Literarte final

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Literatura Fantรกstica

Literarte

Marina Colasanti Rui de Oliveira Michael Ende

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Literarte

Seginda Capa

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Editorial

Literarte

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Editorial

Editorial A primeira edição da Literarte gira em torno da literatura fantástica. Apresentamos uma entrevista com Marina Colasanti, que é muito conhecida por seus mini contos fantásticos e que foi indicada ao esse ano ao prêmio Christian Andersen de literatura. Contamos também com relatos e rabiscos de Rui de Oliveira, um dos mais importantes ilustradores do Brasil.

Expediente Literate Editora Responsável Googolgildo Google Conteúdo

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Isabella Giordano Projeto Gráfico e Diagramação

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Sumรกrio Entrevista

Literarte

P.6 P.8 Com Marina Colasanti

Relatos e rabiscos de

Rui de Oliveira

P.10 Nos jardins da Literatura Fantรกstica

Canto Livre Lanรงamentos

Literacultura

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Michael Ende

Feminismo

na Literatura

L t


Entrevista

Letras Femininas Marina Colasanti fala sobre literatura, vida, amor e feminismo A escritora e artista plástica Marina Colasanti nasceu em Asmara (Eritréia), na África. Seguiu para a Itália e, desde 1948 mora no Brasil. Já escreveu 33 livros, entre ensaios, contos e obras infanto-juvenis. Em 1994 ganhou dois prêmios Jabuti com os livros Rota de colisão, e Ana Z, aonde vai você?. A escritora também exerceu intensa atividade jornalística. Foi redatora do Caderno B e do Caderno Infantil, do Jornal do Brasil, de 1962 a 1973. Assinou seções nas revistas Senhor, Fatos&Fotos, Claudia, entre outras. Marina Colasanti esteve em Uberaba no dia 5 de abril para participar do projeto Tim Estado de Minas - Grandes Escritores, no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM). A escritora concedeu uma entrevista exclusiva ao repórter, gravada na manhã de 5 de abril no hotel onde estava hospedada, onde falou sobre literatura, vida, amor e feminismo.

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O livro Contos de amor rasgado é repleto de charadas. Por exemplo: um abriu a cabeça com uma chave; outra catava piolho na filha e puxou, por um fio de cabelo, um pensamento; outro esperou que a mulher ficasse tão gorda quanto uma paisagem. Você decifra todos esses enigmas?

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Colasanti: Não. Não e sim. Ou seja, livros como esse — eu tenho três livros de minicontos — são livros temáticos, eu escolho um tema antes. E eu estudo o tema para estabelecer quais são os elementos construtivos: o que segura esse tema em pé?, o que constitui esse tema? Então, eu faço uma pauta desenvolvendo esses temas. E os contos são escritos a partir disso e atendendo a isso, porque meu intuito nesses três livros era de que eles tivessem — o leitor não percebe isso de maneira consciente, e nem tem que perceber — mas eu queria que eles tivessem uma unidade. Que eles não fossem

apenas contos mínimos soltos no espaço, mas sim que fossem se somando, como se ao término do livro o leitor tivesse que ter uma sensação de completude, como se tivesse lido um romance, uma história inteira. Um se acrescentando ao outro. Eu percebi uma estratégia de sedução em seu texto. Em alguns casos, parece que, nesses enigmas, você arrisca um sentido, sugere uma analogia, “joga verde” esperando reações do leitor: ou que ele invente uma solução e sinta que matou a charada, ou então se renda e se deixe seduzir pelo mistério. Você faz isso?


