8 minute read
Afilhadas de Biá
Salete Campari, uma drag com alma de travesti
“Biá era minha madrinha e uma grande amiga, com quem convivi intimamente por 40 anos até ela falecer”, diz Salete Campari, uma das mais famosas drag queens brasileiras. “Mesmo no auge da pandemia, queria que ela ficasse comigo até o fim, mas ficou três dias e depois quis voltar para casa. Ela morreu logo depois, sem que eu pudesse me despedir”, lamenta.
Batizada de Francisco de Sales Rodrigues, Salete nunca escondeu seu nome e tampouco se preocupa com o uso de pronomes. “Salete vem do meu sobrenome: Sales. Campari é homenagem a Neide, minha cunhada, a única que me apoiou desde sempre. Ela sempre tomava uma dose [dessa bebida] na hora do almoço”, diz. Nascida em Araruna, no interior da Paraíba, Salete perdeu os pais aos 9 anos, quando se mudou para São Paulo e foi morar com um irmão, que não a aceitava. “No Nordeste, menino nasce para ser Lampião e não Maria Bonita, e pronto. Eu lamento”, diz ela.
Com a madrinha, Miss Biá, aprendeu a lidar com as diferenças com sabedoria. “No caso de Biá, por exemplo, que morreu aos 80 anos e era de outro tempo, os relacionamentos eram ainda mais cruéis. Quando a mãe dela era viva, Biá morava no Largo do Arouche; e a mãe, na Avenida Vieira de Carvalho, a poucos metros de distância uma da outra, onde muito babado acontecia e ainda acontece”, conta Salete. “A mãe de Biá fingia que não a via circular por ali e ela fingia que não se apresentava. Minha filosofia sempre foi: se perguntarem, não minta; só não vejo sentido em gritar o que sou, porque ninguém sai na porta de casa para dizer que é hétero. Sou afeminada e assumidíssima desde sempre, e hoje as pessoas me chamam de ela. Tudo tem hora e lugar, o que importa é o respeito.”
Salete virou habitué da noite aos 16 anos. Menor de idade, “dava o truque” para entrar nas boates ou ficava na porta, para ver “a gente chique” e os artistas entrar. Ela fez seu début no palco da Nostro Mondo, lendária boate LGBTQIAP+ de São Paulo (que funcionou por quase 50 anos), em um duo com Miss Biá, interpretando as irmãs Carmem e Aurora. Gostou do riscado e passou a “incorporar” outras cantoras a seu repertório, como Elis Regina, Gal Costa e Elba Ramalho. “Biá fazia os meus figurinos e os dela, era uma costureira esplêndida, e muitas vezes nos vestíamos igual”, conta Salete.
“Um dia, na [boate] Gent’s, faltou uma artista internacional para fazer um evento de beleza da L’Oréal em que interpretaria Marilyn Monroe, um dos maiores símbolos sexuais do século XX”, lembra ela. “Ninguém acreditava que eu poderia fazer –nem eu, porque não conhecia muito. Quando descobri o valor do cachê, topei na hora. Daí me maquiaram, colocaram uma peruca loira, maravilhosa, e eu me senti eu mesma, me senti bonita. Já tinha decorado o número e fiz. Cantei linda ‘Happy birthday, Mr. president’ e nunca mais saí do personagem. Se eu sou o que sou, devo a Salete Campari!”
“Drag com alma de travesti”, como se define, Salete é também uma militante ativa por melhores dias para as “irmãs”. “O preconceito, infelizmente, ainda é uma doença que mata muita gente. Sou uma sobrevivente de um tempo em que as pessoas tomavam bomba de silicone industrial e comiam o pão que o diabo amassou nas ruas”, lembra. “Corríamos da polícia e dos Carecas do ABC [gangue neonazista conhecida pela violência contra homossexuais]. Mas ainda assim, mesmo entre a classe, não é todo mundo que se ajuda.”
