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ERMINIA SILVA E DANIEL DE CARVALHO LOPES
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Ao “pegarmos na mão” dos que participam dos processos de construção das artes do circo – em qualquer período histórico – e com eles acompanharmos a diversidade de produção dos movimentos da vida e dos modos que se constituem, reconhecemos a multiplicidade e a multidão que habita cada fazer artístico, cada território, sempre atravessado e transversalizado por tudo o que está acontecendo nos inúmeros encontros, inúmeras formas, narrativas, memórias e disputas.
Os atravessamentos e as afecções na diversidade de se fazer artista circense, e Benjamim de Oliveira em particular, colocam em xeque as várias tentativas de compartimentalizar toda a multiplicidade de trocas de saberes que compõem a constituição desses artistas e das diferentes maneiras de produzirem o espetáculo circense. Os corpos artísticos sempre foram rizomáticos e realizam antropofagias nos encontros com os variados processos de formação, com os artistas e com os diferentes públicos, cidades e culturas.
O processo de constituição da teatralidade circense sempre esteve em sintonia com o que se produzia de mais recente, sempre contemporâneo ao seu tempo. Atualmente vemos com mais amplitude essa permanente relação de diálogo das artes circenses com as mais diversificadas estéticas, tecnologias, militâncias artísticas/sociais e produções culturais. Se de “mãos dadas” com Benjamim de Oliveira e uma constelação de artistas da música, cinema, dança, rádio, teatro e circo acessamos os constantes entrelaçamentos do fazer circense com essa profusão de expressões e espaços de criação artística, nos dias de hoje é possível perceber como essa mistura ocorre ainda de forma tão intensa e complexa quanto na segunda metade do século XIX e início do XX.
O estudo que antecedeu este encontro tão profícuo com Benjamim gerou desdobramentos inimagináveis quando de seu processo. De fato, no começo pouco sabíamos sobre ele, a não ser o acesso a certa representação mítica de que tinha sido “o primeiro palhaço negro do Brasil”, além de histórias vindas de memórias múltiplas da narrativa de circenses que, de uma forma ou de outra, foram seus contemporâneos e destacavam seus feitos no Circo Spinelli na cidade do Rio de Janeiro, nos primeiros anos dos 1900.
Mas, afirmamos, realmente pouco se sabia de sua história de vida e artística. Os registros de memórias sobre Benjamim estavam encobertos pela própria construção mítica, que sempre carrega no mínimo uma duplicidade instigante: se, por um lado, não deixa o esquecimento apagá-lo da memória coletiva; por outro, abafa a riqueza que a produção das vidas vividas carregam.
Por isso, vamos voltar um pouco no tempo, quando Erminia, uma das autoras deste capítulo, foi pela primeira vez à cidade de Pará de Minas (MG), em 2000, por saber que foi lá que Benjamim havia nascido e onde parece que “tudo começou”, na Fazenda dos Guardas. Depois, tomaremos o conjunto desta produção como algo que vai gerando agenciamentos de novos processos de produção de outras criações, das mais variadas naturezas, não imaginadas anteriormente.
Erminia, ao chegar pela primeira vez na cidade de Pará de Minas, foi recebida por Júlio Melo Franco, o então proprietário da Fazenda dos Guardas, onde, na década de 1870, Leandra, escrava doméstica, e Malaquias, capitão do mato, tiveram Benjamim. Segundo um inventário sobre patrimônio cultural, a Fazenda dos Guardas era descrita da seguinte maneira:
No entorno imediato da edificação da Capela de Santo Antônio do povoado de Guardas, no município de Para de Minas, dispõe-se a Sede da Fazenda de Guardas a sua esquerda, e a sua direita um pouco mais afastada, uma modesta casa típica de zona rural; considerando um entorno mais abrangente encontra-se a Escola Dona Neném Coutinho, as ruínas da antiga fábrica de linguiça e as Ruínas da Igreja, bem também inventariado.1
Logo depois, foi visitar o Museu Histórico de Pará de Minas com intenção de levantar fontes sobre a Fazenda dos Guardas, bem como entrar em contato com o que se conhecia de Benjamim de Oliveira. Pouco ou quase nada sabiam a respeito dele, apenas que havia uma rua chamada “Artista Benjamim de Oliveira”. Como nos informa Terezinha Pereira, membro da Academia de Letras de Pará de Minas (ALPM) e colunista do site Circonteudo – portal da diversidade circense –, em 10 de fevereiro de 1958, o então vereador Walter Martins Ferreira (depois prefeito) apresentou à Câmara um projeto para dar o nome de Benjamim a uma rua, o qual foi sancionado em 24 de abril daquele ano no bairro Nossa Senhora das Graças2. Entretanto, quando da apresentação do projeto, sabia-se muito pouco ou quase nada sobre Benjamim.
