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Discussão sobre literatura: linguagem e gênero Perspectivas distintas para abordar
e psíquicas de um exército despreparado, criando um efeito estético singular na articulação da narrativa. Com isso, acaba não só descrevendo o episódio como também revelando um Brasil primitivo e rude do século XIX. Sobre ela, disse José Saramago, vencedor do prêmio Nobel de Literatura:
Projeta um olhar crítico sobre a Guerra do Paraguai. A ficcionalização deste cruel episódio da história brasileira e latino-americana é feita com distanciamento irônico e revela o grande jogo de interesses que moveram essa guerra. O romance consegue narrar os pequenos grandes dramas do cotidiano, criando personagens complexos e contraditórios, através dos quais consegue sublinhar o absurdo dessa e de todas as guerras. O domínio das técnicas narrativas, o trabalho equilibrado com a tradição e a invenção, a linguagem sólida, sem grandes deslizes, são algumas das qualidades literárias que justificam o prêmio Casa de las Américas.
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Discussão sobre literatura: linguagem e gênero
Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a reali-
dade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto.
“O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.
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Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa, e não literária.
“O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária. 4 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”
Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato
3 PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 2007. p. 7-8 4 PAVANI, C. F.; MACHADO, M. L. B. Criatividade, atividades de criação literária. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003.
pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.
No caso de Avante soldados: para trás, trata-se de uma história imaginada, sendo classificada, portanto, como obra literária. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade. Um exemplo dessa característica pode ser notado no trecho da página 21:
Osvaldo perdeu-se em lembranças outra vez. As galopeiras mexiam com coisas muito profundas dentro dele. Se pelo menos uma delas se desgarrasse, extraviada no Pantanal, Osvaldo Sonhador buscaria o amor dessa paraguaia, beberia a água do desejo que lhe fora dada a beber em tantos cantis inadequados.
As obras literárias podem se valer de muitos recursos para fins de expressão da história, da perspectiva dos personagens e do próprio conceito de verossimilhança, que é simplesmente a sustentação da história dentro de si mesma. No caso de Avante, soldados: para trás, a narrativa é ambientada em uma guerra ocorrida num período escravagista e em que diversas camadas da sociedade eram marginalizadas, como as mulheres, os negros, os indígenas e pessoas de outras nacionalidades da América do Sul. Com isso, essas vá-
rias populações detinham quase nenhum direito civil. No caso das mulheres, o tratamento que lhes era conferido as desconsiderava como sujeitos, limitando-as às escolhas familiares, como pode ser observado nesta breve descrição, retirada da página 72:
As coitadinhas começavam a ser donas muito cedo porque, nem bem menstruavam, tinham que casar. Já com dezenove anos, qualquer uma era chamada de solteirona, caso o pai não lhe tivesse arrumado casamento.
Por ter sido recriada à maneira do pensamento vigente à época da Guerra do Paraguai, a obra se expressa por meio de personagens que são retratados como pessoas comuns, e não como os pensadores ou líderes que foram moldando as estruturas sociais rumo a uma era mais progressista. Apesar disso, para amplificar a miríade de pontos de vista na obra, vale destacar que há personagens, como a professora Lili e o “francês”, que questionam em diversos momentos essas ideias, que já à época começavam a ser consideradas ultrapassadas. Um exemplo é o destaque a seguir, extraído das páginas 66 e 67:
Camisão viu Lili pela primeira vez dentro de uma carruagem toda preta, importada por Eufrásio havia pouco tempo. A carruagem era europeia, Lili era europeia,
os modos de todos se queriam marcados por usos e costumes europeus, mas o cocheiro – ó desastre! – era um escravo. […] A namorada espantava-se e se irritava com o conformismo de Camisão.
Por abarcar criticamente temáticas como a “verdade nua e crua da guerra”, a disseminação da violência nas mais diversas instâncias e também o preconceito com relação a outras nacionalidades – que pode ser enxergado como o “ódio necessário” ao inimigo no campo de batalha –, a obra requer uma contextualização condizente com sua ambientação histórico-social para que faça sentido em si mesma. Com isso, os próprios personagens suscitam reflexões que questionam suas convicções o tempo todo:
O triunvirato não conseguia derrotar uma seca naçãozinha, que todos considerávamos de segunda categoria. Isso, porém, antes de começar a dura guerra. Fazíamos agora uma aprendizagem das mais medonhas: a naçãozinha não era de segunda categoria. – O Paraguai é um leão. Lutará até o fim.