Entrevista Oscar Wilde uma vez disse: hoje trabalhei exaustivamente no texto: fiquei a manhã inteira para colocar uma vírgula, e a tarde inteira para tirá-la. É assim com você também? Colasanti: Sem dúvida. Eu gosto muito de textos curtos. Não sou romancista por causa disso. E nos minicontos, às vezes, eu vou tirando tudo, vou tirando tudo que é supérfluo, tudo que é supérfluo, tira, tira, tira, estica, estica, estica… aí de repente olho: ai meu Deus, está esticado demais! Está seco demais! Agora eu tenho que pingar um pouquinho de água, tenho que inchar um pouco de volta. Porque tem um ponto certo; é que nem bolo, tem um ponto em que ele tem que ficar penetrável — ele não pode ser impenetrável senão ele rejeita o leitor. Se você insiste muito na depuração, ele pode ficar impenetrável demais. Aí tem que abrir. Foto: Googolgildo Google

Colasanti: Claro. Porque também é uma exigência do miniconto. Achar que o miniconto é apenas um conto encolhido, isso é um equívoco fatal. Aí você tem um produto de terceira classe. O miniconto funciona justamente quando dá o pulo do gato! Você vem vindo distraído e de repente ele te pega e… TCHUM! Vira de cabeça pra baixo a situação. Te põe em desconforto, descompõe, desfaz a organização na qual você vinha vindo. E essa desorganização ou te propõe uma nova forma de organização, ou justifica o princípio — quando você chega no final e dá aquele salto, você entende porque aquilo estava lá no começo. O que é fascinante no miniconto.

Por: André Azevedo da Fonseca www.revelacaoonline.uniube. br/ portfolio/0514col1.html

Esse “pulo do gato” é uma exigência chave do miniconto?

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Colasanti: São uma série de exigências. Porque também há uma exigência de forma, muito grande. Nada pode sobrar, nada pode faltar. Se faltar ele fica muito hermético; se sobrar, ele borra. Então é um texto muito exigente.

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Ilustrarte

Desenhar por desenhar Reflexão de Rui de Oliveira sobre o processo de criação Tenho sempre em minha bolsa, ou pasta, um bloco onde anoto e desenho o que no momento me ocorre. Verdadeiros diários em forma de imagens, cartas visuais endereçadas a mim mesmo. Uma espécie de inventário visual, esfinges gráficas, com a função única de expressar a parte de um todo. Todo que não sei qual seja ou será.

Diego quando menino, muitos e muitos anos antes de ele nascer... Acredito que o desenho se origina antes do desenho. Nenhum misticismo nisso. Na verdade, desenhamos a expectativa do ver, ou seja, muito antes de criar uma imagem, esta imagem já existia. Vemos aquilo que sonhamos e queremos ver, pouco importa o que estamos vendo.

Jamais tive a intenção de que estes desenhos estivessem inseridos em uma objetividade, coerência ou em qualquer projeto. Cada página é uma página, cada desenho é só um desenho. Só e coletivo, ao mesmo tempo. O que sempre quis é que eles expressassem unicamente o prazer de desenhar, algo compulsivo em minha vida. Enfim, o desenho pelo desenho.

Portanto, apesar de ter afirmado há pouco que estes “moleskines” não tinham nenhuma função além do prazer de desenhar, em contrapartida a isto, a realidade nos mostra uma outra face, uma outra constatação.

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Foto: Bruno Saraivat

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Muitos dos livros que ilustrei, o estilo que utilizei já aparecia, muitos anos antes, nestes blocos. Fiz um retrato de meu filho

Acredito que para exercer com plenitude a criação de uma imagem objetiva, seja para um cartaz, para uma ilustração, ou mesmo no projeto de uma marca, acho importante que este artista esteja habituado, de forma diária, com a imagem subjetiva. A explicação se origina de sua ausência. Ou seja, os cadernos de desenho são o relicário da não explicação. A terra fértil para a objetividade. A astronomia surgiu da astrologia, a química da alquimia. Tudo o que vou fazer em termos de imagem eu já fiz, ou estou rabiscando em meus “moleskines”.


