POLE! POLE! OU COMO SUBIR LENTAMENTE O KILIMANJARO

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Pole! Pole! Ou como subir lentamente o Kilimanjaro ANDO HÁ TRÊS ANOS PARA SUBIR O MONTE KILIMANJARO. MAS AINDA BEM. A PARTE MAIS INTERESSANTE DE UMA VIAGEM É A SUA PREPARAÇÃO.

RICARDO PINTO Sub-diretor de informação Lusa Comentador de Política Nacional RTP Professor Universidade Fernando Pessoa

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“Pole! Pole!” Ando com esta expressão em swahili na minha cabeça há três anos. E sempre que me lembro dela, a minha alma aquece na razão inversa do frio que estarei a passar quando a pronunciar no uso para que a treinei.

HÁ TRÊS ANOS, NA VÉSPERA DE COMPLETAR 50 ANOS, COMECEI A PLANEAR A SUBIDA AO MONTE KILIMANJARO, A MONTANHA MAIS ALTA DE ÁFRICA. O nome da montanha devo-o ter ouvido pela primeira vez quando em criança o meu pai me educou com a literatura de Ernest Hemingway, num livro, de capa esbatida com o desenho de uma silhueta de pico rugoso e as palavras douradas: “As neves do Kilimanjaro”. As histórias à volta do Kilimanjaro, a imagem do pico Uhuru, a 5,895 metros, o desafio da sua escalada, tudo se foi infiltrando em mim, ao longo de décadas, como um desejo que se vai controlando subtilmente. Até que um dia dei por mim com a decisão tomada de finalmente subir a montanha e uma conta bancária que me permitia olhar para a despesa da viagem sem vertigens. Tinha quase 50 anos e achei que o dia de aniversário de meio século era uma bela data para atingir o topo mais elevado de África, pegar no telemóvel e registar fotograficamente o momento para memória futura.

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Sempre acreditei que a melhor parte de uma viagem é a sua preparação. Por isso, uma hora depois da minha irrevogável decisão, iniciei aquela que foi uma longa preparação da aventura que se tornou uma espécie de “santo graal” da minha vida de viajante. O primeiro passo foi recolher a informação essencial que me permitisse sobreviver à escalada. A tarefa de conhecer o Kilimanjaro deve ter demorado várias semanas a Hemingway, quando se documentou para o livro sobre a montanha, no verão de 1935, no regresso de um safari em África. Mas, no meu caso, em pleno século XXI, em poucos dias reuni todos os dados de que necessitava. A primeira recomendação dos textos de sobrevivência que consultei foi a expressão em swahili:

“Pole! Pole!”. Que, basicamente, quer dizer: “Mais devagar! Mais devagar!” Numa equipa com guias locais, que falam swahili, pareceu-me avisado decorar a palavra que lhes poderia gritar do sopé de uma subida íngreme, quando me sentisse a ficar atrasado em relação ao passo apressado deles. A palavra pronuncia-se “polei” e os livros dizem que a expressão é usada pelos guias, para avisar os escaladores mais apressados que não percebem a importância de uma subida lenta, para evitar o que os médicos chamam de “mal da montanha”,


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ou “doença das alturas” - uma condição associada aos efeitos de altitudes por exposição aguda à baixa pressão de oxigénio, que ocorre acima dos 2400 metros de altitude. Mas a verdade é que desde muito cedo me pareceu que esse não seria um cuidado para o meu guia, por muito cauteloso que ele fosse com a minha condição física. Não sei porquê, mas nunca me imaginei a correr, na frente de experimentados carregadores tanzanianos, sobre superfícies geladas em inclinações de 15%, com temperaturas negativas, a altitudes onde o oxigénio rareia, enquanto eles me gritavam “Pole! Pole!”… Carregadores. Ora aí está uma outra expressão que rapidamente me interessou. A ideia de transportar uma mochila de 15 quilos até ao topo da mais alta montanha africana, sempre me preocupou. A legislação da Tanzânia proíbe que alguém suba