Erminia na época conseguiu falar por telefone com o vereador, que, apesar de não ter conhecido esse artista, foi informado por um conterrâneo que morava no Rio de Janeiro sobre o falecimento havia quatro anos, 1954, de um artista muito importante nascido em Pará que ainda reverberava em todos os jornais, programas de rádio e crônicas.
Terezinha Pereira escreveu um artigo em 2010, corroborando questionamentos que Erminia Silva havia feito no ano 2000.
Por que será que as pessoas da cidade, crianças das escolas não foram devidamente informadas a respeito da importância do ser humano e artista Benjamim de Oliveira? Por que será que, para a grande maioria dos moradores de Pará de Minas, “Artista Benjamim de Oliveira” continua sendo apenas o nome escrito em uma placa de rua, lá do bairro Nossa Senhora das Graças?3
Outra publicação, de 2007, mesmo ano da primeira edição deste livro, trata da invisibilidade de Benjamim: o livro infantojuvenil Benjamim, o filho da felicidade, escrito pela professora e escritora Heloísa Pires Lima. A autora afirmou, em entrevista ao jornalista Nabor Jr., sobre os “Os parcos, ou quase nulos, registros acerca da vida e da obra do artista [que] revelam o quanto a história do negro brasileiro é desconhecida da população”4. A escritora Terezinha Pereira, ao comentar a obra de Lima, reforça essa ideia:
Trata-se de um livro leve, alegre, poético, que narra a “espetacular trajetória” do palhaço negro, que a autora revela ter descoberto recentemente e por ele haver se encantado. Por outro lado, [a autora] diz-se decepcionada com amigos, educadores das tantas consultorias educacionais que nada sabiam de Benjamim – fato que ela chama de “amnésia nacional”.5
A partir daquele ano 2000, toda pesquisa realizada pela historiadora era compartilhada com diversas pessoas da cidade, em particular o Museu da Cidade6, que se tornou um divulgador e incentivador das histórias de Benjamim, destacando-se nesse processo o jornalista, escritor e memorialista local José Roberto Pereira.
Da publicação da primeira edição deste livro a 2009, houve uma profusão de produções nas quais Benjamim era o tema principal, produções que contribuíram com a divulgação, estudos sobre as experiências desse artista, nas várias turmas das escolas do município, quando foram iniciados diversos projetos focando a história do artista Benjamim.
Conforme narrativa de José Roberto Pereira, também membro da ALPM, dois fatos teriam sido importantes para mudar o cenário de “amnésia” em relação a Benjamim pela cidade Pará de Minas:
O lançamento do livro Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, no estado de São Paulo, da pesquisadora e escritora Erminia Silva, e a apresentação da peça teatral Circo-Teatro Benjamim, do Núcleo
de Estudo das Performances Afro-ameríndias (NEPAA), do Rio de Janeiro. O nome de Benjamim ressurge como uma luz que se acende clareando um imenso picadeiro, anunciando uma comovente saga a ser contada. Os poucos habitantes que tiveram acesso a esses dois fatos se emocionaram com a trajetória do grande homem por trás do palhaço e se encantaram com as estripulias de palhaço desse homem notável.7
Da “amnésia nacional”, ambos os autores, Terezinha e José Roberto Pereira, “arremedando” Heloísa Pires Lima, escreveram sobre a “amnésia municipal”. Para eles, Benjamim passou a fazer parte de muitas vidas em sua terra natal, a ponto de, em junho de 2009, “uma das propostas que surgiram foi a criação do PARABENJAMIM – Festival de Palhaços de Pará de Minas”, patrocinado pela prefeitura.
