim, olhando pra baixo, avaliando e temendo os riscos. Sei que não posso culpá-lo. Mais de uma vez constatei que a queda foi grande por ser a reação da força que empreguei para convencê-lo a saltar. Eu sabia que, sozinho, ele não se moveria.

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Sim, Horácio, a dúvida é privilégio dos que tem opção. Eu nunca tive. Por algum mecanismo da natureza que nunca pensei em decifrar por não desejar reverter, sempre fui, digamos assim, disponível para a aventura. Por outros mecanismos ou, talvez, pelos mesmos, tenho pretensões de onipotência, e com ela dou aos outros, opções que não tenho. E também, afinal, fui eu que escolhi os ingredientes. Aliás, mantida a distância esclarecedora dos fatos, o que seria substância numa panela resultou em simples tempero na outra. Do mergulho à lembrança foi tudo muito rápido. Voltei a cuidar das minhas coisas, afinal, eu tenho muitas coisas a cuidar. Está chegando o fim do ano e tenho provas para corrigir, alunos a avaliar. Tenho que ler o livro que larguei pela metade por falta de concentração. Tenho que responder às mensagens antigas na secretária eletrônica e reencontrar os velhos amigos. Ainda não arrumei um pintor e a casa está horrível. Tenho que escolher, comprar e enviar os cartões de natal e sobra menos tempo para pensar no que passou. Nada me dói, mas também nada me conforta, a não ser o fato de eu não ter evitado o mergulho. É quase com orgulho que me lembro da sensação de asfixia e do momento em que cheguei à tona. E não existe negação, nem esquecimento. Não, Horácio, não é quando vejo um casal apaixonado que me lembro de você. Nem quando me doem as costas das horas que passo limpando o quintal, catando as folhas, tirando o limo, e, sobretudo podando as árvores que tapam o sol e promovem a umidade no canto mais escondido do meu jar-

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dim. Quando me lembro de você é quando leio um romance ou uma poesia e me arrepiam os cabelos na nuca e os pelos do braço e me engasga a garganta pela beleza impressa no papel. Quando entro na vida de gente que não conheço e de gente que nem existe, e me alimento das emoções alheias, é aí que me lembro de você.

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Ál b um d e r e t r atos

Quando o dia é de faxina na casa da D. Sonia, Julieta precisa chegar mais cedo. A dona não lhe dá, de modo algum, uma cópia da chave. Precisa chegar antes das sete para que D. Sonia não se atrase para o seu próprio trabalho. Desta vez chegou tão cedo que pegou a mulher ainda secando o cabelo e teve que insistir na campainha para que o som estridente vencesse o ruído do secador. Entrou pela porta da cozinha, é claro, e direto para o banheiro de serviço, misto de sanitário e armário de vassouras. O banheiro de serviço da casa da D. Sonia era tão pequeno que, se quisesse tomar banho ali, tinha que ser sentada no vaso e para sentar no vaso, tinha que manter as pernas de lado imprensadas contra a pilha de baldes e bacias. Por isso, depois que a D. Sonia saia para o trabalho, ela só usava o banheiro social, amplo e bem aparelhado, papel higiênico decorado e sabonete líquido. Banho não tomava, porque não queria ter que tirar todas as vassouras, os baldes, as bacias e depois secar o vaso sanitário e o chão do banheiro e até da área porque o piso não tinha o caimento correto para o ralo.

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Muitas vezes pensou em usar o chuveiro da D. Sonia, mas teria que enxugar também o box da mulher e não podia deixar cheiro de banho recente no ambiente porque D. Sonia era um cão farejador, desconfiada que só. Como sempre a D. Sonia pagou a diária antes de sair, fez algumas exigências, outras reclamações sobre o serviço da semana anterior e saiu dizendo: “Basta bater a porta que ela não abre por fora”. Trabalhava ali já tinha um ano e a mulher dizia a mesma coisa toda semana. Nas outras casas ela não se sentia tão estranha. Na casa da D. Mariana, por exemplo, ela trabalhava só há três meses e já ganhara a chave e, até tomou conta do bebê por duas horas num dia que a D. Mariana precisou ir ao banco. Essa madame tinha horror de entrar no banco com o seu bebê, uma menina de seis meses, gordinha e coradinha, boa de apertar e pegar no colo. Tinha medo de assalto, violência. “Deixa ela”, pensava Julieta, “assustada assim não vai viver muito”. A Julieta às vezes ficava olhando para a menininha e sonhando com o dia em que ia ter também uma família assim: num marido igual ao Seu Geraldo e um bebezinho fofinho. Na casa da D. Mariana tinha um aparador cheio de fotografias lindas da família dela e do Seu Geraldo. Senhoras sorridentes, crianças de todas as idades e fotos da vida do Seu Geraldo com D. Mariana. Até do dia do casamento tinha uma bem grandona. A Julieta fora criada por uma tia, muito pobre. Tinha algumas lembranças boas da infância, mas nenhuma fotografia. De ninguém. Mesmo dela, a Julieta só tinha as fotos dos documentos, em geral mais feias que o original.

