Diretrizes para o Controle Clínico da Talassemia Federação Internacional de Talassemia (TIF) Índice 1:
Introdução – As Talassemias: Visão Geral
2:
Base Genética e Fisiopatologia
3:
Terapia com Transfusão de Sangue na β-talassemia Major
4:
Esplenectomia na Talassemia Major
5:
A Sobrecarga de Ferro
6:
Controle das Complicações Cardíacas da Talassemia Major
7:
Complicações Endócrinas na Talassemia Major
8:
Infecções na Talassemia Major
9:
Transplante de Medula Óssea
10: Apoio Psicossocial na Talassemia 11: Talassemia Intermédia 12: β-talassemia/HbE 13: Abordagens Alternativas para Tratamento da Talassemia 14: Atendimento Geral à Saúde e Estilo de Vida na Talassemia Apêndice: Organização e Programação de Um Centro de Talassemia Referências Índice Lista das Figuras Figura 1.1
Distribuição fundamental dos distúrbios da hemoglobina
Figura 2.1
Síntese da globina nas diversas etapas do desenvolvimento embrionário e fetal
Figura 2.2
Efeitos do excesso de produção das cadeias livres de α-globina
Figura 2.3
Tipos comuns de genes da β-talassemia, junto com sua gravidade e distribuição étnica
Figura 3.1
Diretrizes para escolha da quantidade de sangue a transfundir
Figura 3.2
Quantidade de sangue doado necessária para elevar a hemoglobina em 1 g/dl
Figura 5.1
Exemplos de aumento precoce das reservas de ferro na ausência de quelação
Figura 5.2
Probabilidade de sobrevivência de pacientes com talassemia sob terapia convencional
Figura 5.3
Aumento da probabilidade de sobrevivência sob terapia convencional da talassemia de pacientes nascidos entre 1970-74, 1975-79 e 1980-84
Figura 5.5
Índice terapêutico
Figura 5.6
Rodízio dos locais de infusão
Figura 5.7 (desferal)
Inserção de agulhas para infusão de desferrioxamina
Figura 5.8
Exemplos de equipamentos de infusão
Figura 5.9
Índice de aderência
Figura 5.10
Lesões radiológicas graves, similares às do raquitismo, em um menino com toxicidade por desferrioxamina
Figura 5.11
Radiografia da coluna lombar mostra corpos vertebrais achatados
Figura 7.1
Determinação puberal segundo Tanner
Figura 7.2
Hipotireoidismo e seu tratamento
Figura 8.1
Possíveis interpretações dos resultados da triagem de hepatite B
Figura 9.1
Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores Classe I de transplante de medula óssea
Figura 9.2
Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores Classe II de transplante de medula óssea
Figura 9.3
Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores Classe III de transplante de medula óssea
Figura 9.4
Probabilidades de Kaplan e Meier para o resultado em receptores de transplante de medula óssea com 16 anos de idade ou mais
Figura 11.1
Interações do gene da globina, resultando em talassemia intermédia
Figura 11.2
Mutações da β-globina em 298 alelos de talassemia intermédia e 254 alelos de talassemia major, em pacientes de origem Mediterrânea
Figura 11.3
Critérios que podem ajudar na diferenciação das talassemias major e intermédia na apresentação
Figura 11.4
Diagnóstico diferencial entre talassemia major e intermédia
1: As Talassemias: Visão Geral As talassemias são um grupo heterogêneo de distúrbios genéticos em que a produção de hemoglobina normal é parcial ou completamente suprimida devido à síntese incompleta de uma ou mais cadeias de globina. Conforme a cadeia defeituosa, foram descritos diversos tipos de talassemias; os tipos comuns, graves e com importância clínica, são as talassemias β, δβ e α. Há estimativas de que provavelmente existam no mundo até 100.000 pacientes vivos portadores de β-talassemia. Uma visão geral da distribuição global das talassemias mostra que, além dos países Mediterrâneos nos quais foram pela primeira vez reconhecidas, as talassemias e os distúrbios da β-globina são freqüentemente encontrados na Ásia e Extremo Oriente, onde as talassemias α são bastante prevalecentes. Devido à contínua migração de populações de uma área para outra, não há agora virtualmente nenhum país no mundo em que a talassemia não afete uma certa porcentagem de seus habitantes.
Figura 1.1: Distribuição fundamental aproximada da talassemia e dos distúrbios da β–globina em todo o mundo. Não é apresentada a distribuição migratória para o Novo Mundo, Norte da Europa e Austrália. Existe sobreposição. Talassemia HbS HbC HbE
Na ausência de diagnóstico e tratamento, a maioria dos pacientes com talassemia grave morre antes dos cinco anos de idade. Com o tratamento recomendado, que será discutido detalhadamente, as complicações acima mencionadas são evitáveis ou tratáveis e, como resultado, o prognóstico global está atualmente em aberto. Como ocorre com todas as doenças crônicas e incuráveis, as quais constituem importantes problemas de saúde pública, a prevenção, se factível, tem importância primordial no controle geral da doença. No momento, a prevenção da talassemia, embora trabalhosa e cara, é factível. A realização da prevenção, entretanto, exige a detecção de todos os casais sob risco. É importante ter em mente que a prevenção somente será eficaz se for realizada uniformemente para toda a população, por unidades apropriadas e autorizadas, com todos os equipamentos e utilidades necessários, e com uma equipe experiente em detectar as características da talassemia e em dar o aconselhamento genético. É evidente que a triagem apropriada e extensa, a detecção acurada e o aconselhamento aos casais sob risco, em conexão com o diagnóstico pré-natal, são procedimentos promissores para a redução da mortalidade e da morbidade por talassemias nos países em que elas prevalecem. O objetivo final de uma completa erradicação da talassemia, entretanto, tem um longo caminho a percorrer até sua consecução. Esses problemas foram consideravelmente melhorados pela presente situação de controle, inclusive o transplante de medula óssea, mas ainda estão longe de ser resolvidos. Por isso estão sendo pesquisados novos caminhos para um tratamento mais eficaz e menos trabalhoso. Eles incluem a indução farmacológica da hemoglobina fetal, o uso de substitutos artificiais do sangue, e pesquisas em terapia genética.
Até ser atingido o objetivo final de uma cura completa da talassemia, devemos tentar oferecer a nossos pacientes o mais completo e atual sistema de tratamento disponível. Apesar das muitas dificuldades e despesas em que esse sistema pode incorrer, desde que seja possível oferecer uma boa qualidade de vida aos talassêmicos é nossa obrigação fornecer os meios. Estas Diretrizes fornecem informações sobre qual é atualmente considerado o tratamento mais eficaz, devendo servir como uma meta para o controle de todos os pacientes com talassemia em todo o mundo. 2: Base Genética e Fisiopatologia Tipos de Hemoglobina O transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos é efetuado por uma molécula altamente especializada, a hemoglobina, que está contida no interior dos glóbulos vermelhos circulantes. Cada glóbulo vermelho contém aproximadamente 300 milhões de moléculas desta proteína, pesando cerca de 30 picogramas por glóbulo. Cada molécula de hemoglobina é formada por dois pares de sub-unidades idênticas, as cadeias de globina. Estas são identificadas por letras do alfabeto grego e pertencem a dois grupos: o aglomerado α-globina, compreendendo as cadeias ζ e α-globina, e o aglomerado β-globina, compreendendo as cadeias de globinas ε, γ, β e δ. As cadeias de globina aparecem em seqüência durante a ontogenia e, após formar pares, formam os seguintes quatro grandes tipos de hemoglobina: a) as hemoglobinas “embrionárias”, são detectáveis a partir da 3a à 10a semana de gestação e representam os tetrâmeros ζ2ε2, α2ε2 e ζ2γ2, b) a hemoglobina “fetal” (HbF), que constitui o principal transportador de oxigênio durante a gravidez, sendo uma molécula α2γ2, c) a “hemoglobina do adulto” (HbA α2β 2), que substitui a HbF logo após o nascimento, e d) um componente menor do adulto, rotulado como HbA2 (α2δ2). Em condições normais, os glóbulos vermelhos do humano adulto contêm aproximadamente 98% de HbA, traços de HbF e 2,0% de HbA2.
Figura 2.1: Síntese da globina nos diversos estágios do desenvolvimento embrionário e fetal Tipo de célula Local da eritropoiese Porcentagem da síntese total de globina
Megaloblasto
Macrócito
Normócito
----------------------------------------------Fígado Baço Medula óssea ----------------------------------------------Saco vitelino ----------------------------------------------Idade pós-conceptual (semanas)
Idade pós-natal (semanas)
Genes da Globina e Síntese da Globina As cadeias de globina possuem uma estrutura extremamente precisa; isso assegura seu imediato carregamento com oxigênio nos alvéolos pulmonares e sua liberação gradual controlada na intimidade dos tecidos. Essa estrutura precisa é codificada pelos respectivos genes contidos no DNA dos cromossomas 16 (o aglomerado de genes α) e 11 (o aglomerado de genes β). Flanqueando os genes estruturais, isto é, na frente (no lado 5’ da seqüência DNA, “a jusante”) e em seguida a eles (no lado 3’ da seqüência DNA, “a montante”), estão diversas seqüências de nucleotídeos que exercem um papel “regulador”, isto é, eles determinam qual gene deve ser acionado e qual deve ser desligado, assim como quão eficiente será sua expressão. Na vida adulta, a maior parte da síntese da globina ocorre nos eritroblastos na medula óssea. A hemoglobina deve ter a estrutura correta e estar disposta de tal maneira que o número de cadeias α corresponda precisamente ao das cadeias β. Quando não são atendidas as condições acima, o resultado é um defeito completo ou parcial em um ou ambos os genes “alélicos” de globina. As Talassemias: Definições e Distribuição Mundial O termo “talassemia” se refere a um grupo de doenças do sangue caracterizadas pela diminuição da síntese de um dos dois tipos de cadeias de polipeptídeos (α ou β) que formam a molécula de hemoglobina humana normal no adulto (HbA, α2β2), o que resulta em um enchimento reduzido dos glóbulos vermelhos com hemoglobina, e anemia. Dependendo dos genes envolvidos, o
defeito é identificado como α-talassemia ou β-talassemia. O presente livro visa principalmente ao último grupo, que constitui um grande problema nos países em torno do Mar Mediterrâneo, no Oriente Médio e Trans-Cáucaso, Índia e Extremo Oriente (ver Figura 1.1), em contraste com as αtalassemias que são prevalentes principalmente no Oriente.
β-talassemia Heterogeneidade fenotípica Como regra, os transportadores heterozigotos da β-talassemia (um alelo afetado), apresentam baixa hemoglobina celular média (MCH), baixo volume celular médio (MCV), alterações morfológicas leves de seus glóbulos vermelhos, nível aumentado de HbA2, e uma baixa relação da cadeia de globina β/α na biossíntese, a qual está ocasionalmente associada a níveis normais baixos ou ligeiramente sub-normais de hemoglobina. Em circunstâncias normais, o traço de talassemia não apresenta efeitos clínicos importantes. O principal motivo disso é que a atividade do gene β normal sobre o cromossoma alélico produz suficiente globina estável. Em contraste, a herança de dois genes defeituosos de β-globina resulta em um amplo espectro de condições clínicas. Elas vão desde a dependência de transfusão (talassemia major) até a anemia leve ou moderada (talassemia intermédia). Estudos moleculares podem revelar uma ampla gama de anormalidades que estão subjacentes aos fenótipos acima e podem ajudar em sua identificação. Fisiopatologia da β-talassemia O controle da talassemia fica mais fácil quando é compreendida a fisiopatologia da doença. A Figura 2.2 delineia a fisiopatologia da β-talassemia. O esquema explica como a gravidade do desequilíbrio da cadeia de globina causa eritropoiese ineficaz, expansão da medula óssea, anemia e aumento de absorção do ferro. O grau de desequilíbrio da cadeia de globina é determinado pela natureza da mutação do gene β. βo se refere à completa ausência de produção de β-globina sobre o alelo afetado. β+ se refere aos alelos com alguma produção residual de βglobina (cerca de 10%). Em β++ a redução de produção de βglobina é muito leve. Até o momento foram relatadas mais de 200 mutações talassêmicas.
Figura 2.2: Efeitos do excesso de produção de cadeias livres de αglobina Excesso de cadeias livres de globina Cadeia se precipita Dano da membrana celular Glóbulos vermelhos Medula óssea Hemólise Eritropoiese ineficaz Anemia Aumento da Aumento da absorção Transfusão de sangue eritropietina de ferro Expansão da Carga de ferro medula óssea Alterações do esqueleto Morte cardíaca Estado hipermetabólico
A Figura 2.3 resume os tipos comuns de mutações da βtalassemia conforme a distribuição étnica e a gravidade. Na Internet pode ser encontrada uma lista abrangente das mutações β: http://globin.cse.psu.edu/globin/html/huisman
Figura 2.3: Tipos comuns de genes da β-talassemia com sua gravidade e distribuição étnica População Gravidade Mutação do gene β Tabela conforme o original
Variantes da hemoglobina estrutural beta relevantes para o controle da talassemia O distúrbio da hemoglobina E é a variante estrutural mais comum com propriedades talassêmicas (ver Capítulo 11). A HbE se caracteriza pela substituição da lisina pelo ácido glutâmico na posição 26 da cadeia da β-globina. A mutação G→A no códon 26 dos genes da β-globina não apenas produz a substituição do aminoácido como também ativa um local de união críptica no códon 24-25, levando a uma via alternativa de união. O resultado global é a produção de quantidades reduzidas da hemoglobina variante (HbE). Em outras palavras, a mutação do códon 26 G→A resulta em defeito tanto qualitativo quanto quantitativo do gene da β-globina.
Os heterozigotos para HbE são clinicamente normais e manifestam apenas alterações mínimas nos índices de glóbulos vermelhos, com 25-30% de HbE na eletroforese. Os homozigotos para HbE são clinicamente silenciosos e podem ser apenas ligeiramente anêmicos. O exame do esfregaço de sangue periférico mostra microcitose com 20-80% de glóbulos vermehos em alvo, enquanto que a eletroforese da Hb mostra 85-95% de HbE e 5-10% de HbF. Os componentes genéticos da HbE e da β-talassemia, que também são comuns no sudeste asiático, apresentam manifestações clínicas com gravidade variável – desde a talassemia intermédia até a grave talassemia major dependente de transfusão. Os motivos dessa variabilidade foram apenas parcialmente definidos, sendo que indivíduos com genótipos bastante idênticos podem apresentar manifestações clínicas com gravidades muito diferentes. A Hb Lepore é outra variante estrutural β resultante de uma fusão de genes de globina δ eβ. O estado homozigoto da Hb Lepore pode resultar em síndromes de β-talassemia dependentes de transfusão, variando de moderadas a graves. Distúrbios da Hemoglobina S: HbS, a variante mais comum da hemoglobina em todo o mundo, resulta de uma substituição da valina por ácido glutâmico na posição 6 da cadeia de βglobina. A interação da β-talassemia com HbS resulta em uma síndrome que lembra bastante os distúrbios falciformes. Esta síndrome tipicamente não requer transfusões e não está associada à sobrecarga de ferro. O controle da talassemia falciforme deve obedecer às diretrizes NIH existentes para o controle dos distúrbios das células falciformes: http://www.nhlbi.nih.gov/health/prof/blood/sickle/sick-mt.htm
α-Talassemia [Higgs & Weatherall 1993] As α-talassemias são distúrbios herdados, caracterizados pela produção reduzida ou suprimida de cadeias de α-globina. Os genes humanos de α-globina são duplicados e localizados na extremidade telomérica do ramo curto do cromossoma 16. A αtalassemia é causada, mais comumente, por anulação de grandes fragmentos de DNA que envolvem um ou ambos os genes da αglobina.
α-Talassemia-2 (Estado de portador silencioso): a presença da anulação de um único gene da α-globina resulta no estado de portador silencioso. α-Talassemia-2 homozigota / α-Talassemia-1 heterozigota (traço de α-Talassemia): Os indivíduos com dois genes α funcionais residuais apresentam anemia e microcitose. As anulações ou anormalidades de três genes globina resultam na doença HbH, geralmente caracterizada por anemia hemolítica moderada, esplenomegalia e crise hemolítica aguda em resposta a drogas oxidantes e infecções. Outras variantes estruturais relevantes incluem a uma Hb rara (Hb Constant Spring), a qual é devida a um alongamento das cadeias de α-globina, que são assim ineficazmente sintetisadas. Essa mutação é encontrada principalmente na Ásia. A herança conjunta de uma Hb rara ("Constant Spring") e da anulação de um ou mais genes resulta em uma forma grave de doença HbH. Hidropsia fetal da Hb de Bart, a mais grave manifestação clínica da α-talassemia, está geralmente associada à ausência de todos os 4 genes da α-globina e à morte in útero. A ausência de genes da α-globina na posição “cis” no mesmo cromossoma (αo-talassemia, --/) é comum no sudeste da Ásia, enquanto que é rara na área do Mediterrâneo e muito rara na África. É disseminada a anulação de um único gene de αglobina. Esta distribuição diferente explica porque a síndrome da hidropsia fetal da Hb de Bart e a doença HbH são comuns nos países do sudeste da Ásia, raras nas populações mediterrâneas e quase ausentes na população africana. 3: Terapia com Transfusão de Sangue na β-Talassemia Major Visão Geral Uma quantidade adequada e uma alta qualidade do sangue, transfundido de maneira apropriada, são os conceitos básicos no protocolo da administração rotineira de sangue aos pacientes com talassemia. Os principais objetivos são:
• Manutenção da viabilidade e função dos glóbulos vermelhos durante a estocagem, a fim de se garantir transporte suficiente de oxigênio • Uso de eritrócitos doadores com recuperação e meia-vida normais no receptor • Obtenção de um nível apropriado de hemoglobina • Prevenção de reações adversas, inclusive a transmissão de agentes infecciosos. Seleção do Doador Os produtos do sangue para os pacientes com talassemia devem ser obtidos de doadores voluntários sadios cuidadosamente selecionados, submetidos a um extenso questionário e a triagem laboratorial para hepatite B, hepatite C, HIV e sífilis. As estratégias específicas para a seleção de doadores e triagem do produto serão influenciadas pela prevalência de agentes infecciosos na população doadora. (Ver TIF Blood Kit para mais informações sobre a segurança do sangue e a seleção de doadores). Produtos do Sangue para Transfusão Produtos de sangue recomendados Os pacientes com talassemia devem receber glóbulos vermelhos leucodepletados (com redução dos leucócitos). A redução dos leucócitos para 5 x 106 é considerada o limiar crítico para eliminação das reações adversas atribuídas aos glóbulos brancos contaminantes e para a prevenção da aloimunização das plaquetas [Sprogoe-Jakobsen 1995]. Os métodos para redução leucocitária incluem: • Filtração pré-estocagem do sangue total, para remoção dos glóbulos brancos, realizada com um filtro acoplado à bolsa da coleta ou utilizado dentro de oito horas após a coleta do sangue. O retardo da filtração pode permitir alguma fagocitose de bactérias (p.ex., Yersinia enterocolitica)[Buchholz 1992]. Este método de remoção dos leucócitos oferece uma filtração de alta eficiência e provê leucócitos residuais consistentemente baixos nos glóbulos vermelhos processados e elevada recuperação dos glóbulos vermelhos. Os glóbulos vermelhos acondicionados são obtidos por centrifugação do sangue total reduzido de leucócitos.
• Filtração ao lado do leito: Os glóbulos vermelhos são obtidos do sangue total estocado por centrifugação, para separar o plasma e remover a “buffy coat”. No momento da transfusão, a unidade de glóbulos vermelhos é filtrada ao lado do leito. Este método pode não permitir um ótimo controle de qualidade, porque as técnicas usadas para filtração ao lado do leito podem ser altamente variáveis. Produtos do sangue para populações especiais de pacientes Glóbulos vermelhos lavados podem ser benéficos para os pacientes com talassemia que apresentam reações alérgicas graves à transfusão. A lavagem com solução fisiológica remove as proteínas do produto doado, as quais são o alvo dos anticorpos do receptor. Outros estados clínicos que podem requerer produtos de glóbulos vermelhos lavados incluem a deficiência de imunoglobulina A (IgA), na qual o anticorpo à IgA pré-formado no receptor pode resultar em uma reação anafilática. Usualmente a lavagem não resulta em redução adequada dos leucócitos e por isso deve ser usada conjuntamente com a filtração. As unidades de lavagem de glóbulos vermelhos podem remover alguns eritrócitos do produto da transfusão. Glóbulos vermelhos congelados são usados para manter um suprimento de unidades doadoras raras para determinados pacientes que apresentam anticorpos incomuns aos glóbulos vermelhos ou que estão perdendo os antígenos comuns dos glóbulos vermelhos. O Euroblood Bank em Amsterdã, Holanda, fornece uma ampla variedade de tipos especiais de sangue. Para mais informações, contatar Marijke Overbeeke: Euroblood Bank Plesmanlaan 125 Amsterdã 1066 CX Holanda Fone: +31 20 512 9222 Fax: +31 20 512 3252 A transfusão de neócitos ou glóbulos reduzir modestamente as necessidades entretanto, são expostos a um número doadores, com conseqüente aumento de transmissão de infecções, e risco de
vermelhos jovens pode de sangue. Os pacientes, mais elevado de custo, risco de aloanticorpos.
Unidades de estocagem de glóbulos vermelhos doadores A introdução de nutrientes aditivos como AS-1 e AS-3 tem permitido a estocagem de glóbulos vermelhos por até 42-48 dias. A recuperação pós-transfusão é de 73-83% após a estocagem máxima. Níveis elevados de ATP são mantidos até o 28o dia de estocagem, mas os níveis de 2,3-DPG e P50 podem não ser satisfatórios. Pouco se sabe sobre a meia-vida do glóbulo vermelho no receptor após uma estocagem prolongada do sangue do doador. Uma recuperação diminuída e uma meia-vida encurtada podem aumentar a necessidades de transfusões e a taxa da carga de ferro. A prática atual é tentar usar glóbulos vermelhos estocados em soluções aditivas por menos de 2 semanas. Em pacientes com doença cardíaca e em crianças pequenas, deve ser dada atenção especial ao volume acrescentado pelas soluções aditivas. Testes de Compatibilidade O desenvolvimento de um ou mais anticorpos específicos dos glóbulos vermelhos (aloimunização) é uma complicação comum da terapia de transfusão crônica [Spanos 1990]. Por isso é importante monitorar cuidadosamente os pacientes quanto ao desenvolvimento de novos anticorpos, e eliminar os doadores com os antígenos correspondentes. Os anticorpos anti-E, antiC e anti-Kell são os mais comuns. Entretanto, 5-10% dos pacientes apresentam aloanticorpos contra antígenos eritrocitários raros ou com anticorpos quentes ou frios de especificidade não identificada. Antes de iniciar um terapia por transfusão, deve ser feita uma ampla tipagem dos antígenos dos glóbulos vermelhos dos pacientes, incluindo pelo menos C, c, E, e, e Kell, a fim de ajudar a identificar e caracterizar os anticorpos em caso de imunização tardia. Todos os pacientes com talassemia devem ser transfundidos com sangue compatível ABO e Rh(D). Alguns clínicos recomendam o uso de sangue que seja compatível também com pelo menos os antígenos C, E e Kell, a fim de evitar a aloimunização contra esses antígenos. Alguns centros usam uma compatibilização antigênica ainda mais ampla. • Antes de cada transfusão é necessário realizar uma compatibilidade cruzada completa e triagem de novos anticorpos. • Se aparecerem novos anticorpos, eles deverão ser identificados para que possa ser usado sangue sem o(s) antígeno(s) correspondente(s).
• Deve ser mantido, para cada paciente, um registro completo da tipagem dos antígenos, dos anticorpos anti glóbulos vermelhos e da reação à transfusão, o qual deve estar prontamente disponível para o caso do paciente ser transfundido em um centro diferente. • Deve ser evitada a transfusão de sangue dos parentes de primeiro grau, devido ao risco de desenvolvimento de anticorpos que poderia afetar adversamente o resultado de um futuro transplante de medula óssea. Programas de Transfusão O tratamento recomendado para a talassemia major envolve transfusões regulares de sangue, usualmente administradas cada duas a cinco semanas, a fim de manter o nível de hemoglobina pré-transfusão acima de 9-10,5 g/dl. Esse regime de transfusão provoca o crescimento normal, permite atividades físicas normais, suprime adequadamente a atividade da medula óssea, e minimiza o acúmulo de ferro transfusional [Cazzola 1995,1997]. Enquanto intervalos mais curtos entre as transfusões podem reduzir as necessidades globais de sangue, a escolha do intervalo deve levar em conta outros fatores como o trabalho do paciente ou a programação escolar. A decisão de iniciar uma terapia de transfusão por toda a vida deve ser baseada em um diagnóstico definitivo de talassemia grave. Esse diagnóstico deve levar em consideração o defeito molecular, a gravidade da anemia em medições repetidas, o nível de eritropoiese ineficaz, e critérios clínicos como a incapacidade de progredir ou as alterações ósseas. O volume recomendado de glóbulos vermelhos transfundidos é complicado pelo uso de diferentes soluções anticoagulantepreservativas. Para as unidades CPD-A com hematócrito de aproximadamente 75%, o volume por transfusão é usualmente de 10-15 ml/kg, administrada durante 3-4 horas. As unidades com soluções aditivas podem ter hematócritos de 60-70%, sendo então necessários volumes maiores para administrar a mesma massa de glóbulos vermelhos fornecida por unidades CPD-A com hematócrito mais elevado. Na maioria dos pacientes, é geralmente mais fácil evitar essas diferenças da concentração dos glóbulos vermelhos prescrevendo um certo número de unidades (p.ex., 1 ou 2) em lugar de um volume particular de sangue. Crianças mais jovens podem requerer uma fração de unidade para se evitar sub ou super-transfusão. Os pacientes com insuficiência cardíaca ou níveis iniciais de hemoglobina
muito baixos, devem receber quantidades menores de glóbulos vermelhos, em taxas de infusão mais lentas. Figura 3.1: Diretrizes para escolha da quantidade de sangue a transfundir Hematócrito dos Glóbulos Vermelhos do Doador Aumento do alvo no Nível de Hemoglobina Tabela conforme original Como exemplo, para elevar em 4 g/dl o nível de hemoglobina em um paciente pesando 40 kg e recebendo sangue AS-1 com um hematócrito de 60%, serão necessários 560 ml. Esse cálculo admite um volume sangüíneo de 70 ml/kg de peso corpóreo.
A Hb pós-transfusional não deve ser superior a 15 g/dl. É desnecessário a determinação regular do nível da hemoglobina após a transfusão. Determinações ocasionais, entretanto, permitem a avaliação do ritmo de queda do nível de hemoglobina entre as transfusões e podem ser úteis na avaliação dos efeitos das alterações do regime de transfusão, o grau de hiperesplenismo, ou alterações inexplicáveis da resposta à transfusão. Foi demonstrado que a aferese eritrocitária, ou troca automática dos glóbulos vermelhos, reduz as necessidades líqüidas de sangue e a taxa da carga de ferro transfusional [Berdoukas 1986]. A utilização do sangue do doador, entretanto, aumenta duas a três vezes, aumentando o custo e o risco de infecção ou aloimunização. Deve ser mantido para cada paciente um registro cuidadoso do sangue transfundido. Esse registro inclui o volume ou peso das unidades administradas, o hematócrito das unidades ou o hematócrito médio das unidades com soluções anticoagulantepreservativas similares, e o peso do paciente. Com essas informações é possível calcular as necessidades anuais de sangue em ml de glóbulos vermelhos por kg de peso corpóreo. Uma alteração dessas necessidades pode ser uma evidência importante de hiperesplenismo ou de destruição acelerada dos glóbulos vermelhos do doador.
