JORNAL PSICOLOGIA EM FOCO
ISSN 2178 - 9096 - Maringá
FEVEREIRO E MARÇO DE 2015 - Nº 25
sessão especial
PÁGS. 08 e 09
Infância: tempo de brincar de vir a ser
PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA
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conexões
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Somatizações: A insuficiência materna e o vazio do corpo-mente Funções e limites do dito humorístico em tempos de terrorismo
DICA DE FILME
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“Boyhood” e o devaneio do tempo
eNTREVISTA
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Psicologia em Foco conversa com Maria Goreti Maranho
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JORNAL PSICOLOGIA EM FOCO
EXPEDIENTE
EDITORIAL
PRÓXIMA FASE Coordenação Vinicius Romagnolli R. Gomes | CRP 08/16521 Edição Toni Trentinalha Redação Eduardo Chierrito, Gabriela Cristófoli, Ieda Marinho, Mayara Coutinho (CRP 08/18729) e Toni Trentinalha Revisão Ariana Krause (CRP 08/17743), Christian Silva dos Reis, Giovanna Bertoni (CRP 08/19036). Capa Vermelho Panda Estúdio de Design Divulgação Cayla Aparecida de Sousa, Cícero Félix, Fernanda Ferdinandi, Fernanda Maysa Borniotto, José Valdecí Grigoleto Netto, Luana Ramos Rocha e Taís Kemp Abdo (CRP 08/20920). Impressão GRÁFICA O DIÁRIO Design Gráfico
TONI TRENTINALHA é acadêmico de Psicolgia e editor do JPF Tem formação em Letras e pós graduação em Arte
Valorosos leitores, Fez-se 2015 entre dolorosas partidas e calorosas recepções, despedidas que por hora parecem nos dilacerar o coração e chegadas que nos ilusionam ao ponto de idealizar. Enfim, entre chuvas e trovões, continuamos nosso paulatino processo de maturação e estruturação. Norteados não somente por missões e valores, mas também por um conteúdo que delineia o jornal e lhe confere identidade. Sendo as publicações pertinentes ao período de 2015 às fases da vida, com a 25ª edição e primeira tiragem do ano não poderia ser de outra forma, fitaremos a infância. Desde seu atendimento clínico e medicalização até suas formas de aprendizagem, pontuando também suas sensações de incompletude e a influência da musicalização em seu desenvolvimento. Isso analisado e coberto debaixo de todas as abordagens teóricas e linhas de pensamento. Não fosse a amplitude temática que nos permitiu pontuar também assuntos factuais e históricos, como a violência que eclodiu a pouco na França e sobre
a origem de se compartilhar a refeição, diríamos que o tema escolhido é uma analogia a nossa fase maturacional, 4 anos e alguns meses, um imberbe, que apesar do muito já progredido é um infante aos olhos do que esta por vir... Os leitores mais assíduos já sabem que fomos do anacrônico preto e branco ao palpitante colorido em tenras edições; os novos leitores é que podem estar desavisados que as mais de 20 impressões não se dispunham bem assim. Colunas e colunistas vêm e vão, todos comprometidos e planteados com a incumbência de dividir a informação com qualidade e brilho nos olhos, toda a correria feita (acreditem!) na virada do ano e no pomposo período de férias. Brilho nos olhos este que norteou não só esse trabalho nos cálido janeiro, mas que fez do jornalzinho; Instituto. Feito por quem transforma o ironizado empoeirado amor à causa, em traje de gala, pro-atividade esta que nos aumentou significativamente a abrangência. Pautados num espirito de equipe singular que faz tudo valer a pena, desejamos um grande ano e uma boa leitura.
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Quem somos nós? Tiragem 3.000 exemplares
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Jornal Psicologia em Foco (ISSN 2178-9096) surgiu no ano de 2010, idealizado pelos então acadêmicos do 5 ano de Psicologia do Cesumar Vinicius Romagnolli, Diogo A. Valim e Roberto M. Prado. O projeto tem como proposta viabilizar em espaço para a produção cientifica de acadêmicos e profissionais de Psicologia, bem como a promoção e divulgação dos importantes acontecimentos e eventos relacionados à Psicologia, tais como palestras, cursos, debates, grupos de
estudos, entre outros. Em 2011, na comemoração de 1 ano do JPF foi criada a Oficina do Saber. O jornal se sustenta com o apoio dos coolaboradores e patrocinadores e tem sua distribuição gratuita, alcançando o público acadêmico de diversas instituições de ensino, cursos de pós-graduação e profissionais da área. Atualmente o Jornal Psicologia em Foco tem uma tiragem de 3 mil exemplares e periodicidade bimestral. Já as oficinas acontecem mensalmente.
MISSÃO: Promover a troca de saberes em um espaço inovador. VALORES: Comprometimento Brilho nos olhos Espírito de equipe Qualidade Pró-atividade Foco no cliente
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PSICOLOGIA social em pauta
A pesquisa científica entre ouriços e raposas
EDUARDO CHIERRITO é acadêmico de Psicologia da UNICESUMAR e membro do JPF.
“A raposa sabe de muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma coisa importante” (Arquíloco de Paros, século 7 a.C.) A raposa é considerada um animal astuto em diversas metáforas, contos e fábulas. O ouriço por sua vez possui por característica principal: a defesa. No trecho de Arquíloco, os dois animais se deparam diante da capacidade de saber, mais precisamente do saber muito e do saber que é dito como importante. Moscovici em sua obra “A máquina de fazer deuses” (1990) traz uma comparação sobre o fragmento de Arquíloco e o pesquisador, aquele que promove o avanço científico. O pesquisador ao se deparar com um problema para motivar sua pesquisa, é descrito como agressivo, perseguindo e explorando como uma raposa, combinando os dados, entrelaçando hipóteses e constatando argumentos. No entanto se este for motivado pelo egoísmo, ao atuar com base em um oportunismo, constatamos produções cada vez mais numéricas e com menos conteúdo. Quando o pesquisador expõe à massa suas pesquisas e divulga seu objeto de estudo para a sociedade, ele muda sua postura e deixa de agir como raposa e se caracteriza como ouriço. Ele enrola-se, arriça os espinhos e permanece em defesa total diante de questionamentos, ou seja, por mais estranho que argumentar a respeito deste ponto, trata-se de pesquisadores que não permitem o avanço cientifico respaldados unicamente em seu orgulho. Desde os primórdios da natureza o conhecimento vem evoluindo através de sua transmissão, por oralidade e posteriormente pela escrita. Ao se deparar com a crítica de Moscovici citada acima, nada é transmitido, nada aqui é produzido. Muitos pesquisadores se escondem atrás de seu conhecimento e não permitem a troca de saberes. Um exemplo deste movimento é a própria expressão corriqueira de que a psicologia é “Coisa de louco!”. Não é de se assustar que tal expressão esteja no cotidiano de muitas pessoas, as quais viram o desenvolvimento da psicologia caminhando ao lado dos antigos manicômios. No entanto, qual a razão de tal expressão se manter com uma força singular nos dias de hoje? A partir das teorias das
representações sociais, muito há de valioso nesses ditos da sociedade para a psicologia em seu desenvolvimento, e pesquisas sobre estas expressões a respeito da ciência da psicologia podem culminar em resultados interessantes. Todavia o motivo pela qual esta expressão é utilizada como jargão por tantos profissionais e estudantes de psicologia ainda caracteriza a ciência como algo distante do senso comum. É interessante perceber como a oportunidade de levar a ciência da psicologia à comunidade parece difícil até para aqueles que a estudam, uma vez que estes não assumem um papel emancipador, mas sim de opressor, distanciando a psicologia do homem e o aproximando da patologia, ou do ideal patológico, como o jargão relacionado à “loucura”. O distanciamento das descobertas científicas e a comunidade promovem a desinformação e a ignorância. Um dos resultados eminentes da desinformação, por exemplo são os diversos pacientes que trazem seus psicodiagnósticos prontos, moldados pelos mecanismos de busca da web ou programas de televisão. Infelizmente existem profissionais que ignorando a ética profissional usam da desinformação mantendo a ideia de que “tudo” é doença. Afinal o diagnóstico não é feito em um dia, o homem não pode se submeter a análises superficiais e muito menos a ter o seu ambiente social desconsiderado. No livro “Um mundo assombrado pelos demônios” o ilustre cientista Carl Sagan (1996) discorre sobre psicólogos que não atuam em virtude do real, mas sim sustentam a loucura e disseminam a doença mental no lugar da saúde mental. No mesmo livro Carl Sagan, apresenta que uma de suas citações, em que o homem é composto do mesmo pó de estrelas. Profundamente aspiro que este sublime homem seja respeitado em sua essência. A cada passo da humanidade em sua transmissão de saberes, a permissividade de erros e acertos, nossas dualidades e nossos sonhos devem ser guardados. Enquanto a criticidade humilde pelo conhecimento for a meta de alguns pesquisadores a ciência se mantém incólume.
