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“CÓCEGAS À PLATEIA”

“CÓCEGAS À PLATEIA”

Três anos depois, em 1899, pode-se confirmar o quanto Benjamim já havia acumulado do conhecimento que lhe permitiu desenvolver novas funções, definindo, cada vez mais, contornos e características da produção de uma teatralidade circense no Brasil, importantes para a constituição do circo-teatro. Em maio desse ano, na cidade de São João del Rei, Benjamim estava no Circo Zoológico Brasileiro56. Não há indicação de quem era o proprietário desse circo e, como ele não menciona esse período, pode-se supor que fosse tanto Sampaio quanto o Spinelli, pois ambos possuíam animais. É mais provável, entretanto, que seja Spinelli, tendo em vista que Benjamim menciona em seus relatos que com esse empresário teria voltado a viajar pelo Brasil, em particular Minas Gerais. Benjamim diz que em suas viagens com Spinelli, pelo Brasil, havia visto muita coisa: “Vi o Curral del Rey se tornar Belo Horizonte.” Assim, mantém-se a hipótese de que seja aquele o proprietário do Circo Zoológico Brasileiro, mesmo que a mudança do nome da capital mineira tenha ocorrido em 1893, e o período aqui referido seja 189957 .

Em 17 de agosto, com o mesmo circo, o jornal Diário de Minas, da cidade de Belo Horizonte, anunciava um espetáculo em benefício da “capela de Santa Efigênia”, no qual o “Palhaço Benjamim” reservaria para a noite “um lundu baiano de fazer cócegas à plateia” e “xistosas pilhérias” que iriam “deleitar o Zé Povo dessa Capital”; além da banda de música da companhia, tocaria a do “I Batalhão de Polícia”. Três dias depois, o circo chamava a “atenção do público” para a “aparatosa pantomima Os garibaldinos, ensaiada a capricho pelo aplaudido e popular palhaço Benjamim de Oliveira, com 16 quadros e 14 números”, da qual faziam parte 60 personagens58 .

O tema das pantomimas em torno de Garibaldi, nas suas mais diferentes versões em português ou espanhol, era bastante comum, fazendo parte das permanências de um modo de produzir o espetáculo. Talvez não devesse ser novidade também para o “Zé Povo” do período ir ao circo ouvir um palhaço tocar, cantar e dançar um lundu baiano.

Voltando rapidamente a um tema já tratado, não é possível, nesse caso, identificar a divisão entre lundu de salão e lundu tocado e cantado por palhaços de circo, como sugere Tinhorão, sendo o primeiro “transformado pelos brancos em canção irônica e bem-humorada”, ao estilo das “modinhas romântico-sentimentais”, e o segundo, humorístico e, às vezes, obsceno. O que se tem defendido neste trabalho é que o espetáculo circense no período era assistido por um público heterogêneo, que frequentava salões, boêmias

e serestas. Dessa forma, se considerarmos que esse lundu baiano foi cantado numa festa em benefício de uma capela, não se pode associar um tipo de lundu a um público específico, e vice-versa. Ao contrário, o que importa é levar em conta quem, onde, quando e para quem se está tocando e dançando. Mesmo considerando que Santa Efigênia, antes da abolição, fizesse parte dos santos patronos das irmandades formadas por homens e mulheres negros, será que os fiéis daquela capela de Belo Horizonte, em 1899, e que foram assistir ao circo, eram somente negros e não frequentavam os salões aristocráticos59?

