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O CLOWN BENJAMIM E SEUS COLEGAS DE PROFISSÃO
lidade de transporte, pela oferta de trabalho e pelo relativo baixo preço das moradias e dos terrenos – considerados insalubres em decorrência das inundações que ocorriam na região, denominada várzea do Carmo, originando construções de casas geminadas, com condições precárias de higiene e ventilação, e formando habitações coletivas como os cortiços.
Os trens da estação do Norte, que faziam a ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro, entre outras coisas, facilitavam a chegada de várias companhias artísticas nacionais e estrangeiras. A intensa movimentação de pessoas e sua composição social heterogênea, por sua vez, favoreciam que algumas casas de diversões, como os recentes cinematógrafos, teatros e circos, se estabelecessem no Brás. Além disso, ocorriam acordos entre os empresários e a companhia de bondes para que se garantisse transporte após os espetáculos para os de fora da região. Vale lembrar que, quando Benjamim de Oliveira estreou como palhaço, em 1889, a companhia de Fructuoso e Albano Pereira, na qual atuava, apresentava-se no Teatro Politeama Paulista, na várzea do Carmo. Depois do Brás, o centro da cidade de São Paulo, a praça João Mendes, o largo São Bento, o largo do Paissandu4, a alameda Barão de Limeira, a praça da República e, próximo deles, o parque e a estação da Luz foram lugares privilegiadamente ocupados pelos circos.
O CLOWN BENJAMIM E SEUS COLEGAS DE PROFISSÃO
Em 23 de novembro de 1901, o jornal O Estado de S. Paulo, na coluna Palcos e Circos, informava que havia recebido um “cartão de cumprimentos” enviado pelo “aplaudido clown Benjamim de Oliveira”, cujo centro era ocupado pelo “retrato fotográfico” do artista. As saudações faziam parte da estratégia de divulgação da estreia do Circo Spinelli, naquele mesmo dia, no largo da Concórdia. Alguns dias depois, o circo publicava, no mesmo jornal, sua propaganda, na qual estava estampada a referida foto, provavelmente em litografia5. Benjamim era a “estrela” do circo, o que confirma seus relatos de que naquele período já era um palhaço de sucesso. As medalhas ostensivamente penduradas em seu peito deviam indicar isso, pois era comum que as cidades – através de suas autoridades ou representantes de classes, associações, entre outros – homenageassem artistas circenses com placas ou medalhas, algumas até mesmo de ouro. Elas se transformavam em currículo para os circenses (assim como o eram para os atletas e os demais artistas do período), fazendo parte de toda propaganda escrita, e particularmente para
os estrangeiros, que traziam no peito condecorações feitas por monarcas e imperadores6. Provavelmente, além das condecorações, o próprio uso da fotografia foi uma forma de mostrar sua ascensão, não só como artista mas também socialmente.
A produção mecânica de um retrato, e não mais por desenho ou pintura, já era amplamente disseminada desde a década de 1870, indicando, nos dizeres de Cândido Domingos Grangeiro, a formação de uma “indústria do retrato” nas cidades, em particular em São Paulo7. Era bastante comum tirar fotografias pelas ruas da cidade; grande parte delas era quase sempre feita em estúdio e oferecida a parentes e amigos, ou guardada como lembrança. Para termos uma ideia, em apenas um dos estúdios pesquisados, o Photographia Americana, haviam sido produzidos cerca de 11 mil retratos, o que significava que quase um terço da população de São Paulo, no período, teve seus retratos executados nos salões de pose dessa casa comercial. Em livrarias, bazares, barbearias e alfaiatarias também eram vendidos retratos de personagens históricos e de artistas8. Além de as fotografias dos artistas fazerem parte do material de propaganda e publicidade nos pôsteres e nos catálogos, elas eram vendidas em teatros, cafés-concertos, circos (depois rádio e cinema), como recordação. Nos jornais e revistas pesquisados, a maioria das imagens observadas era de desenhos, gravuras ou litogravuras baseados em fotos, porém nenhuma dessas imagens era propriamente uma fotografia como a de Benjamim de Oliveira, a única, em todo o ano de 1901, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, como propaganda, publicidade ou reportagem.
Sua imagem, portanto, era divulgada e veiculada não somente pelo espetáculo, mas também pela imprensa, que, no período, passava por uma transformação intensa, rumo à massificação e em busca de um público leitor mais amplo e indiferenciado9. O leitor dos jornais, quando se deparava com os anúncios publicitários dos circos, podia “ler” textos e figuras, numa abundância de imagens produzidas a partir das novas criações técnicas jornalísticas e tipográficas10, que, provavelmente, tinham também a intenção de atingir os não alfabetizados e os estrangeiros que não dominavam o português, dado o grande número de imigrantes na cidade.
