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por Adriana Ferreira
Silva
“Em plena Quarta-Feira de Cinzas e olha onde eu estou: falando com você!”, diz Nany People, num tom de reprovação que se transforma numa contagiante gargalhada. A bronca se deu porque, na tarde anterior, Nany havia atuado como rainha no bloco de Carnaval da amiga Salete Campari. Dias antes, estava no carro alegórico dedicado a humoristas da escola de samba Estrela do Terceiro Milênio, que desfilou no Grupo Especial de São Paulo, compromisso que ela emendou com a passagem por um camarote na Sapucaí, no Rio de Janeiro. Sua saga carnavalesca se estenderia posteriormente, tendo apresentado a performance das campeãs na TV, entre outros compromissos, como shows, gravações e stand-up
Se estava cansada, como indicou, não parecia. Com os cabelos vermelho-fogo combinando com óculos, batom e vestido na mesma cor, Nany não só estava exuberante como falou sem parar, ignorando a lista de perguntas preparadas para dar conta de sua participação na noite paulistana e de seu relacionamento com Kaká di Polly, ícone que morreu em janeiro de 2023. Ao lembrar a amiga, a expressão de Nany mudou, a voz embargou e ela não segurou as lágrimas. “Quando completei 50 anos, Kaká me fez uma ligação linda e choramos muito ao telefone.”
Kaká e Nany se conheceram em meados de 1980, início da época de ouro das drag queens nas boates gays paulistanas, frequentadas por personagens como Salete Campari, Divina Núbia e Silvetty Montilla. Nany testemunhou episódios épicos de Kaká, como o “desmaio” armado no meio da Avenida Paulista na primeira vez que a Parada gay ocupou essa via, em 1997. Na ocasião, a polícia queria impedir o cortejo e, então, Kaká di Polly criou a farsa, jogando-se no chão para chamar atenção dos guardas enquanto o restante dominava a rua. Vinte anos depois, Nany consolaria Kaká quando a amiga se sentiu esquecida pela organização do evento que ajudou a construir.
Mineira criada em Poços de Caldas, Nany estreou no teatro ainda criança, incentivada pela mãe, Dona Ivone, que a defendeu contra o preconceito da família e da sociedade poços-caldense. Em 1985, aos 20 anos, ela chegou à cena paulistana e iniciou os estudos no Teatro Escola Macunaíma, ao mesmo tempo que se descobria como mulher trans e explorava a fervida noite da cidade.
Se o teatro foi escola, os clubes lhe ofereceram palcos que ela usou como trampolim para alçar voos então inimagináveis para uma mulher trans, destacando-se na televisão em programas como os de Goulart de Andrade, Amaury Júnior e Hebe. Humorista e atriz de novelas e filmes, Nany se divide entre espetáculos pelo país – são três atualmente – e participações em uma série da Netflix e nos televisivos Vai que cola e Caldeirão com Mion. “E ainda pego uns bofes por fora, porque não estou morta”, diz ela.
A única coisa à qual ela não se adapta é o que considera modismos, como a linguagem neutra e as muitas letras incorporadas à sigla LGBTQIAP+. “Descobri que estava coroa quando percebi que o mundo tinha virado essa sopa de letras”, diz Nany. “Briguei 18 anos para ter um artigo à frente do meu nome e aí vêm dizer que o artigo não define a pessoa. O que você é então, coisa?” Tudo isso ela brada pouco se importando com a repercussão: “Nasci cancelada!”.
Como era a cena noturna quando você se mudou para São Paulo?
Nany People Quando cheguei à cidade, em 1985, estávamos no epicentro da peste, do câncer gay [como então era chamado o HIV]. Perdi amigos que morriam tomando Novalgina, porque ninguém sabia o que dar para essas pessoas. Virei madrinha de voluntariado do [hospital] Emílio Ribas de tanto levar gente lá. Mas essa mesma noite, onde me fiz, era elegante e reunia todas as tribos. Na época, lembro que a [revista] Veja publicou uma reportagem dizendo que a Rua Marquês de Itu [na Vila Buarque] tinha a maior concentração de homossexuais da América Latina.
Quais eram as boates mais famosas desse período?
