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“DESTINO DE NEGRO”
os seus relatos voltam-se para a descrição do seu processo de formação como artista, que, cotejados com as informações de outras fontes, permitem percorrer a trajetória do moleque Beijo tornando-se artista no circo feito escola.
“DESTINO DE NEGRO”
O temor que relacionava grupos nômades a roubos de crianças esteve presente no imaginário dos habitantes das cidades no o século XIX. Muitos relatos descrevem crianças que foram roubadas por ciganos ou por circenses, grupos frequentemente confundidos pela população e pelas autoridades. Há de se reconhecer que os temores não eram infundados. Houve, inclusive, vários casos de denúncias contra grupos de ciganos que roubavam, além de objetos de valor e dinheiro, “crianças e adultos”, se isso lhes “aprazia”33 .
Em relação ao circo em particular, em nenhum dos relatos de circenses – entrevistados ou que deixaram registros escritos sobre sua vida –, há menção de que tenham sido “roubados”, mas sim de que fugiram com ele. Mesmo nos casos contados de moças raptadas por homens de circo, suas histórias de vida permitem observar que de fato eram seduzidas por eles e acabavam fugindo com o circo na esperança de se casar com os artistas. O que, em muitos casos, acontecia34. Entretanto, eram notórios os casos dos que fugiam e se tornavam artistas, o que aumentava o fascínio de seguir as companhias e era suficiente para que a fuga e o roubo de crianças significassem a mesma coisa, fazendo aumentar a vigilância tanto dos pais quanto das autoridades. A partir da década de 1880, a vigilância transformou-se em legislação dos municípios, que passaram a se preocupar com a movimentação de crianças, penalizando os atos de “procurar perverter a mocidade, ainda incauta por sua minoridade” e “seduzir os pupilos dos outros para tê-los consigo”. Assim, os donos de circo que “levassem consigo crianças ou adolescentes estavam, sem dúvida, incluídos como infratores”35 .
Apesar de Benjamim não mencionar como era a organização da companhia com a qual fugiu, a maioria dos circos era constituída de grupos familiares – proprietários e artistas –, o que faz supor que o de Sotero também o fosse. Para ser integrado como membro de qualquer circo, o aprendizado era uma das condições de permanência, pois todas as atividades – desde armar ou desarmar o circo, cuidar da cerca, pintar, cuidar da manutenção, confeccionar o toldo de cobertura e de roda, tratar e cuidar dos animais, ser ferreiro, pintor, ferramenteiro, até ser artista – tinham como objetivo pro-
duzir o circo como espetáculo e reproduzi-lo como organização. Esse estilo de vida, que pressupunha praticidade e funcionalidade, não permitia que alguém vivesse no circo como “apêndice” ou “agregado”.
O que se observa em quase todos os registros de artistas que fugiram com o circo é a imediata entrada no processo de formação e aprendizagem do cotidiano circense, independente da origem36. Em uma das entrevistas, Benjamim relata o começo de sua vida profissional no circo, dizendo que para “fazer jus a um prato de comida” ele lavava cavalos e às vezes fazia atividades de copeiro na casa do empresário Sotero37 .
A princípio, parece que sua entrada no circo se mostrou como uma mera extensão de sua vida na Fazenda dos Guardas. Entretanto, logo em seguida acrescenta que pela manhã fazia exercícios de “bambu” – técnica de acrobacia aérea na qual um bambu é colocado nos ombros de um portô ou aparador, enquanto artistas acrobatas realizam exercícios aproveitando a flexibilidade do material para tomar impulso, também conhecido como percha. O termo “portô” é um abrasileiramento circense para a palavra porteur, com o mesmo significado usado pelos franceses. Às vezes, é também utilizado o termo “forte” para designar a pessoa que fica no solo sustentando o aparelho e a demonstração do outro artista, e “portô” ou “aparador” para a mesma função nos números aéreos. Além desses, Benjamim conta que iniciou os primeiros exercícios para saltar, o que é bastante significativo, já que a base dos ensinamentos, para todos, era aprender esse exercício: “a mãe da arte de todos os números feitos em circo é o salto”, como afirmava Barry C. Silva. Para o circense, aquele que não tivesse aprendido a saltar estaria restrito a realizar números que não exigissem habilidades acrobáticas. É por meio do salto que se adquire o equilíbrio, o “tempo certo do corpo”, aprende-se a cair. Esses são os aspectos fundamentais para qualquer número de circo, até mesmo para os palhaços e os atores dos dramas circenses38. Todo esse primeiro aprendizado foi orientado por Severino de Oliveira, artista da companhia, de quem se supõe que Benjamim adotou o sobrenome.