A figura estampada no jornal, além de possibilitar um maior alcance na divulgação, reforça a análise de alguns pesquisadores de que a relação das pessoas do período com a fotografia, qualquer que fosse sua classe social,
1. O Estado de S. Paulo, em 1o de dezembro de 1901.
passava pela demonstração de uma ascensão social11. Com sua imagem impressa num dos principais veículos de comunicação de massa da cidade de São Paulo, o jornal O Estado de S. Paulo, cuja tiragem girava entre 9 mil e 10 mil exemplares12, Benjamim, vestido de smoking e com “ares aristocráticos”, mostrava ter se tornado uma das maiores atrações artísticas do Circo Spinelli.
A propaganda de muitos circos de tamanhos e situações econômicas distintos, ocupando bairros centrais e periféricos da cidade de São Paulo, naquele período, ainda era a própria chegada das companhias e toda movimentação e alteração da rotina da população provocada por artistas, animais e materiais. Quando instalado o circo, o palhaço-cartaz ainda se encarregava de manter a população informada. Além da colocação de vários cartazes pelos bairros vizinhos, o jornal, quando existia e quando o empresário podia pagar pela propaganda, era um meio utilizado desde o início do século XIX. Havia, assim, no primeiro ano do século XX, uma mistura de continuidade de estratégias de divulgação já desenvolvidas por parte dos circenses com novos meios que surgiam; eles lançavam mão de tudo o que de novo se “inventava” como forma de propaganda e publicidade. A publicação da foto nesse jornal possibilitava, de fato, ampliar o alcance da divulgação do circo e, principalmente, da própria imagem do artista Benjamim de Oliveira para além do bairro e da vizinhança em que o circo estava armado, chegando, inclusive, a várias cidades do interior em que o jornal tinha penetração.
Ao mesmo tempo que as chamadas para as diversas nacionalidades dos circenses eram importantes para atrair o público, era dado destaque especial, nas propagandas, à “brasilidade” dos artistas – e “brasilidade” passou a ser referência inclusive para os animais, como o anúncio que divulgava um “soberbo tigre nacional”13. A própria forma de denominar Benjamim de Oliveira nos jornais havia sido alterada, passando, então, nas propagandas do circo, a ser anunciado como o “clown brasileiro”, deixando a denominação de palhaço, unindo a referência europeia associada à nacionalidade. Como já vimos, na América Latina e, em particular, no Brasil, os nomes clown e palhaço eram muitas vezes utilizados de acordo com as referências aos “padrões”
que os europeus, ou mesmo os americanos, estabeleciam como divisão de tarefas relacionadas a cada uma dessas denominações: o clown se apresentava vestido e pintado de forma mais elegante, diferente do augusto ou tony, personagem maltrapilho, ao mesmo tempo ingênuo e astuto, não sendo raro que seu nome viesse acompanhado do adjetivo “imbecil”.
Entretanto, apesar das semelhanças na forma de se vestir, a função dos personagens cômicos passou por transformações e releituras. Por exemplo, uma propaganda do Circo Spinelli, quando este estava armado em São Paulo, anunciava clowns musicais com novos instrumentos; o clown argentino Crozet e o clown brasileiro Benjamim apresentariam novas pilhérias e modinhas, acompanhados ao violão, e o tony imbecil faria sua entrada burlesca14. Observe-se que, a não ser o tony, todos os outros eram clowns, e os que só tocavam instrumentos eram identificados como excêntricos, diferenciados dos que tocavam violão e cantavam.
Vale lembrar que Crozet vinha da tradição de comicidade circense de José Podestá, que era um payador e um ator conhecido como “clown criollo”, enquanto Benjamim, mesmo vindo da mesma tradição – palhaço, cantor, ator –, era identificado como “clown brasileiro”. Um argentino e um brasileiro cantando modinhas ao violão, apesar de utilizarem a denominação inglesa, diferenciavam-se do modelo europeu herdado dos “musicais excêntricos”, ao se apresentarem nos palcos/picadeiros no Brasil, porque cantavam.
Pierre Bost, ao escrever sobre o circo e o music hall, afirma que ambos ofereciam basicamente a mesma programação, a não ser por duas diferenças: as entradas de palhaços não tinham lugar nos palcos teatrais onde se desenvolvia o gênero music hall, e era “totalmente inimaginável” em um circo haver números de canto, incompatíveis com a arquitetura do lugar. Os clowns, continua o autor, devem falar e atuar girando, pois o “espírito mesmo de sua arte foi concebido para um palco e um público circulares”; os cantores, ao contrário, devem se posicionar diante do público, o que somente o palco teatral do music hall podia oferecer15 .
Os cômicos dos circos16, no Brasil, misturados aos artistas locais, incorporaram e transportaram os ritmos à acústica do circo. Não era novidade que eles cantassem e tocassem, realizando acrobacias ao mesmo tempo; entretanto, naquele início de século XX, eram reconhecidos pela imprensa e pelo público como palhaços-cantores e atores que divulgavam os vários gêneros preferidos pelo público. O conjunto da programação do espetáculo mantinha-se diversificado e misturado em relação tanto às origens de seus artistas quanto aos gêneros dos números, compatíveis com os vários ad-
jetivos com que a Companhia Spinelli se apresentava: equestre, ginástica, musical, funambulesca, mímica, bailarina e zoológica. Contudo, os números musicais desenvolvidos pelos cômicos cantores e tocadores de violão, as cenas cômicas e as pantomimas iam se tornando, cada vez mais, os principais carros-chefe dos espetáculos circenses, transformando aqueles que os realizavam, assim como os que os produziam, em sucessos garantidos e premiados. Esse foi o caso de Benjamim de Oliveira, identificado nos jornais como o “laureado clown brasileiro”17 .