Figura 3.2: Quantidade de sangue do doador, dependendo do hematócrito, necessária para elevar em 1 g/dl a hemoglobina do paciente Gráfico conforme o original Por exemplo, um paciente com talassemia e pesando 60 kg, precisaria de aproximadamente 170 ml de glóbulos vermelhos com hematócrito 75% para elevar em 1 g/dl o nível de hemoglobina. Os cálculos assumem um volume sangüíneo de 170 ml/kg, independentemente do tamanho do paciente.
Reações adversas A transfusão de sangue expõe o paciente a diversos riscos. Por isso é vital continuar a melhorar a segurança do sangue e encontrar meios de se reduzir a necessidade de transfusões e o número de exposições de doadores. Os eventos adversos associados à transfusão incluem: • Reações febris não hemolíticas à transfusão: Elas eram comuns nas décadas passadas, mas foram dramaticamente reduzidas pela leuco-redução. Se não for possível a leuco-redução efetiva, os pacientes que apresentarem essas reações deverão receber antipiréticos antes das transfusões. • Reações alérgicas, variando de leves a graves. Elas são devidas principalmente às proteínas plasmáticas. Foram acentuadamente reduzidas com a remoção do plasma. Um paciente propenso a reações alérgicas pode se beneficiar de glóbulos vermelhos lavados. • Reações hemolíticas agudas, que são incomuns e mais freqüentemente surgem de erros na identificação do paciente ou da tipagem sangüínea e dos testes de compatibilidade. O risco de receber sangue errado é maior para um paciente talassêmico que viaja para um outro centro ou é internado em um hospital ao qual ele não é familiar. As reações hemolíticas ainda podem ser evitadas nesses pacientes se o banco de sangue estiver familiarizado com o protocolo da OMS para triagem dos anticorpos e realização da necessária compatibilização cruzada das unidades doadoras. •
Anemia hemolítica autoimune, uma complicação muito séria da terapia de transfusão, usualmente combinada com
aloimunização subjacente. Mesmo glóbulos vermelhos de unidades aparentemente compatíveis podem apresentar sobrevida acentuadamente reduzida, com a concentração de hemoglobina podendo cair abaixo do nível usual antes da transfusão. Ocorre a destruição dos glóbulos vermelhos, tanto do doador como do receptor. Para controle clínico dessa situação são usados esteróides, drogas imunossupressoras e imunoglobulina endovenosa, embora todos possam trazer pouco benefício. Esta complicação pode ocorrer mais freqüentemente em pacientes que iniciam a terapia de transfusão num estágio mais tardio da vida [Rebulla 1991]. • Reações tardias à transfusão: Elas ocorrem 5-10 dias após a transfusão e se caracterizam por anemia, mal estar e icterícia. Essas reações podem ser devidas a um aloanticorpo que não foi detectado por ocasião da transfusão, ou ao desenvolvimento de um novo anticorpo. Deve ser enviada uma amostra ao banco de sangue para pesquisa de um novo anticorpo e para recompatibilização cruzada das últimas unidades administradas. • Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI) e doença enxerto versus hospedeiro (GVHD), condições raras mas clinicamente muito graves. A TRALI, causada por anticorpos específicos anti-neutrófilos ou anti-HLA, se caracteriza por diapnéia, taquicardia, febre e hipotensão. O controle inclui oxigênio, administração de esteróides e diuréticos e, quando necessário, ventilação assistida. A GVHD é um risco particular quando o doador é um membro da família que compartilha haplótipos HLA com um receptor imunossuprimido. O sangue doado por um membro da família deve ser irradiado antes da transfusão. • Transmissão de agentes infecciosos, inclusive vírus, bactérias e parasitas, um risco importante da transfusão de sangue (ver Capítulo 8). Novos problemas continuam a se materializar, como a descoberta de novos vírus (p.ex., HGV, TTV, SEN-V), assim como a reaparição de antigos e esquecidos agentes infecciosos, como a nova variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob. A continuada transmissão de hepatite B, hepatite C e HIV enfatiza a importância de doações voluntárias de sangue, triagem cuidadosa dos doadores e, em caso de hepatite B, imunização.
4: Esplenectomia na Talassemia Major Muitos pacientes com talassemia major necessitam de esplenectomia. Entretanto, o controle clínico favorável desde o momento do diagnóstico pode retardar ou mesmo evitar o hiperesplenismo, aumentando a eficiência da terapia de transfusão e reduzindo a necessidade de esplenectomia. Durante todo o atendimento ao paciente com talassemia, o tamanho do baço deverá ser cuidadosamente monitorado durante o exame físico e, se necessário, por ultra-sonografia. A esplenectomia deve ser levada em consideração quando: • As necessidades anuais de sangue excedem em 1,5 vezes as dos pacientes esplenectomizados, desde que eles estejam sob o mesmo esquema de transfusão e não apresentem outros motivos para o aumento de consumo. Esses motivos incluem novos aloanticorpos, infecção, e alterações do hematócrito das unidades transfundidas. Para os pacientes que estão mantendo um nível pré-transfusional de Hb em torno de 10 g/dl, esse aumento de necessidade de transfusão representa o consumo de mais de 200-220 ml de glóbulos vermelhos (se o hematócrito dos glóbulos transfundidos for 75%)/kg/ano [Modell 1977; Cohen 1980]. O estado de sobrecarga de ferro também deve fazer parte dessa consideração. A esplenectomia pode não ser necessária para os pacientes que mantêm uma eficaz terapia de quelação apesar das necessidades aumentadas de sangue. Para os pacientes com crescimento dos estoques de ferro apesar da boa terapia de quelação, a redução da taxa de carga de ferro transfusional pela esplenectomia pode ser um importante componente do controle global da sobrecarga de ferro. • O aumento do baço é acompanhado por sintomas como dor no quadrante superior esquerdo ou saciedade precoce, ou quando a esplenomegalia maciça causa preocupação quanto a uma possível ruptura do baço. • A leucopenia ou a trombocitopenia devido a hiperesplenismo, causam problemas clínicos (p.ex., infecção bacteriana recorrente ou sangramento). A esplenomegalia devido a períodos de sub-transfusão com hemoglobina inadequadamente baixa, pode ser reversível. Antes de se considerar a esplenectomia nesta situação, o paciente
deve ser colocado durante diversos meses em um programa de transfusão adequado, sendo então reavaliado. Geralmente é recomendável retardar a esplenectomia até que os pacientes tenham pelo menos cinco anos de idade, devido ao risco aumentado de uma sepsia fulminante antes dessa idade (ver abaixo). Cirurgia As duas técnicas cirúrgicas mais comumente empregadas para a esplenectomia total são as abordagens aberta e laparoscópica. A abordagem laparoscópica requer um tempo operatório mais longo e pode não ser prática em pacientes com baços muito grandes, mas o período de recuperação é mais curto e não há praticamente nenhuma cicatriz cirúrgica. Muitos cirurgiões têm agora uma ampla experiência nesta abordagem. Em alguns centros é usada a esplenectomia parcial, com o objetivo de preservação de algumas funções imunológicas do baço ao mesmo tempo em que se reduz o grau de hiperesplenismo [De Montalembert 1990]. O sucesso a longo prazo desta abordagem ainda está sendo avaliado. Duas questões não respondidas sobre esta técnica são a probabilidade de recrescimento esplênico e o volume de tecido esplênico necessário para a preservação da função imunológica. Em todas as abordagens cirúrgicas deve ser feita uma busca cuidadosa de baços acessórios. A redução do tecido esplênico por embolização é uma abordagem menos invasiva ao hiperesplenismo que a esplenectomia completa ou parcial [Pringle 1982]]. Essa abordagem, entretanto, não ganhou ampla aceitação, podendo ser complicada por febre, dor significativa, e pela possível necessidade de uma esplenectomia total posteriormente. A embolização não permite a busca de baços acessórios. Antes da cirurgia, deve ser feita uma avaliação de possíveis cálculos biliares, especialmente se o paciente apresentou sintomas sugestivos de doença do trato biliar. Em alguns casos, os achados positivos levarão a uma colecistectomia ao mesmo tempo que a esplenectomia. A remoção do apêndice ao mesmo tempo que a esplenectomia pode evitar problemas posteriores para distinção entre uma infecção por Yersinia enterocolitica e apendicite. A esplenectomia também proporciona uma boa oportunidade para biópsia do fígado para fins de histologia hepática e concentração de ferro.
Pelo menos 2 semanas antes da esplenectomia, devem ser administradas as imunizações apropriadas (ver abaixo). Complicações da esplenectomia As complicações peri-operatórias incluem sangramento, atelectasia e abcesso subfrênico. É comum a trombocitose pósoperatória, com as contagens de plaquetas freqüentemente atingindo 1.000.000-2.000.000/mm3. Como os pacientes com talassemia podem apresentar uma tendência trombótica aumentada, deve ser dada consideração especial ao uso de baixas doses de aspirina (80 mg/kg/dia) pelos pacientes com contagens plaquetárias elevadas, ou o uso de anticoagulação em pacientes com uma história de trombose prévia ou outros fatores de risco. O principal risco a longo prazo é a sepsia fulminante. Em estudos mais antigos, o risco de sepsia pós-esplenectomia na talassemia major está aumentado mais de 30 vezes em comparação com a população normal [Singer 1973]. Medidas preventivas modernas (ver abaixo) reduziram esse risco, mas o impacto global dessas medidas ainda não está claro. Os patógenos mais comumente associados à sepsia pósesplenectomia são organismos encapsulados [Pedersen 1983], particularmente: • Streptococcus pneumoniae (responsável por mais de 75% das infecções bacterianas documentadas em pacientes asplênicos) • Haemophilus influenzae • Neisseria meningitidis Com crescente freqüência ocorrem nos pacientes asplênicos infecções por gram negativos, bactérias em forma de bastonete, notavelmente Escherichia coli, Klebsiella e Pseudomonas aeruginosa, freqüentemente associadas a alta mortalidade. Outros organismos gram negativos também foram implicados na sepsia pós-esplenectomia. Infecções por protozoários, devidas a Babesia, foram implicadas em um fulminante estado hemolítico febril em pacientes esplenectomizados. A malária é relatada como mais grave nas pessoas asplênicas [Boone 1995], trazendo um maior risco de morte. As características da sepsia fulminante pós-esplenectomia incluem o surgimento repentino de febre e calafrios, vômitos e cefaléia. A doença rapidamente progride para choque
hipotensivo, sendo freqüentemente acompanhada por hemorragia intravascular disseminada (síndrome de WaterhouseFriederichsen). A taxa de mortalidade dessas infeções é de aproximadamente 50%, independentemente das medidas intensivas de apoio. É crítica, portanto, a intervenção precoce baseada na suspeita clínica, mesmo na ausência de muitos dos achados acima descritos. O risco de infecção fulminante pós-esplenectomia varia com: • Idade – o risco é muito alto em crianças <2 anos de idade. Entretanto, tem sido relatada bacteremia fulminante em adultos, até 25-40 anos após a esplenectomia. • Tempo decorrido desde a esplenectomia – o maior risco parece estar no período de 1-4 anos após a cirurgia • Estado imunológico do paciente Medidas preventivas Os três tipos de medidas protetoras que um médico pode utilizar para evitar a sepsia pós-esplenectomia incluem: 1. Imunoprofilaxia 2. Quimioprofilaxia 3. Educação do Paciente Imunoprofilaxia A vacinação contra o Streptococcus pneumoniae é um passo crítico na prevenção de uma infecção fulminante após uma esplenectomia. A vacina pneumocócica atualmente disponível é uma vacina de polissacarídeos 23-valente, a qual pode ser administrada por via subcutânea ou intramuscular. Brevemente estará disponível uma vacina conjugada. A taxa de proteção da vacina 23-valente é de 70-85%. A vacina pneumocócica deve ser administrada pelo menos 2 semanas antes da esplenectomia e, a seguir, em 3-5 anos. A resposta imunológica a essa vacina de polissacarídeos é fraca em crianças com menos de dois anos de idade. As crianças vacinadas com menos de dois anos devem ser revacinadas aos dois anos. Os pacientes esplenectomizados sem ter recebido a vacina pneumocócica, ainda podem se beneficiar com a vacinação. Se não tiver sido administrada como parte da vacinação rotineira na infância, a vacina contra Haemophilus influenzae deverá ser administrada antes dos pacientes serem submetidos
a esplenectomia, devendo ser administrada também aos já esplenectomizados. Também deve ser administrada a vacina meningocócica de polissacarídeos aos pacientes que serão submetidos a esplenectomia, assim como aos pacientes previamente esplenectomizados mas não imunizados. Essas vacinas podem ser administradas ao mesmo tempo, com diferentes seringas e em locais diferentes. É recomendada a administração anual de vacina contra o vírus da influenza, a fim de se evitar essa doença febril que poderia, caso contrário, requerer avaliação intensiva e controle de um episódio febril no hospedeiro esplenectomizado portador de talassemia (ver abaixo). Quimioprofilaxia É recomendada a quimioprofilaxia com penicilina oral, 125 mg 2x/d para crianças com menos de dois anos e 250 mg 2x/d para crianças com dois anos ou mais, a fim de se reduzir o risco de sepsia pós-esplenectomia. Os antibióticos alternativos para pacientes incapazes de tomar penicilina incluem amoxicilina, trimetoprim-sulfametoxazol e eritromicina. Todas as crianças esplenectomizadas com menos de cinco anos de idade devem ser tratadas com antibióticos profiláticos. Não está comprovado o valor da quimioprofilaxia depois dessa idade. Alguns clínicos tratam continuamente todos os pacientes esplenectomizados, independentemente de sua idade, enquanto que outros tratam os pacientes cujos baços foram removidos após a idade de cinco anos somente durante os primeiros dois anos após a esplenectomia. O uso de antibióticos profiláticos precisa ser regularmente reavaliado, conforme vacinas melhores ficam disponíveis e são desenvolvidos novos dados relativos a bactérias antibióticoresistentes. A importância da aderência à profilaxia com antibióticos deve ser repetidamente enfatizada aos pacientes e pais. Entretanto, também devem ser enfatizadas as limitações da profilaxia com antibióticos. Pacientes e pais devem reconhecer que a profilaxia com antibióticos não evita todos os casos de sepsia pós-esplenectomia e que a rápida avaliação das doenças febris (ver abaixo) é essencial na prevenção da morte por essa complicação.
Educação A educação do paciente e seus pais pode ser altamente eficaz na prevenção da infecção pós-esplenectomia. Os médicos devem enfatizar aos pacientes e pais a importância de reconhecer e comunicar doenças febris, buscando imediata atenção médica. Em todos os episódios febris o médico deve levar fortemente em consideração: 1. A avaliação do paciente, inclusive exame físico completo 2. A obtenção de sangue e outras culturas, conforme indicado 3. O início do tratamento com um regime antibiótico eficaz contra Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis. Se houver suspeita de bacteremia, o paciente deverá ser tratado com antibióticos por via parenteral e observado em uma unidade médica até terem sido avaliadas as culturas. Os pacientes também precisam ser alertados sobre o potencial de infecções relacionadas com viagens a uma área em que os cuidados médicos não sejam facilmente acessíveis. Neste caso, um antibiótico apropriado deve ser posto à disposição do paciente para que ele o leve consigo. Os pacientes devem ser sempre lembrados para alertar seus médicos quanto a seu estado de esplenectomizados. 5: Sobrecarga de Ferro A sobrecarga de ferro ocorre quando a ingestão de ferro está aumentada durante um período de tempo sustentado, seja pela transfusão de glóbulos vermelhos ou porque existe absorção aumentada de ferro no trato digestório. Ambas as situações ocorrem na talassemia, com a transfusão de sangue sendo a principal causa na talassemia major e com a absorção aumentada de ferro sendo mais importante na talassemia intermédia. Como não existem nos seres humanos mecanismos para excreção do excesso de ferro, este deve ser removido por meio da terapia de quelação.
A Taxa de Carga do Ferro Transfusão de sangue Cerca de 1,16 mg de ferro está contido na hemoglobina de 1 ml de glóbulos vermelhos puros (isto é, hematócrito 1,0). A carga de ferro por ml de glóbulos transfundidos dependerá do hematócrito. Assim sendo, com os glóbulos vermelhos contidos em soluções aditivas como SAGM, o hematócrito é tipicamente 0,6, fornecendo 0,7 mg de ferro por ml transfundido. Se for transfundido sangue total (hematócrito típico 0,35), haverá 0,41 mg de ferro por ml do sangue total do doador. Para calcular a taxa de carga do ferro na transfusão, devem ser conhecidos o volume e o hematócrito do sangue a ser transfundido, ou os mesmos devem ser razoavelmente estimados por meio do hematócrito médio conhecido do sangue fornecido pelo banco de sangue local. Com o esquema de transfusão recomendado para a talassemia major, é transfundido por ano o equivalente a 100-200 ml de glóbulos vermelhos puros (equivalente a 116-232 mg de ferro por kg de peso corpóreo por ano ou 0,32-0,64 mg/kg/dia). Desse modo, com transfusões regulares de sangue os estoques de ferro aumentam para muitas vezes o normal, a menos que seja feito tratamento de quelação [por exemplo, um paciente que está recebendo 6.500 ml de glóbulos vermelhos puros retém 7,5 gramas de ferro por ano]. Figura 5.1: Exemplos do aumento ausência de quelação Peso do paciente Volume de sangue total (ml) transfundido (se hematócrito for 0,6) Volume de glóbulos vermelhos puros (ml) transfundidos (se 100-200 ml/kg/ano) Carga anual de ferro por transfusão (g)
anual dos estoques de ferro na 35 kg 5830-11700
50 kg 8330-16600
65 kg 10800-21700
3500-7000
5000-10000
6500-13000
4,1-8,1
5,8-11,6
7,5-15,1
Aumento da absorção gastrintestinal de ferro A absorção intestinal normal de ferro é, aproximadamente, de 1-1,5 mg/dia mas, em pacientes talassêmicos que não recebem qualquer transfusão, a absorção de ferro aumenta várias vezes. Estima-se que a absorção de ferro exceda a perda de
ferro quando a expansão dos precursores do glóbulo vermelho na medula óssea excede em cinco vezes a dos indivíduos sadios. Foi demonstrado que os regimes de transfusão que visam a manter a hemoglobina pré-transfusão acima de 9 mg/dl previnem essa expansão [Cazzola 1997]. Nos indivíduos mal transfundidos, a absorção sobe para 3-4 mg/dia ou mais. Isso representa uma carga suplementar de 1-2 g de ferro por ano. Toxicidade da Sobrecarga de Ferro Mecanismo da toxicidade por ferro O ferro é altamente reativo porque, sob condições clinicamente relevantes, pode ser facilmente alternado entre Ferro(III) e Ferro(II). Isto resulta em ganho e perda de elétrons que podem gerar lesivos radicais livres. Eles possuem elétrons não pareados que podem lesar muitas moléculas como as membranas lipídicas, as organelas e o DNA. O resultado pode ser a morte celular, assim como a geração de fibrose. Na saúde o ferro é “mantido seguro” pela ligação a moléculas como a transferrina, mas na sobrecarga de ferro a capacidade de ligação do ferro é excedida tanto dentro das células como no compartimento plasmático. Esse “ferro livre” causa danos em muitos tecidos do corpo e é fatal, a menos que tratado com terapia de quelação do ferro. Complicações da sobrecarga de ferro A sobrecarga de ferro transfusional na talassemia major é fatal na segunda década de vida, usualmente devido a complicações cardíacas [Zurlo 1989]. A sobrecarga de ferro também causa lesão na pituitária, com hipogonadismo e mau crescimento. Também são observadas complicações endócrinas como diabetes, hipotireoidismo e hipoparatireoidismo. Outra complicação grave é a doença hepática com fibrose e eventual cirrose, particularmente se estiver presente hepatite crônica concomitante. Essas complicações são descritas com maiores detalhes nos capítulos seguintes. Figura 5.2: Probabilidade de sobrevida de pacientes com talassemia e sob terapia convencional [Borgna-Pignatti 1997] sobrevida (n = 820)
--- sobrevida livre (n = 718)
Probabilidade de sobrevida Anos após o nascimento
*Reproduzido com permissão da Academia de Ciências de Nova Iorque
Efeito da terapia de quelação sobre a toxicidade do ferro Com a introdução da desferrioxamina nos anos 70, a morte por sobrecarga de ferro diminuiu dramaticamente nos pacientes que recebem tratamento regular [Zurlo 1989; Piga 1996; Brittenham 1994]. Grupos de pacientes nascidos entre os anos 60 e 90 mostram sobrevida progressivamente aumentada, principalmente em resultado da diminuição da toxicidade cardíaca pelo ferro. Figura 5.3: Crescente probabilidade de sobrevida (% de vivos nas idades apresentadas) com a terapia convencional da talassemia em pacientes nascidos entre 1970-74, 1975-79 e 1980-84 [BorgnaPignatti 1997] Idade(anos) 1970-1974 1975-1979 1980-1984 Tabela conforme original *Reproduzido com permissão da Academia de Ciências de Nova Iorque
A desferrioximana deve ser tomada pelo menos cinco vezes por semana para poder otimizar a sobrevida [Piga 1996]. As complicações fatais da sobrecarga de ferro também diminuem se o ferro corpóreo (medido pelo ferro hepático) for mantido abaixo de determinados níveis [Brittenham 1994](ver abaixo). A incapacidade para atingir as taxas de sobrevida acima apresentadas pode ser devida a: • indisponibilidade da necessária terapia de transfusão e quelação • tratamento inadequado no início da vida, levando a dano tecidual irreversível • prescrição insuficiente da terapia de quelação • má aderência à terapia de quelação • consumo excessivo de sangue devido a hiperesplenismo ou transfusão inadequadamente elevada Embora estejam caindo as taxas de complicação devido a sobrecarga de ferro, uma porcentagem de pacientes até mesmo adequamente tratados ainda demonstra complicações por sobrecarga de ferro. As complicações mais comumente observadas nesses pacientes, hoje em dia, são problemas
primários ou secundários quanto à fertilidade ou ao desenvolvimento sexual (ver Capítulo 7). Além disso, uma grande porcentagem de pacientes adultos apresenta osteoporose (ver Capítulo 7) secundária a hipogonadismo ou possivelmente secundária a fatores adicionais mal compreendidos resultantes da sobrecarga de ferro ou de seu tratamento. Isto sugere que os atuais regimes de quelação podem ser melhorados ainda mais. Isso deverá ser obtido sem aumento da toxicidade por excesso de quelação do ferro. Tratamento da Sobrecarga de Ferro Objetivos da terapia de quelação do ferro O objetivo primário da terapia de quelação é atingir níveis seguros do ferro corpóreo. Infelizmente, esse é um processo lento, porque a qualquer momento apenas uma pequena proporção do ferro corpóreo está disponível para quelação. Isso significa que, quando um quelador do ferro é administrado clínicamente, apenas uma pequena proporção da droga se liga ao ferro antes de ser excretada ou metabolizada. Isso significa também que, se uma pessoa já tem sobrecarga de ferro, mesmo com o tratamento mais intensivo podem se passar meses antes que o ferro corpóreo diminua para níveis seguros. Com o aumento das doses de queladores, numa tentativa de acelerar a remoção do ferro, há o risco de se aumentar a toxicidade dos quelantes do ferro, quelando ferro necessário para o metabolismo tecidual normal. Por isso, enquanto o lento processo de redução do ferro tecidual para níveis seguros está em andamento, um segundo objetivo é tornar o ferro tão seguro quanto possível, fazendo a ligação das coleções tóxicas de ferro responsáveis por causar danos nos tecidos. Terapia com desferrioxamina O mais amplamente acessível e testado agente quelante do ferro é a desferrioxamina (Desferal ou deferoxamina). Desde que seja administrada regularmente e em doses adequadas, está bem documentado seu impacto sobre a sobrevida e as complicações da sobrecarga de ferro acima descritas [Brittenham 1994; Piga 1996]. Suas principais desvantagens são que ela é cara e deve ser administrada por via parenteral.
Mecanismo de ação e farmacologia A desferrioxamina é um sideróforo (um transportador de ferro com ocorrência natural), sendo produzida e purificada a partir do microorganismo Streptomyces pilosus. Uma molécula de desferrioxamina se liga a um átomo de ferro formando um complexo de ferro altamente estável nos valores fisiológicos do pH; portanto, 1 grama de desferrioxamina pode se ligar a quase 93 mg de ferro. No uso clínico padrão, entretanto, apenas uma pequena parte (cerca de 10%) da droga se liga ao ferro antes de ser eliminada do organismo. Devido ao seu tamanho, a desferrioxamina é mal absorvida no intestino. O ferro excretado pela desferrioxamina, o é de maneira quase igual na urina e nas fezes. Quanto maior a dose administrada, maior a proporção nas fezes. O ferro na urina é derivado do ferro liberado após a destruição dos glóbulos vermelhos nos macrófagos, enquanto que o ferro fecal é derivado do ferro quelado no fígado [Hershko 1979; Pippard 1982]. A desferrioxamina tem uma meia-vida curta (meia-vida inicial de 0,3 h), sendo rapidamente eliminada na urina e bile. Assim que é interrompida uma infusão de desferrioxamina, a quelação de ferro cessa logo em seguida. Como em qualquer momento apenas uma pequena proporção do ferro corpóreo está disponível para quelação, quanto maior for a duração da infusão mais eficiente será o processo de quelação. Isso pode ser particularmente importante em pacientes com sobrecarga grave de ferro (ver abaixo). A excreção de ferro com a desferrioxamina é afetada por: • Dose administrada: A excreção de ferro aumenta conforme aumenta a dose (ver abaixo); essa relação, porém, não é linear, de modo que a proporção da droga que se liga ao ferro diminui conforme a dose aumenta. • Via de administração e duração: Pelos motivos acima apresentados, quanto maior for a duração da administração da desferrioxamina, maior sua eficiência (isto é, maior a proporção da droga que se liga ao ferro). Um “bolus” intramuscular é menos eficiente que a infusão lenta endovenosa ou subcutânea [Propper e col, 1977]. Evidências preliminares de que injeções de “bolus” subcutâneo duas vezes ao dia podem ser tão eficazes quanto a infusão subcutânea precisam ser mais amplamente testadas durante um longo período [Borgna-Pignatti 1997].
• Estoques corpóreos de ferro: Quanto maior o estoque corpóreo de ferro, maior a excreção de ferro após uma determinada dose de desferrioxamina. A produção e destruição aumentadas de glóbulos vermelhos aumentam a proporção de ferro disponível para excreção na urina. • Estado da vitamina C no paciente: Na sobrecarga de ferro, a vitamina C (ascorbato) é rapidamente oxidada, resultando em deficiência de vitamina C. Isso reduz a excreção de ferro com a desferrioxamina. Figura 5.4: Análise por Kaplan-Meier da sobrevida de pacientes com talassemia, conforme a aderência média à terapia com desferrioxamina Sobrevida % 0-75 infusões/ano 75-100 ...... etc Anos
Quando começar uma terapia de quelação Na talassemia major, ela deve ser iniciada assim que as transfusões tenham depositado ferro suficiente para causar dano tecidual. Isso não está formalmente determinado, mas a prática atual é iniciá-la após as primeiras 10-20 transfusões ou quando o nível de ferritina subir acima de 1.000 µg/l. Se a terapia de quelação for iniciada antes dos 3 anos de idade, é preconizada uma monitoração particularmente cuidadosa do crescimento e do desenvolvimento ósseo, com dosagem reduzida da desferrioxamina. Na talassemia intermédia, a taxa de carga de ferro é altamente variável, e a relação entre a ferritina sérica e o ferro corpóreo pode ser diferente da ocorrida na talassemia major. Se possível, é recomendável uma estimativa do ferro hepático antes de ser iniciado o tratamento, para saber se o ferro excedeu os níveis de segurança (ver abaixo). Via de administração O método padrão recomendado é a infusão subcutânea lenta de uma solução de desferrioxamina a 10% durante 8-12 horas, com o uso de uma bomba de infusão.
