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HUMOR, SÁTIRA E FILOSOFIA
E a partir daí se iniciavam perguntas e respostas entre o palhaço e um coro, geralmente crianças:
Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor148
HUMOR, SÁTIRA E FILOSOFIA
A partir do fim da década de 1870, o destaque na programação era o “palhaço brasileiro”, pois ele conseguia se comunicar “atravessando” todas as formas artísticas desenvolvidas nos palcos/picadeiros circenses. Chiarini, em 1876, já anunciava “o primeiro bufo brasileiro Antonio Correa” como um palhaço que se apresentava tanto nos intervalos, com “humor, sátira e filosofia”, como na encenação da Cavalaria Turca, “simulacro da gloriosa batalha campal dada pelo general em chefe, Ab-dul-Crachat, e registrada nos anais muçulmanos”149. Em depoimento a Mário de Andrade, em 1928, um senhor recordaria o palhaço “Antoninho Correia” no Circo Casali, em 1876, em São Paulo, cantando, com a cara pintada de preto, o Lundu do Escravo150 . Dois anos depois, “Antonio de Souza Correa (Antonico)”151 se apresentava no mesmo circo, mas agora em companhia de outro palhaço, Freitas: o “simpático palhaço” brasileiro “tocador de violão” que, em uma noite de “grande pagodeira”, apresentaria “novas canções e modas espinhosas”, além de terem sido os personagens principais da “cena jocosa o Regadeiro Mágico” e da pantomima que encerrava o espetáculo152 .
As “novas canções” ficavam por conta das chulas e dos lundus, que os palhaços interpretavam sozinhos, em duplas ou acompanhados pela banda do circo. O palhaço português Polydoro, além de cantar e dançar, fazia “discursos burlescos” no circo de Manoel Pery153, onde também se apresentava o brasileiro Augusto Duarte154 que, com suas “chulas, lundus e galhofas”, tornava-se um “verdadeiro motor da franca gargalhada”155. O nome de Polydoro era José Manoel Ferreira da Silva. Para uma parte dos memorialistas circenses, era considerado “o pai dos palhaços brasileiros” e quem “lançou a moda dos palhaços-cantores, apresentando tanguinhos, chulas e charadas”. Teria começado sua carreira como “ginasta amador em 1870. Em 1874, foi contratado pelo Circo Elias de Castro156. Adotou o nome Polydoro em homenagem
ao General Polydoro a quem representou uma comédia de grande sucesso157 . Viajou todo o Brasil e foi para a Argentina com Frank Brown”158. As chulas cantadas nos espetáculos não eram apenas as quadrinhas repetidas pelos palhaços-cartaz, mas apresentavam ritmos sincopados afro-brasileiros, acompanhados frequentemente por violão, tocados e dançados em vários espaços por diversos artistas.
Tinhorão enfatiza a importância dos circos como veiculadores das formas do teatro musicado das cidades, reservando à figura do palhaço, além de sua função cômica, “a de equivalente dos cançonetistas de teatro e, mais tarde, dos cantores de auditórios do rádio”, cantando ao violão modinhas e lundus, o que teria sido possível porque, “vindo os palhaços invariavelmente das camadas mais baixas do povo, a sua adesão ao gosto boêmio das serenatas e do violão podia ser julgada obrigatória”159. Por conseguinte, os palhaços fariam parte da mesma parcela da população que tanto esse autor como os demais definem como tocadores e dançadores das umbigadas, da chula, do fandango, do fado, do lundu etc.
De fato, o que vem sendo discutido sobre a formação dos artistas circenses e a constituição do espetáculo confirma em parte as análises de Tinhorão. A própria entrada de Benjamim é um exemplo, entre vários, da presença de artistas locais e de pessoas que acompanharam os circos, intercambiando suas experiências de vida com as circenses. Porém, esse autor só identifica a presença de palhaços-cantores-compositores-atores nas décadas de 1890 a 1910, destacando a “elevação de negros talentosos das baixas camadas ao papel de palhaços”160 .
Na verdade, todos esses elementos já estavam presentes desde muito antes, como temos visto. Além do mais, fandango, umbigadas e estalar dos dedos, e o resquício da dança espanhola árabe misturada aos batuques africanos, não eram uma forma de música e dança realizada apenas pela população pobre da cidade (nem apenas pela população negra), mas também por outros grupos, como os circenses ou os ciganos, que muitas vezes se confundiam. Mello Moraes Filho, por exemplo, ao relatar um casamento cigano na década de 1850, descreve-o como um ritual em que a música e a dança eram acompanhadas por requebros, castanholas, sapateados dos fandangos ao som das violas161 .
Tinhorão afirma que a originalidade e a animação que garantiram ao lundu sua adoção pelo público branco e sua transformação em quadro exótico nos palcos contribuíram, com seu ritmo de frases curtas e sincopadas, para a criação de dois tipos de canção: o lundu de salão e o lundu popular dos
palhaços de circo e cançonetistas do teatro vaudevillesco, de fins do século XIX e início do XX162. Como canção, ganhava as salas da “classe média, e os salões das camadas mais altas”, equiparando-se às “modinhas italianizadas”163 .
[Entre as] camadas mais baixas, o lundu continuaria a sobreviver de mistura com batuques e sambas como dança da área rural e algumas regiões […] e, como canção, nas cidades, sob a forma de gênero humorístico, cultivado ao violão pelos palhaços de circo que ainda chegariam a gravá-lo em discos no início do século XX. 164
Apesar de haver nas informações de Tinhorão situações que se somam ao que se encontrou nesta investigação, a maneira pela qual esse autor procura identificar certos gêneros musicais com grupos sociais, a partir de lógicas dicotômicas, não se mostra adequada para o que está sendo relatado. Os dados levantados neste trabalho acabam por negar que determinada “camada social” frequentasse um único espaço. Nesse sentido, a abordagem de Martha Abreu sobre, por exemplo, o lundu, parece-nos muito mais apropriada, ou seja, que sua “performance provavelmente variava em função do ambiente social e do momento em que era tocado”165 .
Nas cidades os ritmos das canções e das danças se entrelaçavam; os circenses, brancos ou negros, estrangeiros ou nacionais, que não ficavam alheios ao que ia pelas ruas e pelo gosto do público, mantinham a proposta de um espetáculo heterogêneo – um complexo mosaico de danças e estilos coreográficos, apresentados para diversas outras áreas urbanas e rurais. Nas várias cidades pelas quais os circos passavam, mesmo as mocinhas dos salões, que não frequentavam as ruas ou os batuques, iam com certeza ver os circenses palhaços cantarem e dançarem chulas, lundus e modinhas, reforçando seu papel como primeiros divulgadores dos ritmos musicais, da dança e do teatro musicado.
É importante, também, ressaltar a questão racial: uma produção acadêmica recente tem discutido o quanto as letras de vários lundus e modinhas eram carregadas de preconceitos sobre os descendentes africanos no Brasil, na segunda metade do século XIX e início do XX. O trabalho de Lúcia Helena Oliveira Silva, ao discutir esse tema, cita, como exemplo, a fala de um memorialista sobre o quanto os palhaços de circo, no início do século XX, montavam suas graças, nas músicas que cantavam, em “cima de pretos”. “Quadrinhas populares” que usavam insultos raciais, em forma de sátira, procurando estereotipar a população negra. A letra da canção cantada