Pós-Graduação em Jornalismo Literário Especialização — Lato Sensu ABJL / FAVI
JANAÍNA QUITÉRIO
Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas
Trabalho de Conclusão de Curso
São Paulo Julho de 2011
Pós-Graduação em Jornalismo Literário Especialização — Lato Sensu ABJL / FAVI
JANAÍNA QUITÉRIO
Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas
Trabalho de Conclusão de Curso
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
apresentado como exigência parcial para obtenção do título de Especialista em Jornalismo Literário pela Faculdade Vicentina de Curitiba, em convênio com a ABJL, sob orientação do Prof. Dr. Celso Falaschi.
São Paulo Julho de 2011
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Para ler ao som de Like a Rolling Stone, de Bob Dylan “How does it feel How does it feel To be without a home Like a complete unknown Like a rolling stone?”
— Eu con-se-guiiiiiiii! Se-guiiii! Se-guiiii! Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes vista do terceiro pico mais alto do Brasil, o da Bandeira, a 2.891,9 metros de altitude. Postada ao lado do cruzeiro, meus olhos alongados eram capazes de acompanhar o caminho invisível ecoado pelas oito letras do verbo proclamado, ainda que a névoa espessa pintasse um cenário alvacento. A respiração ofegante — provocada pelo esforço físico de subir a montanha e pelo ar rarefeito — não conseguia abrasar o corpo, que estava inerte sob o frio intenso avivado pela ventania. Gorro de lã, cachecol, jaqueta corta-vento e luvas felpudas não esquentavam nem as partes encobertas. Mesmo assim, àquela altura, o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade por mim sentida. Eu estava no céu, sobranceira, enxergando o mundo ao longe, no ponto de intersecção entre o plano terrestre e o céu divino, na morada sagrada dos deuses ou no esconderijo de monstros sagrados, de acordo com a simbologia milenar atribuída às montanhas. Nunca antes havia experimentado a sensação fervorosa de consumar um retiro de alma com o objetivo de melhorar minha integração em vida. Para chegar ali, foi um solitário caminho: cinco dias de pedaladas por estradas de terra e por trilhas que cortam o relevo acidentado de oito municípios da Zona da Mata mineira, de Tombos a Alto Caparaó. Ao meio-dia em ponto de um domingo, eu terminava a jornada de 190 quilômetros desenhada pelo Caminho da Luz — uma rota que pode ser percorrida a pé, a cavalo ou de bicicleta por peregrinos, aventureiros, ecologistas ou por aqueles
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que, sem rótulos, buscam o desafio metafórico de “mover montanhas” com o esforço — ou prazer — de percorrê-las. No Brasil, um número expressivo de pessoas tem se deslocado de diferentes regiões para fazer peregrinações por caminhos que se espelham em Santiago de Compostela, na Espanha, sobretudo após o ano 2000, com a criação de novas rotas nacionais. Além do Caminho da Luz, há outros quatro bastante percorridos, como o Caminho do Sol e o Caminho da Fé, ambos no Estado de São Paulo, o Caminho das Missões, no Rio Grande do Sul, e o mais antigo, o Caminho de Passos de Anchieta, no Espírito Santo. De minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo de penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em experiências solitárias, por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação sociocultural com as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem companhia, e estava determinada a conhecer os meus limites na iniciação em cicloviagens. No topo da montanha, fim da minha jornada, eu não estava sozinha. Subi acompanhada de um guia turístico e de um casal capixaba. Depois de meu desabafo verbal, a jovem arquiteta, que escalava pela primeira vez o Pico da Bandeira, admirou-se com a empreitada: — Você fez quase 200 quilômetros de bicicleta? Sozinha? É corajosa! Fingi concordar com ela. O desassombro para enfrentar situações difíceis você só sabe se tem, realmente, no momento da desventura. E, nesses cinco dias, vi-me algumas vezes titubeante. — Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. As minhas sombras foram expostas à medida que procurava o interruptor de luz metafórico pelo caminho. — É, eu consegui. Mas, como? *** 4
Às 6h25 de uma segunda-feira fria — o termômetro local acusava oito graus Celsius —, cheguei à cidade mineira de Carangola. O Itapemerim desembarcou os passageiros no bordo de uma pista de paralelepípedo da miúda rodoviária, tal qual faziam os trens quando, em vez de calçadas, havia naquele espaço as plataformas. Com a ajuda do comissário da viação, acomodei minha bagagem no banco de ferro-sépia da estação: um par de alforjes traseiros, um alforje de guidão com o mapa altimétrico da rota já acomodado em seu porta-mapas e uma pochete a tiracolo com documentos, dois gravadores, canetas, bloquinho e dinheiro. Ao lado do banco, equilibrei a mala-bike, que abrigava a bicicleta desmontada. Antes de o ônibus silvar seu caminho, acendi um cigarro de menta para refrescar a mente. — E agora? Monto o “cavalo de ferro” com 16 quilos de corpo e acomodo nele os 15 quilos de parafernália aqui mesmo na calçada? Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem. Apesar de ter pernas — não rodas —, assumi o papel da bicicleta: transportei a malaria no corpo. Um dos alforjes se fez mochila e foi alçado nas costas. O alforje de guidão foi carregado no ombro esquerdo, junto com a pochete e, no ombro direito, pendurei a desajeitada mala-bike. O outro alforje traseiro, mais pesado, foi agarrado com as duas mãos. Com os passos murchos, saí à procura de alguém com quem me sentisse mais à vontade para pedir emprestada uma informação. Precisava chegar a Tombos, cidade a 30 quilômetros de distância, de onde partem as primeiras setas do Caminho da Luz. No
fundo,
eu
queria
frear
a
insegurança
e,
com habilidade
autossuficiente, mostrar para mim mesma que aprendera com diligência a tarefa de encaixar cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente ou com falhas periculosas, como um parafuso desapertado, o freio frouxo, o guidão torto ou o câmbio desregulado. Entretanto, essa engenharia havia sido por mim testada apenas duas vezes — e sob supervisão do marido. — Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... — reproduzia no pensamento o som dos parafusos sendo enroscados, enquanto, sonolenta e 5