o Kilimanjaro sem a presença de um guia credenciado. Parece-me bem. Mas também não me parecia nada mal que a exigência se estendesse aos carregadores de mochilas e tendas. Felizmente, na pesquisa que fiz na Internet, percebi que não faltam empresas que incluem, para além do obrigatório guia, carregadores experimentados e possantes, preparados para as intempéries e sem receio de subirem com dezenas de quilos de equipamento atrelados às costas. Aliás, para meu gáudio, percebi que a maior parte dessas agências inclui na equipa um cozinheiro, treinado para confecionar as refeições mais adequadas ao esforço das subidas. Um mito que rapidamente se desfez na minha cabeça foi a do trepador solitário, perdido na imensidão branca da montanha, a olhar o horizonte sem um único ser humano em redor. Por ano, tentam a subida ao Kilimanjaro cerca de 35 mil pessoas. Nem todas atingem o pico mais alto,

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mas ainda assim, em algumas passagens mais estreitas, a dificuldade não está no isolamento, mas nos verdadeiros engarrafamentos, com dezenas de “trekkers” em fila a aguardar o momento da travessia. Nem os elevados preços que as empresas de guias cobram parecem desmobilizar o interesse no Kilimanjaro. Uma escalada bem organizada pode custar entre 5 e 15 mil euros, sem contar com as viagens aéreas até ao aeroporto internacional que serve as cidades de Arusha e Moshi. Uma estatística que naturalmente me interessou foi a de número de mortes entre os que se atrevem a chegar ao pico Uhuru. Sossegou-me saber que apenas 7 a 10 não regressam com vida, anualmente, geralmente devido a edemas cerebrais, provocados pela altitude. Numa perspetiva mais otimista, os números sobre os que desistem apenas porque estão cansados revelam que o fracasso está associado às subidas pelos trajetos mais rápidos. O topo do Kilimanjaro pode ser alcançado a partir de seis pistas - três pelo lado sul (Machame, Umbwe e Marangu), duas por oeste (Shira e Lemosho) e uma por nordeste (Rongai). A minha opção foi para o trajeto Mashame - cinco dias a subir, com uma média de sete horas diárias de caminhada, e dois dias a descer. O truque para esta subida relativamente rápida é ir aclimatando o corpo a grandes altitudes, progressivamente, subindo diariamente acima do lugar onde se

vem dormir, para que haja habituação à ausência de oxigénio. Na troca de mensagens com o guia que me levará, percebi que a dificuldade maior será o Muro Barranco - uma falésia que assusta à primeira vista, obrigando os “trekkers” a usar as mãos em vários momentos, para escalar paredes de rocha escura. Mas a recompensa é deliciosa, com as vistas a partir da placa Shira, ou a paisagem da Torre de Lava, sobre a estepe africana. O truque é ir bem equipado para estas mudanças de clima, ao longo de uma subida que começa com calor africano e termina com frio himalaico. A lista recomendada é interminável: 5 pares de roupa interior, 4 camisolas leves, 2 camisolas grossas, 2 pares de calças, casaco impermeável, um par de calças de montanha, um boné, uma lâmpada, óculos de sol, luvas leves, luvas quentes, “trekking polés”, botas de neve, sandálias, 5 pares de meias, um par de meias grossas, um saco de viagem, uma mochila de 90 litros, saco-cama para todas as estações, botijas de águas, creme para bolhas, pastilhas de purificação de águas, repelente de insetos, baterias, barras energéticas, etc, etc… Há três anos que me deleito com a preparação da viagem, confesso. Há três anos que adio a viagem (porque tive uma gripe, porque fui afligido por uma tendinite no calcanhar de Aquiles), mas juro que não é por falta de vontade. Nem de coragem (sobretudo depois de saber que um senhor de 85 anos alcançou o pico Uhuru, em 2014).

SE TUDO CORRER BEM, 2019 SERÁ O MEU ANO KILIMANJARO. MAS, CLARO, “POLE! POLE!” • TURISMO’19 _ ANUÁRIO DE TENDÊNCIAS


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