Revista EITA! 6

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Trabalhar nas fronteiras: este foi um dos motes desta sexta edição da Eita!. Uma história em quadrinhos que é quase uma crítica literária afetiva; um storyboard que mais parece história em quadrinhos; posts de blog que se transformam em crônicas da vida urbana; escritores que partem das artes visuais para compor textos poéticos – estes são exemplos do que pode ser encontrado nesta edição. Se o híbrido e o experimental possuem cadeira cativa neste número, o olhar atento às tendências da cultura contemporânea – outra preocupação editorial da Eita! – se faz presente nas reflexões de Thiago Correa acerca da criação literária em suportes digitais. Às vezes, contudo, o novo é a releitura da tradição: o papel de formas de comunicação, que poderíamos chamar de “artesanais”, no mundo contemporâneo, é o tema abordado por Fátima Finizola e Luciano Pontes. Os monstros e a relação entre arte e cidades, temas abordados em edições anteriores, retornam com outras perspectivas nos textos e trabalhos de Jarbas, Rodrigo Almeida, Fátima Finizola e Márcio Padrão, que pensam seus temas a partir do cartum, do cinema, do design e... dos zumbis. Publicada e produzida pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, a Eita! é resultado de um trabalho colaborativo dos diversos equipamentos e gerências que compõem a Secretaria de Cultura do Recife e a Fundação de Cultura. EITA!: Elo! Ímã! Tensão! Ato! Boa leitura, Os editores Recife, 2011, Eita!, ano 4, número 6.


Copyright © 2011 Fundação de Cultura Cidade Do Recife Prefeito do Recife João da Costa Vice-prefeito do Recife Milton Coelho Secretária de Comunicação Eric Carrazzoni Secretário de Cultura Renato L Presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife Luciana Félix Diretor Administrativo-Financeiro Argemiro de Souza Leão Filho Diretora de Desenvolvimento e Descentralização Cultural Luciana Veras Diretor de Gestão e Equipamentos Culturais Fábio Cavalcante Gerente Operacional de Literatura e Editoração Heloísa Arcoverde de Morais Coordenador Editorial Cristhiano Aguiar Gerente Operacional de Artes Visuais e Design Renata Gamelo

Colaboradores/Texto Cristhiano Aguiar Daniela Castro Fátima Finizola Frederico Antonio Cordeiro Feitoza Gustavo Fontes Leo Ferrario Luciano Pontes Marcia Maia Márcio Padrão Rodrigo Almeida Shiko Thiago Corrêa Wellington de Melo Ilustrações Isabella Alves Isadora Melo HQ German Ra Raul Souza

Centro de Design do Recife Adeildo Leite Jornalista Responsável Carolina Leão

Cartum Jarbas

Revisão Norma Baracho

Storyboard Shiko

Projeto Gráfico e Capa Isabella Alves Isadora Melo

Apoio

Conselho Editorial Adeildo Leite Arnaldo Siqueira Carolina Leão Célio Pontes Cristhiano Aguiar Débora Nascimento Eva Duarte Heloísa Arcoverde de Morais Márcio Almeida Mateus Sá Raul Kawamura Renata Gamelo

Fotografia Clara Simas Eduardo Eckenfels Rodrigo Braga Realização

ISSN 1983-1846 Direitos exclusivos desta edição reservados pela Fundação de Cultura Cidade do Recife

EITA! Online http://issuu.com/revistaeita revistaeita.revistaeita@gmail.com

Cais do Apolo, 925, 15o andar 50030-230 gole@recife.pe.gov.br


ELO

TENSÃO

27_ 08_ 31_

34_ Clara Simas e Leo Ferrario

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ATO

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ÍMA

38_ Thiago Corrêa

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por Fátima Finizola

Desde pequena acompanhava meu pai às andanças ao centro da cidade do Recife, pela Rua Nova, Imperatriz, para ver as últimas novidades nas Casas Sloper, conferir as ofertas de eletrodomésticos na Viana Leal ou quem sabe dar uma esticada à Rua da Praia, à Rua das Calçadas, garimpar preciosidades nas lojas de atacado e miudezas das redondezas do Mercado de São José. Eu não imaginaria que mais tarde eu seria arrebatada por aquelas expressões informais de design, nascidas, não na academia, mas ali naquela efervescência das ruas, das multidões, quase sempre provenientes da cultura popular. Após a instituição da atividade profissional do Desenho Industrial — ou Design — no Brasil, por volta da década de 1960, muitos artífices ficaram à margem do mercado profissional ou continuaram atuando de maneira informal até os dias de hoje. Desde então, há um constante diálogo no mercado entre a produção do Design Formal, proveniente daqueles profissionais que geralmente passaram por treinamento especializado ou formação acadêmica na área e a produção do que denominamos Design Vernacular, ou seja, aquele design espontâneo produzido à margem do Design mainstream, fruto da inventividade e criatividade popular, geralmente relacionado a cultura e hábitos de alguma localidade específica. Nesta categoria podemos incluir as invenções de origem popular como objetos utilitários, embalagens e expositores do mercado ambulante, moradias, bem como artefatos da comunicação popular – faixas, placas, murais, entre outros. A tipografia vernacular particularmente nos chama atenção por estampar na paisagem urbana as vozes reprimidas de uma periferia que sutilmente avança nos espaços públicos

do centro, podendo nos revelar hábitos e costumes de um povo, bem como elementos de sua cultura visual. Geralmente desenvolvida por cidadãos comuns, em sua maioria por meio de processos artesanais, a tipografia vernacular urbana caracteriza-se como um instrumento de comunicação alternativo que ocupa de forma aleatória os espaços públicos, disputando-os com a publicidade, propaganda e placas de sinalização regulamentadas pelos órgãos oficiais. É curioso observar que a motivação maior que orienta a elaboração destes artefatos quase sempre é determinada pela urgência em resolver um problema, ou de se comunicar com o outro, vender um produto ou ideia. O planejamento que norteia sua criação é um planejamento intuitivo, geralmente mental, consolidado pela prática. As soluções são as mais inusitadas possíveis, muitas valorizam materiais locais, comuns à região onde seu autor está inserido, ou reaproveitam, reciclam sobras e materiais descartados.

A originalidade e diversidade de soluções gráficas empregadas para articulação do texto e imagem nas mensagens, através da combinação entre tipografias, ilustrações e grafismos peculiares, podem se tornar espelhos do imaginário popular. Neste sentido, podemos identificar certos padrões visuais re-

correntes, mesmo em diferentes países e culturas. Elaborados a partir de processos manuais, os letreiros geralmente apresentam certo grau de irregularidade e imprecisão e deixam transparecer a sua ferramenta de trabalho. Há uma grande mistura de vários estilos de letras em um mesmo artefato, e mesmo identificando dois ou três padrões tipográficos nestas peças, estes apresentam variações de estilo, como no peso, largura ou inclinação. Do ponto de vista gráfico, observam-se três caminhos principais utilizados como base para a sua construção: alguns partem de referências a outras tipografias já existentes, outros utilizam referências caligráficas e remetem à própria grafia do pintor letrista e ainda há aqueles que são planejados a partir do desenho. Na disputa pela visibilidade no espaço publicitário urbano, o pintor letrista também usa e abusa de elementos gráficos para organizar, destacar ou decorar o texto, tais como molduras, fios, barras, entre outros ornamentos. O uso de ilustrações sintéticas como ícones e pictogramas e em alguns casos ilustrações realistas, abstratas ou logotipos, é outro recurso utilizado frequentemente para atrair a atenção do público e reforçar as informações presentes no texto. Abridores de Letras Como uma manifestação do design informal, surgida antes mesmo da oficialização da profissão no Brasil e no mundo, os registros dos primeiros artefatos de comunicação urbana elaborados de forma manual remontam a períodos históricos distantes difíceis de precisar.

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No Brasil, algumas décadas atrás, em paralelo às oficinas tipográficas que trabalhavam com impressos comerciais, registra-se a existência de ‘Oficinas de Pintura’, que confeccionavam peças de maior porte como faixas e placas. Hoje, praticamente extintas, as tradicionais Oficinas de Pintura cedem espaço para as empresas de sinalização, ou para as pequenas oficinas de Placas e Faixas, bem como para o trabalho autônomo dos pintores letristas. Quem observa atentamente os letreiros dispostos em muros, faixas e placas, pode se surpreender com a riqueza de cores, desenhos e tipografias impressas pelo estilo pessoal de cada pintor. A partir de ferramentas de trabalho de baixa tecnologia — um pincel geralmente chato, tinta acrílica e pigmentos, lápis carpinteiro, cordão, vasilhames de garrafa PET, entre outros — o que mais impressiona é a destreza do pintor, que preenche com letras e imagens os espaços em branco como quem pinta uma tela, por vezes desprovida de um projeto prévio ou esboço, fruto de uma inspiração de momento aliada a anos de prática. Entre os letristas populares – ou abridores de letras — notamos, entretanto, que há certa hierarquia: existem aqueles considerados profissionais que possuem um elevado domínio técnico do ofício de pintar letras, e que fazem dessa prática sua fonte de renda; e por outro lado, há também os letristas ocasionais, que pintam letreiros no improviso com o objetivo de suprir uma necessidade comunicacional emergente, de forma rápida e objetiva. As letras, por vezes, são projetadas na hora e seu estilo se adequa à proposta de cada trabalho. Grande parte destes profissionais ainda não se encontra familiarizada com o uso do computador, portanto sua

influência se faz de maneira indireta, através de serviços de terceiros, quando necessitam usar como referência algum layout gerado pelo cliente de forma digital. Do analógico ao digital_ transposições e releituras Cada vez mais os letreiros pintados à mão disputam espaço com placas confeccionadas em vinil adesivo ou por meio de impressões digitais e aos poucos perdem sua originalidade. A criação de novas leis que visam a redução da poluição visual em algumas capitais do país, bem como a evolução de novas tecnologias de impressão digital, talvez coloque em risco a existência por mais alguns anos do ofício do letrista popular. Por outro lado, a era digital também permitiu uma maior aproximação entre o design vernacular e o design oficial, trazendo consigo uma tendência para o desenvolvimento de projetos baseados em transposições estéticas do meio analógico para o digital, através de apropriações das linguagens e códigos da periferia. Neste sentido, as linguagens espontâneas encontradas nas ruas são utilizadas e reutilizadas, reconstruídas por métodos criativos digitais, passando por um processo de ressignificação e assim incorporadas ao design formal. É o que denominamos ‘circularidade cultural’, fenômeno que favorece essa rica troca de experiências permitindo que por vezes o erudito se torne popular, e que o popular seja assimilado pela linguagem oficial, se tornando também erudito. Esse movimento de apropriação e tradução dos elementos da cultura popular para a cultura mainstream, talvez na busca do fortalecimento de uma identidade nacional, começou a ganhar mais visibilidade ainda no pós-modernismo e