É provável que, pelo fato de Benjamim ser negro e ter vivido no período da escravidão, houvesse formas diferenciadas no trato. Inclusive, a bibliografia geralmente ressalta apenas esse aspecto. Entretanto, proponho outro olhar. O processo de formação e aprendizagem para aqueles cujas famílias já estavam no circo, até pelo menos a primeira metade do século XX, tinha início no seu nascimento. Para os que se juntavam às companhias, independente da idade, o processo iniciava-se quase de imediato. A criança, em particular, representava aquele que portaria o saber. No ensinar e no aprender
estava a chave que garantia a continuidade do circo, estruturado em torno dos grupos familiares; e, no circo-família, o ensino era de responsabilidade de todos. Mesmo que perdesse os pais, uma criança não era abandonada, sendo absorvida pela “família circense”: o que faz pensar que não havia como fugir do “destino” de ser circense.
Nem todas as crianças, porém, se sentiam aptas ou queriam aprender números que implicassem risco; havia no circo as que não podiam executá-los por problemas físicos ou simplesmente por não quererem aprender. Não era a maioria, até porque a chance de escolha era muito reduzida. Mas, nem mesmo nesses casos, deixavam de trabalhar em outras atividades, menos exigentes de destreza corporal. Entravam em esquetes, atuavam nas peças teatrais, participavam da organização do circo, trabalhavam na armação e na desarmação, na bilheteria. Era muito comum para essas crianças e jovens aprenderem a tocar instrumentos, cantar e dançar. Enfim, os números de risco não eram os únicos apresentados, sempre havia o que aprender e apresentar no espetáculo.
O mesmo ocorria com aqueles que não haviam nascido no circo, “gente da praça” que fugia com ele ou simplesmente a ele se incorporava. Esse “estranho” poderia até se tornar um formador de uma “tradicional família circense”, desde que passasse pelo ritual de aprendizagem dado por uma das “famílias tradicionais”. Qualquer pessoa poderia ser aceita pelos circenses, mas para isso tinha de aprender sua arte, não bastava se agregar para ser figurante ou participar de uma grande aventura39 .
As técnicas, aprendidas por meio dos ensinamentos de um mestre circense, eram a preparação para o número, mas continham, também, os saberes herdados dos antepassados sobre o corpo e a arte. A transmissão oral das técnicas pressupunha um método, ela não acontecia por acaso, mesmo que não seguisse nenhum tipo de cartilha. A dimensão tecnológica era indissociável da dimensão cultural e ética, e revelava como o grupo construía sua relação com o contexto social no qual se inseria. As alternativas e as soluções tecnológicas encontradas eram orientadas pelas referências culturais específicas dos grupos circenses; pois, em última instância, a tecnologia se inscreve, antes de tudo, como um saber. Não é demais recolocar a ideia de que no circo nada é apenas técnico.
A criança seria não só a continuadora da tradição, mas também um futuro mestre. Para ser um circense tinha de assumir a responsabilidade de ensinar à geração seguinte. Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a aprender” para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de
iniciação” – aprendizado e estreia – era um rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional circense. O contato com a geração seguinte era permanente, havendo um envolvimento direto na aprendizagem.
