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O CIRCO-TEATRO EMBAIXO D’ÁGUA
Sul-Americano anunciava uma “catapulta de novidades” e números executados com muita habilidade, como os equestres, saltos, acrobacias, “jogos pancráticos de Mengripia”, “velocímano” (velocista) brasileiro Polybio etc. Jogos pancráticos ou pancrácios eram um número encenado pelos circenses como um combate ou prova atlética envolvendo elementos de luta livre e pugilato, com figurinos que lembravam gregos ou romanos antigos. Chamava a atenção para um “grande aparato denominado A tarantela napolitana”, executada a “caráter pelos artistas Aristolino e Arethuse”, e para a nova “máquina giratória” na qual era presa uma pessoa que, se conseguisse montar o cavalo e dar três voltas sem cair, ganharia 20$000 réis. Lançando mão de recursos para atrair o público, fazia distribuição de chocolates às crianças e rifas de brinquedos; nas matinês e nos intervalos, tocando no saguão do teatro, bandas de música do corpo de Infantaria da Marinha e do I Batalhão de Infantaria do Exército, “gentilmente cedidas por seus dignos comandantes”164. Mesmo que toda essa programação fosse muito chamativa e atraente, as pantomimas ainda eram as atrações de maior peso. A produção do espetáculo dos Pery permite observar uma importante contribuição para a teatralidade circense no Brasil, que exercerá influência decisiva na formação do artista Benjamim de Oliveira.
O CIRCO-TEATRO EMBAIXO D’ÁGUA
Os Pery encenavam a maioria das pantomimas levadas nos circos, destacando-se nas adaptações de produções literárias, como O remorso vivo. Uma em particular, a pantomima aquática, mexeu significativamente com a atenção da crônica e do público, como também realizou uma considerável reforma em todo o palco do São Pedro, exigindo uma montagem e instalação de cenário e iluminação, além de uma produção mais elaborada dos figurinos e das músicas, adequados para o desempenho da destreza física dos artistas. Henry Thétard relata que a primeira pantomima náutica foi criada em 1886 para a inauguração do Nouveau Cirque de Paris165 e, segundo Vivaldo Coaracy, Frank Brown trouxe esse gênero ao Brasil quando se apresentou no então Teatro Imperial D. Pedro II (antigo Circo Olímpico da rua da Guarda Velha e, depois, Lírico)166; entretanto, em nenhuma das apresentações de Brown naquele teatro foi mencionado esse fato. Seis anos depois de Paris, em 1892, temos a confirmação da montagem dessa pantomima com o nome de Um casamento e o Politeama embaixo d’água!, no Teatro Politeama Fluminense,
por uma companhia equestre, cujo diretor era um tal de E. G. Pierantoni167 . Outros empresários que também apresentaram espetáculos aquáticos foram os Pery, no Rio de Janeiro e em Campinas (SP), em 1899168, e Albano Pereira, que montou uma pantomima aquática na cidade de São Paulo, nesse mesmo ano, no largo da Concórdia, com o título O Circo Universal embaixo d’água169 .
Se não era a primeira vez que o público do Rio de Janeiro assistia à montagem da pantomima aquática, era a primeira vez que era realizada no Teatro São Pedro de Alcântara, que, como se disse, de novo passou por uma profunda reforma, adaptando-se à grande montagem, ou grande espetáculo, de que fala Jean-Jacques Roubine170. Explorando ao máximo o espaço cênico, em seu caráter tridimensional, suas tramas e cenografias pressupunham movimentos de multidões, efeitos de maquinaria, cenas feéricas, engenhosidades arquitetônicas (plataformas, pontes etc.), transformações instantâneas de cenário e a incorporação abundante do que de mais recente pudesse ter sido inventado, como a utilização da luz elétrica171 .