Engajada, Salete participou de eventos, bingos, bazares e brechós promovidos pela boate Blue Space com renda revertida para a Casa de Apoio Brenda Lee antes de seu fechamento, nos anos 2000. Depois disso, continuou a prestar ajuda à comunidade no projeto Transcidadania, cuja proposta é fortalecer as atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania de pessoas trans (travestis e mulheres e homens trans) em situação de vulnerabilidade em São Paulo.
Transitando com desenvoltura de boates glamourosas às da “boca do lixo”, Biá reinou absoluta numa época em que não havia a sincronização labial (lip sync) – muito popular atualmente – e as artistas tinham de provar seu talento “no gogó”. “Hoje, qualquer uma acha que é drag. Tem de ter cultura, saber cantar e dançar para fazer um trabalho de qualidade e apresentar o melhor ao público”, disse ela em 2019 em uma entrevista ao colega Ikaro Kadoshi
A artista hoje se divide entre a capital paulista e um sítio em Juquitiba, a pouco mais de 60 quilômetros da cidade de São Paulo, onde vive com suas mais de 50 perucas e de 50 galinhas, sempre na companhia da cachorra Marilyn Monroe. Há 22 anos, Salete se apresenta no palco da Danger Dance Club e, há três, faz lives diárias, o Corujão da Salete – um encontro virtual regado a trocas pessoais e intelectuais, serviços, “gongação” e “momento love love”, para juntar apaixonados.
Dona do trio elétrico mais popular da parada LGBTQIAP+ de São Paulo e de um bloco de Carnaval com seu nome – que em 2023 arrastou multidões pelo Centro da cidade –, ela comemora:
“Coisa boa é estar do lado de quem (se) ajuda. Felicidade é poder ter essa troca gostosa com as pessoas, tomar um café com bolacha de tarde, cuidar do quintal, trabalhar e ainda ouvir gente na rua gritando seu nome. A gente venceu!”.
Márcia Pantera e sua força na peruca
“Miss Biá foi uma mãe e uma avó para mim, ela me dava conselhos, me alimentava de histórias e de jantares maravilhosos que fazia na casa dela para a nata, só as bichas velhas, maduras e maravilhosas. A mais nova era eu”, diz Márcia Pantera, que está na ativa como drag queen há 35 anos.
“Biá sempre me colocava em pauta como a ‘nova queridinha’, e o que mais me impressionava é que não lembro de ninguém falar mal de outra pessoa que não estivesse presente. Era um lugar para a gente sorrir e falar do que foi bom no passado e do que era bom no momento; muitas piadas e aquela frase clássica: ‘Você lembra aquele dia na Corintho, quando a peruca de não sei quem caiu?’”, descreve Márcia.
Com certeza esse “não sei quem” não era Márcia, que sempre teve a ajuda de uma tia, que costurava sua peruca em uma tela bem presa à cabeça para que nunca despencasse. “Como toda criança ‘viada’, eu brincava de colocar uma toalha de banho na cabeça e sair rodando. Depois a coisa ficou mais séria”, brinca.
Márcia elevou o nível da performance drag brasileira no começo dos anos 1990, ao criar o estilo “bate-cabelo”, inspirando gerações com o movimento frenético de cabeça sincronizado com as batidas da música. “Em uma noite na Nostro Mondo, eu estava com o meu cabelão e dei um giro rápido, e, como um chicote, ele começou a bater na jaqueta de vinil preta que eu estava usando. O [estilista] Alexandre Herchcovitch estava na plateia e veio comentar comigo que tinha gostado, daí fui desenvolvendo o movimento. A cultura do ‘bate-cabelo’, no Brasil e no mundo, tem nome e sobrenome: Márcia Pantera”, diz ela.
Residente há 27 anos na Blue Space, Márcia cita, honrada, a longa lista de lugares onde já se apresentou: Nostro Mondo, Gent’s, Rave, Mad Queen, Level, Clube Base, Cantho, Freedom, Tunnel e Danger Club – sem contar as inúmeras festas e eventos no Brasil e na Alemanha, país que ela visita anualmente desde 2017. “Amo estar no palco e fazer o meu trabalho. Quanto mais o tempo passa, mais eu gosto.”
