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CRIOULOS FACEIROS
CRIOULOS FACEIROS
No final de 1903, o Circo Spinelli saiu da capital paulista e iniciou uma nova turnê; em março de 1904, a coluna Palcos e Circos informava que estavam trabalhando “com muito agrado” em Cascadura, “nos arrabaldes do Rio de Janeiro”102. Nesse momento, é bem provável que Benjamim tenha encontrado Eduardo das Neves, entre outros artistas da capital federal. Tal suposição prende-se ao fato de que Eduardo compôs, nesse período, o lundu “Crioulo faceiro”, em homenagem “ao simpático clown Benjamim de Oliveira”, publicado no livro Mistérios do violão:
Eu sou crioulo faceiro, E sou brejeiro, na multidão, Cada conquista é um tesouro No choro do violão!… Vem cá, mulata, Não sejas má, Que o teu crioulo, Pra teu consolo, Pronto aqui está. Num paraíso de flores, Os meus amores, aqui sonhei: Em sonho vi minha amada, Mágica fada, a quem amor jurei. Linda morena, Meu querubim, Tem dó, tem pena, Do Benjamim. Eu venho lá de outra terra, Onde em cem guerras de amor me vi, E combatendo feias ações, Mil corações ali venci! Com toda a calma, Fui vencedor: Ganhei a palma, Na guerra de amor, Ouvi minha despedida: Adeus, querida, pecados meus,
A tua ausência me mata… Linda mulata, adeus! Adeus! Quanta saudade! Amor sem fim, Nesta cidade Vai deixar o Benjamim!103
Após esse período em que esteve no Rio de Janeiro, ambos, Benjamim de Oliveira e Eduardo das Neves, voltaram a trabalhar no interior do estado de São Paulo, como se viu acima, em São João da Boa Vista. Não se tem registro sobre essa turnê do Circo Spinelli, que, em setembro de 1904, retornou ao Rio de Janeiro, de onde Benjamim poucas vezes iria se ausentar desde então. Eduardo das Neves entrou na capital paulista com o Circo Teatro François e, como Baiano, Mário Pinheiro e Catulo da Paixão Cearense, sua contribuição para a produção da teatralidade circense não se deu apenas com a música, mas também com a dramaturgia, pois era um dos atores das pantomimas e das cenas cômicas apresentadas nesse circo.
Caso interessante a ser lembrado é o da família François, que chegou ao Brasil na década de 1860 com a família de sua esposa, Ana Stevanowich. Em 1881, montou seu próprio circo, estabelecendo relações de sociedade ou casamento com várias outras famílias circenses, como: Savalla, Pantojo, Temperani, Landa, Almeida, Stancowich e os Wasilnovich104. Jean François é considerado pela bibliografia circense brasileira um empresário dinâmico e arrojado, pois incorporava rapidamente as mais novas invenções tecnológicas, por exemplo, em 1909 teria importado um gerador Otto, da Alemanha e um projetor Pathé da França; assim, com luz elétrica e projetor próprios, transformava uma parte do espetáculo em cinema105 .
Em 1903, Jean François estava com seu circo armado no centro da cidade de São Paulo, logo após a estreia de Benjamim com Os guaranis, e a de Polydoro com A terra da goiabada. Após um ano, inaugurava o Teatro Circo do Parque Fluminense106, na capital federal, de propriedade de Paschoal Segreto, local onde Eduardo das Neves também trabalhava, provavelmente contratado para realizar a turnê com os François. Nesse mesmo ano, estavam novamente na capital paulista, e em seu repertório constavam as duas pantomimas, aparecendo como principal ator o artista Eduardo das Neves, divulgando todas as suas canções já publicadas e gravadas.
Em 1905, na capital paulista, Jean François inaugurava no seu circo um novo palco cênico, no qual ocorreu uma rica produção de músicas e pantomi-
mas, revelando um Dudu das Neves, além de compositor de cançonetas, autor de pantomimas e responsável pelas suas mise-en-scènes. Anunciadas como “pantomimas cantadas”, sugerem, pelos títulos, uma mistura de temas do cotidiano da população com as “novidades” que estavam ocorrendo no lugar. É o que parecem indicar, por exemplo, os títulos Um bicheiro em apuros ou O padre Virgulino Carrapato dançando cake-walk107 – dança de compasso binário, ritmo sincopado e origem afro-americana que, segundo a etimologia da palavra, seria um divertimento em que o dançarino que desse os mais inventivos passos ao caminhar ganhava um bolo108. Vicente de Paula Araújo afirma que “fazia furor nos salões” dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França e foi dançado pela primeira vez em São Paulo no Polythema-Concerto, em 1903109 .
