Carta 20 valores

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Ivo Brandão 969043345

ivobrandao@hotmail.com

Rua de São Pedro, S/N, 4540-160 Arouca

Arouca, 25 de maio de 2015 Estimada Professora Luísa Orvalho: Escrevo-lhe para agradecer os vinte valores que, imerecidamente, decidiu atribuir-me. Como é possível, na «escola normal», alguém tornar os cânones triviais e o correr dos dias sagrado, alguém fazer da cultura (e da transmissão da cultura) uma forma de insubmissão, alguém fomentar a inquietação pessoal; como é que alguém assim é merecedor de receber vinte valores? Pois bem, por engano ou provocação (conhecendo-a minimamente, talvez me incline a apostar na segunda), quero agradecer-lhe por ter rompido com essa existência acrítica e funcional à qual associamos, de forma instintiva e sem grande reflexão, o funcionamento normal da escola e do processo de ensinar/aprender. Quero agradecer-lhe por, desde o primeiro minuto, ter-me feito voltar às prateleiras onde os livros estavam amontoados e desorganizados, e aí reencontrar essa lição que os clássicos nos dão, que não é outra senão a de buscarmo-nos a nós mesmos, e, a partir daí, realizar que há vida para além do cumprimento escrupuloso de um programa, que o «sistema», mais do que produzir médicos, engenheiros, gestores ou músicos competentes, deve (e, com o nosso contributo, pode) «produzir» homens e mulheres (músicos) cultos, críticos, sensíveis e com convicções. Quero agradecer-lhe pelo facto de ter conseguido (re)colocar-me no papel de professor, apesar da pouca experiência (nula, diria), para me aperceber da competência que agora tenho para vislumbrar o copo meio cheio de oportunidades, em vez do copo meio vazio dos erros. Por ter conseguido reorientar os meus pontos de vista, olhando para o «lado de lá», e, tal como o maestro que não produz nenhum som durante a sua atividade, não duvidar da capacidade dos que hoje estão à minha frente (ao meu lado) na sala de aula, para que, juntos, possamos tornar aquilo que sonhamos real. Quero ainda agradecer-lhe por ter-me relembrado que estas coisas são como as peças musicais. Cada nota individualmente, vale pouco, mas juntas, de forma organizada, dão origem a frases, e as frases a um texto, e o texto a uma viagem, e a viagem, normalmente feita de emoções, termina dentro de nós, ou, como dizem os ingleses, «we reach home». E por, nesse percurso, ter aprendido a ouvir, a compreender e a emocionar-me. Estou-lhe grato também por isso.


Quando cheguei cá, atrasado e desorientado, acreditava que sabia um pouco de música, mas nada sobre como ensiná-la. Hoje, depois da viagem pela qual nos guiou, acredito que sei um pouco mais de música, e alguma coisa sobre como ensiná-la. Creio, portanto, que estou pronto para continuar a experimentar a errar e a tentar corrigir. Hoje, sou capaz de olhar para «arte de ensinar» como uma «arte de possibilidades», desde logo aproveitando o facto de poder usar o trabalho colaborativo e os projetos de intervenção como «ferramentas» para demonstrar que ensinar e aprender são conceitos que, afinal, vão muito para além do que vem nos livros. Hoje, com tudo o que pude aprender, creio ter espírito crítico suficiente para discernir quais as melhores práticas a adotar em cada contexto específico. Sou capaz de planear corretamente e de forma consistente as minhas ações. Sou capaz de agir dentro da diferença, e aplicar as ferramentas concretas e mais adequadas a cada contexto, tendo em conta a diferenciação pedagógica. Quando, pela primeira vez, pensei na possibilidade de ser professor, quase decidi que só o seria se fosse «o melhor». A realidade demonstrou-me, todavia, que talvez isso não seja bem assim, mas a sua disciplina abriu uma janela de oportunidades, de forma a manter sempre a «corrente de ar» que é essa possibilidade de, um dia, talvez poder ser «quase». Por tudo isto, mesmo não me sentindo merecedor dos vinte valores, creio que, por si, talvez os mereça. Não como fim, mas como possibilidade. A possibilidade de, passo a passo, mudar para melhor a forma como se aprende, tentando, como dizia Whitmann, «contribuir com um verso» (pequeno) para a continuação da «peça poderosa», que será, como (ou)vimos dizer o Professor António Nóvoa, «de todos, para todos, com todos e por todos». Um afetuoso abraço,


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