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PAIXÃO CEARENSE
Essa carta de Benjamim é um dos documentos encontrados que confirmam as suas redes de relações com os artistas envolvidos na produção musical brasileira, da virada do século XIX para o XX, e moradores na cidade do Rio de Janeiro. Os nomes citados referem-se a importantes músicos da época: Sátiro Bilhar – violinista, compositor e cantor – fazia parte do grupo dos chorões, além das parcerias com Donga, Nozinho, Eduardo das Neves, entre outros; também compôs com Catulo da Paixão Cearense. Quincas Laranjeiras (João Francisco dos Santos), violinista e compositor que, além de companheiro de Catulo (com quem fazia muitas serenatas), de Irineu de Almeida e de Anacleto de Medeiros, era professor de violão.
É importante registrar que a declaração de Benjamim, datada de 31 de maio de 1947, foi assinada por ele e Alcebíades Carreiro, que, segundo consta na própria declaração, era seu filho adotivo. Almirante, em seu livro publicado em 1977 (portanto, após a morte de Benjamim em 1954), fez constar uma declaração de 12 de novembro de 1975 da filha de Benjamim, Jacy de Oliveira Cardoso (nascida em 1908), afirmando serem verdadeiras ambas as assinaturas. Quanto a esse filho adotivo, não há nenhuma referência a seu respeito. Os netos de Benjamim – Jaçanan Cardoso Gonçalves e Juyraçaba Santos Cardoso, ambos filhos de Jacy –, em entrevista comigo, afirmaram desconhecer a existência dele.
PAIXÃO CEARENSE
Catulo foi uma referência importante para o que os circenses realizavam musicalmente, era um dos “seletos autores brasileiros” a quem se vinculavam, e a relação entre os circenses e ele não se deu apenas na divulgação de sua obra por aqueles, nem se resumiu às relações de amizade com Benjamim. Ele fez parte da própria produção da teatralidade circense, tendo participado da elaboração das peças teatrais levadas pelo Circo Spinelli no Rio de Janeiro. Em nenhuma de suas biografias é mencionada sua parceria com Benjamim de Oliveira, na década de 1910, quando colocou seus versos em óperas cômicas ou operetas, escritas por este e musicadas pelos maestros Paulino Sacramento e Henrique Escudeiro que, curiosamente, só aparecem referidos como seus parceiros em produções não circenses39. Em 1911, por exemplo, uma das poucas críticas teatrais escritas em jornal sobre uma peça representada em circo fazia referência à ópera cômica, em três atos, de Benjamim de Oliveira, Catulo Cearense e Paulino Sacramento, denominada À procura de
uma noiva. O autor dessa crítica, no primeiro parágrafo, escreveu que, daquela vez, Benjamim havia se associado a Catulo: o primeiro na “prosa correntia, e o poeta nos versos que tão bem sabe faturar […]”40 .
Catulo, no fim da década de 1880, trabalhava como estivador e já cantava modinhas em “residências de abastados”; autodidata, transformou-se em “professor de português dos filhos do Conselheiro Gaspar da Silveira Martins”, chegando a fundar um colégio no bairro da Piedade, passando a lecionar línguas. Ao mesmo tempo cantava em “reuniões literomusicais” na casa do senador Hermenegildo de Morais e nos saraus de Mello Morais Filho e, ainda, era amigo pessoal de Afonso Arinos41 .
Além dessas atividades e relações, aproximou-se do livreiro Pedro da Silva Quaresma, proprietário da Livraria do Povo, que passou a editar em folhetos o repertório de poemas, modinhas, lundus e cançonetas mais conhecidos da época. Em 1887, publicou seu primeiro livro de modinhas, Cantor fluminense, do qual se conhecem apenas três edições42, mas é de 1889 a 1908 que suas publicações, pela editora Quaresma, passaram por sucessivas edições, e suas vendas não ficaram restritas à cidade do Rio. Catulo também se apresentava em instituições consideradas da “elite cultural” como o “concerto literário-musical”, que seria realizado por ele no salão do Instituto Nacional da Música na capital federal43 .