Artista negra e periférica, Márcia revela que, no começo da carreira, não percebia o preconceito e não entendia o que era o racismo. “Eu já era ‘do palco’ e achava que as pessoas olhavam para mim e viam só a minha beleza, meu carisma e minha gentileza. Minha família dizia que todos eram iguais, e só depois é que entendi o sistema de privilégios, quando a gente começa a se sentir menos, a ter medo”, diz ela. “Nosso meio é tão preconceituoso e racista como qualquer outro, mas acredito que tenha também um poder gigante de transformação, tanto para elevar como para tombar e machucar pessoas para que desistam.”
Márcia persistiu e transcendeu. Além dos shows, trabalhou com moda, posando para capas de revista e participando de desfiles na São Paulo fashion week. No cinema, atuou em filmes como Verona e Inferno (ambos de 2013), Tupiniqueens e Drag queen – o outro eu (ambos de 2015), Diva (2016), Corpo elétrico (2017) e Panthera Lemniscata (2021). “Decidi há muito tempo ser feliz e ver o poder que tenho nas minhas mãos para mudar o meu destino. Se Deus escreve certo por linhas tortas, eu sempre dou um jeito de mudar essas letrinhas. Eu me vejo como uma pessoa que cabe em todos os lugares em que quiser estar. Sou poderosa, e é sobre isso!”
Claudio Gottardi, o iluminador das estrelas
Testemunha dos anais da noite paulistana nos anos 1980, Claudio Gottardi trabalhou como iluminador em templos da noite LGBTQIAP+ frequentados por veteranas desta edição de Todos os gêneros, como os clubes Medieval, Corintho e Nostro Mondo. “Naquela época, não era um simples show, era um verdadeiro espetáculo! A festa começava na rua, na entrada das casas, com as pessoas chegando de limusine. A ferveção era altíssima e uma drag tentava tombar a outra, porque ninguém queria ficar por baixo!”, lembra ele.
Gottardi testemunhou cenas históricas, como a aparição do produtor Darby Daniel fantasiado de Branca de Neve e carregado por sete anões dentro de um caixão de vidro e da atriz Wilza Carla fechando a Rua Augusta para chegar a uma festa na Medieval vestida de odalisca e montada em um elefante, episódios registrados no documentário São Paulo em hi-fi (2016), de Lufe Steffen. O iluminador também estava na faraônica aparição de Georgia, sua musa e grande amiga, na abertura da Corintho, surgindo no palco em uma videira conduzida por cocheiros e cuspindo fogo pela boca.
Do alto de sua cabine, Gottardi operava uma mesa de luz analógica em trabalho conjunto e sincronizado com um operador de canhão. “Nada podia dar errado, e a rotina de ensaios era exaustiva. Dona Elisa Mascaro [proprietária da Medieval e da Corintho] era muito exigente e sua produção era impecável: cenário imponente e figurinos luxuosos trazidos dos Estados Unidos e da França para vestir as grandes divas e o corpo de baile, que chegava a reunir até 15 bailarinos em cena. Lá todo mundo recebia salário, 13o e férias. Acho que Elisa queria também tirar os artistas da marginalidade e afastá-los da prostituição”, conta.
Outra empresária da noite que merece reverência, segundo ele, é Condessa Mônica (1942-1989), que, além de proprietária e diretora artística da Nostro Mondo, era performer trans, advogada e oficial de Justiça. “Ela protegia a todos nós, profissionais e artistas, como uma leoa. Naquele tempo de ditadura, era comum que a polícia aparecesse do nada querendo entrar. Ela nunca deixou. Nós nos sentíamos seguros em uma época muito complicada em relação à liberdade, em que vivíamos um dualismo entre o medo e o sonho”, diz Gottardi. “Precisamos lembrar sempre essas figuras para mantermos acesa a chama daquela época de ouro e para que as novas gerações entendam que, se hoje existe um pouco mais de liberdade, é porque antes vieram outras tantas brilhando e abrindo o caminho.”