Nany People Era o apogeu da HS [boate Homo Sapiens], que tinha filas imensas na porta. A Medieval [primeiro clube abertamente gay, na Rua Augusta], que fez muito sucesso nos anos 1960 e 1970, tinha acabado de fechar, e sua proprietária, a Elisa Mascaro, inaugurou a Corintho, que era uma réplica do Lido, de Paris, com shows de quarta a domingo. Uma vez por mês, a Corintho fazia festas especiais: tinha a noite do beijo, das noivas, do doce. A gente se montava para ir como se fosse um grito de Carnaval. O fuá era tão grande que ninguém nem entrava. Ficávamos na porta fazendo corso e também atendimento. A gente pegava uns boys e saía para dar umas voltas, porque ninguém é besta [risos].
Além de frequentadora, você trabalhou fazendo shows, como hostess
Nany People
Ontem mesmo [dia 21 de fevereiro], no bloco da Salete Campari, havia pessoas gritando “Te conheço da [boate] Tunnel!”. Eu comecei lá fazendo shows de variété, até que me perguntaram se eu poderia ficar na porta, e acabei trabalhando como hostess por um ano. Mas minha carreira começou no teatro. Trabalhei no Paiol de 1985 a 1995, mesma época em que estudei no [Teatro Escola] Macunaíma e, depois, na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas/SP]. Faço teatro desde os 10 anos, quando ainda morava em Poços de Caldas. Em 2025, completo 60 anos de idade e 50 de vida artística.
Nany People
Nos anos 1980 e 1990, as festas não tinham sigla, até porque o movimento gay não tinha essa democratização de hoje, que representou também sua banalização. A gente vestia a melhor roupa, porque na porta da casa noturna ficava uma pessoa chamada door, que tinha o poder de vida ou morte: se você aparecesse com um sapato que não estivesse de acordo – não precisava ser haute couture,
“A Kaká (di Polly) simbolizava inteligência, referência, acessibilidade, inclusão. Antes de ser moda falar sobre gordofobia, ser plus size, Kaká já era e nunca deixou de fazer nada por ser quem era. Além disso, ela e eu tivemos uma coisa que, infelizmente, poucas trans têm, que é o abraço da família.”
Nany People mas aprovado –, não entrava. Não existia cota de inclusão, lugar de fala, nada disso. Não entrava e pronto. Depois de um tempo, passaram a transformar qualquer bar à beira da falência em GLS, porque gay dá dinheiro. Só que gay não é burro: gay paga, mas quer ser bem tratado, tem bom gosto. Quando começaram as subdivisões e a droga química se tornou mais acessível, a noite acabou.
Quando você deixou a noite?
Nos anos 2000, eu já viajava muito me apresentando pelo Brasil inteiro. Comprei três apartamentos com dinheiro da noite. Em um único sábado, fazia sete
Nany People performances em São Paulo. Em 2005, comecei a sentir que as pessoas não se interessavam mais pelo show. Passei a ver um comportamento estranho. Um desinteresse da plateia. Até que, em um domingo, na [boate] Blue Space, fiz uma piada com uma alusão a Monteiro Lobato e ninguém sabia quem ele era. Quando saí do palco, decidi que tinha acabado para mim. Nunca mais faria show em boate gay. Isso foi em 2008.
Em seus tempos áureos de noite, quem eram as frequentadoras?
Nany People Ah, foi nas festas que encontrei pela primeira vez Silvetty Montilla, que ainda estava engatinhando, começando a se montar, além de Divina Núbia, Kaká di Polly e Salete Campari. Foi na porta da Corintho que começou minha história com Kaká.
Como vocês ficaram amigas?
Nany People Quando a Corintho fechou, Dona Elisa Mascaro passou a fazer shows de drags – que nem tinham esse nome; até então era transformista – e de bonitas, como eram chamadas as trans. Ela me convidou para participar da noite com as drags e eu respondi: “Muito obrigada, agradeço, mas não sou drag. Eu sou bonita”. Eu nem tinha feito transição ainda. Estava começando. Eu me entupia de hormônios e já tinha meu peito em riste. A Divina Núbia lembra esse episódio até hoje, porque foi um espanto. Todo mundo queria saber quem era a maluca que estava recusando trabalho. Então, Kaká di Polly se aproximou, me deu parabéns e disse que sempre tinha me achado diferenciada. Ela falou uma coisa de que jamais vou esquecer: “Não seja mais uma, seja a. Você vai ser a Dona Nany”. Foi essa frase que usei na homenagem que fiz a ela no Instagram quando recebi a notícia de seu falecimento.
