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8. Caos

Artaud recorre com certa frequência aos termos caos e cosmos. Ele compreende estes termos num sentido genérico, como ordem e desordem. Mas em meio a suas concepções podemos ir além, num estudo que aborde caos e cosmos de forma mais profunda. Mircea Eliade, importante cientista das religiões, em seu livro O Sagrado e o Profano (2001), destacou estas duas formas, sagrado e profano, como distintas formas de experiência, como duas situações existenciais que expressam diferentes maneiras de ser no Mundo. Essas duas formas existenciais nos permitem compreender as distinções entre Caos e Cosmos, e a negação ou afirmação de Artaud sobre essas situações. Na experiência profana, afirma Eliade, espaço e tempo são homogêneos e neutros, não havendo neles nenhuma rotura que indique diferenças de qualidade entre as partes. No tempo e no espaço profano não existe referência ou orientação, inexistindo estruturas ou consistência, sendo ambos, portanto, amorfos.

Por outro lado, Eliade afirma que, na dimensão sagrada, o espaço e o tempo são heterogêneos: eles apresentam roturas, quebras, existindo porções qualitativamente diferentes umas das outras. Há, portanto, um espaço e um tempo “fortes”, significativos, que estabelecem, pela experiência vivida, o único mundo que realmente existe. Essa diferença de “força” se define a partir da manifestação do sagrado, a epifania. Conforme Eliade, é a manifestação do sagrado que funda ontologicamente o mundo, atribuindo-lhe forma e sentido. É na quebra do espaço e do tempo profanos que se torna possível a constituição do Mundo/Cosmos, pois é a manifestação do sagrado que santifica e recorta uma determinada zona desse espaço e tempo profanos.

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Ismael Scheffler

O Cosmos é justamente o Mundo fundado, carregado de conteúdo e significação, orientado, organizado, possuído e consagrado previamente, que fixa os limites e estabelece a ordem cósmica. O Cosmos surge a partir do Caos mediante uma epifania que transfigura o lugar desta irrupção do sagrado. Ou seja, o mundo se torna Mundo/Cosmos e à medida que o transcendente se revela. A recriação do mundo renova a vida, a existência. Para Eliade (2001), “uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo.” (p. 44).

É no mundo fundado e orientado que o ser humano pode se instalar. E é nesse ato de transformação do Caos em Cosmo que se repete a cosmogonia. “O que deve tornar-se ‘o nosso mundo’, deve ser ‘criado’ previamente, e toda criação tem um modelo exemplar: a Criação do Universo pelos deuses.” (Eliade, 2001, p. 34). O Caos consiste, então, da ausência de sentido, de significação, de identidade – pois é o Mundo, pela manifestação transcendente, que fornece a orientação.

Todo ser humano, por mais que se declare descrente de um poder transcendente, vivência experiências cosmogônicas, ou seja, experiências de renascimento, com maior ou menor intensidade, como experiências significativas que vivenciou, que lhe inspiram e reanimam, como algum lugar nostálgico da infância, ou uma música marcante. Pois, conforme Eliade (2001), “não se pode viver sem uma ‘abertura’ para o transcendente, em outras palavras, não se pode viver no ‘Caos’. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível.” (p. 36).

Ao olharmos para as propostas artaudianas, podemos reconhecer que o teatro para Artaud tem a função de transformar o caos em cosmos. Ele, por sua vez, vê a vida em sua atualidade como caótica, num estado de degenerescência, um período angustiante e catastrófico que precisa ser recriado através de um “turbilhão de vida que devore as trevas”. Logo, poderíamos dizer que seu mundo se encontra em Caos e a isso ele dá grande atenção. O teatro tem para ele a função de transformação: deve sacudir o

Artaud e o Teatro Sagrado

homem para que reencontre uma vida apaixonada, inteira, para ser um homem total. Porém o autor, a princípio, não nega o Caos. Pelo contrário, quer evidenciá-lo, e isso está presente em seus escritos constantemente, através das imagens que evoca, como a peste, a destruição, a violência, a convulsão, a anarquia, o crime, o abscesso, a perturbação, bem como nas propostas que apresenta para a cena, no uso de ruídos insuportáveis, objetos com formas e destinação desconhecidos, gestos impulsivos, a sobreposição de imagens. O Caos, além de ser onde o mundo se encontra, é para Artaud também a possibilidade de solução. “Se o teatro, como a peste, é uma epidemia, esta é salvadora, na medida em que provoca uma crise nas coletividades que só podem reencontrar seu equilíbrio após uma destruição.” (Felício, 1996, p. 88). O teatro é buscado e assumido como o caminho fundamental para a instalação do Cosmos. Questionar a linguagem e a realidade é se dedicar à desestruturação, é propor um conflito que desestabilize o mundo e remeta a outro distante e esquecido, desorganizado segundo os padrões da razão – uma dimensão que considera o irracional como elemento central. Transgredir os limites é evocar o Caos.

Se o mundo é caótico, poderíamos afirmar que, para Artaud, é preciso criar o Caos dentro do Caos, para que nele possa haver a morte e o renascimento. É preciso desestruturar a desestrutura, matar a morte. Pois “a cada final, a cada escatologia segue sempre uma cosmogonia.” (Nader, 1997, p. 181). Apregoar o Caos é, assim, uma exigência para o Cosmos, como afirma Eliade, em seu livro Mito e realidade:

Para que algo de verdadeiramente novo possa ter início, é preciso que os restos e as ruínas do velho ciclo sejam completamente destruídos. Em outros termos, para a obtenção de um começo absoluto, o fim do Mundo deve ser radical. A escatologia é apenas a prefiguração de uma cosmogonia do futuro. Mas toda escatologia insiste em um fato: que a Nova Criação não pode ter lugar antes que este

Ismael Scheffler

mundo seja definitivamente abolido. Não se trata mais de regenerar o que degenerou – mas de destruir o velho mundo a fim de poder recriá-lo in toto. A obsessão da beatitude dos primórdios exige a aniquilação de tudo o que existiu e que, portanto, degenerou após a criação do Mundo: é a única possibilidade de restaurar a perfeição inicial. (Eliade, 1998, p. 51).

Artaud não fixa os limites, não estabelece metodologias e técnicas. Artaud não funda um mundo teatral próprio, não realiza, de fato, materialmente a criação – ele permanece na desordem cósmica, com propostas caóticas, mas que visam a instalação de um novo Mundo. Como afirmou a pesquisadora Vera Lúcia Felício (1996): “O Teatro da Crueldade é um teatro da ‘ambivalência’: a ilusão aí é verdadeira, há uma destruição construtiva e uma desordem ordenada. Rigor e anarquia misturados fazem do Teatro da Crueldade a ‘gênese da criação’, o espaço onde se dão as antinomias, fontes da vida.” (p. 86).

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