Antíctone

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AntĂ­ctone

Janos Biro


Uma piada ruim Começou com uma piada ruim. Eu disse para o Marcos: "O mesmo que você fez com sua inteligência: amassei e joguei fora, mas ainda estou com ele na cabeça, sem usar, só para aparecer", quando ele me perguntou o que eu tinha feito com meu cabelo. Acontece que eu acho que ele ficou ofendido e me mandou à merda. Eu disse que não era coprófago e perguntei se eu havia mentido. Porque se eu disse a verdade, qual o problema? E se eu menti, qual o problema também? Qual a lógica de se ofender com mentiras? Ou pior, com verdades. Mas ele não queria pensar sobre isso. Estava ofendido e pronto. Disse que eu levava tudo ao pé da letra e eu disse que as letras não tinham pés, ao que ele foi embora correndo. Um tempo depois voltou com uma faca na mão, dizendo que ia me matar. Eu não hesitei, desarmei-o e acertei a faca na sua barriga. Ele sangrou muito, mas apesar disso veio como um animal pra cima de mim. Eu não entendi porquê ele estava tão nervoso só porque eu me defendi, mas ele estava babando de ódio. Então eu o derrubei e o matei. No tribunal aleguei legítima defesa. Todo mundo estava contra mim, até mesmo minha família. Perguntaram se eu não tinha distinguido uma brincadeira de criança com uma tentativa de homicídio só porque o Marcos tinha doze anos e não tinha motivos reais para me matar. Eu disse apenas que crianças não deviam brincar com facas. Estava calmo porque para mim não havia acontecido nada demais. As pessoas viram minha calma e ficaram furiosas. Meus amigos queriam me matar. Minha mãe disse entre lágrimas que era melhor para todo mundo que eu fosse preso. Ouvi alguém dizer que eu estava com o demônio no corpo, ao que eu respondi que achava que não, porque duas coisas não ocupam o mesmo lugar no espaço. O juiz pediu ordem. Resolveram que iriam me avaliar psicologicamente, mas que provavelmente eu seria entregue aos cuidados de uma instituição competente. E aqui estou eu. – Você está brincando? Desde quando isto aqui é uma instituição competente? – Já viu alguém sair daqui vivo? – Só se for transferido. – Então eles são muito competentes quando a questão é fazer com que os loucos não se recuperem. – Quem é louco aqui? – É... Afinal não podem te culpar por ter confundido sua irmãzinha com uma boneca muito real. A culpa é dos fabricantes de brinquedos que imitam bem demais. – É mesmo... –

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– Doutor, eu não tenho tomado a medicação. – Por que está me dizendo isso, Nome? – Porque as minhas cordas vocais estão... – Desculpe, desculpe... Eu quis dizer o motivo que te fez chegar à conclusão de que devia me dizer isso. – Bem, doutor. Eu tenho pensado e... Acho que é porque os estímulos elétricos nos neurônios... – Chega! Chega disso. É impossível tratar de você enquanto continuar a impedir a comunicação dessa maneira! – Mas estou respondendo exatamente o que você me pergunta. – Não, não está. Já aceitei chamar você de Nome. Já aceitei exigências demais de você. Para ouvir seu lado sobre o incidente com a faca tivemos que sacrificar meses! Você está atrapalhando o tratamento dos outros pacientes. Ou você começa a cooperar ou teremos que tomar medidas mais severas. – Mas doutor... Eu nem mesmo faço idéia do que vocês querem de mim. – Não responda exatamente o que eu perguntei, responda apenas algo que tenha a ver com o que aconteceu. – Eu não entendo. Como eu poderia saber o que faço? Se as pessoas soubessem essas coisas viveriam bem. Não está me pedindo demais? – – O que ele fez? – Suspirou e me mandou sair. – E você? – O vi pegando alguns remédios e tomando antes de sair do quarto. – Ele acha mesmo que é um psiquiatra, né? – Acho que sim. É realmente muito engraçado falar com ele. – – Você está dizendo que fugiu de um hospício? – É, daquele ali. – Não há hospício nenhum ali. É uma pousada. – Já entrou lá? – Não, é muito chique pra mendigos. – Isso que você está comendo é melhor do que o que eles servem lá. – Sério? – Sério! – Como você fugiu? – Foi alguma coisa que eu disse. Acho que todos perderam a calma e a segurança foi relaxada. – Eles te deixaram fugir? – É claro que me deixaram, se tivessem me impedido eu não estaria aqui. – Você sabe qual a sua doença? – Provavelmente todas possíveis e mais algumas até então impossíveis. – Credo!