Dose de desferrioxamina A dose de desferrioxamina deve ser ajustada de acordo com a carga de ferro corpóreo e a idade. Em geral as doses médias não excedem 40 mg/kg até ter cessado o crescimento. A dose padrão é de 20 – 40 mg/kg para crianças e até 50 mg/kg para adultos, como infusão subcutânea por 8-12 horas durante no mínimo 6 noites por semana. O ajuste da dose pode ser feito com referência à ferritina sérica, usando-se o índice terapêutico [Porter 1989], o qual pode ser definido como a seguir: Figura 5.5: Índice Terapêutico Índice terapêutico = dose média diária (mg/kg)*/ferritina (µg/l) O objetivo é manter o índice
< 0,025 em todos os momentos
dose real recebida em cada ocasião x doses por semana *dose média diária = ----------------------------------------------------7
Isto reduzirá o risco de toxicidade por excesso de quelador, mas não é um substituto para a monitoração clínica cuidadosa. Recentemente tem sido preconizada a concentração de ferro hepático (por biópsia, SQUID ou MRI) como uma alternativa mais confiável à ferritina sérica (ver abaixo). Para que não seja desperdiçada uma droga cara, a dose pode ser ajustada à mais próxima garrafa integral, alternando entre o número de garrafas quando for necessário conseguir uma dose média diária. Figura 5.6: Rotação dos locais de infusão
Uso da vitamina C: A vitamina C aumenta a excreção de ferro ao aumentar a disponibilidade do ferro que pode ser quelado, mas se dada em doses excessivas pode aumentar a toxicidade do ferro. Recomenda-se não dar mais que 2-3 mg/kg por dia na forma de suplementos; eles devem ser tomados no momento da infusão de desferrioxamina, de modo que o ferro liberado é rapidamente quelado. Quando um paciente estiver começando a tomar a desferrioxamina e for tomada a decisão de iniciar a vitamina C, a mesma deverá ser retardada por algumas semanas.
Uso da desferrioxamina durante a gravidez: Isto é discutido em detalhes no Capítulo 7, mas em geral não é recomendado. Aspectos práticos da infusão subcutânea Como o uso regular da desferioxamina é crítico para um bom resultado, todo esforço deve ser feito junto a cada indivíduo para ajudá-lo a encontrar o modo mais conveniente de infundir a droga. Potência da infusão Os fabricantes recomendam que cada frasco de 500 mg de desferioxamina seja dissolvido em pelo menos 5 ml de água, resultando em uma solução a 10%. Concentrações em excesso podem aumentar o risco de reações no local da infusão. Figura 5.7: Inserção das agulhas para infusão da desferioxamina
Local da infusão Deve-se tomar o cuidado de evitar inserir as agulhas perto de vasos, nervos ou orgãos importantes. O melhor lugar é geralmente o abdome. Entretanto, devido a reações locais como eritema, inchaço e enduração, freqüentemente é necessário “fazer a rotação” dos locais usados para injeção (ver Figura 5.5). Alguns pacientes descobrem que a pele sobre o deltóide ou a face lateral das coxas são úteis locais adicionais ou alternativos. Tipo de agulha A melhor agulha a usar depende do indivíduo. Muitos pacientes ficam satisfeitos com agulhas “butterfly” com calibre 25 ou menos, que são inseridas num ângulo de aproximadamente 45 graus em relação à superfície da pele. A ponta da agulha pode mover-se livremente quando a agulha é balançada. Outros pacientes preferem agulhas que são inseridas verticalmente através da pele, sendo fixadas com um esparadrapo preso às agulhas (ver Figura 5.6). A preferência do paciente é bastante variável, e os médicos devem buscar o melhor tipo de agulha a fim de assegurar o máximo de aderência.
Tipo de dispositivo para infusão Atualmente estão disponíveis muitos tipos de dispositivos para infusão. Os dispositivos mais recentes, inclusive bombas balão, são menores, mais leves e mais silenciosos que seus predecessores. Para os pacientes que consideram um problema a dissolução, mistura e retirada da desferrioxamina, podem ser úteis seringas ou balões pré-cheios. Algumas bombas estão projetadas para monitorar a aderência ao tratamento (ver Apêndice B). Figura 5.8: Exemplos de dispositivos para infusão
Reações locais As reações locais persistentes podem ser reduzidas variando os locais de injeção, reduzindo a potência da infusão ou, nos casos mais graves, acrescentando 5-10 mg de cortisona à mistura para infusão. Outros apoios para ajudar na aderência Pelas discussões acima, fica claro que a aderência à terapia determina o prognóstico. O tratamento com a desferrioxamina, entretanto, é desagradável, consome tempo, e pode ser doloroso. Acima foram discutidas abordagens práticas para maximizar a aderência ao reduzir as reações locais, assim como o mais conveniente sistema de bomba. Especialmente importante é o apoio da família e da equipe de atendimento à saúde. A aderência requer um relacionamento constante e seguro entre o médico, o paciente e os pais. A discussão regular e o apoio são as chaves para a aderência máxima. As razões de uma má aderência são variadas. Elas podem ser dos causadas pelos pais, já que alguns pais não conseguem sancionar a “provação” diária da terapia de quelação em seus filhos. Em outras circunstâncias, a aderência pode se tornar um problema apenas quando a criança chega à adolescência. Algumas vezes um aderente anteriormente bom pode se tornar menos aderente quando outros eventos ou tensões da vida se tornam um peso (ver Capítulo 10). Monitoração da aderência Não existe um modo perfeito de se medir a aderência. Uma conduta bem sucedida pode ser dar aos pacientes um calendário
no qual está anotada cada infusão de desferrioxamina durante o tratamento. Algumas bombas podem registrar o uso. Outra conduta tem sido manter um registro dos frascos vazios devolvidos ao fornecedor da desferrioxamina. Se for aceito que foi mantido um registro acurado, a aderência pode ser expressa como índice de aderência: Figura 5.9: Índice de Aderência No. de dias de tratamento/ano Índice de aderência = --------------------------------------------No. de dias em que foi prescrito o tratamento
Infusão endovenosa contínua Nos casos de alto risco, a infusão contínua de desferrioxamina é potencialmente mais benéfica que as infusões periódicas, porque ela reduz a exposição ao tóxico ferro livre (ferro não ligado à transferrina), o qual retorna aos níveis pré-tratamento dentro de minutos após a interrupção de uma infusão endovenosa contínua [Porter 1996]. Quando é necessário uma quelação intensiva, pode ser usado um sistema de dispositivo endovenoso implantado (p.ex., Port-acath) para infusão endovenosa contínua em casa. Esses sistemas são um tanto caros e exigem manutenção cuidadosa por uma equipe experiente, para que as complicações infecciosas sejam mantidas dentro de um mínimo. A inserção/implantação requer uma boa técnica cirúrgica, sendo em geral realizada sob anestesia geral, mas pode ser realizada também sob anestesia local. A infusão endovenosa contínua deve ser levada em consideração em pacientes com sobrecarga grave de ferro ou com complicações cardíacas. Os pacientes com risco significativo de complicações por sobrecarga de ferro, e para os quais é válido pensar em terapia endovenosa contínua, são os com: • grave sobrecarga de ferro: ♦ valores da ferritina persistentemente > 2500 µg/l [Olivieri 1994] ♦ ferro hepático > 15 mcg/g de peso seco [Olivieri 1995] • significativa doença cardíaca: ♦ significativas disritmias cardíacas [Davis & Porter 1994]
♦ evidência de queda da função ventricular [Davis & Porter 2000] A indicação será reforçada se estiver presente uma ou mais das seguintes condições: • incapacidade para usar a desferrioxamina subcutânea regularmente, ou persistente má aderência • mulheres que planejam engravidar • pacientes que planejam fazer transplante de medula óssea • pacientes com hepatite C ativa. A infusão endovenosa contínua pode remover quantidades muito grandes de ferro. Ela pode também ser efetiva para melhorar a função cardíaca, sendo criticamente importante em pacientes com doença cardíaca induzida pelo ferro. Os pacientes com doença cardíaca assintomática devem ser persuadidos a iniciar o tratamento antes que os sintomas se desenvolvam. A dose recomendada é de 50 mg/kg/dia. Doses mais elevadas têm sido usadas com sucesso em alguns pacientes com sobrecarga grave de ferro e doença cardíaca significativa, mas elas devem ser usadas com extremo cuidado. Idealmente, o tratamento deve ser contínuo (isto é, 7 dias), particularmente em presença de disfunção cardíaca. Pode ocorrer infecção e trombose do cateter, sendo que alguns centros adotam a anticoagulação profilática de rotina. Devem seu utilizados cuidadosos procedimentos assépticos a fim de se prevenir possíveis infecções por Staphylococcus epidermidis e aureus, as quais são difíceis de erradicar e freqüentemente exigem a remoção do sistema de infusão. Resultado do tratamento endovenoso contínuo: Em um recente seguimento a longo prazo, foi conseguida uma sobrevida atuarial de 61% após 13 anos, em pacientes de alto risco (Davis & Porter 2000). Este método de terapia de quelação reduziu acentuadamente os estoques de ferro, reverteu as disritmias cardíacas e melhorou a fração de ejeção ventricular esquerda. Desferrioxamina endovenosa por ocasião da transfusão de sangue A terapia endovenosa (p.ex., 1 g durante 4 horas “piggybacked” na linha de infusão) por ocasião da transfusão de sangue tem sido usada como um suplemento à terapia convencional, mas sua contribuição para o equilíbrio do ferro
é limitada. Deve ser dada atenção especial para evitar “bolus” acidentais, devido à desferioxamina se coletar no espaço morto da linha de infusão. A administração concomitante de desferrioxamina e sangue pode levar a erros na interpretação de efeitos colaterais como febre aguda, erupções cutâneas, anafilaxia e hipotensão durante a transfusão de sangue. A desferrioxamina nunca deve ser adicionada diretamente à unidade de sangue. Monitoração da Sobrecarga de Ferro Durante o Tratamento com Desferrioxamina A sobrecarga de ferro deve ser monitorada de perto durante a terapia de quelação, a fim de se avaliar a efetividade do tratamento e prevenir as complicações da excessiva terapia de quelação. Há diversas maneiras de monitorar a terapia de quelação do ferro, cada uma delas apresentando vantagens e limitações: Ferritina sérica Este é um teste de execução relativamente fácil, sendo bem estabelecido. Os níveis de ferritina em geral refletem os estoques corpóreos de ferro, tendo sido demonstrado que têm significância prognóstica na talassemia major. Foi demonstrado que um nível de ferritina consistentemente abaixo de 2500 µg/l reduz o risco de complicações cardíacas [Olivieri 1994], mas é recomendada uma meta de aproximadamente 1000 µg/l ou menos. Outros fatores (p.ex,. inflamação, estado do ascorbato, hepatite), entretanto, podem afetar o nível da ferritina sérica, sendo que as variações de um dia para o outro são particularmente acentuadas com altos graus de carga de ferro. Uma elevação repentina e inesperada do nível de ferritina deve inspirar uma pesquisa de hepatite, outras infecções, ou condições inflamatórias. A ferritina deve ser idealmente monitorada a cada três meses pelo menos. É particularmente importante reduzir a dose de desferrioxamina e monitorar cuidadosamente as toxicidades relacionadas com a desferrioxamina quando os valores da ferritina estiverem baixos. Embora exista uma ampla correlação entre o nível de ferritina e o nível de ferro, é má a previsão da carga de ferro a partir da ferritina sérica, o que limita o valor clínico da
ferritina sérica quando usada isoladamente [Olivieri 1995]. Na talassemia intermédia, a ferritina sérica tende a subestimar o grau de sobrecarga de ferro [Pootrakul 1981; Galanelo, não publicado]. Concentração hepática de ferro (LIC) A concentração hepática de ferro é agora vista como um padrão de referência para se estimar a carga de ferro. Ela é usualmente medida por determinação química em uma amostra de biópsia do fígado. Ela também pode ser medida de maneira não invasiva por biossusceptometria magnética (SQUID)[Brittenham 1994], ou por exame de ressonância magnética (MRI), mas essas tecnologias são menos amplamente disponíveis. Níveis elevados de LIC estão associados a um aumento do risco de morte cardíaca. A biópsia é um procedimento invasivo, mas em mãos experientes tem uma baixa taxa de complicações [Angelucci 1997]. Uma amostra de tamanho inadequado (< 1 mg/g de peso seco) ou uma distribuição desigual do ferro, particularmente em presença de cirrose [Villeneuve 1996], pode apresentar resultados enganadores. A biópsia de fígado deve ser levada em consideração em pacientes cujos níveis de ferritina sérica são diversos dos esperados (isto é, os sob suspeita de hepatite co-existente, ou pacientes em regimes experimentais de quelação). A biópsia fornece uma boa representação dos estoques de ferro e pode reduzir o risco de serem dadas doses inadequadas ou excessivas da terapia de quelação. Níveis alvo do ferro hepático: Por analogia com pacientes heterozigotos para hemocromatose, os valores do ferro hepático persistentemente abaixo de 7 mg/g de peso seco não devem ser associados ao aumento de risco de complicações cardíacas ou hepáticas. Níveis acima de 15 mg/g de peso seco podem estar associados a um alto risco de morte cardíaca na talassemia [Brittenham e col., 1994]. Estimativa do ferro urinário A medida da excreção de ferro urinário pode ajudar na avaliação da dose ótima e da presença ou ausência de balanço negativo de ferro. Entretanto, a variabilidade inerente à excreção diária de ferro necessita de determinações repetidas. A excreção de ferro fecal contribui com adicionais mas variáveis 30-100% da quantidade de excreção de ferro
urinário, dependendo do nível dos estoques de ferro, da dose de desferrioxamina e do nível de hemoglobina [Pippard 1982]. Complicações da Administração de Desferrioxamina Reações cutâneas locais, como prurido, eritema, enduração, e desconforto leve a moderado, são comuns e podem ser devidos à diluição inadequada da desferrioxamina. Pode resultar uma ulceração no local de uma infusão recente de uma infusão intradérmica de desferrioxamina, a qual deve ser cuidada com a colocação mais profundamente da agulha nas infusões subseqüentes. A infecção por Yersinia enterocolitica é um importante risco associado ao tratamento com desferrioxamina. Isso é descrito em detalhe no Capítulo 8. Pode ser de diagnóstico difícil, mas quando existe suspeita clínica razoável dessa infecção, o tratamento com desferrioxamina deve ser temporariamente descontinuado. A infecção deve ser considerada em qualquer paciente com doença febril, especialmente quando associada a dor abdominal, diarréia ou dores articulares. Os pacientes com esses sintomas devem ser tratados como uma emergência médica. A desferrioxamina pode eventualmente ser reintroduzida, desde que os sintomas tenham regredido e tenha sido completado um curso antibiótico. Outras infecções, como as por Klebsiella, também podem ser exacerbadas pela desferrioxamina continuada. É sensato parar a desferrioxamina se um paciente apresentar febre inexplicada, até que a causa tenha sido identificada. A alergia grave à desferrioxamina é um raro evento. Ela pode ser tratada por desensibilização cuidadosa, realizada sob supervisão médica rigorosa [Bosquet 1983, Miller 1981]. A desensibilização é usualmente bem sucedida, mas pode ser necessário sua repetição mais de uma vez no mesmo paciente. Se ela for mal sucedida, pode ser levado em consideração um quelante alternativo como a deferiprona (ver abaixo). Figura 5.10: Lesões radiológicas graves, similares às do raquitismo, em um menino com toxicidade por desferrioxamina
Complicações relacionadas com a dose Em pacientes que não estão intensamente carregados com ferro, a administração de uma dose excessiva de desferrioxamina pode causar as seguintes complicações:
• Problemas auditivos: Podem ocorrer perda sensitiva neural de alta freqüência, tinito e surdez quando a desferrioxamina é administrada em doses elevadas, particularmente em crianças cuja carga de ferro é baixa [Olivieri 1986], e quando o índice terapêutico é excedido (> 0,025)[Porter 1989]. O deficit sensitivo neural pequeno tem sido reversível em alguns casos mas, uma vez ocorrida uma perda auditiva significativa, ela usualmente é permanente. É aconselhável monitorar anualmente a audiometria. As alterações audiométricas devido ao excesso de desferrioxamina são em geral simétricas; a assimetria sugere outra patologia. • Efeitos tóxicos sobre o olho: Eles foram inicialmente notados quando foram administradas doses muito elevadas (> 100 mg/kg/dia)[Davies 1991]. Os sintomas podem incluir cegueira noturna, visão colorida prejudicada, campos visuais prejudicados e acuidade visual diminuída. Os casos graves podem mostrar sinais de retinite pigmentosa à fundoscopia, enquanto que os casos mais leves só são demonstráveis pela eletrorretinografia. O principal risco parece ser a dose elevada [Olivieri 1986], mas as complicações também são mais prováveis nos pacientes com diabetes [Arden 1984] ou que estão recebendo tratamento concomitante com fenotiazina [Blake 1985]. A desferrioxamina deve ser temporariamente interrompida nos pacientes que desenvolverem complicações, sendo reintroduzida em doses mais baixas quando os exames mostrarem resolução. • Pode ocorrer retardo do crescimento se for dada uma dose muito grande. Os fatores de risco incluem pouca idade no início do tratamento (< 3 anos) e doses de tratamento mais elevadas [De Virgillis 1988, Piga 1988]. A velocidade de crescimento é reassumida rapidamente quando a dose é reduzida para < 40 mg/kg por dia, mas não responde ao tratamento hormonal. É recomendado não exceder 40 mg/kg até que tenha cessado o crescimento. É essencial a monitoração regular do crescimento em todas as crianças (ver Capítulo 7). Figura 5.11: Radiografia da coluna lombar mostra corpos vertebrais achatados.
• Alterações do esqueleto: Elas são mais comuns após doses excessivas em pacientes com baixos graus de carga de ferro [De Virgillis 1988; Olivieri 1992; Gabutti 1996]. Podem ser encontradas lesões ósseas similares às do raquitismo e genu valgum, em associação com alterações das metáfises, particularmente das vértebras, resultando em um tronco desproporcionadamente curto. Os aspectos radiográficos incluem desmineralização vertebral e achatamento dos corpos vertebrais. Os pacientes devem ser regularmente observados quanto a essas alterações, já que as mesmas são irreversíveis. • Complicações raras: Foram relatadas insuficiência renal e pneumonite intersticial com doses muito elevadas, de 10 mg/kg/h ou mais. Em pacientes sem sobrecarga de ferro, a desferrioxamina induziu coma reversível quando usada com um derivado da fenotiazina [Blake 1985]. Deve ser evitada a injeção endovenosa rápida, como pode ocorrer durante a limpeza de um equipo contendo desferrioxamina.
Deferiprona (Ferriprox , Kelfer , L1) A deferiprona é um quelante do ferro, ativo por via oral, que está sendo atualmente avaliado em ensaios clínicos em diversos centros. Ela foi originalmente licenciada apenas na Índia, mas recentemente foi licenciada na Europa como monoterapia de segunda linha para pacientes que não podem tomar desferrioxamina. A terapia de escolha para os pacientes com sobrecarga de ferro continua a ser a desferrioxamina, já que ela é mais eficaz que 75 mg/kg/dia de deferiprona, com regimes padrões e boa aderência com ambas as drogas. Em pacientes que aceitam mal a desferrioxamina, devem ser feitos todos os esforços para melhorar o tratamento por meio de aconselhamento repetido e exploração de regimes alternativos de administração da desferrioxamina. Se esses esforços falharem, ou se o paciente não conseguir tomar desferrioxamina por outros motivos médicos, a deferiprona deve ser levada em consideração como um tratamento alternativo. Deve ser enfatizado, porém, que ainda não são conhecidas a eficácia e segurança da deferiprona a longo prazo. Farmacologia São necessárias três moléculas de deferiprona para se ligar a um átomo de ferro, e a eficiência da ligação ao ferro
decresce com a queda das concentrações do ferro ou do quelante. A droga é rapidamente metabolizada e inativada no fígado por glicuronização de um dos seus pontos de ligação do ferro. Com as doses atualmente usadas, cerca de 5% da droga se ligam ao ferro antes dela ser excretada ou metabolizada. Ao contrário da desferrioxamina, a excreção do ferro é feita quase exclusivamente pela urina. O efeito do ascorbato sobre a excreção do ferro com a deferiprona não está claro mas é potencialmente danoso e não recomendável. Dose e resposta ao tratamento A dose diária de deferiprona que foi mais extensamente avaliada é de 75 mg/kg/dia, dividida em três doses iguais. A excreção urinária de ferro com esta dose se correlaciona com a ferritina sérica, geralmente conseguindo balanço negativo do ferro em pacientes pesadamente carregados com ferro [Olivieri 1990]. Entretanto, em apenas uma parte dos pacientes a carga de ferro no fígado alcança realmente um nível desejável após uma prolongada terapia. Por exemplo, foi constatado que o ferro hepático estava acima de 15 mg/g de peso seco em 58% dos pacientes [Hoffbrand 1998] e em 39% dos pacientes [Olivieri 1998], após seguimento de aproximadamente 4 anos. Não são conhecidos os efeitos a longo prazo sobre a sobrevida e as doenças cardíacas. A experiência também está limitada a pacientes com menos de 10 anos de idade. Efeitos colaterais O efeito colateral mais grave, agranulocitose (contagem absoluta de neutrófilos (ANC) < 500/mm3), ocorreu em menos de 1% dos pacientes de um estudo multicêntrico em que foram feitas contagens diferenciadas semanais no sangue dos pacientes, e no qual a deferiprona era descontinuada se a ANC fosse < 1500/mm3 [Cohen 2000]. Formas mais leves de neutropenia (ANC 500-15000/mm3) ocorreram em cerca de 5% dos pacientes. Recomenda-se que a ANC seja monitorada toda semana, ou mais freqüentemente se houver sinais de infecção. A neutropenia e a agranulocitose regridem com a descontinuação do tratamento com deferiprona. Se ocorrer agranulocitose, o tratamento será o mesmo que para outras causas de agranulocitose (isolamento protetor, fatores de crescimento e, se clinicamente indicado, internação hospitalar e antibióticos). A deferiprona não deve ser reintroduzida nesses pacientes. Outros efeitos colaterais comuns da deferiprona são artropatia, elevação transitória dos níveis séricos de ALT, e perturbações gastrintestinais. A
administração da deferiprona com as refeições pode ajudar a reduzir as náuseas. Em alguns pacientes também foi observada deficiência de zinco durante a terapia com deferiprona, especialmente em diabéticos. A deferiprona é teratogênica em animais, e por isso não deve ser administrada em pacientes que estão tentando engravidar. Até que se conheça mais, devem ser adotadas medidas de contracepção por mulheres e homens sexualmente ativos que estão tomando deferiprona. Um estudo descreveu a progressão de fibrose hepática durante o tratamento com deferiprona [Olivieri 1998], mas esse achado não foi confirmado [Hoffbrand 1998; Piga 1998]. Monitoração do tratamento Durante a terapia com deferiprona, é essencial a monitoração cuidadosa da condição clínica do paciente e dos exames laboratoriais. A excreção de ferro na urina de 24 horas fornece uma estimativa razoável do total de ferro excretado, já que, ao contrário da desferrioxamina, não é significativa a excreção fecal de ferro na terapia com deferiprona [Olivieri 1990]. São altamente recomendáveis as contagens semanais no sangue, de modo que uma queda dos glóbulos brancos possa ser precocemente detectada e o tratamento interrompido. Até que se conheça mais sobre a eficácia e segurança da deferiprona a longo prazo, é recomendável que sejam feitas biópsias hepáticas antes e durante a terapia. Novas aboordagens à terapia de quelação Estão em desenvolvimento novos agentes quelantes, e novos usos dos quelantes existentes (como regimes alternativos para a deferiprona isoladamente ou em combinação com a desferrioxamina) estão passando por ensaios clínicos. Devido às ainda insuficientes informações, não podem ser feitas recomendações sobre essas ou outras abordagens. As medidas para reduzir a absorção do ferro no intestino provavelmente terão um maior impacto sobre o balanço líqüido do ferro na talassemia intermédia do que na talassemia major. Deve ser tomado cuidado para não aumentar a carga de ferro por meio de fontes dietéticas (ver Capítulo 14).
6: Controle das Complicações Cardíacas na Talassemia Major Visão geral A qualidade e a duração da vida dos talassêmicos dependentes de transfusão se transformaram durante os últimos anos, com sua expectativa de vida aumentando bem até a terceira década ou mais, e com uma boa qualidade de vida [Olivieri 1995; Zurlo 1989]. Apesar disso, os sintomas cardíacos e a morte prematura devido a causas cardíacas ainda são problemas importantes. As complicações cardíacas são a principal causa de morte e uma das principais causas de morbidade. Na ausência de uma terapia efetiva de quelação do ferro, muitos pacientes desenvolvem evidências de lesão miocárdica induzida pelo ferro, com insuficiência cardíaca, arritmia cardíaca, morte súbita, ou uma lenta e angustiante morte por insuficiência cardíaca congestiva [Brittenham 1994]. A avaliação regular do estado cardíaco identifica os estágios iniciais da doença cardíaca e permite a rápida intervenção. É necessário a cooperação do médico responsável com o cardiologista, para que sejam estabelecidos os melhores protocolos de tratamento. A lesão característica no coração é causada pela deposição de ferro nas miofibras, com fragmentação miofibrilar associada e diminuição do volume mitocondrial por miócito. Classicamente tem sido sugerido que existe má correlação entre o conteúdo de ferro no miocárdio, fibrose e insuficiência funcional cardíaca. A distribuição do ferro no coração é relativamente irregular. Também foi sugerido que a miocardite viral é um fator que contribui para a deterioração cardíaca aguda [Kremastinos 1995]. Manifestações clínicas A doença cardíaca significativa por sobrecarga de ferro tipicamente ocorre com ausência de sintomas. Entretanto, quando os sintomas ocorrem, eles incluem palpitações, síncopes, falta de ar, dor epigástrica, tolerância diminuída aos exercícios, e edema periférico. O desenvolvimento de sintomas de insuficiência cardíaca implica em doença em estágio avançado, com mau prognóstico.