com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos estabelecimentos ainda fechados. O ritmo preguiçoso dos transeuntes mineiros não combinava com a imagem que eu fizera da cidade durante os preparativos da viagem. Com 32 mil habitantes, Carangola é o maior município pelo qual eu passaria nos próximos seis dias. Naquela manhã, parecia abrigar menos de mil. Amargurada, eu respirava as primeiras angústias internas quando um senhor, que aparentava 40 anos de idade, aproximou-se com um sorriso amigável: — Vai fazer o Caminho da Luz? — Sim, vou sair de Tombos, mas ainda estou na dúvida se parto para lá de bicicleta ou se pego um ônibus. Para meu alívio, Paulo Fernando de Almeida (cujo nome só descobriria dois dias depois) achou mais prática a segunda opção. E me deu todas as orientações. *** Tombos é conhecida como “Portal de Minas” por fazer divisa entre os estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Em seu caminho, de Carangola até lá, as montanhas que margeiam a Rodovia MG-111 pareciam esconder algum segredo. — Passariam por elas, por seus contornos, os caminhos da Luz? — imaginava. O mistério aumentava ainda mais com a neblina que esfumaçava cada cume. — O que me espera nesse percurso? Terei resistência o suficiente para cumprir a jornada de 190 quilômetros? — questionava-me ao mesmo tempo em que lembrava as recomendações dadas pelo clínico cirúrgico às vésperas da viagem, quando fui fazer uma ultrassonografia das vias urinárias a pedido da médica endocrinologista. Quarenta e cinco dias antes, eu havia sido hospitalizada por dez dias devido a uma pielonefrite aguda — inflamação dos rins, muito perigosa em pacientes com Diabetes tipo 1, o meu caso. O clínico, que havia me acompanhado durante a internação, costuma fazer rotas de peregrinação e, por isso, conhece na pele os esforços físicos demandados pela empreitada. 6
— Se sentir-se cansada, não continue. Muita gente ignora que uma sobrecarga muscular pode causar falência renal. — alertou-me. Ao desembarcar na rodoviária de Tombos — antiga estação de trem que, atualmente, também abriga o museu da cidade —, dei-me conta de que não tinha o endereço do hotel onde havia feito reserva pela operadora oficial do caminho. Só sabia que se tratava de uma construção sesquicentenária. Mas, em uma cidade de dez mil habitantes, essa informação é dada de olhos fechados. A poucos passos da rodoviária, as imensas portas e janelas azul-claras do Hotel Serpa estavam abertas. Sua construção oponente e bem conservada tinha carimbada em sua entrada uma placa com o desenho de uma seta amarela que a identifica como estabelecimento credenciado pelo Caminho da Luz: “Nós fazemos parte dessa rota”. Não havia campainha, tampouco recepção, apenas cinco mesas de madeira com quatro lugares, forradas com toalhas alaranjadas e adornadas cada qual com um vaso de flores. Sobre uma delas, o café estava servido. Do lado esquerdo da entrada, uma cristaleira expunha livros publicados pelo jornalista e escritor Albinno Neves, idealizador do Caminho da Luz, oficialmente instituído em julho de 2001. Em um deles, intitulado “Um Caminho dentro do Caminho”, o jornalista conta que, em tempos remotos, muitos coronéis e jagunços perscrutavam das enormes janelas do Serpa quem passava pelas ruas da cidade ou desembarcava de trem junto com a produção agropecuária e com as modernidades advindas da então capital da República, o Rio de Janeiro. Sobre o móvel de madeira, sete quadros emolduravam pinturas do patrimônio natural e histórico da cidade, como a cachoeira de Tombos, onde se inicia o caminho, o hotel em várias perspectivas, o prédio da rodoviária, que tem arquitetura típica de estação ferroviária, e outras construções tombadas pela rota peregrina. Apesar de tortos, os quadros estavam em harmonia com o pé direito alto e combinavam com as pesadas portas de madeira dos quartos. — Olá! Posso entrar? Ninguém respondeu. Insisti no chamado proferido. Do interior da antessala, apareceu dona Rogéria, uma senhora de estatura mediana, cabelos escuros e traços agudos, com semblante monossilábico, que pediu para me sentar à mesa, onde, em seguida, acomodou um livro-guia explicativo, uma 7
camiseta e minha credencial, de papel cartolina dobrado, com dez quadrados para serem carimbados a cada jornada cumprida, a exemplo do que acontece no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Só estava em falta o cajado estilizado, que compunha o kit peregrino. Ali mesmo, recebi o primeiro carimbo. Todo o resto era por minha conta. A começar pela montagem da bike.
*** Num momento de crise conjugal, transferi minhas esperanças de viver um dia a dia sem rotinas com a compra de uma bicicleta. Escolhi um modelo europeu, robusto, com aro 700 e quadro step through, próprio para mulheres de vestido não mostrarem a roupa íntima ao subir na bike. Com cor grafite, a Blitz Comodo 700 é bem alinhada em suas curvas esbeltas de bicicleta urbana e já vem equipada com cestinha que imita vime, para-lamas, bagageiro e protetor de corrente. Em menos de seis meses, ela já havia se tornado minha parceira de deslocamentos rápidos pela capital paulista, embora eu ainda não tivesse intimidade suficiente para fazer nela qualquer reparo. Um mês antes da cicloviagem, precisei aprender a arte de fazer ajustes rápidos. Mas, na calçada do Hotel Serpa, o primeiro teste prático poderia dar fim à minha jornada caso não conseguisse colocar as duas rodas e seus componentes, fixar adequadamente o guidão e ajustar com eficiência os freios. O dia estava ensolarado e, às duas da tarde, a cidade parecia fazer uma sesta coletiva. Comecei pelo que considerava mais difícil: apertar o guidão. Saquei as ferramentas, ajustei-o ao quadro, mas, por mais que parafusasse, as peças não se encaixavam. Uma hora depois já estava desesperada. — Tem uma bicicletaria aqui perto. Quer que eu chame o funcionário para ajudar a montar? — ofereceu Seu Zelito, proprietário do hotel, depois de acompanhar por 15 minutos o conserto sem sucesso. Aceitei prontamente. Em menos de 20 minutos, o rapaz da bicicletaria encaixou todas as peças, consertou a rosca do guidão com cera de vela, ajustou os freios e deixou em pé a minha bike. Não conversou. Não perguntou nada. Agradeci.
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—
Obrigada,
sem você
não
conseguiria
montá-la.
—
assumi
envergonhada. — Quanto ficou? — Não é nada não. — E saiu com o passo apertado. Corri atrás dele. — Moço, pelo amor de Deus, ficou, sim, alguma coisa. Você veio até aqui, consertou tudo, precisa receber por isso. Mas ele não olhou para trás. Saí para conhecer a cidade. Tombos é formada por vias de paralelepípedos nas quais prevalecem as bicicletas como meio de transporte. Estacioná-las no meio-fio, sem supervisão, é uma praxe, mas, com isso, não pude me acostumar nos vários passeios que fiz durante a tarde. À noite, pedi a Seu Zelito que a guardasse em outro quarto, já que até altas horas as portas e janelas do hotel costumam ficar abertas. Deitei cedo. Estava ansiosa para iniciar a jornada no dia seguinte. Mas, não consegui dormir a noite inteira. Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não queria
se
retirar
do
meu
quarto,
apesar
de
tê-la
convidado,
espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha.