A parceria da Secretaria Municipal de Cultura de Pará de Minas com a Agentz Produções, por meio das sócias-proprietárias Fernanda Vidigal e Juliana Sevaybricker, para a realização simultânea do Festival Mundial de Circo – Dez anos em Belo Horizonte e em Pará de Minas possibilitou um intercâmbio entre artistas locais, estaduais, nacionais e internacionais que fez toda diferença para atingir os objetivos do PARABENJAMIM: tornar conhecidas a vida e a obra desse artista da terra, propiciar aos pará-minenses contato com as linguagens do circo, fazer da cidade um picadeiro para apresentações do gênero e incentivar a classe artística local à pesquisa, à troca de informações e à busca de conhecimento.8
O “despertar” chegou inclusive aos intelectuais, tanto que na segunda edição desse Festival, no Museu Histórico, em 29 de maio de 2010, em parceria com a Academia de Letras Pará de Minas, foi realizado um encontro com a presença de Erminia Silva e Juyraçaba Santos Cardoso, neto de Benjamim, no qual foi anunciada uma nova cadeira na ALPM, cujo patrono é Benjamim de Oliveira, e a qual Erminia passou a ser a primeira a ocupar como Acadêmica Honorária9 .
Ainda na quantidade e na multiplicidade das ações em torno de Benjamim de Oliveira, sem intenção que tenhamos esgotado todas elas, em 2010 Alexandre Pinto (Xandinho), artista de Pará de Minas, esculpiu uma estátua do palhaço Benjamim, inaugurada em 2013 no Parque do Bariri por meio da Lei de Incentivo à Cultura. Atualmente, segundo a mídia local, o palhaço é lembrado como um dos principais cartões-postais de Pará de Minas.
Em contato com o Alexandre sobre sua obra, o escultor nos enviou o seguinte relato:
Um artista completo, com talento natural e dedicação, que o fizeram ser reconhecido e respeitado muito além dos territórios circenses. Sendo natural de Pará de Minas (MG), assim como Benjamim de Oliveira, tomei a iniciativa de homenagear o grande artista com uma escultura em tamanho natural, em bronze. Acho justa homenagem a uma grande personalidade histórica do Brasil e uma contribuição à história da arte para manter sempre viva a memória de Benjamim.10
Mas não foi somente em Pará de Minas que observamos essa profusão de visibilidade sobre Benjamim. Simultaneamente, pelo Brasil afora, distintos grupos, produtores culturais, pesquisas acadêmicas ou não, produções literárias, teatrais e circenses, como em uma antropofagia, “comeram e deglutiram” Benjamim incorporando-o em suas vivências e experiências.
O desdobrar dos estudos realizados por Erminia, com a edição deste livro, agenciou olhares e escutas bem mais acurados para os percursos criativos do “moleque Beijo” e da teatralidade circense no Brasil; estimulou novas leituras e compreensões das produções circenses atuais.
Hoje, por meio da iniciativa do Itaú Cultural de realizar o projeto Ocupação dedicado a Benjamim de Oliveira e também do lançamento da segunda edição desta obra na editora WMF – Martins Fontes, fomos incentivadas/os a ver com mais abrangência e entusiasmo o cenário das artes circenses no tempo presente e lançar o seguinte questionamento: depois de 14 anos da primeira edição de Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, quais desdobramentos desse livro e dos percursos de Benjamim de Oliveira se observam nas produções circenses e em outras áreas da produção humana?
