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CALEIDOSCÓPIO DE EXPERIÊNCIAS
por um palhaço de nome Ananias fala do contraste entre negro e branco; brincadeiras do palhaço, segundo a autora, que inferiorizavam e alimentavam a estigmatização racial166 .
Caso semelhante é citado por Waldemar Seyssel sobre um palhaço de sua infância de nome Serrano que gostava de cantar um lundu que fazia crítica aos negros167. Não foi localizada nenhuma referência desse artista. Para Martha Abreu, as “canções populares” daquele período revelam as “ambiguidades e os conflitos que envolviam as inevitáveis relações amorosas entre brancos(as) e negros(as)”. Nessas relações, a autora propõe outra forma de analisar a presença de mulatas, negras, crioulas e morenas no conjunto de “canções populares”, que poderia ir além da “reprodução das desigualdades raciais e sociais, ao cantarem e brincarem com possíveis conquistas e conflitos amorosos. Do contrário, teríamos que achar que mulatas, negras e crioulos se achavam mesmo como seres viciados e adeptos da barbárie”168 . Não há como negar que algumas letras de músicas cantadas pelos palhaços poderiam sugerir preconceitos com os afro-descendentes no Brasil. Entretanto, como afirma Martha, nem todas eram assim, e muitas, através da “brincadeira”, poderiam representar ironias e críticas a esses preconceitos.
CALEIDOSCÓPIO DE EXPERIÊNCIAS
A formação dos espetáculos circenses brasileiros e latino-americanos, na década de 1880, manteve uma continuidade na herança recebida, ao mesmo tempo que consolidava a incorporação de mudanças decorrentes das próprias transformações das manifestações sociais e culturais da sociedade em que estavam inseridos, e do próprio modo de se constituírem.
Isso pode ser acompanhado pelas trajetórias de Fructuoso Pereira e Albano Pereira, que se transformaram em importantes constituidores das combinações e dos intercâmbios vividos entre os circenses latino-americanos e brasileiros, conforme evidencia a historiadora Lara Rocho, inclusive contribuindo, a partir de 1889, para a formação e o aperfeiçoamento artístico de Benjamim de Oliveira.
Nenhum dos memorialistas e pesquisadores circenses fez um levantamento da vida de Fructuoso, diferentemente de Albano Pereira. Há menção apenas de que ele teria origem portuguesa e de que nos anos 1890 dirigiu sua própria companhia equestre169. O primeiro registro de sua presença no Brasil foi como jóquei, justamente no Circo Casali, em 1876-1877, no período em que
se apresentavam os palhaços Antonio Correa e Freitas. Ainda como artista contratado, em 1881, realizando exercícios equestres e saltos mortais, ele aparece trabalhando no Circo Temperani, no Teatro Rink-Campineiro170. Os Temperani, referidos como de origem italiana, também trabalhavam com os Casali naqueles anos, atuando, além de ginastas e acrobatas, como “canhão humano” e clowns excêntricos171. Os memorialistas circenses afirmam que Leopoldo Temperani teria sido o introdutor, no Brasil, do número do “canhão humano”, no qual o artista era disparado de um canhão especial, como uma verdadeira bala humana, para ir agarrar-se a um trapézio, no alto do circo. Entretanto, a primeira menção da realização dessa façanha de que temos registro até o momento foi a dos artistas Ella Zuila e Little Wille, no Rio de Janeiro, em 1878172, que pertenciam ao elenco da Loyal’s Combination Troupe, “companhia de acrobatas e ginásticos”173 vindos da Europa. Posteriormente, em 1881, Little Wille, chamado de “o homem-projétil”, realizaria de novo o número de canhão humano no Circo Casali174 .