*** Não madruguei para iniciar a pedalada, na terça-feira, dia 17 de maio. Também não me alonguei, pois a ansiedade transbordava a alma. Engoli o café da manhã servido no hotel e distribuí os 15 quilos de bagagem pela bike. Nunca havia pedalado com tanto peso nela: no bagageiro, estavam pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé descansava; o alforje dianteiro, acoplado na parte externa do guidão, levava a máquina fotográfica, o mapa do percurso, celular, gravadores, lanches rápidos, mel em saquinhos e laterna pisca-pisca. Do lado esquerdo, ficava um retrovisor e, no meio, o ciclocomputador para eu mapear a velocidade média e a quilometragem percorrida por dia e durante todo o trajeto. Não tinha hora para sair, mas, como não queria ficar à noite no meio do mato, necessitava chegar aos destinos até, no máximo, 17h30, horário em que o sol se punha. Nas costas, levava uma mochila de hidratação, cujo reservatório estava abastecido com dois litros de água e de onde a sugava por meio de um cano de plástico. Na cabeça, coloquei o capacete sobre um lenço, que absorvia o 9
suor dos dias quentes. Vestia uma calça preta de ciclismo, confeccionada com espuma no assento, e camisa vermelha de manga comprida dry fit — cujo tecido, feito em poliamida e elastano, tem capacidade de tirar a umidade do corpo e transportá-la para fora do pano. Nas mãos, dentro das luvas de proteção, havia colocado um mini-mapa com a metragem de cada ponto por onde passaria. Estava com um aparelho MP4 no bolso da camisa, no qual meu marido gravara músicas que, segundo ele, combinariam com a minha viagem: “Janalone” era o nome do álbum. Mas, como desconhecia o caminho, preferi ficar atenta aos sons da natureza. A cicloviagem, enfim, iniciava-se. O primeiro percurso tem 24,7 quilômetros até Catuné, distrito de Tombos. O caminhante, cavaleiro ou ciclista segue as placas brancas — cujo desenho é uma seta amarela apontada para cima —, que indicam a direção correta a ser seguida. Na velocidade média de 10 Km/h, saboreava as novas paisagens com os sentidos abertos para receber os primeiros cheiros de mato molhado, apesar de não ter chovido naqueles dias, misturado com o aroma do álcool, que brotava das plantações de cana e de pequenas usinas. O dia estava encoberto. Quando alcancei o marco inicial do caminho, já havia me acostumado a pedalar com a bagagem. A placa “Aqui começa o Caminho da Luz” está fincada ao lado da cachoeira de Tombos, assim chamada por ter três quedas (ou tombos) de 60 metros. Para acessá-la é preciso ignorar a placa no portão de uma das primeiras hidrelétricas mineiras, que ainda abastece o Estado do Rio de Janeiro: “Propriedade particular. Acesso somente com autorização. Área de segurança, não ultrapasse”. À frente da cascata, uma escultura de Afonso Barra saúda os visitantes: trata-se de uma mãe amamentando ao lado de um índio guerreiro com uma espada empunhada, em homenagem aos primeiros caminhantes desse percurso — os índios. Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino externalizada —, comecei a explorar as estradas amarronzadas em meio a fragmentos da Mata Atlântica e a pastos leiteiros. Fazendas centenárias abertas a visitantes, chácaras protegidas com carrancas, árvores estrondosas, plantações de café maduro à espera da colheita, porteiras que pedem para ser 10
abertas e fechadas pelo viajante para que ele continue o caminho por trechos dentro de fazendas particulares, tudo isso me fascinava. Com os proprietários dessas terras eu não me preocupava, já que a credencial de peregrino me permitia acesso livre. — Trim, trim! — eu cumprimentava com a buzina da bike o lavrador que colhia o café nas lavouras da beira de estrada. Era comum receber um sorriso e um chapéu levantado como resposta. Trata-se de um cumprimento desprovido de palavras, mas adornado com a simbologia das pessoas simples. Os primeiros nove quilômetros foram tranquilos. Se fosse nesse ritmo, chegaria antes dos quatro dias de pedalada inicialmente programados. Estava confiante. Mas, assim que entrei no trecho chamado “Mata do Banco”, fiquei com os sentidos em alerta. Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia o viajante. Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava. — E se eu não percebi que peguei o caminho errado? Nunca ouvi falar de animais que atacaram humanos no Caminho da Luz, mas, e se esta não for a trilha correta? E se ali à frente tiver um abismo? — não estava com uma sensação boa. Eram os primeiros gostos amargos do medo que a viagem me oferecia. — Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente estar perdida. Isso não tem a menor graça... Enquanto empurrava a bicicleta por uma trilha desfeita, era preciso superá-la sem esperar ajuda. O cérebro trabalhava dobrado na sua função de perceber barulhos e sinais de perigo. Eu respirava mais fundo e olhava para todos os lados enquanto caminhava. Até que, logo à frente, vi uma placa: estava no caminho certo! — Ufa! A poucas pedaladas, passei por uma casa com a placa “Família Iluminada” pendurada em sua cerca de entrada, que a identifica como um ponto de apoio organizado pela Abraluz (Associação Brasileira dos Amigos do Caminho da Luz). — Ô de casa! — chamei. 11
— Tarde! — respondeu um jovem negro de sorriso cor de neve. — A senhora quer água? Na verdade, eu não queria. Estava com a mochila de água na metade. — Sim, aceito, obrigada. Aqui é a casa da Dona Francisca? — tinha visto no mini-mapa que me encontrava nesse ponto. Sabia que se tratava de uma personagem lendária. A senhorinha, com mais de 70 anos de idade, estatura baixa, pele negra e lenço branco na cabeça apareceu na porta. Dona Francisca me convidou para entrar e prosear. Disse que, toda semana, um peregrino batia em sua casa para tomar água. — Sou muito procurada pelos caminhantes, Graças a Deus. Dali em diante, faltavam 11 quilômetros para chegar a Catuné. Dona Francisca apontou para a direção na qual a vila se encontrava. — Agora é só subida. — preveniu-me. O sol das duas da tarde já estava alto. Pelo retrovisor, vi que Dona Francisca velava minha partida. Antes de pegar velocidade na bike, parei para abrir uma enorme porteira de madeira atravessada no meu caminho, que estava fechada com um trinco. Mas isso não era tarefa simples. Para entrar na propriedade, deixava a bicicleta equilibrada com apoio de seu cavalete central numa distância que me permitisse segurar a porteira pesada, depois de aberta, com o cotovelo esquerdo enquanto empurrasse a bicicleta com a mão direita. O portão, quando batia, invariavelmente fazia um estrondo que ecoava pelo pasto, o que assustava o rebanho de vacas. — Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu! O gado solto pela fazenda percebia a minha entrada em sua cercania. Todos — eu e as vacas — ficávamos nervosos. Atormentava-me a possibilidade
de
ser
pisoteada
por
elas,
que
estavam
pastando
despreocupadamente à beira do caminho. Quando me aproximei, as vacas brancas, da raça nelore, fitaram-me ao mesmo tempo. Imóveis, algumas delas ficaram com o pasto pendurado na boca. Desci da bike. Não podia avançar: eram dezenas. Se ficassem mais assustadas e debandassem, em coletivo, para a minha direção, eu morreria pisoteada. Poupei a respiração. — Trim, trim! Trim, trim! — comecei a buzinar, e nada. Como resposta, mugiam. 12
