Conhecimentos »Por: Janaína Quitério janaina@revistapescabrasil.com.br
A pesca esportiva começou a ser estimulada no Brasil no início dos anos de 1990, com o pescador Rubinho Almeida Prado à frente de programas de televisão. Lentamente, a filosofia do pesque e solte introduziu — a duras penas — uma nova cultura de pesca no país, e hoje o esporte passou a ser a segunda preferência nacional. Mas, o que ainda é preciso fazer para que o setor se desenvolva?
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eche os olhos e visualize uma tela de cinema mostrando cenas do clássico “Os caçadores da Arca Perdida”, primeiro filme dirigido por Steven Spielberg sobre as heróicas aventuras de Indiana Jones. Agora você, pescador esportivo, transforma-se no arqueólogo Dr. Henry Jones Jr., e tem diante de si a custosa tarefa de encontrar a Arca da Aliança com os “Dez Mandamentos” trazidos por Moisés. Mas, atrás de si, tem uma pedra. Gigante. Em forma de bola, esse imenso bloco de rocha tenta esmagá-lo, e você vai se desviando como pode até chegar ao fim da caverna. Você está esbaforido e se perguntando por que esta pedra está
no seu caminho. Quem tem a resposta é Jim Baxter — um conservacionista famoso nos Estados Unidos. Durante a quinta edição da Conferência Mundial de Pesca Recreativa, realizada em Dania Beach-Flórida, em novembro de 2008, ele apresentou um debate sobre o futuro da pesca esportiva no mundo. E, em forma de parábola, colocou o pescador esportivo no papel de Indiana Jones. Para Baxter, o pescador não tem apenas uma única pedra imensa atrás de si. São muitas as pedras das quais ele precisará desviar — uma para cada perigo que ronda o esporte-lazer no mundo. A primeira a ser enfrentada está relacionada com a preservação do
meio ambiente. Sem isso, não apenas os rios estarão mortos, como as matas — incluindo as ciliares — e as próprias regiões de pesca estarão devastadas. Por outro lado, na condição de esporte aquático, a pesca esportiva precisa tirar da frente o penhasco da escassez de água; afinal, sem água não há peixe. Já a terceira pedra — entre outras citadas por ele — refere-se às sociedades protetoras dos animais, para quem os animais são dotados de racionalidade e, portanto, têm capacidade de sentir dor. Ezequiel Theodoro da Silva — único latino-americano a apresentar pesquisa na quinta Conferência Mundial — explica que essa última pedra tem
crescido substancialmente nos Estados Unidos e em países da Europa. A idéia dessas sociedades é a de que os animais possuem “direitos”: “Dentro disso, defendem uma terrível teoria de que o peixe também sente dor e de que, quando o pescador o fisga, está ferindo um ‘direito do animal’. Mas, como defendeu Jim Baxter, os animais não produzem cultura”, relata.
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esmo sem nunca ter visitado, a pronúncia do nome já faz com que venha à mente uma imagem persuasiva. O nome e a região naturalmente convencem e instigam turismos. À primeira vista, corada, a praia é parada de embarcações diversas que preenchem as águas; as velas estufam o peito exibindo habilidade, charme e sensibilidade à natureza. O conjunto montanhoso de grande altitude barra os ventos que vêm do mar. Essa formação geográfica da ilha e o seu canal de água e vento são desafiadores, diferentes de uma
represa onde venta apenas para uma direção, onde não tem onda, correnteza ou outras situações de navegação. Nesse mar, o velejador adquire técnicas, prepara-se e pode partir para outros locais do mundo. Os elementos da natureza são convidativos para a vela; e, com ela, completam o convite para turistas, veranistas, estrangeiros e excursionistas de cruzeiros para contemplar a paisagem. “Velejar é uma maneira de ver a vida, é uma terapia. Não adianta ter a vela e não usar. Tem que sentir prazer. Já numa lancha, você dá a partida, acelera e vai embora”, narra José Roberto de
Jesus, o Beto, que começou essa descoberta ainda criança, há 35 anos, contra a vontade do pai, seu Mazinho: “Os pais da época eram contra, não tinham a visão de que o esporte poderia nos levar para outro lugar, que pudesse se desenvolver”. Seu Mazinho praticava a pesca de traineira, saía para o mar e ficava cerca de seis meses trabalhando enquanto a mulher e os filhos o aguardavam em Ilhabela. Os meninos tinham tudo para seguir o caminho e o conhecimento tradicional, mas descobriram outra forma de explorar o mar: “A gente ia velejar de qualquer jeito”.