São várias as respostas possíveis para essas questões, e cada pessoa, do lugar de onde vê, vive e sente, poderia indicar influências dos percursos e “reinações” de Benjamim e também das análises partilhadas no livro nas realizações circenses de nossos tempos. Contudo, podemos dizer, ao olhar o circo na atualidade, que os percursos desse multiartista influenciam múltiplas criações artísticas, variados corpos e distintas lutas políticas emergentes, além de evidenciar que a polissemia e a polifonia do fazer circense constantemente salientadas aqui são as luzes da ribalta dessas produções.
Distintas pessoas têm pedaços de Benjamim em suas experiências vividas. Acreditamos que a pesquisa iniciada há 25 anos e a publicação desta
obra geraram distintas visibilidades dele nos corpos multidões que voltaram a reconhecê-lo; distintas formas de memórias que o mantêm sempre atualizado. Mas nós também tivemos de nos atualizar, pois fomos/somos procurados por grupos de jovens – mulheres, homens, LGBTQIA+ – com demandas sobre Benjamim que nos fazem, a todo instante, nos revisitarmos. Assim, entramos em contato com produções e debates que o têm como referência, mesmo como ícone ou patrono, que nos fazem perceber o quanto temos, permanentemente, de nos atualizar em face de temas tão importantes e inovadores como ancestralidade, afrodescendência e gênero, que explodiram neste século XXI, muitos deles tendo Benjamim como condutor.
O aprendizado pelo qual os autores deste capítulo passaram e estão passando diante de conceitos filosóficos, políticos, culturais sobre as diferenças de corpos negros, de gênero, ainda não estava dado há 25 anos, quando da realização da pesquisa, e há 14 quando da publicação da primeira edição. Não que não existissem debates, disputas, desigualdades e ativismos, mas não apareciam tão fortalecidos e potencializados como nestas duas primeiras décadas deste século.
Nos últimos anos, variados grupos ativistas das questões étnico-raciais, eles ligados às artes ou não, inspiram-se na figura de Benjamim de Oliveira para fortalecer a militância de valorização da cultura e da afrodescendência em nosso país. Mesmo ainda prevalecendo a perspectiva de que esse artista foi o “primeiro palhaço negro do Brasil”, fato contestado nesta obra, a biografia e a importância de Benjamim para as artes vêm servindo de inspiração para o fortalecimento das lutas desses grupos, mudando a tônica da História escrita pelo prisma da branquitude.
Alguns exemplos que consolidam esse movimento são dados pela militância da Confraria de Palhaços da Baixada Fluminense e da Confraria do Impossível, que em 2020 reuniu grupos de artistas negros para realizar um vídeo em celebração dos 150 anos de nascimento do artista e para compor a Semana Benjamim de Oliveira, idealizada por Wildson França (palhaço Will Will), e do Núcleo de Afrocentricidade da Rede Circo do Mundo Brasil, coletivo que promove debates, ações formativas e produções artísticas sobre questões ligadas à negritude, ao racismo, às lutas feministas e afro-indígenas.
Podemos citar também o Grupo Negra-Cor, que promoveu em 2009 “projetos culturais e educativos nas escolas referentes à Cultura Negra, à História da África e dos Negros no Brasil em Pará de Minas e outras cidades”, com a intenção de tanto provocar nos alunos negros “uma disposição em
assumirem sua negritude e aceitá-la sem conflitos”, mas também fazer que essas experiências trouxessem aos alunos não negros “uma nova concepção sobre diversidade étnica e uma melhor aceitação do Outro que sugerisse um novo relacionamento sob um novo olhar, mais respeitoso e menos preconceituoso”11. Assim, optaram por adotar a história de Benjamim de Oliveira.
