"Eu, mulher pescadora"

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Feminino »Por: Janaína Quitério janaina@revistapescabrasil.com.br

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Assumindo a força da feminilidade, as mulheres abrem janelas no mercado de trabalho, reorganizam os papéis no lar e assumem atividades de esporte e lazer em espaços antes dominados por homens. Nada aconteceu num virar de páginas de livros: são mais de 150 anos de histórias de luta pela emancipação feminina

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té pouco tempo atrás, as mulheres ribeirinhas da Amazônia eram proibidas de atuar em atividades pesqueiras devido ao mito do Panema — em tupi: que ou quem é infeliz na pesca e na caça. Assim, de acordo com a mitologia, a mulher que estivesse em período de menstruação, ao se aproximar do rio ou tocar em utensílios de trabalho de caça e pesca, ‘empanemaria’ os homens. Foi daí que se difundiu a lenda de que mulher em pescaria é sinônimo de azar. Se o mito foi sólido por muito tempo, agora se desmancha no ar. As próprias mulheres ribeirinhas superaram as cordas mitológicas e desempenham um papel econômico importante nas localidades onde moram, no interior da Amazônia. O exemplo é singular, mas representa a universalidade no início do século 21. Um passo após o outro: cada maçaneta virada não põe termo à questão. A mulher ocupa o espaço, mas ainda sobram dúvidas, preconceitos, olhares tortos. E ela continua lá, disposta e bem-humorada. Persistente e intuitiva. Mãe e líder. Chefe de família e amiga. Fragilidade da beleza e agressividade da sobrevivência, por mais que pareça, não são contraditórias, apenas a metáfora de novos tempos.

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Para enfrentar preconceitos, as mulheres ainda precisam superar a própria intolerância feminina com o esporte-lazer de pesca. “Amigas acham que eu devia ter nascido homem, já me disseram isso”, lamenta a pescadora Sônia Sônia G a em Sa rrotti, lvador, com o “tro olho-de féu” -boi


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Vara cor-de-rosa?

Não existem ainda dados concretos sobre a evolução da participação feminina na pesca esportiva. A História ainda está devendo essa. Sabe-se que sempre foi uma atividade de lazer e esporte essencialmente masculina. Entretanto, já não é mais possível ignorar o papel das pescadoras nesse universo. É visível que hoje em dia há cada vez mais mãos femininas engrossando na briga com as criaturas das águas. Mas, existe diferença entre homem e mulher quando o assunto é pesca? — é a primeira curiosidade que vem à mente. Márcia Sousa Cassiano Ferreira mais do que mulher de pescador é pescadora desde pequena. Apaixonada por

pesca de praia, ela compara: — A mulher não tem muita noção de direção, e para determinadas coisas o homem é mais detalhista, como a escolha de equipamentos ou na percepção de um canal. Mas o lado masculino não presta atenção nos detalhes: quando saio com meu marido para pescar, ele fica tão profundamente concentrado pescando que sou eu quem lhe apresento a beleza do mar e do sol nascendo. Chamo a atenção dele, porque não podemos perder tudo. Pescar tem dois lados; ambos são bons para aproveitar. Já Sônia Garrotti, pescadora de pesca embarcada em alto-mar, é mais enfática: — Na pesca esportiva ainda existe um ‘clube do bolinha’ organizado pelos pescadores para saírem da rotina. Os pescadores mais jovens aceitam bem mais a mulher pescando, mas, de pescadores antigos ainda ouço brincadeiras do tipo ‘você coloca perfume na isca?’ — Sфnia gargalha — Mas a mulher, no que se propõe a fazer se sai melhor que o homem. É difícil de eles aceitarem. Para enfrentar preconceitos, as mulheres ainda precisam superar a própria intolerância feminina com o esporte-lazer

de pesca. “Amigas acham que eu devia ter nascido homem, já me disseram isso”, lamenta a pescadora Sônia. Afinal, a mulher não tem o saber fincado somente à terra ou às coisas práticas. Sua intuição combina com as águas, com a natureza e com o saber-fazer de uma boa pescaria. Pescar combina com educação dos filhos, com convivência familiar, com amizade. É espaço para conhecer novas geografias, novas vidas, novas artes. É conhecer-se. Márcia Ferreira neutraliza a agitação do marido na pesca quando abre a visão dele para a natureza. Tornou-se companheira do marido, o que é um bom exemplo de interação e harmonia entre casais. Desde quando as filhas eram pequenas, Vladimir Ferreira reservava um tempo para a esposa pescar na praia, enquanto cuidava das filhas. Agora, ela acompanha o marido em 95% das pescarias, e traz para outras artes sua interação com a natureza: há oito anos a pescadora-professora faz mosaico artístico, e a primeira obra foi uma releitura de “O pescador”, da pintora Tarsila do Amaral. E assim, as mulheres pintam um cenário com peixes, mar, natureza — dentro e fora de casa — no qual elas aos poucos vão se tornando personagens importantes. Não mais antagonistas. Não mais caiporas, como na lenda.

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Mini-perfil: quem são elas?