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Das fotos que tinha em cima do aparador da D. Mariana, a que ela mais gostava era de uma velhinha bem velhinha mesmo, mas muito bonitinha, que devia ser a avó da D. Mariana. Tinha que ser. Os olhos eram azuis iguais aos dela. Sempre que limpava o aparador e as fotos, uma por uma, parava mais tempo nessa. Um dia não resistiu e botou o retrato na bolsa e levou para casa. Tantas fotos… Só dessa vovozinha devia ter umas três, ninguém ia dar falta. Em casa, de noite, colocou a foto em cima da televisão e dormiu pensando nela. Outra casa onde ela gostava muito de trabalhar era do Seu Emílio. Moço bonito, o Seu Emílio, e tão simples. Ele sempre dizia: “Precisa chamar de ‘Seu’, não, Julieta, só ‘Emílio’ já tá bom.” A Julieta ria envergonhada, tentava, mas não conseguia. Era Seu Emílio, e pronto. Ela sempre gostara de trabalhar em casa de homem sozinho. Homem sozinho não enche o saco da faxineira. Não reclama que a camisa está mal passada, que o piso da sala não foi encerado. Só porque o Seu Emílio era tão bacana, na casa dele ela aceitava fazer, também, uma comidinha nos dias em que ia. Deixava sempre uma panela de arroz e uma de feijão que ele depois dividia em potes, colocava no freezer e tinha arroz e feijão para uma semana inteira, que homem sozinho quase não come em casa mesmo. Na casa do Seu Emílio ela também achou muitas fotografias, mas foi dentro do armário, num caderno de capa dura que tinha umas de presilhas que prendiam as fotos nos quatro cantos. Ela adorou a ideia. Comprou um caderno na papelaria, mas as presilhas iguais àquelas, ela não encontrou, não. Então, tirou a foto da avozinha da D. Mariana da mol-

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dura e um retrato de um senhor bem bacana de dentro do caderno do Seu Emílio e colou no caderno dela. Esse negócio de trabalhar de diarista tem umas coisas muito interessantes. Primeiro: não tem rotina. Cada dia uma casa diferente, e a bagunça das casas também varia muito. Menos na casa da D. Sonia, que é muito sistemática. (Essa palavra, sistemática, ela tinha ouvido o Seu Emílio dizer uma vez e achou que era a cara da D. Sonia, mesmo sem saber o que significava). Na casa da D. Sonia, não tinha bagunça, não, ela deixava cada coisa em seu lugar. A Julieta só tinha era que limpar mesmo. Mesmo que não visse nenhuma sujeira tinha que limpar porque a D. Sonia via sujeira em tudo que era lugar. E toda semana tinha alguma reclamação. Outra coisa de bom em ser diarista é que é como se a pessoa acompanhasse várias novelas. Cada dia um capítulo. Na casa da D. Sheila, por exemplo, estava rolando já havia semanas um problema com o Danilo, o filho mais velho. A D. Sheila procurava, de todas as formas, convencer o Danilo a trabalhar ou escolher de vez uma faculdade. O rapaz já estava com vinte e três anos e já tinha feito vestibular três vezes para faculdades diferentes. Passava sempre. Cursava dois meses e trancava, alegando que tinha se enganado, não era a dele, essas coisas. O pau quebrava na casa da D. Sheila. Parece que ele trancava a matrícula em abril e ficava vagabundeando até novembro, quando fazia vestibular de novo e recomeçava a história. A Julieta, além de achar o Danilo um moço muito bonito e bem feito de corpo, achava que ele devia ser muito inteligente, porque não estudava nunca e passava sempre nesse tal de vestibular que devia ser difícil,