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– Credo não, é psiquiatria mesmo. – – O mendigo foi achado morto. Você foi a última pessoa a vê-lo vivo... – Protesto. – O que foi dessa vez? – Ele morreu na ambulância. – Tá bom. Vamos ver... Você foi a última pessoa a vê-lo sem ferimento algum. – Ele tinha... – Quer dizer, sem ferimento mortal algum. – Ok. – Então, o que aconteceu? – Onde? – Lá entre você e o mendigo! – Nada. – Nada? A mandíbula dele foi arrancada! Você acha que isso foi um acidente? – Foi ele que me pediu. – Pediu? Como poderia ter pedido uma coisa dessas? – Falando. – Grrr... – Calma. Deixe-me falar com ele. Qual foi o pedido que te levou a arrancar a mandíbula de um indigente? – Ele disse que não agüentava mais ter uma boca que só servia para passar fome. – – E desde então eu tenho sido odiado por todos. Eles perdem o controle e se tornam fáceis de enganar. Não correm muito bem e não conseguem acertar os tiros. – Me deixe em paz! – Você está em paz. Não precisa lutar contra a corda, ela não te fez nada. – Maluco! Assassino! Me solta! – Só se você cortar minha cara com essa gilete. – Eu não vou fazer isso. Está tentando me incriminar. Eu não tenho medo de você. Você vai apodrecer na cadeia! – Se você não fizer isso, eu vou matar seu filho. – Por que está fazendo isso comigo? Eu te dei casa e segurança. Eu confiava em você. O que está havendo? – Estou salvando sua honra. Você disse que se eu quebrasse outro vaso você iria cortar minha cara com uma gilete. Eu tentei não quebrar, mas aconteceu. Agora você tem que cumprir sua promessa, senão ficará desonrado. – Era uma brincadeira. Só uma piada. – Ótimo, então aprenda isso: piadas ruins podem ser desastrosas.

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Silêncio Um homem andava num prado, acompanhado de uma solidão. Falando pela primeira vez, a solidão pergunta-o quem é ele. O homem, um pouco assustado com a comunicação repentina, porém sem demonstrar nada, responde simplesmente: eu sou o antagonista. Por que, pergunta a solidão, com a expressão de uma criança solitária. Eu não sei, eu sempre sou o antagonista, o homem responde. Não importa o quão bom seja o sonho, eu sempre sou o antagonista. Talvez porque sempre haja protagonista, e porque o protagonista sempre precise de um antagonista, de uma maneira ou de outra. Não é pelo fato desse outro ser melhor que eu, ou mais virtuoso, ou ter qualquer coisa que se diferencie de mim. Acontece que sempre acontece de eu estar, de alguma forma, no caminho dessa pessoa, que logo é identificado como o protagonista, pelo fato de que ele sempre vence no final, mesmo que morra. As pessoas percebem logo que me vêem, aí está o antagonista! Mas não pode ser, replica a solidão. É tão injusto, porque não alternam os papéis? Por que tem que haver protagonistas e antagonistas, sempre? Por que não pode haver um sonho livre? Porque é assim, tenta explicar o homem. Sempre foi assim, talvez o sonho só funcione assim. Eu não concordo, pula pra frente a solidão, indignada. Pode haver um sonho com uma pessoa só. Nesse caso, responde o homem, esta pessoa seria ela mesma, ao mesmo tempo, o protagonista e eu. É impossível, e isso você devia saber muito bem, que alguém exista sozinho. Ninguém jamais está sozinho, há sempre pelo menos dois. Há sempre, resumidamente, apenas duas pessoas no mundo: eu e não-eu. Mas isso não parece satisfazer a solidão, que segue vagarosamente com o olhar baixo e pensativo pelo resto do prado sem fim. Você me consola, diz o homem. Tira minha dor, mas leva com ela também quem eu sou. No fim, explica olhando fixamente nos olhos da solidão, você não deixará sequer uma gota de dor em mim, nem sequer uma gota de mim em mim, eu terei me esvaído, e o sonho acabará, e o protagonista vencerá. A solidão tenta compreender aquelas palavras, mas não pode. O mundo é tão simples, porque ele não pode ver? Do que ele tem medo, tanto medo? O homem, como se soubesse disso, responde, com a cabeça rumo ao horizonte: Você não entenderá. As saídas nunca são amplas, nunca são abertamente visíveis. Você acredita que somos livres, não acha que esse belo prado também não é um labirinto, só porque não tem paredes? É o pior deles, o mais mortal. A cada passo que damos, nos arriscamos a nunca mais sair. Este caminho aparentemente reto é a pior das armadilhas. Internamente, cada passo é uma escolha, a escolha de continuar em frente. Cada uma dessas escolhas é diferente, pois cada uma delas interfere na outra. A dificuldade é gradual, cada passo dado aumenta o risco de que no próximo estejamos permanentemente perdidos. Se uma dessas escolhas é feita erroneamente, tudo está perdido, se torna

