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De dona da pensão a rainha do palácio

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Ela deu o nome

Ela deu o nome

Brenda Lee sonhava em ter um palácio com cortinas nas janelas, tapetes, quartos confortáveis, muitas plantas e flores e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida para proteção. A ativista nasceu em 1948, em uma família de poucos recursos e muito preconceito em Bodocó, no interior de Pernambuco. Adolescente, tinha tanto medo de as pessoas a descobrirem homossexual que chegou a escrever que se suicidaria.

Em vez disso, aos 14 anos, ela fugiu para a cidade de São Paulo, onde passou a morar no bairro central do Bixiga. Na rua, não encontrou muitos caminhos além da prostituição. Primeiro sob a alcunha de Caetana, feminino de seu segundo nome de batismo, e depois já como Brenda Lee, famosa cantora norte-americana dos anos 1960.

Com o nome de guerra, fez fama na noite paulistana e também na parisiense. Brenda juntou dinheiro para comprar uma casa em 1984, na Rua Major Diogo, número 779, que transformou em pensão para abrigar outras travestis que não tinham o apoio de suas famílias. O imóvel, depois, se tornou um “palácio”, onde todas podiam sonhar com dias melhores. Nascia ali o Palácio das Princesas.

“O dia aqui em casa tem carinho, cuidado e muita mão de obra. Tem horas que é muito agitado, em outras quase todo mundo dorme. É um ambiente saudável, todo mundo se encontra, tem histórias para contar e ouvir. A gente recebe visitas, se diverte e entra em atritos também, mas depois supera”, diz Brenda Lee em Dores de amor (Douleur d’amour), documentário suíço-brasileiro de 1988 dirigido por Pierre-Alain Meier e Matthias Kälin.

Essa é uma das poucas cenas disponíveis em vídeo de Brenda, que se mostra uma mãe “porreta”, do tipo que puxa a orelha, mas também incentiva a prole. Para falar sobre as “filhas”, ela usava expressões como bonita por dentro e por fora, uma estrela no futuro, meiga e obediente. Com ela, as meninas tinham ajuda para fazer consultas médicas e se matricular em cursos, e aquelas que quisessem “fazer a vida” até recebiam dinheiro para passagens para a Europa. Juntas, compartilhavam um cotidiano que ia de simples rituais de beleza a confidências sobre as dificuldades financeiras e emocionais que viviam.

Não bastassem o estigma e a marginalidade a que eram expostos, num tempo em que o vírus HIV era chamado de peste gay ou câncer gay, travestis e gays passaram a ser também perseguidos pela Polícia Civil de São Paulo, que em 27 de fevereiro de 1987 instituiu a Operação Tarântula. Na imprensa, a ação foi anunciada com a manchete: “Polícia Civil ‘combate’ a Aids prendendo travestis”.

Muitas chegavam a se mutilar nos camburões para não apanhar da polícia. Por ignorância, os policiais tinham medo de “pegar” aids pelo simples contato superficial com o sangue dos ferimentos. Em uma ocasião, cinco travestis que moravam com Brenda foram atingidas à bala pela Polícia Militar. Uma morreu, três tiveram machucados superficiais e a quinta tornou-se uma pessoa com deficiência. Questionada pela imprensa sobre o que faria com a última, Brenda respondeu: “Vou levar para casa e cuidar, claro”.

Uma mulher de luta, uma mulher de fé

O médico infectologista Jamal Suleiman respondia, na época, pela coordenação do ambulatório e pela direção do pronto-socorro do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, e recorda como conheceu Brenda. “Era um momento traumático, pois tínhamos poucas vagas e muitas pessoas acamadas. Como na música de Chico Buarque, a cidade jogava pedra na Geni”, diz ele. “Em doenças infecciosas como essa, a sociedade sempre tende a achar um inimigo, um culpado que, de maneira geral, é sempre o outro, mas a regra é de mercado: as profissionais do sexo só estão ali porque têm clientes! Brenda levava as mulheres para ser atendidas, o que tirou de sua casa as características de um lugar de cafetinagem, transformando-a em um espaço de cuidado”, acredita o médico.