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porque o enteado da D. Mariana não passava nunca, apesar de estar sempre estudando. E o Seu Emílio, que já era professor, continuava estudando até hoje e devia dar muitas aulas extras para as pessoas que iam fazer esse vestibular, porque tinha sempre um monte de alunas que ligavam para ele e deixavam recados, muitos recados. Mas só alunas. Talvez ele fosse professor em escola de freiras. Mais uma coisa boa que a Julieta via no trabalho dela era que ela ganhava muitas coisas que os patrões não queriam mais e tinham pena de jogar no lixo. Eles davam para ela muita coisa boa, praticamente nova. Até eletrodomésticos funcionando, porque eles queriam comprar modelos novos e mais bonitos e com novas funções. A Julieta tinha montado a cozinha dela assim. Até o fogão ela ganhou de uma senhora que já tinha até morrido. Mas sempre que Julieta lembrava dela, agradecia a Deus por ter colocada aquela mulher no seu caminho. Até o frete ela pagou. E a Julieta tinha consciência de que morava longe. A única cliente que nunca tinha dado nem um alfinete para a Julieta era a D. Sonia. A D. Sonia só falava com a Julieta coisas indispensáveis ao serviço e uma dessas coisas era sempre avisar para tomar cuidado com tudo, pois ela tinha os eletrodomésticos e a louça desde que tinha saído da casa da mãe dela. Até as roupas da D. Sonia duravam anos e, com cuidado na hora de lavar, iam durar muitos mais ainda. A Julieta muitas vezes, esteve para pedir aos patrões se eles não tinham umas fotografias velhas que não quisessem mais para dar para ela, mas nunca teve coragem. A Julieta trabalhava, ainda, na casa da D. Diná. A D. Diná

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era muito velhinha e morava com uma empregada de carteira assinada e tudo, que fazia as vezes de família da D. Diná. Os filhos da D. Diná só a visitavam muito raramente e pagavam bem à Sueli para tomar conta dela de domingo a domingo. Aos sábados, quando a Julieta ia fazer a faxina, era comum a Sueli se mandar de manhã cedo e só voltar tarde, sendo o sábado o dia da semana em que a Julieta voltava para casa mais tarde. Ela dava o almoço, o lanche e o jantar da velhinha, que gostava muito de conversar com a Julieta atrapalhando o serviço. Um dia, a Julieta contou para a D. Diná que era órfã e que achava lindo as pessoas terem fotos de família. A D. Diná ficou muito emocionada e levou a Julieta até a sala onde pegou em cima do piano, orgulhosa, um porta-retrato. Numa moldura espelhada com flores jateadas, uma foto antiga em preto e branco do marido, o Almirante Simões, em traje de gala. A Julieta ficou deslumbrada com o objeto e com a foto. A D. Diná, emocionada, disse à Julieta que aquele retrato ela manteria consigo enquanto vivesse, mas deu para a Julieta uma caixa cheia de fotos. Fotos de crianças, de adultos, de velhos. Fotos dos filhos, dos netos, gente que a Julieta, em tantos anos de trabalho, nunca vira naquela casa. “Pode levar pra você”. “Afinal”, disse a D. Diná, ” dessa família, só sobraram as fotos mesmo”. A Julieta não acreditou no presente. Depois que conseguiu falar alguma coisa, agradeceu muito e muito e muito à D. Diná. Nunca foi tão difícil esperar a Sueli chegar para poder vol-

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tar para casa e selecionar, até de madrugada, as fotos preferidas e colar com o amor de filha, de neta, de mãe, aquelas lembranças que agora eram dela. A semana seguinte conheceu uma Julieta diferente. Na segunda de manhã, antes das sete já estava na casa da D Sonia, mas quando a mulher começou a desfiar o rosário de advertências, a Julieta acenou com a mão, mandando-a parar. “Já sei tudo isso, D. Sonia. Se a senhora não tá satisfeita com o serviço, é só falar, que tem gente assim procurando faxineira que nem eu”. A D. Sonia deixou o queixo cair, deu um muxoxo, rodou nos calcanhares e saiu. Passou o dia falando mal da Julieta para a repartição inteira, mas nem lhe passou pela cabeça demitir a faxineira que sempre fora tonta, agora era petulante, mas fazia o serviço direito e era de confiança. Na casa da D. Mariana, a Julieta puxou assunto sobre as fotos, perguntando quem eram as pessoas, provocando a D. Mariana que não havia nem dado falta do retrato surrupiado. Orgulhosa, a Julieta pensava pra si: “Que gente é essa que nem sente falta de um retrato tão bonito… tem coração, não…”. Na casa da D. Sheila, a Julieta foi toda sem cerimônia pedir pro Danilo umas fotos dele que estavam pregadas num quadro na parede do quarto dele com uns alfinetinhos. “Sabe. Como é, Danilo, tanto tempo que eu tô aqui, vi vocês crescerem… Uma lembrança”. O Danilo deu uma foto dele e viu, surpreso a Julieta tirar mais outras duas, inclusive uma da namorada dele, escolhendo aquelas menos furadas pelos alfinetes. E todos os dias fez o serviço mais rápido que as outras ve-

