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PALHAÇO-TROVADOR
cantadas pelos circenses em seus espetáculos geralmente pertenciam aos próprios artistas que as compunham e as alteravam ao longo do percurso do circo, nas várias regiões por onde passavam, incorporando chistes ou nomes de pessoas. Podiam pertencer ainda à tradição das cantigas de domínio popular, também relativas a cada região, como as chulas, que continham um número variado de versos que iam se misturando, se transformando e se incorporando às chulas e às toadas que os tocadores de violão das cidades tocavam e cantavam pelas ruas e festas, assim como temas do folclore regional dos lugares pelos quais passavam. Outras não eram tão anônimas, como a cantada pelo palhaço do circo de Albano Pereira, na década de 1880, Ataca Felipe!!, título da principal canção da revista do ano de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, O bilontra.
Já tratamos desse tema no capítulo anterior e se retornamos a ele é para observar que, no início do século XX, apesar de não ter havido mudanças significativas na forma anônima como eram anunciadas as músicas, em consequência das publicações dos folhetos e dos cilindros, pelo menos boa parte do público já tinha condições de saber quais músicas eram cantadas e quem eram seus compositores.
PALHAÇO-TROVADOR
Em boa parte do ano de 1902 e início do seguinte, tanto na capital paulista quanto em algumas cidades do interior do estado, além de Benjamim de Oliveira, outro artista disputava as atenções dos jornais e do público. Não foi possível localizar muitas informações a seu respeito, somente que seu nome era Serrano e trabalhava no Circo Clementino, onde era anunciado como “palhaço-trovador” e era muito apreciado nas “modinhas ao violão e nas chulas sapateadas”22. Ele também costumava renovar seus lundus e modinhas tornando-os enredo de farsas cômicas que encerravam os espetáculos, a partir de músicas de “seletos autores brasileiros”23 .
Caetano, Santos, Benjamim e Serrano eram os clowns ou palhaços-cantores que se apresentavam na capital paulista nos primeiros anos do século XX. Em algumas temporadas, os dois primeiros foram parceiros de Benjamim no Circo Spinelli quando estava armado na praça Dr. João Mendes, antigo local do Teatro São José24. Logo depois, Caetano e Santos foram trabalhar, junto com Serrano, no Circo Clementino, que estava armado em São Paulo, mas no largo General Osório, em frente à estação Sorocabana25. Porém, antes
de iniciar uma temporada pelo estado de São Paulo, os quatro palhaços, em seus respectivos circos, trabalharam na cidade do Rio de Janeiro, no período em que se iniciavam as primeiras gravações em cilindros de modinhas e lundus por Cadete, Baiano e pela banda do Corpo de Bombeiros.
No fim do capítulo anterior, tratei um pouco do cruzamento entre esses artistas e os circenses, enfocando particularmente Benjamim de Oliveira. Neste momento, é necessário detalhar quem eram eles e o que estavam fazendo, para ter uma noção do que acontecia na produção musical do período e verificar o quanto vários artistas circenses estavam vinculados a ela, não para levantar a biografia completa dos músicos, poetas e compositores que provavelmente estiveram envolvidos com circos e circenses no fim do século XIX e início do XX, mas, sim, para tratar de alguns dados que possibilitem visualizar melhor aquele diálogo.
Um desses músicos era Manoel Pedro dos Santos – o Baiano – que, como já mencionado, foi, junto com Cadete, o primeiro cantor brasileiro a aparecer nas gravações de cilindros e chapas feitos pela Casa Edison. Quando, em 1902, Fred Figner, proprietário da casa, editou o primeiro catálogo comercial de discos de sua fábrica, Baiano encabeçava a lista das 73 primeiras gravações relacionadas. Além do grande repertório que viria a gravar, ficou conhecido por ter sido o intérprete da gravação do samba Pelo telefone. Era anunciado como cançonetista e, além de se apresentar no teatrinho do Passeio Público no Rio de Janeiro, já trabalhava em circos como palhaço-cantor, ao lado e à semelhança de outros artistas, como Eduardo das Neves, Mário Pinheiro, entre outros. No fim do século XIX, tinha trabalhado ao lado de Benjamim, no Circo Spinelli, quando este ficou armado na capital federal26. Quando Spinelli e Benjamim se “fixaram” no Rio de Janeiro, a partir de 1906, Baiano aparecia nas propagandas e nas crônicas dos jornais como membro do elenco daquele circo, por várias temporadas, de 1910 a 191327 .
Anunciado como o “popular cantor de modinhas ao violão” ou “original cançonetista brasileiro em suas originais canções nacionais”, Baiano tinha fama de possuir um extenso repertório “que sabia de cor”28, como anunciavam propagandas do Circo Spinelli29, em que se apresentava sozinho ou em dupla, geralmente com o rosto pintado. Contribuiu muito com a produção da teatralidade circense no Brasil, ao participar como ator das apresentações teatrais e das pantomimas representadas no Circo Spinelli, além das suas atuações como palhaço-cantor. Como a maioria das peças encenadas no período era baseada no gênero do teatro musicado, esse artista acabava desempenhando ambas as funções, de cantor e ator.