Ilustrarte Sobrer o artista Rui de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro. Estudou pintura no Museu de Arte Moderna desta cidade, artes gráficas na Escola de Belas Artes da UFRJ e, durante 6 anos ilustração na Moholy-Nagy University of Art and Design, em Budapeste.Estudou também cinema de animação no estúdio húngaro Pannónia Film. Foi Diretor de Arte da TV-Globo e da TVEducativa atual TV-Brasil. Entre suas aberturas e vinhetas destacam-se as criadas para a primeira versão da novela Sítio do Pica-Pau Amarelo e a reformulação do vídeo-grafismo da TV-E. Já ilustrou mais de 130 livros e projetou dezenas de capas para as principais editoras de literatura infanto-juvenil brasileiras, e é autor de seis filmes de animação, tendo recebido muitos prêmios por seu trabalho com animador e ilustrador. Entre eles por 4 vezes o Prêmio Jabuti de ilustração. Recebeu em 2006 o prêmio de literatura infanto-juvenil da Academia Brasileira de Letras com o seu livro Cartas Lunares. Já fez diversas exposições individuais no Brasil e no exterior, e foi indicado pela FNLIJ ao prêmio Hans Christian Andersen em 2006 e 2008 patrocinado pelo International Board on Books for Young People -IBBY na categoria ilustração. Rui de Oliveira é professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionou durante 30 anos no curso de Comunicação Visual Design da Escola de Belas Artes.Fez seu mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Por Rui de Oliveira

http://www.ruideoliveira.com.br/ pt-br/biografia/

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Literatura Fantástica

Pelos jardins da fantasia Uma introdução à literatura fantástica

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A Literatura é um fenômeno social/ cultural nascido de gêneros milenares, que permanecem vivos apesar da passagem dos séculos. Em geral cada civilização gerou os mitos ligados às crenças de cada povo e às suas maneiras de ver o mundo. Entrelaçados com o desenvolvimento da linguagem e da filosofia, as narrativas mitológicas constituem-se em relatos sobre deuses, heróis e antepassados, estruturados em torno de arquétipos – modelos ideais que permanecem até hoje no inconsciente humano, segundo Carl Gustav Jung. Com o passar do tempo, as narrativas religiosas que constituíam os mitos perderam seu valor sagrado para nós, mas permaneceram nas narrativas profanas que continuaram na boca do povo, mudando de forma, emigrando para novas terras, revestindo-se de novas roupagens e adereços. Assim nasceram os relatos que hoje chamamos contos de fadas, contos maravilhosos ou

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contos folclóricos; mora neles o que restou dos elementos dos mitos, depois que eles foram dessacralizados. E não existe obra literária antiga ou moderna, que não tenha raízes nessas narrativas ancestrais. Ora, mitos e contos folclóricos são a matériaprima do subgênero, pertencente aos gêneros romance e novela, que chamamos de Literatura Fantástica. Contudo, por um motivo ou outro, acabaram incluídas nesse amplo “rótulo” tendências tão distintas quanto o que chamamos de Literatura Gótica, de Horror, de Ficção Científica, de Fantasia. Esses subgêneros propiciaram ainda o surgimento de um outro sub-subgênero: o dos livros ligados aos RPGs (Role-Playing Games, jogos de interpretação em que o jogador representa um personagem, em ambientações características dos universos de fantasia), e que podem pertencer a três tipos: os livros-


