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“CORAÇÕES, OLHOS E OUVIDOS”
porém, que era apresentada por companhias teatrais nacionais devido à concorrência com as estrangeiras, pois restavam àquelas as peças de “qualidade reputada inferior e de grande heterogeneidade: o dramalhão, a comédia tendente à farsa, a opereta traduzida e adaptada, a revista do ano, a mágica”86. Entretanto, não é o que temos visto neste trabalho, pois não é possível dicotomizar nacionais e estrangeiros por tipos de espetáculo.
O grande número de gêneros produzidos e apresentados pelos artistas dos circos era compatível com a multiplicidade de ofertas culturais do período. O espetáculo circense se constituía de uma produção que encarnava a própria ideia dos espetáculos de variedades. As pantomimas permaneciam como elemento principal, usadas para finalizar os espetáculos com “emoções apoteóticas”, explicitando cada vez mais a presença da mágica em suas montagens. A teatralidade circense explorou abundantemente essa variedade (não só nas pantomimas, como em outras representações teatrais), durante todo o fim do século XIX; seguindo ainda, em parte, a herança europeia, dava ênfase aos temas heroicos, a grandes batalhas e combates entre tropas e quadrilhas de bandidos.
“CORAÇÕES, OLHOS E OUVIDOS”
No correr da década de 1880, algumas propagandas circenses nos jornais começaram a descrever essas montagens e representações. Por essas descrições é possível ter uma noção da construção da trama e do cenário, do conjunto de conhecimentos que aqueles artistas detinham na produção do espetáculo, da maneira como se dava a criatividade do trabalho circense na construção do espaço de representação, na forma e nos gestos. Um desses casos foi a pantomima O terror do século XIX, Cypriano La Galla ou Um episódio de brigantes na Calábria. Anunciada para ser representada no Teatro Rink-Campineiro em 1882, pelo Circo Universal – sob direção dos Casali associados aos Borel –, o anúncio informava ser uma “pantomima histórica” mostrada “em importantes cidades da Europa e da América”. Só na cidade de São Paulo tinha sido exibida “30 vezes consecutivas no ano de 1876”, e o diretor, agradecido que estava ao público de Campinas, resolvera reapresentá-la sem “poupar despesas”. A história passava-se na Calábria, no ano de 1862, e seria executada por 50 pessoas, dentre as quais se destacava a presença de nove artistas que representariam os papéis de destaque. O elenco principal era
composto dos mesmos artistas da primeira parte do espetáculo, no qual eram exibidos acrobacias de solo e aérea, animais, reprises e entradas de palhaços. Essa característica é fundamental, pois será a marca do conjunto que constituiu o circo-teatro e permaneceu com esse formato até por volta da década de 1970 e, em alguns poucos grupos circenses, até hoje.
Naquele espetáculo, os papéis obedeceram à seguinte distribuição87: o papel do vilão Cypriano La Galla foi confiado a Hypolito Borel, que, além de ser um dos diretores-proprietários, era anunciado como “compositor de pantomimas”; o herói Arthur foi desempenhado por Henrique Ozon, que era “equestre e pulador” (ou saltador); os dois papéis cômicos, do ajudante do vilão e Bobo, ordenança do herói, couberam, respectivamente, a João Maria Ozon, que era ginástico e aramista, e Antonio Borel, também equestre. Ambos, entretanto, eram palhaços da primeira parte do espetáculo. O papel da mocinha Luiza ficou a cargo de Marietta Borel, artista equestre e ascensionista; o pai da mocinha, o general governador, foi desempenhado pelo ginasta e mímico Agostinho, e Maria Galla, mulher do vilão, representada por Maria Cândida, equestre, saltadora, mímica e dançarina. O restante do elenco era composto dos outros artistas da companhia, inclusive dez empregados do circo, que representaram os papéis de brigantes, soldados, cavaleiros e serviçais.
As cenas se passavam nas montanhas da Calábria, e combates de fogo e armas brancas, cavalaria e bailes faziam parte do enredo. Pela descrição das cinco cenas, pode-se ter uma ideia de como se desenvolvia a trama:
cena 1 – Reunião dos brigantes – chegada do chefe – ordem do mesmo. cena 2 – passeio do General – morte do mesmo pelos brigantes – roubo da filha Luiza por Cypriano. cena 3 – chegada de Arthur e suas tropas – descoberta das bebidas envenenadas – um aviso terrível – tudo para a vida. cena 4 – a vingança – a descoberta de Luiza por Arthur. cena 5 – ferimento de Arthur – fuzilamento de Luiza – chegada de Arthur em socorro dela com suas tropas – grande combate entre os militares e os brigantes – morte de Cypriano La Galla.88
Como já se viu, no século XIX, muitos teatros tinham uma estrutura preparada para receber circos, ou mesmo eram reformados para essa finalidade. Neles havia um palco onde se desenvolviam as cenas compostas somente de atores e músicos, nas quais se pressupõe já houvesse diálogo, além dos
cantos e das danças. Em frente ao palco, uma pequena arena, onde os combates e as tropas de animais faziam suas apresentações. Quando se realizavam em circos de pau a pique ou com toldos – como o circo do norte-americano que Benjamim encontrou após a fuga dos ciganos –, usualmente também era construído um pequeno palco acoplado ao picadeiro; em outros, toda a encenação acontecia no picadeiro, fosse ele forrado de madeira ou direto na terra. Nesse caso em particular, a apresentação ocorria em um teatro, o Rink-Campineiro.