Quanto a Cadete, apesar de não serem mencionadas em sua biografia as suas possíveis participações nos circos30, é difícil supor que isso não tenha acontecido, considerando que seus principais companheiros musicais trabalharam diretamente nos palcos/picadeiros circenses ou contribuíram nas suas produções. Entre esses, além de Baiano, estavam Mário Pinheiro, que era também palhaço-cantor31 e foi parceiro de Benjamim em gravação de disco pela gravadora Columbia Record; Irineu de Almeida e Paulino Sacramento, músicos e maestros que tiveram participação nas peças de Benjamim de Oliveira no Spinelli; músicos da banda de Anacleto de Medeiros; Júlio de Assunção, aprendiz do palhaço Polydoro, cantor e violonista que cantava “modinhas e lundus, apimentados, e humorísticos”32. Dentre os profissionais que faziam parte das relações de Cadete e Baiano, é interessante ressaltar dois deles: Catulo da Paixão Cearense e Eduardo das Neves, que também compunham o grupo dos batuques, das serestas, da boêmia, do teatro do Passeio Público, que participavam das parcerias de composições e cantos e, principalmente, tinham grande expressão na gravação de cilindros e chapas e nas publicações de letras e músicas. Eles permitem, em consequência da repercussão dessas suas atividades, dar maior visibilidade ao intenso diálogo e aos atravessamentos existentes entre as novas formas de produção e divulgação musical do período e os circenses.
Em entrevista a Clóvis de Gusmão, no jornal Dom Casmurro, em 19 de outubro de 1940, Benjamim de Oliveira, ao recordar os parceiros de trabalho e o grupo de boêmios e cantadores, do qual fazia parte, que enchiam as ruas da cidade, fala de alguns deles, como Irineu de Almeida, Anacleto, Cadete e Eduardo das Neves. Porém, de forma muito particular, suas lembranças dirigem-se a Catulo e à relação de proximidade que tiveram quando jovens e ainda mantinham no ano da entrevista – ele tinha 70 anos e Catulo, 74 –, ressaltando que eram vizinhos no Rio de Janeiro. Para Benjamim, que “sempre” ouvia “em primeiro lugar” as modinhas “às vezes inacabadas ainda”, Catulo teria sido um dos responsáveis por levar o violão ou “o povo das serenatas” para os salões, como o da casa de Pinheiro Machado, meio de “gente rica” e um dos “mais cultos auditórios do Rio”33 .
Poeta, compositor, cantor e tocador de violão, Catulo gerou opiniões controversas sobre suas relações com os músicos, tanto os que o acompanhavam nas parcerias quanto os que ocupavam os mesmos espaços. Tinhorão chega a afirmar que ele “partia quase sempre de melodias já conhecidas, e para as quais escrevia versos sem qualquer entendimento prévio com seus autores”, como Anacleto de Medeiros, Joaquim Antônio da Silva Calado,
João Pernambuco (João Teixeira Guimarães) e dezenas de outros músicos ligados ao choro carioca34 .
Entretanto, em geral, sua produção literária de poesias e letras para as músicas, além de ter sido significativa em quantidade, era admirada por seus contemporâneos, mesmo por aqueles que reconheceram que as músicas Cabocla de Caxangá e Luar do sertão, por exemplo, não eram de Catulo, em respaldo às questões levantadas por João Pernambuco – que, nascido em 1883 no estado de Pernambuco, aos 12 anos tocava viola e cantava músicas sertanejas, e em 1902 mudou-se para o Rio de Janeiro, quando conheceu Catulo, com quem começou a compor cantigas baseadas no folclore e toadas nordestinas. Dentre essas músicas estavam Luar do sertão e Cabocla de Caxangá35 .
Apesar das controvérsias em torno das autorias, através dessa relação com Catulo, João Pernambuco passou a ser conhecido nos meios musicais e a tocar com ele nas residências “ilustres”. Almirante, em seu livro, publicou algumas cartas de pessoas consideradas também “autoridades” para opinar a respeito dessas questões: Villa-Lobos, José Rebelo da Silva, o Zé Cavaquinho (funcionário do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico), o professor Sylvio Salema Garção Ribeiro, o musicólogo Mozart de Araújo e Benjamim de Oliveira36. Todos foram unânimes em fazer referências elogiosas às letras de Catulo, mas também em afirmar que as músicas das canções não eram dele. Villa-Lobos dizia que, se por um lado reconhecia a sua capacidade de poeta, por outro, sabia da sua incapacidade de escrever uma “célula melódica que fosse”37. Na sua carta, Benjamim declarou haver conhecido e ter sido amigo íntimo de Catulo por 46 anos; entretanto, “a bem da verdade”, afirmava que
[…] a melodia do “Luar do Sertão” que Catulo usou para seus versos magníficos era a de uma toada que João Pernambuco cantava muito naquele tempo. Não posso garantir que o autor tenha sido o João Pernambuco; sei, porém, com absoluta certeza, que foi ele o primeiro a aparecer no Rio de Janeiro, nas rodas que eu frequentava sempre com o Catulo, o Bilhar, o Quincas Laranjeiras, o Cadete, e outros, […] que foi ele o primeiro a aparecer cantando aquela melodia. Catulo era um poeta extraordinário […], mas no caso da melodia […] para ser honesto, devo afirmar que acredito mais que ela seja do João Pernambuco do que do Catulo, porque este geralmente não compunha músicas; aprendia as melodias que andavam em voga, escrevia para elas seus versos e ele mesmo as divulgava, cantando. […]38