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“CAMPO DA ACLAMAÇÃO POPULAR”

públicos “civilizados” quanto nos palcos nos quais as apresentações não eram consideradas tão “honestas”, como o caso do Café-Concerto Alcazar Lírico, que foi inaugurado no fim da década de 1850 pelo empresário francês Monsieur Arnaud, em cujos espetáculos o público, na grande maioria homens, encontrava desde “números de orquestras, representações de paródias, bailados, operetas e números de cantos, até pequenas representações de ginástica, interpretados por um belo elenco de atrizes francesas” a um preço único de 1$000 réis, “com direito a fumar e beber cerveja durante as representações”94 .

Não é de estranhar que vários artistas identificados por uma parte da bibliografia apenas como atores e autores teatrais acabavam por realizar uma multiplicidade de atuações nos palcos de então, como foi o caso, entre muitos do período, de Francisco Correa Vasques, que teria sido “um destes atores que conheceu intimamente a arte de comunicar-se com o público”. Iniciando a carreira na companhia de João Caetano, apesar de não haver referência direta sobre sua participação em companhias circenses, a descrição de suas atividades artísticas, assim como de Teles e outros, acaba por confirmar que havia um convívio e intercâmbio entre artistas, palcos e gêneros. Como analisa Silvia Cristina Martins de Souza, Vasques teria herdado uma dupla tradição dos seus tempos do Teles, “a de representar para um público heterogêneo, e a de estar preparado para atuar em diferentes gêneros”, pois fazia “desde peças de Martins Pena até cantorias, mágicas, imitações, números de ginástica, dançados e teatrinho de bonecos”. A presença (ou influência?) circense nas suas atividades não pressupunha só saber fazer exercícios acrobáticos, engolir espadas ou comer fogo (o que já não era pouco), mas também a forma de combinar e unir tudo isso em espetáculos capazes de atender a “plebe e a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata e o homem de letras”95. Os circenses, no seu nomadismo, ocupavam, então, diversos espaços, desde praças até variados palcos teatrais – público heterogêneo que frequentava a Festa do Divino na cidade do Rio de Janeiro e na maioria das cidades visitadas pelos circos.

“CAMPO DA ACLAMAÇÃO POPULAR”

Como aumentava o número de companhias circenses (estrangeiras ou não) pelo Brasil, à semelhança da Europa, em todos os locais em que o circo se apresentava causava também polêmicas, estimulando debates sobre a mudança de composição do público, além de chamar a atenção para a ausência de pretensões artísticas da população que frequentava os teatros. Em 1862,

4. Charge publicada em 1876 que retrata o esvaziamento do teatro em face do sucesso de público do Circo Chiarini, de Giuseppe Chiarini, conhecido como o “Franconi da América”.

a presença de uma companhia circense no Rio de Janeiro, o Circo Grande Oceano96 – que contou com um número expressivo de público, inclusive com a presença do Imperador e da Imperatriz (ou como se escrevia na época S.S.M.M.I.I.) pelo menos duas vezes –, revelou a importância do circo no circuito cultural. Os diretores da companhia, Spaulding e Rodgers, recém-chegados dos Estados Unidos em um navio próprio, comprado exclusivamente para suas turnês, tornaram-se conhecidos tanto por transportarem seu circo por via fluvial e, depois, por terem inaugurado o transporte do circo por via férrea, em 1856, nesse país, quanto por o primeiro ter inventado, por volta de 1850, os “quaderpoles ou mâts de corniche”, que no Brasil se chama de mastaréu – mastros colocados de forma oblíqua sustentando o tecido da tenda, auxiliando e aliviando o mastro central97. Esse invento permitiu que os circos ampliassem de um para dois o número de mastros, para logo em seguida chegarem até oito, podendo estes últimos conter de 10 a 15 mil espectadores. A partir desse caso, é possível entender por que os espetáculos circenses começavam a aparecer em jornais e revistas, não apenas nas páginas dedicadas às propagandas, mas também nos espaços destinados às críticas. O empreendimento havia crescido.