Uma vez que os ventrículos tenham aumentado de tamanho, são comuns as arritmias cardíacas. Elas tendem a ser de origem atrial, mas ocasionalmente também é observada taquicardia ventricular. A morte súbita provavelmente tem origem arrítmica, sendo mais provávelmente ventricular que atrial. Um importante aspecto que distingue a disfunção cardíaca decorrente da sobrecarga de ferro é a capacidade que têm os pacientes, se detectados precocemente, de conseguir completa recuperação com uma terapia de quelação apropriada. Esse fato pode não ser devidamente apreciado por médicos e cardiologistas não acostumados a tratar de pacientes com talassemia. Deve ser enfatizado que, nesses pacientes, pode ser necessário o apoio à circulação deficiente durante diversas semanas, para que se possa obter a recuperação. Exames cardíacos Além de uma história clínica completa e exame físico, a avaliação cardiológica básica deve incluir: eletrocardiograma com 12 derivações, Raios X de tórax e ecocardiograma. Também podem ser valiosos testes adicionais para a detecção precoce de cardiopatia, para monitoração, ou para avaliação de outras anormalidades cardíacas. Eletrocardiograma: O eletrocardiograma freqüentemente é anormal, mas as alterações são tipicamente não específicas. Essas alterações comumente incluem alterações da despolarização nas ondas T e segmentos ST nas derivações torácicas anteriores e, algumas vezes, uma preponderância das voltagens ventriculares direitas. Ocasionalmente também são afetadas as ondas P, sugerindo dilatação bi-atrial. Podem ser observados distúrbios da condução sob a forma de bloqueio do “bundle branch”, mas são raros distúrbios de condução com grau mais elevado. Quando aparecem novas anormalidades no ECG durante o seguimento, é necessário maior investigação para detectar suas causas. O ecocardiograma está amplamente disponível, é relativamente barato e de fácil execução. Podem ser obtidos dados sobre as dimensões dos corações direito e esquerdo, e da função biventricular (encurtamento fracionado ventricular esquerdo e fração de ejeção, alteração percentual ventricular direita em áreas)[Hinderliter 1997; Kaul 1984], podendo ser derivados dados sobre as pressões intra-cardíacas (pressão na artéria pulmonar, sistólica e média). A análise Doppler dos fluxos intra-cardíacos pode fornecer uma melhor visão das
anormalidades da função diastólica, mas é afetada por muitas limitações em relação ao estado pré-carga, freqüência cardíaca e condução AV, as quais reduzem a aplicabilidade deste método no controle clínico do paciente único. Também pode ser útil o exame ecocardiográfico da resposta ventricular ao exercício, realçando os indivíduos com doença sub-clínica nos quais a fração de ejeção não se eleva, ou até mesmo cai, em resposta ao esforço ou à estimulação por dobutamina e.v. (usada em alguns centros). A análise do ECG com Holter de 24 horas é um método padrão para detecção e investigação de arritmias cardíacas, sendo adequado para a monitoração das arritmias e sua resposta à terapia. O teste de exercício é valioso para identificação dos pacientes sob risco de arritmias cardíacas ou disfunção ventricular. A adequação do tratamento da doença cardíaca também pode ser determinada pelo resultado do teste de exercício. Um teste de exercício com avaliação da troca gasosa (teste ergoespirométrico) permite a verificação de: pico de VO2 (máxima utilização de O2 no pico do estresse) e VO2 AT (limiar anaeróbico), que são parâmetros intimamente relacionados com o estado funcional e o prognóstico dos pacientes com disfunção ventricular esquerda. Estudos com radioisótopos: O uso de MUGA (Multiple Uptake Gated Acquisition) para determinação da fração de ejeção ventricular total é uma técnica longamente estabelecida para documentação da disfunção ventricular. O método apresenta algumas desvantagens (isto é, o uso de isótopos radiativos e seu alto custo). Pode ser obtida maior acurácia com a monitoração não apenas da fração de repouso mas também da resposta a um estresse reprodutível para documentar se a fração de ejeção pode se elevar além de seu nível basal. A freqüência das avaliações cardiológicas acima descritas depende da idade do paciente e da presença e gravidade de complicações cardíacas, conforme apresentado a seguir: • Pacientes assintomáticos, bem quelados, com condição cardíaca normal: todos os anos, após os 10-15 anos de idade
• Pacientes assintomáticos com moderada insuficiência cardíaca: cada 6 a 8 meses, com particular atenção para os testes funcionais que permitem a detecção de uma resposta diminuída ao estímulo • Pacientes com insuficiência cardíaca grave: cada 1 a 4 meses, dependendo das condições clínicas. Estratégia Global de Controle A estratégia terapêutica para prevenir ou tratar as complicações cardíacas em pacientes com talassemia envolve um certo número de medidas gerais, junto com as intervenções cardiológicas particulares. Essas medidas são: • Manutenção do nível pré-transfusional de hemoglobina próximo de 9-10,5 d/dl nos pacientes sem doença cardíaca, e de 10-11 g/dl nos pacientes com doença cardíaca; • Terapia regular de quelação do ferro e, em pacientes com altas cargas de ferro ou doença cardíaca, regimes de infusões constantes (s.c. ou e.v.); • Vigilância e controle adequado de outras causas de miocardiopatia como hipotireoidismo, hipoparatireoidismo, deficiência de vitamina C, e outras. Apesar da eficácia da terapia de quelação regular na prevenção da doença cardíaca, muitos pacientes ainda desenvolvem anormalidades cardíacas. A monitoração da função cardíaca pode ser um índice útil quanto aos prognósticos globais de um paciente individual. A demonstração de função miocárdica insuficiente pode não apenas servir de alerta para os clínicos administrarem o tratamento cardíaco, mas deve alertá-los também a advertir o paciente individual de que é necessário uma aderência mais estrita à quelação, ou o início de um programa de quelação mais intensivo, para prevenir uma progressão inexorável para uma doença cardíaca grave. Tratamento com medicações específicas A intervenção e orientação cardiológicas estão resumidas a seguir: A) Pacientes assintomáticos com condição cardíaca normal: • sem restrições a atividades físicas e exercícios corporais.
B) Pacientes assintomáticos com insuficiência cardíaca moderada: • sem restrições a atividades físicas • medicação: - inibidores da ECA - quelação intensificada do ferro (desferrioxamina s.c. ou e.v. 24 horas x 7 dias/semana) - levar em consideração beta bloqueadores, especialmente se a arritmia for um problema. C) Pacientes sintomáticos com insuficiência cardíaca grave: • restrição das atividades físicas • transfusão de sangue lenta, com diuréticos • medicação: - inibidores da ECA - diuréticos - digital, se em fibrilação atrial antes da cardioversão. A essência do tratamento da doença cardíaca deve ser uma agressiva terapia de quelação para rapidamente neutralizar a toxicidade do ferro e progressivamente remover os depósitos excessivos do mesmo [Davies & Porter 2000]. Favor consultar o Capítulo 5 para detalhes sobre o esquema, nessas condições, de um programa de quelação apropriado. Em anos recentes tem ocorrido uma tendência consistente para tratar os pacientes com talassemia que apresentam disfunção ventricular leve, com agentes conhecidos por melhorar a função miocárdica em outras formas de miocardiopatia. O tratamento da disfunção miocárdica é melhor realizado com o uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina (inibidores da ECA). Esses agentes demonstraram, em ensaios controlados, reduzir a mortalidade de pacientes não talassêmicos com miocardiopatia estabelecida e reduzir o índice de ocorrência de insuficiência cardíaca nos com disfunção ventricular esquerda assintomática. Esses resultados são bastante promissores e, embora sua extensão à insuficiência cardíaca na talassemia ainda seja conjetural, são amplamente aplicados na prática clínica. Recomenda-se as precauções usuais, iniciando o tratamento em pacientes bem hidratados e começando com doses baixas. A dose deve ser aumentada até o máximo tolerado, limitada por hipotensão nos pacientes com talassemia.
Certos pacientes não conseguem tolerar os inibidores da ECA devido ao desenvolvimento de tosse crônica. Deve ser levado em consideração o tratamento desses indivíduos com losartan, antagonista do receptor da angiotensina II. Mesmo não sendo forte no momento o apoio a essa droga na insuficiência cardíaca, seu perfil hemodinâmico a aproxima dos inibidores da ECA. A digoxina não deve ser usada nos estágios iniciais da miocardiopatia, mas pode ter uma função como agente inotrópico em pacientes com dilatação cardíaca acompanhada por baixa pressão arterial. A digoxina tem um papel bastante específico na manutenção de índices ventriculares razoáveis em pacientes com fibrilação atrial estabelecida. Os diuréticos são o principal agente para provocar a melhora sintomática nos indivíduos que desenvolvem congestão pulmonar ou sinais de insuficiência cardíaca direita. Os diuréticos de alça provocam uma redução do volume circulante, o qual pode reduzir consideravelmente a pré-carga. Esses diuréticos, portanto, devem ser usados com cautela nos pacientes com talassemia, devido à hipotensão comumente associada. Nos corações restritivos com insuficiência diastólica, a redução na pré-carga provocada por um diurético de alça pode causar uma súbita queda do débito cardíaco. Esses efeitos podem precipitar uma insuficiência pré-renal. Os diuréticos de alça, portanto, devem ser usados com cautela e principalmente nos estágios avançados da doença. Evidências recentes apoiam o uso da espironolactona como tratamento adjunto nos pacientes não talassêmicos com insuficiência cardíaca. Este agente e outros afins reduzem a depleção do potássio induzida pelos diuréticos de alça e contrabalançam o hiperaldosteronismo. Os agentes poupadores de potássio podem ser usados com os inibidores da ECA, mas necessitam de cuidadosa monitoração dos eletrólitos. Ao cuidar da insuficiência cardíaca congestiva grave em hospital, é vantajoso usar infusões endovenosas constantes de diuréticos de alça. Isso ajuda a titulação cuidadosa das doses do diurético, em uma base de hora a hora, de acordo com a eliminação de urina, desse modo evitando a perigosa situação de uma diurese maciça, depleção de volume, queda do débito cardíaco e piora da função renal, que podem acompanhar grandes doses “bolus” e.v. de diuréticos de alça.
Agentes anti-arrítmicos: Em muitas situações o uso de drogas para o tratamento de arritmias relativamente benignas mas sintomáticas pode provocar maior morbidade e mortalidade que nos indivíduos não tratados. A decisão de tratar arritmias de pacientes com talassemia deve ser cuidadosamente ponderada, tendo em mente que a toxicidade por ferro é a principal causa dessa complicação. Foi demonstrado que o tratamento intensivo de quelação reduz as arritmias. Na maioria dos casos as arritmias são supraventriculares, embora possa ocorrer taquicardia ventricular em indivíduos gravemente doentes. O desenvolvimento de arritmia pode estar associado a uma função ventricular deteriorada, podendo ser melhorada ao se cuidar deste último problema. As arritmias requerem avaliação muito cuidadosa. Na maioria das arritmias supraventriculares, a confiança restabelecida do paciente é em geral apropriada, enquanto que os pacientes com arritmias ventriculares devem ser alertados sobre a gravidade potencial dessa condição. Os agentes beta-bloqueadores também podem ser usados para controlar muitas arritmias. É sempre importante fazer uma avaliação cuidadosa da função ventricular ao se considerar o uso de beta-bloqueadores em pacientes com talassemia, com as dosagens sendo muito baixas inicialmente e com cuidadosa titulação para cima ao longo de dias e semanas. A amiodarona possui um espectro de eficácia bastante amplo contra as arritmias supraventriculares e ventriculares, provocando uma sobrevida benéfica em indivíduos não talassêmicos portadores de arritmias ventriculares com risco de vida. Ela tem, porém, um enorme potencial de efeitos colaterais. Entre esses efeitos colaterais, os distúrbios de função da tireóide apresentam particular relevância nos pacientes com talassemia. Ainda precisa ser estabelecido o papel de outras drogas como os antagonistas do cálcio e os agentes antiarrítmicos de classe I. Em geral esses agentes devem ser evitados, já que todos eles apresentam tendência para provocar efeito inotrópico negativo. Seu uso não foi generalizado, já que as arritmias apresentam a tendência de estar associadas a níveis mais graves de insuficiência miocárdica. Sem um estudo mais formal, o uso dessas drogas ainda não pode ser recomendado aos pacientes com talassemia. Nos pacientes que não respondem à terapia de quelação do ferro e à intervenção farmacológica, deve ser considerada a cardioversão.
Transplante cardíaco Uns poucos pacientes foram submetidos a transplante cardíaco devido a lesão cardíaca grave, irreversível, e esse procedimento também foi combinado com o transplante de fígado [Olivieri 1994]. O resultado do transplante em pacientes com talassemia precisa ser cuidadosamente estudado para se determinar a eficácia dessa abordagem. A presença de lesões provocadas pelo ferro em outros orgãos, pode afetar adversamente o resultado do transplante cardíaco. Se a cirurgia for bem sucedida, ainda assim será necessário a quelação intensiva para remover o ferro dos outros orgãos e evitar o acúmulo do mesmo no coração transplantado. 7:
Complicações Endócrinas na Talassemia Major
As anormalidades endócrinas estão entre as complicações comuns da talassemia. A despeito de uma boa terapia de quelação iniciada precocemente na vida, podem persistir problemas como amadurecimento sexual retardado e fertilidade diminuída. A determinação da prevalência de complicações endócrinas é difícil por causa das diferenças de idade da primeira exposição à terapia de quelação e do aumento da sobrevida dos pacientes bem quelados. Crescimento Os fatores chaves que contribuem para o crescimento retardado de pacientes com talassemia podem incluir anemia crônica, hipogonadismo e toxicidade pela quelação [DeSanctis 1991]. Outros fatores que contribuem incluem hipotireoidismo, hiperesplenismo, deficiência de folato, resistência ao hormônio de crescimento, deficiência de zinco, doença hepática crônica e estresse psicológico. Diagnóstico e pesquisas O diagnóstico requer avaliação clínica cuidadosa para estabelecer: • taxas de crescimento lentas • baixa estatura (Fig. 9) • sinais de outras deficiências do hormônio pituitário (p.ex., gonadotrofinas) • outras possíveis causas de crescimento retardado
A investigação de uma criança com talassemia que apresenta crescimento retardado, é em geral similar à de uma criança não talassêmica. Avaliação de baixa estatura/crescimento retardado O primeiro passo na investigação de baixa estatura ou crescimento retardado é a medição regular e acurada da altura em pé e sentado, estadiamento puberal (Tanner) e idade óssea, inclusive exame das metáfises. A interpretação da altura absoluta deve levar em conta a altura dos pais. Estudos endócrinos adicionais que podem ser úteis incluem testes de função da tireóide (T4, TSH), níveis dos hormônios sexuais, determinação da secreção do hormônio de crescimento, zinco, cálcio, fosfatase alcalina, análise da urina e pesquisa da tolerância à glicose. Os testes possivelmente úteis incluem: IGF 1, IGFBP 3 e anticorpos antigliadina/antiendomísio (para excluir doença celíaca). A toxicidade por desferrioxamina é uma importante causa de crescimento retardado, conforme é descrito em detalhes no Capítulo 5. Tratamento Anemia, deficiência de folato e hiperesplenismo são causas tradicionais de mau crescimento na talasemia quando as transfusões não são regulares. Nos países em que a desferrioxamina é regularmente usada, esta é uma causa importante de retardo do crescimento, devendo ser monitorada (ver Capítulo 5). Em pacientes peri-puberais deve ser cuidadosamente pesquisado o hipogonadismo antes de ser iniciado o tratamento com hormônio de crescimento. O tratamento com hormônio de crescimento pode resultar em diminuição da sensibilidade à insulina e tolerância anormal à glicose [DeSanctis 1999]. A suplementação com sulfato de zinco oral deve ser feita em pacientes com comprovada deficiência de zinco. Puberdade retardada e hipogonadismo A puberdade retardada e o hipogonadismo são os achados endocrinológicos mais comuns na sobrecarga de ferro. A puberdade retardada é definida como a completa ausência de desenvolvimento puberal de meninas com cerca de 13 anos de idade e de meninos com cerca de 14 anos de idade. O hipogonadismo é definido nos meninos pela ausência de aumento testicular (menos de 4 ml) e nas meninas pela ausência de
desenvolvimento das mamas em torno dos 16 anos de idade [DeSanctis 1995]. A puberdade suspensa é uma complicação relativamente comum em pacientes com talassemia major e sobrecarga moderada ou grande de ferro. Ela se caracteriza pela ausência de progressão puberal durante um ano ou mais. Nesses casos, o tamanho testicular permanece em 6-8 ml e o tamanho das mamas é B3 (ver Fig. 7.1). Nessas condições, a velocidade anual de crescimento está ou acentuadamente reduzida ou completamente ausente {DeSanctis 1995]. Figura 7.1: Determinação puberal segundo Tanner Desenvolvimento do pênis P1: Pré-puberal P2: Puberdade inicial (aumento do escroto e testículos, 4-5 ml, pequeno ou nenhum aumento do pênis) P3: Puberdade média (aumento do pênis e maior crescimento dos testículos, 8-10 ml, e escroto) P4: Puberdade avançada (aumento do pênis em comprimento e largura. Aumento de pigmentação da pele escrotal e aumento dos testículos, 15-25 ml) P5: Adulto
Desenvolvimento das mamas B1: Pré-puberal B2: Puberdade inicial (mamas em estágio de botão)
Crescimento dos pêlos púbicos PH1: Pré-puberal PH2: Puberdade inicial (crescimento esparso)
B3: Puberdade média (aumento das mamas e aréola)
PH3: Puberdade média (os pêlos se estendem sobre a junção púbica)
B4: Puberdade avançada (a aréola e o mamilo se projetam separadamente do contorno da mama)
PH4: Puberdade avançada (os pêlos correspondem ao crescimento no adulto, mas menos extensamente)
B5: Adulto (mamas completamente desenvolvidas, a aréola não mais se projeta separadamente do contorno da mama)
PH5: Adulto
Investigações • Idade óssea (Raios X do punho e mão) • Função da tireóide (TSH e FT4) • Função gonadal hipotalâmico-pituitária (Hormônio de Liberação da Gonadotrofina, Gn-RH), teste de estimulação do Hormônio Luteinizante (LH) e Hormônio Folículo Estimulante (FSH) • Esteróides sexuais (Testosterona sérica, 17-β Estradiol sérico)
• Ultra-som pélvico • Em casos selecionados, teste de estimulação do Hormônio de Crescimento (GH) • Em casos selecionados, Fator de Crescimento Insulínico-I (IGF-I), Proteína de Ligação ao Fator de Crescimento Insulínico-3 (IGFBP-3) Tratamento O tratamento da puberdade retardada ou suspensa e o hipogonadismo hipogonadotrófico dependem de fatores como a idade, gravidade da sobrecarga de ferro, lesão do eixo hipotálamo-pituitário-gonadal, doença hepática crônica, e da presença de problemas psicológicos resultantes do hipogonadismo. É crítica a colaboração entre endocrinologistas e outros médicos. O tratamento para as moças pode começar com a administração oral de etinil estradiol (2,5-5 µg por dia) durante 6 meses, seguida pela reavaliação hormonal. Se dentro de 6 meses após a cessação do tratamento não ocorrer a puberdade espontânea, o estrogênio oral será reintroduzido em dosagens gradualmente crescentes (5-10 µg de etinil estradiol por dia) durante mais 12 meses. Se não ocorrer sangramento intermenstrual uterino, então será recomendada a terapia de reposição hormonal com doses baixas de estrogênio-progesterona. No caso de puberdade retardada em rapazes, são administradas mensalmente baixas dosagens (25 mg/m2) de ésteres de testosterona depot por via intramuscular, durante 6 meses. Elas são seguidas por reavaliação hormonal. Em pacientes com hipogonadismo hipogonadotrófico, a terapia (50 mg/m2) pode ser continuada até que os índices de crescimento decaiam. A dose virilisante total é de 50-75 mg de ésteres de testosterona depot cada 7-10 dias administrados por via intramuscular. Os mesmos efeitos podem ser conseguidos com emplastos transdérmicos não escrotais de testosterona. No caso de puberdade suspensa, o tratamento consiste de ésteres de testosterona como para a puberdade retardada e o hipogonadismo hipogonadotrófico. O tratamento de distúrbios puberais é uma situação complexa devido às muitas complicações associadas; cada paciente deve ser individualmente avaliado.
Hipotireoidismo Ele pode ocorrer em talassêmicos severamente anêmicos e/ou com sobrecarga de ferro, mas é incomum em pacientes adequamente tratados [DeSanctis 1998; Sabato 1983]. Sinais e sintomas O hipotireoidismo pré-clínico é assintomático. No hipotireoidismo leve e evidente, podem ser encontrados sintomas como retardo de crescimento, diminuição da atividade, excesso de peso, constipação, redução do desempenho escolar, insuficiência cardíaca e efusão pericárdica. A incidência de hipotireoidismo é ligeiramente mais elevada nas mulheres. Tipicamente, a glândula tireóide não é palpável e os anticorpos tireoideos são negativos. A ultra-sonografia da tireóide mostra um padrão irregular de ecos, com espessamento da cápsula da tireóide. A pesquisa da função da tireóide deve ser feita anualmente, a partir dos 12 anos de idade. As pesquisas chaves são T4 ou T41 livres e TSH, e sua interpretação, junto com o teste TRH e a resposta TRH, é apresentada na Figura 7.2. A idade óssea pode ser útil na avaliação do hipotireoidismo. A maioria dos pacientes apresenta disfunção primária da tireóide. Muito raramente ocorre o hipotireoidismo secundário causado por lesão da glândula pituitária e mediado pelo ferro. Figura 7.2: Hipotireoidismo e seu tratamento [adaptado de Evered 1973] HipoT4 sérico tireoidismo Pré-clínico Normal Leve Evidente
FT4 sérico
TSH sérico
Normal
Marginalmente aumentado Elevado
MarginalMarginalmente baixo mente baixo Baixo Baixo
Elevado
Resposta TSH ao TSH Aumentado
Tratamento
Exagerado
L-tireoxina
Exagerado
L-tireoxina
Observação
Chave: T4 - tireoxina; FT4 – Tireoxina livre; TSH – Hormônio estimulante da tireóide; TRH – Hormônio de liberação da tireotrofina
Metabolismo diminuído do carboidrato A tolerância diminuída à glicose e o diabetes mellitus podem ser a conseqüência da destruição de células β secundária à sobrecarga de ferro, doença hepática crônica, infecção viral
e/ou fatores genéticos. A patogênese lembra o diabetes tipo 2, com diferenças quanto à idade de início e à lenta progressão dos distúrbios no metabolismo da glicose e na secreção de insulina. Segundo os critérios da OMS [1980] para o diagnóstico e classificação da tolerância diminuída à glicose e ao diabetes mellitus: • Uma concentração de 8 mmol/l (144 mg/dl) ou mais da glicose plasmática venosa em jejum, confirma o diagnóstico de diabetes. • A glicose plasmática venosa acima de 11 mmol/l (198 mg/dl) após duas horas, é indicativa de diabetes. • A glicose plasmática venosa abaixo de 11 mmol/l (198 mg/dl) mas acima de 8 mmol/l (144 mg/dl) após duas horas, confirma o diagnóstico de tolerância diminuída à glicose. Investigações O teste oral de tolerância à glicose deve ser realizado anualmente a partir da idade puberal. Tratamento • A tolerância diminuída à glicose pode ser melhorada por uma dieta diabética rígida, redução do peso quando indicado, e possivelmente terapia intensiva de quelação do ferro. • O tratamento insulínico é normalmente necessário nos pacientes sintomáticos, mas pode ser difícil conseguir o controle metabólico. • O papel dos agentes hipoglicemiantes orais ainda precisa ser totalmente determinado. Monitoração do diabetes e suas complicações • Glicemia (diariamente ou em dias alternados) • Cetonas • A estimativa da frutosamina é mais útil que os níveis da hemoglobina glicosilada. A glicose urinária é influenciada pelo limiar aumentado da glicose renal. • Função renal (creatinina sérica) • Lipídios séricos (colesterol: HDL, triglicérides) • Proteína urinária
• Avaliação da retinopatia Hipoparatireoidismo A hipocalcemia devido ao hipoparatireoidismo é uma complicação tardia reconhecida da sobrecarga de ferro e/ou da anemia. Essa complicação geralmente surge após os 16 anos de idade [DeSanctis 1995]. A maioria dos pacientes apresenta uma forma leve da doença, acompanhada de parestesia.Os casos mais graves podem apresentar tetania, convulsões ou insuficiência cardíaca. As investigações devem começar com a idade de 16 anos e devem incluir o cálcio sérico, fosfato sérico e balanço do fosfato. Nos casos com níveis séricos baixos de cálcio e altos de fosfato, também deve ser medido o hormônio paratireoideo. Tratamento • Administração oral de Vitamina D ou um de seus análogos. Alguns pacientes requerem altas doses de Vitamina D para normalizar seus níveis séricos de cálcio. Estes devem ser cuidadosamente monitorados, já que a hipercalcemia é uma complicação comum deste tratamento. • Calcitriol, 0,25-1,0 µg duas vezes ao dia, é em geral suficiente para normalizar os níveis plasmáticos de cálcio e fosfato. São necessários exames semanais de sangue no início do tratamento. Os mesmos são seguidos por determinações trimestrais do cálcio e do fosfato no plasma e na urina de 24 horas. • Em pacientes com os níveis séricos de fosfato persistentemente elevados, deve ser considerado o uso de um ligador de fosfato (exceto alumínio). • A tetania e a insuficiência cardíacas devido a hipocalcemia grave requerem a administração endovenosa de cálcio, sob cuidadosa monitoração cardíaca, seguida por Vitamina D oral. Fertilidade e reprodução assistida na talassemia Uma paciente com talassemia que pede auxílio para a fertilidade, deve ser adequadamente alertada pelo clínico principal e acompanhada por uma equipe multidisciplinar. A gravidez deve ser considerada de alto risco neste grupo, e o casal deve ser apropriadamente aconselhado. Uma avaliação global do estado clínico e psicológico da paciente antes de ser considerada uma gravidez, deve incluir uma avaliação
detalhada do estado cardíaco, da função hepática, infecções virais e endocrinopatias, com ênfase especial para o controle do diabetes. A trombofilia deve ser considerada um risco a mais nessas pacientes. Indução da ovulação Em pacientes com amenorréia hipogonatrófica, a ovulação pode ser induzida por hMG (gonadotrofina menopausal humana) e hCG (gonadotrofina coriônica humana). A quelação deve ser descontinuada quando for iniciada a indução da ovulação. As hMGs agem estimulando diretamente os folículos no ovário, e são administradas por injeção intramuscular. As hMGs usualmente são administradas por via intramuscular uma vez ao dia, inicialmente 75 unidades (FSH) por dia, aumentando 75 unidades cada 2 dias até que se eleve a concentração sérica de estradiol. A dosagem desse momento (dosagem limiar) deve ser mantida até que 1-3 folículos medindo mais de 17 mm de diâmetro sejam observados ao exame de ultra-som trans-abdominal ou vaginal ovariano. Nesse momento, desde que as concentrações séricas de estradiol não sejam excessivas e os folículos de tamanho intermediário não sejam muito numerosos, pode ser dada uma dose de hCG. Isso imita a variação normal de LH do meio do ciclo, causando a ruptura do folículo e a liberação do ovo. A paciente é aconselhada a manter relação sexual no dia da administração da hCG e no dia seguinte. Um exame de ultra-som e a determinação da concentração da progesterona sérica são realizados 1 semana depois, para haver certeza de estar presente um corpo lúteo. O problema com a hMG é que a dose necessária para induzir a ovulação varia de uma paciente para outra e até mesmo de um ciclo de tratamento para o próximo na mesma pessoa. A hMG pode algumas vezes causar uma pequena inflamação no local da injeção. Dois outros problemas associados com o uso da hMG são a gravidez múltipla e a hiperestimulação ovariana. A hiperestimulação pode ser leve, moderada ou grave. O perigo depende do grau de hiperestimulação ovariana: na forma leve, a paciente pode desenvolver aumento ovariano associado a dor abdominal e distensão abdominal. A forma mais grave da síndrome de hiperestimulação ovariana consiste de aumento ovariano maciço devido à formação de cistos múltiplos em seguida à maturação folicular. Há ascite associada e ocasionalmente efusão pleural. O desequilíbrio líqüido
subseqüente pode causar oligúria e insuficiência renal. Todos os folículos múltiplos secretam estradiol, e os altos níveis séricos, combinados com insuficiência do retorno venoso devido ao aumento ovariano, podem levar a trombose venosa profunda. O tratamento envolve hospitalização para correção das anormalidades dos líqüidos. Indução da espermatogênese Para indução da espermatogênese, podem ser administradas gonadotrofinas na forma de 2.000 unidades de hCG, tanto por via intramuscular como subcutânea, duas vezes por semana, durante 6 meses. Se não existirem espermatozóides no ejaculado no final de 6 meses, devem ser acrescentadas 75 unidades de hMG i.m. ou s.c. Se não houver resposta após mais 6 meses, a terapia deve ser continuada com 2.000 unidades de hCG duas vezes por semana e 150 unidades de hMG três vezes por semana. Esta abordagem gradativa pode, portanto, levar 12 anos antes de haver certeza de que a espermatogênese está ou não estabelecida. O tratamento prévio com testosterona não parece comprometer a resposta às gonadotrofinas exógenas subseqüentes. Controle da gravidez 1. A desferrioxamina deve ser descontinuada assim que seja detectada gravidez. 2. O nível pré-transfusional médio de Hb deve ser mantido entre 10-10,5 g/dl, particularmente durante o último trimestre. 3. A função cardíaca deve ser monitorada seqüencialmente ao longo da gravidez, em complemento à meticulosa monitoração da glicemia e do estado do diabetes. Quelação do ferro na gravidez Os benefícios da desferrioxamina para a mãe devem ser ponderados em relação a seu possível risco para o feto. A segurança da desferrioxamina durante a gravidez ainda não foi plenamente estabelecida em estudos formais. No momento, o melhor conselho parece ser evitar a desferrioxamina durante o primeiro trimestre. Quando a paciente apresenta uma carga de ferro extremamente alta ou é considerada sob risco significativo de complicações cardíacas, tem sido usada uma dose baixa, de 20-30 mg/kg/dia, nos estágios finais da gravidez. O tratamento com a desferrioxamina pode ser
reiniciado integralmente durante a lactação, já que a droga não é absorvida por via oral. Osteoporose A osteoporose se caracteriza por uma baixa massa óssea e pelo rompimento da arquitetura óssea, resultando em resistência óssea reduzida e maior risco de fraturas. Segundo os critérios da OMS (1994), a osteoporose é estritamente definida como uma contagem T inferior a –2,5 nos testes de densidade óssea. Uma forma mais branda, caracterizada por contagens T de –1 a –2,5, é chamada osteopenia. Essa definição se refere a mulheres adultas e não a crianças, adolescentes, homens ou pessoas muito idosas, já que os valores da densidade mineral óssea não foram adequadamente definidos nesses grupos. Apesar disso, a definição de osteoporose da OMS tem sido usada para descrever populações talassêmicas. Os locais típicos das fraturas osteoporóticas são os corpos vertebrais, o antebraço distal e o fêmur proximal. A massa óssea do esqueleto é o resultado de um equilíbrio entre a quantidade de osso sintetizado e absorvido. A aquisição de massa óssea é um processo gradual no início da infância, que se acelera dramaticamente durante a adolescência até ser atingida a maturidade sexual. Fisiologicamente, em torno dos 9 anos de idade todo o conteúdo mineral ósseo é de aproximadamente 900 g. Ele mais que duplica em torno dos 21 anos de idade, quando é de 2.200 g. A partir dos 30 anos de idade, cerca de 1% da massa óssea é perdida anualmente em ambos os sexos. Na talassemia ocorre uma alta incidência de osteoporose da coluna e quadril em ambos os sexos. A gravidade aumenta com a idade, e mesmo pacientes jovens exibem uma densidade mineral óssea bem inferior à dos controles pareados por idade. Diagnóstico A osteoporose é diagnosticada por determinações da densidade mineral óssea, sendo que existem várias modalidades de densitometria. Os métodos atualmente podem ser classificados em dois grupos principais: os que usam radiação ionisante, em que a fonte de radiação é a radiação gama ou ampolas de Raios-X; e outros que usam uma fonte de energia não ionisante como a tomografia de ressonância magnética e o ultra-som.