Fui empurrando a bicicleta em câmera lenta. Algumas vacas corriam, outras aproximavam-se. Fiquei mais de 40 minutos ali parada. Não havia um roceiro por perto, ninguém que pudesse me socorrer. O sinal do celular também não pegava. Por telefone, queria pedir para alguém pesquisar no google como fazer para, em segurança, eu tocar o gado. Até que meu medo perdeu a validade. Subi na bike, contei mentalmente até três e saí pedalando. Adiante, começavam as temerosas subidas. Antes de percorrê-las, saquei meu lanchinho, composto por bananinhas desidratadas, nozes, castanhas, barras de cereal, mel em saquinho e isotônico com sais minerais. Com a energia renovada, apesar de já estar bem cansada, comecei a empurrar a bicicleta ladeira acima. Sempre no mesmo ritmo: com muita dor nas costas, empurrava dois minutos, mas descansava cinco. Toda vez que parava me lembrava do amigo Leandro Valverdes, de quem havia comprado a bicicleta em São Paulo, que me desaconselhou a levá-la nessa empreitada: — A Blitz Comodo é muito pesada. Não foi fabricada para trilhas com tantas subidas. Você não vai aguentar! — alertava-me. No fundo, eu sabia que ele estava certo. Mas não via sentido em usar outra, emprestada, se esta era minha parceira. Um outro colega cicloativista de São Paulo deu-me o aval que eu procurava: “Experimente-a!”. Foram três horas e meia subindo nesse ritmo. No meio do caminho, dois agricultores haviam deixado a lida e seguiam para casa, em Catuné, no mesmo percurso que eu fazia. — Nós levamos 40 minutos para chegar lá. — garantiram-me. Eram quatro da tarde. Animei-me e desci pedalando na frente. Mas eles, a pé, ultrapassavam-me nas subidas. Eu, curvada para frente, aplicava uma força de gigante para fazer os pneus rodarem, mas os agricultores nem olhavam. Pensei em pedir para eles empurrarem um pouquinho a bike na subida, enquanto eu alongasse a coluna. Fiquei envergonhada. Eles também não pareceram incomodados com o meu esforço nas ladeiras. Às cinco da tarde, minhas forças esvaíram-se. Meu reservatório de água secou. Tudo doía: pulsos, braços, joelhos, nádegas, lombar. Os senhores haviam sumido. Teriam chegado? Nos meus últimos suspiros de energia, enquanto empurrava a bicicleta com os pés arrastados sobre a terra seca, avistei uma casa. Com os cotovelos 13
apoiados no muro, uma senhora de cabelos compridos grisalhos mirava com seus olhos azuis os montes ao longe. — Ainda falta muito para eu chegar a Catuné? — perguntei ofegante. — Não, minha linda, você chegou. É caminhante? Eram 17h30, e a escuridão começava a ser esboçada no horizonte. Para concluir aquela rota, faltava ainda passar pela gruta da Pedra Santa. Mas, para mim, naquele dia, era o fim do caminho. Entrei na casa de Dona Maria Helena, reidratei-me, tomei um café quentinho e disfarcei a fadiga com um demorado bate-papo. Ela me explicou como chegar à casa de Dona Dulce Fulmian, onde me hospedaria naquela noite. Entrei em uma acomodação aconchegante, com um quarto perfumado e arrumado com carinho para os peregrinos. Na mesa do jantar, servido para toda a família, estava posta uma iguaria mineira: arroz, feijão com paio, frango à milanesa, bisteca, salada de horta e um reconfortante doce de tangerina. Foram algumas horas de muitas histórias. Até eu pegar no sono. *** Na vila de mil habitantes, ronda um mistério: como a gruta da Pedra Santa, que há um século tinha 150 metros quadrados, expandiu sua área para 1.200 metros quadrados e 35 metros de altura sem que tenha sido vista uma única rocha cair de suas paredes? Os moradores de Catuné contam que a gruta era local de pernoite para índios que saíam da região litorânea e, no mesmo percurso do atual Caminho da Luz, rumavam até o Pico da Bandeira — para eles, a “Montanha Sagrada” — com o objetivo de encontrar a “Terra dos Sem Males”. Antes de pedalar até a cidade de Pedra Dourada, a 23 quilômetros de distância, voltei à gruta. A tronqueira que protege a sua entrada ainda estava fechada às oito da manhã. Pedi, mentalmente, licença para entrar no local, considerado sagrado, graças às histórias multiplicadas de muitos milagres e preces atendidas a quem até ali se dirigia. Águas cristalinas pingavam de suas rochas sem, no entanto, fazer qualquer barulho. O silêncio era a única música. No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída, em frente de bancos espalhados para acomodarem religiosos durante as celebrações e festas. No teto, bandeirolas coloridas animavam o ambiente. Sentei-me por poucos minutos e fiz alguns pedidos. 14
— Que minha jornada termine com muitas descobertas. Antes de sair, passei as mãos pelas paredes de pedras e, como sinal de respeito, fiz uma oração em frente à estátua de Nossa Senhora de Lourdes, protetora dos enfermos. Era preciso absorver a áurea de um lugar sagrado.
*** As descidas não são fáceis. Para quem não está acostumado a manobrar a bicicleta em grande velocidade, é preciso apuração redobrada para segurar, além do peso do ciclista, os trinta quilos fincados na bike, cujas rodas deslizam na terra ladeada de pedregulhos e de folhas secas. O som do freio é de um chiado ininterrupto, que abafa a música da natureza circundante. — Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu. Depois de uma subida permanente, do Km 3,9 ao Km 7,6, até o Lombo do Burro e o Vale do Silêncio — trechos que beiram as encostas do alto do morro —, desci com a mão no freio traseiro até o fim do rebaixamento, na altura do Km 9,3, onde avistei uma praça bem afeiçoada, com árvores frondosas e, sob elas, bancos para estimular uma prosa. Chegava à comunidade de Água Santa — também distrito de Tombos —, com mil habitantes. Aproveitei para descansar, sob a sombra, e fazer meu lanchinho de almoço: maçã, nozes, castanhas e passas. Do outro lado da rua, um cavalo aguardava seu dono comprar mantimentos na Padaria Lazaroni e, na mesma calçada, a avó Sonia Lazaroni e sua vizinha acomodavam-se no degrau, diante da Farmácia Ramos — “Na dor e na alegria, sempre em sua companhia” —, para ajudarem o neto Henrique Lazaroni, de oito anos, a concluir a lição de português. — Avó é masculino ou feminino? — quer saber o menino. — É feminino, veja! Tem um espetinho na letra, não chapeuzinho! — a avó, prontamente, soluciona a questão gramatical e levanta-se para me atender na padaria. — Vó, traz uma bala! — Uai, vem buscar! Não sei que bala você quer. — É de caramelo, vó! — agita-se o menino. Sonia Lazaroni é avó e mãe de Henrique há mais de seis anos, desde que sua filha morreu de parada cardíaca aos 26 anos de idade. Enquanto ela 15
me servia um refrigerante, eu observava as fotos de sua filha coladas no vidro que protege o caixa da padaria. A filha, que era professora primária, também era apaixonada pelo mar. Sonia lembra-se dela aos prantos e me confessa: — Minha missão é fazer meu neto formar-se doutor. Aqui em Água Santa já saíram médicos, advogados, farmacêuticos, contabilistas. Não há escola de ensino médio na região. Mas estou guardando dinheiro para me mudar para outra cidade quando o Henrique completar a idade certa. No planejamento familiar, os médicos do distrito costumam sugerir às mulheres que tenham seus filhos em intervalos de cinco anos. Assim, quando os pais terminarem de pagar a faculdade de um, começam a bancar o curso superior de outro. E o calendário familiar é estipulado para que seus filhos tenham uma vida estudada. E digna. Saí de Água Santa antes das duas da tarde, e já sabia que seria impossível alcançar Carangola, tal como havia planejado com a operadora credenciada antes de conhecer as dificuldades das ladeiras de Minas. Portanto, faltavam apenas 14 quilômetros de descida até Pedra Dourada — município cujo nome foi inspirado em uma enorme pedra que, nos primeiros minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol que raiam o dia. Como não havia sido feita reserva no hotel da cidade, liguei para a agência, que me orientou a procurar por Rosângela, dona da pousada. Aproveitei a chegada breve para dar um banho na bike, enquanto Rosângela preparava a janta. Quando foi servida na enorme mesa da cozinha, seu marido aguardava os convidados. Percebi que já o conhecia: era Paulo Fernando de Almeida, que havia me dado as primeiras informações na rodoviária de Carangola, cidade para onde eu voltaria no dia seguinte.
*** Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra Dourada. Estava com energia para pedalar 48 quilômetros até Carangola, depois de, no meio do caminho, carimbar a credencial na cidade de Farias Lemos. — Você vai pegar uma subida brava, logo de início, mas, depois de ultrapassá-la, seguirá tranquila. — mapeou em prosa mineira o casal Rosângela e Paulo. 16
No início da subida, como de costume, zerei a contagem do ciclocomputador e consultei a metragem no mini-mapa. Memorizei o número 8.100 metros, onde queria fazer uma parada mais demorada para sentir as energias advindas da Pedra do Lagarto — local onde índios, pajés e xamãs faziam cantos de louvação a seus deuses quando partiam em busca da “Terra dos Sem Males”. Na minha desastrada maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de tartaruga que não aguenta seu casco, zerei a quilometragem do aparelho com o cotovelo. Como já havia pedalado dois quilômetros, refiz os cálculos. Nas minhas contas, quando o ciclocomputador marcasse 10,1 quilômetros, chegaria ao destino almejado. O tempo, um pouco nublado, amenizava o suadouro do esforço. Depois de passar por um longo trecho em obras, no qual precisei dividir a estradinha com tratores que, ao meu lado, pareciam dragões assombrosos, fiz uma curva acentuada logo após uma ponte. Em marcha lenta, sorvi um cheiro conhecido, de preces, velas acesas, que não identifiquei de onde vinha. A 100 metros abaixo, uma vaca desgarrada abandonou o pasto e se postou no meu caminho no momento em que eu me equilibrava na descida. De frente para mim, ela me olhava. Freei bruscamente, desci da bicicleta e esperei ela voltar a ficar faminta. Olhei a marcação no aparelho, que indicava seis quilômetros percorridos, quatro antes do destino que esperava alcançar logo. — Sai vaquinha, deixe-me passar, não tenho o dia todo. Vai pastar! — dialogava. Mas o animal não se movia. Olhei para os lados, saquei uma fruta do alforje e mastiguei-a no mesmo ritmo das outras vacas, que, impassíveis, mantinham-se do lado de dentro da cerca. Mas não percebia um único gesto da vaca estacionada no centro da estradinha que sugerisse que sairia do meu caminho em breve. Como que colocando em primeira marcha o meu veículo, respirei ao contrário e apertei o passo, com a bike ao lado, até ultrapassá-la. Seu olhar me seguia. Observei de espreita e fui correspondida: a vaca, de costas para mim, virava-se. — Muuuuuuuuuuuuuuu! — soltou um lamúrio. Para compensar o tempo ali perdido, saí em alta velocidade. Usei todas as minhas energias para deslizar até o destino. Quando cheguei à marca do Km 10,1, não vi nada. Estranhei. 17
— Cadê a pedra em forma de lagarto? — peguei o livro-guia e me certifiquei da metragem. — Não é possível! Fiz a conta errada! Se eu já tinha pedalado dois quilômetros quando zerei, sem querer, o cronômetro, então a Pedra do Lagarto ficava no Km 6,1, não no 10,1. — refiz as contas mentalmente [6.100 metros + 2.000 metros = 8.100 metros]. Fiquei atordoada. O local sagrado ficava 100 metros acima de onde a vaca se colocara no meu caminho. Bem onde sentira o cheiro de vela. — Era um aviso da natureza? Ignorei uma advertência, que agora me parece tão clara, tal como um trator é incapaz de perceber uma trilha de formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana, quantas comunicações dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus olhos sensíveis, a minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou uma pedra que ainda não foi lapidada. Tratava-se de um alerta? Uma lição? Estava a quatro quilômetros de distância da Pedra do Lagarto, mas abdiquei de sentir a energia indígena que tanto queria. Uma perda. *** No quarto dia da jornada, esperavam-me os 25 quilômetros mais fascinantes do percurso todo. No Km 9,3, uma porteira de madeira separa a Parada General — da antiga estrada de ferro Leopoldina, construída no século 19 para levar o café da Zona da Mata mineira ao Rio de Janeiro — até as construções ainda resistentes da Estação Ernestina. A trilha, tomada pelo mato, é uma “passagem de volta no tempo”: entre os paredões rochosos à esquerda e a encosta à direita, são avistados antigos casarios e um assombroso túnel de pedra — perfurada para possibilitar o deslocamento de trens que por ali circulavam. Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras vegetações despencam de paredões rochosos e formam uma cabana de labirintos. Ali, devido ao isolamento, foi preciso aplicar doses de coragem na veia para, junto com a adrenalina, eu não desistir da empreitada. Quando abri a porteira da Parada General, uma chuva fina começou a regar o caminho. Não demorou para a trilha, que beira a encosta do alto da montanha, ficar escorregadia e lamacenta. Protegi-me com uma capa de chuva azul, em forma de poncho, mas os pés ficaram à mercê do barro. Não era 18
possível andar de bike, apenas empurrá-la. Um redemoinho de energia misteriosa brotava do solo, perpassava a minha alma e esvoaçava pelo horizonte, o que desenhava no lugar uma aura de cidade fantasma. Eu estava arrepiada: de medo, de frio, de excitação. Já havia lido histórias de terror sobre esse trecho, como mortes de trabalhadores durante a construção da linha férrea, túneis de pedras que desabaram e trens que descarrilaram vertente abaixo. Tudo isso parecia caminhar comigo num dia encoberto. Pela segunda vez durante o Caminho da Luz, tive a sensação de estar perdida. Ao me deparar com a trilha literalmente despedaçada, com as pedras molhadas por um rastro de água, dei-me conta de que não era possível continuar no caminho. Liguei para o operador da agência de turismo, Vitor Hugo, e pedi ajuda. — Vitor, devo estar perdida. Aqui é uma encosta, ou passo eu, ou a bicicleta. Isso está muito perigoso! Peguei o caminho errado? Vitor tentava me tranquilizar pelo telefone. Refez verbalmente todo o percurso por onde passaria, o que me fez visualizar um caminho mais sereno. — Depois de passar pela ruína da antiga Estação Ernestina, você percorrerá um trajeto estreito, muito bonito, encoberto por plantas até uma tronqueira. Ali, tome cuidado, você deve abri-la e seguir à esquerda. Não vá para a direita! — advertiu-me. A chuva deu uma trégua. Para seguir em frente, tirei o tênis encharcado, descarreguei a bagagem da bicicleta e a transportei no ombro direito, vagarosamente, com as meias sobre os pedregulhos molhados. Caí e me levantei algumas vezes. Depois, voltei para buscar as malas. Menos de um quilômetro à frente, mais um caminho desfeito. Repeti o procedimento. Em toda aquela trilha que parecia circundar um trecho inexistente, não subi na bicicleta. Empurrei-a sob o túnel de pedra e alcancei a Ernestina, num total de sete quilômetros de chão de pedras desde a entrada, na Parada General. Ainda faltavam nove quilômetros até chegar à cidade de Caiana. Mas já eram quatro da tarde. Às cinco, estava em frente à tronqueira descrita por Vitor. Mas ela não abria. Escurecia. De tão cansada e faminta, decidi desistir do caminho e tentei avisar a agência de turismo. Não havia sinal para o celular. Tentei mais uma vez não esfacelar a mão no arame farpado, mas não tinha forças. Desesperei19
