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um mesmo tema
Perspectivas distintas para abordar um mesmo tema
Apesar de se basear em um episódio histórico e real e contar a vida das pessoas envolvidas, a obra Avante, soldados: para trás reúne fatos e personagens fictícios, portanto não pode ser classificada como biografia. Em contraponto à perspectiva literária desta obra, o livro Memórias,
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5 de Visconde de Taunay, relata alguns episódios vividos por ele na guerra, com um viés pessoal e autocentrado, expondo a precariedade do exército brasileiro, o descaso e a falta de discernimento das autoridades.
Já em outra obra, Adeus, chamigo brasileiro, 6 a história da guerra foi contada utilizando-se o gênero história em quadrinhos. A obra acompanha a vida de quatro personagens que participaram do conflito: dois vaqueiros do interior da Bahia, um jornalista carioca e um paraguaio que estudava em Londres.
No nosso livro, o gênero utilizado é a novela, que é definido como uma forma intermediária entre o conto e o romance. Ele é caracterizado, em geral, por apresentar uma narrativa de extensão média, na qual toda a ação acompanha a trajetória de poucos, mas elabo-
5 TAUNAY, V. Memórias. Tradução de Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2000. 6 TORAL, A. Adeus, chamigo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
rados, personagens em torno de um único conflito. Para Angélica Soares, na novela “[…] constrói-se um enredo unilinear, faz-se predominar a ação sobre as análises e as descrições e são selecionados os momentos de crise, aqueles que impulsionam rapidamente a diegese para o final”.7
Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro Avante soldados: para trás no citado gênero literário.
O foco da obra é contar como se deu a Retirada da Laguna, então é possível notar que a história gira em torno dos personagens desse único conflito.
Apesar de a narrativa não seguir uma linha temporal linear, as idas e vindas cronológicas funcionam para apresentar melhor os personagens, evidenciando assim outra característica importante do gênero novela.
Dessa forma, sabemos, por exemplo, que o coronel Camisão é corajoso e busca ser ético, apesar da guerra, em que ele desempenhava patente superior, como vemos nos trechos das páginas 46, 55, 131 e 132:
Camisão portou-se bravamente, sempre à frente das tropas, correndo de um lado para outro, berrando ordens, manejando fuzil, arma branca, pedaço de pau, o que lhe viesse às mãos. […]
7 SOARES, A. O texto, a teoria. Gêneros literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007, p. 54.
Os soldados não têm medo do seu comandante. Ele é bondoso, compreensivo, sabe dirigi-los, e também confortá-los. Não tolera, porém, o desrespeito para com o inimigo morto ou ferido. É sua ética. […] Havia mulheres acompanhando os soldados, mas Camisão entendia que devia dar-se ao respeito e não aceitar nenhuma em sua tenda. Tinha, ademais, uma concepção peculiar acerca da sexualidade. Homem maduro, concebia o sexo como necessidade vital, mas evitava as esculhambações da juventude.
As características físicas de Mercedes são apresentadas na página 124:
Era moça de cabelos lisos e escuros, olhos castanhos – verificados quando ele, cheio de cautela, aproximou-se mais. Estava com as pernas cobertas por alguma coisa de brim que ele não sabia precisar: saia, chiripá, bombacha, um pano apenas? Vestia blusa cor-de-rosa que parecia refletir na luminosidade própria do seu rosto, afogueado e molhadinho de suor, que também fazia com que a blusa grudasse na pele, revelando assim as formas arredondadas.
E sua história é contada mais à frente, como no trecho da página 182:
Mocinha ainda, foi recrutada para o primeiro batalhão feminino que Solano López mandara organizar. No começo pulou de alegria. A guerra a libertaria a mãe, do pai, do avô, da avó, dos irmãos, daqueles cuidados amorosos que tanto a cerceavam. Encarnación era uma vila sem novidades. A guerra a levaria por muitos lugares. Nenhum terror, apenas viagens. Os treinamentos em Humaitá, entretanto, já lhe anteciparam as durezas que a esperavam. Mercedes era cheia de saúde, sagacidade e disposição. Sempre entusiasmada, contagiava a todas.
O texto é narrado por um narrador personagem, que usa um tom retrospectivo e reaproveita as vozes de suas personagens.
Portanto, ao recontar, a seu modo, um curioso episódio da guerra do Paraguai, Avante, Soldados: para trás apresenta a brutalidade da guerra e dos homens, em uma história tocante, multifacetada e perspicaz.
A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realidades por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da História a fim de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação, a criatividade,
auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múltiplas áreas do saber.
Há que se notar também a presença de questões atemporais nas entrelinhas da obra, como guerra, desigualdades, medo da morte, aspecto que fornece elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.
Nesta edição publicada especialmente para o público jovem, Avante, soldados: para trás convida o leitor a embarcar em uma narrativa ao mesmo tempo brutal e poética acerca de um dos mais emblemáticos combates da história moderna da América do Sul – a Guerra do Paraguai. Nesta história inteiramente contada sob a perspectiva dos combatentes, o leitor poderá perceber as nuances experimentadas pelos personagens, que contam sem meias palavras sobre o medo de não retornar para casa, a precariedade de higiene, as incertezas sobre os rumos da guerra, as doenças que assolavam os acampamentos, as diversas instâncias da violência inevitável e o florescimento de amores improváveis mesmo sob condições adversas.
Escrito mediante um estilo original e fluido, permeado pela ironia e pelo humor sagaz do autor Deonísio da Silva, este livro foi vencedor do Prêmio Casa de las Américas.
ISBN 978-85-54177-18-8