A absorciometria fotônica de energia única (SPA) determina o conteúdo mineral ósseo no corpo e se apoia em um único isótopo radiativo. É apropriada para os ossos do antebraço e calcanhar (esqueleto periférico). Esse método depende da quantidade de gordura na parte do corpo que é medida. A absorciomentria de Raios-X de energia única (SXA) é similar à SPA mas mais rápida. A absorciometria fotônica de energia dual (DPA) utiliza duas energias de um ou dois isótopos radiativos. É apropriada para medições da coluna lombar e do colo do fêmur (áreas centrais do esqueleto). Este método é mais acurado na coluna lombar que no colo do fêmur. A absorciometria de Raios-X de energia dual (DXA) pode medir o conteúdo mineral ósseo da coluna lombar, fêmur, antebraço, calcanhar, e de todo o corpo. Na coluna lombar, as medições são em geral realizadas entre as vértebras L1-L4, sendo cada vértebra avaliada individualmente. Para medição do quadril, é medida a área entre o colo femoral e a cabeça, junto com partes da diáfise. Os tempos de medição são curtos e a dose de radiação é baixa. A tomografia computadorizada quantitativa (QCT) é adequada para a determinação do conteúdo mineral ósseo da coluna lombar e fêmur, apresentando a vantagem de se poder medir separadamente as áreas cortical e trabecular do esqueleto. A dose de radiação, entretanto, é alta. O ultra-som mede a densidade mineral óssea no osso do calcanhar. Esta técnica pode fornecer informações sobre a elasticidade e a massa ósseas. Fatores que contribuem para a osteoporose na talassemia Anemia: os valores basais da hemoglobina podem variar de 7,0 a 11 g/dl, dependendo da disponibilidade de suprimentos de sangue em todo o mundo. É provável que níveis baixos de hemoglobina contribuam significativamente para a osteoporose nos pacientes com talassemia, mas essa relação ainda não foi suficientemente estudada. Os fatores genéticos exercem um papel importante na determinação da densidade óssea. A herança da massa óssea está sob controle poligênico, embora os genes responsáveis estejam mal definidos. O gene receptor estrógeno (ERG), o
gene receptor da vitamina D e os genes COLIA 1 e COLIA 2 foram implicados na regulação da densidade óssea, mas não está clara sua contribuição para a osteoporose na talassemia. Hormônios sexuais e metabolismo ósseo: O hipogonadismo é o principal fator contribuinte da osteoporose nesses pacientes. É sabido que tanto o estrogênio como a progesterona têm atividade no metabolismo ósseo ao limitar a reabsorção e promover a formação óssea. A testosterona exerce um efeito estimulador direto sobre a proliferação e diferenciação das células osteoblásticas humanas e murinas. Outros fatores que podem contribuir para a osteoporose na talassemia incluem a sobrecarga de ferro ou seu tratamento, a deficiência de ascorbato, diabetes, hipoparatireoidismo e hipotireoidismo. Além disso, fatores conhecidos por afetar pacientes não talassêmicos, como álcool, dieta, tabagismo e estilo de vida sedentário, também podem contribuir para a osteoporose em pacientes com talassemia. Tratamento Como a talassemia é uma doença progressiva, a prevenção e o diagnóstico precoce são mais eficazes que a tentativa de tratar uma doença estabelecida. Os pacientes osteopênicos devem receber uma dieta rica em cálcio e suplementação de vitamina D. Os suplementos de cálcio oral devem ser usados com grande cautela, devido a um risco reconhecido e progressivo de cálculos renais em pacientes com talassemia. Os pacientes devem ser encorajados a se exercitar ativamente, devendo ser dada orientação dietética para aumento dos alimentos ricos em cálcio. Deve ser estimulado o não tabagismo. Os pacientes com hipogonadismo devem ser tratados com terapia de reposição hormonal. O tratamento da osteoporose estabelecida é importante para a prevenção da doença progressiva e de fraturas. Todas as recomendações acima descritas para a osteopenia também se aplicam aos pacientes com osteoporose. Os bifosfonados são potentes inibidores da reabsorção óssea, tendo sido usados com sucesso no tratamento da osteoporose da pós-menopausa. Relatos preliminares sugerem que os bifosfonados melhoram os resultados da densitometria óssea nos pacientes com talassemia, mas o efeito sobre a resistência óssea continua incerto.
8: Infecções na Talassemia Major As infecções são a segunda causa mais comum de morte na talassemia major. Os motivos de infecção na talassemia tratada são: • Transmissão por transfusão de sangue • Imunidade alterada do hospedeiro devido a: Hiperesplenismo (ver Capítulo 4) Sobrecarga de ferro e terapia de quelação Vírus da Hepatite C (HCV) Este vírus RNA foi caracterizado pela primeira vez em 1989, tendo sido anteriormente denominado hepatite não-A não-B. Foram identificados 6 tipos e cerca de 90 subtipos entre os mais de 300 milhões de casos em todo o mundo. Depois da infecção podem se desenvolver anticorpos, os quais usualmente são específicos para a cepa. A ausência de imunidade protetora pode levar a reinfecção pela mesma cepa e/ou outras diferentes. As medidas preventivas para minimizar o risco de hepatite C pós-transfusional incluem a cuidadosa seleção dos doadores voluntários e a triagem ampla dos doadores de sangue. História natural e complicações da infecção A infecção aguda é geralmente benigna, com > 80% dos pacientes assintomáticos e anictéricos. A hepatite fulminante é muito rara. Em 85% dos casos desenvolve-se infecção crônica, levando a doença hepática crônica. O resultado clínico, entretanto, é altamente variável, por razões que não são completamente compreendidas. A cirrose, a mais freqüente complicação grave, desenvolve-se lentamente na maioria dos casos, geralmente levando até 2-3 décadas. Em alguns pacientes a cirrose pode se desenvolver rapidamente, dentro de 1-2 anos após a exposição [Hoofnagle 1997; Seeff 1992]. Nos pacientes com cirrose compensada, a sobrevida em cinco anos é de 91%, com 79% de sobrevida aos 10 anos. Quando a cirrose é descompensada, entretanto, a sobrevida aos 5 anos é de apenas 50%.
A doença hepática em estágio final deve serlevada em consideração para transplante de fígado. A hepatite C é o motivo mais comum de transplante de fígado em todo o mundo. Em > 90% dos casos ocorre infecção recorrente de hepatite C após o transplante, mas ela é geralmente leve. A sobrevida a longo prazo depois de um transplante de fígado por hepatite C é similar à que ocorre com outros diagnósticos, sendo em média de 65% após 5 anos [Detre 1996]. O carcinoma hepatocelular (HCC) se desenvolve em 1-5% dos indivíduos afetados, após 20 anos, sendo particularmente provável após o desenvolvimento de cirrose, aumentando em 14% em cada ano a seguir [Colombo 1989]. A prevenção e a detecção precoce do HCC são mais eficazes que a tentativa de cura. Ocasionalmente ocorrem manisfestações não hepáticas, inclusive artrite, queratoconjuntivite seca, líquem plano, glomerulonefrite e vasculite. A crioglobulinemia essencial mista (EMC) pode se apresentar com variadas combinações de fadiga, dores musculares e articulares, artrite, erupção cutânea, neuropatia e glomerulonefrite, sendo ocasionalmente fatal. A porfiria cutânea tardia é encontrada em diversas formas de doença hepática crônica associada a sobrecarga de ferro. Aspectos especiais da hepatite C na talassemia major A gravidade da hepatite C crônica pode ser maior devido a: • Concomitante sobrecarga de ferro • Outras infecções virais concorrentes (HBV, HIV) O limiar para início do tratamento da talassemia major deve ser, em geral, mais baixo que para a população em geral. Diagnóstico e monitoração Testes de anticorpos: • na fase aguda, os anticorpos aumentam 3-6 meses após o início da exposição à hepatite C, e seu aparecimento pode coincidir com ou acompanhar as elevações de sALT. • Nas infecções crônica, o anti-HCV geralmente persiste
• Nos casos em resolução, o anticorpo usualmente permanece detectável por muitos anos, mas pode desaparecer dentro de 6-12 meses. • Os anticorpos anti-HCV possuem limitado valor protetor ou previsor, não sendo recomendados para estadiamento ou monitoração da resposta ao tratamento. Quando o teste HCV-RNA estiver indisponível, os padrões de anticorpos conforme detectados por RIBA podem dar alguma informação sobre o estado da doença. O HCV-RNA no plasma: • • • •
é parte do material genético viral é detectado pela reação na cadeia de polimerase (PCR) é o indicador mais confiável da atividade viral precede em 2-10 semanas a elevação de sALT nos casos agudos ou recorrentes • correlaciona-se com a infectividade, a progressão da doença, a resposta ao tratamento, a exacerbação e a recorrência • confirma a presença de infecção nos pacientes com reatividade inconclusiva aos anticorpos, nos pacientes sob imunossupressão, e na transmissão vertical.
Biópsia hepática na talassemia major As características da infecção por hepatite C na biópsia hepática (agregados linfóides portais, esteatose e lesão das vias biliares) não são específicas. A biópsia hepática, porém, é valiosa antes do tratamento porque: • pode determinar a extensão da lesão hepática • pode permitir a avaliação da carga de ferro no tecido hepático • ajuda a monitorar a progressão e a resposta ao tratamento antiviral quando combinada com biópsias de seguimento. Tratamento Este é um campo rapidamente variável, e os conceitos quanto ao melhor tratamento refletem isso. O tratamento da hepatite em pacientes com talassemia deve ser realizado em íntima colaboração com um especialista em doenças hepáticas.
Seleção dos pacientes para terapia O início do tratamento na hepatite C crônica baseado em um ou mais dos seguintes:
tem sido
• presença confirmada de HCV-RNA • níveis moderados a elevados de sALT • histologia hepática anormal Na talassemia major, muitos consideram a presença persistente de HCV-RNA como suficiente para pensar em tratamento. Resposta ao tratamento Até 40% dos pacientes com hepatite C crônica compensada, níveis elevados de sALT e histologia hepática com fibrose portal ou intersticial e graus moderados de inflamação e necrose responderão ao menos transitoriamente ao interferon. A resposta é definida com base em: • resposta bioquímica (sALT) • resposta virológica (HCV-RNA) • momento das respostas acima Os tipos de resposta foram definidos como a seguir: • Resposta Durante o Tratamento (DTR) • Resposta no Final do Tratamento (ETR) • Resposta Mantida (SR): Normalização de sALT e desaparecimento de HCV-RNA 6-12 meses após a conclusão do tratamento, checadas em pelo menos duas ocasiões • Não responsivos: ALT e sHCV-RNA permanecendo anormais em todos os momentos de avaliação durante o tratamento • Ruptores: Diminuição inicial levando a sALT normal e desaparecimento de HCV-RNA durante o tratamento, com subseqüente elevação de sALT e/ou de HCV-RNA enquanto o paciente está sob tratamento • Reincidentes: Nova elevação de ALT e/ou reaparecimento de HCV-RNA após a cessação do tratamento. Resposta à monitoração A recomendação atual é medir a resposta bioquímica (sALT) e virológica (HCV-RNA) após 4-12 semanas de tratamento, continuando o mesmo por no mínimo mais 12 meses e até 24
meses nos pacientes com ALT normal ou HCV-RNA não detectável. A duração do tratamento parece ser mais importante que a dose na obtenção de uma resposta sustentada. Como sALT pode estar elevada por outros motivos nos pacientes com talassemia (sobrecarga de ferro, infecções concomitantes), pode ser difícil a interpretação da ALT para monitoração da resposta. Previsão de má resposta Os previsores negativos em todos os pacientes com hepatite C são: • Nível basal elevado de HCV-RNA e ausência de sua redução precoce (4-12 semanas) após o início do tratamento • sALT basal elevada e ausência de sua normalização precoce (4-12 semanas) após o início do tratamento • Genótipo 1 de HCV • Presença de hepatite grave, fibrose intersticial ou cirrose sendo que na talassemia major os previsores negativos adicionais são: • Alta concentração hepática de ferro • Co-existência de outros vírus (HBV, HIV) Como nenhum fator basal é previsor do sucesso ou fracasso do tratamento, não é justificável a não realização do tratamento com base nos fatores que sugerem má resposta. Como, entretanto, a sobrecarga de ferro reduz a possibilidade de um tratamento bem sucedido da hepatite C, deve ser fortemente levada em consideração a terapia efetiva de quelação antes de ser iniciada a terapia antiviral em pacientes com estoques acentuadamente excessivos de ferro [Piperno 1996]. Regimes de tratamento Apenas interferon Tipo de interferon: interferon alfa recombinante Dose: 3 MU s.c. ou i.m., administradas três vezes por semana Duração: durante pelo menos 12 meses, até 24 meses
Efeitos colaterais: Na maioria dos pacientes, são típicos os sintomas similares aos gripais, insônia e alterações cognitivas e do humor, especialmente nas primeiras duas semanas após o início do interferon. Durante a terapia com interferon, comumente ocorrem neutropenia e trombocitopenia dose-dependentes. Deve ser dada uma atenção particular a essa complicação em pacientes com talassemia e hiperesplenismo. Como tanto a deferiprona como o interferon podem causar neutropenia, existem riscos teóricos associados a seu uso combinado, e essa combinação somente deve ser iniciada com extremo cuidado e cuidadosa monitoração. O hipotireoidismo é uma importante complicação do tratamento com interferon. Alguns pacientes apresentaram exacerbação das reações locais no local da infusão de desferrioxamina, durante o tratamento com interferon. Foi observada insuficiência cardíaca em alguns pacientes com talassemia que estavam recebendo interferon, devendo ser dado cuidado especial ao prescrever interferon a pacientes com doença cardíaca pré-existente. Monitoração dos efeitos colaterais: É obrigatória a rígida monitoração do hipotireoidismo nos pacientes que estão recebendo interferon, sendo que testes da função tireóidea e da presença de anticorpos anti-tireóide deve preceder o início da terapia. Também é necessário a monitoração regular das contagens sangüíneas para se identificar neutropenia ou trombocitopenia, devendo ser considerada a cessação da terapia se a contagem absoluta dos neutrófilos cair abaixo de 1000. Opções de novo tratamento As indicações para novo tratamento não estão firmemente estabelecidas mas podem ser levadas em consideração em pacientes não responsivos, reincidentes, responsivos parciais e ruptores. Elas incluem: • a combinação de interferon recombinante com ribavirina durante 6 meses • a mesma droga, na mesma dose, por um período mais longo (p.ex., aumento de 12 para 24 meses) ou em dose mais elevada durante 6-12 meses • um interferon diferente
Terapia de combinação – ribavirina + interferon [Reichard 1997] A ribavirina (1-β-D-ribofuranosil-1H-1,2,4-triazol-3carboxamina) é um análogo de nucleosídeo (guanosina), bem absorvida por via oral, e tipicamente administrada em doses de 1000-1200 mg/dia. Sozinha ela possui atividade antiviral limitada na hepatite C, mas na terapia combinada com αinterferon (3 UM três vezes por semana durante 6 meses) mostrou aumentar significativamente as respostas mantidas, em comparação com o interferon sozinho. A terapia de combinação deve ser levada em consideração em não responsivos ou reincidentes após o interferon sozinho, ou como terapia primária em pacientes com maus aspectos prognósticos. Alguns médicos atualmente usam a terapia de combinação como tratamento de primeira linha. Efeitos colaterais: Ocorre hemólise na maioria dos pacientes talassêmicos, com redução da hemoglobina em 10-20% em relação aos níveis basais. Na talassemia major isso pode estar associado a uma hemólise mais acentuada e aumento da necessidade de transfusão em 30%, o que requer ajuste cuidadoso do intervalo entre as transfusões e intensificação da terapia de quelação do ferro [Telfer 1997]. Controle de populações especiais de pacientes [Lindsay 1997] Para controle das populações a seguir, é especialmente importante a consulta com um médico experiente no controle de doenças hepáticas: • • • • •
Crianças Pacientes Pacientes Pacientes Pacientes
com cirrose imunossuprimidos grávidas com hepatite C aguda
Prevenção Até o momento não está disponível nenhuma vacina ou imunoglobulina para prevenir a hepatite C. São feitas as seguintes recomendações para reduzir o risco de transmissão não parenteral: O risco de transmissão sexual é geralmente baixo. Se um parceiro sexual há longo tempo não estiver já infectado, o
risco de uma futura transmissão é muito pequeno. Os dados existentes, entretanto, são insuficientes para se possa recomendar mudanças das atuais práticas sexuais nesses casos. Recomenda-se que os pacientes estimulem seus parceiros sexuais a fazer exames para hepatite C. Devem ser bastante encorajadas práticas sexuais seguras nas pessoas com múltiplos parceiros sexuais, inclusive o uso de preservativos de látex. São recomendadas medidas gerais como evitar o uso comum de escovas de dentes, lâminas de barbear etc, a fim de ser evitada a transmissão à família. Esse risco, porém, é baixo, provavelmente sendo desnecessárias medidas de segregação de toalhas e utensílios para alimentação. Vírus da Hepatite B (HBV) Incidência Na maioria dos países da Europa, América do Norte e em outras partes do mundo, ocorreu uma significativa redução das infecções por hepatite B, devido a estratégias de vacinação, triagem dos doadores de sangue para HBsAg, e outras medidas de saúde pública. Apesar disso, a hepatite B continua sendo um formidável problema médico, principalmente no sul da Europa e nos países em desenvolvimento. Na talassemia major, a positividade à HBsAg varia de < 1% a > 20%, e as taxas de infecção anterior variam de < 10% a > 70%. A infecção por hepatite B é, portanto, uma causa significativa de doença hepática crônica e carcinoma hepatocelular nesses pacientes, em todo o mundo. Significância clínica dos marcadores de HBV Apesar da disponibilidade de bons testes de triagem para a hepatite B, a interpretação dos resultados pode ser difícil ou enganadora. • Na infecção aguda, a HbsAg pode ser um marcador confiável (presente por 4-5 meses). A HbeAg também está transitoriamente presente (1-3 meses). • A infecção crônica é marcada [ela presença de HbsAg e antiHBc no sangue (usualmente acompanhados por HbeAg e antiHbe).
• Na infecção prévia ou na vacinação, o anticorpo à HbsAg aparece após 3-6 meses e persiste por muitos anos. Sua presença implica em infecção prévia (se estiver presente também anti-HBc) ou vacinação (se não estiver presente anti-HBc). Os pacientes com talassemia devem ser triados para todos os marcadores de hepatite B e classificados conforme é mostrado na Figura 8.1, que fornece uma lista das possíveis interpretações dos resultados da triagem, junto com as recomendações de controle baseadas nas atuais diretrizes da Fundação Americana do Fígado. Figura 8.1: Possíveis interpretações dos resultados da triagem da hepatite B Teste Resultados Interpretação Recomendação HBsAg Suscetível à infecção, Considerar anti-HBc nunca exposto ao vírus vacinação anti-HBs HBsAg + Infecção aguda ou Outra avaliação anti-HBc + ou crônica HBsAg Resolução de infecção anti-HBc +/prévia anti-HBs + anti-HbeAg + HBsAg Infecção no passado* anti-HBc +/anti-HBs anti-HBeAg HBsAg + Portador com infecção Outra avaliação: anti-HBc + crônica (se HBsAg + 6 considerar terapia anti-HBs meses ou mais) com interferon HBeAg + Altamente infeccioso HBsAg + Portador com infecção Outra avaliação, anti-HBc + crônica (se HBsAg + 6 inclusive níveis anti-HBs meses ou mais. Menos de HBV-DNA: se HBeAg infeccioso ou confirmada anti-HBeAg + infectado com vírus infecção precore precore mutante mutante, considerar terapia HbsAg Imunização sem Monitorar níveis Anti-HBc infecção cada 1-2 anos para Anti-HBs + reforço HbeAg Anti-HBeAg *Outras interpretações incluem: 1. Recuperação de infecção aguda por HBV, com perda de HBsAg mas anti-HBs ainda deve aparecer (“período de janela”).
2. Imune a HBV mas anti-HBs nunca apareceu ou caiu abaixo do nível de detecção. 3. Infecção HBV crônica com níveis séricos indetectáveis de HBsAg. 4. Anti-HBc falso positivo, com suscetibilidade a infecção por HBV. *As interpretações 2 e 4 são as explicações mais comuns para este padrão sorológico.
História natural Hepatite aguda: Esta é a apresentação mais comum, com um período de incubação de 4-20 semanas. A gravidade é variável, com um período ictérico freqüentemente precedido por uma doença prodrômica com artralgia e urticária. É rara a progressão para insuficiência hepática fulminante. A hepatite B aguda é usualmente controlada apenas com medidas de apoio. A progressão para hepatite B crônica ocorre em 5-10% dos adultos sadios em outros aspectos e em 90% dos recémnascidos. Na hepatite B ictérica em adultos, parece ser rara a transição para a cronicidade, provavelmente ocorrendo em menos de 2% dos casos. Nos pacientes com infecção crônica por hepatite B, a infecção concomitante por hepatite C pode aumentar a gravidade e o ritmo de progressão da doença hepática. A cirrose ocorre numa taxa de 1-2,2% por ano. O carcinoma hepatocelular é uma complicação bem reconhecida da infecção crônica por hepatite B. A carga de ferro na talassemia pode aumentar o risco, assim como o HCV concomitante. Prevenção Vacinação dos pacientes talassêmicos: Todos os talassêmicos recém diagnosticados devem ser vacinados contra hepatite B, devendo seus níveis de imunidade ser monitorados anualmente ou segundo as recomendações locais. São necessárias três injeções (nos meses 0, 1 e 6) para produzir uma resposta de anticorpos em 95% dos indivíduos normais. Nas doenças crônicas, inclusive a talassemia, a resposta pode ser significativamente inferior. Os níveis de anticorpos devem ser medidos cada 6 semanas após a última dose. Os níveis podem cair, e alguns especialistas recomendam o exame sorológico anual e a administração de doses de reforço nos
pacientes com níveis inferiores a 10 UI/ml. A vacina é ineficaz nos indivíduos já expostos à hepatite B. Nos indivíduos agudamente expostos a sangue reconhecidamente contaminado, a globulina hiperimune pode limitar o risco de infecção aguda. Prevenção da transmissão vertical: A transmissão da hepatite B da mãe para o bebê ocorre durante o período pré-natal. O risco de infecção é de 26-40% se a mãe for HBeAg positiva. As mães com hepetite B aguda durante a gravidez, transmitem o vírus em até 70% das gravidezes se a infecção ocorrer no primeiro trimestre e em até 90% se ela ocorrer nos 8 dias anteriores ao parto. As medidas para prevenção da transmissão vertical incluem a administração da vacina contra hepatite B e imunoglobulina da hepatite B (HBIG) aos recém-nascidos, dentro de 12 horas do parto por uma portadora. Isto resulta em > 90% de redução do risco de transmissão. Ao contrário da hepatite C, a hepatite B é altamente infecciosa através da via sexual e do contato pessoal íntimo. É necessário fazer recomendações detalhadas e imunização à família imediata do paciente e aos seus parceiros sexuais. Tratamento Os agentes terapêuticos usados no tratamento da hepatite B incluem a lamivudina (3TC), um inibidor da transcriptase reversa e o interferon-α recombinante. A decisão de tratar e a escolha de regimes específicos devem ser feitas em estreita colaboração com especialistas no tratamento de doenças do fígado. Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) Risco de infecção associado à transfusão Embora tenham se tornado disponíveis exames laboratoriais sorológicos específicos logo após a descoberta do HIV, um grande número de indivíduos anteriormente transfundidos já tinha sido infectado. Muitos mais ainda estão sendo infectados em países onde ainda precisam ser aplicadas medidas protetoras mais eficazes para segurança do sangue.
A prevalência da infecção por HIV varia muito na talassemia, de < 1% a > 20% em todo o mundo [Girot 199?]. Ela depende do momento do estabelecimento e da qualidade dos programas de saúde pública, assim como da prevalência local desse vírus. História natural Na ausência de tratamento, o tempo médio em anos da soroconversão de HIV para AIDS (definição de 1987) é de aproximadamente 7-11 anos para os receptores de transfusão. Os fatores que afetam a progressão são a infecção primária sintomática, a idade na infecção, e a carga viral (concentração de HIV1-RNA no plasma). Controle do HIV na talassemia Ultrapassa o objetivo deste livro fazer um levantamento detalhado do tratamento e monitoração dos pacientes com HIV. Os pacientes com talassemia e identificados como tendo infecção por HIV, devem ser controlados em colaboração com uma unidade de moléstias infecciosas com esperiência em HIV. Com a introdução de novos agentes terapêuticos, 1996 parece marcar um ponto de reversão da epidemia. O atendimento mudou de estratégias direcionadas a preparar os pacientes para morrer, para regimes de tratamento que permitem aos pacientes vidas mais longas e de melhor qualidade. Considerações especiais da talassemia Embora a terapia antiretrovial administrada aos pacientes com talassemia major deva ser baseada nas mesmas diretrizes gerais usadas para os outros pacientes, os efeitos colaterais como disfunção endócrina e diabetes podem ser mais significativos. A eritropoietina deve ser considerada nos pacientes com talassemia intermédia com a anemia piorando com o tratamento. Devido ao risco aumentado de neutropenia na terapia antiretroviral, devem ser usadas com cuidado outras medicações que possam causar ou exacerbar a neutropenia. A sobrecarga de ferro pode estar implicada na menor sobrevida dos pacientes com AIDS, pelo aumento da tensão oxidativa e por prejudicar os mecanismos de defesa imunológica, além de seu papel na estimulação do crescimento e, em alguns casos, da patogenicidade dos microorganismos [Salhi 1998]. Por isso é recomendado o controle adequado da sobrecarga de ferro, a fim de se obter o melhor resultado possível.