me. Quando a abri, entrei numa plantação de café, onde havia sacos da colheita ainda abertos — sinal de que os trabalhadores rurais estavam ali havia pouco tempo. Estava esgotada para empurrar a bicicleta numa ladeira de terra íngreme, por isso, descarreguei a bagagem e voltei para buscá-la, uma a uma. Pela estradinha de terra ao lado, uma caminhonete passava. Gritei por socorro. — Moço, me ajuda, estou perdida! Moço! Moço! — a caminhonete seguiu seu caminho. Saí da plantação sob o céu já preto. Liguei a laterna pisca-pisca da bicicleta e as sinalizações vermelhas afixadas no capacete. Eu devia parecer um alienígena a bordo de uma nave terrestre brilhante. Naquela altura, restavame apenas procurar uma pedra, ao lado da qual eu pudesse esperar até ser localizada na escuridão. Alguém sentiria minha falta mais tarde. Ou não? Sentei e chorei. — Que visões eu teria aqui de madrugada? E se o gado me achasse aqui à noite? E o frio, eu aguentaria? Ai meu Deus, e as assombrações, que, pelas histórias populares, aparecem por esse trecho aos montes? Não, não vou ficar aqui. Terei de andar até onde conseguir. Meus passos não queriam obedecer a minha vontade. Esbarrei noutra porteira, que me introduzia na casa de um gado numeroso, mas fingi não me incomodar com isso. Logo à frente, havia um casebre à beira da estrada, cujas luzes estavam acesas. Os cachorros começaram a fazer um escândalo à medida que minhas luzes pisca-pisca se aproximavam. A escuridão dominava. — Calma cachorrinho, chama seu dono para me ajudar! — tentava abrandar o resmungo dos animais. — Ô de casa! Alguém, por favor, estou perdida — gritava, batia palmas, mas ninguém aparecia. Fui embora. Sozinha e perdida no meio da estrada, percebi o barulho de uma moto se aproximando. Chamei. Ela freiou. — Moço, como faço para chegar a Caiana? É muito longe? Estou fazendo o Caminho da Luz, mas não tenho como chegar no hotel da cidade nesta escuridão. Por favor, não me deixe aqui sozinha! — soluçava aos prantos. O motoqueiro havia acabado de sair da casa onde eu tanto gritara. A televisão estava ligada, por isso, ninguém havia escutado. Ele chamou seu irmão, que abriu a porta desesperado por achar que algo de mais grave me 20
havia acontecido. Tranquilizou-se ao saber que se tratava de... medo. Para mim, era mais do que isso. Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem luz alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada no caminho. Aos 31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava acostumada com os perigos que permeiam as grandes cidades, não com os fantamas da noite no mato. Seu Geiton e a esposa, Cilene, que trabalham na colheita de café, receberam-me em sua casa. Acomodaram minha bagagem, prepararam um café quentinho, cujos grãos haviam sido torrado por ele e moídos naquele momento. Improvisaram um cinzeiro, já que não fumavam, para que eu ficasse à vontade. Como eu estava enlameada e molhada, pediram para eu tomar um banho. O casal já havia jantado, mas não aceitaram que eu recusasse a janta. Cilene fritou bisteca, cozinhou arroz e requentou o feijão. Enquanto isso, Geilton fazia ligação via satélite — instalado em sua casa — para alguns estabelecimentos da cidade à procura do contato do hotel onde me hospedaria. Consegui ligar a cobrar para a agência do Caminho da Luz, já que os créditos do celular de Geilton se acabaram. Enquanto conversava com ele sobre a safra de café e o novo Código Florestal, Vitor Hugo planejava buscar minha bicicleta com um automóvel 4x4. Geilton se ofereceu para me levar de moto até a cidade. Estava tudo resolvido.
*** No último dia — o quinto de pedalada —, 44 quilômetros me separavam de Alto Caparaó, cidade localizada ao pé do Pico da Bandeira. São quatro municípios que integram esse percurso (Caiana, Espera Feliz, Caparaó e Alto Caparaó). De Caiana a Espera Feliz, onde pararia para carimbar a credencial, eram apenas dez quilômetros. Ali me desfiz dos pesos: despachei a bagagem de táxi até a pousada. Por ser o trecho mais tranquilo e com pouca declividade, a situação era excelente para pedalar sentindo o vento na face, escutando a música dos pássaros e a dissonância ritmada do mugido do gado. Aproveitei para curtir a música selecionada por meu marido: Bob Dylan estava em harmonia com a paisagem bucólica e romântica desse último dia. Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu corpo já se sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada. 21
Quando cheguei à noite na pousada, minha bagagem já me esperava. Fazia frio na região montanhosa. Como, inicialmente, havia programado pedalar em quatro dias, não em cinco, perdi o grupo agendado para subir a montanha. Uma última equipe sairia naquela madrugada. Da tronqueira do Parque Nacional do Caparaó — onde se inicia a trilha a pé — são 6,9 quilômetros de subida pesada até o cume, ou aproximadamente, três horas e meia de caminhada apenas na ida. Depois de um dia inteiro de esforço físico, essa empreitada era, para mim, impossível. Do orelhão em frente à praça da cidade, liguei para o diretor de redação da revista onde trabalho, em São Paulo, para avisar que minha jornada terminaria ao pé do pico. Havia prometido levar a ele uma matéria de ecoaventura a partir da minha cicloviagem, para justificar os seis dias ausentes. — Oi Wilson, estou aqui em Alto Caparaó. Não, não subi no Pico da Bandeira, pedalei um dia a mais. É que as montanhas são muito íngremes, estou acabada. Meus joelhos doem, tenho câimbras constantes, estou um bagaço. Ãh? Não, não dá mais para subir. Teria que contratar um guia só para mim. É muito caro. Deixa para uma próxima vez, já tenho imagens fantásticas. — Não acredito que você foi até a porta do céu e está se recusando a ver Deus? — repreendeu-me. Refiz os planos. *** Com o cajado estilizado em mãos, guia contratado e corpo descansado, subi no jipe às oito da manhã do domingo, dia 22 de maio. O sol brilhava. Mesmo assim, fui agasalhada, já que os relatos eram de que, no cume da montanha, a temperatura despenca. Nas primeiras pedras escaladas, as câimbras não davam trégua. Jaci, o guia, alongava-me. Cajado na mão direita, mão esquerda apoiada no braço do guia, só assim me equilibrava na tarefa de ultrapassar o labirinto de pedras. A vegetação rasteira esverdeada contrastava com a terra pardacenta. Alcançar a verticalidade de um lugar considerado sagrado parecia exigir que o prazer fosse diluído no sofrimento. Logo à frente, três jovens rapazes estavam estendidos sobre volumosas pedras. Ao olhá-los, escutei um desabafo:
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— Pra que subir até o cume? É frio e cansativo. Aqui embaixo é também tão bonito... Os aventureiros que escalaram o pico durante a madrugada voltavam. Às seis da manhã, no topo da montanha, a névoa não abriu a cortina para apresentar a paisagem. O sol que nascia não foi visto. — Lá em cima é imprevisível. Em segundos, a neblina tanto pode fechar tudo quanto pode desaparecer e dar lugar a uma imagem deslumbrante. — ponderou o guia. Para mim, esse detalhe já não importava. O que almejava era cumprir minha jornada. Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se eu tivesse o peso de uma idade avançada, minha expedição acabava. Em segundos, as cenas do percurso se misturaram. Como uma metáfora da vida, o Caminho da Luz me levou a altos e baixos, iluminou meus temores, colocoume obstáculos e me apresentou as simplicidades naturais da existência. Todas as agruras não foram capazes de sombrear as belezas apresentadas. Nesse momento, eu sentia-me bem-aventurada. — Nesse caminho, eu segui! Consegui! E na vida?