Para o cronista do Correio Mercantil, a curiosidade “excitada pelas promessas e anúncios foi plenamente satisfeita”, agradando a cerca de 2.500 pessoas que se aglomeraram para assistir à estreia, o que teria deixado os teatros “em dieta rigorosa”98, explicitando que a convivência e a disputa pelo público entre os diversos tipos de espetáculo, especialmente teatro e circo, estavam se acirrando, acrescentando-se que o circo de fato estava se tornando uma opção a mais de trabalho para vários artistas do período nas diversas regiões do país.

A esse debate acrescentou-se – além do fato de o público estar dando preferência aos espetáculos circenses, esvaziando as salas teatrais – um grave problema que era a “invasão” dos circos nos palcos, tanto pelas companhias propriamente ditas quanto por atores e autores do teatro, que estariam representando e escrevendo aos moldes de tal gênero artístico.

Assim, não é por acaso que Vasques, trabalhando no Teatro Ginásio Dramático, tornou-se mestre em cenas cômicas, que, como já se viu, também faziam parte da estrutura do espetáculo circense, fartamente representadas com vários nomes, recebendo críticas, algumas favoráveis e outras dizendo que os atores daquele teatro estavam se “esmerando para virar saltimbancos parodiadores insuportáveis”. E isso era um problema, pois o teatro, que se pretendia “o reduto da dramaturgia ‘séria’ da Corte e o lugar de onde poderia surgir um teatro nacional”, estava sendo “invadido” por gêneros e artistas “menores”, não só teatrais, como “prestidigitadores, mágicos e imitadores, ainda que nessas ocasiões a imprensa se apressasse em afirmar que tais espetáculos eram superiores aos similares apresentados nos outros teatros, já que seus protagonistas vinham diretamente da Europa”99 .

Vasques escreveu, três meses depois da estreia daquele circo, uma cena cômica intitulada Viva o Grande Circo Oceano! e, quando o circo deixou a cidade, encenou Adeus Grande Circo Oceano, no Teatro Ginásio Dramático, lançando mão de um velho conhecido das pantomimas e das arlequinadas circenses e de alguns teatros, a figura dramática de Pantaleão, além de recursos cênicos, música, jogos de palavras, linguagem burlesca e chistosa, acrobacias, mágicas, que se assemelhavam às apresentações circenses, em particular às representações cênicas que tinham no palhaço sua principal referência. Ao ser acusado de ter escolhido o circo como fonte de inspiração por sua popularidade, afirmava que esta se dava porque o circo se mostrava como uma novidade e porque havia uma “má qualidade dos espetáculos teatrais que estavam em cartaz na ocasião”100 .

Naquele mesmo ano de 1862, João Caetano, aderindo totalmente ao discurso de que o circo, como “diversão descomprometida e sem caráter educativo, afastava as pessoas dos teatros”101, dirigiu uma carta ao marquês de Olinda, apresentando sugestões para a “‘regeneração’ de um teatro nacional considerado em franca decadência”, indicando a necessidade de “resguardar o teatro dramático de companhias volantes, de espetáculos de animais ferozes ou domesticados, não podendo estas companhias trabalhar nos dias de teatro nacional”102, além de solicitar que fossem obrigadas a pagar um imposto caso fizessem “por onde queira que transite o espetáculo”103. O ator finalizava afirmando que tais medidas já estavam ocorrendo na França e na Inglaterra, o que o tornou conhecedor do debate do fim do século XVIII e início do XIX, na Europa, em particular na França, do perigo que representavam a “violação” dos palcos teatrais pelos circenses e o formato de seus espetáculos, a rivalidade entre trupes de comediantes e grupos de

artistas de pista, provocando uma inquietude diante do que se considerou um “concorrente terrível”.