Por ser um homem negro que transformou sua realidade a partir de seus sonhos mais delirantes. […] Por sua ousadia em contrariar o que parecia destino e ter se lançado no universo das artes. Por todos os preconceitos que possam ter obstruído seu caminho, mas que não o impediu de ser sujeito de sua própria história. […] Por ser ousado e sonhador.12
Outros exemplos ainda são dados pela Mostra Benjamim de Oliveira, realização da Cia. Burlantins (MG), que foi criada e idealizada por Mauricio Tizumba em 2013 e chega em 2021 à sua sexta edição com o objetivo de valorizar a cultura afro-brasileira por meio do protagonismo dos corpos negros em cena; pela produção teatral de Zeca Ligiéro (José Luiz Ligiéro Coelho), fundador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UniRio, que em 2009 dirigiu a peça Palhaço negro: a história de Benjamim de Oliveira e a apresentou no Brasil e na Colômbia; e pelo Grupo Teatro de Anônimo, que, na construção de uma poética protagonizada pelo fazer popular, coletivo e por ideais afrodiaspóricos, tomou Benjamim de Oliveira como um referencial em suas variadas produções artísticas e culturais, a exemplo do Anjos do Picadeiro – Encontro Internacional de Palhaços.
Assim, Benjamim de Oliveira tem ao longo dos anos ganhado um reconhecimento que o coloca ao lado de figuras fundamentais da cultura brasileira que debatem a negritude e a luta antiracista no Brasil como Maria Carolina de Jesus, Lélia Gonzalez, Lima Barreto, Dandara, Zumbi de Palmares, Conceição Evaristo, Abdias Nascimento, Ruth de Souza, dentre muitas e muitos outros.
Sua história, tanto quanto sua figura, tem alcançado significativa visibilidade na sociedade seja no campo das artes, seja nos movimentos sociais, e cada vez mais homenagens são mobilizadas. Escolas de samba tomaram sua vida como tema do enredo, como foi o caso, em 2009, do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, que apresentou no carnaval carioca o enredo “O beijo moleque da São Clemente”, de autoria do carnavalesco Mauro Quintaes; bem como em 2020 a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro com o tema-enredo “O rei negro do picadeiro”, do carnavalesco Alex
de Souza; sem deixar de falar da coleção de moda “Para Benjamim”, do estilista mineiro Rodrigo Fraga.
Mais especificamente no âmbito das artes circenses, artistas, coletivos, festivais e variadas produções culturais/educativas têm se inspirado na importância desse artista, resultando em homenagens a ele e em espetáculos, números, intervenções e ações culturais. Podemos citar, nesse caso, o espetáculo 4 em 1, Sete tempos, Nós Somos Benjamim de Oliveira, da Cia. Geracirco, que conta sua história por meio de números de contorcionismo, dança, entradas cômicas, monociclo, equilibrismo, roda alemã, paradas olímpicas, malabares e teatro; o Circo Escola Benjamim de Oliveira, um projeto de Circo Social vinculado à organização não governamental do coletivo Se Essa Rua Fosse Minha, que acontece em São João do Meriti, Rio de Janeiro; o espetáculo Universo Redondo: Os Circos de Benjamim, da Cia. do Solo, que se utiliza de diversas linguagens como narração de histórias e manipulação de bonecos; o espetáculo Um beijo para Benjamim, do grupo paulistano Circo-Teatro Palombar; o espetáculo Will Will conta Benjamim de Oliveira, de Wildson França, ator, produtor, palhaço e coordenador da Confraria de Palhaços da Baixada Fluminense; a montagem da peça Nego beijo, em 2009, pelo Grupo Off-Sina, coordenado na época pelos artistas e palhaces Lilian de Moraes e Richard Righette a partir de uma pesquisa sistematizada sobre a dramaturgia do circo teatro de rua.
Em várias épocas é nítida a disputa entre criar visibilidades e apagamentos de personagens essenciais para a constituição das artes, da cultura e da produção da vida, e mesmo uma luta pelo esquecimento delas sustentada por posturas negacionistas e revisionistas, a exemplo do que tentam, hoje, fazer com o educador Paulo Freire, que neste ano completou seu centenário. Mas, no caso de Benjamim de Oliveira, vemos a emergência de sua figura que não somente vem alcançando maior visibilidade, como também vem inspirando e mobilizando ações e transformações em diversos campos artísticos, principalmente no circense.