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Making of A peregrinação de uma narrativa
“Um caminho no meu caminho — Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas” é uma narrativa de viagem, gênero que apresenta, segundo Edvaldo Pereira Lima, “um grau de aproximação ao ensaio pessoal e aos textos de memórias porque é também, em essencial, um texto autobiográfico” (LIMA, 2009, p. 433). O tema foi escolhido na aula de narrativa de viagem ministrada pelo Prof. Edvaldo Pereira Lima, em 28/2/2011. O fato de a narrativa permear o ensaio pessoal, no qual o protagonista-autor se mostra ao leitor e faz uma reflexão sobre sua viagem externa e interna, era, para mim, um grande desafio a ser superado. Acostumada a redigir matérias de ecoturismo para uma revista do segmento, não apresento a viagem do ponto de vista das minhas transformações pessoais, tampouco a narro em primeira pessoa. Entretanto, Lima adverte que “a humanização que se destaca nesse caso é a do próprio escritor, sua vulnerabilidade diante dos acontecimentos sumamente tocantes. (...) O movimento para expor seu mundo interior procede das entranhas. A cura vem pela exposição” (2009, p. 432). O foco dessa narrativa de viagem é a peregrinação a qual me propus a fazer de bicicleta pelo Caminho da Luz, da cidade de Tombos ao Pico da Bandeira. Trata-se de uma jornada em busca do autoconhecimento — tema explorado a partir de meus temores internos, iluminados a cada etapa cumprida, e reconhecidos com o término da viagem, em pleno cume da montanha. Dessa forma, assumo o papel de protagonista na história e tento levar o leitor a explorar as descobertas simbólicas desse caminho desconhecido. Para narrar a viagem, procurei delinear as conotações da Jornada do Herói — estrutura básica averiguada pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell, na obra “O Herói de Mil Faces”, publicada em 1949, que permeia as narrativas míticas, nas quais é relatada a evolução do herói durante a sua jornada em busca de ampliar a sua consciência do ponto de vista pessoal e comunitário (MARTINEZ, 2005, p. 5). 24
Em sua pesquisa de doutorado defendida em 2002 pelo Núcleo de Epistemologia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Monica Martinez sugere uma combinação das estruturas propostas por Campbell, pelo analista de roteiros da Companhia Wall Disney Christopher Vogler — que faz adaptações importantes à obra original — e pelo Prof. Edvaldo Pereira Lima, que, ao perceber o potencial da Jornada do Herói como uma ferramenta para a construção de histórias de vida, sintetiza a jornada em oito etapas com intuito de torná-la mais funcional no jornalismo (MARTINEZ, 2005, p. 7). A proposta de Martinez engloba 12 etapas, nas quais me fundamentei para estruturar a narrativa de viagem com o objetivo de mapear uma experiência particular dentro de um contexto universal, isto é, cujas fases da aventura são permeadas por fatores verificados na vida dos seres humanos. Ao optar por construir a narrativa usando as premissas da Jornada do Herói, apliquei a técnica de jornalismo em prol da tentativa de compreender que as experiências — individuais ou coletivas — são complexas, cujos fatores podem ser percebidos não apenas a partir de dados concretos, mas, como enfatiza Martinez, por meio de muitos mistérios (MARTINEZ, 2005, p.17). A sequência apresentada pela autora não foi seguida à risca devido às opções de edição que levaram em conta a apresentação de um “suspense” inicial para instigar a leitura. São elas: 1. Cotidiano: etapa que apresenta o universo do protagonista. Nessa narrativa, trata-se de uma ciclista que optou por adquirir uma bicicleta como forma de “viver um dia a dia sem rotinas” num momento de crise conjugal — ideia narrada apenas na página 8, quando apresento as minhas dificuldades de fazer reparos na bicicleta, devido ao pouco tempo de uso, o que se revela, ao mesmo tempo, como a situação responsável por romper com o meu cotidiano, cuja etapa, de certa forma, mescla-se com a que vem a seguir. 2. Chamado à aventura: não está descrito explicitamente o motivo pelo qual me lanço a fazer a peregrinação de bicicleta. Entretanto, na sequência inicial de reflexão sobre as peregrinações, na página 4, dou uma pista: “De minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo de penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de 25
introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em viagens solitárias, por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação sociocultural com as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem companhia, e estava determinada a conhecer os meus limites na iniciação em cicloviagens”. Portanto, o autoconhecimento buscado por mim levava em conta uma viagem que nunca havia feito, ainda mais sozinha, mas que, para isso, era necessário aprender a manusear a bicicleta, tal como um viajante de carro precisa saber dirigi-lo e ter noções de manutenção do veículo. 3. Recusa do chamado: para eu ingressar na aventura, procurei ciclistas experientes em cicloviagens para analisar se eu teria condições de fazê-la. Não se tratou de relutar ao chamado, mas de balancear os prós e contras da viagem, o que poderia resultar em minha desistência. Alguns mentores me orientaram sobre os perigos da cicloviagem, tal como fez o ciclista Leandro Valverdes, que me sugeriu trocar de bicicleta para conseguir superar as subidas do caminho, cuja cena foi citada na página 13. 4. Travessia do Primeiro Limiar: apesar das minhas limitações de saúde, estava convicta de que tinha condições de entrar aventura, sozinha. Mas só simbolizo que apresento essa dificuldade quando o clínico geral me adverte sobre os riscos do esforço físico, narrado nas páginas 6 e 7. Aqui entra em cena o personagem denominado por Martinez como “Guardião do Limiar”, que me chama a atenção para os limites aceitos pelo meu organismo nessa expedição. 5. Testes, aliados, inimigos: trata-se dos tempos de crises, que me dão oportunidades de crescimento. Essa etapa permeia toda a narrativa: seja quando me sinto perdida ao adentrar a “Mata do Banco”, descrito na página 11, ou quando fico sozinha com uma manada, sem saber lidar com ela, tal como narrei na página 12, ou ainda, quando ignoro um “aliado oculto”, que tenta me avisar de que cheguei ao destino almejado, na página 17. Todos os personagens envolvidos nessas cenas são seres da natureza, ou a própria natureza , com a qual não tenho intimidade. 6. Caverna Profunda: o momento mais crítico da partida, inclusive por mim internalizado, aconteceu na cena em que percebi que não escuto os sinais (sobre-humanos) da natureza. O monólogo interior narrado na página 17 tem o objetivo de sinalizar isso: “— Era um aviso da natureza? Ignorei uma 26
advertência, que agora me parece tão clara, tal como um trator é incapaz de perceber uma trilha de formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana, quantas comunicações dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus olhos sensíveis, a minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou uma pedra que ainda não foi lapidada. “ 7. Encontro com a Deusa: viajar sozinha e interagir com a natureza circundante na maior parte do tempo não me permitiu trabalhar essa etapa na narrativa de viagem. Entretanto, no último dia de pedalada, narrado na página 22, permiti-me escutar as músicas gravadas por meu marido em MP4, o que não fiz em nenhum outro momento. As melodias que mais ouvi foram a de Bob Dylan, cuja música “Like a Rolling Stone” foi por mim atribuída como trilha sonora dessa viagem. Afinal, era também como me sentia num ambiente desconhecido. 8. Provação Suprema: nesta etapa, o herói enfrenta seus maiores medos, o que para mim aconteceu quando fiquei sozinha à noite na estrada de terra. Na página 21, depois de já narrada a cena, eu confesso: “Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, no interior dos caminhos da montanha, sem luz alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada. Aos 31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava acostumada com os perigos que permeiam as grandes cidades, não com os fantamas da noite no mato.” O medo do escuro no mato foi indicado desde o início da narrativa, quando escrevi, na página 9, que “não tinha hora para sair, mas, como não queria ficar à noite no meio do mato, necessitava chegar aos destinos até, no máximo, 17h30, horário em que o sol se punha”. 9. Recompensa: mesmo antes de chegar ao Pico da Bandeira, já delineio as conquistas de conseguir percorrer em cinco dias o Caminho da Luz até Alto Caparaó: “Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu corpo já se sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada.” (página 22). Mas, tratava-se apenas de um dos desafios — cumprir o trecho de bicicleta —, que pretendia findar com o trecho da escalada ao cume, só feito a pé. 11. Ressurreição: as etapas 10 e 12 (Caminho de Volta e Retorno com Elixir) não foram trabalhadas no texto por questão de edição, já que a narrativa está no seu limite de tamanho para uma leitura fluente, não cansativa. Portanto, a Ressurreição está descrita no ínicio da história (que, justamente, 27
começa pela catarse da conquista: de ter conseguido terminar a jornada). O “último e mais perigoso encontro com a morte” acontece, entretanto, nas páginas finais, quando ligo para o diretor de redação e comunico que não teria mais forças de subir a montanha. Mas, desisto de desistir, e solto um grito de missão cumprida no cume.