nos faz recordar o Movimento Tropicalista e particularmente o Armorial em Pernambuco. Potencializada mais adiante pelos meios digitais, esta tendência é também percebida na produção tipográfica contemporânea no Brasil. Ao observarmos o acervo de fontes tipográficas produzidas pelas fonthouses pernambucanas Tipos do Acaso e Crimes Tipográficos (projeto colaborativo), notamos que muitas delas se inspiram em elementos da cultura nordestina pela irregularidade do traçado das letras estampadas nas placas populares. No âmbito nacional, também encontramos inúmeros projetos tipográficos que contêm referências simbólicas à cultura local, como a fonte Seu Juca, de Priscila Farias, inspirada nas placas populares pintadas pelo letrista pernambucano “Seu Juca”, e a fonte Brasilero, de Crystian Cruz, provavelmente a fonte digital de inspiração popular mais utilizada pelos designers brasileiros. Hoje esse movimento extrapola a produção tipográfica brasileira e se consolida também em outras áreas do design, bem como na arquitetura, música, artes visuais, teatro e dança, tornando-se uma referência importante para a indústria criativa que reprocessa essas influências na busca de um certo conceito de ‘brasilidade’, ou de uma ‘raiz’ cultural mais genuína. Nesse sentido, resgatar a tipografia vernacular urbana torna-se não só uma importante alternativa para revalorizar o ofício do pintor letrista que se encontra marginalizado no mercado, como uma forma de contribuir para a construção da memória gráfica brasileira, sem discriminações ou preconceitos, de forma democrática onde as manifestações culturais de origens diversas caminham lado a lado, conscientes de seu valor.

Fátima Finizola é designer gráfica e doutoranda em Design pela UFPE. _ff@corisco.net

Mais informações: Tipografia Vernacular Urbana: uma análise dos letreiramentos populares _Fátima Finizola, Coleção Pensando o Design, Editora Blucher, 112p. Tipografia Popular: potências do ilegível na experiência do cotidiano _Bruno Guimarães Martins, Editora Anablume, 142p.

Download de fontes digitais populares: Projeto Colaborativo Crimes Tipográficos _www.crimestipograficos.com Tipografia Artesanal Urbana _www.viniguimaraes.com

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por Shiko


Curta-metragem, Brasil, 2009, cor, 10min. Direção_Arthur Lins e Ely Marques

Shiko é artista plástico, desenvolve trabalhos em storyboard, animação e direção para o cinema. _www.flickr.com/photos/derbyblue/ _ chicodeleite@gmail.com

Curta-metragem de animação em construção, baseado em adaptação para quadrinhos do miniconto “A Vida Profissional”, de Eduardo Galeano. Roteiro e direção_Shiko Animação_Daniel Monguilhot Produção_Carlos Dowling e Gigabrow


por Rodrigo Almeida “Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi” Italo Calvino, Cidades invisíveis

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Antes de resgatar o emblemático filme Em construção (Espanha, 2001), de José Luís Guerín, não seria deselegante esboçar uma nota sobre a amplitude de produções audiovisuais que vêm se dedicando nos últimos anos a discutir e meditar sobre os rumos do desenvolvimento urbano das grandes cidades. Só na recente produção recifense temos os curtas-metragens Eiffel (2008), de Luiz Joaquim, Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho e Retinianas (2010), de Luís Henrique Leal. Entre os longas-metragens, não poderíamos esquecer de Um lugar ao sol (2009), cuja postura ideológica é reafirmada tanto pelo registro da verticalização e suas sombras, como pelo rompimento da comum complacência entre o documentarista (Gabriel Mascaro) e seus entrevistados (moradores de coberturas). Isso para não falar do projeto coletivo e colaborativo Torres gêmeas, ainda em fase de montagem, que unirá diferentes olhares sobre as transfigurações da cidade a partir dos simbólicos e destoantes edifícios da Moura Dubeux. É notável como a maioria parte de uma mesma

inquietação diante da passividade governamental e civil no processo de reordenamento espacial da sociedade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras, um reordenamento que reafirma a promíscua relação encrática de poder entre essas empresas, a especulação imobiliária sem controle e os políticos — cujo gozo ficou claro no resultado das eleições no final de 2010, quando soubemos nome por nome quem pagou a campanha de quem. As construtoras foram, sem dúvida, as grandes vencedoras. No entanto, nem todas as reflexões conseguem atingir graus de perspicácia ou traduzir em imagens e sons seus intuitos ideológicos sem ter de sacrificar uma intenção estética, algumas iniciativas, inclusive, tornam a inquietação primeira — justa e totalmente justa – num esvaziamento do vigor imagético, tangendo o propósito pelo caminho da superficialidade e dos estereótipos fáceis, falsificando uma teoria até beirar o floreio. Não é o caso de todos citados acima. De qualquer forma, se existem

as discussões, que por mais bem intencionadas que sejam não necessariamente valem o filme que resultam, o diretor espanhol segue o caminho totalmente oposto, o de partir da inquietação já pontuada, de uma sociedade de consumo que não consegue lidar com suas colheitas e tragédias, para mergulhar num ensaio que traduz em igual intensidade também uma inquietação e invenção estéticas. O ponto de partida de Guerín considera como superadas as dicotomias entre forma e conteúdo, estética e política, não se rendendo à ‘estetização da política’, nem à ‘politização da estética’. Caminha com Jacques Rancière: na comunhão ou adultério entre ambos os campos, este filósofo francês entende que “a autonomia que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base”. No caso, um baú de imagens. Em construção foi produzido ao longo de três anos durante todas as etapas — das pré-pré às pós-pós — da construção de um moderno complexo residencial num bairro tradicional de Barcelona, o bairro chino, espaço urbano que congrega imigrantes de distintos lugares do mundo. O cineasta desenvolveu um estrito relacionamento entre a equipe, composta por estudantes da Universidade de Pompeu Fabra, e os moradores cujas casas seriam demolidas e passantes, vizinhos, pedreiros, engenheiros, arquitetos, senhoras, crianças, clientes. Justamente esse tempo de envolvimento


do espanhol com os fluxos urbanos, o acúmulo de carros em vias sufocantes, a ascendência e padronização do concreto, a ausência de políticas públicas básicas, as demandas só ajustadas após tragédias, faz do filme um precioso registro de duração. Segue de mãos dadas com o cineasta Jia Zhang-Ke, em seu Still life (China, 2006) que se enfileira na não tão longa fila das produções que só poderiam ser realizadas no ‘enquanto’, nem antes, nem depois, um caso exemplar de timing cinematográfico. O filme se apega a um punhado de histórias enquanto uma cidade é destruída para ser inundada após a construção de uma grande represa. Por sua vez, o maior representante dessa tendência é Alemanha, Ano Zero (1948): se todas as obras carregam o tempo histórico do momento em que foram feitos, o filme de Roberto Rossellini — ao perpetuar a Berlim arruinada do pós-guerra e o espírito desamparado de uma época — talvez carregue um pouquinho mais. A construção, destruição e reconstrução estipulam um eterno retorno. Italo Calvino nos conta sobre esse movimento no segundo e último parágrafo sobre Maurília: Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes parecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaramse deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado+ que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília.

No caso de Guerín, cineasta extremamente consciente do cinema que faz, durante essa renovação da cidade, abaixo dos alicerces das antigas moradias e das fundações que sustentariam o novo e vistoso conjunto de prédios, os pedreiros se depararam com um antigo cemitério romano com vários esqueletos em bom estado de conservação: esse acaso aberto à vista pública da variada comunidade contemporânea despertou inúmeros comentários perspicazmente registrados pelo diretor. O passado se confunde com fantasias particulares do presente, revelando um hiato histórico no contemporâneo e desabrochando a óbvia — e pujante — sobreposição de tempos e cidades. Os ecos de mundo, da verticalidade urbana, das ruas vazias, da insegurança constante, dos interesses burgueses são contrastados com um passado enigmático. Assim sendo, a inquietação não abandona a linguagem para se apegar a uma possível crítica que despreza o mistério, menos ainda trata o seu próprio discurso, claro e muito claro, com uma sacada estupenda: Guerín recebeu por um tempo o estigma de ‘cineasta social’ por conta dessa produção, rótulo que sempre procurou negar, especialmente pela autocomplacência dos espectadores diante dos realizadores que erguem suas causas antes de suas armas. Chegou a usar o seu filme posterior, Na cidade de Sylvia (2006) como emblema ou manifesto de contestação ao rótulo equivocado: Em construção tem lá sua crítica, mas os fotogramas se agarram a tudo que é mais cinematográfico a cada instante, do plano, da duração dos planos e do corte para fincar

um mosaico de personagens e impactos, um mosaico de relações entre os indivíduos e as transformações espaciais da cidade em que vivem. Qualquer viajante que parte para longe e retorna ao seu velho recanto, uns mais que outros, costuma se comover com as mudanças, tomados por nostalgia ou mesmo pela insegurança – ou terror – de desconhecer o que lhe é íntimo. Isso não é novo. Inúmeras cidades, não só a Maurília de Calvino como Recife, Roma e Paris, foram reorganizadas no processo de modernização que contraria qualquer estética. Não são poucos os filmes em que o italiano Pier Paolo Pasolini resgata antigas ruínas pró-ximas a recentes construções, contrapondo o antigo e moder-no, para assinalar uma complementaridade e crueldade monumental do encontro. Victor Hugo em seu imponente Os miseráveis conta ainda no século XIX o pequeno drama do indivíduo: depois que se ausentou, temse transformado a antiga cidade, tem surgido uma cidade nova que até certo ponto lhe é desconhecida. A sua predileção por Paris não necessita ser comprovada; Paris é a cidade natal de seu espírito. Em resultado das demolições e reconstruções, a Paris da sua mocidade, a Paris que religiosamente conservou na memória, é hoje uma Paris de outro tempo. Permita-selhe contudo falar dela como se ainda existisse. É possível que ao ponto a que o autor vai conduzir os leitores, dizendo-lhes: ‘na rua tal havia uma casa assim e assim’ não haja hoje nem casa nem rua.