Em 1889, saiu o Cancioneiro popular, que, segundo Ary Vasconcelos, teve 50 edições44, o que parece plausível, pois em uma publicação de modinhas brasileiras de 1926, de Eduardo das Neves, da mesma editora, fazia-se constar na contracapa que aquele livro era ainda publicado na coleção: “Cancioneiro Popular de modinhas brasileiras, organizado pelo Sr. Catulo da Paixão Cearense, distinto moço, conhecido poeta e prosador, excelente professor de línguas – nome que toda a gente conhece e terá aplaudido […] Um grosso volume de mais de 200 páginas […] 2$000.”45
Naquele período, foram editadas também Lira dos salões, Novos cantares, Lira brasileira, Choros ao violão, Trovas e canções e Florilégio dos cantões. A maioria das canções aí editadas, suas ou não, era difundida tanto pelos cilindros e fonógrafos, chapas e gramofones, quanto pelos palhaços-cantores acompanhados do violão que, segundo Luiz Edmundo, no início do século XX, eram um personagem “querido e cortejado pelo povo, mas, sem cotação, sem a menor entrada nos salões”46 .
São muito raras as opiniões de circenses sobre esses temas. Apenas uma vez Benjamim de Oliveira falou sobre isso, justamente quando relatava a sua relação com Catulo. Mostrando seu violão ao entrevistador, afirmou:
“Foi esse que me botou lá em cima!” Ao mesmo tempo, chamava para junto dos que tocavam violão, circenses ou não, um grupo de pessoas “respeitáveis”:
O Catulo era mocinho. E eu também era moço. O violão naquele começo de século não era coisa que envergonhasse ninguém. Castro Alves fora exímio no violão. Tobias Barreto também. Grandes nomes do tempo tocavam violão: Nilo, Epitácio, Jácome… O povo das serenatas era chamado para o salão. E impunha suas condições. Em casa de Pinheiro Machado, diante de gente rica e de um dos mais cultos auditórios do Rio, como conversassem, Catulo parou de tocar e cantar.47
É lugar-comum na bibliografia sobre o assunto o fato de que Catulo teria sido o responsável pela “reabilitação” do violão nos salões da “alta sociedade”. Sem querer negar a sua importância, não se pode atribuir a uma pessoa ou a um grupo tal responsabilidade. Como afirma Martha Abreu, de fato havia autores ou cantores, do período, que não entravam com facilidade nos salões mais sofisticados, principalmente cantando algumas das músicas que falavam sobre orgulho de homens “pretos”, relações entre mulheres brancas e homens negros. Entretanto, muitos deles tinham trânsito em “ambientes teatrais mais eruditos, sedentos de coisas exóticas, ou que ganhassem repercussão no nascente mercado editorial de músicas”48. Acrescente-se a isso que tanto o violão quanto os ritmos musicais considerados impróprios já faziam parte das representações do teatro musicado, em particular nas revistas do ano e nos circos.
Com isso, parece prudente o afastamento de análises como as de Hermano Vianna, que veem figuras como Catulo – porque frequentavam os vários lugares sociais do período – imbuídas da função de reabilitador e imputam a ele um papel de “mediador”, pois ocupava “dois mundos distintos”, dicotômicos, de uma elite econômica ou cultural e de um ambiente “popular” pobre. A análise desse autor supõe que o mediador não pertencia, na realidade, a nenhum desses mundos, tendo o papel “virtuoso” de “interar” os dois. Pretendendo mostrar a transformação do samba em música nacional, como fruto de uma “tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e cultura brasileira”, afirmou que “a existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de espaços sociais onde essas mediações são implementadas” seria a ideia fundamental para “a análise do mistério do samba”, considerando Catulo um desses importantes mediadores49. Muitos artistas do teatro, mas principalmente