Por isso, Benjamim, ao ser iniciado nos primeiros passos acrobáticos para a realização de um número, o bambu, ministrado por um artista do circo, já estava integrado ao modo de organização circense no período e, como tal, era um partícipe de uma tradição oral, entendida não apenas como oralidade, mas como o conjunto das memórias gestuais, sonoras, de relações sociais e culturais, da qual faziam parte também os afazeres domésticos e o cuidado dos animais. Ele tinha, então, acesso à aprendizagem de saberes e técnicas que lhe permitiam tornar-se um artista de circo.
É interessante lembrar, dentre os vários registros de circenses sobre o cotidiano no circo40, o de Ferdinando Seyssel, pertencente a uma família de origem francesa que chegou ao Brasil na década de 187041. No livro escrito por seu filho, Waldemar Seyssel – o palhaço Arrelia –, tem-se a descrição das atividades de Ferdinando, que nasceu circense na Europa e se fixou no Brasil, no mesmo período em que Benjamim entrava para o circo.
[…] Levantávamos às quatro da manhã […] Chegávamos ao circo às seis horas e fazíamos uma limpeza rápida nos cavalos que iriam ser ensaiados. […] Terminados esses treinos, reconduzíamos os cavalos à cocheira, onde tornávamos a limpá-los. […] Nossa manhã era assim, dura e trabalhosa. […] Além de tudo isso, ainda tínhamos o dever de arrumar a casa e, às vezes, até de limpar a cozinha… e sem nenhuma queixa! Aquele que reclamasse, coitado, ia dormir com o traseiro bem quente… mas o castigo só era administrado depois do espetáculo, a fim de não estragar o entusiasmo artístico do rapazinho ou da mocinha. […]42
O que se pode observar pela descrição acima é que, em contato com o cotidiano circense, as “fantasias” encontram-se com uma realidade que pressupunha trabalho, disciplina, responsabilidades, hierarquias, conflitos e dificuldades. Benjamim relata uma rotina não muito diferente da que as crianças que já viviam ou tinham nascido no circo experimentavam. Tanto que, além das tarefas e do aprendizado dos primeiros saltos e acrobacias, ele tornou-se o “palhaço-cartaz” do circo: montado a cavalo, saía com a cara enfarinhada anunciando o espetáculo e cantando chulas43 .
Após um período de aprendizagem, chegou “finalmente o grande dia” da estreia de Benjamim: foi em Morro Mateus Leme, uma localidade pró-
xima à cidade de Pará de Minas, o que sugere, por um lado, que o tempo desde a fuga até então não deve ter sido muito longo, e indica, por outro, a possibilidade de algumas pessoas de sua cidade terem informação de onde ele estava. Entretanto, como não menciona nada a esse respeito, interessa neste momento que, independente do lugar e do tempo, ele foi preparado desde o início da fuga e logo incorporado como artista. Anunciado seu número com percha, apresentou-se “modestamente vestido” em um calção de cetim vermelho, “muito ordinário e uma blusa branca de algodãozinho”44 que, se não fez grande sucesso, também não desagradou. A partir da estreia, aprendeu e executou vários outros números de acrobacia, corda indiana, trapézio, além de se manter como “palhaço-cartaz”45 .
Depois de quase três anos trabalhando no Circo Sotero, percorrendo o sertão mineiro, fugiu pela segunda vez na vida. Duas razões distintas são relatadas por ele para essa fuga: a primeira, porque o dono o espancava muito, e a segunda era uma “suspeita infundada” de Sotero de que sua mulher o estivesse traindo com Benjamim46. Ambas as versões eram plausíveis, sendo a do espancamento a mais citada quando a história de sua vida é mencionada47 .
Não é minha intenção desconsiderar o relato de Benjamim ao falar das dificuldades por que passou na sua trajetória de vida e de formação artística, justificando que a fuga, as surras e a suspeita de traição eram devidas às perseguições que sofria pela sua condição social e racial. Havia, de fato, uma suspeição contra escravos e libertos, ou melhor, contra todas as pessoas que traziam na cor da pele a marca da escravidão.