Márcia Sousa Cassiano Ferreira é professora de educação infantil da prefeitura de São José dos Campos há 28 anos. Tem duas filhas, gêmeas, Carolina e Mariana. Modalidade preferida: pesca de praia. “A pesca de praia facilita muito, porque geralmente a mulher não gosta dessa coisa de pisar na lama, entrar no barro ou segurar iscas como minhoca. Essa modalidade acaba sendo até mais limpinha. Basta o camarão como isca para conseguir fisgar peixes, diferentemente das iscas em pesqueiros”. Peixes preferidos: betara, robalo e farnanguaio ou panaguaiú (conhecido como agulhinha). “É um peixe pequenino, mas muito briguento”, atesta Márcia. Lugares preferidos: praia de Massaguaçu — litoral norte de São Paulo — e Praia Grande, em São Francisco do Sul-SC. “Por serem praias de pescadores, não há muitos banhistas ou surfistas. Nada atrapalha a pesca, nada me deixa aborrecida, nem me sinto atrapalhando alguém quando estou pescando”. Por que gosta de pescar? “Para mim é terapia e me possibilita ficar perto de meu marido e filhas. Eu gosto de pescar pelo prazer de pescar. Não me importo se pegarei ou não o peixe, o que vale mais é o prazer de estar pescando.”

Acima ela trava batalha com a bela corvina da foto ao centro. Abaixo em São Francisco do Sul, com uma betara de respeito

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Sônia Garrotti é fabricante de jigs, tem dois filhos, hoje com 21 e 29 anos. Modalidade preferida: pesca embarcada em alto-mar. “Eu acho o peixe de rio briguento, mas é mais bobinho. Com o peixe de mar, você fica uma hora e meia brigando com ele para tirá-lo de lá. É uma briga diferente da pesca de rio”. Sфnia não gosta de corricar, gosta de pesca trabalhada, “jigada”. Peixe preferido: olho-de-boi — o maior pescado por ela foi um de 25 quilos, na Bahia. Em São Paulo, gosta de pescar bicuda, “porque é um peixe que salta”. Lugares preferidos: Salvador e Praia do Forte – BA. Em São Paulo, considera que a pesca esportiva já está defasada devido às várias proibições de pesca. Por que gosta de pescar? Esquece de tudo quando estб pescando, mesmo quando volta frustrada da pescaria. “Para mim, é um prazer ficar no mar oito horas ininterruptamente. Não vejo a hora passar”.

Olho-de-boi, fisgado na Bahia

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Feminino Elisa Senda Nakano é mulher de pescador e tem três filhos dos quais só o caçula hoje pesca. É fabricante de iscas artificiais há oito anos junto com o marido. Modalidade preferida: pesca embarcada em altomar. “Os peixes são melhores, é uma pescaria mais esportiva. Pesqueiro é muito parado”. Peixe preferido: ubarana — “para comer não, mas é bem esportivo, briga muito”. Lugar preferido: Guaratiba-RJ — para quem gosta de pesca embarcada em um lugar tranqüilo. Por que gosta de pescar? Apesar de não ser uma pescadora assídua, como o filho e o marido, pesca por lazer, para observar a natureza. Gosta também da companhia de pescadores, da amizade de longa data que se faz entre os que montam equipe. Como a equipe do marido não tem preconceitos em levar mulheres para pescar, isso ajuda Elisa a gostar de pesca.

Elisa, na Praia do Forte — BA, com um dourado-do-mar

Fisgando tucunaré no rio Araguaia

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Datas marcantes às mulheres na luta pela sua emancipação. Cada conquista são duas vitórias: superação de uma condição e promessa de fatos novos. Fonte: WMulher 1827 — Brasil — Surge a primeira legislação relativa à educação de mulheres. A lei admitia meninas apenas em escolas elementares, não para instituições de ensino mais adiantado. 1857 — 8 de março/ Nova Iorque-EUA — 129 operárias morrem queimadas pela força policial, numa fábrica do setor têxtil. Elas tiveram a ousadia de reivindicar a redução da jornada de trabalho de 14 para dez horas diárias e o direito à licençamaternidade. O Dia Internacional da Mulher foi instituído em homenagem a essas trabalhadoras corajosas. 1879 — Brasil — O governo brasileiro abriu as instituições de ensino superior às mulheres. Entretanto, as jovens que seguiam esse caminho eram sujeitas a pressões e à desaprovação social. 1880 — Brasil — As primeiras mulheres graduadas em direito encontram dificuldades em exercer a profissão. 1893 — Nova Zelândia — Sufrágio feminino. Primeiro país a conceder o direito de votos às mulheres. 1920 — EUA — Sufrágio feminino. 1932 — Brasil — O governo de Getúlio Vargas promulgou novo código eleitoral garantindo o direito de votos às mulheres brasileiras.

1937/1945 — Brasil — O Estado Novo criou o Decreto 3199, que normatizava a prática esportiva feminina. Era proibido às mulheres praticarem esportes ‘incompatíveis’ com as condições femininas, como luta de qualquer natureza, futebol de salão e de praia, pólo, halterofilismo e beisebol. O decreto só foi regulamentado em 1965. 1949 — França — A escritora Simone de Beauvoir (19081986) publica o livro “O segundo sexo” — uma análise da condição feminina. É famosa sua frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. 1969 — Brasil — O CND (Conselho Nacional de Desportos) proíbe a prática de futebol feminino no Brasil. A decisão só foi revogada em 1981. 1974 — Argentina — Isabel Perón torna-se a primeira mulher a ser presidente da república. 1979 — Brasil — A equipe feminina de Judô inscreve-se com nomes de homens no campeonato sul-americano realizado na Argentina. Esse fato motivou a revogação do decreto 3199. 1996 — Brasil — O futebol feminino chega às Olimpíadas. O Brasil fica em quarto lugar.

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2009 em diante — A história

da participação feminina na pesca esportiva poderia ser elaborada.

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