Manual de Orientação da Pré-escola
Brasília – 2013
Sumário I – A função da pré-escola........................................................................................................... 05 II – Conhecer a criança: o desenvolvimento das crianças de dois a seis anos.......................... 09 III – Expectativas para o desenvolvimento: o currículo............................................................... 20 IV – A proposta do Programa Alfa e Beto – Pré-escola............................................................... 22 V – A organização do espaço...................................................................................................... 31 VI – A organização do tempo: rotinas.......................................................................................... 35 VII – Equipamentos e materiais.................................................................................................. 47 VIII – A escola e o ambiente........................................................................................................ 48 IX – Acompanhamento individual da criança.............................................................................. 50 X – Referências........................................................................................................................... 51
Anexo I – O currículo do Programa Alfa e Beto – Pré-escola..................................................... 53 Anexo II – Textos complementares para o Livro de Atividades I................................................. 70 Anexo III – Textos complementares para o Livro de Atividades II............................................... 94 Anexo IV – Grafismo e Caligrafia: Introdução............................................................................118 Anexo V – Grafismo e Caligrafia: Letras de Forma....................................................................119 Anexo VI – Coleção Fazendo Arte na Pré-escola..................................................................... 122 Anexo VII – Ficha Individual de Acompanhamento do Desenvolvimento da Criança............... 151
Manual da Pré-escola
Parte I A função da pré-escola A escola formal é uma invenção de milênios. A pré-escola é uma invenção recente. A primeira pré-escola foi chamada por seu criador, Friedrich Fröbel, de Kindergarten, ou Jardim de Infância. O termo não foi escolhido ao acaso, reflete a filosofia do autor a respeito do desenvolvimento infantil: a criança é como uma semente, tem tudo para se desenvolver e atingir seu potencial máximo, mas precisa de cuidados. Dessa forma, natureza e ambiente precisam interagir para que o desenvolvimento ocorra de forma adequada. A pré-escola surgiu como um proposta de transição entre o lar e a escola formal. Não havia creches e escolas maternais – essa instituição só começou a se difundir a partir da segunda metade do século XX. Ainda assim a pré-escola era para poucos, pois, naquela época, o ensino fundamental ainda não era universalizado nem nos países mais avançados economicamente. Decorridos mais de 160 anos de experiência, a pré-escola encontra-se em uma encruzilhada. De um lado ela deixou de ser, para muitos, a transição entre o lar e a escola, posto que muitas crianças começam a frequentar creches e outros tipos de instituição antes de chegar à pré-escola; de outro lado, as filosofias educacionais em diversos países enfatizam diferentes funções para a pré-escola. O próprio nome “pré-escola” não é universal – em alguns países existem apenas escolas maternais para crianças em idade pré-escolar, em outros existem ainda os jardins de infância. O termo pré-escola, por sua vez, possui conotações diferentes. Em muitos países, ele tem uma conotação escolarizante – a pré-escola é uma escola que vem antes da escola formal; em outros, ainda preserva uma filosofia educacional menos escolarizante.
Origens históricas Historicamente a pré-escola surgiu inspirada nas concepções do Romantismo a respeito da criança, especialmente nas ideias de Jean-Jacques Rousseau. Na base desse ideário havia o reconhecimento da especificidade da infância e da consequente necessidade de tratá-la diferentemente de um adulto. Por outro lado, havia uma suspeição em relação ao papel dos adultos e da sociedade, que seriam responsáveis por corromper a inocência natural das crianças. No conceito original de Jardim de Infância há a ideia de que se cultivarmos a criança ela crescerá e se desenvolverá naturalmente, seguindo suas tendências. Tal conceito é subjacente aos principais movimentos pioneiros da promoção dessas instituições ao longo do século XIX e início
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Parte I – A função da pré-escola