Além do mais, casos de maus-tratos e espancamentos de crianças circenses aconteciam e eram noticiados nos jornais. Dois exemplos são citados por Athos Damasceno. O primeiro se deu em 1873, na Real Companhia Japonesa, que se apresentava no Teatro São Pedro, na qual o “prodigioso menino All Right”, de origem inglesa, fugiu do hotel onde se hospedava indo para a casa de um morador local se queixar de maus-tratos. Encaminhado ao Juizado de Órfãos, após exames, foram “constatadas diversas e sérias contusões disseminadas pelo corpo do queixoso”, sendo retirado dos japoneses e entregue a um curador. O autor somente informa que o circo sumiu da cidade. O segundo foi em 1875, no Pavilhão que Albano Pereira construiu em Porto Alegre, tratado no capítulo anterior, no qual trabalhava a família Nelson. Segundo o autor, espalhava-se, na cidade, que se infligiam maus-tratos ao menino Eduardo Nelson. Em uma noite de espetáculo a polícia interveio, invadiu o picadeiro, avançou contra cadeiras e galerias e dispersou o povo. O autor apenas diz que a atitude da autoridade policial foi deplorável,
desmoralizando o circo e a cidade48. Os circenses chegam a ser considerados “bárbaros”49, que chicoteavam seus aprendizes, submetidos a dolorosos exercícios. E mesmo esses exercícios eram vistos como excessivos, por um saber científico que começava a se afirmar50 .
Mas o que se pretende relativizar aqui é a ideia comumente aceita de que, pelo fato de ser filho de escravos, justificavam-se os maus-tratos. Retomando o relato de Ferdinando Seyssel, apanhar e ser castigado não eram “privilégios” de alguns, mas de todas as crianças dentro do circo, filhos ou não dos proprietários, “rapazinhos ou mocinhas”. Barry Charles Silva afirmava que seu pai ou quem ensinava batia nas crianças como seus pais e avós faziam. A família de Barry veio da Europa como saltimbancos e circenses e chegaram ao Brasil por volta da década de 1870. Ele, que nasceu em 1931, acrescentava:
naquela época se apanhava para aprender, meu pai era enérgico. Quer dizer, enérgico demais para ensinar a gente, batia e ensinava fazer os números com perfeição. Por exemplo, para você fazer uma carreira de flyflap – aquele salto que você bate a mão no chão depois volta em pé – para não entortar para um lado e para outro, ele punha uma carreira de cadeira de um lado e do outro, para não sair da linha, se pegasse as pernas, azar.51
Segundo ele, o pai estava apenas repetindo o modo como seu bisavô e seu avô aprenderam e ensinaram.
No segundo relato, Benjamim diz que, silenciosamente, desapareceu, afirmando o que poucas vezes foi encontrado em suas inúmeras entrevistas: “Meu destino era fugir. Destino de negro…”52 Dessa vez incorporou-se a um grupo de ciganos, não explicando como e por que isso se deu, nem quais foram suas atividades enquanto permaneceu entre eles, apenas dizia que eram ciganos caldeireiros, o que, segundo Benjamim, era uma profissão que procurava “encobrir a verdadeira, que era de ladrões de cavalos”53 .
Sabe-se da presença de grupos ciganos em terras brasileiras desde o século XVIII54. No século XIX, os “ciganos nacionais” (para se diferenciarem dos “estrangeiros”, quase sempre provindos das regiões balcânicas) tinham como atividade o “comércio” de animais – cavalos, burros e gado. Aquele “comércio” frequentemente aparecia nos documentos da época como denúncias policiais de trocas ou venda de cavalos roubados55 .
