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UM CORPO EXTRACORPÓREO

por Mia Couto

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Toques podem expressar sentimentos, alertar quem está em perigo, curar ou aliviar dores do corpo e do que parece ir além dele. Apesar disso, ao menos no contexto brasileiro, para muitos homens – cisgêneros e heterossexuais, em especial – o contato físico é quase sinônimo de contato sexual, e o toque é permitido sobretudo em situações de erotismo, quando não de competição ou violência. Mas o corpo de fato vai para além dele, e suas formas de ser, estar e interagir também se relacionam com a fisiologia de um organismo maior, cultural.

Como todos os países, Moçambique é um território de certezas e enganos. De fato, não existe neste mundo país que não revele e esconda muitos países. A arte de ser nação é a de um costureiro que junta e inventa panos numa única aparência. O meu país não é diferente. O que é seguramente único nele é o mosaico de culturas e de línguas e de religiosidades que mora dentro das suas fronteiras. São mais de 25, todas elas vivas, todas elas fabricando o cotidiano de 30 milhões de moçambicanos. E o que confere especificidade é o tempo recente em que essa diversidade é obrigada a dormir sob uma mesma bandeira. Fez, no dia 25 de junho deste 2020, 45 anos que Moçambique se tornou independente.

Nas minhas andanças de biólogo vou circulando por entre essa diversidade de cosmogonias. E vejo, com prazer, como essas outras lógicas resistem a um cosmopolitismo uniformizante. São bem diversas as concepções de corpo, de identidade e de intimidade. São distintas entre Moçambique e o resto do mundo. E são distintas dentro do espaço moçambicano.

A covid-19 evidenciou algumas dessas diferenças. A imposição do distanciamento físico entrou em choque, de fato, com culturas que são profundamente gregárias e corporais. Muitos moçambicanos não vão à praia simplesmente para desfrutarem de um espaço aberto e arejado. Vão à praia para ficarem juntos. Para se verem, falarem, celebrarem a vida. A ida à praia é um ritual de proximidade. Por essa razão, as medidas de restrição da covid-19

tiveram de ser explícitas e extremas: pode-se passear ao longo das praias, com máscara. Mas é interdito estar na praia.

Os rituais de saudação ilustram de forma clara essa corporalidade. Os moçambicanos não apertam as mãos apenas no momento em que se saúdam. Enquanto demora a conversa, as mãos ficam nas mãos do interlocutor. Andar de mãos dadas não é uma prerrogativa das mulheres. Dois homens podem fazê-lo sem nenhuma inibição. Numa sociedade que é ainda bastante homofóbica, essa intimidade pública é socialmente aceita.

Recordo-me de que há uns anos fui com o meu filho mais velho para um parque de fauna que se localiza numa região muito remota no sul de Moçambique. Encontramos no meio do parque um caçador eremita que nos levou a ver bichos e nos contou histórias de caça. Convidei-o para que viesse jantar no nosso acampamento.

Já era tarde – e ali, no mato, faz-se tarde assim que termina o jantar –, o meu filho veio anunciar que estava cansado e que se ia retirar. Despedi-me dele como sempre faço. Essa despedida incomodou o nosso hóspede, que me perguntou se não iríamos partilhar a mesma tenda. Confirmei que sim, e apontei para o pequeno abrigo junto à fogueira. O velho Nguezi advertiu: “nunca diga adeus a quem vai dormir ao seu lado”. Quis saber o porquê. E ele estranhou a minha curiosidade. “Algum de vocês se vai embora?”, perguntou.

Naquela altura, repensei algo que fazia mecanicamente todas as noites em minha casa: despedia-me de quem, afinal, não chegava a sair do meu lado. A advertência de Nguezi podia traduzir uma simples diferença na etiqueta social. Mas era bem mais do que isso. Era evidente que tínhamos modos diferentes de definir a fronteira entre a presença e a ausência. Na cultura daquela região, aquele que adormeceu permanece tão presente como quem está desperto. Quem dorme ao nosso lado mantém-se

conosco porque está sonhando. E os sonhos são uma manifestação tão concreta como a consciência.

Quando adormecemos ou quando desmaiamos, afirmamos figuradamente que nos “apagamos”. Apagamo-nos como sucede a uma lâmpada, a um aparelho elétrico. De alguém que está distraído ou desinteressado dizemos que “não está ligado”. Assumimos enfim o nosso parentesco com um dispositivo mecânico, munido de um botão que o liga e desliga. Essa concepção era estranha para o caçador e para todos os que partilham a sua visão do mundo. Para eles, o mundo e o indivíduo são ambos entidades vivas e vivenciais. Não existem em si mesmos. Eles acontecem uns nos outros.

Há ainda algo que deve ser sublinhado neste texto, que é o primado absoluto da oralidade em Moçambique – mesmo nas zonas urbanas a escrita é um universo de minorias. A voz é parte do corpo. Quando conversam as pessoas tocam-se. O que assegura a verdade do que foi dito é essa intangível presença que se produz no momento. Não é o que fica escrito que prevalece. É a palavra. As pessoas usam o verbo “sentar” para dizer conversar. Alguém anuncia: “vamos sentar”, e sabe-se que há um convívio para um encontro que se prolonga sempre mais que se pode imaginar.

O cotidiano das cidades é mandado pela lei da urgência. O tempo rural é outro, e a diferença começa nos rituais de saudação. Cada uma das pessoas que se visita tem o seu tempo para fazer desfilar uma longa lista de cumprimentos. Quer-se saber dos parentes, próximos e afastados. Quer-se saber da chuva, das colheitas, das visitas. E essa demorada encenação acontece enquanto os dois interlocutores se mantêm de mãos dadas. No final, aquele ou aquela que chegou proclama: “agora, sim, agora eu já cheguei”.

Fica assim claro que somos mais do que o corpo que trazemos. Somos feitos de histórias, somos feitos de uma teia de relações de parentesco e de vizinhança. Não somos a aranha, somos a teia. Do mesmo modo, a casa não começa nas paredes. Começa no espaço em redor, e essa linha de fronteira nem sempre está visível. Quem chega não bate à porta. Se o fizer é porque já invadiu o espaço da privacidade. Os que chegam devem se anunciar batendo as palmas e devem fazê-lo para além dessa linha de fronteira. Para quem vem da cidade essa linha é quase sempre invisível. A cidade tem um corpo que se reconhece pelas ruas, pelas esquinas, pelos passeios públicos. Este outro corpo, o da ruralidade, é feito de linhas redondas. A esquina é a árvore. O semáforo é o poço. Os nomes e os números das ruas são aqui nomes de famílias que aqui vivem.

O corpo desta gente que se debruça sobre o Índico vai bem para além da sua própria pele. É um oceano. Não se oferece para ser tocado. Mas para ser atravessado. As pessoas vivem-se. E sonham-se reciprocamente. Aqui se pode escutar alguém dizendo, sem nenhuma pretensão poética: “estou-te a doer-me”.

___ Mia Couto (Moçambique, 1955) é escritor e biólogo. É autor do romance Terra Sonâmbula e do livro de contos O Fio das Missangas, entre outras obras, em prosa e versos.

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