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UM ESPETÁCULO CADA VEZ MAIS DIVERSIFICADO
UM ESPETÁCULO CADA VEZ MAIS DIVERSIFICADO
O circo estava presente nas várias festividades do período, procurando sempre estabelecer um roteiro que coincidisse com as festas. Martha Abreu, ao analisar a Festa do Divino na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1830 a 1900, fornece importantes informações sobre a presença circense no evento. Quando aborda o tema das solicitações de autorização para se armarem barracas no campo da Aclamação (posteriormente campo de Santana), para a Festa do Divino nas festas da coroação de D. Pedro II, em 1841, encontra um pedido de João Bernabó, que “anunciava exercícios equestres, dança de corda tesa, jogos chineses e até uma pantomima jocosa, intitulada O amante protegido pelo mágico”88. Em propaganda publicada no Jornal do Commercio, ele acrescentava que apresentaria uma “companhia de teatro, ginástica e equestre em um anfiteatro”. Pela descrição, observa-se a mistura de ginástica e teatro, que estava presente nos grupos que migraram para a América Latina. A referência a um anfiteatro (localizado no campo de São Cristóvão) sugere um espaço que, provavelmente, era constituído de edifícios usados para vários tipos de apresentação artística – teatros, concertos, palestras. Construção circular ou oval, ao ar livre ou não, no seu interior dispunha de degraus usados como assento, em torno de um palco que deveria ter junto a ele uma arena, o que faz lembrar os anfiteatros europeus, também construídos para circos, em particular o Amphitheater of Arts, de Astley, e posteriormente o de Hughes.
Os diversos circos que já realizavam turnês pelo Rio de Janeiro, no início do século XIX, passando principalmente por cidades como Buenos Aires e Montevidéu, frequentemente armavam seus anfiteatros ou barracas ao lado das habituais barracas de comidas, bebidas e bailes das festas religiosas e patrióticas desses países89. Entretanto, como já se viu, os registros dos artistas vão de fato começar a aparecer nos anos 1820. Talvez por isso a autora afirme que vários divertimentos estavam invadindo a cidade em diversos outros locais e períodos do ano. As apresentações dos circos de cavalinhos ocorriam não só num espaço identificado como tal, pois vários outros artistas não vistos como circenses trabalhavam em palcos e tablados diversos, utilizando-se do que se poderia conceituar de um linguajar circense.
Entre as várias barracas que se apresentavam na Festa do Divino, em 1846, o viajante Thomas Ewbank destacou uma que se “denominava ‘teatro de bom-gosto’, onde se apresentavam também artistas italianos e franceses e muitas outras atrações: ‘o famoso cão do norte’ […] mágicas […], acrobacias, elevação de pesos e estátuas vivas”, além das atividades teatrais90. A progra-
mação dessa barraca continha as mesmas atividades que as companhias circenses apresentavam, apesar de não fazer referência a circo. Acontece que, durante todo o século XIX, os limites entre os espaços e as atividades artísticas não eram tão definidos. Muitas apresentações nos teatros, que se queria fossem de elite, ou naqueles que apresentavam os gêneros de music hall, os cafés-concertos e os cabarés, eram espetáculos de variedades que continham números já identificados como circenses propriamente ditos. Vale lembrar que muitos artistas europeus que fizeram parte da formação do circo trabalhavam nos diversos teatros das principais cidades da Europa e, mesmo depois que se consolidou o espetáculo circense, o intercâmbio permaneceu. Na prática, artistas das várias áreas ocupavam os mesmos espaços e atraíam o mesmo público; não havia como negar a contemporaneidade entre o espetáculo circense e as outras produções artísticas, em particular as teatrais e as musicais, e o quanto o linguajar e a prática circenses estavam presentes nas atividades de outros artistas “não circenses”. O próprio Joaquim Duarte Teles, dono da Barraca das Três Cidras do Amor, na Festa do Divino, em 1851, apresentava-se como um fazedor de mágicas, “engolindo fogo e espadas e representando comédias”. O anúncio publicado no jornal dizia que a companhia estava bem ensaiada “nos seus trabalhos ginásticos, música e lindos dramas ornados de cantoria e sobretudo o interessante teatrinho de bonecos, com cenas jocosas e honestas”91 .