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Mesmo que possa ser desmerecido pela naturalização no espectador, uma das singularidades de Em construção reside nos cortes dentro de uma mesma cena, recurso inventado lá nos primórdios por Edwin S. Porter, que não apenas tende a reinventar completamente os planos como brinca com a impressão bidimensional do espaço. Não se trata de uma busca em vão, mas um direcionamento que discute essas reorganizações num nível que diferencia a história da memória das cidades: podemos ler sobre motivos e mudanças, mas não teremos a ligação afetiva dos olhares e dos relatos. Guerín reorganiza o espaço com a câmera em poucos segundos, assim como esse mesmo espaço vem sendo reorganizado e modificado fisicamente e mentalmente em poucos meses a ponto de pensarmos que o problema não é a reorganização do espaço em si — as cidades sempre foram construídas em cima de cidades ao longo de toda trajetória humana — mas — tanto em filmes como em projetos arquitetônicos — a criatividade e os interesses de quem rege. E no registro desse destino apático, de uma urbanização que desurbaniza e desumaniza a cidade, como diria Nestor Gárcia Canclini, o diretor espanhol usa de um cinema de invenção, de uma imaginação liberta no controle do dispositivo, de uma ausência de roteiro prévio, de uma aposta na sensibilidade e na partilha dos estímulos, que evoca um sonho utópico e discreto de cidades montadas e projetadas de maneiras tão inventivas como o são alguns filmes ou livros. Rodrigo Almeida é formado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (2007.2) e Mestre em Comunicação/Estética e Cultura Midiática (2010.1), ambas pela UFPE. _ velhoshabitos.blogspot.com _ allmeidaf@gmail.com


por Jarbas


Jarbas Domingo Ê formado em Design pela UFPE. Atua como ilustrador, cartunista e quadrinista. Integra a editoria de arte do Diario de Pernambuco. _jarbas.domingos@associadospe.com.br



por Luciano Pontes

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A palavra sempre foi usada como fundamento para muitas coisas: visões míticas, bíblicas, surreais, fabulosas, críticas, poéticas. Ela vestiu nossos heróis, personagens e o nosso imaginário e repetimos até hoje a herança do que nos contaram. É cíclico, quase um estado ouroboros – a antiga imagem de uma serpente mordendo o próprio rabo. E é da herança das histórias, inventadas ou verdadeiras, que fazemos valer o velho ditado, de que somos feitos de palavras: “homens de palavras”. Quer seja na tradição oral, na literatura, no teatro, no cinema, na televisão, nas artes em geral. A palavra faz e refaz o percurso poético da existência e como a vida é feita também de histórias, pois “uma vida humana é uma ficção que o homem inventa à medida que caminha”, fala Jacqueline Held, acredito que fomos feitos, humanos expressivos que somos, para dar conta do que foi criado no mundo. Para que não esqueçamos que a vida pulsa no seu próprio tempo e, por isso, passamos a inventar muitas maneiras de ver e narrar o mundo e a criação, na intenção de sair da individuação e religar nossa coletividade. No entanto a diferença está no que é dito e como é dito; e isso é quase um clichê. Pensando nas diferenças do “que é dito” e no “como é dito” entre um narrador (tradicional ou contemporâneo) e por um ator narrador, podemos dizer que a palavra dita por um narrador de histórias não são as palavras cotidianas, nem as jornalísticas ou moralistas. Sua poética vem do conto, o conto de muitas vozes que perdeu a autoria e caiu no domínio público, o conto popular. Muitos contadores contemporâneos narram contos literários, con-

tos de autoria, quer seja pela atualização e prática deste ofício ou pela ausência de narradores tradicionais em sua formação. Dessa forma, os novos narradores tendem a recorrer aos livros, ao processo da escrita, um método pedagógico recente e restrito a pequenos grupos sociais, tão diferentemente de como se dava o acesso a esse ofício na tradição, ou seja, pela transmissão oral. Sabemos que em sua maioria, os narradores tradicionais, são analfabetos e daí a importância da oralidade como transmissão de saberes, conhecimento e aprendizagem sem o acesso restrito dos códigos e letras. Assim podemos perceber as diferentes facetas e singularidades de cada narrador, a palavra percorre um caminho diferente para cada um ou espera-se que assim ela faça, para que não apenas sejam reprodutores e transmissores de um único jeito de narrar. Podemos perceber que um narrador, ao utilizar o conto popular tem mais liberdade para alterar ou adaptar, sendo coautor da história, desde que entenda sua poética e sua estrutura para brincar com mais autonomia. Já os narradores que se utilizam de textos escritos por autores, devem ter cuidado ao interferir na obra para não descaracterizar a estrutura, as intenções e o estilo do autor. Entendendo que alguns contos são de fato apropriados para leitura e não para a linguagem da narração oral. A palavra dita pelo ator narrador pode ser qualquer texto da linhagem dramática, literária ou mesmo informativa: um poema épico, um melodrama, uma crônica, um romance, um conto, uma bula de remédio, um caso verídico. Sua poética vem da ação, pelo diálogo


verbal ou não verbal, vem da encenação do que é dito, que não se caracteriza como uma dramaturgia no sentido clássico, pois a condição de ator narrador trata isso de outra forma. O ator narrador pode aproveitar o jogo e brincar, ora sendo o personagem vivendo o que é narrado na cena, ora narrando sem o personagem os acontecimentos vividos por ele. Podendo pensar, analisar e criticar tomando um distanciamento nesse jogo, numa dialética épica defendida por Brecht. Vemos, nos últimos anos, um retorno do papel do ator narrador na cena teatral brasileira e isso nos leva a pensar nessa retomada. Não seria resultado de uma negação histórica do teatro narrativo dentro da própria história do teatro? Nossa he-rança do teatro grego não nega isso. Assim, vemos no Brasil e no exterior, dramaturgos, encenadores, grupos e atores buscando a restauração da narrativa no teatro, como nos trabalhos do dramaturgo paulistano Luiz Alberto de Abreu, na direção de alguns espetáculos de Aderbal Freire Filho, que ele nomeia “O romance em cena”, e Luiz Arthur Nunes com “O ator rapsodo”, ambos no Rio de Janeiro. Um dos exem-plos da utilização de narradores tradicionais em espetáculos aconteceu na montagem do “Mahabaratha”, do diretor inglês Peter Brook, no qual atuou Sotigui Kouyaté, griot e ator afri-cano.

tar uma história, e ao exercer seu ofício numa atitude cênica algumas diferenças se apresentam: elas estão, no sentido básico, no “que é dito” e no “como é dito”. Temos vários exemplos de atores que buscaram um caminho particular na narração de histórias, como José Mauro Brant, Roberto de Freitas, Flávio Souza, entre outros; assim como alguns escritores que também buscaram na narração oral uma maneira direta de dialogar além do livro — uma forma de quebrar o mito que paira sobre a timidez e a intelectualidade literária? Uma forma de divulgar as suas e outras obras? Ou por uma profunda identificação de diálogo direto com seu leitor, como vemos com o Ilan Brenman, Jonas Ribeiro, Cléo Bussato, Celso Sisto? Infelizmente, temos ainda alguns contadores tradicionais vivos que não são reconhecidos e nem apontados pela mídia, a não ser em sua comunidade. Muitos projetos de leitura surgiram de uns anos pra cá e dessa tradição e criaram algumas maneiras de preservarem seus mestres. Mas cabe ainda a esses narradores tradicionais cuidarem da transmissão e preservação dessa herança herdada ou adquirida, como é o caso do mestre Nelson Rosa, de Alagoas, que preserva e divulga seus causos e cantos de trabalho. E os novos narradores estão interessados em quê? E o ator narrador só está interessado nas investigações estéticas? Porque é sabido que tradicionalmente sempre coube aos narradores tradicionais o papel de educação do espírito e de preservação da memória coletiva.

Isso nos leva a pensar na constante busca de método e de investigação por parte do ator, grupos e outros criadores da linguagem cênica, assim como nas incessantes necessidades do ator e do teatro de dialogar com seu tempo. O ator narrador tem base no teatro físico. E por isso, talvez, se utilize tanto, em montagens e experimentos teatrais, de textos não dramáticos; por parecer perder a linhagem aristotélica possibilitando, pela fragmentação, geralmente encontrada na literatura, uma costura que quebra a lógica do começo, meio e fim.

É muito sedutor ver em um único corpo, em uma única voz, as imagens de tantos se transfigurando sem disfarces, e essa é uma diferença de não fazer teatro ao narrar. O narrador, diferente do ator, está interessado em dizer e não ser, porque ele já é, ele pode até inventar artifícios, maneiras de dizer, cantar, tocar, mas ele é quem conta e o que conta é o que ele é. O contador de histórias contemporâneo está interessado na investigação dos meios expressivos de comunicação com seu corpo, sua voz e sua relação direta com o público, a partir do que será narrado. Muitas vezes as histórias são escolhidas e contadas na hora, vendo e sentindo o público, como

O que importa é que ambos, o ator narrador e o narrador, estão interessados em con-


afirma Gislayne Avelar Matos, contadora e pesquisadora. O conto é o ponto de partida e chegada, e não os meios, os modos. Para o ator narrador, o meio é sua base de pesquisa, é por ele que tudo se cria e por isso se utiliza tanto de textos que possibilitem essa articulação e flexibilidade com o meio, que é o corpo, a fala verbal ou não verbal. Geralmente, o ator narrador cria um personagem que utiliza da linguagem narrativa para contar uma história ou sua própria história, como vimos recentemente no espetáculo Roliúde, encenado pelo ator carioca João Ricardo Oliveira, a partir do livro escrito pelo jornalista e autor pernambucano Homero Fonseca.

