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A CARTA (ROUBADA) AO PAI
por Tiago Mussi
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Como a figura paterna – presente ou ausente, amada ou temida – se faz legado?
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”, diz Fausto, personagem da tragédia homônima de Goethe, em passagem que Freud lembrou ao tratar do tema do legado em Totem e Tabu.
Todavia, a herança pode ser recebida não apenas em seu aspecto positivo, mas também no negativo. Assim, posso me identificar com a imagem de meu pai, amando-o tanto que me torno semelhante a ele, ou, ao contrário, renegá-la, transformando-me em outro, ainda que com a marca dele.
Ao falar de sua relação com seu pai, Jacques tem que se apoiar na sua memória e sabe que toda lembrança não é apenas deformação, mas também invenção. Os histéricos sofrem de reminiscências, dizia Freud. Jacques diria que os escritores também sofrem do mesmo mal. Sendo, no entanto, psicanalista e escritor, ele sabe que essa dupla filiação não é um revés, mas antes uma vantagem. Não ignora que todo ensaio, desde Montaigne, é um apanhado de ficções do Eu – narrativas que o Eu desfia para recontar a si mesmo o mundo. E todo escritor sabe do caráter verídico da ficção.
Jacques não queria falar da relação com seu pai como alguém que faz um ensaio sobre psicanálise. Antes, preferiria a forma livre de um romance, um romance de formação, aquele que
acompanha os desenvolvimentos moral e psicológico de um personagem desde a infância até os anos de maturidade. Quem sabe a narrativa ideal se situasse justamente num espaço entre o ensaio e o romance, onde houvesse lugar para elementos tanto autobiográficos quanto ficcionais. Para bem exercer seu ofício de psicanalista, Jacques não deve se desvelar por completo. Assim, optou por um relato autoficcional. Uma narrativa que contém outra narrativa dentro de si – uma mise en abyme, nas palavras do escritor francês André Gide.
Até os 6 anos de idade, Jacques quase nada sabia dos amores de seu pai. Emílio ainda era casado quando começou a se relacionar com Cléo, com quem tivera primeiro Jacques e, agora, sua irmã caçula. Quando soube do nascimento da menina, a primeira mulher, que já se esforçara o bastante para ignorar a existência do filho ilegítimo do marido, não pôde mais tolerar tamanha traição, dando um fim ao casamento. Sem ter para onde ir, Emílio levou a amante que acabara de dar à luz para a casa dela e, a pretexto de cuidar de Cléo, de Jacques e da filha recém-nascida, não foi embora dali. Jacques não sabe dizer ao certo, mas foi por volta dessa época que lhe adveio a noção de que a meia-irmã do primeiro casamento de seu pai nascera apenas um mês antes dele, no mesmo ano de 1973.
Contudo, os amores de seu pai não terminaram por aí. Mal sua mãe havia parido, seu pai estava em vias de seduzir a melhor amiga dela, com quem viria a ter um rumoroso caso. Jacques se lembra da vez em que a mãe o tirou da cama no meio da noite, colocou o bebê na cadeirinha do banco traseiro do carro, e os três partiram em direção à casa de campo da família, onde Emílio foi surpreendido pela mulher em fúria, uma Medeia prestes a destruir não só o amante, mas também a prole.
Ao longo dos anos seguintes, passou pelas mãos cirúrgicas de Emílio uma sucessão de mulheres que sucumbiam ao charme
daquele Casanova de província que exercia a sedução como sucedâneo da medicina. Muito atento e sensível ao que se passava ao seu redor, Jacques não deixava de reparar na virilidade e no grande poder de atração que seu pai exercia sobre as mulheres, como também no sofrimento e no imenso desamparo em que sua mãe se via lançada a cada nova infidelidade daquele homem. Assim, escolado nas declinações do narcisismo e do masoquismo desde tenra idade, era natural que ele procurasse controlar o que fora vivido passivamente em relação aos pais, assumindo no futuro um papel ativo no tocante à vivência desprazerosa. Por isso, não foi casual que se encaminhasse à psicanálise, primeiro para se tratar, depois para cuidar dos outros. Ao se reaproximar do sentimento de desprazer, agora como profissional, adquiria domínio sobre ele, o que lhe permitia lidar com a ainda viva impressão de modo mais completo do que se apenas ficasse submetido a ela. Anos mais tarde, cumprindo a quarentena imposta a todo candidato a analista no divã do doutor Roberto Loewenstein, médico com quem fez sua análise de formação, ele compreendeu subitamente que teve a infância roubada.