A decisão de realizar esplenectomia em um paciente HIVpositivo com talassemia deve ser feita com extremo cuidado, por causa do potencial de infecção fulminante nos pacientes imunocomprometidos. Outras Infecções Citomegalovírus (CMV) O CMV associado a transfusão tem um amplo espectro clínico. No paciente-hospedeiro imunocompetente ele é em geral subclínico ou pode aparecer como uma síndrome infecciosa similar à mononucleose. No hospedeiro imunocomprometido, como os receptores de transplante de medula óssea ou orgão, a infecção por CMV é uma causa importante de morbidade e mortalidade. A presença de anticorpos IgG no soro não evita a contagiosidade. Estima-se que aproximadamente 2-12% dos doadores sadios anti-CMV positivos sejam contagiantes. O aumento do uso do transplante de medula óssea como um tratamento da talassemia demanda especial atenção ao estado sorológico do CMV. A prevenção da transmissão através de produtos do sangue é efetivamente conseguida com o uso de doação negativa anti-CMV. O resultado desta prática, entretanto, seria a exclusão de 40% ou mais de todos os doadores, o que a torna uma consideração muito importante e, em última análise, uma medida preventiva que não é prática. Durante os últimos cinco a seis anos, vários estudos mostraram que a leucorredução dos produtos do sangue reduz significativamente o risco de transmissão de CMV. Há evidência de que a filtração dos leucócitos é tão eficaz quanto o uso de produtos do sangue soro-negativos para CMV na prevenção de infecção por CMV adquirida na transfusão após transplante de medula óssea. Parvovírus B-19 Nos pacientes com a duração de vida dos glóbulos vermelhos já abreviada (15—20 dias) e um baixo nível de Hb devido a distúrbios hematológicos como esferocitose, anemia falciforme, anemia hemolítica autoimune e talassemia, a infecção por B-19 pode causar uma aplasia aguda e com risco de vida dos glóbulos vermelhos, comumente citada como “crise aplástica transitória”. A cessação da eritropoiese dura 5-7
dias e complica hematologicamente a anemia hemolítica crônica. Ela se caracteriza por: • Baixa da hemoglobina em aproximadamente 2 g/dl ou mais, • Desaparecimento dos reticulócitos do sangue periférico (< 0,2%), • Ausência virtual dos precursores dos glóbulos vermelhos na medula óssea no início da crise, e • Viremia por B-19-DNA, que pode chegar até 1014 vírions/ml A crise também pode ser acompanhada por uma queda transitória dos linfócitos, neutrófilos e plaquetas. Uma ampla gama de manifestações clínicas tem sido associada à possível infecção por parvovírus B-19. A distribuição tecidual do antígeno P, que é o receptor ao qual se sabe que o Parvovírus B-19 se liga, é consistente com as síndromes clínicas causadas por esse vírus. O antígeno P está presente, além de nos eritrócitos e eritroblastos, nos megacariócitos, células endoteliais, placenta, fígado e células cardíacas fetais. Por isso deve ser dada atenção não apenas às crises aplásticas mas também a outros problemas clínicos como miocardite, a qual pode indicar infecção pelo vírus. Tipicamente, após a recuperação de uma infecção aguda os pacientes ficam imunes a outras infecções por B-19. Quando os pacientes estão imunossuprimidos (p.ex., transplantados, infectados por HIV) e não conseguem armar uma resposta efetiva ao vírus por meio de anticorpos, observa-se anemia crônica por B-19. As crises agudas por B-19 podem ser controladas por transfusão de sangue, enquanto que a administração de imunoglobulina é benéfica na doença crônica. Sabe-se que este vírus é capaz de prolongada viremia, latência com reativação e possível reinfecção [Mosely 1994]. Malária e Doença de Chagas A malária e a doença de Chagas após transfusão são conhecidas há mais de 50 anos. Espécies de Plasmodium e o Trypanosoma cruzii podem permanecer viáveis durante pelo menos duas semanas nos componentes do sangue refrigerado e mesmo no plasma congelado. Há grandes preocupações de que o crescente turismo para países endêmicos possa aumentar a freqüência de transmissão por meio de produtos do sangue, embora isso ainda não tenha sido observado. Apesar disso, ambas as doenças
continuam sendo um importante tópico nos serviços de transfusão de sangue, tendo sido estabelecidos padrões pela OMS, o Conselho da Europa e os serviços nacionais de sangue para a prevenção da transmissão dessas doenças (ver TIF Blood Kit para mais informações). Infecção Associada ao Ferro O papel da carga de ferro na suscetibilidade à infecção não foi plenamente estabelecido em ensaios clínicos. Isso precisa ser esclarecido para que possam ser fornecidas diretrizes clínicas específicas aos pacientes e seus médicos. Está claro, entretanto, que diversos microorganismos são mais patogênicos em presença da sobrecarga de ferro e que a infecção é uma causa comum de morte na talassemia. A experiência clínica manda que a febre e a infecção, mesmo no paciente não esplenectomizado com talassemia, seja investigada e tratada rápida e agressivamente. É recomendável que a quelação do ferro seja interrompida enquanto a causa da febre não identificada é investigada. A associação melhor descrita entre infecção bacteriana, ferro e quelante do ferro é a Yersinia enterocolitica (ver abaixo). Foi demonstrado que muitos outros organismos como Klebsiella species, Escherichia coli, Streptococcus pneumoniae, Pseudomonas aeruginosa e Listeria monocytogenes aumentam de virulência na presença de excesso de ferro in vitro. Os clínicos envolvidos no tratamento de pacientes com talassemia constataram exemplos fatais dessas infecções em seus pacientes. Embora exista evidência de imunidade alterada do hospedeiro nas síndromes talassêmicas, estão disponíveis apenas informações limitadas relativas aos efeitos ou funções dos fagócitos mononucleares em relação aos microorganismos e à influência da sobrecarga de ferro e da quelação de ferro sobre sua atividade. Yersinia enterocolitica Mecanismos da infecção Ao contrário da maioria das demais bactérias, a Yersinia enterocolitica não produz sideróforos próprios e, por isso, vive mais eficientemente em um ambiente rico em ferro ou utilizando os sideróforos de outros microorganismos para adquirir ferro.
A desferrioxamina é o sideróforo natural do Streptomyses pilosus. Organismos Yersinia podem usar a ferrioxamina para crescimento. O organismo Yersinia é mais comumente transmitido pela ingestão de alimento, carne, leite ou água contaminados, embora seja um comensal em indivíduos sadios. Raramente ocorre a transmissão da Yersinia enterocolitica associada a transfusão de doadores aparentemente sadios, já que esse organismo pode sobreviver e se multiplicar em condições normais de armazenamento à temperatura de 4oC. A taxa de mortalidade entre os receptores de sangue contaminado é > 50%. Manifestações clínicas As manifestações clínicas da infecção por Yersinia dependem da idade e saúde do hospedeiro. Essas manifestações são variáveis, mas na talassemia são graves em mais de 80% dos casos. A febre é um aspecto comumente presente, freqüentemente associada a dor abdominal e diarréia ou vômitos. Às vezes são observadas manifestações extra gastrintestinais, como artralgias e erupções cutâneas. As complicações podem incluir abscesso abdominal (fossa ilíaca direita), nefrite, ou abscesso esplênico. As seqüelas pós-infecção incluem eritema nodoso e artrite reativa, principalmente em adultos. Diagnóstico Laboratorial São necessárias condições especiais de cultura para identificar as espécies de Yersinia. As culturas devem ser mantidas a 22oC por 48 horas. Se o laboratório não tiver ciência de que há suspeita de Yersinia, poderão não ser usadas as condições corretas de cultura das amostras de sangue e fezes. Os testes sorológicos para Yersinia são problemáticos por causa da possibilidade de reatividade cruzada. Um aumento dos títulos de IgG em quatro vezes, entretanto, em amostras seriadas obtidas com intervalo de 15 dias, pode ser sugestivo de infecção recente. No total, é baixa a taxa de pickup para as fezes, cultura de sangue e soroconversão. Em alguns casos,
o diagnóstico só pode ser feito após a obtenção de amostras do tecido afetado (p.ex., intestino, gânglio linfático). Tratamento O tratamento deve ser iniciado com base na suspeita clínica. Nesses casos, devem ser tomadas as seguintes medidas: • Interromper imediatamente a quelação de ferro • Obter amostras laboratoriais adequadas Começar imediatamente o tratamento antibiótico. A ciprofloxacina (500 mg por via oral ou 400 mg por via endovenosa cada 12 horas) é a primeira linha de tratamento recomendada em pacientes que podem reter a droga com segurança. Os pacientes com septicemia causada por Yersinia apresentam risco aumentado de mortalidade e por esse motivo devem receber terapia endovenosa com antibiótico. Podem ser dados a gentamicina (5-7 mg/kg de peso corpóreo) ou o cloranfenicol (50 mg/kg, por via oral ou em doses endovenosas divididas). Têm sido relatadas boas respostas com trimetoprim-sulfametoxazol. Em geral é recomendado que a terapia antibiótica seja mantida por sete dias após a comprovação da infecção. A quelação do ferro não deve ser reiniciada a menos que os sintomas tenham desaparecido completamente e o paciente tenha se recuperado. 9: Transplante de Medula Óssea Resultado e seleção de pacientes O transplante da medula óssea de irmãos HLA-idênticos tem sido crescentemente adotado para a cura de hemoglobinopatias. Desde 1981 foi adquirida uma grande experiência clínica com mais de 1.500 transplantes de medula óssea realizados em muitos centros mundiais. Os resultados do transplante de medula melhoraram consideravelmente desde os primeiros relatos, devido ao uso da ciclosporina, de um tratamento mais eficaz da infecção por citomegalovírus, da melhora das técnicas de assepsia, e da evolução da terapia antibiótica sistêmica [Lucarelli 1997]. Foram identificadas três classes de pacientes de risco, com base em: • terapia inadequada de quelação do ferro,
• presença de fibrose hepática, e • hepatomegalia Os pacientes da Classe I não apresentam nenhuma dessas características, os pacientes da Classe II apresentam uma ou duas, e o pacientes da Classe III apresentam as três características. Foi constatado que esses fatores de risco exercem uma significativa influência sobre o resultado no pós-transplante [Giardini 1995]. Entre as crianças talassêmicas de Classe I transplantadas precocemente no decorrer da doença, as probabilidades de sobrevida e sobrevida livres da doença são de 93% e 91%, com 2% de risco de rejeição e 8% de risco de mortalidade relacionada com o transplante (Fig. 9.1). O resultado é comparável entre centros que realizam transplantes em pacientes com características gerais similares [Lucarelli 1997]. As probabilidades de sobrevida, sobrevida livre da doença, mortalidade por rejeição e não rejeição, respectivamente, são de 87%, 83%, 3% e 15% nos pacientes da Classe II (Fig. 9.2) e 79%, 58%, 28% e 19% nos pacientes da Classe III (Fig. 9.3). Nesta última categoria de pacientes, a introdução de regimes de condicionamento contendo menos de 200 mg/kg de ciclofosfamida resultaram em um significativa queda da mortalidade relacionada com o transplante, mas com concomitante maior risco de rejeição do enxerto. No grupo adulto (idade > 16 anos), a probabilidade de sobrevida com o transplante é de 66%, a probabilidade de cura é de 62%, com 35% de chance de mortalidade relacionada com o transplante e 5% de retorno às condições talassêmicas antes do transplante (Fig. 9.4). Com base nesses resultados, o transplante de medula óssea na talassemia deve ser levado em consideração em pacientes com pouca idade, ou antes que se tenham desenvolvido complicações decorrentes da sobrecarga de ferro. O médico, o paciente e sua família devem ponderar as vantagens e desvantagens relativas do transplante de medula óssea e da terapia convencional. A decisão deve ser tomada levando em conta os resultados e os riscos do tratamento convencional disponível e do transplante de medula óssea. Doadores irmãos HLA-pareados A aplicabilidade geral do transplante de medula óssea é limitada pela disponibilidade de um doador HLA-pareado que seja parente. Há uma chance em quatro de que qualquer irmão seja HLA-idêntico, com a possibilidade de que um paciente
talassêmico tenha um doador irmão HLA-idêntico, dependendo do tamanho da família. Transplante de doador pareado não aparentado Como a maioria dos pacientes com talassemia não tem um doador irmão compatível, há interesse em se usar doadores não aparentados mas pareados. Espera-se que, com a contínua melhora das técnicas de emparelhamento, as taxas de complicação sejam reduzidas a níveis aceitáveis. Tem havido alguma aplicação de transplante usando doadores não aparentados pareados na talassemia, o que sugere que, se os doadores não aparentados pertencerem a um antecedente genético intimamente relacionado, o resultado poderá ser melhorado [Dini 1999; Miano 1998]. Até o momento, porém, a experiência é limitada. Transplante de sangue do cordão umbilical Recentemente tem recebido considerável interesse o uso de células tronco obtidas do sangue do cordão umbilical e coletadas por ocasião do parto. Há diversas possíveis vantagens nesta abordagem. Em primeiro lugar, as células tronco podem ser facilmente obtidas no nascimento, freqüentemente em número suficiente para uma doação bem sucedida, em vez de se ficar esperando que o doador fique mais velho e possa ser submetido a cultura da medula óssea. Em segundo lugar, foi sugerido que a doença enxerto versus hospedeiro pode ser menos grave quando as células tronco são obtidas nesse momento inicial da vida. Em terceiro lugar, a coleta rotineira de células tronco do sangue do cordão umbilical em todos os nascimentos forneceria uma quantidade maior de doadores para a terapia BMT. Neste ponto, porém, não é persuasiva a evidência de menor GVHD com o uso do sangue umbilical. Em muitas doações, a quantidade de células tronco obtida é insuficiente para a realização do enxerto em um receptor adulto. Por isso, embora o transplante do sangue umbilical tem sido usado com sucesso no tratamento de doentes com talassemia [Miniero 1998], seu valor global no tratamento desta condição ainda requer maiores esclarecimentos. Quimerismo misto Após o transplante de medula óssea na β-talassemia, freqüentemente ocorre a presença de células hematopoiéticas residuais do hospedeiro, normalmente denominada quimerismo misto [Andreani 1996]. A redução da dose de bussulfam por
ciclofosfamida nos regimes de condicionamento produziu taxas bastante altas de quimerismo misto. A presença de quimerismo misto em um paciente transplantado representa um fator de risco de fracasso do enxerto. Nenhum dos pacientes que apresentaram enxertadura total do doador rejeitou o transplante, enquanto que 29% dos pacientes com quimerismo misto rejeitaram o enxerto dentro de 2 anos após a infusão de medula. Apesar disso, foi observada uma condição de quimerismo misto persistente a longo prazo (> 2 anos) após BMT bem sucedido em talassemia. Esta observação pode ter um significativo impacto sobre os esquemas de estratégias de transplante de medula óssea no futuro. Seguimento pós-transplante É particularmente importante o seguimento clínico após o transplante. No primeiro ano é necessário atenção cuidadosa na monitoração dos parâmetros hematológicos e de enxertadura, das complicações infecciosas e da doença do enxerto versus hospedeiro. O seguimento a longo prazo tem interesse particular em relação à monitoração da evolução dos problemas multi-sistêmicos (sobrecarga de ferro, desenvolvimento puberal, crescimento, deficiências endócrinas) que estão relacionados com a doença primária. Diversos relatos mostram que a sobrecarga de ferro, a hepatite crônica, a função cardíaca e as deficiências endócrinas podem ser mais facilmente controladas após o transplante e algumas vezes permitem a cicatrização dos orgãos lesados. É particularmente importante remover o excesso de ferro após o transplante, o que pode ser em geral conseguido por venissecção, com a retirada de 6 ml/kg de sangue a intervalos de 14 dias [Angelucci 1997]. 119 TALASSEMIAS CLASSE 1 Idade inferior a 17 anos - Protocolo 6 Sobrevida Sobrevida livre da doença
93% 91%
Probabilidade Encerrado em 31,out,1998 Analisado em 31,mar,1999 Mortalidade sem rejeição Rejeição
8% 2%
Anos Figura 9.1: Probabilidades de sobrevida, de sobrevida livre da doença, mortalidade com rejeição e sem rejeição, segundo Kaplan e Meier, de 119 pacientes talassêmicos da Classe 1 com idade inferior a 17 anos.
291 TALASSEMIAS CLASSE 2 Idade inferior a 17 anos - Protocolo 6 Sobrevida Sobrevida sem eventos
87% 83%
Probabilidade Encerrado em 31,out,1998 Analisado em 31,mar,1999 Mortalidade sem rejeição Rejeição
15% 3%
Anos Figura 9.2: Probabilidades de sobrevida, de sobrevida livre da doença, mortalidade com rejeição e sem rejeição, segundo Kaplan e Meier, de 291 pacientes talassêmicos da Classe 2 com idade inferior a 17 anos.
126 TALASSEMIAS CLASSE 3 Idade inferior a 17 anos – Protocolos com Cy Sobrevida Sobrevida sem eventos
79% 58%
Mortalidade sem rejeição Rejeição
28% 19%
Probabilidade
Encerrado em 31,out,1998 Analisado em 31,mar,1999 Anos Figura 9.3: Probabilidades de sobrevida, de sobrevida livre da doença, mortalidade com rejeição e sem rejeição, segundo Kaplan e Meier, de 126 pacientes talassêmicos da Classe 3 com idade inferior a 17 anos.
115 TALASSEMIAS DE ADULTOS 21 Classe 2 = Protocolo 6 92 Classe 3 = Protocolos com Cy reduzida Sobrevida Sobrevida livre da doença
66% 62%
Mortalidade sem rejeição Rejeição
35% 5%
Probabilidade
Encerrado em 31,out,1998 Analisado em 31,mar,1999 Anos Figura 9.4: Probabilidades de sobrevida, de sobrevida livre da doença, mortalidade com rejeição e sem rejeição, segundo Kaplan e Meier, de 115 pacientes talassêmicos adultos com mais de 16 anos de idade.
10: Apoio Psicológico na Talassemia Porque o apoio psicológico é tão importante? É agora universalmente reconhecido que a talassemia, como outras doenças crônicas, tem importantes implicações psicológicas. O modo como a família e o paciente aceitam a doença e seu tratamento, tem um efeito crítico sobre a sobrevida do paciente. Sem uma compreensão e aceitação da doença e suas implicações pelo paciente e sua família, não serão enfrentadas as dificuldades das transfusões e da terappia de quelação por toda a vida, o que provocará a um maior risco de complicações da doença e sobrevida menor. Uma condição básica para os médicos e os outros profissionais da área de saúde é ajudar os pacientes e suas famílias a encarar as difíceis demandas do tratamento. O contato mensal com o centro de talassemia permitirá ao médico e aos demais membros da equipe atuar como um ponto de referência para o estado geral de saúde do paciente. Essa interação regular também oferecerá ao médico uma boa oportunidade para promover o desenvolvimento físico, emocional e social do paciente. O controle da talassemia está baseado na aliança terapêutica entre médico e paciente no decurso da doença. Devido à ênfase objetiva e orientada para a doença da educação médica, muitos médicos encontram dificuldades para se ajustar às demandas psicológicas do tratamento de doenças crônicas hereditárias.
Isso pode ser tornado ainda mais difícil para o médico, porque os pacientes com talassemia freqüentemente expressam fortes sentimentos negativos, os quais podem obstruir a comunicação. Além do mais, depois de muitos anos de tratamento, os pacientes e suas famílias freqüentemente estão melhor informados sobre a doença que médicos não especialistas, o que alguns médicos sentem que subverte seu papel. Todos esses fatores podem tornar extremamente difícil a manutenção de uma comunicação honesta e profunda, a qual é vital para o atendimento bem sucedido à talassemia. A psicologia da doença hereditária crônica Toda doença genética implica, independentemente de sua etiologia, em um sentimento de culpa. Ele pode interferir com o relacionamento primário entre os pais e o bebê. Conforme suas manifestações clínicas se desenvolvem no primeiro ano de vida, a doença também pode exercer um impacto negativo no relacionamento entre os pais e a criança. Além disso, o tratamento é emocionalmente exigente, já que as transfusões e a terapia de quelação requerem repetidos procedimentos invasivos e consultas hospitalares. Como a talassemia major tipicamente “começa” durante o primeiro ano de vida e requer um seguimento mensal, isso permite que o médico do centro assuma muitas das características de um “médico da família” tradicional, como guardião do bem estar geral do paciente – tanto físico como psicológico. A cronicidade é uma forte fonte de problemas emocionais, que se intensificam a cada estágio significativo de desenvolvimento da vida do paciente. Os pacientes podem sentir que são diferentes, limitados ou isolados. Seu estado mental pode rapidamente mudar de depressão para raiva e viceversa. O médico deve estar preparado para aceitar essas mudanças e ajudar o paciente a lidar com esses sentimentos. Comunicação dos profissionais da área de saúde com os pacientes Isso inclui, tanto quanto possível: • Atenção – estar interessado nas experiências emocionais e reais do paciente
• Aceitação – tanto respeitando o ponto de vista do paciente como sendo sensível quanto ao momento da comunicação pessoal • Co-participação – estar consistentemente próximo dos sentimentos positivos e negativos do paciente como ser humano • Compreensão – não apenas num nível intelectual mas também emocional • Manutenção de limites – oferecendo ajuda e alívio, mas tendo em mente seu papel como médico. As condições e a metodologia para discussão são importantes em todo o decurso da doença, mas são obrigatórias em momentos cruciais da experiência do paciente: • • • • •
diagnóstico primeira transfusão início da quelação puberdade complicações graves
Este tipo de interação pode ser extremamente benéfico para o paciente, ajudando-o a lidar melhor com a talassemia e a manter um senso de equilíbrio. Pode ser também extremamente gratificante para o médico, tanto em termos médicos como emocionais. Se o médico conseguir manter um diálogo constante, freqüentemente encontrará nas pessoas talassêmicas habilidades que superam grandemente as de seus iguais quando enfrentam os grandes desafios da vida, como nascimento/morte, amor/solidão, e possibilidades/limites. Aceitando o diagnóstico O dia do diagnóstico é geralmente lembrado pelos pacientes como chocante e fulminante. Para ajudá-los a lidar com essa angustiante informação, a comunicação do diagnóstico deve ser feita em condições específicas: • A sala e o momento devem ser escolhidos de modo a fornecer uma atmosfera que mantenha as esperanças sem iludir ou deprimir. • O médico deve discutir o diagnóstico com ambos os pais juntos, reservando bastante tempo para ouvir suas preocupações e responder às perguntas. • As informações devem ser sinceras, completas, e repetidas quantas vezes for necessário. O peso das emoções
negativas pode ser tão grande que os pais podem parecer confusos mesmo depois da informação completa ter sido dada mais de uma vez. • A discussão deve ser renovada nos meses que se seguem ao diagnóstico, com a mesma atenção para as condições, e de preferência com o mesmo médico, a fim de se preservar a continuidade. A criança deve ser incluída assim que possível. Já aos três a cinco anos de idade os jovens pacientes começam a fazer perguntas cruciais sobre a duração do atendimento e as possibilidades de cura. Esses aspectos devem ser atendidos com sensibilidade e honestidade. Impacto psicológico da anemia e da transfusão A anemia grave fará com que o paciente se sinta fraco e vulnerável. A manutenção de um nível adequado de hemoglobina por meio de terapia de transfusão adequada(ver Capítulo 3) elimina esses sintomas e reduz a ansiedade do paciente sobre a morte. A diminuição da hemoglobina no intervalo das transfusões, entretanto, pode permitir que esses sintomas reapareçam. Isso dá ao paciente a sensação de instabilidade e dúvida quanto a suas capacidades físicas. A necessidade de transfusões periódicas comprova que a energia vital vem de outras pessoas, o que implica em dependência. Essa terapia não cura; ela meramente compensa, como um “remendo” mensal da anemia, dando vida e bem-estar mas também transportando os produtos danosos complementares dos vírus e do ferro, os quais necessitam de tratamento adicional. Essa combinação de vantagens e desvantagens da transfusão encontra um paralelo nas reações psicológicas dos pacientes aos seus tratamentos. Os pacientes multiplamente transfundidos podem experimentar tanto sentimentos positivos de gratidão como sentimentos negativos de estar contaminados ou arruinados. Psicologia da terapia de quelação O médico precisa estar muito familiarizado com os aspectos emocionais da quelação, já que a aderência à terapia determina o prognóstico. • A quelação é um tratamento psicologicamente exigente, já que é “o remendo de outro remendo”; ela trata
• • • • • •
parcialmente as complicações de outro tratamento (transfusão). Como a transfusão, ela é uma lembrança da doença de alguém, mas numa base diária. A quelação adequada começa nos primeiros anos de vida. Ela implica em um pequeno ato de agressão, seja autodirecionado ou inflingido por pessoas queridas pelo paciente. As puncturas causadas pelas agulhas causam um dano na imagem corporal. O paciente pode se sentir “tão cheio de furos quanto uma peneira.” As restrições de tempo e movimento relacionadas com o uso da bomba, geram sentimentos de ser diferente e limitado. A eficácia da droga não pode ser checada rápida e diretamente pelo paciente. Por isso a aderência ocorre em função da confiança; quer dizer, ela reflete a qualidade do relacionamento médico-paciente e a crença em beneficios a longo prazo.
Esses aspectos emocionalmente aflitivos da quelação podem dar origem a uma tendência contraproducente por parte do paciente com talassemia, dos pais, e mesmo do médico atendente, para tacitamente encorajar a não aderência à terapia a fim de evitar os estados psicológicos negativos. Os pais podem: • Ainda não ter superado o choque do diagnóstico. A administração da infusão pode ser dolorosa se eles se sentirem responsáveis pelo desconforto de seu filho. • Usar a quelação como um instrumento de controle quando a criança chegar à adolescência. Os pacientes podem: • Constatar, somente após muitos anos de má quelação, quão lesiva pode ser a sobrecarga de ferro. • Permitir-se um estado de “negação” dos vínculos entre má aderência e mortalidade. • Adotar atitudes de recusa, sentindo-se “torturados” em lugar de tratados. • Explorar qualquer oportunidade ou desculpa para pular a infusão desse dia. • Permitir que sentimentos de baixa auto-estima prejudiquem suas atitudes ao auto-atendimento e auto-tratamento.