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O narrador contemporâneo está interessado na sua voz autoral, ele também tem ética, poética e estética. Geralmente, ele lida com outra matéria, que é a relação humana, o encontro - o homem e a palavra. E é no outro que a história acontece, é na partilha, olho no olho. E nessa partilha, consequentemente, o efêmero também se dá, porque ele não repete a história do mesmo jeito, ele leva em consideração a sua plateia, os seus ouvintes e aproveita tudo que desse encontro surge. O narrador tem nas mãos o seu repertório particular e coletivo construído pelo percurso da sua atuação; sua trajetória pessoal se mistura com as histórias, e por isso ele é também um criador de histórias. Para mim, o narrador de histórias é uma espécie de livro que não se imprimiu. O ator narrador também se utiliza desses mesmos caminhos, mas ele segue seu roteiro préestabelecido pela encenação, seu guia é o personagem. Ele pode até improvisar, aproveitar a reação do público, mas seu percurso está limitado e tramado pela lógica da personagem, da encenação, do texto e de uma direção. Ao mesmo tempo

Luciano Pontes é escritor, ator, palhaço e contador de histórias. _ cianopontes@hotmail.com

isso não é uma regra, pois ao buscar esse tipo de linguagem narrativa o ator quer mergulhar em outro processo de aprendizagem, de autonomia criativa e estabelecer uma relação direta com o público, quebrando a famosa “quarta parede”, mas para o ator olhar para a plateia possa ser apenas um registro ou uma triangulação como chamamos tecnicamente no teatro, mas para o narrador de histórias não. É crescente o movimento de retorno do ofício do narrador de histórias no Brasil e no exterior, visto pelos vários eventos, simpósios e feiras de livros onde o contador tem tido sua voz, como o Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, do Rio de Janeiro, produzido por Benita Prieto; o Festival Boca do Céu, em São Paulo, organizado por Regina Machado; e os encontros com escritores e contadores de histórias promovidos pela escritora Lenice Gomes aqui no Recife, desde o ano passado. Esse retorno à linguagem narrativa também se vê presente em alguns grupos de teatro e atores em alguns espetáculos, como Mire e veja, da Cia. do Feijão (SP), “Till – A saga de um herói torto” com dramaturgia de Luiz Alberto de Abreu com o Grupo Galpão e “Assim diz Molero” e “O Púcaro Búlgaro”, ambos dirigidos por Aderbal Freire Filho a partir de romances. Vejo o reaparecimento do interesse de falar e de exercer o oficio do narrador de histórias nos últimos anos pela necessidade humana de ser visível, de

ir ao encontro, de ser elo de comunicação; uma reação aos tecnologismos que marcam a relação e a comunicação no nosso tempo. Mesmo com a criação do alfabeto. Mesmo com o advento da industrialização. Mesmo com o surgimento das máquinas e de toda tecnologia. Mesmo na cultura da imagem em que vivemos hoje, onde a palavra virou pano de fundo, e os olhos veem mais do que os ouvidos ouvem, não há nada mais confortante do que ouvir, do que ouvir dizer e verbalizar histórias! É o que percebemos pelos acalantos embalando os sonhos da nossa infância, nos recitais de poesias, nas rodas de histórias familiares ou públicas, nas conversas com os amigos, nos comícios, nos cultos, pregações e sermões, no teatro — o ritual se repete numa celebração da palavra, da oralidade. De alguma maneira, nesses momentos, as histórias continuam sua tradição de percorrer o mundo de boca em boca, de ouvido em ouvido. Talvez não na sua acepção tradicional, mas nesses momentos contam-se histórias e o ato de narrar vem daí também. Quer seja pesquisando, escrevendo, narrando, o conto popular e o literário têm sido verbalizados pelos quatro cantos do mundo pela necessidade de salvaguardar nossa herança oral, nossa identidade. Cabe aos novos desbravadores dessa herança reconhecer que ao dizer estamos reafirmando uma cultura e fazendo valer o que se conta, se fazendo reconhecer enquanto gente, enquanto nação. Então, me dizes!


Registro da performance criada por Laura Lima, Marra, da SĂŠrie Homem=Carne / Mulher=Carne 1996, capuz duplo de tecido, amarra interna de couro e 2 pessoas = carne. Foto Eduardo Eckenfels


por Daniela Castro

— Tchau, fica bem. (Não quero fazer um drama dessa despedida, mas ao mesmo tempo quero te dizer que vou sentir tanta saudade; que eu gostaria, talvez, que a continuidade já fosse um dado axiomático – o que quer que seja isso por agora – a partir de agora; que teríamos que esperar por um outro táxi porque as nossas bagagens não caberiam nesse pequeno e detonado Uno, que fede a aromatizador de pinho vencido e cujo filme do vidro fumê esconde o G de tudo que é RGB do lado de fora, e também porque o motorista é muito velho para segurar a nossa onda. Ou talvez ele seja perfeitamente sábio a perceber tudo o que está rolando entre a gente, o que ainda nem nós mesmo sabemos, pelo cheiro do medo que exalamos, pelos gestos toscos e reticentes, mas cheios de carinho, cheios de programas frágeis de pequenas felicidades. Ao chegar no Galeão, ele já teria adivinhado tudo aquilo que para nós talvez demore anos… mas, claro, não quero te assustar, não quero te impor nada – mal te conheço. Não sei como você vai lidar com tudo isso que aconteceu entre a gente, onde vai ser arquivado, no corpo, com que tamanho, em que mundo. Mora na filosofia... te quero perto de mim de qualquer jeito, de qualquer tamanho, onde quer que seja. Há tanto o que podemos fazer… espere por mim; venha me buscar num Camaro e te digo o quanto te quero. Esse é o nosso tamanho, bella) — Você também. Tchau. (Não quero fazer um drama dessa despedida, mas ao mesmo tempo quero te dizer que vou sentir tanta saudade; que eu gostaria, talvez, que a continuidade já fosse um dado axiomático – o que quer que seja isso por agora – a partir de agora; que teríamos que esperar por um outro táxi porque as nossas bagagens não caberiam nesse pequeno e detonado Uno, que fede a aromatizador de pinho vencido e cujo filme do vidro fumê esconde o G de tudo que é RGB do lado de fora, e também porque o motorista é muito velho para segurar a nossa onda. Ou talvez ele seja perfeitamente sábio a perceber tudo o que está rolando entre a gente, o que ainda nem nós mesmo sabemos, pelo cheiro do medo que exalamos, pelos gestos toscos e reticentes, mas cheios de carinho, cheios de programas frágeis de pequenas felicidades. Ao chegar no Galeão, ele já teria adivinhado tudo aquilo que para nós talvez demore anos… mas, claro, não quero te assustar, não quero te impor nada – mal te conheço. Não sei como você vai lidar com tudo isso que aconteceu entre a gente, onde vai ser arquivado, no corpo, com que tamanho, em que mundo. Mora na Filosofia, pra que rimar amor e dor?... te quero perto de mim de qualquer jeito, de qualquer tamanho, onde quer que seja. Há tanto o que podemos fazer… espere por mim; venha me buscar num Camaro e te digo o quanto te quero. Esse é o nosso tamanho, lindo)

(com legendas em português) Daniela Castro é escritora e curadora _ danielapresente@yahoo.co.uk


Desejo eremita (n.14), da série Desejo eremita, de Rodrigo Braga, 2010

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Gustavo Fontes O barro vermelho — o primeiro, prima matéria ancestral.

do pó ao pó; por todo lado - torpor, júbilo e cansaço.

Submersos neste Ser tão árido: os chifres em riste fincados na terra bruta;

Apenas os pés

testemunho de tantos lutos e lutas; espinhoso animal

levitam num salto,

at first glance assim de relance semelha o sertão abandono de morto alvor de ossos

e gravitam

e o sol a pino

no limite,

mas súbito algo incomoda a retina reclama o olhar se desarmoniza

que volta agora e além. a ser nutriente de algum verde renitente, no horizonte; natureza severina onde nada de vida se perde; ou se conforma. O olhar percorre o espaço,

Marcia Maia

o barro revolto vermelho vermelho plantado de chifres úmido ainda e o homem sem corda sem árvore sem nada a sustê-lo tal cristo moderno recém-ressurecto um falso enforcado pairando a um metro do chão


25 Wellington de Melo a recusa da queda :semeadura de cal fastio e treva

a aceitação da queda :veneno na vontade dos lambedores de livros

na pupila a ira o nunca mais o medo e uma língua de argila nos soluços da casa

o estômago e uma manada de jasmins maceram o último silêncio

antes da queda tudo desejo de ser breu e calma

depois da queda ou mesmo antes :rancor ao contrário

então vêm esses jovens senhores o tétano a gangrena os conselhos sóbrios dos sábios da aldeia

nas lições do abismo as últimas pétalas e o primeiro não são sal da terra ajudam a extirpar o ruído

sobre o cadafalso com lenços secos que simulam um adeus de tédio a recusa é um aceno à comédia

meu desejo era acreditar na verdade inventada pelos espelhos embaçados no cemitério de elefantes

Rodrigo Braga é artista multimídia _contato@rodrigobraga.com.br Gustavo Fontes _fontesholanda@gmail.com Wellington de Melo _poet@wellingtondemelo.com.br Márcia Maia _marciamaia@uol.com.br



por Eva Duarte Entre os discursos ligados à subjetividade do gosto e à sustentabilidade do planeta, muita coisa vem sendo processada e rotulada como Arte Contemporânea. O que se expõe nos museus e galerias é lixo ou luxo? Quem há de definir? No intrincado jogo do mercado da arte, quem move as peças sobre o tabuleiro da mídia são críticos, curadores e galeristas. São eles que definem as tendências, a visibilidade, os usos e públicos para cada artista eleito. Nós, os fruidores, somos peões nesse xadrez, mas quem disse que peões não podem derrubar os reis? Convidados a responder à questão “Arte Contemporânea é luxo ou lixo?”, o cenário se mostra muito além do preto & branco.