Literatura Fantástica jogos (também chamados aventuras-solo), os complexos livros de regras para jogar, e as novelas elaboradas em torno de elementos de determinados sistemas de jogo. Vamos encontrar ainda o fantástico na Literatura Clássica, com elementos de mitologia presentes nas manifestações literárias Líricas e Épicas. E na Era Medieval na Europa testemunhamos o choque entre o pensamento Cristão e o Pagão, evidente nas canções, poemas trovadorescos e lais. Além disso, na Idade Média temos o nascimento dos romances viejos, que dariam origem ao romance cortês e às novelas de cavalaria. Nessas obras, embora arcaicas e hoje de difícil leitura, existe grande misticismo e certos elementos que reconhecemos com facilidade: heróis, feiticeiros, espectros, animais míticos, objetos mágicos, seres elementais (são estes os seres ligados aos quatro elementos, ar, água, terra, fogo – as ninfas, silfos, elfos, goblins…). Com o Renascimento, a partir do século XV, vemos na literatura a tentativa de se equilibrar o pensamento Cristão com a filosofia grecoromana; busca-se um humanismo que se sobreponha ao misticismo medieval. Apesar disso, aqueles mesmos elementos fantásticos permaneceram nesse período que gerou a Literatura chamada Clássica. Em Cervantes, Shakespeare, Camões, até Dante, ainda trombamos com seres mágicos, míticos, sobrenaturais. Seguindo para o período Pré-Romântico (entre 1700 e 1800) veremos a consagração da forma literária do romance, marcado ainda por novelas de cavalaria e romances picarescos medievais, repletos de aventuras heróicas. Diz Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos do Século XIX que o conto fantástico propriamente dito nasce da especulação filosófica entre os séculos XVIII e XIX. “Seu tema é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção, e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê – coisas extraordinárias que talvez

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Literatura Fantástica sejam alucinações projetadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora – é a essência da literatura fantástica, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de realidade inconciliáveis”. Ainda segundo Calvino, a literatura fantástica nasceu com o Romantismo alemão – é fácil fazer a ligação do povo alemão, também chamado Godo, ou Gótico, com o que hoje chamamos de novela gótica. O autor mais importante nessa vertente seria Hoffmann. Os autores ingleses também foram fundamentais no estabelecimento de uma literatura que privilegia a narrativa fantasiosa: Poe é considerado o mais influente de todos, embora alguns autores acreditem que a primeira novela de terror propriamente dita seja o Castelo de Otranto, de Horace Walpole. Já na França teremos até autores como Balzac também se dedicando à narrativa fantástica. Foi ainda o francês Galland quem traduziu As 1001 Noites, trazendo à Europa o sabor das narrativas árabes, repletas de djins e magos.

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Na imensa lista de nomes ligados ao Romantismo, é difícil na verdade encontrar quem não tenha escrito ao menos alguns contos em que imperam o maravilhoso, o extraordinário, o fantasmagórico. Em alguns textos nos defrontamos tanto com seres míticos e fantasmas, quanto com cientistas insanos e detetives inusitados. Nessa época, aliás, é que irão nascer esses vários “compartimentos” que até então estavam misturados, porém separar-se-iam no futuro, embora acabassem incluídos na mesma “prateleira”, por assim dizer.

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• O romance de aventuras marítimas da época daria origem à ficção científica; de Daniel

Defoe a Jules Verne, passando por H.G.Wells, eles abririam o caminho para Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov… • O romance gótico em si – aventuras fantasmagóricas, urbanas e sinistras, que gerariam as novelas vampíricas, o gênero específico de Terror e até o universo Cyberpunk; aqui os ingleses foram mestres, com Mary Shelley, Robert Louis Stevenson e Bram Stoker, prenunciando autores como H. P. Lovecraft, Anne Rice, Stephen King… • O romance de mistério, que começa com Wilkie Collins e Edgard Alan Poe, avô do atual gênero policial. • O romance de imaginação – segundo a Profª Nelly Novaes Coelho, temos aqui obras em que a fantasia transfigura a realidade cotidiana; nesta vertente incluiríamos não apenas obras com estrutura de contos de fada, e os “mundos inventados” tão comuns hoje em dia, mas também o Realismo Mágico latino-americano. Neste caminho teremos autores tão diversos quanto Kafka, Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Márquez; e os ingleses e americanos que deixaram sua marca ao criar não apenas alguns contos e seus personagens, porém universos inteiros: J.R.R. Tolkien, C.S.Lewis, Ursula Le Guin, Marion Zimmer Bradley, Diana Wynne Jones, Frank Herbert (que, apesar de ser rotulado como autor de ficção científica, também transita por aqui). Acrescentaríamos ainda uma categoria satírica, reunindo os autores que satirizam esses universos e tecem novos clássicos, assim como Cervantes gerou o que talvez seja o maior de todos os clássicos ao satirizar o Romance de Cavalaria… Temos então obras como O Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams ou A Cor da Magia e suas seqüências, por Terry Pratchett.