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zes para poder sair mais cedo e alimentar de aquisições o caderno transformado em álbum de retratos. No sábado, ansiosa, correu para a casa da D. Diná levando o caderno recheado. Na porta da entrada percebeu um movimento estranho. Uma mulher alta circulava por entre caixas abertas e fechadas, a casa em total desordem. Ficou parada na porta até que a mulher se aproximou e antes que perguntasse algo, a Julieta foi dizendo: “Sou Julieta, faxineira da D. Diná”. A mulher respondeu já se virando: “Está dispensada. Minha mãe morreu”. A Julieta ficou nos degraus da escada, imóvel, abraçada ao seu álbum de retratos. A mulher olhou para ela uma, duas vezes. Então foi até a bolsa, trouxe algumas notas e estendeu à Julieta. A Julieta não pegou o dinheiro. Ergueu para a mulher o rosto totalmente molhado por lágrimas. Abanou a cabeça de um lado para o outro, sem conseguir falar. A mulher levantou uma sobrancelha e entrou na casa. Julieta tentou ir embora. Despregou os pés da escada e se virou. Caminhou pesadamente até o portão. Depois voltou, decididamente, até a entrada. A filha da D. Diná abriu, de novo, a porta e impaciente perguntou: “Afinal, o que você quer?” E a Julieta: “Queria buscar umas coisas minhas que deixei no quarto de serviço”. A mulher encarou a Julieta como querendo saber se era verdade. Depois, se afastou um pouco para a Julieta entrar, mas só um pouco, deixando claro que não a queria ali. A Julieta entrou, encolhida e caminhou vagarosamente até o quarto de serviço. Ao passar pela sala olhou o retrato do Almirante sobre o piano, lembrando da D. Diná, agora morta

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e sem mais necessidade nenhuma dele. No quarto de serviço pegou as havaianas surradas no armário das vassouras e voltou. Ao passar pelo piano, com a mulher impaciente ao seu lado, parou uns segundos olhando a foto tão desejada e pensou o que aconteceria se ela pedisse o retrato. Olhou em volta: as luminárias, os estofados, tapetes, o tamanho das janelas, o vaso com flores, o lustre sobre a mesa tão grande. Depois suspirou e saiu da casa com o sentimento de já ter conseguido muito mais do que merecia.

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E x p ec tat i vas

Ela podia ter dado mil motivos, da sua história pessoal ou da admiração que tinha por ele ou da sedução que o poder dele emanava, mas disse a verdade. Que eram as características masculinas primárias dele que lhe interessavam: a altura, até mais que o porte; a voz grossa e pausada saindo dos lábios carnudos; as mãos grandes, os dentes grandes… tudo nele parecia grande, mas dizer isso daquele jeito não podia mesmo ter dado certo. O homem na frente dela tinha anos de compromisso com outra mulher e não era pela aliança no dedo que ela sabia, era por certa tristeza no olhar para ela, como um desejo com o freio de mão puxado, nem tão contido, não. Mais suspenso. Como se tivesse parado no meio do caminho, antes de atropelar todo o resto da vida e das outras vidas envolvidas, que ele era responsável sempre e acima de tudo. Já ele olhava para ela e podia ter dado todos os motivos fáceis para se envolver, que ela era atlética e gostosa e tinha um sorriso jovial com uma preguinha que começava a despontar no lado dos olhos apertados, verdes e lindos. Mas ele

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preferiu dizer que era porque ela era tão livre e tão despojada e tão disposta para vida e destemida, apesar do compromisso dela com o outro homem, que ele sabia que tinha que haver, apesar de ela não ter o dedo envolvido e nem nunca ter falado, mas era claro que tinha. E eles se disseram essas coisas negando os papéis pré-determinados. Uma mulher na dianteira já estendendo os braços e o coração embarcado no peito do outro e sem se importar com o futuro, afinal por que evitar a dor se a gente perde o prazer e ele se coibindo, não estava preparado e depois ia se apaixonar magoar a família, não saberia mentir e aquela história acabava mesmo era em amor. E talvez acabasse, ou não. Não ficaram sabendo porque ele já ele fazia planos enquanto envolvia a cintura e pegava-lhe o seio, e prometia coisas que ela não queria escutar e começava lentamente a levar o desejo da mulher ladeira abaixo porque não eram promessas o que ela queria, não era futuro, era só um par de braços fortes e umas coxas firmes. Ela queria que ele fosse objetivo e rápido como deve ser um homem.

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copyright ©2012 Vera Rocha copyright ©2012 desta edição, Ímã Editorial

Sutilezas : contos : Vera Rocha — Rio de Janeiro : Motor : Ímã Editorial, 2012, 98p; 21 cm.

isbn 978-85-64528-16-1

1. Contos. I Rocha, Vera II Título.

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cdd 869.3 FIC029000, FIC048000 regional 5.0.3.0.0.1.0

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www.imaeditorial.com/ Edição C 1.S.0, janeiro de 2012


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