Os pilares do jornalismo literário e suas técnicas O jornalismo literário vale-se de técnicas da literatura para comunicar um fato com criatividade e qualidade. A descrição detalhada de lugares, feições, atmosferas etc., a construção cena a cena, os diálogos, as figuras de linguagem, as digressões, os monólogos interiores e os fluxos de consciência são recursos que, além de tornarem a narrativa mais atraente, contribuem para humanizar a história. É o que defende Ormaneze (2003, p. 3) quando conceitua o jornalismo literário como “uma corrente que prega a utilização das ferramentas de um repórter e as estratégias e técnicas textuais dos bons escritores para o relato dos fatos verídicos.” Com uma ressalva: a construção do enredo deve ser fiel ao que foi apurado. Esta narrativa de viagem está permeada pela maioria das técnicas indicadas. Há descrições pormenorizadas de construções, tal qual o Hotel Serpa, descrição de feições, como fiz com a Dona Rogéria, também no Hotel Serpa, descrições dos ambientes da mata, não apenas de aspectos físicos, mas dos cheiros, das cores etc. Os diálogos aparecem sempre que um personagem entra na história, para valorizá-lo, o que também ajuda a inserir o leitor no ambiente da narrativa. Já as digressões, como a que inseri na página 4 sobre os demais caminhos de peregrinações existentes no Brasil, são recursos que ajudam a contextualizar a temática da reportagem, de forma breve, sem que a sequência e o ritmo da narrativa se percam. Como sou a protagonista da história — e entro na aventura sem companhia —, externalizo meus pensamentos na forma de monólogos interiores, que contêm os medos, as dúvidas, as reflexões e os pensamentos durante a cicloviagem. Para a narrativa ficar mais dinâmica, essa exteriorização está grafada com travessão, tal como se fosse um diálogo com outros personagens:
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— Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A única tentativa de inserir um fluxo de consciência (que se diferencia do monólogo interior por estar apresentado de forma desordenada) está na seguinte seguência, retirada da página 11: — Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente estar perdida. Isso não tem a menor graça... A ideia era dar voz ao meu medo interior, que era processado como um amontoado de temores que explodiam na mente. Mas as figuras de linguagem foram os recursos mais bem explorados na narrativa. Segue um quadro resumido com exemplos retirados do texto: ALITERAÇÃO • Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes • névoa espessa pintasse um cenário alvacento • frio intenso avivado pela ventania • o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade por mim sentida • Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia o viajante • No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída . COMPARAÇÃO • Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino externalizada • precisei dividir a estradinha com tratores que, ao meu lado, pareciam dragões assombrosos • Eu devia parecer um alienígena a bordo de uma nave terrestre brilhante • Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se eu tivesse o peso de uma idade avançada • maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de tartaruga que não aguenta seu casco METÁFORA • Antes de o ônibus silvar seu caminho • Com os passos murchos 29
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Sou uma pedra que ainda não foi lapidada Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras vegetações despencam de paredões rochosos e formam uma cabana de labirintos Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem luz alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada no caminho reproduzia no pensamento o som dos parafusos sendo enroscados, enquanto, sonolenta e com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos estabelecimentos ainda fechados a cidade parecia fazer uma sesta coletiva meu medo perdeu a validade aplicava uma força de gigante
METONÍMIA • Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem ONOMATOPEIA • Trim, trim! • Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... • Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu! • Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu.
PERSONIFICAÇÃO • • • • • • •
cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não queria se retirar do meu quarto, apesar de tê-la convidado, espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha no bagageiro, estavam pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé descansava Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava uma enorme pedra que, nos primeiros minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra Dourada. porteiras que pedem para ser abertas e fechadas pelo viajante
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Mas, o jornalismo literário é baseado em alguns princípios que o diferenciam da ficção. Todos eles foram aplicados nesta narrativa de viagem: 1. IMERSÃO: Para Lima (2009, p. 373), só há uma maneira de o repórter compreender a realidade: mergulhar nela. “O autor precisa partir a campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam seus personagens. Precisa interagir com eles. (...) É sua tarefa esforçar-se para vencer suas próprias barreiras e seus condicionamentos de percepção de mundo, alterando o seu próprio olhar para o olhar de seus personagens”. Assim, ao fazer uma peregrinação de bicicleta, mergulhei em dois mundos, para mim até então desconhecidos: o das pessoas que procuram o autoconhecimento por meio de viagens e de aventureiros que viajam utilizando como meio de transporte uma bicicleta. Toda a interação nos sete dias de aventura foi transformada em narrativa. Além disso, pesquisei livros, relatos, artigos que descrevessem esse dois mundos antes de partir a campo, de forma que conseguisse afinar meus sentidos para o que de mais interessante poderia ser explorado nessa experiência. 2. HUMANIZAÇÃO: não existe narrativa do real se nela não estiverem presentes os personagens. Mais do que isso: eles não devem ser descritos como caricaturas, mas destrinchados em suas peculiaridades humanas. Nesta narrativa, tentei me despir sem máscaras para os leitores, com o cuidado de não me fazer parecer uma heroína endeusada, nem patética em meus medos. Todos os demais personagens que aparecem na história são tratados a partir de sua força humana no ato de solidarizar-se, de acolher, de sonhar a vida. 3. EXATIDÃO E PRECISÃO: pilar fundamental do jornalismo, esse quesito diferencia-se no jornalismo literário apenas na forma como as informações são apresentadas: com mais criatividade e sem relatórios estafantes ou burocráticos. Neste trabalho, chequei todas as informações apresentadas, desde os nomes dos personagens até os números da população nas diferentes cidades e nos distritos por onde passei no Caminho da Luz, economia das cidades, tamanho da cachoeira, quilometragem do percurso, localização dos pontos turísticos, informações geográficas etc., que foram incluídas no decorrer da narrativa. 4. ESTILO PRÓPRIO E VOZ AUTORAL/ 5. CRIATIVIDADE: Segundo Lima (2009, p. 369), o leitor não espera um discurso da “verdade absoluta”, 31
mas sim uma leitura individual, marcada por seu modo de captar e expressar a realidade. Tendo isso em vista, toda a produção desta narrativa está alicerçada na minha experiência como peregrina-cicloturista, sobretudo no modo como exteriorizo a realidade por mim vivenciada, cujos pilares foram explicitados no item anterior, a partir das técnicas de jornalismo literário, responsáveis por imprimir um tom de criatividade na construção da narrativa. 6. SIMBOLISMO: esta história tem como pano de fundo a busca pelo autoconhecimento. Mas isso não é explicitado a todo momento. Como essa procura dá sentido à narrativa do início ao fim, os símbolos de luz e sombra, medo e coragem etc. são ícones que sugerem, de modo sutil, as lanternas que iluminam a alma do protagonista. 7. RESPONSABILIDADE ÉTICA: apesar de utilizar recursos de linguagem comuns na literatura para a construção da narrativa, toda ela está alicerçada na realidade. Não houve falas inventadas, passagens fictícias ou copiadas de outras reportagens e personagens criadas. Toda a narrativa é construída a partir de uma experiência do autor, que utilizou material jornalístico (como gravador, máquina fotográfica, anotações em bloquinho) com o intuito de transmitir uma realidade compreendida, nunca uma verdade absoluta.
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