“O velejador experiente fica olhando e já sabe onde tem o vento. Ele olha o mar e o mar acaba tendo um azul diferente, ele fala que ali tem o vento. O velejador é um pescador. O pescador olha, vê o mar meio crespo e fala: o peixe está ali. Aí ele vai lá e pega o peixe” Pesca Brasil l 79
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“Eu me senti um pouco como um peixe fora d’água, afinal, embora a América do Sul e Central tenham a pesca esportiva com certa tradição, fui o único desses países a estar lá”
Debate mundial Conhecer a maneira pela qual outros países desenvolvem a pesca esportiva pode auxiliar na superação dos desafios nacionais. Foi com esse intuito que o pescador esportivo brasileiro Ezequiel Theodoro da Silva teceu a pesquisa “Pesca esportiva no Brasil: muito a aprender e muito a fazer” [leia entrevista] para ser debatida na
Ezequiel Silva apresenta sua pesquisa durante a Conferência
“Na Conferência, consegui perceber que agências governamentais norteamericanas, inglesas, gaulesas etc. ouvem muito os pescadores para tomarem as suas decisões”
quinta Conferência Mundial de Pesca Recreativa. Lá, participaram 22 países, com 197 trabalhos inscritos. A única pesquisa latino-americana foi a brasileira. “Eu me senti um pouco como um peixe fora d’água, afinal, embora a América do Sul e Central tenham a pesca esportiva com certa tradição, fui o único desses países a estar lá, o que aumenta a
responsabilidade”, lamenta. Nessa edição, o temário foi “O pescador no meio ambiente”, com comunicações divididas em três linhas de trabalho: economia da pesca; impactos da pesca esportiva no meio ambiente; e políticas governamentais de apoio ao setor. De lá, Ezequiel captou algumas tendências do que vem acontecendo com a pesca esportiva no mundo. A primeira delas é preocupante: trata-se da diminuição do número de pescadores esportivos. Razões apontadas? “Cada vez mais os pontos de pesca estão ficando distantes. As regiões próximas, propícias para pescar, estão morrendo. Devido à constituição de grandes cidades, os rios estão poluídos, aí o pescador é obrigado a ir a um pesque-pague. A solução discutida gira em torno da instalação de áreas públicas de pesca, onde se possa pescar sem precisar pagar”, analisa o pesquisador-pescador. A segunda tendência é causa da primeira: a depredação crescente do meio ambiente. De nada adianta a existência de um mundo de rios se eles não forem confiáveis para a pesca. Já a terceira tendência ainda não chegou ao Brasil, e se refere às políticas públicas de pesca esportiva fundamentadas em pesquisa multidisciplinar. É o que diz Ezequiel Silva: “Na Conferência, consegui perceber que agências governamentais norte-americanas, inglesas, gaulesas etc. ouvem muito os pescadores para tomarem as suas decisões. As políticas públicas nos Estados Unidos convocam as comunidades científicas para elucidar ações de governo”. E aqui no Brasil?
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A brasilidade na pesca esportiva Você, pescador esportivo, é uma pessoa antenada com a preservação ambiental e interessa-se por ecologia. Baseiase na filosofia do pesque e solte como atitude fundamental para a pesca esportiva e se coloca como um exemplo a ser seguido pelos companheiros de pesca. Participa em média de vinte pescarias por ano e escolhe os pontos de pesca levando em consideração a produtividade do local, e se há uma infra-estrutura adequada para a prática do esporte. Você ama fazer parte da natureza. Aprendeu a pescar com o pai ou parente próximo quando tinha entre três e quinze anos de idade. Agora, costuma pescar com um parceiro, ou prefere a companhia de familiares. Para decidir em quais locais pescar, escuta a opinião de outros pescadores, verifica
sites e lê revistas especializadas. Reconheceu-se no retrato? A descrição traçada do pescador esportivo brasileiro faz parte de uma pesquisa realizada por meio do site Pescarte (www. pescarte.com.br) — do qual Ezequiel Silva é editor — no decorrer de oito anos. Os resultados das enquetes e pesquisas qualitativas desenham um retrato brasileiro em termos gerais. Outras enquetes fomentadas pelo site mostram que a grande maioria dos pescadores esportivos brasileiros não é afiliada a alguma associação de pesca e considera que o trabalho associativo existente no país exerce pouca influência no destino do esporte nacional. Em países como os Estados Unidos, Alemanha, Austrália e Espanha, ao contrário, o espírito associativo é muito forte, e por isso as associações de pesca
esportiva são igualmente robustas. A falta de tradição associativa dos pescadores esportivos nacionais revela, segundo Ezequiel Silva, uma deficiência crassa. E isso, em combinação com outros fatores [abordados na entrevista a seguir], desvela uma estrada ainda de terra a ser pavimentada para a pesca esportiva percorrer seu caminho. Sem pedras ou atropelos.