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Resposta 1) Arte é arte e pronto, acabou-se... e começou de novo. Resposta 2) Se a contemporaneidade abriu possibilidades para que se ampliasse a compreensão da(s) própria(s) noção(ões) de arte, não importa mais se a expressão artística pode ser caracterizada como lixo ou luxo, mas se, como e porque pode nos tocar e provocar, independentemente de sermos artistas, pensadores ou observadores. Luiz Felipe Botelho_ dramaturgo e diretor de teatro e vídeo

A Arte Contemporânea tem uma linguagem muito avançada para a sociedade atual. Nem todos compreendem. Não é acessível a todos. A arte deveria ser mais universal. Adriana Mendonça_arquiteta e urbanista

Por que as coisas têm que ser eletivamente comparadas ao luxo? Lixo é ruim? Tatiana Almeida_psiquiatra

Uma espécie de fluxo-refluxo da máxima expressão tanto do que-se-tem-e-não-se-quer como do que-não-se-teme-se-quer. Este movimento da criação, apropriação, valorização e aperfeiçoamento é algo como a criação do fecho-éclair: um artefato rudimentar que de acessórios de roupas para trabalho foi incorporado às peças de grifes famosas. A arte contemporânea é assim: um luxuoso lixo. Evandro Sena_músico e produtor

Como já cantou a sábia Rita Lee: "nem luxo, nem lixo — o sonho é ser imortal..." Não precisa transitar entre os extremos, precisa transitar pelo desejo intuitivo de quem produz e pelo olhar sensível de quem vê, e pelo conjunto de acúmulos de quem vê. E assim, tudo ganha sentido. Entre a intenção de quem executa e a impressão de quem vê, tem um mundo muito maior do que ser só — luxo, ou lixo. E é essa relação entre artista e público que pode imortalizar algo a ser lido como arte, ou invisibilizar uma peça que ganha insignificância. É isso. Luciana Pinto_assistente social e escritora Nem luxo, nem lixo a arte contemporânea é uma lixa que passa, esfrega, recorta e modela um outro modo de olhar a velha unha. Leo França_artista da dança, performer

Oportunidade. Tenho visto muita gente fazendo arte na periferia e encontrando novos caminhos. O balé, as artes visuais, a música, hoje não há mais um único perfil para os alunos. Há mais acesso à aprendizagem das artes. Marcone Costa_pedagogo

Gosto muito de Arte Contemporânea! Concordo em parte... Depende de quem faz e de quem "lê"... Tem engodo e tem muita gente que engole. Eliana Assis_designer Nem luxo, nem lixo. Arte é alguma coisa à parte. Com aura ou duende e só o tempo revela. O que é luxo pode virar lixo, nem tudo que reluz é ouro. Às vezes, somente poucos conseguem descobrir que dentro das cinzas se esconde o diamante. Pois tudo é carvão. Everardo Norões_poeta


Arte contemporânea é um luxo, mas rapidamente vira lixo. Infelizmente, a arte contemporânea, na sua maioria, é guiada pela tendência, moda, e imprensa, e dentro de todo este turbilhão de informação, no meio de 1000 artistas, um será lembrado 10 anos depois de estar no pico, como artista da "cena" artística da sua época. É um luxo que vira lixo e um lixo que vira luxo, repetidas vezes, como uma música em loop. Márcio Laranjeira_designer e produtor

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Seguinte: Um artista muito conhecido faz fotos de lixo, extraído do lixão por catadores, vira tema de filme e concorre ao Oscar. É tido como o luxo do lixo. Depois, as fotos viram abertura da novela da Globo. É o lixo do luxo do lixo. Alguém pode definir melhor, por favor, os termos da pergunta? Só sei que sinto nostalgia dos anos 1960, quando Piero Manzoni vendia latinhas com 'merda de artista'; Andy Warhol pintava embalagens de mentirinha; Hélio Oiticica levava favelado vestindo parangolé para dentro do museu. Bons tempos, aqueles, quando se sabia a diferença entre o lixo hollywoodiano e fumar Hollywood na Boca do Lixo. Rafael Cardoso_escritor e historiador da arte, veio para esclarecer e ficou confuso Em tempos em que lixo é recurso e luxo é o que ainda precisa ser mais acessado, a arte deve ser as duas coisas. Raíza Bruscky_designer Luxo. Legal. Bacana. Osmar Melo_apoio administrativo


Nem tudo que é luxo é lixo. Nem tudo que é lixo é luxo. Nem tudo que é luxo é luxo. Nem tudo que é lixo é lixo. Nem tudo que é arte é luxo. Nem tudo que é arte é lixo. Jum Nakao_artista e designer

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Pra mim o que importa é gozar no final! Olga Torres_atriz, produtora e pesquisadora de tendência e inovação

Arte Contemporânea Lixo e luxo: Patrimônio Cultural da Humanidade Lorena Veloso_arquiteta e diretora da DPPC

Lixo e luxo é passado e futuro da arte contemporânea, não necessariamente nessa ordem. Guilherme Luigi_designer

"Não temos como avaliar" é isso que dizem as leis de incentivo cultural. Giordano Castro_ator e dramaturgo do Grupo Magiluth

Tenhamos em conta, que boa parte dos artistas produz lixo objetivando o luxo. Ângelo Fábio_ator e performer Lixo, sem dúvida nenhuma. Luxo, sem dúvida nenhuma. Dúvida, sem dúvida nenhuma. André Stolarski_designer

Arte Contemporânea? Next question please! Pedro Vilela_produtor e diretor teatral


Arte contemporânea: lixo, luxo e outras cositas más... Paula Carneiro Dias_artista, lixeira e madama É lux (sem ser o sabonete)! Juliana Notari_artista Lixo é lixo, arte é arte, não necessariamente nessa ordem, pode ser que estejam misturados. Domenico Lancellotti_músico e lixeiro Nem um nem outro! pode ser bom com lixo, com luxo, sem lixo, sem luxo ... Tem que ser bom ! Josivan Rodrigues_fotógrafo e designer Tanto pode ser uma caveira cravejada de diamantes como flores de plástico reciclado. Nem luxo nem lixo. Péricles Duarte da Fonseca_ arquiteto Lixo do Luxo e Luxo do Lixo. Edson Barrus_artista multimídia Depende do cheiro... Oscar Malta_inventor de imagens, diretor de criação da PIXEL e membro do LIS/UFPE

Eu não tenho muito domínio sobre a Arte Contemporânea. Fica difícil opinar. Esses conceitos não estão bem definidos. Se é luxo e o lixo depende muito do lugar onde você está e das influências midiáticas. Categorizar é uma necessidade do mercado. Tudo o que passa a ser bem econômico, passa a ser fetiche, o fetiche da mercadoria. Marcelo Olimpio_professor Luxo se for sustentável e lixo se não for. Socorro Miranda_escritora Luxo mesmo sendo um lixo ou lixo, mesmo sendo um luxo. Quem souber: morre! Séphora Silva_arquiteta e cenógrafa Um lixo essencial. Rodrigo Pires_jornalista Depende de quem faz. Petrônio Lorena_cineasta Esse é um falso problema. Jose Aravena Reyes_professor universitário Arte contemporânea pode ser luxo, pode ser lixo... depende de quem faz e de quem olha. Maria Eduarda Belém_ produtora e curadora

Eva Duarte é jornalista e origamista _evinhaduarte@gmail.com

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Posts por Cristhiano Aguiar

Sexta-feira, eu subia a Angélica em direção à Paulista. Assim que cheguei ao cruzamento entre a Consolação e a Paulista – lembrei que embaixo dos meus pés, na passagem subterrânea que dá acesso à estação de metrô, havia centenas de livros usados e empilhados, ansiosos para que alguém pagasse-lhes o resgate devido – uma pickup saía da Paulista e entrava na Consolação, carregando nos braços um imenso touro dourado: deus antigo, cenográfico, fabricado com papel, gesso, espuma e cola. *

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Com dois amigos, pernambucanos exilados em São Paulo, assisti este final de semana a um documentário sobre a relação entre John Lennon e Nova Iorque. Não consigo esquecer uma cena. Yoko Ono e o ex-beatle são filmados por trás. Abraçados, contemplam as duas torres do World Trade Center. Nem o músico, nem os prédios podiam antecipar o homicídio. * Obama e Osama. De um, não se encontra o corpo metralhado; do outro, há uma presença em excesso, cujo principal propósito consiste em mostrar que o mundo é um quintal pequeno. Obama, prêmio Nobel da Paz, é uma sombra daquela esperança que encarnou quando

foi eleito presidente dos EUA. Quando Wellington Menezes de Oliveira cometeu o crime na escola do Realengo, justificou suas ações a partir de um fundamentalismo pop, um fundamentalismo-wikipedia, que teria sido inspirado em terroristas como Osama Bin Laden. Caso vocês lembrem, o assassino pediu para que fosse enterrado com rituais que se assemelhariam aos ritos fúnebres da cultura islâmica. Isto incluía um corpo banhado e um lençol branco. Supõe-se que Bin Laden esteja morto; supõe-se que tenha sido despejado no mar, porém antes o governo dos EUA teria assegurado ao corpo do terrorista um tratamento semelhante àqueles rituais já aludidos; também, neste caso, se fala em um corpo lavado e um lençol branco. Os dois lençóis, que brancos nunca foram, são dois fantasmas.


estava sem aquela estrutura de madeira – não sei o nome – que fica logo acima das teclas. Ontem fiz trinta anos. Momento de retrospectiva?

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O piano, quase um paquiderme, revelava seus dentes e nervos, enquanto o samba girava.

Vejamos: não tenho móveis, não tenho imóveis (sequer uma caneta bic fixa), não tenho obra, não tenho filhos, não tenho jardim, não tenho casamento, não tenho emprego fixo, não tenho ações na bolsa, não tenho empreendimentos. Tenho, porém, páginas em branco.

Quando fomos embora, peguei um táxi. O taxista era músico e conversamos sobre Rolling Stones, Wilco, country, Credence, Bob Dylan e drogas – “o pó me trava”, ele disse, “prefiro entrar no palco só com uma cerveja mesmo”.

*

*

Não sei o que você costuma fazer nos seus aniversários. Eu deixo o dia me carregar. É preciso cultivar as soluções simples: amigos de verdade, uma mesa e música. Pronto.

“Nada diferente de qualquer madrugada de quarta-feira”, a cidade me dizia enquanto flutuávamos, “a mesma cota de momentos estranhos, luzes, frieza, desejos, sombras, reencontros, desencontros e olhares mudos”.

Uma amiga de Santos me levou a uma pequena casa de samba que eu nunca na vida descobriria sozinho. Havia poucas mesas, poucas pessoas, cerveja com preço bom e música animada. Em certo momento, fui ao banheiro. Abri a torneira e pus minhas mãos embaixo da água. Frio. Os dedos se contorcem como se não fossem meus. Não recordo se havia um espelho no banheiro, porém não importa: eu me encontrava em um ponto de fuga. Quando saí, um discreto susto: atrás da roda de samba, um objeto que eu não tinha ainda percebido. Era um piano. Ele

A noite se fechava.


A janela ainda brilhava.

Anteontem, vi uma mulher nua. Não é a primeira vez e, se tiver sorte, não será a última. Foi, porém, a primeira experiência autêntica de voyeurismo que tive na vida. A frase anterior, dita por alguém às bordas dos trinta anos, faz pensar em sérios desvios de caráter. A meu favor, entretanto, gostaria de levantar algumas circunstâncias atenuantes. Primeiro, morei a infância e a adolescência em uma casa, guiado por uma austera educação calvinista. Segundo, quando passei a morar em apartamento, já no Recife, a localização espacial do prédio impedia qualquer tipo de espionagem contraventora.