José B. d’Oliveira Cunha afirma que, além de “negociantes” de animais, os ciganos no Brasil tornaram-se fortes traficantes e comerciantes de escra-
vizados. No início do século XIX, sua presença na cidade do Rio de Janeiro é relatada como aqueles que “serviam os revendedores de escravos africanos” e negociavam os cativos com particulares56. Na década de 1880, espalhando-se por quase todo o território nacional, vários grupos embrenharam-se pelos sertões, onde podiam transportar e negociar melhor escravos e cavalos, mantendo certa distância dos controles praticados nas cidades grandes e na capital do império57. Particularmente o sertão de Minas Gerais teria sido, “desde os tempos coloniais”, uma das regiões que mais receberam esses grupos. Em 1885, “um bando de cento e tantos ciganos” teria entrado pelo estado de São Paulo, vindo dos sertões de Minas, e acampado na cidade de Caçapava. Segundo o jornal O Paiz, uma tropa cercava a “‘povoação’ dos ciganos, que, parece, têm enriquecido com o negócio de animais”, e na qual havia “vinte e tantos cativos”, que “lavavam, lenhavam e coziam”58 . Mesmo que Benjamim não fale como era seu cotidiano entre os ciganos, é de supor que tenha vivenciado uma relação escrava, pois descobre, por uma moça do grupo, que iriam vendê-lo, ou melhor, trocá-lo por um cavalo. Mas ele consegue, por meio de uma combinação com a menina, fugir dos ciganos, fato na época, segundo a bibliografia, tão ou mais difícil e perigoso do que fugir de proprietários não nômades.
O grupo estava tão embrenhado pelo sertão mineiro adentro que Benjamim teve de andar umas “sessenta léguas a pé para atingir uma vila em que pudesse viver”59. No trajeto, foi preso por um fazendeiro que o julgou fugido de alguma fazenda próxima. Era comum homens e mulheres negros forros serem presos, tanto na cidade quanto nos campos, e terem que provar a condição de libertos, geralmente através do documento de alforria. Benjamim disse ao fazendeiro que, além de não ser fugido, possuía uma profissão, era circense. Sem nenhum documento que comprovasse tal alegação, fez uma demonstração das habilidades acrobáticas aprendidas e realizou alguns saltos. Talvez porque a presença negra não fosse incomum nos espetáculos circenses, sendo do conhecimento da população do interior do Brasil, Benjamim conseguiu um bom resultado em sua demonstração e foi autorizado a continuar seu caminho. Era o acervo técnico, aprendido no circo, que utilizava para se “safar” de uma situação como essa.
Benjamim diz que, após caminhar por várias vilas mendigando, conseguiu chegar ao estado de São Paulo, à cidade de Mococa, entre 1885 e 1886, onde encontrou trabalho em um circo de pau a pique dirigido por um norte-americano chamado Jayme Pedro Adayme, que já circulava por São Paulo e Rio de Janeiro desde pelo menos 1860 com uma companhia equestre e
zoológica60. Não há muitos detalhes do que apresentava em seus espetáculos nesse período, sendo apenas mencionado que Adayme fazia mágicas e Benjamim, acrobacias, mas, tomando por base as exibições dessa companhia em anos anteriores, é possível aventar que as funções continham variados números equestres, ginásticos e com animais selvagens. Pela primeira vez, há referência quanto à remuneração pelo trabalho de Benjamim: o diretor lhe pagava 2$000 réis por espetáculo, o que, conforme seu comentário, “naquele tempo era um bom dinheiro”.
Para ter uma ideia, o preço médio de licença de funcionamento, cobrado pelas Câmaras Municipais, girava em torno de 10$000 réis. Além disso, cobravam-se 2$000 réis a mais por noite de espetáculo, valor que consta do Código de Posturas e Regulamento Interno da Câmara Municipal de São João del Rei61. Apenas como comparação, o Circo Chiarini, de Giuseppe Chiarini, “mestre das Arlequinadas”, pagou à mesma Câmara dessa cidade, em 1834, $400 réis de licença. Apesar de o valor de cobrança depender das Posturas Municipais de cada cidade, não há muita diferença entre as cidades no período, como se pode observar, por exemplo, em Porto Alegre62. Os mesmos 2$000 réis eram pagos pelos espectadores pelo ingresso nas cadeiras (pagavam também os que levavam seus próprios assentos), e as gerais ou arquibancadas custavam 1$000 réis.