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crp responde Qual perspectiva ética que norteia o acompanhamento psicológico, seja no atendimento clínico, hospitalar, institucional, escolar, dentre outros, quanto a infância tão medicada e pais que se destituem de suas funções? Por José Alexandre de Lucca (CRP 08/IS-250) As polêmicas sobre a medicalização da vida têm tomado espaço cada vez maior no cotidiano das pessoas. Ao falarmos de medicalização, adentramos um território de delicadas e complexas relações, como, por exemplo, reconhecermos que existe sofrimento neste processo – das crianças, famílias, profissionais da educação, dentre os tantos agentes envolvidos! O reconhecimento desta condição de sofrimento nos conduz ao radicalismo, ou seja, à busca das raízes causais deste fenômeno historicamente constituído. A medicalização é objeto de investigação há muito tempo. Ivan Illich (1982) já alertava sobre a ampliação e extensão do poder médico que minavam as possibilidades das pessoas lidarem com sofrimentos e perdas decorrentes da própria vida, transformando as dores da vida em doenças. Michel Foucault (1980) denunciou a dupla promessa da medicina, quando se afirma capaz de curar e prevenir doenças, a ponto de poder construir um futuro em que sua própria existência será dispensável, pois terá eliminado todas as doenças. Tais promessas nunca se cumpriram! O sofrimento das crianças está, geralmente, atrelado àquilo que se denomina “inadequação” aos comportamentos e resultados esperados. Assim, há uma expectativa socialmente definida para a existência das crianças no mundo. Como afirmam Tesser et all (2010, p. 3616)
penso assim
Vida que embala peixe e se suja de óleo Nada tão natural quanto ver os jornais dos dias passados forrando uma bancada de oficina mecânica ou auto elétrica. As manchetes quentes e os fatos bem apurados agora embrulham o peixe congelado pro almoço de domingo. Os números da correção da inflação e o resumo das novelas dividem o mesmo espaço do desprezo de ontem. Acobertam o chão do mendigo. Vão para o lixo – sem coleta seletiva. Os acontecimentos se atropelam e empilham-se num canto esquecido do quarto. Juntam poeira, ficam amarelados; entram num saco preto plástico com destino à rua. E o único erro disso é achar que está errado. Reciclam o papel tal qual a informação. O calendário é o mesmo, a agenda a mesma, a vida também. Talvez o óleo respingue apenas na fala da vítima, embora às vezes escorra até o bandido. Tentativa e erro – e façam preces pelo fundamental direito de errar. Um dia pelo outro. Uma notícia serve, outra enoja; o conjunto dificilmente agrada. Reclama-
EDERSON HISING 24 anos, jornalista
se muito e não se faz nada. O erro nunca é dele. Dispara e tenta o alvo que lhe deram, sem que perceba que não pôde sequer escolher. E todas aquelas pedras rebatem no escudo de quem não se atinge. Quem paga a conta senta na ponta – e fica mais longe de acertá-lo. Ao passo do tempo, no ritmo da história, muito parece acontecer e pouco fica na memória. Escrever é guardar; registrar sem ter medo do erro; atender um chamado da alma ou simplesmente contar um segredo. Não há nada de novo, mas sim, de fundamental. As palavras, um punhado daqui outro bocado de lá, são sempre as mesmas – as que tomamos da boca dos outros. Não há nada de novo e caso os clichês não apareçam no começo, há espaço no final. Ou será que você não vê que a sua vida aqui se encerra em uma nota curta nos jornais? Quanto maior o calibre, maior o perigo. Quanto maior a coragem, maior o respiro. Quanto maior a edição, maior o embrulho.
charge
“A medicalização social é um processo sociocultural complexo que vai transformando em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras maneiras, no próprio ambiente familiar e comunitário, e que envolviam interpretações e técnicas de cuidado autóctones. A medicalização acentua a realização de procedimentos profissionalizados, diagnósticos e terapêuticos, desnecessários e muitas vezes até danosos...”.
No caso da Psicologia, destaca-se sua importante função patologizadora em relação ao comportamento infantil ou “problemas escolares”. Boarini e Borges (1988) nos alertam sobre as históricas repetições nos encaminhamentos de crianças para os atendimentos psicológicos. As supostas patologias evidenciadas durante o processo de escolarização apontam para a necessidade de profunda e radical (de ida às raízes) análise de seus fatores constituintes. O desafio que se lança à Psicologia é o da efetivação de um compromisso ético-político com a sociedade. Não devemos nos furtar à efetivação dos princípios norteadores da responsabilidade social presentes em nossa ciência e profissão, sendo que as Psicologias que se sustentam sobre bases críticas (independente dos referenciais) têm avançado sistematicamente na construção e promoção de formas de se apresentar à sociedade com vistas às transformações sociais necessárias. Avançando significativamente nas políticas públicas, a Psicologia tem contribuído para a formulação, implementação e reorientação de ações em diversos campos, tais como saúde mental, assistência social, educação, justiça, saúde suplementar, entre outros. No que toca à medicalização, o compromisso ético-político é indissociável do entendimento das condições históricas e sociais constituintes dos encontros contemporâneos.
CARTA DO LEITOR Existem momentos na vida em que não encontramos amparo e entramos em completa desolação, entretanto, ao ler as matérias do jornal Psicologia em Foco conseguimos obter o suporte necessário para a maioria das dificuldades encontradas pelo ser humano em suas diferentes concepções sobre o mundo. As informações difundidas pelo jornal servem como um amigo que nos aparece todo dia para contar algo novo, acrescentar alguma informação para nossas vidas,
contato@jornalpsicologiaemfoco.com.br
tirar um sorriso de nosso rosto e reviver nosso entusiasmo perante o mundo. É incrível o trabalho feito pela equipe do jornal, que dedica seu tempo para solver as dúvidas, às vezes científicas e também existenciais, de nós leitores. Parabenizo o trabalho desenvolvido e agradeço aos escritores/artigos que transmitem amor e conhecimento através das informações. Mauro Adriano Favoreto, acadêmico do 3º ano de Direito da UNOPAR.
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PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA
DR. FELIPE PINHEIRO DE FIGUEIREDO médico Psiquiatra da Infância e Adolescência, CRM-PR 31918, Especialista em Análise do Comportamento, Doutorando em Saúde Mental da Universidade de São Paulo (USP). Atua na “Essentia- Clínica de Psiquiatria”, em Maringá, no Centro de Atenção Psicossocial Infanti-juvenil e é professor de Medicina da UNICESUMAR.