Durante uma sessão, o analista de Jacques, tão vaidoso quanto seu próprio pai, lhe contou sobre um seminário que ensinaria naquele ano e ao qual daria o nome de A Carta Roubada – título tomado de empréstimo a um conto de Edgar Allan Poe. Enquanto o analista versava sobre o complexo de Édipo em Poe, associado a tendências sádicas e necrofílicas, Jacques se dedicava a analisar os próprios sonhos. Na véspera, sonhara que Emílio havia comido todos os seus filhos, salvo ele, assim como o titã Cronos, deus do Tempo, comera os seus. Acordou em pânico.
E foi justamente a partir da análise da transferência – processo no curso do qual o analisando transfere para o analista suas atitudes e sentimentos provenientes de outros objetos de amor, como Ida Bauer faz em relação a Freud em O Caso Dora – que Jacques se deu conta dos afetos amorosos e ao mesmo tempo hostis, da ambivalência em relação ao pai durante a infância. Ao
contar o sonho a Loewenstein, recebeu uma passagem de A Divina Comédia em que os lânguidos filhos do Conde Ugolino se oferecem ao esfomeado pai como banquete. No decurso da análise, alguns aspectos da transferência – a agressividade latente, o desejo parricida, o medo, a culpa, assim como as identificações e contraidentificações daí resultantes – vão revelar a incidência da figura paterna sobre a sua masculinidade e, em última instância, a dos filhos em geral.
No Édipo, o menino não apenas odeia, mas ama tanto o pai a ponto de se apropriar de uma característica dele para então fazê-la sua, como uma carta de amor extraviada – diz-se de uma carta que não foi entregue ou reclamada, que ela sofre: en souffrance, em francês – a que lemos como se ela nos tivesse sido endereçada, aumentando a estima por nós mesmos, na medida em que imaginamos que é à nossa pessoa a quem as palavras se destinam, e não a outra. No percurso que conduz à masculinidade, cuja meta fundamental é se identificar com a figura do pai, o menino assume a virilidade do genitor. Devido ao temor da castração imposta pelo pai, é preferível preservar o falo, a função simbólica representada pelo pênis, renunciando ao amor pela mãe. Assim sendo, torna-se forte e viril à imagem do pai, virilidade esta que Stephen Dedalus não herdará de Leopold Bloom, seu pai espiritual. Aliás, Ulisses, de James Joyce, era o livro de cabeceira de Jacques.
Se, por um lado, as pulsões na infância podem ser revertidas em seu oposto na vida adulta, passando da atividade à passividade, correlatas dos pares sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo, por outro, as mesmas pulsões que um dia habitaram a criança podem ter também outros destinos, como o retorno sobre o próprio sujeito – ser atormentado, ser olhado – daquilo que foi suscitado no outro – atormentar, olhar –, o recalque e a sublimação. Se toda arte é uma forma de sublimação,
ou seja, a modificação de impulsos originalmente sexuais para fins considerados mais elevados, como poderia ser concebida a obsessão do pintor Francis Bacon pela figura do papa (pai?) Inocêncio X senão como a transformação de impulsos destinados na origem ao pai, objeto do amor primeiro? Certamente não é casual a série de retratos a que Bacon se dedicou ao longo da carreira, apropriando-se da imagem do papa desenhado primeiro por Velázquez, elevando a figura majestática às raias do paroxismo, do sublime espiritual ao profano da matéria. Enfim, mais do que masculino e feminino, talvez devêssemos usar o par ativo e passivo para nos referirmos à concepção da sexualidade, pois nem sempre há correspondência entre atividade e masculinidade, bem como passividade e feminilidade – o que nos leva à questão fundamental da bissexualidade psíquica e de seus avatares.
Jacques sonha uma última vez antes de dar sua análise de formação por encerrada. No sonho, que mais parecia uma tela de Bacon, ele era subjugado por seu pai sobre a relva. Prestes a vencê-lo, Emílio o penetrava. Antes de despertar, ele diz: “Como pôde fazer isso comigo, pai?”. Na próxima sessão, adentra o consultório de Loewenstein e decide interromper sua análise de forma intempestiva, nada mais que uma forma simbólica de matar o pai. Na realidade, ele ignorava que agia como uma criança que, pretendendo se vingar do pai, dava apenas um tiro no pé.
Naquele mesmo ano, na universidade onde lecionava, Jacques apresentou um seminário sobre psicanálise chamado A Carta (Roubada) ao Pai, que recebeu maior afluência que o de seu antigo analista. Melhor faria se tivesse escolhido como tema a questão freudiana da análise terminável e interminável.
___ Tiago Mussi (Rio de Janeiro, 1974) é psicanalista e escritor. Publicou o romance Tão Fútil e de Tão Mínima Importância.