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impossível voltar, tanto quanto continuar. É a armadilha perfeita, porque nos deixa perdidos em nós mesmos, e ficamos paralisados. A solidão revolta-se: Pare de complicar as coisas! Pare com isso! Por que é que tudo tem que ser sempre tão significativo? Que há de importante nisso, a escolha é sua! Simplesmente pare com isso! Mas o homem continuou, balançando a cabeça por um tempo indefinido, sempre na mesma velocidade. Você não vê, simplesmente não vê. Veja o que está pedindo, está pedindo que eu faça exatamente o oposto do que você espera que eu faça. Se eu parasse, não precisaria mais de você. Se eu parasse, tudo isso não teria sentido. Se houvesse a possibilidade de eu parar, então nada disso existiria, em primeiro lugar. Não vê? Se o mundo fosse mesmo simples assim, nenhum sonho seria preciso. Todo sonho vem de uma dor. Não há sonho sem dor, nem há amor ou graça. O mundo não chegaria até aqui se ele seguisse o caminho mais fácil. Não, ele segue o mais difícil, por isso mesmo é valoroso. Por isso a coragem é uma virtude. Se seguíssemos o caminho mais fácil, então nunca haveria a necessidade de ser corajoso, e aí sim todos estariam perdidos, e todos eventualmente parariam, para sempre. Ao ouvir isso, a solidão virou-se para o outro lado. Seus olhos se cobriram de uma fina camada de choro, que nunca caiu. Você me lembra uma poesia, diz finalmente o homem. Uma poesia que vivi uma vez, em outra parte. Esforçando-se para se lembrar, o homem se pôs a declarar os versos: Eu vi você olhar pra mim Não percebi que não estava ali Queria poder gostar de você Queria poder dizer algo melhor Estamos presos Na mesma bolha plástica Eu estou com medo Você me ignora Eu escrevo Tento me consolar Você segue reto Não sei como consegue me arrastar Não suporto Estou ficando louco Suas respostas são exatas Elas não podem me confortar

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Eu tento me matar Erro o tiro Mas não erro sua cabeça Você começa a sangrar E me afogo no seu sangue Que não pára de jorrar Pela bolha plástica Eu começo a flutuar O homem termina com um sorriso. A solidão o olha fixamente, sem conseguir dizer uma palavra. Agora, completa o homem, sigamos em silêncio. O silêncio, de todas as coisas valiosas, pode ser a mais esclarecedora. Silêncio e paciência. E assim o prado desaparece por detrás de uma espessa neblina de consciência. O dom superior Diz a lenda que quando o imperador Nakuto III completou dez anos de governo ele foi mandando pelo conselho dos sábios para a Montanha do Véu em busca do Dragão Daishang. Daishang o concederia um dom, apenas um, para que ele pudesse continuar a reger o império de Fengsien. Chegando à caverna do dragão, após três meses de caminhada e escalada na montanha gelada, Nakuto finalmente encontrou Daishang. O dragão perguntou o que o imperador precisaria para governar bem seu império. Ele respondeu, sem pensar muito: “Força de guerra para vencer meus inimigos”. “Se eu lhe der força para vencer seus inimigos”, disse o dragão, “você poderá usar essa força para conquistar muitas terras para seu império e fazer ainda mais inimigos. Como você regeria seu império se ele continuasse crescendo e crescendo, com cada vez mais problemas, guerras e inveja? E de que adiantaria essa força se um dia não houvesse mais guerras?”. Nakuto pensou, e respondeu: “Tem razão, sábio dragão. Este não é meu desejo. Eu realmente desejo sabedoria divina, pois com ela poderei vencer meus inimigos e reger meu império tão bem quanto um deus”. “Se eu lhe der sabedoria divina”, disse novamente o dragão, “você poderá usá-la para vencer seus inimigos, assim como para fazê-los seus aliados. Seu império cresceria muito durante o resto de seu governo, mas como você poderia garantir que o império não entraria em decadência logo após a sua morte? Como você consolará o povo, que sem uma sabedoria divina para regê-lo se sentirá perdido na escuridão?”.