Nos jornais campineiros pesquisados para este trabalho, Diário e Correio de Campinas, nas três últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do XX, são poucos os períodos em que não se apresentavam circos na cidade, armando seus toldos em vários terrenos. O Teatro Rink-Campineiro também se tornou um espaço privilegiado para circos intercalados com companhias teatrais e de variedades, além de ser referência para os bailes em geral e os carnavalescos, em particular89 .
Mesmo não havendo um detalhamento de como era montado o cenário da pantomima, é possível supor que havia montanhas, pontes e precipícios construídos, procurando-se imitar ou se aproximar dos moldes de como se realizavam essas pantomimas nos teatros e nos circos da Europa, conforme dados e relatos de pesquisadores circenses90 .
Para além dos cenários, das lutas e dos combates, ressalta-se o enredo com todas as características do melodrama, gênero amplamente debatido e criticado, desde quando surgiu em fins do século XVIII91. Tanto seus autores quanto os artistas e as plateias que o apreciavam foram acusados, muitas vezes, de serem os responsáveis pelo “atraso” da formação de um teatro e uma literatura com função social, civilizadora e educativa. Como já visto, esse foi um dos gêneros mais explorados pelos teatros dos boulevards e circos europeus e brasileiros durante todo o século XIX e boa parte do XX, desde a pantomima historique et romanesques até os melodramas dialogados, musicados e cantados. É bom ressaltar que as representações teatrais, as de cunho melodramático, entre outras, estarão presentes no repertório dos circos brasileiros até pelo menos o início da década de 1980, sempre, é claro, com diversas adaptações, variações, incorporações de temas contemporâneos. Alguns circos pequenos ainda hoje fazem remontagens de antigas peças teatrais que foram produzidas e encenadas no início do século XX92 .
Para Arnold Hauser, esse gênero, que nasceu durante a Revolução Francesa, teria aberto as portas do teatro para “as grandes massas populares”, sendo o “êxito das peças representadas determinado por essas classes”93 .
Peter Brooks, analisando essa questão da crescente e duradoura relação que o público teve com o melodrama, afirma que as produções melodramáticas acabavam por assumir uma função de “redescobrir e expressar os mais básicos sentimentos morais e o de render homenagem ao signo do bem”. Nesse sentido, foram profundamente “democráticas não só pelo público a que se dirigia, mas também pelos temas de que tratava”, representando, assim, uma “democratização da moralidade e de seus signos”94 .
José Guilherme C. Magnani afirma que esse gênero, contrapondo-se ao drama romântico “fatal, tenebroso, revoltado contra a sociedade, secretamente tentada pelo mal”, colocava-se como sentimental, moralizante e otimista. A concepção melodramática encarava o teatro como representação e não como texto literário, deixando assim à criatividade do ator a tarefa de lhe infundir vida, com seu próprio talento. Procurando atingir “coração, olhos e ouvidos”, a música que abria o espetáculo “marcava entradas e saídas, ressaltava momentos de emoção e suspenses; os cenários – faustosos, variados, exóticos”. No desenrolar das cenas apareciam raptos, duelos, grandes batalhas, assassinatos, e utilizavam-se fartamente apartes e monólogos, que “ajudavam o espectador a acompanhar as peripécias e desconcertantes reviravoltas do enredo, protagonizado por personagens exaltadas que externavam a violência de suas emoções através de falas e gestos altissonantes”. A escrita, a música e a representação tinham como objetivo atingir sentimentos de ódio e vingança, piedade, ternura, melancolia, tristeza, sempre num embate entre o bem e o mal, adquirindo “inteligibilidade ética através de uma leitura marcadamente maniqueísta”95 .
Arnold Hauser também nos ajuda a ter uma ideia de como eram constituídas essas tramas, que possuíam uma estrutura “estritamente tripartite, com fortes antagonismos como situação inicial, uma violenta colisão e um desfecho que representa o triunfo da virtude e a punição do vício”. Numa palavra, diz ele, uma história facilmente entendida e economicamente desenvolvida; com a prioridade da trama sobre os personagens; com figuras bem definidas: o herói, a inocência perseguida, o vilão e o cômico; com a cega e cruel fatalidade dos acontecimentos; com uma moral fortemente enfatizada que, por sua tendência insípida e conciliatória, baseada em recompensa e castigo, discorda do caráter moral da tragédia, mas compartilha com esta uma elevada, embora exagerada, solenidade96 .
Tais características estavam presentes na pantomima levada pelo Circo Universal em 1882, assim como na maioria das representações teatrais exibidas nos circos do fim do século XIX. O que se observa é que, se o melodrama
abriu as portas do teatro para as grandes massas, os circenses – que em sua própria formação na Europa já tinham em seu repertório a encenação de pantomimas dialogadas e grand spectacle –, junto com os artistas dos teatros de feiras, também levaram esse gênero ao público em geral.