Somatizações: A insuficiência materna e o vazio do corpo-mente Maternagem. Ante às dezenas de mães que tenho o privilégio de topar ou estar durante o papel que exerço de Psiquiatra da Infância e Adolescência, vejo de todas: mães-autoritárias; mães-participativas, mães-irmãs; mães-amigas; mães de sangue; mães-de-sentimento; mães-dedesejo; mães-pais; mães- avós. Então me deparo que ser mãe não é apenas ser um sujeito, mas, muitas vezes, faz-se nela um adjetivo, um verbo, uma frase, um texto. Freud, Lacan, Winnicot e outros pensadores da Psicanálise já falavam do papel primordial deste personagem para o desenvolvimento do ser humano, num formato de um todo indissociável: mente-corpo. O ser humano é uma das poucas espécies que não nasce suficientemente independente. Por isso, precisa de um outro até que assim se torne (independente tanto em termos de desenvolvimento motor, quanto em termos de desenvolvimento cognitivo e afetivo). Assim, seria com base na relação mãe-filho que o processo de “regulação mútua” das relações entre as pessoas se constituiria. Uma mãe “suficientemente boa” permitiria a internalização deste processo pelo filho, representando as relações na instância do ego. Do contrário, as experiências relacionais ficariam isentas de simbolizações, experienciando-se corporalmente, nos órgãos. Estariam aí uma das explicações para as somatizações, dores e sensações no corpo que, na verdade, representam dores internas (das
emoções). Dores de cabeça, dores de estômago, dores torácicas, formigamentos, paralisias..., a lista é enorme e a presença, cada vez maior em nossa atual sociedade. Segundo Lacan, o bebê, ou mesmo um adulto regredido, vivenciaria o corpo como feito de pedaços dispersos. O todo, por outro lado, estaria alienado ao corpo da mãe, sendo confundido por ela. Seria através do discurso materno que o inconsciente da criança far-se-ia modelado, permitindo, assim, a integração do seu próprio corpo e a consequente desvinculação do corpo materno, abrindo espaço para dois seres independentes e relações diádicas. Assim, uma imago materna que exagera ou ausenta-se na função de conter ou desintoxicar o excesso de estímulos provindos das mais diversas fontes, não permitiria o desenvolver-se deste outro em si. Expressa-se, desta forma, os sentimentos através do corpo. Bion usa o termo “mães hipocondríacas” para falar daquelas que desvirtuam as angustias das crianças, dando uma localização orgânica para algo que pertence ao todo. E assim, iniciase uma forma de sentir; através de órgãos que doem, sim, mas junto a eles doem os sentimentos, muitas vezes esquecidos. A utilização da criança como uma imagem de si (numa extensão narcísica) ou como um complemento erótico estaria no âmago da questão. Enquanto isso, a figura do pai seria descartável, desqualificada e ausente
do discurso simbólico. E assim surgem as somatizações; às vezes, pasmem, ainda na infância. Pessoas que se desenvolvem dessa forma costumam apresentar uma afetividade esvaziada, sem cor, e costuma-se chamar as relações destas como “relações brancas”. Tal dificuldade de colorir daria acesso ao pensar apenas de forma concreta, através dos órgãos. Criar-se-ia, assim, uma história sem palavras, onde o corpo seria o cenário e, portanto, nele seria a expressão dos sentimentos. Mas volta-se ao personagem, este, indispensável para que as partes se tornem um todo e que a extensão se torne independente. Com tudo isso, venho cá pensando na beleza e na dificuldade de ser mãe. Ao mesmo tempo que semeia e vê crescer, sabe-se que não é para si; ao ver se desenvolver, sabe-se que isto trará desprendimento e diferenciação. Como então suportar esta dor e, ao mesmo tempo, continuar a semear?! Será que há uma forma de se ensinar a ser aquela mãe de Winnicott “suficientemente boa”? Creio eu que a resposta sempre será negativa. Ser mãe é deixar-se moldar pelas intuições; deixar-se amar generosamente; deixar que um outro (o pai) dê pitacos em sua obra quando assim julgar importante; é apaixonar-se; fundir-se; desligar-se; sofrer junto; preocupar-se com os longos, distantes e perigosos saltos que, por sinal, ensinou a iniciá-los. Ser mãe é estar disponível para ser o que um outro lhe exigir; é desprender-se de si para encontrar num outro a modificação de si mesma que muitas vezes não é aquela mais sonhada, mas é a desenhada de fato. Por fim, ser mãe, acho, é estar presente apesar de ausente, para que, na ausência, haja um ser que, enfim, consiga, por cima, olhar nos olhos, abraçar generosamente e, enfim dizer: “obrigado, mãe, por me permitir sentir como um todo, amar como um todo, estar como um todo e, mesmo independente e longe de ti, te fazer como uma parte de mim.”
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JORNAL PSICOLOGIA EM FOCO
PSICOLOGIA DO COTIDIANO
Enraizar e voar
Ausência de falta
“Raízes e asas. Mas que as asas enraízem E que as raízes voem” Juan Ramón Jiménez
LUANA RAMOS ROCHA Acadêmica do 4ª de Psicologia da UniCesumar e membro do IPF
O que querem dizer esses versos? Podem parecer um pouco complexos, mas fazem alusão à inteireza humana, à necessidade de sentir-se completo. Indo mais a fundo: voar sem enraizar significa estar perdido, sem chão, sem lugar para buscar repouso ou abrigo, ou seja, encontrar-se ensimesmado e desconhecer a confiança. Enraizar sem voar, por sua vez, significa estar preso, até mesmo sem rumo, impossibilitado de enxergar o horizonte e a grandeza do céu, ou seja, não encontrar sentido em si, sempre preso a outras pessoas. Deste modo, é conveniente encontrar um meio termo. É preciso enraizar, mas também é preciso voar. É importante criar raízes, ouvir o que as pessoas têm a dizer, mas ao mesmo tempo é necessário voar, acreditar em si mesmo. Voar mostra independência, capacidade de tomar suas próprias decisões. Porém sem raízes, não se tem uma conciliação com o passado, e, assim, deixase de lado todas as vivências e experiências. Enraizar mostra respeito aos valores e à moral, mostra capacidade de absorver algo do meio e tomar para si. Contudo, sem voar, não se considera o futuro, deixando possibilidades de vivências e experiências novas. Sendo assim, para haver um fluxo na vida, é fundamental criar asas e raízes, voar e enraizar. Confiar em seus instintos e crenças, mas também estar aberto às ideias e opiniões do outro. Dessa forma é possível viver bem, em equilíbrio com o mundo.
ARIANA KRAUSE é Especialista em Psicologia Clínica (CRP 08/17743), Psicóloga do Trânsito e membro do IPF.
Parece redundância falar de ausência de falta. Num primeiro momento pode parecer se tratar da mesma coisa, mas nunca se viveu em uma era em que a falta é evitada ao máximo. Na verdade, as pessoas preferem dar tudo o que tem (e até o que não tem) para não permitir que o outro sinta falta de algo. Como se tivesse a obrigação de evitar o sofrimento caso algo venha a faltar. Existem muitos exemplos, mas são as crianças dessa nova geração que merecem mais atenção. Elas necessitam estar atualizadas e bem informadas com o que acontece no mundo, e seus cuidadores se sentem na obrigação de dar tudo (e mais um pouco) para que eles não se sintam frustrados por não possuírem algo. O mais surpreendente é que quanto mais coisas eles recebem, mais vazios se sentem, e percebe-se isso porque tão logo ganham algo, já querem outra coisa, sem curtir o que já possuem. Em contrapartida, a ausência física e afetiva cresce cada dia mais e os bens matérias vão paulatinamente substituindo os afetos. As crianças passam a aprender que são os bens materiais que são importantes, e não a presença, uma palavra ou até mesmo uma bronca. Nesse sentido, o filme “O jardim Secreto” retrata bem isso. No filme um pai perde sua esposa no momento do nascimento do filho e, por isso, tinha grande medo de perder o seu filho também. Seu temor era tão grande, que ele o protegeu muito, ao ponto de impedir que ele saísse de casa, tão menos permitia que ele andasse. E como ele (o filho) fazia para se locomover? Empregados traziam tudo a ele, ou então o carregavam no colo. Conforme foi crescendo, uma cama de rodas (empurrada por outrem) lhe servia de transporte pela casa. E assim se sucediam seus dias. Até o momento em que sua prima (ela tinha a mesma idade que ele, cerca de 9 anos)veio morar em sua casa por ter ficado órfã e ficou inconformada com a vida dele, o levou até o jardim que existia na sua casa (o chamado Jardim Secreto) que estava abandonado desde a morte de sua mãe. O menino ficou extasiado quando conheceu as árvores, as flores e também o sol. Instintivamente sua vontade era tanta de viver, que conseguiu se esvair da cama de rodas e se aventurou a andar. O pai ao ver aquilo ficou impressionado e alegre em ver o filho se tornando independente. O ato de não permitir que seu filho andasse sozinho, o tornava dependente de tudo e de todos, na tentativa de não frustrá-lo e chateálo. Faltou coragem para deixar o filho viver sua própria vida, com medo de que algo de ruim lhe acontecesse, além de impedi-lo de desbravar e conhecer o mundo por si só. Segurá-lo, protegê-lo e superprotegê-lo não permitiu que ele andasse com suas próprias pernas. Em analogia ao desenvolvimento emocional, andar com as próprias pernas é sinal de saúde. Ou seja, tomar conta de si, descobrir as coisas, se arriscar nas tentativas e erros da vida, errar até acertar, são meios de crescer e se desenvolver de forma saudável e feliz.