de século XX a partir de Pestalozzi, que enfatizou a necessidade de individualizar o ensino; Froebel, que fundou e batizou o primeiro Jardim de Infância e enfatizou a brincadeira como instrumento básico para o desenvolvimento; e sua seguidora mais famosa, Maria Montessori, que enfatizou o papel da estimulação sensorial adequada como instrumento chave para o desenvolvimento das crianças. Além disso, Piaget e, notadamente, Kohlberg influenciaram o desenvolvimento da educação pré-escolar sugerindo a existência de estágios ou fases, bem como de atividades que seriam “apropriadas à idade”. Essas concepções ainda são subjacentes a muitas, talvez à maioria, das filosofias e propostas para a educação infantil e, naturalmente, foram incorporando outras filosofias e conceitos, dos quais destaca-se as influências de Vigotski a respeito da importância da linguagem e do papel do adulto no seu desenvolvimento e de Dewey, a respeito da importância das atividades em grupo como instrumento de formação de hábitos de partilha. Os professores e formuladores de políticas de educação infantil devem compreender as implicações filosóficas dessa ideias, e os conteúdos e práticas que elas orientam, mas esses temas devem ser parte integrante da formação dos professores e vão além dos objetivos e limites do presente Manual. Nas últimas décadas, a educação infantil vem assumindo um outro papel, e o nome préescola bem o reflete: a educação infantil não apenas deve ocupar-se de promover os estímulos para o desenvolvimento, mas deve assegurar que a criança saia da pré-escola com o domínio dos conhecimentos, habilidades e competências necessários para o sucesso em sua trajetória escolar futura. Em muitos países, a pré-escola tem conseguido atingir esses objetivos mantendo suas características de jardim de infância. As crianças vivem em ambientes não-seriados, mais próximos ao ambiente de uma família, os educadores não são chamados nem se consideram professores, pois veem sua missão como muito mais ampla. Em outros países – e notadamente no Brasil – a pré-escola tem assumido as feições de uma escola que vem antes de outra, com todas as suas peculiaridades: professor, uma certa rigidez, excessivo número de crianças por adulto e uma ênfase relativamente reduzida aos aspectos afetivos e aos cuidados que a criança nessa faixa etária requer.
Duas concepções correntes sobre a função da pré-escola Estudos recentes a respeito da educação infantil em diversos países, notadamente nos países desenvolvidos, revelam a existência de duas concepções bastante diferentes a respeito da função da pré-escola. Em alguns países, a pré-escola vem assumindo, cada vez mais, um papel preparatório para a escola; a ênfase consiste em preparar a criança para a escola que vem depois. Com diferentes nuanças e graus de direcionamento, a dimensão “educacional” no sentido mais estrito é mais forte do que a dimensão “educativa” no sentido mais estrito.
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Manual da Pré-escola
Em outros países, especialmente os nórdicos e os de língua alemã, a pré-escola é fundamentalmente um espaço de crescimento global da criança, sem uma preocupação específica com a preparação para o mundo escolar. A noção básica é mais próxima do conceito de Jardim de Infância, de cultivar as potencialidades da criança numa instituição que antes de tudo cuida para que a criança se desenvolva (OCDE, 2001, OCDE, 2006). Uma outra forma de caracterizar essas duas concepções é contrapor programas centrados na criança a programas centrados no ensino. No primeiro caso, incluem-se intervenções como as preconizadas por Maria Montessori, a partir da primeira metade do século XX, ou influenciadas por ideias de Vigotski, a partir dos anos 80 (Bodrova e Leong, 2005), ou, mais recentemente, o enfoque das escolas infantis da região de Reggio-Emilia (Lewin-Benham, 2008). No outro caso estariam intervenções que enfatizam o ensino de competências mais associadas com a futura escolarização das crianças e, em muitos aspectos, se assemelham mais a uma escola. Intervenções desenvolvidas sob o patrocínio do Programa Head Start, nos Estados Unidos, incluem-se nesse caso, como os conhecidos e bem sucedidos programas Perry/High-Scope (Schweinhart e Weikart 1997), o projeto Abedecerian (Campbell et al., 2001) e o projeto dos Centros Pais-Filhos de Chicago (Reynolds et al 2004). Essas duas concepções são bastante diferentes. Uma visita a instituições em diferentes países no processo de desenvolvimento da presente proposta do IAB, deixou clara a diferença no funcionamento das escolas e salas de aula em diferentes países e culturas. No entanto, culturas e filosofias à parte, os resultados são bastante semelhantes: ambas possuem currículos muito bem estruturados, e ambas preparam muito bem as crianças para enfrentar os desafios da escolarização formal e melhorar suas perspectivas ao longo da vida (Clarke-Stewart e Allhusen, 2005). Menos do que a filosofia educacional, o que faz diferença na vida das crianças são dois aspectos comuns a esses programas: a elevada qualidade e a atenção ao desenvolvimento de competências relevantes para o futuro da criança na escola formal e na vida. Esse breve reflexão serve para entender a missão da pré-escola: a pré-escola ocorre durante uma fase crítica do desenvolvimento infantil. É a fase das grandes descobertas sobre as pessoas e o mundo, da transição entre total dependência e um razoável grau de independência e maturidade, entre a liberdade quase total da criança que só brinca e as inevitáveis coerções institucionais da escola, entre o controle externo e o controle interno cada vez maior dos sentimentos, emoções e ações. Além disso, é a fase em que ocorre a primeira perda da inocência infantil – somente por volta de 4 anos a criança aprende a dissimular e a entender que os outros podem mentir. Enfim, é a fase de transição entre ser apenas uma criança para tornar-se uma criança-estudante. Pesquisas realizadas no Brasil nos últimos 10 anos por pesquisadores como Pais e Barros e Ruben Klein e analisados em relatório da Academia Brasileira de Ciências (2009) têm apontado para o impacto da pré-escola no sucesso escolar posterior dessas crianças. Crianças que frequentaram a pré-escola demonstram melhor desempenho escolar do que crianças que não a frequentaram, e essas diferenças não são triviais, tampouco podem ser ignoradas.