Quais lembranças você guarda de Kaká?
Nany People Vivemos a época do desbunde e nos divertimos muito. Lembro de uma noite em que Salete e eu ficamos nos entretendo com uns boys e chegamos atrasadas para um concurso de drags, enquanto Kaká nos procurava por todos os cantos. Quando finalmente aparecemos, quase no final da colocação, Kaká falou: “Já sei, você estava sendo coroada, né, querida?”. Eu ri horrores! Teve também uma situação numa festa num circo que ficava ali no começo da [Avenida] Cidade Jardim, em que Kaká apareceu com um boy que era meu. Eu tinha brigado com ele, que, para fazer ciúmes, ficou com ela. Quando ela descobriu, deixou o boy sem carro, sem documento, sem nada. Com a morte de Kaká e de outras pessoas contemporâneas, sinto como se tivessem apagado um pouco da minha história. Isso dá um nó na garganta.
Qual é a importância de Kaká di Polly para a cena gay paulistana?
Nany People A Kaká simbolizava inteligência, referência, acessibilidade, inclusão. Antes de ser moda falar sobre gordofobia, ser plus size, Kaká já era e nunca deixou de fazer nada por ser quem era. Além disso, ela e eu tivemos uma coisa que, infelizmente, poucas trans têm, que é o abraço da família. Podem me chamar de careta, conservadora, mas, se a família não te prepara, você não se torna um cidadão autossuficiente. A família te dá o encorajamento e o suporte para se defender dos torpedos que a vida manda. Quem foi ao enterro disse que foi de cortar o coração ver o irmão de Kaká chorando abraçado ao caixão.
Nany People Na primeira edição da Parada [na Avenida Paulista, em 1997], Kaká se jogou no chão fingindo um desmaio, pois a polícia não queria deixar o desfile acontecer. Ela pôs o corpo no meio da pista, e disso ninguém se lembra. Eu parei de frequentar a partir da terceira edição porque a organização Amigos da Parada começou a cobrar caríssimo dos trios e, quando ousei perguntar para quem ia o dinheiro, fui cortada da apresentação. A Parada virou uma micareta que acontece o ano inteiro no Brasil todo falando de orgulho. Orgulho de quem e do que, se hoje a própria classe se flagela? Gay não suporta bicha pintosa, que não suporta travesti, que não suporta sapatão. Ninguém se comunga e quer falar de respeitabilidade?
Você concorda que as pioneiras foram esquecidas?
Nany People Adoro a [cantora] Pabllo Vittar, mas, outro dia, ouvi ela dizer: “As drags que veem a gente na mídia hoje têm em quem se inspirar, porque antes não tinham”. Como não? Em quem a gente se inspirou? No Visconde de Sabugosa? Não, querida, foi em Condessa, em Miss Biá. Ela [Pabllo] não sabe por ignorância. As pessoas acham que a vida aconteceu depois que inventaram o Instagram. Kaká se chateava porque, em 2020, estávamos todas em isolamento, na pandemia, e ela se sentiu esquecida, por não ter sido convidada para participar de um evento que ajudou a construir. Eu não ligo: antes de o gueto virar as costas para mim, eu falei: “Não dependo de vocês”. Sempre fiz teatro, telegrama animado, depois TV, cinema… A Kaká ainda frequentava muito o métier e, por isso, sentia-se injustiçada.
com tantas conquistas?
Nany People Minha mãe teve um papel importante. Ela sempre me dizia: “Nunca faça nada que você vá ter vergonha de contar em público”. Por isso, não tive o menor pudor, por exemplo, de dizer para a Marília Gabriela na TV que já gozei chupando um sovaco – até porque adoro [risos]. Sou transparente e, quando você tem isso como formação, vê o mundo como seu quintal. A sinceridade traz uma leveza. Sempre me inspirei em mulheres à frente do seu tempo. Está vendo este quadro [ela mostra uma pintura]? Aqui estão Hebe, Rogéria, Fafá de Belém e minha mãe. Todas elas me inspiram.