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humanista existencial em foco
O atendimento clínico voltado para o público infantil: pontuações da Gestalterapia GESCIELLY TADEI Psicóloga clínica e escolar CRP 08/11591 Especialista em THC Gestalterapeuta pelo IMGT Doutoranda em Educação Escolar pelo PPE/UEM
Compreendemos que toda a criança ao nascer chega para ocupar um “lugar” designado para ela na família. Ela vem imbuída dos desejos dos pais, do querer dos mesmos para que sua presença realmente se configure em dado espaço e tempo. Para Pedroso (1998, p. 67), ao nascer, a criança dita saudável,
sugere o constante aparecimento de necessidades e consequente satisfação das mesmas para alcançar o equilíbrio”. (ELIAS, 2001, p. 119). Necessitamos ter em mente que o nosso objetivo, dentro do processo terapêutico é ajudar nosso pequeno cliente, segundo Pedroso (1998, p. 68), a
“[...] é toda sensoriedade, estabelecendo contato com o mundo através do tato, do olfato, da gustação, da olfação e da visão. Progressivamente ela toma consciência de seu corpo, fazendo uso deste em sua totalidade, à medida que desenvolve controle de si e seu mundo. Ela é toda harmoniosa em sua expressão corporal e emoções. Concomitantemente, ocorre o desenvolvimento da inteligência e de uma outra forma de expressão, de grande importância, que é a linguagem. Esta expressa suas necessidades, pensamentos e ideias. Seu organismo atinge um grau de complexidade cada vez maior nos aspectos sensorial, intelectual e motor. O que vem a construir a base subjacente para o seu self.”
“[...] discriminar aquilo que é seu daquilo que é do outro. É um trabalho conjunto de restauração das funções de contato em direção à redescoberta de seu eu. Tal trabalho se dá via experiência, pois consciência e experiência são uma coisa só. E experienciando seu corpo, em terapia, a criança recupera sua saúde emocional.”
As crianças que chegam para nós para iniciar um processo terapêutico ou as que são designadas para trabalhos grupais conosco em instituições, apresentam um déficit em suas funções de contato, ou seja, são incapazes de utilizá-las de maneira satisfatória, tanto na relação consigo, como nas relações com as outras pessoas, em especial com aquelas mais significativas e, também, para com o meio social no qual habitam (PEDROSO, 1998). Oaklander (1980) reitera essa ideia ressaltando que as crianças que comumente vem para o processo terapêutico, são encaminhadas por dois motivos básicos: 1) inabilidade de fazer contato com algumas pessoas de sua vida, outras crianças, professores, pais ou partes de seu meio, lazer, esportes, dentre outros; 2) Falsa percepção do self (processo que constitui a individualidade e a identidade da pessoa). Nesse sentido, o que acontece é que muitas vezes as crianças vêm para a psicoterapia sem saber exatamente qual o motivo de estarem ali, por isso, “[...] geralmente são trazidas pelos pais, parentes ou outros cuidadores, porque manifestam algum comportamento que os adultos julgam inadequados” (PRAGER, 2000, p.84). Vale ressaltar, baseando-se em Pedroso (1998, p. 67-68), que essa
“[...] forma disfuncional de funcionar vem de uma vontade imperativa de sobreviver. As funções dessa defesa as protegem do meio hostil e podemos presenciar tais defesas através das mais variadas formas de comportamento, tais como: retraimento, desligamento do real, outras querem aparecer, hostilidade, ira, medos, muito boazinhas, etc”.
Prager (2000, p. 84) complementa tal afirmação ao defender que “[...] tais ‘comportamentos inadequados’ são, retirando-se os casos de patologia orgânica, mecanismos inconscientes que a criança utiliza para sobreviver, para tentar crescer e satisfazer suas necessidades e sentir algum poder”. A Gestalt-terapia caminha, portanto, nesta direção: enxergar a criança enquanto ser humano e não enquanto sintomatologia. Por isso, defendemos que para se trabalhar com crianças é fundamental gostar delas, “[...] gostar de brincar, desenvolver seu lado lúdico, observador e fornecer os meios para que a criança reorganize suas vivências. O terapeuta deve se incluir no jogo do brincar, usando como recursos a criatividade e a dramatização” (ZANELLA, 1998, p.50). Nesse sentido, o processo gestáltico de psicoterapia com crianças tem como fundamento básico o “[...] conceito de auto-regulação organísmica, o qual
Assim, o terapeuta deve, de acordo com Violet Oaklander (1980), se colocar à disposição da criança, para que esta entre em contato com a sua problemática central, tornando-se interlocutora de suas próprias dificuldades e potencialidades, possibilitando, dessa maneira, que a criança se torne a responsável pelo seu ajustamento criativo, o qual está a serviço de seu próprio crescimento. Para tanto, Elias (2001) pontua que na relação terapeuta-criança, o terapeuta precisa estar muito atento a alguns pontos de observação, como por exemplo: o vínculo, o qual deve ser intensificado pelo terapeuta. Isso ocorre desde o primeiro contato que é estabelecido com o pequeno cliente; estar presente, dividindo sentimentos e emoções; ajudar a criança a perceber seu self; colocar limites (não permitir que a criança use, no setting terapêutico, o mesmo funcionamento que usa com os seus pais); e relacionar-se de maneira distinta, para que a criança perceba ali duas pessoas separadas na experiência presente, porque essa é a única realidade presente no momento, a qual vai possibilitá-la experienciar a si mesma. O gestalt-terapeuta infantil precisa perceber, ainda, que a cada fase do desenvolvimento infantil surgirão novas necessidades, é esse movimento que dinamiza seu crescimento do pequeno cliente. Dessa maneira, podemos ajudar a criança a organizar o seu pequeno ‘mundinho’, buscando o sentido e as sensações de tudo o que a permeia.
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JORNAL PSICOLOGIA EM FOCO
SESSÃO ESPECIAL
“Infância: tempo de “Já o menino sabe, que tudo o que tem forma tem nome e o que nome tem, conforta” HORÁCIO COSTA, “O MENINO E O TRAVESSEIRO” MARTA DALLA TORRE CRP 08.0404 Psicanalista, Membro fundador do Ato Analítico -Clínica e Transmissão em Psicanálise e da Letra -Associação de Psicanálise; Exerce a clínica psicanalítica no atendimento a crianças, adolescentes e adultos em consultório e no CAPS i de Maringá
VALÉRIA CODATO ANTONIO SILVA Psicanalista, Membro fundador do Ato Analítico – Clínica e Transmissão de Psicanálise em Maringá-PR e da Letra – Associação de Psicanálise; Psicóloga- CRP 08/02463, Mestre em Psicologia, docente de cursos de pósgraduação Coordenadora Regional de Saúde Mental/15ªRegional de Saúde/Maringá
A psicanálise não faz referências às fases do desenvolvimento humano como um processo natural de crescimento e amadurecimento biopsico-social, mas aos tempos da constituição do sujeito, que resultam do encontro entre a natureza, a cultura e a sociedade. Assim, concebe a infância como o primeiro tempo fundante do psiquismo. Para que surja um sujeito psíquico, se faz necessário o encontro entre a concretude de um corpo orgânico (anatômico, dotado de disposições genéticas e reflexos inerentes à natureza da espécie) com o campo simbólico, da cultura, da linguagem. Tal encontro só é possível a partir da relação do pequeno “infant” com o Outro primordial, encarnado por aqueles que desempenham a função parental, que, com suas palavras, gestos, olhares e toques, “humaniza”, dá sentido e significações às manifestações do corpo do bebê. Sabemos que Freud não prestava atendimentos às crianças, e suas descobertas sobre a infância vieram, sobretudo, baseadas na escuta do discurso inconsciente dos adultos. Em suma, a teoria freudiana nos ensina que, para se tornar alguém, é preciso que a criança tenha desejo e, para que isso seja possível, é necessário que tenha sido desejada por outro indivíduo. tal processo é descrito por Freud como pulsional, e faz parte da introdução da criança no campo do narcisismo e da sexualidade. Observando seu neto de 18 meses, Freud (1920) descreve o “Fort-da” como um jogo que mostra a origem do nascimento do sujeito psíquico por meio do processo de simbolização. O jogo consistia no ato da criança lançar para longe de si um carretel preso a um barbante e, ao mesmo tempo, enunciar fonemas que apontavam o processo de separação: “fort” – longe. Num segundo movimento, a criança trazia de volta para si o carretel, com o enunciado “da”- perto. Repetia incansavelmente esse jogo mediante a saída da mãe de cena,
buscando na brincadeira controlar sua ausência e presença, por meio da representação. Tal cena revela o que Lacan posteriormente descreveu como a constituição do eu no texto “O estádio do espelho e sua função como formador do eu” (1949), ao “se fazer” aparecer e desaparecer diante do espelho (mãe). Em outras palavras, o jogo revela a perda da relação direta com a coisa e a entrada da marca significante no psiquismo pelo acesso à linguagem. Também em Freud encontramos no texto “Escritores criativos e devaneios” (1908) que o brincar é a ocupação favorita e mais intensa da criança, onde ela cria um mundo próprio, buscando ligar seus objetos e situações imaginadas às coisas do mundo externo, num processo de internalização e formação de seu mundo representacional. Temos, então, pontos cruciais em torno do brincar na infância: a repetição, a linguagem, a imagem especular, a simbolização. O brincar, portanto, é fundamental na constituição do psiquismo, uma vez que cria recursos para