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Em São Paulo tive, finalmente, meu primeiro momento Janela indiscreta. No início da noite, fui até a cozinha, cujas janelas permitem enxergar as do nosso prédio vizinho. Enquanto enchia o copo de água, ou procurava torradas para fazer um lanche, olhei de maneira casual aquele prédio: uma das janelas, localizada um pouco abaixo da minha própria, estava acesa; o vidro opaco revelava o corpo de uma moça, que penteava, ou molhava, longos cabelos pretos. Que seios livres!, eu sussurrei. Logo uma luz presbiteriana acendeu-se na minha cabeça e fiz um gesto ridículo. Me abaixei na cozinha, envergonhado. Me abaixei não porque achasse que ela poderia me ver, eu me envergonhava do meu próprio campo de visão.

Olho ou não olho? Tive acessos de pudores, envergonhado da imagem que naquele instante construía de mim. Eu me observava observando a moça nua. Levantei e a encontrei de novo. Ainda ajeitava os cabelos. Há um tipo de liberdade, contida nos pequenos gestos, que se revelava a mim naquela imagem de um corpo confuso, sem identidade, um corpo formado por luz e linhas indiscretas, linhas nubladas, cuja beleza afrontava o mundo, o meu tranquilo e pequeno mundo. Falei de beleza. Não conseguiria reconhecê-la na rua. Não sei se era bonita, mas a sua presença no meio de todas as coisas era bela; a luz me dizia: aqui está o que você procura na mulher, aqui está o que se esconde nos véus, aqui está a síntese do que você ama nas mulheres, aqui está o que há de bonito no desejo – uma imagem fulgurante, cujo brilho residual continua na minha mente, a ponto de me obrigar a deixar sua marca nas palavras.

Cristhiano Aguiar é escritor e crítico literário. Os textos foram publicados no blog: http://notape.com.br/ cristhianoaguiar/ e reescritos para esta edição. _cristhianoaguiar@gmail.com



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O salutar Atlântico cujo sabor me era familiar Na Ilha de Eduardo mostrou-se lago insosso. Era lago? Era mar? Decerto não era lâmina. Aquela água, como tudo por lá, era branda. O ar de desculpas do indesejável que brada: Qual minha culpa? Ter sido parido? Existir? E eu espiando e pensando: zarpar, partir.


Leo Ferrario é estudante de letras e alvirrubro _ostensorio.blogspot.com _leofer@gmaill.com

Clara Simas é fotógrafa, estudante de design e ilustra nas horas vagas _www.flickr.com/clra _clrasimas@gmail.com



Uma das maneiras de escrever sobre as mudanças da história da arte é através dos confrontos entre os que assumem a posição de vanguarda em busca de novas formas para se expressar e os que reagem a isso com discursos apocalípticos para proclamar o fim de uma era. Desde o século XIX, essas duas visões passaram a ocupar o ringue dos debates para se digladiarem quando o assunto envolvia arte e o surgimento de uma inovação tecnológica. O primeiro round veio com a invenção da fotografia, foi ela quem primeiro pôs de um lado os que comemoravam as possibilidades da técnica para apreender o real; e, do outro, os polemistas que temiam que o seu surgimento resultasse no fim da pintura. O fato é que, como sabemos hoje, a pintura não acabou. Sem poder competir com a rapidez e a clareza da fotografia na captura da realidade; a pintura passou a se repensar enquanto linguagem, valorizando seus diferenciais para se adaptar ao novo contexto. Depois de alguns lamentos, os pintores se deram conta que estavam livres da obrigação do registro e, enfim, poderiam partir para experimentar o caminho da arte pela arte. Diante do concorrente, a pintura inicia então um processo de migração da arte figurativa para o campo da imaginação, resultando em novas técnicas de se usar o pincel, formas abstratas e até uma irônica consciência de que tudo, por mais real que seja, sempre é uma representação, como nos ensina a tela Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) de René Magritte. Apesar dessa lição, a batalha teve outros rounds. Os apocalípticos colocaram o teatro na lista de extinção por conta do invento dos irmãos Lumière, depois puseram o rádio na berlinda quando inventaram a televisão e chegaram a ameaçar o

por Thiago Corrêa

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cinema com a popularização do videocassete. Porém, nem o fato de continuarmos indo ao teatro, ouvirmos rádio todas as manhãs e frequentarmos o cinema no sábado à noite impediu que ecos desse discurso proclamassem o fim dos livros e da literatura com a disseminação da internet e o desenvolvimento dos aparelhos e-readers. Mais uma vez, temos de um lado os alarmistas preocupados com os riscos de se perder toda uma tradição de transmissão de conhecimento, e, do outro, artistas interessados em testar as possibilidades desse novo veículo para a construção de novas formas de expressão.

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Talvez por ainda estarmos no olho do furacão, a dois anos da internet completar a maioridade legal no Brasil, temos a impressão que quem está levando a melhor neste round sejam os saudosistas, falando do cheiro do livro, da possibilidade de fazer anotações na borda e do prazeroso contato tátil com o papel. Afinal, o assunto tem sido um prato cheio para o jornalismo cultural, que vê nas incertezas do mercado editorial a oportunidade de acompanhar uma nova revolução como a provocada na música pelo Napster. Desde a constatação, obtida através de uma pesquisa com livreiros na Feira de Frankfurt de 2009, de que esse é um movimento irreversível; o tema ganhou projeção na mídia e provocou uma corrida das editoras contra o tempo. Por aqui, um dos reflexos foi a realização do 1º Congresso Internacional do Livro Digital,

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organizado ano passado pela Câmara Brasileira do Livro. Especialistas da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá e da América Latina se reuniram em São Paulo para uma série de palestras, onde apresentaram modelos de negócio, discutiram questões jurídicas e fizeram suas apostas nos formatos de arquivo que devem prevalecer no mundo digital. Da mesma forma, a mídia praticamente só tem acompanhado esse período de transição com enfoque nas consequências comerciais, observando com interesse o faturamento da Amazon com a venda de e-books, o lançamento de aparelhos eletrônicos de leitura e os investimentos das editoras nesse processo de digitalização.

Uma preocupação legítima, sem dúvida. Já em 1936, o alemão Walter Benjamin atentava para isso no seu clássico ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. No texto, o teórico da Escola de Frankfurt observava as implicações que a técnica da fotografia e o desenvolvimento da indústria do cinema criavam para a arte, levantando reflexões sobre as mudanças de paradigmas na composição das obras (ritual) e na sua apreciação (aura) provocadas pela possibilidade das cópias permitirem uma difusão em

massa. Mas, nessa versão mais recente do debate, a questão artística tem passado pela tangente na discussão. Quando muito, ela aparece embutida em perguntas ingênuas como: blog é literatura? Ou a sua versão mais recente: é possível fazer literatura nos 140 toques do Twitter? Questionamentos que refletem não apenas o desconhecimento típico causado pela proximidade histórica, mas também as indefinições normais que envolvem o desenvolvimento de uma nova forma de expressão artística como indica o conceito adotado pela Eletronic Literature Organization (ELO)1: “trabalhos com importantes aspectos literários que tiram proveito das capacidades e contextos fornecidos pelo computador sozinho ou em rede”. Somado a isso, a literatura eletrônica ainda sofre com os obstáculos da dificuldade de leitura na tela do computador, do caráter experi-


mental das criações e da rapidez do processo de defasagem dos programas utilizados para a elaboração das obras, o que muitas vezes inviabiliza o acesso dos leitores a elas. Devido a todas essas barreiras, não é por acaso que os autores que hoje identificamos como originários da internet no Brasil representam a continuidade das narrativas tradicionais, versões de histórias pensadas para a página impressa, mas que acabaram aparecendo estampadas antes em algum site. Com a liberação do veículo para usuários comuns no país, em 1995, uma geração de pretensos escritores viu na rede a possibilidade de tirar suas produções da gaveta para leválos ao encontro dos leitores através de sites e blogs, que se revelaram uma maneira fácil, barata e eficiente de se publicar.

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Entre o fim dos anos 1990 e início do século XXI, o mercado editorial brasileiro precisou acelerar o passo para acompanhar o que estava acontecendo além dos livros. Não demorou muito para eles perceberem o potencial desses autores que já vinham aproveitando a popularização da rede para cultivar leitores através das páginas da internet. Assim, nomes badalados na tela do computador migraram para as lombadas de livros, com o lançamento de títulos individuais e coletâneas de grupos como a do Wunderblogs.com, que reunia pequenos textos de onze autores publicados originalmente no blog coletivo.

para assumir as funções de assessor de imprensa e produtor, num processo de aproximação do escritor com os leitores por meio das redes sociais. Como consequência, assistimos a uma transformação do autor em personagem, onde a vida real se mistura com a ficção, dentro da tendência de celebrizar a atividade de escritor. Em termos de estrutura narrativa e elementos estéticos, porém, a análise da obra desses autores não nos permite enxergar uma quebra de paradigma. Talvez o exemplo mais significativo disso seja a antologia digital ENTER3 , organizada pela professora da UFRJ e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda. Publicada apenas no meio virtual, em agosto de 2009, a antologia reuniu trabalhos de 37 autores nacionais com o objetivo de “explorar nesse trabalho as possibilidades que a web oferece como a animação de textos, o uso de som, vídeo, remixagens”. O resultado, no entanto, como a própria organizadora reconhece na introdução, é que esses recursos ficaram acomodados cada um em seus devidos compartimentos, desarticulados demais para resultar numa “literatura de internet”. As obras selecionadas nem ao menos parecem ter sido pensadas para atender às especificidades do meio digital, elas surgem aglomeradas, como se fossem textos acompanhados de extras como a versão em áudio e o registro em vídeo da sua leitura.

Do e-zine gaúcho Cardosonline2, desgarraram-se os escritores Clara Averbuck (que lançou Máquina de Pinball pela Conrad) e Daniel Galera (cujos livros Mãos de cavalo, Até o dia em que o cão morreu e Cordilheira saíram pela Companhia das Letras). Do site carioca Paralelos. org, despontaram João Paulo Cuenca (que já teve títulos publicados pela Agir, Companhia das Letras, Planeta e LeYa) e Tatiana Salem Levy (vencedora na categoria estreante do Prêmio São Paulo de Literatura de 2008 com o romance A chave de casa).