Literatura Fantástica em Nárnia é preciso conformar-se à ética de um Leão; e que em muitos mundos não se deve zombar de velhos estranhos que levam cajados cheios de inscrições rúnicas, ou levar para casa pedras estranhas que podem ser ovos de dragões…

Ilustração: Tasseomancy

O mais fantástico da Literatura Fantástica, porém, é que ela se mantém mais forte que nunca com o passar dos anos, dando origem a inúmeros filmes, peças de teatro e seriados, apesar de ser considerada pela crítica especializada um gênero menor… Quanto a nós, leitores, continuamos abdicando de nossos Mundos Primários e mergulhando com o maior prazer possível nesses Mundos Secundários em que, talvez, encontremos não apenas a fantasia, mas a nós mesmos.

Mais uma vez recorrendo a Calvino, encontramos uma análise de Tzvetan Todorov, afirmando que na verdade o que distingue o “fantástico” narrativo é uma perplexidade diante de um fato inacreditável, a hesitação entre uma explicação racional e realista e o acatamento do sobrenatural.

Por Rosana Rios http://www.valinor. com.br/8283

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Tolkien solucionou esse dualismo entre realidade e não-realidade criando os conceitos de Mundo Primário e Mundo Secundário; ou seja, o mundo em que vivemos é o Primário, mas o autor cria um universo Secundário derivado dele, em que o leitor penetra ao fruir da Literatura; e é nesse que tudo é possível, desde que respeitadas as leis particulares daquele universo. Ao ler fantasia, concordamos, então, em abdicar de nossos conceitos e preconceitos civilizados e embarcamos na leitura, conscientes de que na Terra-média, poderemos virar a estrada e ser atacados por um bando de orcs; que numa Londres Gótica ou na Transilvânia pode haver sombras ameaçadores em cada esquina; que

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Literacultura

Pintura: Alguém tá lendo isso?

Independentemente sobre o papel O feminismo na literatura

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Depois de ser bruxa, feiticeira, deusa, musa e guerreira, a mulher surge, na literatura, sem máscara, negando o patriarcalismo, defendendo os seus direitos e a liberdade de acção, para além da censura e no encontro da criação e do prazer. Esta mulher reflecte o feminismo em diferentes obras, procurando criar consciência ou expressando as posturas deste movimento.

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Ao longo dos séculos a mulher viveu dominada pelo homem, sem direito a pensar, ou actuar por si própria. Porém, “durante a Segunda Guerra, a maciça inserção das mulheres no mercado de trabalho estabeleceu um novo campo de possibilidades para aquela que antes era vista como a ‘rainha do lar’. A partir desse processo de relativa emancipação, muitas delas reivindicaram novos campos de conquista nunca antes imaginados”, afirma o mestre em História, Rainer Sousa. O movimento feminista questionou a

inferioridade feminina, as relações de poder nas esferas pública e privada e o instinto maternal como algo inerente ao feminino. Paralelamente a este movimento, segundo Rainer Sousa, no meio intelectual, surge a difusão de livros de autoras que se interessavam em desconstruir a imagem previamente construída da mulher. O feminismo vê-se reflectido em diferentes obras a partir de uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade. Vários autores transportam-nos, então, para uma reflexão crítica relativamente a uma sociedade marcada de costumes e tradições históricas, onde a mulher tem um papel secundário. Já na “sua pré-história, a literatura feminista conquistou um marco poderoso com a publicação, em 1792, da obra A vindication of the rights of woman [A reivindicação dos direitos da mulher], escrita por Mary Wollstonecraft”, diz a Professora Doutor Adjunto II da Universidade de Caxias do Sul,