• Selecionar repetidamente os mesmos locais para inserção da agulha, permitindo que as reações locais se tornem mais freqüentes e graves. Os médicos podem: • “Barganhar” com o paciente, prescrevendo uma dose ou freqüência mais baixa de ferrioxamina que a indicada para a quantidade de carga de ferro. • Ser rigidamente inflexíveis, insistindo na prescrição e julgando, reprimindo ou mesmo ameaçando o paciente. Embora a motivação subjacente a essas reações seja em geral um desejo de fornecer alívio ao desconforto do paciente e fazê-lo sentir-se melhor, os efeitos a longo prazo desse comportamento são danosos para a saúde física e o bem-estar emocional do paciente. Recomendações: • Definir e resolver os aspectos práticos da quelação adequada (ver Capítulo 5). • Dar a devida atenção aos aspectos psicológicos, já que o menosprezo aos mesmos enfraquece a eficácia do relacionamento médico-paciente e aumenta os fracassos de tratamento. • Promover, assim que possível, a mudança do controle dos pais para o paciente. Muitos pacientes com talassemia podem começar a assumir o controle de seu regime de medicação a partir dos 6 anos de idade. O início precoce do auto-controle limita a super-proteção e estimula a autnomia do jovem paciente. Isso também dá alívio aos pais e, em última análise, melhora a qualidade de vida de toda a família. • Encorajar os pacientes a se sentir recompensados por terem conseguido atingir os objetivos terapêuticos mutuamente acordados. • Lembrar-se de que a aderência elevada por longo prazo promove boa capacidade e auto-confiança, sendo um fator chave positivo na manutenção do bem-estar emocional. Impacto psicológico das complicações da doença Na talassemia, uma complicação grave como cardiopatia ou diabetes pode aparecer durante a adolescência ou no início da idade adulta. O paciente passa por um período de reajuste
psicológico, no qual deve tentar integrar as esperanças, entusiasmo e desejos típicos da juventude com um estado físico comprometido e com condições médicas típicas da idade avançada. Nessa situação, o paciente inadequadamente apoiado pode se sentir “desesperadamente arruinado”, desistindo da saúde e da terapia continuada. Mesmo em casos muito graves, ainda é possível lidar com o sofrimento, compartilhando e trabalhando em conjunto para encontrar meios de aceitação dos novos limites estabelecidos pela situação. O médico deve encorajar o paciente a manter seus cuidados, mesmo que as complicações sugiram um mau prognóstico de sobrevivência. Resumo dos objetivos psicológicos Os objetivos psicológicos são: • Fornecer informações que promovam a compreensão da doença • Ajudar o paciente e seus pais a falar e expressar seus sentimentos sobre a doença • Ajudar o ppaciente a aceitar a doença e se cuidar • Manter esperanças realistas • Facilitar um estilo de vida “normal” para encorajar a auto-estima. Para por em prática essas tarefas, o médico deve: • Ter a mente aberta para os aspectos psicológicos de ter e tratar uma doença hereditária • Ser treinado no desenvolvimento psicossocial da infância à idade adulta • Ter sensibilidade em relação às condições especiais dessa doença hereditária crônica • Estar disponível para acompanhar e apoiar o paciente ao longo de toda sua vida. Evidentemente, não é possível que um médico forneça esse último apoio se a organização do sistema de atendimento à saúde não lhe der a oportunidade de trabalhar com os pacientes a longo prazo. A “rotação” de médicos experientes para centros diferentes, ou a transferência dos pacientes para uma clínica diferente em uma idade arbitrária, podem comprometer seriamente o bem-estar psicológico, o tratamento e o prognóstico de um paciente. O apoio psicológico apropriado, portanto, não apenas requer médicos motivados e
capacitados mas também pressupõe uma estrutura organizacional que permita a prestação bem sucedida de um atendimento apropriado e amplo. 11: Talassemia Intermédia Definição A talassemia intermédia abarca um espectro clínico muito mais amplo que a talassemia major. Sua própria designação é um rótulo aplicado a pacientes com talassemia e anemia com reticulócitos ou glóbulos vermelhos nucleados aumentados, e um decurso clínico em geral independente de transfusão. A gravidade da talassemia intermédia é extremamente heterogênea. Na extremidade grave do espectro clínico, os pacientes apresentam idades entre 2 e 6 anos, e embora sejam capazes de sobreviver sem transfusões regulares de sangue, está claro que seu crescimento e desenvolvimento são retardados. Na outra extremidade do espectro estão os pacientes completamente assintomáticos até a vida adulta, apenas com anemia leve (8-10 g/dl) e que podem necessitar apenas ocasionalmente, ou nunca, de transfusões. Em alguns pacientes, a esplenomegalia causada por excessiva destruição de glóbulos vermelhos ou aglomerado de glóbulos vermelhos leva a um hiperesplenismo que pode, por sua vez, exacerbar a anemia e tornar o paciente dependente de transfusões. Isso pode ser revertido com a esplenectomia [Weatherall 1981]. Base molecular Está claro agora que o fator chave na patogênese da talassemia é a quantidade de cadeias α livres que se precipitam no interior da célula, causando dano grave e morte das células eritróides. O excesso de cadeia α está relacionado com a magnitude da eritropoiese ineficaz. Isso implica em que deve ser esperada uma condição talassêmica mais branda (talassemia intermédia) quando: a. o defeito talassêmico não provoca a ausência completa de síntese da cadeia β. Em outras palavras, ele permite a síntese de uma quantidade subnormal de cadeis β, o que leva menos a um excesso de cadeias α do que à ausência completa de cadeias β. b. é alta a quantidade de cadeias γ que ficam disponíveis no interior das células eritróides talassêmicas devido à
ativação dos respectivos genes, porque esses últimos neutralizam uma grande parte das cadeias α não ligadas, e c. é suprimida a síntese de cadeias α pela presença concomitante de um ou mais defeitos da α-talassêmicos. Na Figura 11.1 são apresentados exemplos das interações acima, a qual inclue também algumas raras interações de interesse. Figura 11.1: Interações do gene globina resultando em talassemia intermédia Dois genes talassêmicos ♦ Genes β++/β++ da talassemia, causando redução leve da síntese da cadeia β e, conseqüentemente, menor excesso de cadeia α ♦ Genes β+/β+ da talassemia e co-herança de um ou mais genes α da talassemia, provocando redução direta do excesso de cadeia α ♦ Presença de genes que reforçam a síntese da cadeia γ em cis (talassemia δβ apagadora ou não apagadora, o polimorfismo –158 5’para o gene Gγ Xmn), ou ♦ Presença de genes que reforçam a síntese da cadeia γ em outros cromossomas (#6, cromossoma X), resultando em redução do excesso de cadeia α por meio da formação de tetrâmeros α2γ2 (HbF). β-talassemia in trans com uma variante talassêmica ♦ β-talassemia++ em um cromossona e HbE, HbKnossos ou outra variante com síntese reduzida no outro Apenas um gene β com defeito ♦ β-talassemia heterozigota e presença simultânea de mais que dois genes α em um ou ambos os cromossomas, resultando em significativo excesso de cadeias α que não podem ser removidas por proteólise e se precipitam no interior da célula, causando a morte prematura das células eritróides. ♦ Talassemias “dominantes” devido a codificação “variante” dos genes da globina para cadeias β hiper-instáveis, as quais se precipitam imediatamente ou logo após sua liberação dos ribossomas, desse modo provocando um excesso deletério de cadeia α e anemia.
Conforme já foi dito, a identificação molecular dos genes talassêmicos subjacentes é agora sistemeticamente procurada em todos os pacientes e pode ajudar a predizer o grau esperado de supressão da síntese da cadeia β. Além disso, em diversas mas não em todas as ocasiões, as mesmas técnicas são aplicadas para identificação das seqüências de DNA que podem
favorecer a síntese da cadeia γ, tal como o apagamento tanto do gene δ como do gene β, o que é conhecido como talassemia δβ, as várias formas de persistência da hemoglobina fetal (HPFH), e o local polimórfico Xmn I no nucleotídeo –158, G 5’para os genes γ. Hoje, os estudos moleculares de todos os pacientes estão se tornando um instrumento importante para escolha da mais apropriada abordagem terapêutica. A Figura 11.2 resume as mutações mais comuns da β-globina na talassemia intermédia e na talassemia major, conforme estabelecido em uma grande coorte de pacientes de origem Mediterrânea [Camaschella 1997]. Figura 11.2: Mutações da β-globina em 298 alelos de talassemia média e 254 alelos de talassemia major, em pacientes de origem Mediterrânea Mutações Talassemia Intermédia Talassemia Major n.(%) n.(%) 72(24) 136(53,5) Cd 39 C→T 52(17) 58(23) IVSI-110 G→A 94(31,5) 16(6,3) IVSI-6 T→C 8(2,7) 19(7,4) IVSI-1 G→A 14(4,7) 10(3,9) IVSII-1 G→A 11(3,7) 9(3,5) IVSII-745 C→G 10(3,3) -101 C→T Cd 6 – A 10(3,3) 3(1,2) 8(2,7) -87 C→G Siciliana 13(4,3) δβ Lepore Boston 2(0,7) 1(0,4) IVSI-5 G→A 1(0,3) IVSI-5 G→C 1(0,30 IVSII-844 G→C 1(0,3) IVSI-2 T→A Cd 44 –C 1(0,4) Cd 8 –AA 1(0,3) 1(0,4) Total 298(100) 254(100)
Diagnóstico diferencial A diferenciação entre talassemia major e talassemia intermédia à apresentação é essencial para a determinação do tratamento apropriado do paciente. Realmente, a previsão acurada de um fenótipo leve pode evitar transfusões desnecessárias e suas complicações, enquanto que o oportuno
diagnóstico de talassemia major permitirá um início precoce do programa de transfusão, desse modo evitando ou retardando o hiperesplenismo e reduzindo o risco de sensibilização antigênica do glóbulo vermelho. Infelizmente, a identificação acurada desses dois fenótipos é notavelmente difícil. Apesar disso, uma análise cuidadosa dos dados clínicos, hematológicos, genéticos e moleculares pode permitir uma atitude razoável de tratamento. A Figura 11.3 apresenta os critérios mais úteis para diferenciação entre talassemia major e talassemia intermédia. Figura 11.3: Critérios que podem ajudar a diferenciação entre talassemia major e intermédia na apresentação. Cada aspecto apresentado pode ajudar a decidir entre o diagnóstico de talassemia major ou talassemia intermédia, mas todos os aspectos devem ser considerados em conjunto e não isolados. Mais provavelmente Mais provavelmente Talassemia Major Talassemia Intermédia Clínico < 2 > 2 • Apresentação (anos) < 7 8-10 • Níveis de Hb (g/dl) Grave Moderado a grave • Aumento do fígado/baço Hematológico • HbF (%)
< 50
• HbA2 (%)
< 4
Genético • Pais
10-50 (pode ser até 100%) > 4
Ambos portadores de Um ou ambos portadores atípicos: β-talassemia HbA2 - β-talassemia HbF elevada - HbA2 limítrofe
Molecular • Tipo de mutação • Co-herança de αtalassemia α • Persistência hereditária de hemoglobina fetal • δβ-talassemia • Polimorfismo Gy XmnI
Grave Não
Leve/silenciosa Sim
Não
Sim
Não Não
Sim Sim
A Figura 11.4 mostra um fluxograma útil para uma abordagem diagnóstica molecular visando a diferenciar a talassemia major da talassemia intermédia. Ele deve, entretanto, ser
combinado com uma abordagem clínica, já que não são incomuns excessões à gravidade da doença baseadas na análise genética. Figura 11.4: Diagnóstico diferencial entre as talassemias major e intermédia Mutações do gene β Leve/Leve
Leve/Grave
Grave/Grave α-talassemia -158 Gγ
+/+
+/-
-/-
HPFH heterozigota (Estudos Familiares) Talassemia Intermédia
sim
não
? Talassemia Major
Manifestações clínicas Três fatores principais são responsáveis pelas manifestações clínicas da talassemia intermédia: a) eritropoiese ineficaz, b) anemia crônica, c) sobrecarga de ferro. A gravidade desses fatores depende dos defeitos moleculares subjacentes determinando o excesso relativo de cadeias de α-globina. Devido à extraordinária heterogeneidade da talassemia intermédia, alguns pacientes apresentam muito poucas anormalidades clínicas, enquanto que outros apresentam conseqüências graves em decorrência da eritropoiese ineficaz e da anemia. A expansão da medula óssea, uma conseqüência da grave eritropoiese ineficaz, resulta em deformidades características do crâneo e face, além de adelgaçamento cortical e fraturas patológicas dos ossos longos. A anemia crônica causa absorção gastrintestinal acelerada do ferro. Enquanto a carga de ferro é menos acelerada que o acúmulo de ferro transfusional em pacientes com talassemia major, os pacientes com talassemia intermédia freqüentemente desenvolvem doença cardíaca, fibrose hepática, anormalidades endócrinas, diabetes mellitus e outras complicações da sobrecarga de ferro. Além do mais, os pacientes com talassemia intermédia sofrem várias complicações bastante incomuns em pacientes portadores de talassemia major
adequadamente transfundidos, como deficiência de ácido fólico, úlceras da perna, cálculos biliares e trombose. Controle Terapia de transfusão Devido a heterogeneidade da doença, é muito difícil a decisão de iniciar transfusões regulares na talassemia intermédia. Complicações médicas recorrentes ou persistentes, como facies anormal, crescimento retardado, expansão aumentada da medula óssea, fraturas patológicas ou complicações cardíacas devido à anemia crônica, são indicações definitivas de que são necessárias transfusões de sangue. Uma vez que tenham sido iniciadas, não há benefício em limitar a quantidade ou freqüência das transfusões, sendo que isso não deve ser tentado. Os pacientes com níveis de hemoglobina entre 8 e 10 g/dl podem precisar de transfusões durante infecções ou outras condições agudas. O desenvolvimento de hiperesplenismo pode tornar esses pacientes dependentes de transfusão, mas essa situação pode ser revertida com a esplenectomia. Foi observado que o início das transfusões depois do terceiro ano aumenta o risco de aloimunização dos glóbulos vermelhos. Por esse motivo, foi sugerido que as primeiras transfusões devem ser realizadas conjuntamente com 3-5 dias de tratamento esteróide, visando a minimizar esse risco, embora não esteja comprovada a eficácia dessa abordagem. É recomendável a suplementação com ácido fólico por via oral (1 mg/dia), pois os pacientes com talassemia intermédia apresentam o risco de deficiência relativa de folato. As mulheres grávidas portadoras de talassemia intermédia precisam ser cuidadosamente monitoradas, podendo ser necessário transfusões. Esplenectomia As principais indicações para a esplenectomia são os sinais clínicos de hiperesplenismo (aumento do baço e baixa do nível médio de Hb), redução da taxa de crescimento, e decréscimo da sensação de bem-estar, na ausência de outros possíveis fatores interativos, como infecção. A esplenectomia deve ser levada em consideração se esses indicadores se tornarem
evidentes (remover sem demora). Entretanto, desde que os pacientes com talassemia intermédia permaneçam bem e apresentem um nível aceitável de Hb, não há necessidade de esplenectomia. A trobocitopenia e a leucopenia sintomáticas geralmente aparecem mais tarde na progressão do hiperesplenismo, mas também são indicações para a esplenectomia. As recomendações sobre o controle antes e depois da esplenectomia são as mesmas da talassemia major (Capítulo 4). A esplenectomia antes dos 5 anos de idade envolve um grande risco de infecção e por isso em geral não é recomendada. Antes ou durante a esplenectomia, a vesícula biliar deve ser checada quanto à presença de cálculos biliares, comuns nos pacientes com talassemia intermédia, devendo ser realizada colecistectomia, se necessário. Um exame macroscópico e a biópsia do fígado por ocasião da esplenectomia, oferecem uma boa oportunidade para avaliação da histologia e do conteúdo de ferro do fígado. Terapia de quelação do ferro A sobrecarga de ferro ocorre mesmo em pacientes com talassemia intermédia não transfundidos, devido à eritropoiese ineficaz, destruição periférica de glóbulos vermelhos e aumento da absorção intestinal de ferro. A carga de ferro secundária a essas causas é menos acelerada que a associada à sobrecarga transfusional de ferro nos pacientes talassêmicos dependentes de transfusão. Apesar disso, as conseqüências clínicas são similares, embora isso ocorra mais tarde na vida. Um estudo relatado sobre o equilíbrio do ferro em pacientes com talassemia intermédia, indica que nesses pacientes a carga de ferro pode ser da ordem de 2-5 g de ferro por ano [Pippard 1982]. Os pacientes mais idosos, portadores de talassemia intermédia, podem apresentar o mesmo risco de disfunção hepática, cardíaca e endócrina induzida pelo ferro que os pacientes com talassemia major. Nos pacientes com talassemia intermédia têm sido observadas concentrações elevadas de ferro hepático (LIC), a despeito de um ligeiro aumento da ferritina sérica [Fiorelli 1990]. Por esses motivos, a medida da concentração hepática de ferro ou o início da terapia de quelação do ferro devem ser seriamente levados em consideração nos pacientes com talassemia intermédia que apresentam a ferritina aumentada mesmo moderadamente. A
saturação da transferrina pode ser mais confiável que a ferritina na talassemia intermédia, mas é recomendada uma determinação direta da carga de ferro pela medição da concentração do ferro hepático por meio de uma biópsia ou de métodos não invasivos. Os pacientes com talassemia intermédia devem ser aconselhados a evitar a ingestão de alimentos particularmente ricos em ferro (p.ex., fígado), e a evitar alimentos “naturais” e bebidas com quantidades elevadas de suplementos de ferro. O hábito de tomar chá preto às refeições reduz a absorção do ferro não-heme. A terapia de quelação deve ser iniciada quando a sobrecarga de ferro for determinada por exames bioquímicos ou histoquímicos. Pode ser suficiente a desferrioxamina administrada subcutaneamente 2 a 3 dias por semana. O tratamento deve ser monitorado da mesma maneira que nos pacientes submetidos a transfusões regulares (ver Capítulo 5). Osteoporose Quase todos os pacientes com talassemia intermédia apresentam os valores da densidade mineral óssea espinhal (S-BMD) no limiar de fratura ou próximo dele. Como a osteoporose é uma doença progressiva, a prevenção e o diagnóstico precoce são mais eficazes que a tentativa de tratamento de uma doença estabelecida. Os pacientes osteopênicos devem ser encorajados a realizar exercícios ativos, aumentar a ingestão diária de cálcio e evitar o fumo. Eles também podem se beneficiar com a suplementação oral de cálcio e vitamina D. Os bifosfonados têm sido usados recentemente com sucesso no tratamento da osteoporose pós-menopausal. Seu papel nos pacientes com talassemia ainda precisa ser validado. Massas eritropiéticas extramedulares A medula óssea hiperplástica provoca a formação de tecido eritropoiético extramedular, principalmente no tórax e na região para-espinhal. Isso pode causar complicações neurológicas, devido à compressão da medula espinhal. A presença das massas pode ser documentada por Raios-X ou, mais precisamente, por MRI. Um regime de hipertransfusão geralmente reduz essas massas. Em alguns casos pode ser necessário radioterapia, quando já estão documentadas lesões neurológicas. Recentemente, alguns casos foram tratados com
sucesso com hidroxiuréia; no momento, porém, não estão disponíveis dados de estudos controlados. Úlceras da perna As úlceras da perna, uma complicação comum nos pacientes adultos com talassemia intermédia, são muito difíceis de tratar. Nos casos persistentes, transfusões regulares dão algum alívio. São recomendadas medidas simples, como manter pernas e pés elevados acima do nível do coração por 1 a 2 horas durante o dia, quando possível, e dormir com a extremidade inferior da cama elevada cerca de 10 cm. A hidroxiuréia, só ou em combinação com a eritropoietina, tem sido usada com algum benefício em casos esporádicos. Trombofilia Os pacientes com talassemia intermédia apresentam um maior risco de eventos trombólicos quando comparados com a população em geral. Diversos mecanismos podem estar envolvidos para explicar o estado trombofílico desses pacientes, inclusive a atividade pró-coagulante dos glóbulos vermelhos circulantes lesados, e a possível co-herança de defeitos da coagulação [Ruft 1976]. Embora não haja, no momento, um consenso sobre o tratamento profilático, é recomendado um antiagregante plaquetário quando existir trombose, sendo administrado tratamento anticoagulante (p.ex., heparina com baixo peso molecular) em pacientes submetidos a operações cirúrgicas ou quando é documentada trombose. A terapia anticoagulante deve ser cuidadosamente monitorada. Transfusões antes da cirurgia podem reduzir a atividade pró-coagulante dos eritrócitos talassêmicos. 12: β-talassemia/Hb E Definição A hemoglobina E é provavelmente a variante estrutural mais comum da hemoglobina com propriedades talassêmicas na população mundial, atingindo sua freqüência máxima no leste da Tailândia e Laos. A HbE não é apenas uma variante estrutural, mas também é sintetisada ineficientemente quando comparada com a HbA, causando um fenótipo clínico de uma forma leve de β-talassemia. A interação da HbE com a βtalassemia resulta em fenótipos de talassemia que variam de
uma condição indistinguível da talassemia major a uma forma leve de talassemia intermédia. A β-talassemia/Hb E é prevalente em todo o sudeste asiático. Ela é bem mais comum que a β-talassemia homozigota, porque a prevalência da HbE é maior que a da β-talassemia [Wasi 1985, Winichagoon 1993]. Ao lidar com a β-talassemia/Hb E, deve-se ter em mente a diversidade de fenótipos apresentada por essa doença. A β-talassemia/Hb E pode ser classificada clinicamente em 3 categorias, cada uma das quais possui suas próprias e únicas exigências de controle, conforme a seguir apresentado:
β-talassemia/Hb E leve A forma leve da β-talassemia/Hb E é observada em cerca de 15 por cento de todos os casos no sudeste asiático. Esse grupo de pacientes em geral não desenvolve problemas clinicamente significativos e não requer tratamento. Os níveis da hemoglobina podem ser de até 9-12 g/dl. Ao exame de sangue, entretanto, pode ocorrer confusão com deficiência de ferro ou portadores de β-talassemia, devido à similaridade de morfologia dos glóbulos vermelhos e alterações dos índices desses glóbulos. A avaliação do estado do ferro e a eletroforese da hemoglobina ajudarão a identificar o diagnóstico correto.
β-talassemia/Hb E moderadamente grave A maioria dos casos de β-talassemia/Hb E cai nesta categoria. A maioria dos pacientes apresenta níveis de hemoglobina que permanecem estáveis entre 6-7 g/dl. Clinicamente, esses pacientes apresentam sintomas similares aos da talassemia intermédia e normalmente não requerem transfusões de sangue, a menos que desenvolvam infecções que precipitem uma anemia mais acentuada. Outras complicações, como sobrecarga de ferro, podem ocorrer nesses pacientes. A terapia de quelação deve ser iniciada nos pacientes com sobrecarga de ferro. Esses pacientes freqüentemente têm seu período de vida um tanto abreviado, mas com cuidadosa monitoração e tratamento podem atingir idade avançada.
β-talassemia/Hb E grave Ela representa o bem conhecido quadro clínico da talassemia major com desenvolvimento de defeitos físicos, facies talassêmica, anemia, icterícia e hepatoesplenomegalia. O nível de hemoglobina pode ser tão baixo como 4-5 g/dl. Este grupo de pacientes necessita de transfusões regulares e de outros tratamentos, conforme acima discutido nas seções sobre o controle da β-talassemia major. Controle Educação Os pais e parentes podem apresentar uma grande dose de ansiedade devido à falta de informações sobre a condição. A natureza da doença deve ser amplamente explicada. Nutrição Devido às crescentes demandas pela produção de glóbulos vermelhos, é muito importante uma dieta adequada. Os pacientes devem ser aconselhados a não tomar suplementos com ferro, porque já estão sob risco de sobrecarga de ferro. Pode ser prescrito ácido fólico por via oral, porque podem ocorrer níveis séricos baixos de folato devido à intensa atividade eritropoiética. Transfusões de sangue As indicações para a terapia de transfusão são similares às da talassemia major (ver Capítulo 3). Os pacientes com βtalassemia podem desenvolver hipertensão, convulsões e hemorragia cerebral (HCC) após receber duas ou mais unidades de transfusão contínua de sangue [Wasi 1987]. A monitoração da pressão arterial durante e após as transfusões de sangue, com pronta intervenção antihipertensiva, reduziu as mortes por HCC. Devem ser evitadas excessivas transfusões de sangue em pacientes talassêmicos β/Hb E que não estejam gravemente anêmicos e que estejam mais ou menos adaptados a uma anemia crônica por toda a vida. Esplenectomia A esplenectomia traz benefícios em geral limitados aos pacientes não transfundidos portadores de β-talassemia/Hb E. As indicações para esplenectomia em pacientes transfundidos
são similares às feitas para a talassemia major (ver Capítulo 4). Sobrecarga de ferro A sobrecarga de ferro está presente tanto nos casos moderados como nos graves [Pootrakul 1981b]. A pele pode estar escurecida, e são encontrados depósitos de ferro na medula óssea, fígado, baço, coração, pâncreas e outros locais, como nas outras formas de talassemia major e intermédia. Comumente ocorre, em pacientes mais idosos, diabetes insulinodependente secundário à deposição de ferro no pâncreas. Outra anormalidade endócrina conspícua é a ausência de desenvolvimento sexual secundário nos pacientes que não estão recebendo trasfusões adequadamente e terapia de quelação. A secreção do hormônio de crescimento pode estar normal ou reduzida [Vannasaeng 1981]. O hipoparatireoidismo está associado à reabsorção óssea. A terapia de quelação deve ser iniciada e monitorada como nos pacientes com talassemia major. Eritropoiese extramedular Devido à anemia, que estimula a produção de eritropoietina, a eritropoiese está maciçamente aumentada – 10 a 15 vezes o normal. Isso provoca a reabsorção óssea e a hemopoiese extramedular. As massas hematopoiéticas extramedulares em torno das costelas podem originar assustadoras imagens ao Raios-X, mesmo quando não estiverem presentes sintomas externos. Uma massa assim no canal medular, entretanto, pode provocar paraplegia, e no crâneo pode causar convulsões. A transfusão de sangue, só ou em combinação com irradiação local da área comprimida, localizada por exame clínico e MRI, pode aliviar os sintomas [Issaragrisil 1981, Fucharoen 1985]. Ocorre deformação óssea em conseqüência da maciça expansão da medula óssea. Essa expansão também provoca diminuição da densidade óssea e osteoporose. São comuns fraturas ósseas, sendo que a cicatrização óssea se segue às transfusões de sangue [Pootrakul 1981a]. Colelitíase A colelitíase é outra complicação freqüente, devido à alta movimentação do pigmento biliar. A ultra-sonografia revela cálculos biliares em até 50 por cento dos pacientes com βtalassemia/Hb E [Chandcharoensin-Wilde 1988]. Quando
detectada, deve ser recomendada a cirurgiua eletiva, já que é grande o risco de colescistite dolorosa e episódios obstrutivos com icterícia e colangite ascendente. Úlceras crônicas da perna As úlceras crônicas da perna na região maleolar requerem repouso e transfusão de sangue em acréscimo ao tratamento antisséptico e curativos. A cirurgia plástica pode ser benéfica no paciente com úlceras maiores que não se recuperam com o tratamento convencional. Infecção O risco de infecção está evidentemente aumentado nos pacientes com β-talassemia/Hb E, especialmente nos pacientes esplenectomizados, constituindo a principal causa de morte (ver Capítulos 4 e 8). Há uma suscetibilidade aumentada às infecções virais, bacterianas e fúngicas [Aswapokee 1988a,b], variando de infecções menores como infecção do trato aéreo superior e diarréia até pneumonia e septicemia. Nos pacientes esplenectomizados, a septicemia pode ser muito aguda e fulminante, progredindo rapidamente para a morte. As bactérias Gram negativas são causa freqüente de septicemia, enquanto que o organismo Pythium insidiosum causa uma infecção micótica que leva à oclusão arterial e gangrena das pernas nos países do leste [Wanachiwanawin 1993]. Recomenda-se penicilina profilática nos pacientes esplenectomizados. Quando os pacientes esplenectomizados desenvolvem febre, deve-se suspeitar de sepsia pósesplenectomia, devendo ser imediatamente administradas, por via parenteral, doses elevadas de antibióticos de amplo espectro. Coração Freqüentemente é encontrada pericardite aguda benigna, principalmente em pacientes esplenectomizados. Em muitos casos ela acompanha uma infecção do trato aéreo superior. É detectado atrito pericárdico após queixa de dor no peito ou durante um exame físico rotineiro. Esse atrito pode durar de poucos dias a poucas semanas. Na maioria dos casos, essa é uma condição transitória e benigna que não requer tratamento, mas em uns poucos casos segue-se efusão pericárdica não tratável, causando tamponamento cardíaco e insuficiência. O quadro pode ser temporariamente aliviado por meio de
aspiração; é comum, entretanto, a recorrência da efusão pericárdica. A administração oral de prednisona provoca dramática redução da efusão. Em alguns poucos casos desenvolve-se pericardite crônica constritiva, necessitando de intervenção cirúrgica. Os clínicos devem estar cientes dessa condição ao encontrar pacientes talassêmicos com insuficiência cardíaca não tratável. O exame histológico do pericárdio revela pericardite não específica. A infecção viral tem sido sugerida como uma possível causa dessa pericardite, mas isso ainda necessita de mais pesquisas. Hipoxemia Muitos pacientes com β-talassemia β/Hb E esplenectomizados desenvolvem hipoxemia, demonstrada pela baixa pressão arterial parcial do oxigênio [Wasi 1982]. Necrópsias realizadas em um grande número de pacientes talassêmicos por Sonakul e col., revelaram oclusão bastante acentuada das artérias pulmonares [1988]. A distribuição das lesões oclusivas indicava embolia. A causa da tromboembolia na talassemia parece ser bastante complexa, envolvendo plaquetas, uma superfície reativa do glóbulo vermelho talassêmico, fatores da coagulação e o endotélio. A contagem de plaquetas nos pacientes talassêmicos esplenectomizados é o dobro da dos não esplenectomizados; na ausência do baço, são observadas plaquetas jovens e maiores. Foram detectados micro-agregados de plaquetas na circulação desses pacientes esplenectomizados. Extensos estudos da função plaquetária revelaram diversas populações de plaquetas hipo e hiperfuncionantes. Na maioria dos casos, a administração de aspirina como inibidor da agregação plaquetária reduz o grau de hipoxemia [Fucharoen 1981]. Recentes progressos da terapia O transplante de medula óssea ou de células tronco é em geral bem sucedido nos casos de Classe I (ver Capítulo 9) e deve ser levado em consideração se estiver disponível um doador apropriado. Foi constatado que a administração de hidroxiuréia eleva os níveis de hemoglobina, numa extensão variável entre leve e moderada, por meio da estimulação da Hb F [[Fucharoen 1996]. Está em andamento uma pesquisa buscando melhores agentes para reforçar a produção de Hb F (ver Capítulo 13).