Apesar da presença de produções europeias nos circos brasileiros, os circenses introduziram em seus espetáculos a presença nacional tanto de textos da dramaturgia como do romance-folhetim. É o caso da ópera em três atos O fantasma branco, de Joaquim Manuel de Macedo97. Embora tenha sido encontrada apenas uma menção dessa montagem em circo, no ano de 1870, no Circo Americano, instalado na cidade de Porto Alegre98, sem detalhes de como ela se deu, essa informação é importante para apreender a capacidade de incorporação de autores e temas que o público preferia e sua fluida circulação por diferentes estilos de atuação.
Considerado “o mais popular romancista da sua época”, era também pejorativamente visto como um “autor fácil e fecundo”, que passou sem muita “convicção ou força por todos os gêneros teatrais disponíveis no momento”99 . Foi também um dos primeiros autores de romances-folhetins, gênero “irmão gêmeo” do melodrama, lançando mão de “repetições, numa recorrência insistentemente configuradora de quadros e situações para aqueles leitores e espectadores apenas alfabetizados, que eram a maioria”100 .
Quando da montagem de O fantasma branco no teatro, em 1866, Machado de Assis, em sua crônica para o jornal Diário do Rio101, escreveu que o “Sr. Dr. Macedo” gozava da “reputação de poeta cômico”; entretanto, questionava ele, até que ponto seria legítima aquela reputação? Para Machado, mesmo que Macedo fosse conhecedor dos “grandes modelos da comédia”, ele, na verdade, não os empregava na produção de “obras de superior quilate”, não conseguindo penetrar no importante domínio da “alta comédia, da comédia de caráter”, tendendo sempre “para um gênero menos estimado”102. Apesar de o gênero não ser tão acatado, pelo menos para o crítico e seus pares, Machado não consegue negar que tais obras recebiam muitos aplausos por causa de duas características que o “Sr. Dr. Macedo” empregava em suas comédias: a sátira e o burlesco103 .
O enredo de O fantasma branco tratava da educação dos filhos. Na trama havia duas histórias: numa “o amor entre primos cujos pais são inimigos; e noutra, também considerando o amor entre primos, mas sob a escolha dos
pais. As duas histórias ocorrem na mesma família: são dois irmãos e uma irmã com filhos para casar”104. Um dos irmãos é Tibério, um velho militar que Macedo quer expor ao ridículo por ser covarde, montar mal, cair do cavalo, ter medo de fantasmas, embora negue tudo isso. Basílio é lavrador e pai de José, estudante de medicina; e Galateia, irmã mais velha, inimiga de Basílio e mãe de Maria, que é apaixonada por José, sendo correspondida. Este, fingindo-se de fantasma, encontra-se com a prima às escondidas. A trama de equívocos fica em torno de críticas à vida do Rio de Janeiro em benefício do que se faz nas províncias, enaltecendo a vida rural. Em meio a essa trama, a comicidade ocupa um espaço grande pelas figuras de Tibério e da briga dos irmãos. Tudo acaba em um final feliz.
Apesar de Machado reconhecer no autor do texto burlesco “certo esforço e certo talento”, afirmava que aquele gênero era um meio “fácil de fazer rir as plateias”105. Mais do que os temas tratados nas sátiras burlescas de Macedo, a questão, para Machado, era a forma como eram apresentados. E, explicitando o que seria um problema de forma, exemplifica que a “covardia e a fanfarronice do capitão Tibério, as rusgas de Galateia e Basílio, a rivalidade dos dois rapazes, as entrevistas furtivas de Maria e José, podiam dar observações cômicas e cenas interessantes”; entretanto, mesmo que não quisesse se prestar a ser uma alta comédia, O fantasma branco poderia ter tido outro alcance; mas não o teve, pois o “defeito e o mal” estavam em que o autor cedia “geralmente à tentação do burlesco, desnaturando e comprometendo situações e caracteres”106 .
Mesmo sem a descrição na propaganda do circo sobre como teria sido a montagem da pantomima, pelo modo como Machado de Assis, ao criticar a peça, aponta exemplos de cenas que deveriam ser reescritas para serem consideradas cômicas e não burlescas, pode-se supor que as mesmas cenas se adaptavam ao picadeiro. Quando os dois filhos do capitão Tibério, rivais de amor, marcam um duelo na montanha do fantasma, ambos são tão covardes que, ao mesmo tempo, têm ideias de se esconder no vão da escada. Muitas vezes “sacrificando” a verdade de “um caráter para produzir um efeito a uma situação”, a cena é cheia de apartes em que cada um deles mostra receio de ser morto pelo outro: “esbarram-se, caem, pedem desculpas mutuamente”, o que levava os espectadores rirem às gargalhadas107. Para que fosse considerada uma cena cômica (isto é, da alta comédia, segundo Machado), deveria ser reescrita fazendo com que os rivais ficassem refletindo dentro de suas casas a não ida ao duelo; assim não teriam oportunidade de encontros sugerindo quiproquós, quedas, encontrões etc. Mas, lamenta esse crítico, Macedo,