o seu desenvolvimento “neuro-psiquicocognitivo-motor”, o qual dá ferramentas para a aquisição da linguagem, da fala e da marcha, do aprendizado da leitura e da escrita, do raciocínio matemático, dos movimentos do corpo, do controle esfincteriano, das habilidades manuais, da socialização, das competências e habilidades emocionais para viver em sociedade. O brincar, para Freud (1908), é determinado por um único desejo - de ser grande e adulto. Ou, como afirma Jerusalinsky (2011, p.87): “a criança é aquela que brinca de vir a ser”. Portanto, brincar é coisa séria! Jerusalinsky (1995) descreve uma série de jogos ditos “estruturantes” ou constituintes de um sujeito: 1 - Fort-Da: presente nas brincadeiras que colocam em cena o presente-ausente, jogos de ocultamento, de esconde-esconde, e até mesmo a formação da mentira e do segredo em crianças maiores; 2- Jogos transicionais: brinquedos tomados como objetos transicionais, de acordo com Winnicott, são aqueles que aludem
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brincar de vir a ser”
à substituição do objeto de desejo (mãe), portanto lançam a criança numa ordem mais além do gozo materno, como bonecos e bichos de pelúcia; 3- Jogos de borda: lançar objetos do berço, empurrar objetos para que caiam, espiar pelas frestas, remexer em buracos, andar em parapeitos, jogar de cair numa piscina ou em cima de colchões etc. Tais jogos ditos estruturantes ou constituintes não são destinados a resolver sintomas, embora às vezes sejam recursos para tal, mas em sua essência estão orientados para a constituição de um sujeito psíquico. E o que podemos pensar sobre esse processo de simbolização no mundo atual, onde observamos uma “economia” da imaginarização do brincar, uma supressão dos tempos da infância e a consequente “adultização” dos pequenos, que são “poupados” do tempo necessário para os jogos constituintes? A infância hoje se encontra marcada pelos sintomas da sociedade contemporânea como a velocidade, a multiplicidade, a fragmentação,
o consumismo exacerbado, a sexualização banalizada, a hiperestimulação, o culto à imagem, que também alteram as brincadeiras e o processo metafórico que lhe é inerente. Os brinquedos, por sua vez, que deveriam ser verdadeiros instrumentos para tal processo se realizar, reproduzem o discurso social dominante “light and clean”, ou seja, objetos ofertados pela indústria que cumprem seu papel de mercado - consumíveis em larga escala, altamente descartáveis, límpidos e vazios de significação. Entretê-los com jogos eletrônicos ou virtuais, muitas vezes tomados como “pedagógicos” por pais e educadores, carecem de valor estruturante, principalmente para um psiquismo ainda primitivo que ainda transita entre o real, o imaginário e o virtual. Além do mais, o cuidado exagerado com a segurança das crianças para que “nada de mal lhes aconteça”, ou a oferta exagerada de objetos para que “nada lhes falte”, transforma o brincar em fonte de angústia para os pais. Nesta direção,
Meira afirma que (2003: 47): “Literalmente, o olhar do Outro invade a cena do brincar da criança de tal forma que a ela resta abandonar o jogo e buscar algo em torno do qual seus pais desviem o olhar, para ali instalar seu jogo metafórico”. O cotidiano da clínica com crianças nos traz exemplos variados sobre os efeitos desse modo de viver na atualidade sobre o corpo infantil. Por exemplo, encontramos crianças que não conseguem um controle esfincteriano, que recusam o alimento, ou ainda que não dormem à noite, apesar de não apresentarem qualquer motivo fisiológico para tal. Há ainda sintomas nomeados como a hiperatividade, a desatenção, dificuldades de aprendizagem que revelam como as situações familiares, fatos do passado, perturbações nas funções materna e paterna ou na relação do casal parental intervêm em seu aparecimento. Entendê-los para além do ponto de vista neurobioquímico que impera na atualidade, é reafirmar o homem como ser simbólico. Se, por um lado, a brincadeira faz parte dos tempos da constituição do sujeito, ela também é reveladora do que não vai bem nesse processo. Isto significa que a tendência de corrigir os sintomas da infância por meio da medicalização ou até mesmo da ocupação de seu tempo por atividades sem significação para ela, vai na contra mão do que a psicanálise propõe. Devemos nos ocupar, portanto, daquilo que ainda não está constituído, do inacabado, para que em seu percurso subjetivo a criança possa, por meio da brincadeira, expressar suas angústias e conflitos e resolver suas questões. Distintamente do que apregoava Anna Freud, uma análise não deve se confundir com uma atividade educativa, mas sim proporcionar à criança a possibilidade de viver plenamente sua infância como um tempo e espaço necessário para que sua subjetividade se estruture. A psicanálise com crianças se propõe, então, a escutá-las em suas brincadeiras e ajudá-las no processo de metaforização, a construírem redes simbólicas, a entrarem no jogo para que depois possam sair dele, rumo ao mundo adulto, tal qual afirmava Freud (1908, p.150): “Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância; equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor”.
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COMPORTAMENTO EM PAUTA
Breves comentários sobre desenvolvimento infantil para Análise do Comportamento
RENAN MIGUEL ALBANEZI CRP 08/21125, Psicólogo no Instituto Devir de Desenvolvimento Humano (www.institutodevir.com), pós-graduando em Análise do Comportamento pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (NECPAR) e pósgraduando em Terapia Comportamental: Aplicação e Teoria pela Universidade de São Paulo (USP). Colunista do site Comporte-se: Psicologia Científica (www. comportese.com)
Não podemos falar sobre desenvolvimento infantil sob a ótica da Análise do Comportamento sem categorizá-la como uma abordagem funcionalista e não estruturalista. Isso é crucial pelo fato de que, dessa forma, conseguimos entender a diferença entre a ciência que surge da filosofia de B. F. Skinner e as outras teorias que falam de desenvolvimento humano. Uma vez que atentamos para a função de comportamentos, não compartilhamos dos ideais de outras teorias que afirmam que o ser humano se desenvolve por meio de faixas etárias ou de fases psicossexuais de cunho mentalista ou qualquer outra “fase do desenvolvimento”. Apontaremos explicações alternativas a essas apresentadas, contemplando apenas os princípios básicos de comportamento respondente e operante e as formas pelas quais um organismo aprende a se comportar. Um bebê apresenta, no início de sua vida, comportamentos estritamente respondentes em sua maioria. A sucção do peito da mãe, o “choro de fome”, o sono, balbucios etc., no entanto, tais comportamentos que são selecionados filogeneticamente, pela história da espécie, podem adentrar a classe operante, sendo selecionados pelas consequências produzidas. Citemos um exemplo: a criança que “chora de fome” recebe leite da mãe. Tal reforçador é primário e, por isso, extremamente poderoso. A ele estão associados outros reforçadores, generalizados, como a atenção e o afeto do indivíduo que o amamenta. E conseguimos ver as relações operantes que podem se instalar: uma operação estabelecedora (a privação de alimento) gera o choro e o choro faz com que a mãe, sendo negativamente reforçada por ele (caso o estímulo “choro” seja aversivo para a mãe), apresente o leite, o afeto e a atenção ao bebê como um comportamento de fuga (Catania, 1999). O mesmo paradigma se estende ao bebê: uma vez que a criança chora e a mãe o conforta com leite e outros reforçadores associados, a probabilidade de que o bebê chore por essas consequências providas pela mãe aumenta. Sendo assim, comportamentos que a priori são julgados como respondentes (como o “choro de fome” e um “instinto materno de proteção”) se mostram em um novo paradigma, de seleção por consequências, sendo classificados como classes operantes (a mãe se comportando não por instinto, mas por reforçamento negativo e o bebê se comportando não mais por um simples “choro de fome”, mas por ser positivamente reforçado pela mãe quando chora). Nas classes operantes, Skinner (1953; 1957; 1969; 1974) aponta três formas de aprendizagem de comportamentos: 1) modelagem; 2) imitação e 3) instrução. A modelagem é o procedimento em que um comportamento que já tem alguma determinada probabilidade de ocorrência em nível operante se desenvolve quando positivamente reforçado por aproximação sucessiva. Um exemplo a ser citado é o que chamam de desenvolvimento motor. A criança possui instâncias de comportamento que desembocam na classe de comportamento de andar. Primeiro ela pode se firmar, depois aprende a sentar-se, também aprende a inclinar o corpo para frente e gradativamente se mover em movimentos de