Assim, vale reforçar que no decorrer desses 14 anos da publicação da primeira edição deste livro, muito se produziu e vastas foram as transformações nas artes circenses. O que vemos hoje das produções circenses carregam a polissemia e polifonia do fazer circense do século XIX e início do XX, contudo não como expressão idêntica de outros tempos, mas sim com um diálogo intenso com esses tempos.
Muito mudou, mas também permaneceu no imperativo das transformações dessa arte. Conforme bem aponta o romancista José Saramago,
“A verdade é que vivemos numa sala de espelhos na qual tudo se reflete em tudo e é, por sua vez, reflexo de si mesmo. Quando nos pintam nada mais que uma imagem, sem ter em conta o espelho, essa imagem está incompleta”13. Tomando por base essa perspectiva de Saramago, o que visualizamos no tempo presente no âmbito das artes do circo é a combinação de reflexos de práticas, saberes e criações de outros momentos com transformações e reinvenções realizadas por novos sujeitos históricos que (re)criam representações e espetáculos circenses complexos e expandidos.
Esse cenário expandido e complexo das artes circenses na atualidade advém das próprias mudanças que essa arte vem sofrendo, principalmente as ocorridas no Brasil no fim da década de 1970, quando os circenses deram início a percursos, diálogos e formas de estruturação distintos do modo de organização da vida e do trabalho que vinham experimentando, e culminaram na constituição das escolas de circo para “fora da lona”: como a Academia Piolin das Artes Circenses, entre 1978 e 1983, na cidade de São Paulo; e, em 1982, a Escola Nacional do Circo Luiz Olimecha (Funarte), no Rio de Janeiro.
Foi por meio da criação de escolas para além do núcleo familiar circense que a ação de ensinar a arte do circo se estendeu aos que não nasceram ou viveram no circo, contribuindo com a formação de novos artistas, novos sujeitos históricos atuantes nesse campo artístico. A grande maioria desses egressos das escolas de circo experienciou outros modos de formação artística, constituindo outras maneiras de pensar e fazer circo e conheceram um processo de aprendizagem distinto do que ocorria com as famílias circenses.
As/os alunas/os não tinham vínculos familiares como ocorria no interior dos circos itinerantes, vinham de todos os lugares urbanos, econômicos e culturais. A presença de alunas/os com orientações de gênero as mais diversas fizeram toda diferença nos modos como as artes do circo foram sendo produzidas e realizadas, fazendo com que mestras e mestres se tornassem também aprendizes desses novos sujeitos históricos circenses.
Por conseguinte, os corpos circenses foram sendo forjados nos encontros com outros corpos, absorvendo saberes e fazeres distintos de maneira ao mesmo tempo parecida e diferente dos processos de formação do circo-família. O que vemos é que, desde fins do século XVIII, os artistas circenses oriundos dos mais diversos processos de formação, ao mesmo tempo que possuem diferenças, revelam semelhanças e, portanto, tais processos carregam elementos transversais de cunho histórico, técnico e estético. Com o surgimento das escolas de circo, a linguagem circense continuou compondo diálogos em suas
Benjamim de Oliveira, 1911.
variadas formas e produções, afirmando a complexidade e a força desses distintos saberes e fazeres14. Nesse processo, como bem nos alerta Paulo Freire, “Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”, e, como sempre ocorreu nas artes circenses, suas práticas permanecem mutáveis.
Com isso, não é por acaso que presenciamos hoje uma potente produção circense ligada ao reconhecimento e à valorização dos mais distintos corpos e da expressiva e militante atuação do movimento LGBTQIA+ nas artes circenses em geral e das mulheres no campo da comicidade, em particular. E, para nós autores deste capítulo, o que é mais desafiador e nos alimenta o tempo todo é que esses grupos de pessoas envolvidas nos movimentos ativistas, afrodescendentes, de gêneros, são nossas/os alunas/os. Isso nos produz como aprendizes permanentes, assim como deveria ser toda/o mestra/e em qualquer processo formativo.