A principal chamada do Spinelli para a parte musical da programação do espetáculo eram as apresentações de Benjamim de Oliveira nas entradas ou cenas cômicas, cantando modinhas e lundus ao violão. Vários outros circos que se apresentaram em São Paulo, nos anos em que essa companhia esteve na cidade, também tinham seus palhaços ou clowns de destaque, como Santos, Caetano e Serrano, e anunciavam os mesmos gêneros musicais. Caetano, por exemplo, já havia se apresentado no circo dos Irmãos Carlo no Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro, em 190018. Os palhaços cantores, nos palcos/picadeiros circenses, como se viu, eram responsáveis, no fim do século XIX, pela divulgação dos principais ritmos musicais; não só das músicas produzidas individualmente, mas também dos enredos musicais compostos para o gênero revista do ano, nos teatros.
No fim do século XIX e início do XX, com a crescente popularidade desses gêneros e ritmos, duas outras formas de disseminação possibilitaram outra etapa para divulgá-los e comercializá-los, das quais os artistas circenses também participaram: o progressivo aumento de venda de publicações em forma de livretos ou jornais de músicas, contendo coleções de letras de modinhas, lundus, cançonetas, entre outras19; além da recém-criada indústria fonográfica, que já demonstrava força de penetração em todos os setores sociais, divulgando gravações em cilindros, desde 1897, e os primeiros discos (chamados chapas), em 1902, de modinhas e lundus cantados por Cadete e Baiano. Acrescente-se a isso as músicas gravadas pela banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, formada e dirigida pelo maestro e compositor Anacleto de Medeiros, e as produzidas por vários músicos que tocavam e cantavam em cafés, cabarés, rodas de samba e circos que passavam pela cidade20 .
Segundo José Ramos Tinhorão, o aparecimento de um tipo novo de “menestrel urbano”, o vendedor de folhetos de cordel ou jornais de modinhas, foi um fato importante para a divulgação e a distribuição não só dessas publicações como das próprias canções, que eram anunciadas e cantadas pelo cantor de rua. Na sua análise, entretanto, as figuras são “invariavelmente”
urbanas, negros, mestiços ou brancos “das camadas mais baixas da cidade”21. Sem desconsiderar a discussão de Tinhorão sobre a presença desses personagens que de fato cumpriram um papel relevante, é preciso levar em conta que os próprios artistas do circo e do teatro, de diversas origens sociais, eram também, junto com os cantores de rua e com os editores, os principais divulgadores e distribuidores desses folhetos, visto que eram cantores e compositores e se apresentavam nos mais variados espaços, inclusive na rua.
Além disso, um público heterogêneo tinha cada vez mais acesso e dialogava de modo simultâneo com as produções artísticas nos mais variados e diferentes espaços, o que torna difícil estabelecer, como faz Tinhorão, que determinada área da cidade ou segmento social seja a única fonte de produção e divulgação de certos ritmos e gêneros artísticos. Mais ainda, a publicação de letras de músicas e, principalmente, a fabricação e a comercialização de cilindros gravados implicaram um processo de distribuição que torna difícil rastrear se somente determinada “classe social” era compradora ou consumidora dos folhetos ou fonogramas de lundus e modinhas.
O que aconteceu foi um imbricamento entre todos esses elementos – folhetos, cantores de rua, fonogramas – e os que já cumpriam o papel de divulgação e produção, como os circos, os teatros, as bandas, as festas leigas ou religiosas (de diversas origens étnicas e culturais), proporcionando que um número cada vez maior de pessoas tivesse acesso ao que se estava produzindo em termos musicais, em especial pelos artistas nacionais. Os palhaços-cantores e suas bandas, na virada do século XIX para o XX, além de serem autores, compositores e intérpretes das canções publicadas e gravadas, nas suas turnês com os circos constituíam-se divulgadores e comerciantes privilegiados de seus trabalhos, usufruindo a própria capilaridade que o seu nomadismo permitia, conquistando novos públicos. A permanência e o desenvolvimento de uma tradição cômica, com a produção musical, a formação de um mercado cultural e o intercâmbio com o teatro ligeiro são apenas alguns dos possíveis fatores associados à presença marcante desses artistas, constantemente em voga nas páginas dos jornais.
Desde que começaram a aparecer informações sobre os artistas circenses nas propagandas divulgadas nos jornais no início do século XIX, e em especial sobre os palhaços cantando nos espetáculos, quase não há referências aos compositores do repertório musical. Essas informações são encontradas em depoimentos de pessoas que vivenciaram os circos no período, como no caso do Lundu do escravo, cantado pelo palhaço Antonio Correa e mencionado por Mário de Andrade, como já vimos no segundo capítulo. As músicas