engatinhar. Após isso ela pode levantar-se e apoiarse em objetos e móveis para locomover-se de um lado para o outro. E, finalmente, ela consegue dar os primeiros passos para depois sair andando e assim sucessivamente até correr. Esse comportamento não é determinado apenas pela força que a criança adquire nos músculos (afinal, crianças com hipotonia muscular também aprendem a andar), mas pelas consequências geradas por esses comportamentos em cada emissão. Além do possível reforçamento social provido pela família quando a criança começa a apresentar esses tipos de resposta, há também o reforçamento natural de se locomover: mover-se no espaço, aproximar-se de objetos reforçadores, afastar-se de objetos aversivos etc. É importante salientar que não existe uma fórmula para a aquisição do comportamento de andar, topograficamente falando. A criança é reforçada pelo mover-se, afastar-se ou aproximar-se de objetos e eventos que a rodeiam. Dessa forma, não deveria ser tão preocupante que uma criança arraste o bumbum para frente e para trás ao invés de engatinhar: a função do comportamento é a mesma. O que muda é apenas a forma como ele se apresenta (a estrutura, no entanto, como salientamos no começo do texto, não somos estruturalistas). O comportamento aprendido por imitação é aquele comportamento adquirido pela observação de outra pessoa se comportando (dessa forma, é a gênese do comportamento social). A criança pode aprender diversas coisas por meio da observação de comportamentos de outras pessoas (não é à toa que nossa comunidade verbal sempre alerta os irmãos mais velhos que eles servem de exemplo para os mais novos). Um exemplo é quando a criança aprende a guardar brinquedos utilizados em seus devidos lugares porque observa esse irmão mais velho fazendo isso e sendo positivamente reforçado pelos pais. Se ela se comporta para que obtenha estímulos reforçadores, seria plausível que ela imitasse alguém que obtém reforçamento positivo de alta magnitude (como aprovação e afeto de familiares). Uma vez que essas consequências são recebidas, o comportamento tende a manter-se com alta probabilidade de frequência. A última forma de aprendizagem é o que se chama de instrução. A instrução só existe em função de um
comportamento operante e social classificado como comportamento verbal. A criança aprende a fazer coisas porque lhe disseram para fazer. Por exemplo, uma criança que se aproxima de uma tomada é advertida: “não coloque o dedo na tomada, você pode levar choque!”. Essa instrução tem vantagens claras: retiramos a possibilidade de que a criança seja exposta a consequências aversivas. E, mesmo que ela desobedeça e coloque o dedo na tomada depois de termos advertido sobre o choque, temos um efeito colateral interessante: a probabilidade de que ela acredite numa próxima instrução aumenta, uma vez que avisamos do choque e ela o sentiu. Existem muitos pontos a serem tratados num texto sobre desenvolvimento infantil para a Análise do Comportamento. Muitos aspectos importantes foram certamente negligenciados nesse texto por motivos de formatação, conveniência e também pela importância de mostrarmos de maneira muito prática e didática, por meio de exemplificações, que comportamentos são determinados pelas variáveis de controle do ambiente: só há comportamento se houver interação do organismo com o ambiente, se houver contingências de reforçamento para que ele seja emitido e consequenciado de acordo. Comportamentos que se enquadram no tema “desenvolvimento infantil” muitas vezes são reforçados de acordo com a necessidade da comunidade verbal em que a criança está inserida: alguns comportamentos devem ser aprendidos para que esse membro ainda infante se torne útil para a sobrevivência da microcultura dessa comunidade no futuro. Dessa forma, esperamos que ao menos uma luz tenha sido jogada para a compreensão analíticocomportamental do desenvolvimento infantil: a seleção por consequências, como quaisquer outros comportamentos observados no adolescente, no adulto, no idoso, enfim... em qualquer fase da vida, o que determina são as contingências. Em suma, para a análise do comportamento, não é a idade, tampouco a fase psicossexual, são as contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Apresentamos comportamentos e o ambiente provê as consequências necessárias para que ele se mantenha forte em nosso repertório comportamental.
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CONEXÕES
FÚLVIO CÉSAR CASEMIRO Psicólogo (CRP 08/15146). Especialista em Psicanálise, Teoria e Clínica. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Psicólogo clínico no CISAM (Centro Integrado de Saúde Mental) e na Clínica Plenus Psi.
Funções e limites do dito humorístico em tempos de terrorismo No dia 7 de Janeiro deste ano, o mundo assistiu perplexo ao ato violento - e cruel - contra os integrantes e colaboradores do semanário francês de humor Charlie Hebdo, que como triste saldo teve 12 mortos e 11 feridos. O ataque assumido por extremistas islâmicos pareceu ter, como aparente estopim, a recorrente representação gráfica do profeta Maomé nas charges de humor do jornal. Humor que levantou opiniões divergentes: por um lado foi considerado promotor de crítica social e liberdade de expressão, e seus cartunistas como “corajosos”, opinião essa de Ziraldo, um de nossos maiores chargistas e críticos do Regime Militar por meio do humor de “O Pasquim” (Hora 1, 2015); por outro, como bem discute um texto apresentado por Leonardo Boff (2015, embora a autoria seja atribuída a um amigo) o Charlie Hebdo teria cometido um excesso em sua forma de fazer humor, ultrapassado o limite do bom senso, e acabado, assim, por fomentar a intolerância, o preconceito e a estigmatização dos seguidores do islamismo. Certamente estamos diante de um fato social de grande complexidade, que vai além das charges e de seu humor - essas talvez aqui tomadas como “bode expiatório” de algo maior. Não queremos, aqui, realizar uma análise social, política, ou mesmo definir se “Je suis Charlie”, ou “Je ne suis pas Charlie”, como pululam as opiniões nas redes sociais. Queremos apenas apresentar um pouco do que a psicanálise tem a nos dizer sobre os ditos humorísticos, e deixar a você, leitor, algo mais para contribuir na sua própria compreensão desse fato social recente. Afinal, qual seria um possível significado psíquico do humor para o indivíduo e para seu grupo? E, aproveitando o atual contexto dos fatos, existiria um limite ou ética para se produzir humor quando estão em jogo questões sociais carregadas de valor emocional para as pessoas? Freud nos fala de três tipos de ditos humorísticos:
os chistes (witz), o cômico e o humor. Nos chistes há um jogo de condensação e deslocamento de palavras, que permitem o sujeito driblar o recalque, e assim satisfazer suas próprias moções pulsionais polimorfaperversas, como o sadismo e o voyeurismo. É o que acontece no chiste “familionário” do poeta Heine (citado por Freud, 1905/1996), onde ele consegue, a um só tempo, questionar sadicamente o tratamento familiar (falso) de seu tio rico, sua autoridade, além de revelar um desejo amoroso proibido pela própria prima. O cômico também pode se prestar a “propósitos hostis e agressivos” que servem para privar alguém de sua “reivindicação de dignidade e autoridade” (Freud, 1905/1996, p. 188). É o que ocorre na “caricatura”, na “paródia” ou o “travestismo” (p. 187), no qual alguém é retratado com uma cabeça, nariz ou orelhas desproporcionalmente grandes ou pequenas. Parece ser, de forma mais precisa, o recurso utilizado nas charges sobre Maomé do Charlie Hebdo, quando esse é retratado nu e de cócoras, ou ameaçando de punições e castigos alguém por motivos banais. Já no humor, Freud (1927/1996) diz que “O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer.” (p. 166). É o caso do humor patibular (galgenhumor), onde o sujeito faz pilhéria de si próprio e de seu sofrimento. O humor patibular foi um recurso precioso para os judeus durante o Holocausto, dentro dos guetos e campos de concentração (Oster, 1999). Brincar com a própria realidade terrorífica, que era de iminência de aniquilamento psíquico ou físico, foi uma forma de manter a sanidade mental, de simbolizar aquilo que era puro excesso advindo dos atos violentos do algoz
nazista, ou mesmo para lidar com o próprio mundo interno pulsional sob duras condições de privação. Mesmo fora dos guetos e campos, ou seja, nas cidades e vilas, existiram também chistes e produções cômicas que atacavam o algoz nazista, destituindo-lhe a autoridade, e permitindo a vítima sentir-se superior a ele. Nesse sentido, acreditamos numa função social do dito humorístico, como espécie de auxiliar de tradução (Martens, 2009) difundido na cultura, ou seja, a criação de uma rede de simbolismos (via humor, piadas, chistes, charges) que auxilia as pessoas a darem sentido, metabolizar psiquicamente fatos altamente excessivos ao psiquismo e, por isso mesmo, potencialmente traumáticos. Chistes, cômico e humor seriam, assim, formas de obter prazer de fontes inconscientes, mas também para tolerar as vicissitudes da castração como perdas afetivas, narcísicas, ou mesmo frente à própria iminência de aniquilamento, como fica mais evidente no humor patibular. Há, também, para além da satisfação individual, um alcance coletivo, como no humor dos judeus durante o Holocausto. Mas, frente a isso que foi aqui apresentado, em que lugar poderíamos situar o humor do Charlie Hebdo? Estaria ele conseguindo ultrapassar os limites individuais (prazer individual, sádico, voyeurista) e servindo como espécie de auxiliar de tradução psíquica para algum fato social contemporâneo? Como poderíamos, ainda, pensar no limite ético para usufruir dos ditos humorísticos, sem que as moções pulsionais aí envolvidas (especialmente as de caráter sádico e agressivo) não se tornem ou incitem um ato concreto e radical como um atentado terrorista? Não estaria esse limite ético situado entre o bem estar pessoal e o compartilhado? Ou seja, posso fazer humor até o ponto em que não transgrido a tolerância e o consentimento do outro num plano social? Afinal, se somos constituídos por um universo pulsional inconsciente e particular - descoberta fundamental de Freud - é ele mesmo quem nos dá a direção de que esse inconsciente não é estruturado ou constituído fora do laço social. É a relação com o outro que nos constitui, e mesmo o humor é cativo desta relação. Mesmo o dito humorístico, que possibilita em certa medida a transgressão do recalque ou da repressão social, não estaria submetido a renúncia de certa quota de sexualidade, sobretudo da agressividade – como nos fala Freud (1930/1996) – para vivermos socialmente?