Literacultura do presente está no facto de que a primeira Cecil Jeanine Albert Zinani. A autora defendia é passiva, submissa, oprimida e precisa de o direito das mulheres à educação e exigia a ajuda, está presa num pequeno espaço, físico independência económica para as mulheres, e psicológico (sofre o controlo do pai e depois como forma de emancipação pessoal e de do marido). Enquanto a ‘nova’ heroína é respeito pela igualdade. “A obra defende que a consciente dos seus deveres, direitos e desejos e mulher deve ter todos os direitos que o homem está pronta para lutar por eles”, tem, inclusive o de propriedade e liberdade de expressão, O movimento diz o estudante de jornalismo Luiz Guilherme Boneto. como também o direito à feminista queseducação. Para Wollstonecraft, não poderia haver progresso tionou a inferio- O feminismo foi essencial para que as mulheres assumissem social se a maior parte da ridade feminina, um papel de relevo na população continuasse destituída de direitos, estando as relações de sociedade. A mulher tornou-se leitora e escritora, divulgando a as mulheres, tal como os poder nas esfeimagem de uma mulher forte e escravos, incluídas entre as minorias dos destituídos e ras pública e pri- independente. Este movimento quebrou o silêncio de séculos oprimidos. Para resgatá-las vada e o instinto e tornou heroínas inúmeras do estado de subordinação em que se encontravam, era maternal como mulheres, mas até que ponto o herói é diferente da heroína? necessária uma reestruturação algo inerente ao Qual a necessidade deste da sociedade e uma regeneração movimento que transformou plena das relações sociais entre feminino. as possibilidades do sexo os sexos. Estava incluída nesse feminino? E qual a necessidade de divulgar pensamento a ideia de que elas deveriam ter a imagem de uma mulher com um papel representantes no Parlamento, ao invés de principal? serem governadas sem que lhes fosse permitida qualquer participação nas deliberações do Como afirma Luiz Guilherme Boneto, “quando governo”, explicam as graduadas em Letras/ se considera o acesso à aventura, o status Literatura Inglesa, Dignamara Pereira de do herói é privilegiado, enquanto a heroína Almeida Sousa e Daise Lilian Fonseca Dias. precisa de ultrapassar vários obstáculos para No início do século XX, destacou-se a produção alcançar os mesmos objectivos. O facto é que, a literatura, especialmente os contos literária e ensaística de Virginia Woolf, Um de fadas e o folclore, reflectem a vida real. O Tecto Todo o Seu, bem como O Segundo Sexo acesso feminino à aventura apresenta mais de Simone Beauvoir e A mística do feminino dificuldades”, tal como o acesso à igualdade de Betty Friedan. Estas obras e muitas outras social. difundiram a consciência entre os leitores e reflexões sobre o que é ser mulher.

Por Marisa Mourão http://reportersombra. com/2013/09/ independente-sobre-opapel-o-feminismo-naliteratura/

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No século XXI, chega, com uma nova produção literária, uma nova heroína, uma heroína diferente das heroínas do passado, com as características que inspiram as mulheres feministas. Hermione, uma das principais heroínas de Harry Potter, é inteligente, sensível e questionadora. “A sua inteligência ajuda Harry e Rony no seu caminho pela ‘aventura’, no entanto, ela mesma não toma parte nesse caminho. Ela é uma das principais heroínas modernas da literatura. A principal diferença entre a heroína do passado e uma heroína

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Canto Livre

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Um tecido negro e pesado, que perdia para cima e para os lados, na escuridão, pendia em dobras perpendiculares, as quais, movidas por imperceptíveis lufadas de vendo, ondulava de vez em quando para frente e para trás.