Suleiman se lembra do dia em que Brenda chegou ao hospital revoltada porque uma de suas filhas atendidas ali havia voltado para casa e morrido pouco tempo depois. Diante de seus protestos, o médico organizou o sepultamento e pediu para fazer visitas semanais à casa, que àquela altura já contava com quatro andares. “Para ser bem honesto, eu nem sabia qual era o endereço e o que me aguardava. Ao chegar, fiquei surpreso”, conta o médico. “A casa tinha paredes externas de granito preto com um portão revestido de cobre, suntuoso, que lembrava mesmo um palácio. Eu chamava, de maneira poética, de ‘arquitetura brutalista’, porque dava a impressão de que tudo ainda estava por terminar. Semanalmente, por anos, eu levava um ajudante e chegávamos umas 7 horas da manhã, disfarçados, vestidos como se fôssemos um público regular, sem identificação de que éramos da área da saúde, para não chamar atenção. Ela nos oferecia o próprio quarto para o atendimento.”

No quarto, com uma cama de casal, uma “arara cheia de roupas exuberantes”, uma mesa e três cadeiras, Suleiman fez uma espécie de extensão do hospital. “Não havia tratamento específico para a infecção e o desfecho era quase sempre trágico”, lembra. “Brenda teve uma visão humanística que poucos têm. Durante um bom tempo, ela não teve apoio formal das estruturas de saúde. Ainda que algumas vezes se utilizasse de técnicas agressivas para se defender, ela era uma voz de resistência e foi uma das pessoas mais generosas, fortes e desprendidas que conheci. Obviamente, é muito mais fácil ficar sentado e assistir a tudo pela janela, mas Brenda foi uma mulher que foi para cima, brigou e não exigiu nada que não fosse um direito. Na outra ponta, também exigia que todos cumprissem seus deveres. O mundo ficou bem mais pobre sem ela!”, lamenta.

Em 1996, Brenda sofreu um golpe financeiro de um funcionário com quem mantinha um relacionamento amoroso. Ele alterou um cheque de 150 reais, na época, para 2.950 reais e ela descobriu. Dizendo-se arrependido, convidou-a para um encontro, do qual Brenda nunca mais voltou. Foi encontrada morta dentro de uma kômbi em um terreno baldio na madrugada de 29 de maio de 1996, com o corpo perfurado por balas. O jornal Folha de S.Paulo assim noticiou o ocorrido: “Morto travesti que cuidava de aidéticos. Estava sem documentos e sem dinheiro”. A polícia prendeu os assassinos: o amante, Gilmar Dantas Felismino, e seu irmão, o ex-policial militar José Rogério de Araújo Felismino.

Assassinada por um ex-amante que tentou lhe dar um golpe em 1996, Brenda Lee mantém-se unanimidade na luta contra a violência a LGBTQIAP+, em um país que ganhou fama como o que mais mata transexuais e travestis no mundo – pelo 14° ano consecutivo em 2023. Enquanto a média de expectativa de vida da população brasileira é de 74,9 anos, a de uma pessoa trans é de 36 anos, segundo relatório de janeiro de 2023 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)

O Padre Júlio Lancellotti esteve no enterro e se lembra da ocasião: “Fiz as orações de encomenda e tinha muita gente ali, não sei se tinha alguém da família consanguínea. O que posso dizer é que ela era uma lutadora, uma pessoa muito religiosa e cheia de fé”, afirma.

O mundo pós Brenda

Elvis Stronger

“Brenda Lee foi a primeira a ter um CNPJ, a criar e institucionalizar o conceito de ‘família’ na comunidade LGBTQIAP+”, explica Elvis Stronger, autor do livro Quem manda na noite, lançado em 2022 pela editora Palavra, Expressões e Letras. “Ela iniciou o que classificamos como ‘famílias medievais’, que seria adotar o sobrenome da travesti mãe da família, usar um brasão, e o principal: além de ter uma casa para acolher as pessoas, fortalecê-las com políticas públicas. Isso mostrou que somos capazes de sair da sarjeta e da marginalidade.”

Durante a escrita do livro, Stronger diz ter percebido que histórias como as de Brenda, Claudia Wonder, Andrea de Mayo, Cris Negão, Márcia Pantera e Laura Vermont “ficavam no boca a boca, na tradição oral”. “O livro nasceu de uma pesquisa de dez anos na noite de São Paulo, com a ideia de reverenciar essas damas, contar sobre quem veio antes de nós e sobre a sua luta para chegarmos até aqui”, diz.