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Parte I – A função da pré-escola
Esses estudos revelam que a pré-escola pode ser um fator importante na redução de desigualdades sociais; entretanto, e infelizmente, a realidade não é tão simples assim: essas mesmas pesquisas indicam que a pré-escola tem impacto muito maior para as crianças de nível sócio-econômico mais elevado do que para as crianças de classes menos favorecidas. Isso aponta que, para cumprir a sua missão de reduzir desigualdades sociais, a escola pública, e a pré-escola pública, precisam oferecer uma educação de alta qualidade. Há dois critérios que permitem aferir a qualidade da educação infantil: ●● Quantidade, refletida relação entre o número de crianças e o número de adultos: quanto menor o número de crianças por adulto, maior tende a ser a qualidade da educação nesta faixa de idade. ●● Natureza da interação entre os adultos e as crianças. Interação de qualidade se define pela capacidade do adulto cativar, entender e interagir intensamente com a criança, sobretudo e particularmente do ponto de vista emocional e verbal. E isso requer um conjunto estruturado e intencional de ações educativas.
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Manual da Pré-escola
Parte II Conhecer a criança: o desenvolvimento das crianças de dois a seis anos
Etapas do desenvolvimento O desenvolvimento humano é formado por continuidades e descontinuidades, progressos e retrocessos. Evoluímos em algumas áreas, estacionamos noutras; em algumas os saltos são bruscos, em outras, a evolução imperceptível; o caminho é tortuoso, sinuoso, e composto por vaievéns. Mas, há linhas gerais, que são comuns à maioria das crianças e isso leva os estudiosos a identificar fases ou etapas do desenvolvimento. A maioria dos pesquisadores do desenvolvimento infantil considera três etapas: os anos iniciais, o período de dois a seis anos, e a média infância, de sete a aproximadamente 11 anos. A partir dos 12 anos começa a transição para a puberdade. Ao final do período inicial, por volta de dois anos de idade, a criança consegue andar, correr, comunicar-se usando palavras, enfim, tem uma participação ativa e interativa com o mundo. O período de dois a seis anos é comumente denominado de período pré-escolar. Essa denominação corresponde ao fato de que na maioria dos países a escola formal começa aos 6 anos. Na verdade o nome tornou-se inadequado, tendo em vista que atualmente as crianças dessa idade frequentam vários tipos de instituições que são denominadas escolas (escola maternal, escola infantil, pré-escola); ademais, o conceito de escola implicado do conceito “préescolar” refere-se a um tipo de escola mais formal. Talvez o termo mais adequado para o período que vai dos dois aos seis anos seria “a fase lúdica”, já que, de um modo geral, o crescimento torna-se um jogo para a criança; o mundo da criança é mágico; o pensamento da criança também tem muito de magia e a criança brinca para tentar decifrá-lo. Brincar com as palavras, com os sons, com as ideias, com as formas, com o mundo, é a forma privilegiada da criança aprender. Felizmente a brincadeira não é exclusiva desse período, mas, sem dúvida, é mais marcante neste do que em qualquer outro período do desenvolvimento humano. Nas próximas seções deste capítulo apresentamos um breve resumo de algumas das características mais importantes do desenvolvimento infantil nesse período, com ênfase nas idades de quatro a cinco anos.
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