Além do lundu, a propaganda informava sobre outra participação de Benjamim no espetáculo: como ensaiador. No século XIX e boa parte do XX, não existia a função de diretor teatral60. Qualquer que fosse o espaço – circo ou teatro –, a pessoa que exercia tal função era chamada de ensaiador ou responsável pela mise-en-scène, realizada pelo diretor-proprietário do circo (como nos casos de Podestá, Casali, Albano Pereira, entre outros) e, nas companhias teatrais, pelo diretor ou por um artista responsável (como o artista Heller ou o mais conhecido no século XIX, o ator Furtado Coelho)61. Rosyane Trotta, ao descrever a “técnica dos ensaiadores” naquele período, diz que cabia a eles, em linhas gerais, “marcar o espetáculo”, ou seja, um “bom ensaiador” era “aquele que, no menor prazo de tempo, articulava os atores de modo que não se esbarrassem e tornassem a cena compreensível”; os cuidados com os objetos de cena e os horários dos atores eram tarefas adicionais62. No texto da autora, essa descrição refere-se apenas à “história do teatro brasileiro”, não fazendo parte de sua pesquisa a produção do circo-teatro.

O termo “ensaiar” entre os circenses não se referia (e não se refere) apenas às representações teatrais. Toda preparação para qualquer que fosse o número era chamada de ensaio e poderia ser feita individualmente ou em grupo, com o acompanhamento de um mestre. No caso das pantomimas, entradas de palhaço, danças ou números musicais, vários circenses, que nasceram no circo ou se incorporaram a ele nas décadas de 1910 e 1920, informaram que uma pessoa era encarregada ou contratada para ser o ensaiador, chegando alguns diretores a contratar ensaiadores dos teatros para trabalhar nos circos63. Porém, geralmente, era um artista da própria companhia que se destacava, porque conseguia dominar a maior parte das linguagens artísticas, unindo esses elementos aos seus conhecimentos da estrutura do circo em geral – a disposição dos atores no palco/picadeiro redondo (sempre um deles estaria de costas para o público), o som, a iluminação. É interessante comparar a descrição que os circenses fazem da função do ensaiador

5. Victória Maia de Oliveira e Benjamim de Oliveira.

no circo à que Jean-Jacques Roubine fez em seu livro que trata da linguagem da encenação teatral de 1880-1980, que seria a “concepção moderna” da função do diretor ou encenador. Sua tarefa liga-se a uma “visão teórica que abrange todos os elementos componentes da montagem […], [dando] sentido global não apenas à peça representada, mas à prática do teatro em geral”64. Os cuidados com os objetos de cena e os horários dos atores não eram tarefas adicionais, também faziam parte das atividades do ensaiador circense, o que, portanto, deve ter sido feito por Benjamim de Oliveira ao ensaiar 60 pessoas, articulando-as de modo que tornasse os 16 quadros e os 14 números compreensíveis.

Não se sabe se o público se deleitou; é possível, pois a montagem do espetáculo refletia bem a contemporaneidade com as formas e os gêneros das manifestações culturais, misturando lundu, banda da companhia e militar e representação teatral. Era a própria expressão do teatro musicado da época, que os artistas circenses e seus palhaços produziam e divulgavam. Como o leitor já deve ter percebido, neste trabalho inclui-se a pantomima como um gênero do teatro musicado, fato não encontrado em nenhuma bibliografia que trata da “história do teatro”. Geralmente, os gêneros mencionados, que comporiam o teatro musicado, são as operetas, revistas do ano, burletas, vaudevilles etc. Vale lembrar que nas pantomimas circenses, além do gestual, a música tocada, cantada e dançada era definidora de seus enredos.

Benjamim, em uma de suas entrevistas, afirmou ter sido ele quem teria lançado a “forma de teatro combinado com circo, que mais tarde tomaria o nome de pavilhão”65. Como se viu, o modo de construir e até a própria combinação do que se chamou “pavilhão” já estavam presentes nos vários circos com que Benjamim teve contato, fornecendo a ele todo um conjunto de conhecimentos sobre a produção da teatralidade circense. Se não se pode dizer que ele tenha “inventado” o “pavilhão”, entretanto, de fato, naquele período, além das apresentações de palhaço-cantor, instrumentista e ator, ele já havia iniciado sua produção como autor das cenas ou entradas cômicas e ensaiador das montagens teatrais representadas no circo, que contribuiriam para a construção de novas formas da produção do espetáculo.

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