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cONEXÕES
Comensalidade: aspectos sociais e históricos
GABRIELA CRISTÓFOLI PEREIRA Gastróloga formada pela UniCesumar. Acadêmica do 3º ano de Psicologia da UniCesumar. Membro do IPF.
Quando é a mãe que chora: uma breve reflexão sobre o primeiro dia de aula TAÍS KEMP ABDO Psicóloga clínica (CRP 08/20920), graduada em Psicologia com ênfase em saúde pela Universidade Estadual de Maringá em 2013, acadêmica do segundo ano de pós-graduação em Psicoterapia Psicanalítica Contemporânea pela Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Maringá e membro do IPF.
Derivado do latim “mensa”, o termo comensalidade significa conviver à mesa. De acordo com Lévy Satruss, o desenvolvimento de sua prática se deu a partir do domínio do fogo: à medida que alimentos podiam ser transformados do cru ao cozido, o homem inaugurou a alimentação com finalidade social. Para nós ocidentais, uma das primeiras formas de convivência social acontecem em torno da mesa. Poderia você, hoje em dia, imaginar todos os conceitos existentes que envolvem partilhar uma refeição? Na perspectiva de Durkheim, sociólogo francês, formas de agir, pensar e sentir são impostas aos indivíduos de forma coercitiva. Quem não segue o padrão, é posto para fora do grupo. Crianças, recém chegadas nas famílias, são orientadas diariamente sobre a forma de como mastigar, usar talheres, agradecer, usar o “por favor” etc. Se as boas maneiras não forem cumpridas, os pequenos estão passíveis de punição, como, por exemplo, a expulsão da mesa. À medida que o tempo passa, os ensinamentos são arraigados nos indivíduos e se tornam hábitos. Funções para o preparo dos alimentos foram estabelecidas entre integrantes dos grupos, e estes passaram a se organizar em torno da cozinha, favorecendo o convívio social. Desse modo, a alimentação tonou-se simbólica. Comer e beber em conjunto passaram a ser rituais de fortalecimento de amizades, bem como de estreitamento de acordos comerciais. Afim de evitar a violência durante os acordos comerciais à mesa, a alimentação tornou-se cheia de regras. A maneira como se comia tornou símbolo de padrão social e caracterização de classes. Estes ritos deram início aos bons modos que transferimos até hoje para nossos descendentes.
Lancheira na mão, cabelinho penteado para o lado e uma bela cara de sono. É assim que começa nossa jornada pelo aprendizado, e é assim que saímos na calorosa foto do primeiro dia de aula, que toda mãe tira e guarda com orgulho do seu pequeno prodígio. Tudo muito bonito, até a fatídica hora em que a “tia da escolinha” chega e o momento do adeus é anunciado pela primeira vez. Digo fatídica pensando principalmente na dor da mãe, essa que chora ao deixar seu bebê pela primeira vez na escolinha, e que ao mesmo tempo conta para as amigas com orgulho que o filhote a deixou a foi para os braços da professora com alegria. Dor essa que se tornou naturalizada, muitas vezes acompanhada de uma aceitação do sofrimento, como se sofrer na ausência do filho já fosse algo intrínseco ao fato de ser mãe. Essa cena bastante comum, que com certeza acontece aos montes por aí, deve ser alvo de, no mínimo, uma breve discussão. Como sabemos (nós todos, no senso comum nosso de cada dia), é fundamental que a criança se separe da mãe e crie laços com outras crianças e aprenda a lidar com essa separação. Até mesmo as mães que choram no adeus sabem disso, mas justificam suas lágrimas pelo “amor incondicional”, e acham que o que se espera é ser assim; creio que não é bem por aí. Se pensarmos um pouco, o que representa esse choro? As lágrimas de uma mãe ao deixar o filho na escola podem vir do medo de perdê-lo, do medo que ele se machuque ou qualquer coisa ruim aconteça, até mesmo pode vir do orgulho de ver que o pequeno está crescendo. Em alguns casos, decorre de um sentimento egoísta, de perder algo que lhe pertence. Sim, é bastante comum pensar assim, não é? Toda mãe sente que o filho é “seu”, e que nada pode acontecer com aquele que saiu de seu próprio ventre. Mas será que o filho pertence mesmo aos seus pais? Afinal, um ser humano pertence a outro ser humano? Encerro com as palavras do poeta libanês Khalil Gibran “Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma...”
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dica de LIVRO
Entre quatro paredes “O inferno são os outros” é a frase mais conhecida de Sartre, porém muitas vezes condena o autor a interpretações angustiantes da sua obra filosófica e de suas contribuições para a Psicologia. Essa frase saiu da boca de um personagem criado por ele na dramaturgia, em uma peça que tem a tradução mais conhecida no português como “Entre Quatro Paredes”. Nesse sentido, quero pontuar que os desdobramentos filosóficos e psicológicos não estão na cara do leitor ou espectador da peça, mas nas entrelinhas da obra e sua interpretação profunda. Garcin, o personagem que diz tal frase, acaba no inferno de Sartre por ser um covarde que tenta sustentar a imagem de herói perante os outros, o que faz com que ele viva em função do olhar do outro. A prova disso é que até depois da morte ele continua a se preocupar com o que dizem dele na Terra. E o inferno? Bom, segundo a peça teatral criada por Sartre, lá ninguém pisca, não há escova de dente, a lareira está apagada (ironizando a imagem do inferno para o senso
comum), os móveis não são confortáveis e as pessoas têm subjetividades que são conflitantes umas com as outras presas em uma sala. Ou seja, no inferno o outro é o nosso carrasco. Em 1965, a Deutsche Grammophon Gesellschaft gravou um disco com a obra teatral de Sartre. Nesta ocasião o próprio autor gravou um prefácio onde explica alguns pontos da peça, que segundo ele, foram mal entendidos. No prefácio ele diz que foi mal compreendido quando escreveu a frase “o inferno são os outros” porque as pessoas acham que a relação com outro é sempre infernal, que elas estão envenenadas por natureza. Mas o que ele quis dizer, afinal? Ele (Sartre) disse que as nossas relações PODEM estar envenenadas e quando isso acontece experimentamos o inferno. Porque algumas pessoas dependem em demasia do julgamento do outro, vivem costumes e hábitos que para elas são infernais, pois não condizem com a sua autoimagem e as fragilizam, mas mesmo assim nada fazem para mudar a situação.