Na descrição da pantomima, temos uma grande bacia de borracha colocada no picadeiro central, uma máquina a vapor que, acionada, faria jorrar água em seis grandes calhas, na altura das galerias e à vista do espectador, para encher a bacia172. A quantidade de litros de água variava muito. A companhia equestre que se apresentou no Politeama informava que usariam 13 mil litros de água, já os Pery iriam colocar “80.000 litros de água na pista em 60 segundos”, uma “verdadeira regata no S. Pedro”173. Cem pessoas de ambos os sexos tomariam parte na pantomima, com 20 números de música e mise-en-scène dos Irmãos Pery. Em pouco tempo, o circo, ou seja, o Teatro São Pedro, tornava-se uma grande lagoa por onde navegavam diversas canoas, botes, além de lavadeiras e pescadores, com figurinos a caráter. Em certo momento o lago ficava iluminado pela luz elétrica, assim como uma ponte que atravessava de um lado a outro do picadeiro, onde várias cenas se passavam: casamento, perseguição dos policiais, sua queda e a dos noivos na água, bailados, assim como o final apoteótico com fogos de artifício no centro da ponte174. A descrição dessa pantomima aquática pelos jornais foi o mais próximo que se consegue chegar do modelo do que seriam os primeiros filmes mudos e os temas de suas histórias. Pela descrição das partes que compunham a pantomima, pode-se ter uma noção do enredo:
Divisão dos Quadros: 1o Uma ferraria no campo; 2o o proprietário chama os trabalhadores; 3o chegada de viajantes; 4o o proprietário oferece-lhes comida; 5o um namorado da filha do ferreiro é despedido; 6o chega um
ricaço que o pai prefere; 7o chegada do oficial recrutador que [recruta] ao seu serviço o namorado; 8o Malelote, baile de marinheiros; 9o a filha do ferreiro impede a partida do namorado; 10o os suplentes fogem; 11o o namorado salva a noiva e o pai; 12o a polícia prende os suplentes; 13o o ferreiro consente no casamento da filha; 14o o casamento.175
Como se disse, não houve nenhum tipo de contrariedade por parte dos cronistas quanto a toda essa transformação da arquitetura do Teatro São Pedro e da ocupação de seu palco. A crítica da coluna Artes e Artistas, no dia seguinte à estreia dessa pantomima, além dos elogios, fornece mais detalhes de sua montagem e do quanto a incorporação de tecnologia, inovadora para a época, atraía o público, incluindo os próprios cronistas:
Anteontem foi uma verdadeira maravilha a, aliás, conhecidíssima pantomima aquática, tal o efeito deslumbrante produzido pela quantidade de lâmpadas de variadas cores, que iluminaram a ponte colocada em toda a largura. Não menos contribuiu para o alto brilho de execução técnica o fogo de artifício e, sendo tudo uma deliciosa surpresa, os espectadores não prodigalizaram aplausos aos artistas e especialmente a Anchyses Pery, que não olhou o sacrifício para levar à cena a célebre pantomima […].176
Na coluna Teatros e Música do Jornal do Commercio, o cronista descreve o último espetáculo de despedida do Circo Pery, no São Pedro177. Além dos elogios e da informação de que a casa estava cheia, de que a banda tocava no saguão e de que os artistas, cobertos de flores, foram chamados diversas vezes à cena para os aplausos, havia a fala de uma pessoa “representante do teatro”, o advogado Evaristo de Moraes, abolicionista e republicano engajado em questões sociais que em 1912 viria a advogar em defesa de João Cândido, o Almirante Negro, marinheiro que liderou a Revolta da Chibata contra abusos cometidos por oficiais178. Moraes, em sua fala, enalteceu a memória de Manoel Pery e informou da preferência que o espetáculo daquele circo tivera pela “inteligente plateia do Rio de Janeiro”179 .
O gosto do público e a mistura de gêneros e artistas, contrariando de certa maneira a ideia da “inteligência da plateia”, dariam o tom lamentoso de Arthur Azevedo quanto ao fracasso de público para a sua peça O badejo, pedindo “instantaneamente ao público e à imprensa” que não o acusassem de arrastar a “clâmide sagrada da Arte na lama da opereta e da revista” como forma de sobrevivência180 .