Embora a maioria de artistas e diretores das companhias, naquele período, fosse composta de estrangeiros, como se viu até aqui, pode-se afirmar que a presença de brasileiros que se incorporaram aos circos já era bem marcante. Aliás, na própria companhia dirigida pelo sr. Bernabó, em um benefício anunciado no anfiteatro do campo de São Cristóvão promovido por F. G. Maigre Restier, constava no programa um artista identificado como “Hércules Brasileiro”. Não é demais supor que essa companhia tivesse artistas brasileiros brancos e negros trabalhando em seus espetáculos. Desde o início do século XIX, sabe-se que alguns diretores e artistas de circo compravam ou alugavam negros e mulatos escravos, que faziam parte do quadro dos artistas da companhia. Nesse sentido, esse espetáculo de benefício, que seria realizado pela companhia com a presença de um brasileiro e tinha a intenção de arrecadar fundos para a liberdade de um escravo, pode ser visto como resultado da interação dos circenses estrangeiros, como Martha Abreu sugere, com a cidade, suas diversões, crenças e lutas. Havia, assim, uma influência mútua dos próprios “brasileiros”, que, com suas diversas crenças, lutas e cores, já faziam parte da rotina do picadeiro havia algum tempo.
O espetáculo promovido pelo mesmo F. G. Maigre Restier, no Anfiteatro, e desempenhado pela companhia ginástica e equestre de Bernabó, tinha como objetivo reverter a renda em benefício da “liberdade de Florentino, homem de cor, escravo do capitão J. M. de Menezes”. Com um programa repleto de exercícios equestres, forças musculares, “cena do cossaco guerreiro”, gladiadores, volteios aéreos pelo palhaço “procedidos de algumas passagens jocosas”, o “infeliz” beneficiado, “cuja liberdade” dependia “da proteção do Público”, agradecia, esperando que fosse o dia “de sua felicidade”, não perdendo a ocasião de “louvar a generosidade de tantas pessoas distintas, que por ele se interessaram, compadecidas de sua infeliz sorte”92. Talvez, para o público da época, deparar-se com um espetáculo feito para livrar um escravo da “‘atrasada’ instituição que começava a ser duramente condenada nos principais centros da civilização europeia”, sendo realizado por essa mistura de estrangeiros e brasileiros livres e escravos, em um picadeiro circense (porque em outros espaços isso já ocorria com certa frequência) não fosse totalmente novo.
A contemporaneidade do espetáculo circense não se dava apenas com relação à questão artística, mas também com relação aos temas presentes no cotidiano social do país e de homens e mulheres que o vivenciavam. O intercâmbio com o espetáculo teatral e os ritmos permitia que Joaquim Teles, em sua Barraca das Três Cidras do Amor, realizasse a variedade que os próprios circenses já apresentavam no picadeiro, assim como nas salas dos teatros de music halls e de vaudevilles, que também misturavam a música, a dança, o circo e os sainetes cômicos.
Os locais de exibição, o espetáculo e os artistas se misturavam a ponto de um circo de origem francesa, o Hénault, quando de sua estreia no Teatro de San Felipe y Santiago de Montevidéu, em 1856, advertir ao “ilustrado público da culta capital” que as funções eram “um tanto diferentes” das exibidas nos circos com que o público estava acostumado. Está claro que se tratava de um recurso de propaganda, tendo em vista que a cidade já havia recebido várias outras companhias equestres em seus teatros desde o início do século XIX. Entretanto, chama a atenção na advertência, mesmo considerando a utilização de recursos propagandísticos, que as funções eram diferentes pois as tinham acertado “conforme às já executadas ‘nos teatros do Brasil, Chile e Buenos Aires’”93 .
Apesar dos problemas que essa mistura de artistas e gêneros provocava na época entre intelectuais e letrados, era sucesso total de público. E se dava tanto nos palcos pensados para serem usados por artistas de “gabarito” e para