Isso não significa que a relação com o outro está condenada ao inferno. Até porque é através do outro que conhecemos a nós mesmos. Neste sentido, o outro é uma fonte de autoconhecimento, de reflexão, além de poder ser fonte de outras tantas coisas quando olhamos para o que ele causa em nós. O outro pode até ser o céu, tudo depende da situação em que o encontramos. Mais um mal entendido pontuado por Sartre, é o de que as pessoas, na peça de teatro escrita por ele, estão MORTAS. Elas não podem quebrar o ciclo de ações que fizeram na terra, elas não podem se libertar dos vícios e costumes nocivos que adquiriram. Por exemplo, mesmo que Garcin, o personagem da peça que disse a célebre frase, pare de ter medo e não se sinta mais um covarde, ele continuará sendo um covarde porque suas ações não estão mais em jogo, não estão em vida. Logo, a lição maior é que qualquer situação infernal pode ser superada e deve ser superada enquanto estamos vivos. É por isso
MÁRIO SETO TAKEGUMA JUNIOR Psicólogo (CRP 08/18972), formado na Universidade Estadual de Maringá, trabalhou no CAPS-SARANDI atuando na terapia em grupo dos usuários. Ator Profissional e Produtor Cultural, ministra oficinas de teatro para a comunidade na Oficina de Teatro da UEM e no projeto Médicos da Graça (Palhaços de Hospital)
que os personagens estão mortos, eles não podem fazer nada, também é por isso que quando estamos em situações onde o outro é uma ameaça sentimos o inferno. E deve ter sido mesmo um inferno a época na qual a peça foi escrita: “Entre Quatro Paredes” foi escrita na Segunda Guerra Mundial. Leia se quiser.
dica de filme
“Boyhood” e o devaneio do tempo O drama “Boyhood – Da Infância à Juventude” é um retrato poderoso e sutil de como o homem é vulnerável ao tempo e às mudanças que acontecem ao seu redor. A forma como o cineasta Richard Linklater autentica essa ideia e a abordagem que se apropria para narrar a história é o que torna o projeto um caso raro e especial na história do cinema. Filmado ao longo de 12 anos, elenco e equipe iniciaram as filmagens em 2002 e a cada ano se encontravam para dar continuidade à história, que acompanha uma família de pais divorciados que tem um casal de filhos, sendo o garoto, Mason, o protagonista. Um dos aspectos mais interessantes do longa é observar como os personagens reagem com o avançar do tempo: comportamentos e personalidades que se alteram porque estamos em condição de constante transformação, seja pelas nossas atitudes e escolhas
como por fatores externos. Mas o toque que Linklater atribui ao filme é um diferencial, pois “Boyhood” foge de qualquer imposição narrativa e se assume como uma deliciosa divagação, uma contemplação dos momentos simples da vida. A modéstia do projeto se justifica em o roteiro não privilegiar acontecimentos “marcantes” e típicos de cada fase, como o primeiro beijo, a primeira transa ou o primeiro porre. Em vez disto, “Boyhood” celebra os pequenos eventos da vida de seu protagonista, esses que achamos não ter nenhum efeito posterior, mas que podem ser definitivos. O filme desenha uma infância como qualquer outra, repleta de ingenuidade, confusão e brincadeiras bobas, assim como uma puberdade cheia de burradas, descaso e a com a típica rebeldia sem causa dos adolescentes. A identificação do espectador com essas passagens é inevitável.
ELTON TELLES Elton Telles é jornalista, crítico de cinema e proprietário da agência de conteúdo Vila Ópera.
A primeira cena do filme é a mãe buscando Mason na pré-escola e uma das últimas mostra ela chorando com a despedida do filho rumo à faculdade. Às lágrimas, ela cita as sequências dos estágios da vida e praticamente sintetiza o que “Boyhood” exalta: as experiências por apenas... viver. Ela diz: “Estou percebendo que a minha vida vai acabar num piscar de olhos. Casar, ter filhos, divorciar, quando te ensinei a andar de bicicleta, fazer um mestrado, ter o emprego dos sonhos, mandar você e sua irmã para a faculdade... você sabe o que vem depois? A droga do meu funeral!” O tempo dita o ritmo e o compasso de “Boyhood”, uma obra-prima consumida de sensibilidade que defende a consciência de experienciar o agora. O melhor disso tudo é saber que nunca é tarde para começar.
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entrevista
Entrevista com Maria Goreti G. P. Maranho Maria Goreti G. P. Maranho é licenciada em Música pela Faculdade Marcelo Tupinambá, São Paulo; Especialista em Educação pela UNIBEM- FIES, Curitiba. Frequentou as classes de canto erudito e popular, sendo orientada por Marcos Leite (Ganganta Profunda), Marisa Fonterrada (Unesp), Kátia Lemos (Garganta Profunda), Lúcia Passos e Gisa Volkmann (UFRGS). Tendo despertado o interesse por regência desde a formação acadêmica, aperfeiçoou-se com Lucy Shimith (UEL), Maria José Chevitarese (UFRJ), Pablo Trindade (Uruguai), Henry Leck e Tim Brimmer( Indianápolis, USA), Teruo Yoshida (OSESP), Elias Moreira da Silva (Meninos cantores de Saint Paul, Londres) . Atualmente rege os corais da LBV, COPEL e Programa Coral (Coro Infantojuvenil do ESPAÇO DAS ARTES). Além dos trabalhos com canto e regência é integrante do Novo Trio, grupo de música popular brasileira, com ênfase no nascimento dos gêneros nacionais. 1. De que forma a musicalização infantil pode afetar o desenvolvimento da criança? Uma criança em seu ritmo normal de desenvolvimento tem todos os canais de comunicação abertos e está disponível para novos contatos. Desenvolver a musicalidade da pessoa, que é o objetivo da musicalização em qualquer período da vida, passa pela potencialização das capacidades desses canais, levando para uma percepção mais aguçada em todos os “sentidos”. Podemos usufruir dessa melhor percepção para o exercício musical e ou pra todas as áreas da atividade humana, aperfeiçoando a comunicação de forma geral e a percepção, sonora, sensorial, visual, etc, o que coopera com a nossa participação mais efetiva em todos os campos. 2. Como a musicalização infantil é feita? É indicada para quais idades? Às vezes pode-se equivocar com os conteúdos de uma aula de musicalização, pensando em acesso aos diversos instrumentos, tocando um pouquinho de cada um, para se ter uma ideia de identificação e posteriormente escolher um deles para praticar. Isso até pode ser contemplado no programa, mas não é o objetivo da aula. O que se oferece, são atividades que possibilitem abrir
os ouvidos e torná-los conscientes. Paralelamente desenvolvem-se também as demais percepções. Descobrir de onde vem um som, qual sua fonte, distinguir as durações, classificar os timbres, identificar sons simultâneos... enfim, trabalhar com parâmetros sonoros e introduzir à compreensão da linguagem musical. Este tipo de atividade pode ser aplicado em qualquer faixa etária, mas com certeza, com resultados mais rápidos na infância. 3. A prática do canto coral pode ser uma boa forma inicial de integração entre crianças e adolescentes com o universo musical? O canto é a primeira e a última expressão musical. Nos manifestamos desde a mais tenra idade através dele e é o instrumento que, depois de árduo trabalho de aperfeiçoamento, tem um poder incalculável de sensibilização dos ouvintes. Em culturas milenares era visto como terapia curativa. Na minha visão, continua sendo, embora em versões mais subjetivas. Cantar em grupo pode ser uma ferramenta musicalizadora das mais eficientes, pois proporciona a análise estética espontaneamente. Além de educar musicalmente, desenvolve a capacidade de estar no grupo com respeito e atenção. Ainda, fortalece a possibilidade de expressão
pessoal, através das apresentações com o grupo, o que dilui a dificuldade de relação com um público. 4. De modo geral, ao relacionarmos infância e música, o que você tem a nos dizer enquanto professora, musicista e mãe? Percebo que música humaniza a pessoa. A criatura humana, talvez pelo instinto de sobrevivência, apenas, é muito competitiva, se alimenta da sensação de vencedor. A prática musical também pode ser entendida assim, mas eu proponho um contra fluxo. Penso que é bom que cada um se supere em suas limitações todos os dias, mas aprenda a cooperar. Aprenda a se alegrar com o sucesso do outro e ficar satisfeito por estar integrado. Na minha ideologia de educadora musical procuro ter sempre presente essa mentalidade, pra que as crianças, jovens, adultos, melhor idade, possam sair sempre felizes de um encontro com a música, transferindo essa energia para todo seu cotidiano. Errar, corrigir, esperar mais uma aula para chegar lá, têm que ser encarado como parte do processo e assumir uma identidade. Se encontrar com sua voz, desenvolver a sua linguagem, experimentar a composição.... enfim, deixar que a música, que nasce com cada um de nós possa te ajudar a se encontrar com você.
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