A grande maioria dos pescadores esportivos brasileiros não é afiliada a alguma associação de pesca e considera que o trabalho associativo existente no país exerce pouca influência no destino do esporte nacional
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Professor-voluntário da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Ezequiel Theodoro da Silva também é pescador esportivo e edita o site Pescarte. O que avista a pesca esportiva no Brasil? Ezequiel aponta na entrevista a seguir Você afirma que o Brasil está a anos-luz atrás de outros países no que diz respeito ao desenvolvimento da pesca esportiva. Por quê? Ezequiel Silva: Em outros países, existem institutos de desenvolvimento da pesca esportiva alocados em áreas mais condizentes do que está hoje o programa brasileiro. Por exemplo, por que o PNDPA (Programa Nacional de Desenvolvimento da Pesca Amadora) — que julgo muito modesto para o potencial que o Brasil tem — está numa área de fiscalização? Ele é parte do Ibama. Por que ele não está alocado no Ministério do Turismo? Por que não está junto com a Embratur? Quando se coloca um órgão numa área de fiscalização, o órgão não ganha incentivo. Segundo: o programa que temos no Brasil não está vinculado às universidades e à pesquisa. Ele não está trazendo e promovendo pesquisas no setor como
deveria promover. E terceiro: parece-me que o PNDPA não fornece o devido suporte para que aquilo que existe no país se desenvolva. Hoje, esse programa não tem um impulso pedagógico. Ele começou bem, mas foi morrendo. Ele propunha cursos para pilotos de pesca, chamava os ícones nacionais de pesca para fazer esse trabalho, havia apostilas, enfim, havia verba para investimento. Esse organismo deveria estar aglutinando essas experiências nacionais, fazendo a interface entre pesquisadores e pescadores, trazendo conhecimento, montando um Museu da Pesca Esportiva nacional: temos um mundo de material. O que faremos com os veículos impressos de pesca? Irão para o lixo? Deveriam integrar um importante acervo sobre a memória da pesca esportiva. Se não preservarmos a memória não há história. E, sem história, não há identidade.
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Você tentou trazer a Conferência Mundial para o Brasil, em 2011. Mas a próxima edição acontecerá em Berlim-Alemanha. Como surgiu a idéia? Ezequiel: Na Unicamp, existe o GIP (Grupo Interdisciplinar de Pesca Esportiva) — um grupo modesto, que agrega um pesquisador de lazer, um economista e eu, da parte de Pedagogia. Foi desse grupo que surgiu a idéia de tentar trazer essa Conferên-
cia para o Brasil. Mas não deu certo. Tenho a idéia de fazer um congresso brasileiro, pois eu acho que aqui está tudo fragmentado em pesca esportiva na área de organização. As associações de pesca vão e vêm. Há uma pesca comercial altamente voraz; tem o problema da fome; uma população que não come peixe, mas o extrai com pesca de arrasto, até arraia estão exportando para a Espanha. Então, seria importante haver um evento na área de pesca, que pudesse ser liderado pelo PNDPA, fazendo debate com as organizações existentes.