O curioso é que as produções da ENTER são posteriores às experiências de linguagem ocorridas quando a conexão no país ainda era discada, não se falava em redes sociais, nem existiam YouTube (2005) ou MySpace (2003). Mais do que suporte de veiculação, nesse primeiro momento no Brasil, o ambiente digital também foi explorado como nova linguagem, dotada de características próprias. É dessa época que começam a surgir as primeiras narrativas não apenas publicadas na rede, mas desenvolvidas especificamente para esse novo meio.

Mas, salvo poucas exceções, o assunto ficou restrito à mudança de papel dos autores, que deixavam o isolamento característico do ato da escrita

Já em 1995, aparece Tristessa4, uma narrativa em hiperlink criada por Marco Antonio Pajola. Dividida em cinco partes, os leitores decidem a ordem

http://www.qualquer.org/col/ http://www.oinstituto.org.br/enter/ 4 http://www.quattro.com.br/tristessa/index.htm 2 3


Thiago Correa é escritor e jornalista _thicocr@gmail.com

de leituras dos textos que vão seguir. Além de ter a estrutura formatada para a rede, a obra conta com um narrador que faz uma série de reflexões metalinguísticas sobre o ciberespaço. Desse mesmo período também é A dama de espadas5, do professor da UFBA e pesquisador da cibercultura, Marcos Silva Palácios. Ainda que a história seja mais tradicional, sem questionamentos internos no discurso, a narrativa apresenta o diferencial de usar imagens, hiperlinks, trilhas musicais e sonoplastia que colaboram decisivamente no aspecto imersivo da obra.

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No ano seguinte, o portal UOL dá início a uma série de cinco NetNovelas, trazendo para o ambiente digital nomes de peso como o escritor Reinaldo Moraes (autor de Pornopopeia), Bráulio Mantovani (roteirista dos filmes Cidade de Deus e Tropa de elite) e o quadrinista Angeli (das tirinhas Chiclete com banana). O primeiro foi responsável por O moscovita6 (1996), um ano depois Bráulio Mantovani em parceria com Eduardo Duó publicaram Dossiê Greenwar7 e Angeli aparece com A morta viva8 (2000). Em comum, essas histórias apontam para o diálogo entre texto e imagem, uso de elementos sonoros e links para serem explorados pelos leitores. Em 2000, um novo capítulo se inaugura na literatura brasileira com a experiência Os anjos de Badaró, romance policial do autor veterano Mario Prata que foi escrito ao vivo pelo portal Terra. Para desenvolver o livro,

http://www.facom.ufba.br/dama/index.htm http://www1.uol.com.br/novela/moscovita/ 7 http://www1.uol.com.br/novela/greenwar/ 8 http://www2.uol.com.br/angeli/rebordosa/ 9 http://www.thenovellive.org/ 10 http://collection.eliterature.org/ 5

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que posteriormente foi publicado em papel pela Objetiva, desenvolveu-se um software específico para os leitores poderem acompanhar na tela o processo de criação, palavra a palavra, corte a corte na construção do livro. Além disso, os leitores podiam observar as feições do autor durante a escrita através de uma webcam, comentar e sugerir rumos da narrativa por meio de um chat. Resultado: em seis meses, mais de 400 mil pessoas fizeram uma visita ao site do escritor, garantindo, ao projeto, mídia espontânea em jornais do país inteiro, da Espanha, da França e da Espanha. Números impressionantes que podem ser explicados pelas ideias do filósofo Pierre Lévy presentes no livro Cibercultura. Segundo ele, como o fluxo de informações na internet é contínuo e praticamente infinito, as obras veiculadas na rede precisam assumir o caráter de evento para chamar atenção no aqui e agora, porque logo elas vão dar espaço a novas criações. A experiência de Mario Prata deu tão certo que continua motivando ações semelhantes mundo afora. Em outubro de 2010, a editora americana Seattle7Writers iniciou o projeto The Novel: Live!9, no qual 36 autores se revezariam na criação coletiva de um romance ao vivo, pela internet, nos mesmos moldes de Os anjos de Badaró. Apesar desse início arrebatador, a literatura eletrônica nacional parece ter assumido uma postura conservadora se

levarmos em conta o que está sendo produzido no mundo, como demonstram os trabalhos que compõem os dois volumes da Eletronic Literature Collection10, publicados em outubro de 2006 e fevereiro de 2011 pela ELO. Embora alguns casos sejam duros de aceitar como obras de literatura, é inegável que elas foram desenvolvidas dentro de uma perspectiva digital e, dificilmente, existiriam em outro suporte. Por mais variados que sejam esses trabalhos, eles têm em comum a preocupação de se pensarem como linguagem, a partir da utilização do jogo de palavras e dos recursos da programação computacional para explorar a capacidade multimídia da criação, bem como alargar os limites da interatividade com o público. O abismo em relação à produção nacional só não chega a ser vergonhoso para a literatura nacional por conta da presença de dois trabalhos brasileiros nas coleções da ELO. No primeiro volume aparece a artista visual e professora da PUC-SP Giselle Beiguelman com a obra Code movie 1 (2004), enquanto o número mais recente traz o trabalho Palavrador (2006) do professor da UFMG Chico Marinho. Ambos recorrem às animações gráficas para dar vida às letras, fazendo uso simultâneo de recursos sonoros e visuais na intenção de se construir uma poética que não fica restrita ao campo literário. O que pode ser um motivo para a presença deles na mais importante publicação da literatura eletrônica mundial ser ignorada por aqui.


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por Márcio Padrão Aberrações sempre fascinaram a humanidade por simbolizar o nosso medo do desconhecido, em particular da morte. Na cultura pop, histórias e personagens com traços sobrenaturais e/ou de monstruosidade são regra há, no mínimo, mais de 190 anos, quando o livro Frankenstein; or, The Modern Prometheus, da inglesa Mary Shelley, foi lançado. Mas caminhando lentamente por fora do caminho trilhado por vampiros, múmias, lobisomens e fantasmas, os zumbis se tornaram não apenas uma mania mundial, mas também uma fonte para diversas metáforas sobre a sociedade do terceiro milênio. O cineasta norte-americano George A. Romero não inventou essas criaturas, mas é referendado como o pai dos zumbis modernos por seu filme A noite dos mortos-vivos, de 1968. Antes dessa produção, os zumbis eram mostrados de maneiras diversas. Originalmente eles vieram dos cultos vodus em regiões afro-caribenhas como o Haiti, onde eram os mortos

controlados por um feiticeiro. O primeiro "filme oficial de zumbis", White Zombie (1932), também segue essa linha. Li-vros de H. P. Lovecraft, H. G. Wells e Richard Matheson trouxeram outros seres com traços zumbis, mas foi Romero quem mixou tudo isso e ainda os transformou em metáforas sociais. Após A noite dos mortos-vivos, Romero deu continuidade ao tema no cinema, em quatro sequências. E os zumbis como os conhecemos hoje — mortosvivos comedores de carne humana que se multiplicam como uma praga potencialmente global — ganharam o mundo pop ao longo dos anos na visão de outros criadores e nas mais diversas mídias, como filmes (Extermínio, Zumbilândia, Todo mundo quase morto), quadrinhos (Zumbis Marvel), games (Resident Evil, Left 4 dead), música (Thriller, de Michael Jackson, o clipe e a canção) e na TV. Nesta última, a aclamada série do canal norte-americano AMC, The walking dead, baseado na HQ homônima de Robert


Kirkman, virou a nova febre. Com sua temática dark e o ritmo lento, The walking dead, que encerrou sua curta primeira temporada em dezembro de 2010 (foram apenas seis episódios), tinha tudo para agradar apenas a um suposto pequeno nicho de nerds. Mas seu episódio inicial, exibido na noite do Dia das Bruxas, foi visto por 5,3 milhões de pessoas nos EUA, sendo recorde entre as séries estreantes na TV a cabo americana em 2010. E o final da temporada foi além, atingindo seis milhões de espectadores. O programa da AMC, claro, tem segunda temporada garantida em 2011. Mas, afinal, o que representa o modelo do zumbi?

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Diferentemente das suas criaturas concorrentes, o zumbi é um ser desprovido de perso-nalidade. Vampiros são sedutores; lobisomens são predadores sem controle; fantasmas, demônios e espíritos obedecem a certas lógicas inerentes a quem ou o quê os conjurou. Já o zumbi não é nada além de uma personificação da morte: não tem sequer vontade ou inteligência próprias. Como um verme, ele existe com um único instinto: comer carne. E não apenas sua fome nunca cessa como ele é capaz de transmitir rapidamente sua condição a outros vivos. É, portanto, o monstro mais comumente associado ao fim dos tempos, pesadelo que nos persegue desde a Bíblia. No entanto, o apocalipse zumbi, visto em tantas obras, sempre traz o elemento oposto: os poucos sobreviventes, que enfrentam hordas de desmortos o tempo todo e precisam lidar com as condições precárias em que o planeta se encontra. E até mesmo os seus semelhantes são um perigo, quando decidem tomar decisões à revelia do seu grupo, ou mesmo traí-lo. Daí chegamos às questões-chave da metáfora de George Romero: o

maior inimigo está lá fora ou somos nós mesmos? Somos realmente tão diferentes assim dos zumbis, que assim como nós, são guiados pela sobrevivência? Em "O iminente apocalipse de zumbis: Por que o mundo moderno parece morto-vivo", o ensaísta americano Chuck Klosterman tenta entender as entrelinhas desse fenômeno pop. "É fácil projetar uma relação simbólica entre os zumbis e a raiva (ou entre os zumbis e as armadilhas do consumismo) (...) Mas e se o público deduzir uma metáfora totalmente diferente? E se as pessoas contemporâneas estiverem menos interessadas em ver retratos de seus medos inconscientes e mais atraídas pelas alegorias de como se sentem em sua existência cotidiana? Isso explicaria porque tantas pessoas assistiram ao primeiro episódio de The walking dead: elas sabiam que seriam capazes de se relacionar com aquilo. Boa parte da vida

moderna é exatamente como assassinar zumbis". Para Klosterman, os novos hábitos adquiridos na cultura digital têm muito a ver com isso: "matar zumbis é filosoficamente semelhante a ler e deletar 300 e-mails de trabalho, numa manhã de segunda-feira, ou preencher documentos que apenas geram mais documentos, ou acompanhar fofocas no Twitter por obrigação, ou fazer tarefas entediantes nas quais o único risco verdadeiro é ser consumido pela avalanche". George Romero, o "pai da matéria", sempre deixou claro que por trás do óbvio aspecto do


Marcio Padrão é jornalista _marciopadrao@yahoo.com.br

horror, seus zumbis são apenas um gancho para abordar questões pertinentes do cotidiano no momento em que determinado filme foi produzido. Em uma entrevista sobre Diário dos mortos (2007), seu quinto filme no subgênero, ele afirma: "sempre penso primeiro na ideia básica do roteiro para só então achar uma forma de incluir os zumbis".