Os circos que estavam na capital paulista, em 1905, tornaram-se as principais atrações para o público que queria assistir a um espetáculo de variedades. O mais importante concorrente desses circos, nessa cidade, era exatamente o Polytheama-Concerto, que deixara de ser café-concerto no final de 1904 para transformar-se em Teatro Polytheama, parando de apresentar números circenses ou de variedades. Esse teatro inaugurou sua “temporada lírica popular” com uma companhia italiana, dirigida por Donato Rotoli, que se apresentou até fevereiro de 1905, sendo depois substituída pela Companhia de operetas, mágicas e revistas do teatro Apollo do Rio de Janeiro110 .
François, usando do senso de oportunidade, anunciava que, no seu “elegante palco cênico”, um “grande número de peças teatrais seriam transformadas em pantomimas”, sendo muitas delas “da lavra do popular Eduardo das Neves”, escritas especialmente para aquela “acreditada companhia”, com temas brejeiros e românticos, como Moreninha do sertão, ou xistosas, como Nhô Bobo!111. Algumas pantomimas representadas, denominadas farsas e mágicas, escritas por artistas de circo brasileiros, como Eduardo, rapidamente começaram a ser adotadas por vários circos com as mais variadas denominações, como O olho do diabo ou A fada e o satanás, encontrada às vezes também com o título de O monóculo do diabo112. As produções de farsas e mágicas continham suas composições musicais, algumas delas feitas especialmente para as festas de benefício das principais atrizes do circo François e do Spinelli, como consta na publicação Mistérios do violão. Para Marietta François, Eduardo compôs Salve!, e para a “bela Ignez Cruzet”, parceira de Benjamim nas pantomimas, fez Saudação!113 .
Muitos críticos – contemporâneos ou historiadores – apontam uma decadência da produção do teatro nacional nesse período. O teatro da Belle Époque, para Décio de Almeida Prado, liga-se a “certos gêneros menores, a
meio caminho entre o teatro e a música”114, que não eram sequer vistos como teatralidade. A despeito disso, aquele era um momento de grande produção de textos teatrais musicados nos circos, na maioria das vezes tratando-se de montagens e representações faladas, não mais de mímicas, porém ainda permanecendo no quadro dos gêneros que aquele autor denominaria de menores, que misturavam paródia, canto, dança, saltos, farsas e mágicas, e só serviam para diversão e entretenimento.
Jean François e Albano Pereira foram os primeiros, nas fontes pesquisadas, a utilizar o termo “circo-teatro” no nome de suas empresas. As outras companhias, inclusive a de Spinelli, continuavam a ser denominadas de: equestre, mímica, coreográfica, musical etc. A estrutura do espetáculo não se alterava na maior parte dos circos, mantendo um conjunto de números acrobáticos em uma primeira parte, somada a uma segunda, de representação teatral. Entretanto, com base nas diferentes experiências criadas pelos vários circenses, presentes entre 1902 e 1905 na cidade de São Paulo, numa mistura de diferentes usos das múltiplas formas de divulgação da música e das releituras e adaptações da literatura, bem como dos vários gêneros teatrais para o espaço do circo, observa-se cada vez mais, nas fontes pesquisadas, um aumento significativo das referências às produções teatrais e musicais dos próprios artistas circenses. Mesmo que a representação falada não fosse novidade nos espetáculos, a partir desse período os artistas autores das peças começam a escrevê-las ou adaptá-las, desenvolvendo enredos e tramas exclusivamente com diálogos. Essa nova forma predominante de produzir a representação teatral no espetáculo fez parte do processo de consolidação dos circenses como produtores de uma multiplicidade de linguagens artísticas denominada circo-teatro ou, como se diz ainda hoje na linguagem circense, o “circo de primeira e segunda partes”.
Eduardo das Neves teve uma contribuição importante na constituição dessa teatralidade circense também como empresário. Em 1906, ainda na cidade de São Paulo, era proprietário de um circo em sociedade com João de Castro, o Circo-Teatro Pavilhão Brasileiro, no qual se apresentava como cançonetista, ator e autor das peças encenadas115. Quando retornou à capital federal, naquele mesmo ano, ainda se manteve proprietário desse circo; entretanto, não continuou de modo exclusivo com a vida profissional artística circense, pois, a partir daí, envolveu-se com os palcos teatrais e as gravações de discos.
No Rio de Janeiro, para onde retornou em 1905, Benjamim produziu cada vez mais novas paródias e adaptações da literatura para o palco/ picadeiro, tornando-se autor de muitas peças encenadas no Spinelli.