Nos percursos históricos das artes circenses, a presença dos mais variados corpos e, portanto, pessoas sempre foi uma tônica. Contudo, sabemos que muito se explorou perversamente o que era tratado como “diferente” diante do que era considerado o “normal”. Com isso, corpos gordos, magros, transgêneros, altos, baixos etc. foram expostos pela ótica do bizarro, exótico, errado e disforme. Hoje, no entanto, esses corpos se insurgem, aparecem e são protagonistas na sua potência e na luta pelo reconhecimento da diferença. Cada vez mais grupos, festivais, ativistas, encontros, seminários e espetáculos circenses entram em cena levantando a diversidade como expressão de vida e arte; afrontando uma mentalidade retrógrada e discriminatória e elegendo a diferença como potência criadora e transformadora.
Na esteira dessas transformações, desde o surgimento das escolas de circo, conquistou importante espaço nas produções circenses a atuação das mulheres, principalmente na área da comicidade. Se até o surgimento dessas escolas para fora do próprio circo itinerante de lona era praticamente impensável a atuação das mulheres como palhaças, a partir de fins dos anos 1970 e em especial nas duas últimas décadas tem ganhado força e visibilidade a produção feminina circense. São espetáculos, festivais, coletivos, eventos acadêmicos e publicações diretamente ligadas à palhaçaria feminina que avançam no terreno fértil da polissemia e da polifonia das artes circenses.
Tentar elencar a totalidade de artistas, grupos e realizações nesse campo em todo o país é praticamente impossível e, com certeza, incorreríamos no erro de esquecer de mencionar figuras e ações importantes na promoção da comicidade feminina. Contudo, não podemos deixar de citar, a título de ilustração, os eventos/coletivos Encontro de Palhaças de Brasília, Festival Palhaças do Mundo, Esse Monte de Mulher Palhaça e Rede de Palhaças do Brasil15, bem como outras produções diversas que tratam diretamente da atuação das mulheres palhaças, como a Escola Livre de Palhaços, Palhaças e Palhaces (ESLIPA), criada pelo Grupo Off-Sina em 2012, e, a pesquisa e o videodocumentário de Maria Gabriel e sua família voltados para a visibilidade da vida e obra de sua avó, Maria Eliza Alves dos Reis, o palhaço Xamego.
Tanto a ESLIPA quanto o documentário Minha avó era palhaço (2016), de Mariana Gabriel, são de grande relevância para a produção circense atual e carregam consigo aproximações com Benjamim de Oliveira e, principalmente, com o protagonismo feminino no campo da comédia: a primeira, devido à influência de Benjamim tanto na produção artística do grupo Off-Sina, que resultou no espetáculo Nego beijo, como pelo fato de Benjamim ser uma referência para os estudos sobre “palhaçaria” desenvolvidos na ESLIPA, mas, fundamentalmente, por a Escola promover a formação de mulheres palhaças na sua grade curricular por meio dos ensinamentos de mulheres palhaças consagradas no meio circense na atualidade; e a segunda, em função da visibilidade dada à atuação de Maria Eliza como o palhaço Xamego no Circo Guarany nos anos 1940, cujas experiências circenses se cruzaram com Benjamim de Oliveira a ponto de chamá-lo de “tio”, e por oxigenar o debate e a militância da comicidade feminina em todo o Brasil por meio de exibições públicas do filme e rodas de conversa sobre a história do circo, a questão do negro/negra nas artes circenses e o protagonismo feminino na “palhaçaria”.