Em 1884, Fructuoso trabalhava no Circo Irmãos Carlo175, artistas de origem norte-americana que chegaram à América Latina com Giuseppe Chiarini, o “Franconi da América”176, no Politeama Argentino, em Buenos Aires. Uma boa parte dos números do espetáculo era realizada pelos mesmos artistas que compunham a companhia do Circo Casali, nos anos de 1876-1878 e 1881-1882177 no Brasil. No Irmãos Carlo, os Casali, Seyssel, Ozon e Nelson eram artistas contratados178. Além deles, os dois principais palhaços da companhia eram Frank Brown e José Podestá. O primeiro, clown acrobata de origem inglesa, em 1876 estava se apresentando no Teatro Imperial D. Pedro II (antigo Circo Olímpico da rua da Guarda Velha, de Bartholomeu Corrêa da Silva), no Rio de Janeiro, e em 1878, nos Estados Unidos, foi contratado pelos próprios Irmãos Carlo179. O segundo, palhaço, acrobata e músico uruguaio, já estivera no Brasil, contratado pelo circo do brasileiro Candido Ferraz, em 1882180 .
Destacar esses artistas e o circo na Argentina permite mostrar como os circenses puderam realizar uma diversificada troca de experiências. Lá, à semelhança do que ocorria no Brasil, a incorporação aos repertórios de temas musicais e teatrais da cultura local levou à popularização e à divulgação dos ritmos e dos gêneros teatrais que, ao mesmo tempo que continham a herança europeia, passavam por transformações que iam definindo suas produções como “circo criollo”. O processo de produção de uma teatralidade circense abre uma nova fase na Argentina, principalmente pela atuação do artista José Podestá e seu personagem, o palhaço Pepino 88.
Além de executar as habilidades necessárias a um circense da época, Podestá se inspirou, para a produção de seu personagem, nos cantores peregrinos populares argentinos, chamados de payadores e trovadores, que realizavam composições improvisadas acompanhados do violão. Esses artistas locais também foram incorporados aos espetáculos circenses. Como palhaço payador e improvisador, diferenciou-se dos “tradicionais clowns ingleses”, tornando-se um cantor e divulgador das canções “criollas”. Os estribilhos de suas canções eram cantados por toda parte, lançando a novidade das cançonetas sobre temas do momento181. Por esse modo de ser cômico – apresentando-se como ginete, cantor, violinista, bailarino e, sobretudo, ator em sainetes e pantomimas –, em 1884 Podestá foi indicado para representar, no picadeiro do Circo Irmãos Carlo, o personagem principal da novela gauchesca Juan Moreira, publicada em folhetim pelo escritor argentino Eduardo Gutiérrez182 , considerado um autor popular, criador de um folhetim “nacional por duplo caráter da origem do autor e o acento de suas narrações”183 .
Essa novela foi adaptada como pantomima em vários quadros, na qual Podestá cantava e dançava canções folclóricas rurais, junto com payadores contratados184. Seu enredo apresentava as peripécias de um “gaúcho matreiro”, perseguido pela injustiça das autoridades. A peça teve 13 apresentações no circo dos Carlo, com uma crítica no jornal dizendo que era uma produção melodramática, típica do herói-bandido, que agradou à “plebe”185 .
Após essas apresentações, os Irmãos Carlo fizeram uma turnê pelo Rio de Janeiro, onde trabalharam por quatro meses no Politeama Fluminense, também conhecido como antigo Teatro-Circo da rua do Lavradio186 , apresentando Podestá como “clown criollo” e Frank Brown como “clown inglês”187. A peça Juan Moreira não foi mais montada nesse período. Retornaram à Argentina em 1885, em sociedade com Alejandro Scotti, reiniciando a montagem de várias pantomimas e, em 1886, José Podestá transformou o extenso mimodrama em uma ação curta, selecionando os quadros e as cenas principais, escrevendo diálogos e estreando no circo um Juan Moreira totalmente falado, mantendo as danças e os cantos com os payadores e os trovadores. Essa teria sido, para os pesquisadores da história do circo na Argentina já mencionados, a primeira vez que a mímica era substituída pelo texto representado em prosa, nesse país.
Entre os historiadores argentinos que tratam do teatro e do circo, há uma polêmica sobre essa montagem ter sido ou não o ponto de arranque do “teatro nacional argentino” – considerando que os circenses absorveram a maior parte dos dramas gauchescos, adaptando-os aos palcos/picadeiros.