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APRESENTAÇÃO
Uma armadura protege, mas também limita o acesso àquilo que não oferece risco. Evita cortes e perfurações na pele, mas não permite que essa pele prove todo o mundo de sensações que se estende para além do metal frio. Firme. Matéria bruta que simula a forma humana, a armadura é, do elmo à espora, só na aparência e na palavra uma unidade, uma identidade.
Em conjunto, as peças da armadura podem ser comparadas aos muito mais complexos grupos de valores que definem como cada pessoa deve, assim se espera, interpretar o seu meio e se adaptar a ele no que diz respeito aos papéis de gênero. Mulher que é mulher não faz isso, homem que é homem não faz aquilo. Menina gosta de boneca e de menino, menino gosta de futebol e de menina. Nesses casos, as peças da armadura podem ir se ajustando tão precocemente aos contornos da pessoa – ou moldando esses contornos com tanta eficiência ou insistência – a ponto de que esta passa a se confundir com aquelas. E o que se vê de fora é algo como o cavaleiro inexistente do romance homônimo de Italo Calvino: uma armadura sem um corpo dentro dela, que não dorme e, portanto, não sonha, que despreza os humores da carne e que, do âmago vazio, só emite uma voz metálica sempre obediente a um apanhado de regras que a precede em tempo e compreensão,
leis de uma natureza construída. Uma voz que se faz autoritária em nome da autoridade à qual se submete.
Todos os Gêneros é uma iniciativa que se propõe a pensar justamente o que não é metal no humano. Anualmente, o programa convida o público para pensar questões como identidade de gênero, sexualidade e afetividade – e para celebrar a diversidade – com base em um tema central. Em 2020, em sua sétima edição, o evento explora a noção de masculinidades: um campo ainda povoado por padrões que em tantos sentidos, além dos já citados, emulam a figura da armadura sem corpo, dos homens de lata sem subjetividade.
Os conteúdos apresentados nas páginas a seguir, por sua vez, são fundamentalmente marcados por um caráter subjetivo. Antes de ser textos – ensaios, contos, poemas – e desenhos sobre as masculinidades, são pontos de vista sobre elas. Como as próprias masculinidades, esses lugares de onde elas podem ser interpretadas são potencialmente inesgotáveis. Por isso, os olhares reunidos aqui compõem apenas um trajeto possível. Um trajeto que começa onde a América do Sul toca o Pacífico e segue até onde a África mergulha no Índico. Um trajeto que tem como ponto de partida o ponto de vista de uma mulher – talvez a mais justificável das escolhas, uma vez que o relativamente novo processo de autorreflexão do masculino se deve sobretudo aos movimentos idealizados e realizados pelas mulheres.
Além desta publicação, Todos os Gêneros promove – entre 24 e 30 de agosto – uma série de conversas e apresentações artísticas. Por causa da pandemia de covid-19 e da consequente necessidade de isolamento social, a programação desta edição do evento é toda on-line, com transmissões pelo site do Itaú Cultural, em itaucultural.org.br. A página também reúne materiais ligados às edições anteriores do programa, focadas em temas como a vida soropositiva e o envelhecimento do corpo LGBTQIA+.