Se, primeiramente, de mãos dadas com Benjamim foi possível caminhar ao lado de homens, mulheres e crianças, artistas negros, brancos e pertencentes a distintos grupos sociais/culturais atuantes nas mais variadas expressões artísticas, quase 70 anos depois de seu falecimento iniciamos, com esta segunda edição, uma nova caminhada de mãos dadas com ele e na qual podemos identificar que hoje os percursos traçados ocorrem ao lado de uma infinidade de novos sujeitos históricos, corpos e lutas. Enfim, como cantou Gonzaguinha, “é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”16 .
NOTAS
1 Secretaria Municipal de Cultura e Comunicação Institucional. Prefeitura
Municipal de Pará de Minas (MG). Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural, ação 2019, exercício 2021, p. 71. 2 Terezinha Pereira. Benjamim de Oliveira – 140 anos. Circonteudo – Portal da diversidade circense, Colunistas. Disponível em: https://www.circonteudo.com/ colunista/benjamim-de-oliveira-140-anos-de-nascimento/. Acesso em: 26 set. 2021. 3 Id., ibid. 4 Nabor Jr. Benjamin: o filho da amnésia nacional!. Revista O Menelick 2o Ato, out. 2010.
O autor é jornalista com especialização em jornalismo cultural e história da arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW. 5 T. Pereira, cit. 6 Agradecimento especial a Ana Maria Campo do Museu Histórico de Pará de Minas pelo imediato interesse e admiração na construção de visibilidade sobre a história de Benjamim de Oliveira. 7 José Roberto Pereira. Parabenjamim – Festival de Palhaços de Pará de Minas.
Museu Histórico de Pará de Minas. Disponível em: http://muspam.com.br/index. php?option=com_content&view=article&id=98:parabenjamim-festival-de-palhacos-de-para-de-minas&catid=36:textos&Itemid=89. Acesso em: 27 set. 2021. 8 Id., ibid. 9 Terezinha Pereira. Saudação à dra. Erminia Silva. Circonteudo, Colunista.
Disponível em: https://www.circonteudo.com/colunista/saudacao-a-doutora-erminia-silvc/. Acesso em: 26 set. 2021. 10 Infelizmente, em 3 de setembro de 2017, a estátua de Benjamim de Oliveira foi pichada com a suástica nazista, gerando forte comoção em grande parte da população com tais ações violentas, conforme noticiaram diversos jornais do estado de Minas Gerais. A estátua foi rapidamente recuperada e encontra-se atualmente para contemplação no parque Bariri, em Pará de Minas. Ver: https://grnews.com. br/04092017/radar-policial/para-de-minas-estatua-de-benjamim-de-oliveira-e-pichada-com-simbolo-nazista. 11 Grupo Negra-Cor. Afro-atitude 2009: Grupo Negra-Cor e o artista Benjamim de Oliveira. Circonteudo. Disponível em: www.circonteudo.com; https://www. circonteudo.com/afro-atitude-2009-grupo-negra-cor-e-o-artista-benjamim-de-oliveira/. Acesso em: 27 set. 2021.
12 Id., ibid. 13 Fernando Gómez Aguilera (org.).
As palavras de Saramago. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 253. 14 Sobre os processos de continuidade e transformação nas artes circenses a partir do surgimento das escolas de circo, ver: D. de Carvalho Lopes;
E. Silva e M. A. Coelho Bortoleto, op. cit., 2020. 15 Mesmo correndo o risco de esquecer de companhias, artistas e produções importantes nessa frente, vale citar também: Teatro da Mafalda, SP;
Humatriz Teatro, PR; Seres de Luz
Teatro, SP; Na Companhia dos Anjos,
SP; Cia. Anime, PE; Teatro de Anônimo,
RJ; Gena Leão, RN; Romana Melo, PA;
Ana Luisa Cardoso, RJ; Wanderleia
Will, SC; Odília Nunes, PE; Lilian
Moraes, RJ; Circa Brasilina, DF;
Revista Palhaçaria Feminina, SC; Cia.
Fundo Mundo (Sul/Sudeste). 16 Verso da canção “Caminhos do coração”, de Gonzaguinha, gravada em 1982.