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No caso, Diário aborda uma turma de estudantes que está fazendo um documentário com câmeras portáteis que se deparam com os desmortos. Romero quis explorar o impacto dessas tecnologias acessíveis na comunicação de massa. "Os meios criam a violência ou a violência cria os meios? Não sei, é uma pergunta, não estou tentando respondê-la, só lançá-la como mais uma pergunta. No fim do filme, quando um personagem diz: ‘atira em mim!’ [shoot me], é com a câmera ou com a pistola?’”, indaga, filosófico. Outro aspecto social questionado pelo diretor foi o consumismo desenfreado, quando, em Despertar dos mortos (1978, refilmado em 2004 por Zack Snyder), os sobreviventes ficam encurralados em um shopping center. A política também encontra terreno na metáfora dos desmortos. Afinal, um elemento inerente às histórias de zumbi é a paranoia, tanto de um possível ataque quanto sobre a atitude de seus colegas sobreviventes. As massas de criaturas irracionais podem ser os eleitores de algum líder político, ou mesmo o inimigo externo — no caso dos Estados Unidos, os comunistas,

orientais, extremistas muçulmanos ou o que estiver valendo no período. "Não entendemos as motivações deles, portanto os odiamos", seria o princípio. Cabecismo à parte, há quem também não se importe com nada disso e prefira o mais prático: zumbis são monstros cool que rendem boas cenas de ação e terror. Igualmente cool é matá-los, visto que assim como vampiros, lobisomens e grande elenco, eles também possuem uma "cartilha" usada no combate. Seu ponto fraco é conhecido: a cabeça. Ao se deparar com um, destrua o cérebro na primeira chance, com um objeto pesado. Tiros também valem, porém eles fazem barulho e atraem outros zumbis. Mantenha-se em movimento ou em locais com bons pontos de fuga e muitos mantimentos. Esteja sempre com sua arma à mão e use roupas práticas. Essas e outras dicas foram popularizadas pelo livro O guia de sobrevivência a zumbis, do humorista Max Brooks (filho de Mel Brooks). Não sabemos de onde eles vêm. Seja por feitiçaria, ciência (vírus e radiação são sempre lembrados nas histórias) ou total au-sência de explicações, sabemos apenas que eles estão ao nosso redor. Enquanto devoramos histórias de zumbis como carne nova, o nosso planeta também é devorado pela poluição, exploração de recursos e conflitos geopolíticos que acarretam problemas puramente humanos, como a pobreza, falta de saúde, ignorância e... fome. Pelo visto, cada ser humano, no fim das contas, se reduz a um potencial zumbi.


Há uma cena em Seven, os sete crimes capitais (Se7en, David Fincher, EUA, 1995) em que o detetive William Sommerset (Morgan Freeman) janta na casa de seu colega mais jovem, o detetive David Mills (Brad Pitt), a convite de sua esposa Tracy, vivida por Gwyneth Paltrow. Nesse breve interlúdio entre um assassinato e outro, é oferecido um momento sedativo que é bastante enganador. No detalhe anódino ao filme, caracterizado por um jantar quase familiar, sobra uma atmosfera que reforça a textura abjeta que dá ao filme a sua tônica sombria e exagerada. Os personagens jantam rodeados por uma tristeza pálida, divertem-se com uma piada qualquer que denega a ‘imundice’ que se tornou a humanidade (e que é objetivo do filme expor), e comem para cumprir com um ritual socioafetivo, mais que para saciar suas fomes. Não há excitação pela comida, este prazer está condenado sempre-já pelo pecado da gula, o mesmo que marca o assassinato que abre o filme. Tracy, a bela garota que organiza o jantar, é como um resquício de luz que tenta impedir comicamente que a atmosfera fílmica sucumba de uma vez por todas à abjeção. Suas poucas interferências na narrativa caracterizam, portanto, um grito de socorro.

A aversão alimentar não caracteriza a forma que, de acordo com Julia Kristeva — psicanalista devotada aos estudos literários — melhor define a abjeção? “A repugnância, a náusea que me desvia do esgoto e do lixo”, afeto que é caracterizado por uma certa ambiguidade, já que me protege da ameaça ao mesmo tempo em que não elimina radicalmente o perigo, estabelecendo um limite tenso entre o mal-estar e sua insuportabilidade. O abjeto que significa exatamente a impossibilidade de se nomear um dado objeto, ou mesmo de encará-lo. E que, diferentemente do estranho como é definido por Freud (das unheimlich), não contém o menor resquício do familiar, ou seja, do que provoca estranhamento porque se baseia naquilo que é intimamente reconhecível.

O cinema oferece a possibilidade de visualizarmos a abjeção como nenhum outro meio. Ele permite que se impregne a imagem com toda uma plasticidade possível de sons da escatologia e da putrefação, ao mesmo tempo em que pode se utilizar de filtros,

por Frederico Antonio Cordeiro Feitoza

granulações e tons para reproduzir em si a ideia do afeto abjeto: “o poder sagrado do horror, a grande escuridão” para utilizarmos outras definições de Kristeva, mas também a outra faceta da religiosidade, da moral e dos códigos ideológicos que enfeitiçam as sociedades com uma noção perversa de purificação e limpeza. Assim como em Seven, outros filmes oferecem a textura abjeta, do início ao fim, sem que seja necessário explicitar a cada cena, pornograficamente, o mal que jaz sob a imundice. Obras repletas de momentos que detem uma função metonímica, ou seja, capazes de oferecer a significação do todo por uma parte que passa quase despercebida. Jacques Rancière, talvez o mais reconhecido nome nos estudos de estética hoje, vai dizer que a análise desses detalhes, muitas vezes considerados insignificantes, pode deter a chave para a compreensão de uma dimensão doentia do pensamento na própria materialidade sensível da obra. Detalhes que desvendam uma verdadeira odisseia que segue da “bela aparência estética e racional para o fundo obscuro e pático”. É o que observamos em filmes como O exorcista (The exorcist, William Friedkin, EUA, 1973), o qual oferece a tal fa-ceta abjeta da religiosidade. O que faz dessa obra uma experiência assustadora em sua totalidade não se resume ao horror e à escatologia explorados nas cenas de possessão de uma garotinha de treze anos, mas ao eco dessas cenas ao longo de todo o filme. O abjeto se comporta, também, de acordo com Julia Kristeva, como um definhamento em vida, o qual, no lugar de levar à morte, faz prosseguir essa própria vida aprisionada a um constante estado de putrefação. Nesse caso, não é apenas a pequena Reagan (Linda Blair), possessa por Satã, que definha sucumbida ao pus e


ao vômito (e que no final das contas é responsável pelos momentos de maior vi-gor e energia), mas todos aqueles que a rodeiam: a sua mãe (Ellen Burstyn), que adere ao longo do filme a um semblante póstraumático constante, e o padre Karras (Jason Miller), um psiquiatra jesuíta que, antes de encarar o demônio, pressente a sua sujeira na figura exemplarmente abjeta de um mendigo que lhe pede um “trocado” direto da sarjeta. Imagem que resume toda a atmosfera pesada e desesperançosa do filme.

Entretanto, nenhuma obra parece materializar tão consideravelmente a textura da abjeção no cinema quanto o recente O operário (The machnist, Brad Anderson, Espanha, 2003). No filme, acompanhamos o definhar de Trevor Reznik (Christian Bale), que sucumbe a uma psicose de culpa, inscrita no seu corpo por um processo selvagem de insônia e que o leva a desenvolver uma anorexia (somos levados a questionar se a magreza esquelética do corpo do ator não é parte de um retoque digital). Se no plano do conteúdo o desenrolar da narrativa chega a nomear a responsabilidade sobre a morte de uma criança como o objeto-culpa que faz deslanchar a psicose de Reznik, no seu plano formal, o que atribui ao filme uma atmosfera abjeta é o so-frimento que toma o seu lugar enquanto sujeito. A textura da imagem, suas cores, seu tom granulado e rasgado de negro complementa a putrefação de um corpo. O limite entre o fora e o dentro, entre o eu e outro, entre figura e fundo é atravessado por uma violenta subjetividade anoréxica. A imagem da comida é incompatível não somente ao corpo do per-

sona-gem, mas à imagem do filme em si: quando finalmente vemos o personagem devorar uma carcaça de frango, em uma cena emblemática, o que se sente, no lugar de alívio, é um forte sentimento de repulsa. George Bataille, pensador francês, consagrado pela discussão de temas como o erotismo e a transgressão, resume a abjeção como uma mera inabilidade de assumir com força suficiente um ato imperativo de exclusão das coisas imundas e mórbidas da vida. E não é isso exatamente o que acontece a Reznik, quando ele simplesmente não consegue encarar ou mesmo nomear (dadas as condições de sua memória) o fato que o transformou num morto-vivo que apodrece? Ao assumir a responsabilidade pelo passado, quando se percebe que era a culpa que fazia o seu corpo definhar, o estado de abjeção de Reznik é finalmente trocado por um sono calmo e feliz que dorme na prisão. É a própria Julia Kristeva quem diz que o único contrapeso possível à abjeção se dá por meio de um processo de frustração, desapontamento e esvaziamento. Uma solução dolorosa, mas eficiente.

Frederico Antonio Cordeiro Feitoza é Doutorando em Comunicação – UFPE _ fredericodenavarra@hotmail.com

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por German Ra e Raul Souza

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Germano Rabello é formado em jornalismo e escreve principalmente sobre música e HQ. Mas a arte é o que faz com mais entusiasmo. _germanra@gmail.com

Raul Souza é ilustrador, cartunista, quadrinista e animador. Faz parte do Estúdio Super Terra e atualmente trabalha no Estúdio Andaluz. _ raul.lebob@gmail.com

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