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Disseram-lhe que aquela era a cortina do palco e que assim que ela começasse a se levantar, ele deveria iniciar imediatamente sua dança. Haviam-lhe repetido com insistência que não se deixasse irritar com nada, pois de vez em quando pareceria que a platéia nada mais era, de ponta a ponta, que um abismo vazio e sombrio mas, vez por outra, pareceria também que se estava olhando para o tumulto de uma feira-livre, ou para uma rua movimentada, uma sala de aula ou um cemitério, mas tudo isso seria apenas alucinação. Resumindo: sem se preocupar com absolutamente nada, com qualquer impressão que tivesse, estivesse alguém assistindo-o ou não, ele deveria começar a dançar seu solo, assim que a cortina subisse. Portanto, lá estava ele, o fêmur e canela cruzados, a mão direita caída, a esquerda repousada na cintura, esperando o começo. De vez em vez, se o cansaço o forçava, ele trocava essa posição, transformando-se, por assim dizer, no contrário de sua imagem no espelho. No entanto, a cortina não se levantava. A pouca luz que vinha de algum lugar no alto, estava concentrada sobre ele. No entanto, era tão fraca que ele não conseguia ver os próprios pés. O círculo de luminosidade que o cercava, deixava que ele reconhecesse apenas o pesado e negro tecido à sua frente. Esse era seu único ponto de referência, pois o palco jazia em completa escuridão e era extenso como uma planície. Ele se perguntou se, por acaso, haveria algum bastidor, e o que representaria. Não seria importante para sua dança, mas ele gostaria de saber em que cenografia o veriam. Num salão de festas? Numa paisagem? Com certeza, a iluminação também mudaria quando a cortina fosse levantada. Nesse momento, essa pergunta também seria respondida. Lá estava ele, o fêmur e canela cruzados, a mão esquerda caída, a direita negligentemente apoiada na cintura. Vez por outra, quando o cansaço o forçava, ele mudava de posição, dessa vez porém transformando-se no contrário de sua imagem no espelho refletida num espelho. Ele não podia se distrair, pois a cortina poderia ser levantada a qualquer momento, quando ele deveria estar presente de corpo e alma. Sua dança começava com um potente toque de timbales e um furioso rodopio de saltos. Se ele perdesse a entrada, tudo iria por água abaixo, nunca mais ele alcançaria o compasso perdido. Ele tornou a percorrer em pensamento todos os passos, as piruetas, entreatos, jettées e arabesques. (termos técnicos franceses para designar passos de balé clássico) Ficou satisfeito, tinha tudo presente em sua mente. Tinha certeza de que iria bem. Já ouvia os aplausos explodirem como os barulhos do mar. Ele também recordou-se do remercier (termo técnico de origem francesa que, empregado na balé, no teatro, ópera ou recital, indica a flexão do corpo em agradecimento aos aplaus), pois ele era importante. Quem o fizesse bem poderia assim prolongar consideravelmente os aplausos. Enquanto pensava nisso tudo, continuava ali, esperando, o fêmur e canela cruzados, a mão direita caída, a esquerda recostada de leve na cintura.