13: Abordagens Alternativas para o Tratamento da Talassemia No momento não existe tratamento definitivo para qualquer dos graves distúbios da hemoglobina, além do transplante de medula óssea. Numa tentativa de identificar novas terapias alternativas, diversas abordagens têm sido exploradas. Modulação da hemoglobina fetal Como está claro que a produção de altos níveis de hemoglobina fetal pode beneficiar os pacientes com beta-talassemia e anemia falciforme, diversos esforços têm procurado meios de estimular a produção de hemoglobina fetal. Agentes citotóxicos Com base na observação de que a síntese da hemoglobina fetal é reativada durante a recuperação da supressão da medula óssea após o uso de drogas citotóxicas, admite-se que agentes citotóxicos que alteram o padrão da eritropoiese poderiam favorecer a expressão dos genes γ-globina. Durante os últimos quinze anos foram identificados diversos compostos, inclusive o agente de desmetilação 5-azacitidina, a citosina arabinosídea e a hidroxiuréia. Esses agentes aumentam o número de células F e a quantidade total de hemoglobina fetal. Entretanto, a toxicidade da 5-azacitidina e da citosida arabinosídea têm limitado seu uso a longo prazo, enquanto que a hidroxiuréia apresenta benefícios limitados na talassemia intermédia e nenhum na talassemia major. Outros agentes A eritropoietina aumenta o nível de hemoglobina em alguns pacientes com talassemia intermédia, mas seu efeito não é suficiente para ser útil na talassemia major [[Olivieri 1996]. Derivados do ácido butírico Os derivados do ácido butírico agem elevando os níveis de hemoglobina fetal em alguns pacientes. Seus aceitáveis perfis de toxicidade se somam à sua promessa como agentes terapêuticos. Diversos ensaios preliminares com compostos de butirato por via endovenosa e oral mostraram aumento dos níveis de hemoglobina fetal e total em pacientes com talassemia intermédia e em alguns pacientes com talassemia major. O composto mais eficaz até o momento é de longe o
butirato de arginina, que tem a desvantagem de requerer infusão endovenosa. Não estão plenamente compreendidos os mecanismos pelos quais os butiratos estimulam a produção de gama-globina. Foi demonstrado que eles modificam a acetilação da histona e/ou interagem com seqüências silenciadoras no promotor de genes gama. Atualmente não está claro porque alguns pacientes respondem ao tratamento com butirato e outros não. Terapia de combinação Embora os resultados globais relacionados com a indução farmacológica da hemoglobina fetal em pacientes talassêmicos dependentes de transfusão seja desapontador, há expectativa de que alguns desses agentes, se usados em combinação ou em esquemas adequados, possam potencializar seu efeito. Essas combinações podem assumir interesse terapêutico para subgrupos particulares de pacientes, p.ex. pacientes com talassemia intermédia ou com hemoglobina E / β-talassemia. Devem ser planejados outros ensaios clínicos visando a encontrar combinações medicamentosas favoráveis. Expectativas da terapia genética A correção definitiva dos defeitos genéticos da hemoglobina, como a talassemia, é uma terapia genética somática que requer a transferência de genes para as células tronco. Durante os últimos 10 anos ocorreu progresso no desenvolvimento dos métodos vetores e de transdução. Os vetores mais promissores atualmente parecem ser os retrovírus, mas ainda são encontrados problemas para a obtenção de expressão a longo prazo dos genes introduzidos nas células tronco hematopoiéticas. Além disso, ainda precisam ser definidas as seqüências necessárias para uma expressão estável e de alto nível dos genes inseridos. Melhores resultados têm sido obtidos com o uso de construções que incluem a Locus Control Region (LCR), mas ainda precisam ser superadas muitas dificuldades. O número de células tronco pluripotentes na medula óssea é limitado, e para uma transfecção bem sucedida elas devem estar em ciclo. Diversas abordagens estão sendo atualmente exploradas para melhorar a seleção e expansão das células transferíveis.
Mais recentemente, a recombinação homóloga direcionada para um local tem sido considerada uma abordagem alternativa para correção do gene beta defeituoso, pela inserção de seqüências normais do gene globina no locus da globina beta humana. O principal problema dessa abordagem é sua eficiência extremamente baixa. 14: Atendimento Geral à Saúde e Estilo de Vida na Talassemia Estilo de vida Se for obtido um equilíbrio entre a doença e seu tratamento, um indivíduo com talassemia major pode desfrutar um estilo de vida normal e conhecer um desenvolvimento físico e emocional regular da infância à idade adulta, inclusive a paternidade (maternidade). O médico atendente deve promover essa progressão, tentando reduzir tanto quanto possível a interferência da doença na vida pessoal e social do paciente. A partir de um ponto de vista prático, o médico deve: • Estabelecer um esquema de transfusões e prescrição de quelação que minimize qualquer impacto desnecessário sobre a atividade diária normal. • Estar ciente dos aspectos psicológicos particulares de atendimento à saúde nessa condição crônica (ver Capítulo 10). Confidência vs. reserva O paciente deve ter o direito de decidir se, quando e com quem falar sobre sua doença. Esse direito deve ser levado em consideração antes de outros pontos de vista (p.ex., dos pais, escola, hospital e organismos oficiais). O médico deve: • Assegurar confidência da identidade e dados de seu paciente em todas as circunstâncias • Ajudar os pais a estar logo cientes dos aspectos relacionados com a doença (p.ex., ensinando os pais a decidir com a criança, a partir dos 6 anos de idade, se e como comunicar sobre a talassemia à escola) • Auxiliar o paciente a estabelecer uma posição realista e equilibrada entre ser aberto ou reservado sobre a doença.
Escola Se os níveis de hemoglobina do paciente forem mantidos em torno dos valores recomendados neste livro, não deverá ser observada nenhuma interferência com o desempenho acadêmico. Se for permitido que o nível de hemoglobina caia muito, o paciente poderá ter dificuldades na escola. A variabilidade individual, entretanto, é muito grande. Embora os esquemas de transfusão e seguimento exijam um certo número de ausências, elas não devem ser tantas que prejudiquem o desempenho escolar. Em casa Os pacientes esplenectomizados devem ser alertados sobre o risco de ter animais em casa, devido à possibilidade de mordidas e seu crescente risco de septicemia (Capnocytophaga canimorsus). Os pacientes com hepatite adquirida ou outras infecções virais devem adotar medidas gerais (discutidas no Capítulo 8) para manter baixo o risco de transmissão à família. Trabalho Em geral, é importante para os pacientes assumir uma atitude positiva em relação à sua capacidade de trabalho. É incomum que pacientes bem tratados tenham dificuldade em realizar um trabalho em resultado direto de sua doença. A doença cardíaca deve estar muito avançada antes de provocar sintomas na talassemia. A osteoporose, as fraturas ósseas ou a dor nas costas podem causar dificuldades na realização de certas tarefas físicas, podendo limitar a mobilidade. Dependendo do país, a talassemia pode ser reconhecida como causa de um certo graus de incapacidade, com resultantes benefícios e facilidades especiais de emprego. Embora isso possa auxiliar a família e o paciente segundo um ponto de vista prático, deve ser tomado cuidado para que essas concessões não interfiram com uma atitude positiva de normalidade, auto-estima e capacidade de trabalho. Vida sexual e reprodutiva As diferênças na aparência (aspectos faciais, altura, cor da pele) podem afetar a auto-confiança e a participação na vida
social. Na adolescência, a ausência ou retardo do desenvolvimento sexual é vista como particularmente estigmatizante pelos pacientes. O tratamento favorável e oportuno do hipogonadismo limita esses efeitos. Ser portador de uma infecção viral acrescenta dificuldades ao comportamento sexual. Hoje em dia é possível às pessoas com talassemia major ter filhos espontaneamente ou por meio de indução da gravidez. A atitude dos pacientes com a paternidade/maternidade pode variar de sentimentos desnecessários de inadequação psicofísica a uma superestimativa dos riscos e dificuldades envolvidos. O médico deve auxiliar o(a) paciente e seu(sua) parceiro(a) a chegar a uma posição equilibrada. A decisão de induzir ou não a gravidez por meios médicos pode ser difícil, levando-se em conta as expectativas do(a) paciente e de seu(sua) parceiro(a), os riscos da gravidez, e o prognóstico do(a) paciente a longo prazo. É necessário um aconselhamento detalhado para explorar esses aspectos de maneira sensível e completa. Atendimento rotineiro à saúde Vacinações Não existem motivos na talassemia para que sejam omitidas ou retardadas as vacinações padronizadas recomendadas em cada respectivo país. Nos Capítulos 4 (esplenectomia) e 8 (infecções) são discutidas vacinações adicionais em pacientes talassêmicos. Atendimento odontológico Os talassêmicos transfundidos, super-transfundidos ou que iniciam as transfusões em um estágio avançado da doença, podem apresentar algumas más-formações dos ossos faciais, devido à expansão medular. Isso pode afetar o cresciento dos dentes e causar má oclusão. O atendimento ortodôntico pode ser bem sucedido ao melhorar a função mastigatória e/ou corrigir aparências dentais não estéticas. Viagens As viagens trazem um grau de risco, o qual aumenta se o paciente não puder retornar ao centro principal de tratamento ou receber tratamento especializado local caso ocorram complicações médicas durante a viagem. Se um paciente estiver
viajando para um país distante, é vital que seja obtido um seguro de viagem adequado, de modo que, se ocorrerem quaisquer complicações graves, o paciente possa voar imediatamente para casa, com provisão de qualquer assistência médica necessária. Se o paciente planejar uma excursão, o médico deverá, tanto quanto possível, informar sobre o hospital mais próximo com experiência em talassemia. Devem ser obtidas informações detalhadas sobre os riscos de infecção no país a ser visitado, devendo ser realizadas com antecedência vacinações e profilaxia adequadas. Sangue Idealmente, um paciente deve receber transfusão sempre no mesmo local. A viagem e o esquema de transfusão devem ser organizados de modo que o paciente não precise receber transfusão durante sua excursão, particularmente se nas áreas a serem visitadas os suprimentos de sangue trouxerem o risco de infecção por malária, HIV ou hepatite. Quelação As viagens e férias devem ser organizadas de modo a não interferir com a quelação regular. O médico não deve tolerar a atitude de “pobre coitado” (ver Capítulo 10). As solicitações para que consinta com ajustes do esquema de quelação para minimizar as interrupções, entretanto, também devem levar em conta aspectos práticos (p.ex., um adolescente planejando sua primeiras férias no campo com colegas) e de relacionamento (isto é, confidência ou comunicação livre sobre a doença). Esplenectomia O paciente esplenectomizado deve sempre viajar com antibióticos, a fim de assegurar imediata medicação em caso de febre, sepsia ou picadas de animais. O médico deve desencorajar viagens para onde seja significativo o risco de malária, pois essa doença pode ser mais grave em pessoas esplenectomizadas. Nutrição Geral A menos que apresentem complicações, os pacientes com talassemia não têm necessidades dietéticas muito diferentes
das de outras crianças e adolescentes. Em geral, uma dieta retritiva é fácil de ser prescrita mas difícil de ser mantida. Na talassemia, o paciente já tem um esquema pesado de tratamento e é contraprodutivo sobrecarregá-lo com mais restrições sem a possibilidade de um benefício evidente. Durante o crescimento é recomendada a ingestão normal de energia, com conteúdo normal de gordura e açucar. Durante a adolescência e na idade adulta, uma dieta pobre em carboidratos altamente refinados (açucar, refrigerantes, lanches) pode ser útil na prevenção ou retardo do aparecimento de tolerância diminuída à glicose ou diabetes. Não há nenhuma clara evidência de que uma dieta seja benéfica na prevenção ou controle de doença hepática, exceto nos estágios finais. Ferro A absorção aumentada de ferro no trato intestinal é característica da talassemia (ver Capítulos 5 e 12). A quantidade depende do nível de hemoglobina. A ingestão de um copo de chá preto às refeições reduz a absorção de ferro dos alimentos, particularmente na talassemia intermédia [DeAlarcon 1979]. Não existem evidências, entretanto, de que as dietas pobres em ferro sejam úteis na talassemia major. Somente devem ser evitados os alimentos ricos em ferro (como fígado e algumas “bebidas naturais” ou coquetéis de vitaminas naturais). Os pacientes com talassemia nunca devem receber suplementos de ferro. Muitos alimentos para crianças, cereais para o desjejum e preparados de multivitaminas contêm ferro adicionado, junto com outros suplementos vitamínicos. O paciente deve se habituar a ler cuidadosamente os rótulos. Cálcio Muitos fatores na talassemia provocam a depleção de cálcio. É recomendada uma dieta contendo quantidade adequada de cálcio (p.ex, leite, queijo, laticínios, repolho). Em alguns adultos com talassemia major, entretanto, pode ser constatada nefrocalcinose, e nesse caso não devem ser dados suplementos de cálcio, a menos que exista uma clara indicação. Se for constatada nefrolitíase, deve-se considerar uma dieta pobre em oxalato. A vitamina D também será necessária para estabilizar o equilíbrio do cálcio, particularmente se
ocorrer hipoparatireoidismo. Caso sejam usados suplementos, entretanto, será necessário uma monitoração cuidadosa a fim de se prevenir a toxicidade. Ácido fólico Os pacientes com talassemia que continuam sem transfusão ou estão em regimes de transfusão baixa, apresentam consumo aumentado de folato e podem desenvolver uma deficiência relativa de folato. Se isso ocorrer, podem ser dados suplementos (1 mg/dia). Os talassêmicos sob regimes de transfusão elevados raramente desenvolvem essa condição e em geral não necessitam de suplementos. Vitamina C A sobrecarga de ferro faz com que a vitamina C seja oxidada numa taxa mais elevada, provocando deficiência de vitamina C em alguns pacientes. A vitamina C pode aumentar o “ferro quelatável”, desse modo aumentando a eficácia da quelação com a desferrioxamina. Por outro lado, a ingestão de vitamina C aumenta o ferro lábil e, portanto, a toxicidade do ferro. A vitamina C também aumenta a absorção de ferro no intestino. Os suplementos, portanto, não devem ser tomados, exceto quando combinados com o tratamento com desferrioxamina (ver Capítulo 5). Alguns medicamentos, como a aspirina e as pastilhas para a garganta, assim como certos “alimentos naturais”, podem conter vitamina C, devendo ser evitados. É recomendada uma dieta rica em frutas frescas, inclusive frutas cítricas e vegetais. Vitamina E A necessidade de vitamina E é grande na talassemia. O médico deve recomendar uma ingestão regular de óleos vegetais como parte da dieta balaceada. A eficácia e a segurança da suplementação de vitamina E na talassemia major não estão, porém, formalmente determinadas, não sendo possível no momento fazer recomendações sobre seu uso. Zinco Pode ocorrer deficiência de zinco durante a quelação. A suplementação de zinco deve ser feita sob rigorosa monitoração.
Abuso de substâncias Álcool Deve ser desencorajado o consumo de álcool pelos pacientes talassêmicos. O álcool potencializa a lesão oxidativa do ferro e agrava o efeito de HBV e HCV sobre o tecido hepático. Se esses três fatores estiverem presentes, as possibilidades de desenvolvimento de cirrose e hepatocarcinoma serão significativamente aumentadas. O consumo excessivo de álcool também resulta em diminuição da formação de osso, sendo um fator de risco de osteoporose. As bebidas alcoólicas podem ter interações inesperadas com as medicações. Fumo O fumo de cigarros pode afetar diretamente a remodelação óssea, estando associado à osteoporose. Abuso de drogas Em muitos países, é comum o abuso de drogas por adolescentes e jovens adultos. Em um indivíduo com uma doença crônica, o abuso de drogas pode ser uma séria ameaça a uma condição já perigosa, por alterar o delicado equilíbrio dos fatores que afetam a saúde física e mental. Esta é a atitude mais realista, e o médico deve ajudar o paciente a manter essa posição. Há o perigo de que o abuso de drogas possa ser visto como uma maneira compensatória de ser popular com os colegas ou de ajustar seu comportamento. Sentimentos de dependência, diferença e anxiedade podem motivar as pessoas jovens com talassemia a procurar a “normalidade” por meio do abuso de drogas. Uma discussão franca sobre esses assuntos pode ajudar o paciente a estabelecer um critério sobre essas pressões. Atividades recreativas Atividade física Em geral, a atividade física deve ser sempre encorajada nos pacientes com uma doença crônica. Os pacientes com talassemia devem sempre ter uma qualidade de vida e experiências de vida tanto quanto possível iguais às das outras pessoas. Não existem motivos para que eles sejam impedidos de exercer atividades físicas até os limites de sua capacidade e
interesse, a menos que exista uma condição médica secundária bem definida. As condições em que o médico deve prestar uma atenção especial incluem: • Esplenectomia: quanto maior o baço, mais prudente deve ser o médico ao recomendar que sejam evitados esportes e atividades físicas com risco significativo de trauma abdominal. • Doença cardíaca: a atividade física moderada é benéfica, se conjugada à condição clínica e seu tratamento. • A osteoporose ou a dor nas costas em adultos podem limitar a atividade física. A osteoporose traz um maior risco de fraturas nos esportes de contato, os quais devem ser evitados se existir osteoporose. Direção de veículos Não é necessário nenhuma atenção especial. Em alguns países, a presença de diabetes mellitus requer checagens especiais e limitações. Apêndice: Organização e Programação de um Centro de Talassemia Importância de uma unidade dedicada à talassemia A menos que o número de pacientes seja mínimo, a organização de uma Unidade de Talassemia é útil em termos tanto de funcionalidade como de custos. Freqüentemente é contraproducente tentar controlar muitos pacientes com talassemia em grandes unidades multidisciplinares (Pediatria, Onco-hematologia, Centros de Transfusão) sem facilidades especializadas, pois a maioria dos recursos é utilizada para a atividade principal da unidade (paciente agudo, paciente oncológico, transfusão). Em uma unidade dedicada à talassemia, um médico especialmente treinado na doença supervisiona todos os aspectos do tratamento, encaminhando a especialistas quando necessário. Os mais comumente envolvidos são: • Enfermeira(s) especializada(s) • Cardiologista
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Endocrinologista Diabetologista Endocrinologista da reprodução Andrologista ou Ginecologista Psiquiatra/Psicólogo Assistente social Hepatologista Especialista em transplante
O Centro deve ser especiaizado mas não isolado. A equipe requer uma estrutura de carreira com possibilidades de promoção e contato regular com outros ramos da medicina, caso contrário os médicos e enfermeiras podem ter medo de perder sua experiência e as oportunidades de promoção, o resultado podendo ser que não queiram trabalhar no Centro. É essencial que a taxa de rotatividade na unidade seja mantida tão baixa quanto possível para que seja mantida continuidade no atendimento. A equipe deve incluir uma enfermeira encarregada que supervisione a equipe de enfermagem. A unidade de talassemia deve operar baseada em pacientes ambulatoriais; facilidades para transfusões à tarde, noite e durante a noite podem minimizar a inconveniência para a vida social do paciente. Atendimento pediátrico vs. adultos A escolha entre instalações para atendimento médico pediátrico ou adulto pode ser crucial. Os centros pediátricos, principalmente de talassemia major, acumulam mais experiência e estão mais próximos da prevenção da doença genética. Conforme as oportunidades de tratamento melhoram, mais pacientes atingem a idade adulta (Fig. A.1), com um crescente número de fatores de risco e complicações. Isso requer uma abordagem mais semelhante à da medicina interna de adultos. Figura A.1: Mudança de padrão da distribuição etária dos pacientes com talassemia MUDANÇA DE PADRÃO DA CURVA DE DISTRIBUIÇÃO ETÁRIA DE 253 PACIENTES ACOMPANHADOS EM TURIM No de pacientes Idade (anos)
Cada transição de paciente do atendimento pediátrico para o adulto deve ser acurada e suave: • transmissão do prontuário médico completo • discussão compartilhada dos problemas clínicos passados e atuais • idealmente, um clínico para atendimento contínuo, conforme o paciente progride da pediatria para a idade adulta Programação de tratamento A terapia de transfusão é idealmente realizada de acordo com o procedimento delineado no Capítulo 3. O dia de transfusão deve ser utilizado tão eficazmente quanto possível – idealmente fornecendo durante uma consulta todo o tratamento e os demais serviços médicos de que o paciente necessite. Isso freqüentemente inclui: • Exame físico • Exames clínicos e laboratoriais • Cada exame deve ser programado pelo médico atendente com base nas diretrizes e nas necessidades individuais • Discussão clínica do prontuário • Conversa individual para estabelecer metas, renovar informações clínicas e ouvir o paciente (ver Capítulo 10) • Idealmente, o paciente deve deixar o hospital após cada evento transfusional com sua documentação atualizada. Foram instalados diversos registros dos dados dos pacientes com talassemia. Alguns deles, como o programa italiano Computhal, foram computadorizados e são distribuídos após solicitação. Foi preparada por uma junta de centros italianos uma nova versão do Computhal, o Webthal,. Uma versão demo desse programa, em italiano, está disponível gratuitamente na Internet: http://www.thalassemia.most.it/ Está em andamento uma tradução desse programa para o inglês, a qual logo estará disponível no mesmo endereço da Internet.
Interação da unidade de talassemia com outras utilidades hospitalares A unidade deve estar intimamente conectada com: • Um banco de sangue • Um laboratório geral • Se disponível, uma unidade laboratorial especial que realize todos os procedimentos especiais usados no diagnóstico, seguimento e monitoração do tratamento da talassemia • Os recursos clínicos dos departamentos de pediatria, medicina interna e hematologia/oncologia, os quais são importantes na talassemia (ver especialistas). Figura A.2: Exemplo de interação organizacional da unidade de talassemia com outras facilidades hospitalares [Kattamis 1989] UNIDADE DE TALASSEMIA ______________________________________ ↓ ↓ ↓ CLÍNICA UNIDADE CLÍNICA AMBULATORIAL LABORATORIAL AMBULATORIAL (a) (b)
BANCO DE SANGUE HOSPITALAR
• Programação de transfusões • Diagnóstico • Controle → ← Saúde ← Psicológico Social
• Avaliação Clínica Laboratorial • Tratamento Transfusões Quelação Outro ↓ • Aconselhamento ↓ genético ↓ ↓ ↓ UNIDADES CLÍNICAS GERAIS (PEDIATRIA/MEDICINA INTERNA) E DE SUB-ESPECIALIDADES Investigações para: • Prevenção • Diagnóstico • Controle → (monitoração) ← • Pesquisa
No controle da talassemia, tem importância fundamental um banco de sangue que funcione bem. Suas funções não são apenas encontrar a enorme quantidade de sangue necessária para o tratamento da tallassemia, mas também assegurar o sangue ideal para o paciente, a fim de minimizar os riscos envolvidos na transfusão (p.ex., aloimunização e infecções). O médico de Centro de Talassemia deve manter a equipe do
banco de sangue sensibilizada para as necessidades dos pacientes cronicamente transfundidos. O médico supervisor deve programar reuniões regulares da equipe, com o objettivo de: • Manutenção da atualização da equipe sobre novos aspectos da talassemia e seu tratamento • Discussão e resolução dos aspectos organizacionais das atividades da unidade • Renovação da motivação da equipe para o trabalho no campo da talassemia, de modo a ser evitado o desgaste profissional A organização da Unidade de Talassemia dessa maneira, otimiza o tratamento ao mesmo tempo em que assegura o maior nível possível de conforto e conveniência aos talassêmicos e suas famílias. É essencial que os pacientes com talassemia sintam que a unidade é seu próprio lugar, e que a equipe médica tem como prioridade os melhores interesses dos pacientes. O controle a longo prazo implica na colaboração do paciente e sua família com a bem organizada equipe da unidade de talassemia, assegurando um tratamento contínuo e apropriado, e uma longa e produtiva vida para o paciente com talassemia. Checklist de Avaliação Clínica e Laboratorial Mensal CBC Cada 3 meses
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ferritina sérica química clínica: glicose urato uréia creatinina ferro TIBC fosfatase alcalina γ-GT ALT/GPT
AST/GOT LDH Cada 6 meses •
avaliação cardíaca: ecocradiograma ECG dimensões das câmaras cardíacas função sistólica função diastólica encurtamento fracionário
Anual •
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virologia: painel de hepatite C (anti-HCV, anti-HCV RIBA) painel de hepatite B (HbsAg, anti-HBs, anti-HBc IgG) anti-HIV 1+2 biópsia hepática: para avaliar a concentração hepática de ferro e a histologia avaliação da função endócrina: T4 & TSH livres hormônio da paratireóide FSH LH testosterona estradiol DHEA-S cortisol a.m. em jejum teste oral de tolerância à glicose idade e densidade ósseas zinco, cobre, selênio, vitamina C, vitamina E exame físico completo exame oftalmológico exame audiológico
Quando indicado monitoração com Holter 24 horas teste de estresse cardíaco (EST) anti-HBc IgM
anti-Hbe HbeAg anti-HDV HCV-RNA A lista acima fornece uma indicação dos exames recomendados e sua freqüências, mas o caso de cada paciente é único. Pode ser necessário fazer os exames com maior freqüência que a indicada aqui, podendo também ser necessários exames adicionais não relacionados aqui. Referências