Presidente da Associação Brasileira de Diversidades Periféricas, Stronger é líder político da Família Stronger, núcleo criado em 2006 por Roberto Stronger, o pai, e Talita Teles, a mãe , para abrigar jovens periféricos. A família tem hoje cerca de 300 “parentes” em 30 cidades do país, e é formada em sua grande maioria por jovens negros e periféricos com idades que variam de 16 a 24 anos. “Nosso papel é dar suporte e criar estratégias para que os filhos sejam independentes”, diz ele. “Todos nós temos carência de autoaceitação e precisamos de um tempo para que isso aconteça; por isso, fazemos um aconselhamento para promover a união com suas famílias consanguíneas sempre que possível, orientando os jovens a não abandonar seus trabalhos e estudos, a ajudar em casa e a lutar por seus sonhos. Além disso, disseminamos informações sobre direito e saúde.”

A família não vive sob o mesmo teto, mas se reúne regularmente em busca de soluções para os problemas gerais. “Trabalhamos em rede, e para nós as baladas são templos sagrados, lugares de encontro entre iguais onde a gente pode ser quem é”, explica. “Nas festas, levamos preservativos, gel lubrificante e informações sobre IST, e listamos os Centros de Testagem e Aconselhamento articulados aos demais serviços do Sistema Único de Saúde mais próximos.” Como exemplo, Stronger cita a organização da Parada LGBTQIAP+ de Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo, que já teve seis edições, e a bem-sucedida parceria com o Projeto PrEP 1519, primeira iniciativa no Brasil dedicada à aplicação da profilaxia pré-exposição ao HIV para adolescentes de 15 a 19 anos – parcela que tem um número cada vez maior de infectados no país. “Estamos presentes antes, durante e depois da testagem. Seguimos juntos. A periferia tem força!”

Verónica Valenttino

Verónica Valenttino interpreta Brenda Lee no musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas, do Núcleo Experimental, que estreou em formato on-line durante a pandemia de covid-19, ganhou o palco físico em 2022 e o Prêmio APCA de Melhor Espetáculo do Ano. Verónica arrematou ainda os cobiçados prêmios de Melhor Atriz em Musicais, na nona edição do Prêmio Bibi Ferreira, e o de Melhor Atriz pelo Júri, na 33a edição do Prêmio Shell de Teatro.

Formada em artes cênicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela concorre ao Prêmio Shell de Teatro, que em sua 33a edição incluiu pela primeira vez artistas trans em suas indicações – além dela, concorrem as atrizes Vitória Jovem Xtravaganza e Vini Ventania Xtravaganza, por Sem palavras; e Assucena, por Mata teu pai – ópera-balada.

Em Brenda Lee e o Palácio das Princesas, Verónica contracena com outras cinco atrizes transvestigêneros: Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Ambrosia e Leona Jhovs.

“Participei de um processo seletivo e me inscrevi depois de receber inúmeras mensagens sobre essa audição. De cara me interessei, porque conhecia a história de Brenda e a seletiva tinha somente meninas trans. A gente fala muito de inclusão, mas, na verdade, quando consegue algum trabalho, geralmente é só para uma, e desta vez não foi assim”, diz ela. “Trazer ao palco a proporcionalidade de todo um elenco trans é muito importante. Quero ser reconhecida e ver convites e disposição para que essa normatividade que sempre esteve no domínio se transforme de fato em trabalho para todas. Agora está na moda ter travestis em cena, mas temos de ser bem remuneradas e ter nosso talento de fato valorizado.”

Para a atriz, por mais que exista uma intersecção positiva entre cisgêneros e transgêneros, ainda há muito a evoluir. “Estamos adentrando esses espaços, mas ainda é pouco. A gente acabou de fazer uma temporada e as atrizes foram tratadas no masculino por pessoas da própria equipe do teatro. Ainda temos de lidar com situações absurdas”, conta. Para Verónica, a sociedade precisa se responsabilizar por essa transformação: “Não vamos mais ensinar como é que as pessoas devem nos tratar, porque isso já é démodé e cafona, sabe? Todos têm de se adaptar, se vigiar e atentar para questões que nunca tiveram. Uma travesti pode estar em cena em um musical e, no momento seguinte, ter de escapar da polícia. São realidades distintas”.

Na opinião de Verónica, duas frases do espetáculo tratam dessa representatividade: “Você não duraria nem ao menos dez minutos em minha pele pelas ruas da cidade” e “O que você quer matar em mim é você”. Ela conclui: “Decidimos viver e não mais sobreviver ou ser ‘zoologizadas’. Como diz a dramaturga Ave Terrena, ‘juntas, somos menos manada’”.

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