Diz-se que, depois do futebol, a pesca é o segundo esporte com mais participação no país. De onde vem essa afirmação? Ezequiel: Não há uma pesquisa que comprove que a pesca é o principal passatempo ou lazer dos brasileiros. Entretanto, é um dado de consenso. Se você olhar o mapa do Brasil, há a proximidade do rio na vida do cidadão. Há uma tradição de pai-para-filho muito forte no país. O litoral é grande, o que dá margem a vários tipos de pescaria. José Veríssimo — primeiro escritor a publicar um livro sobre pesca no Brasil — mostra como a conquista do interior brasileiro, da Amazônia brasileira, só foi possível por meio do conhecimento das técnicas de pesca também, do contrário não haveria o que comer. Essa conquista, a tradição dos indígenas, e mais atualmente a indústria de equipamentos e a mídia, tudo isso colabora para que o esporte de pesca se mantenha forte. Espero que ele cresça, pois nós temos todas as condições para isso. Então, essa afirmação parte da dedução de que o povo brasileiro é um povo pescador.
“Hoje, para que o esporte sobreviva, cresça, tenha mais influência e traga mais adeptos, a sociedade civil tem que se organizar. Porque os órgãos governamentais não vão fazer esse trabalho”
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Conhecimentos A pesca esportiva nos Estados Unidos está muito ligada às competições entre dois ou mais pescadores. Quando nos referimos à expressão “esportiva” aqui no Brasil, não estamos necessariamente falando de disputas, certo? Ezequiel: Numa das investigações que fiz pela Pescarte, eu dava vários nomes para a mesma coisa: pesca amadora, pesca recreativa, pesca de lazer. Entre as pessoas que votaram, com respostas qualitativas e quantitativas, a escolha recaiu sobre pesca esportiva. Nos Estados Unidos é chamado de “esportiva” porque lá realmente é um esporte de disputa. Mas o termo veio por osmose para cá, e relaciona-se com lazer, amadorismo, pesca de jogo. A pesca esportiva tem várias representações ou sentidos por trás dela, e coloca o pescador em convívio com a natureza, em busca do peixe. Nessa modalidade, há diferentes embates. Por que o tucunaré? É um peixe esportivo, combativo, diz-se que é inteligente. É diferente de um bagre no ribeirão. Por que o dourado é um peixe apreciado? Porque ele é violentíssimo. Muito a aprender e muito a fazer. O que é importante para o desenvolvimento da pesca esportiva no Brasil? Ezequiel: Quando eu digo “muito a aprender e muito a fazer” é que, acompanhando um pouco o que ocorre em outros países, inclusive com vizinhos como a Argentina, vejo que eles estão em um estágio mais avançando por terem atingido a consciência de que, quando os peixes vivem e se submetem ao turismo da pesca, eles geram
muito mais divisas do que quando eles são sacrificados e colocados à mesa. Essa consciência de que o pescador esportivo é um sujeito que preserva a natureza por depender dela precisaria ser trabalhada de uma maneira educativa e pedagógica para crianças e jovens brasileiros. Os programas de ação cultural nessa área deveriam ser muito mais intensos e fortes nesse país. Segundo: nós temos que aprender a cuidar melhor do nosso meio ambiente. Quando você vive num grande centro, e tem um rio podre ao seu lado, você se lamenta: “aqui já teve peixe”. Há projetos exemplares como o feito no rio Tâmisa, na Inglaterra. A população se juntou e salvou o rio; agora é possível pegar salmão, truta, ou seja, não é uma coisa do outro mundo. A pesca esportiva deve ser colocada dentro de um quadrante estrutural de governo que seja mais visível e mais bem alocado. Quando se coloca um programa de desenvolvimento de
pesca esportiva em uma área de fiscalização de meio ambiente, esse programa acaba se confundindo com um fiscalizador. E, por fim, é preciso aprender a ser tolerante com o outro. Ou seja, aprender a ter uma vida associativa. Aqui no Brasil as associações são sazonais. Quando eu estava fazendo a pesquisa para levar ao congresso, duas associações já haviam morrido: eu mencionei oito, mas agora são seis existentes. Hoje, para que o esporte sobreviva, cresça, tenha mais influência e traga mais adeptos, a sociedade civil tem que se organizar. Porque os órgãos governamentais não vão fazer esse trabalho. O trabalho coletivo, interinstitucional, o trabalho interassociativo é que pode ser um suporte e uma alavanca importante para a gente ter pesca esportiva de qualidade nesse país. Enquanto nós não amadurecermos a idéia de associações fortes no país, saindo da linha individualista, a gente vai fazer muito pouco pela pesca esportiva.
Museu de Pesca norte-americano mantido pela IGFA (International Game Fish Association)
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