Durante todo o século XIX não se encontrou grande alteração nos preços de cadeiras e nenhuma nos preços para gerais e galerias, tanto para os circos quanto para os teatros. Nas várias fontes pesquisadas desse período, é mencionada a presença de escravos nas gerais, o que denota que o valor de 1$000 réis tornava o espetáculo acessível à maior parte da população das cidades. O mesmo preço das gerais e, geralmente, das cadeiras era cobrado quando se apresentavam em teatros, como no Teatro Imperial D. Pedro II do Rio de Janeiro; na apresentação da Companhia de Phenomenos do sr. Schumann, as cadeiras de segunda classe custavam 2$000 réis e as galerias, 1$000 réis63. Dezoito anos mais tarde, anunciava-se o Circo de Frank Brown no Teatro São Pedro de Alcântara (hoje João Caetano) com os mesmos preços de cadeiras e gerais64 .
Considerando que, na maioria, os circos no interior trabalhavam às quintas-feiras, aos sábados e domingos, se não chovesse, um artista como Benjamim poderia receber em torno de 24$000 réis por mês. Em pesquisa realizada no cartório de Pitangui (MG), o genealogista Guaraci de Castro Nogueira encontrou o Processo nº XI-4 – ano 1878 em nome de Cornélio Evangelista de Queirós65, que tratava de pecúlio feito “pelo escravo Malaquias”,
pai de Benjamim, que teria pagado 23$000 réis para comprar sua liberdade. Apenas como comparação, a princípio, parece que Benjamim recebia por mês mais do que seu pai havia juntado para comprar sua liberdade.
O aprendizado de Benjamim no Circo Sotero, onde aperfeiçoou as técnicas circenses, permitiu-lhe, mais tarde, ser contratado por outras companhias, como o circo de Manoel Barcelino, que estava em Nazareth, um lugarejo próximo a São João del Rei (MG). Segundo Benjamim, esse teria sido seu “grande mestre”, aquele que lhe havia passado o “verniz” e possibilitado “criar asas”66. Benjamim trabalhou com Barcelino até aproximadamente 1888, mas só em 1892 o localizamos apresentando-se na cidade de Campinas, já anunciado como “afamado artista popular brasileiro”67. Os elementos ali referidos são constantes em vários circos do período – o que permite ter uma ideia das atividades artísticas que Benjamim teria vivenciado, aprendido, de que teria participado ou mesmo aperfeiçoado nesse espaço. Esse circo ocupou diferentes lugares em suas exibições – tanto armando seu toldo na praça Carlos Gomes quanto no teatro da cidade, o Rink-Campineiro. Esse teatro foi inaugurado em 1878, ao som da Banda Carlos Gomes, além de ter sido referência para o esporte da patinação, espécie de coqueluche da época. Nas duas décadas seguintes, abrigou os mais variados tipos de atividade e expressão artística: operetas, dramas, comédias e circos68 .
A maneira como a companhia de Barcelino se apresentava nos jornais confirma a presença da mistura de gêneros artísticos: equestres, ginásticos, acrobáticos, bailarinos, zoológicos e, principalmente, mímicos. Não se tratava de um grupo pequeno, pois era composto de “25 artistas de 1a ordem”, entre os quais 12 de uma única família, os Almeida, além de “3 clowns, 1 palhaço, 12 cavalos, 2 porcos sábios, 1 anta amestrada, grande coleção de cachorros de diversos países”. No mesmo anúncio, o circo acrescentava que a companhia realizaria poucas funções, pois estava se preparando para estrear no Politeama de São Paulo, que estava em reparos69 .
Em Poços de Caldas, no fim de 1888, Benjamim foi visto ainda com Barcelino por um empresário vindo do sul70, o artista e diretor circense Fructuoso Pereira, que, tendo gostado de sua exibição, contratou-o, segundo ele, com seu primeiro salário fixo mensal, no valor de 50$000 réis71 .
No circo de Fructuoso, Benjamim desenvolveu outras habilidades e potencialidades, além das que realizava até então. Criar asas como artista permitiu-lhe aumentar os trajetos percorridos, que anteriormente restringiam-se a Minas Gerais, e, com ambos os circos, percorreu todo o estado de São Paulo.