Canto Livre As vezes, quando o cansaço crescente o forçava, ele mudava a postura, colocando-se novamente na posição contrária à da imagem no espelho da sua imagem do espelho refletida num espelho. A cortina ainda não havia sido levantada e ele perguntava-se sobre a possível causa. Será que haviam esquecido que ele já se encontrava ali no palco, pronto para começar? Será que o estariam procurando no camarim, na cantina do teatro ou, quem sabe, até mesmo em casa, desesperadamente? Será que ele deveria fazer-se notar na escuridão do palco, gritando ou acenando? Ou será que não estariam à sua procura, mas a apresentação havia, isso sim, sido postergada por alguma razão qualquer? Será que ela havia sido suspensa sem que lhe tivessem feito uma comunicação? Talvez todos já tivessem ido embora, sem se lembrar de que ele encontrava-se ali, esperando sua entrada em cena. Havia quanto tempo ele estava ali? Afinal de contas, quem o destinara para ali? Quem lhe havia dito que aquela era a cortina e que, assim que fosse levantada, ele deveria começar a dançar? Ele começou a calcular quantas vezes se havia transformado em sua imagem no espelho e na imagem do espelho de sua imagem no espelho, mas imediatamente afastou de si esse tipo de reflexão, para não ser surpreendido pelo súbito levantar da cortina e, confundido, sem ter entrado em sua parte, ficar olhando desamparado para o público. Não, ele tinha de continuar tranqüilo e concentrado! Mas a cortina não se mexia. Pouco a pouco sua excitação inicial de felicidade foi tornando-se uma profunda irritação. Ele tinha a sensação de estar sendo vexado. Preferiria sair correndo do palco para ir se queixar aos gritos em algum lugar, atirando no rosto de alguém todo seu desapontamento, toda sua raiva. Mas não sabia ao certo para onde deveria correr. O pouco que via à sua frente, a cortina, era sua única orientação. Se saísse desse lugar, ficaria andando às apalpadelas e, infalivelmente, ficaria desorientado. E também podia muito bem acontecer de a cortina ser levantada nesse exato momento, e soar as batidas dos timbales. Então ele estaria no lugar errado, as mãos esticadas para a frente, qual mãos de cego, possivelmente de costas para o público. Impossível! Só de imaginar uma tal situação, ele ficou quente de vergonha. Não, não: ele tinha mesmo de ficar ali onde se encontrava, sentindo-se bem ou mal, e esperar para ver quando – e se – lhe dariam algum sinal. Portanto, ele continuou, o fêmur e canela cruzados, a mão esquerda caída frouxamente, a direita apoiada pesadamente na cintura. De tempos em tempos, quando o cansaço o forçava, ele mudava a pose, transformando-se sabe-se lá por qual enésima vez em sua imagem no espelho. Num dado momento, ele perdeu a esperança de que a cortina fosse ser aberta alguma vez, mas no mesmo instante ele soube que não poderia sair de seu lugar, já que, mesmo indo contra todas as expectativas, não se podia excluir a possibilidade de que ela se abrisse. Ele já havia desistido de ter esperanças ou de se irritar. Só podia ficar ali onde estava, acontecesse o que acontecesse, ou não acontecesse. Já não se importava com sua apresentação, se esta seria um sucesso ou um fiasco, ou mesmo se iria ter lugar. E posto que sua dança já não significava mais nada para ele, foi esquecendo-se uns após os outros de todos os passos e saltos. No decorrer da espera, ele chegou até mesmo a esquecer o que estava esperando. Mas continuou parado, fêmur e canela cruzados, diante dele o pesado pano negro que se perdia para cima e para os lados, na escuridão.

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Autor: Michael Ende Selecionado do livro “O espelho no espelho”

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Lançamentos

A Segunda Pátria Miguel Sanches Neto

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas resolve se tornar um aliado do Terceiro Reich. No cenário alternativo criado por Miguel Sanches Neto, o país se alinha ao Eixo e, como parte do acordo, é estabelecido que os estados do sul, com grande presença de descendentes de alemães, podem pôr em prática os princípios do nazismo, como o racismo, o antissemitismo e a eugenia. Editora Intrínseca

Nuvens de Ketchup

Annabel Pitcher

Indicado ao prêmio Edgar Allan Poe na categoria juvenil, Nuvens de ketchup é o segundo romance da inglesa Annabel Pitcher, autora do também premiado Minha irmã mora numa prateleira. A trama gira em torno da jovem Zoe, que narra, por meio de cartas enviadas a um prisioneiro condenado à morte, seu dia a dia com a família, seus envolvimentos românticos e um segredo sombrio que ela não tem coragem de contar a mais ninguém. Editora Rocco

Selva de Gafanhotos

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Andrew Smith

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Selva de Gafanhotos - Na pequena cidade de Ealing, Iowa, Austin e seu melhor amigo, Robby, libertam acidentalmente um exército incontrolável. São louva-adeus de um metro e oitenta de altura, completamente tarados e famintos. Essa é a verdade. Essa é a história. É o fim do mundo e ninguém sabe o que fazer. Editora Intrínseca


Literarte

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Literarte

Literacultura

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