Entretanto, se as medidas na Europa não impediram que os circenses, mesmo sofrendo constantes proibições, continuassem produzindo um espetáculo que continha fala, música e instrumentos musicais, na América Latina, em particular no Brasil, nenhum tipo de legislação chegou a ser produzido. O máximo que João Caetano sugeriu foi que os circos não trabalhassem nos dias de “teatro nacional”.

Os circenses não desconheciam esses debates sobre a preferência do público pelos picadeiros. A partir de 1869, com a vinda ao Rio de Janeiro de outro membro da família Chiarini também chamado Giuseppe Chiarini, mas conhecido como o “Franconi da América”104, pode-se observar uma mudança na forma de utilizar a imprensa como veículo de diálogo com esses debates, sem perder, no entanto, sua intenção explícita de propaganda.

Num formato de cartaz um pouco mais elaborado que a maioria dos criados pelos circos até então, Giuseppe Chiarini, ou quem quer que o tenha produzido, utilizava recursos que criavam, no “provável espectador, a sensação da variedade”, comprometendo-se com a diversidade105, como dizia uma estrofe publicada em um de seus cartazes:

O núcleo da boa sociedade do Império A reunião das mais formosas mortais da capital A fonte de notícias para periodistas ou jornalistas A surgente de veleidades mundanas O depósito da hilaridade O armazém de notáveis artistas O congresso de variedades106

Além disso, utilizou recursos textuais de propaganda com bom humor e sabendo aproveitar o cotidiano da cidade e suas mazelas, como a epidemia de febre amarela do verão de 1875-76107. Os jornais teciam críticas severas à municipalidade e ao governo, responsáveis “pelas péssimas condições higiênicas”, e à “classe” médica que, no dizer do cronista, “coletivamente, nada, absolutamente nada” tinha feito “para adiantar um passo, um só, ao que há muito se sabia”108 . Lançando mão do calor desses acontecimentos e do discurso dos higienistas

5. Giuseppe Chiarini, 1876.

do período com relação aos problemas vividos pela cidade, quando o ambiente urbano, o calor e a umidade eram tidos como características importantes do ponto de vista das considerações de morbidade109, e afirmando ser “o centro da sociedade mais fascinadora da Corte, seu polo positivo”, o Circo Chiarini publicou um cartaz de propaganda no formato de bula de remédio, sugerindo ser o medicamento, mesmo que paliativo, para aquele mal:

O Circo Chiarini é o lugar mais fresco da corte. O Circo Chiarini é a concentração da mais brilhante sociedade da cidade. O Circo Chiarini é o antídoto para todas as doenças epidêmicas. Poderoso contra o flagelo atual. O Circo Chiarini é o lugar mais higiênico da época onde há um espetáculo altamente interessante para todas as classes da comunidade. O Circo Chiarini recomenda-se a todas as crianças da capital para que em união de seus pais e mães venham admirar os lindos meninos e meninas que formam parte desta companhia, que são verdadeiros portentos na arte da educação física. 30 minutos de divertimento no Circo Chiarini equivale por 30 meses de boa saúde! O circo é por excelência o mais barato espetáculo pois está ao nível de todos os bolsos.110

E, quem sabe, para aqueles que diziam que circo não tinha função educativa, ou antes, tinha um descompromisso com valores morais, respondia de maneira bem-humorada afirmando que: “O povo quer pão e divertimento. O pão acha-se na padaria. O divertimento no Circo Chiarini”111, reforçando que o compromisso do espetáculo circense seria com outro tipo de resultado esperado, ou seja, considerava que o espaço era de um “delicioso pagode, aonde toda a boa sociedade da Metrópole vai para neutralizar o recreativo com os gozos sociais”112. Assim, além de se autonomear “campo da aclamação popular” e “fonte de saúde produzida de uma diversão inocente e variada, com animais raros associados com cenas cômicas”, enumera vantagens que as pessoas ganhavam indo ao circo:

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