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“Eu entendo”, disse Nakuto. “Assim como a sabedoria pode me prover a força, a eternidade pode me prover sabedoria. Este é o meu desejo, Grande Daishang. Eu quero a imortalidade!”. “Se eu lhe der a imortalidade, imperador Nakuto, seu império poderá existir para sempre. Assim, você poderia cuidar de cada problema pessoalmente, e adquirir sabedoria e força. Mas você iria procurar por essas coisas para sempre, porque sempre haveria mais sabedoria e força para ser adquirida. Chegaria um tempo em que seu grande império pareceria sem importância diante do poder que você acumulou, e regê-lo se tornaria tedioso. Sua vida perderia o sentido, e você se arrependeria de sua imortalidade, amaldiçoando-me para sempre por ter concedido esse desejo...”. O imperador deu um salto para trás com essa última frase de Daishang. “Eu realmente não posso entender, grande dragão. Parece-me que tudo que desejo não me ajudará a cumprir meu objetivo. O que eu poderia desejar que realmente fizesse meu império digno?”. “O que está a sua disposição, imperador Nakuto? Eu posso lhe dar qualquer coisa. Por que, então, você pede força, sabedoria ou eternidade? O que eu poderia lhe dar que realmente mantenha seu império forte, como ele é hoje, que você já não tenha?”. “Mas, grande Daishang, eu não sei! Se eu já tenho tudo que preciso, por que eu tive que vir até aqui?”, disse Nakuto. “Você guiou seu império com temperança e honra até hoje, mas nunca percebeu porquê, e os sábios resolveram mostrar isso a você, para que você jamais se esqueça. A deusa já lhe deu tudo que você precisa para ser quem você se tornou, assim como deu tudo que o sol precisa para brilhar, a grama para crescer, o vento para correr. O que eu realmente posso lhe dar são essas palavras, para que você possa perceber isso, e para que você possa usar tudo que você tem da melhor maneira possível. Usando o que você tem, sendo quem você é, nada mais nem menos, estará sempre a melhorar tudo que você é, na medida certa. Não deixe que essas palavras sejam esquecidas e todos os seus descendentes governarão tão bem quanto você, assim seu império durará para sempre“. Com essas palavras, Nakuto voltou à capital de Fengsien, onde estabeleceu um templo para a deusa. Uma estátua de Daishang se encontra na porta do templo. Guerra

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O elevador estava descendo. Era sujo e velho, de madeira. Por sua porta de vidro se viam luzes passando de baixo pra cima. Esperei. Nada aconteceu. Procurei algum botão, procurei saber pelo menos o número do andar. Não havia nada, apenas um pedal de metal gelado na parede. Apertei e caí inconsciente no mesmo instante. Será que ele vai se lembrar de alguma coisa? Não, não irá se lembrar de nada. Eu estava deitado numa mesa de operações. Tudo completamente escuro exceto pela luz em cima de mim e uma luz que vinha de uma sala de observações no alto. Acordei no mesmo elevador. Este sonho me deu dor de cabeça. Continuava descendo sem parar. Limpei o vidro e vi os andares. Neles só haviam salas minúsculas sem saída. Algumas com pessoas em trajes do século dezenove. Abri a porta e decidi pular no próximo, mesmo que para uma saleta. Eu precisava me livrar do elevador. Caí num salão de conferências onde um homem discursava a frente de uma grande tela. Todos tinham bandeiras vermelhas e as agitavam toda vez que o homem dizia alguma coisa. Hittler usa calcinhas! Os nazistas não sabem limpar a bunda! Os nazistas fazem xixi na cama! As bandeirinhas vermelhas se agitavam e o povo gritava. Vi uma mulher olhar pra mim, e era como se eu a amasse. Peguei uma bandeira e uma caneta. Escrevi para ela me encontrar lá fora, e joguei o papel no seu colo. Eu estava saindo do salão, de repente tudo parou. No telão apareceu o bilhete segurado por mãos de mulher, e dois homens se levantaram e foram em direção da moça. Eu a peguei pelo braço e saímos correndo. Chegamos no estacionamento e íamos fugir, quando eu vi que não era ela e ouvi o som de alguém morrendo no salão. A mulher me olhou por um segundo, me deu um beijo e depois sacou uma arma e atirou. Ela se matou friamente, e por algum motivo eu sabia que ela estava apenas evitando algo pior. Eu tentei roubar um carro, mas nenhum deles funcionava. Parei para tentar me lembrar de como se chora, pois pensei precisar disto naquela hora. Então apareceu alguém. Ele tinha roupas de mecânico e me mostrou uma saída. Eu percorri tubos de ventilação que não sabiam acabar, até uma sala de guerra. Vi vários generais planejando quantos iriam morrer, onde, quando, como e porquê. Eles tinham um quadro enorme e uma maquete do campo de batalha. E simplesmente estavam decidindo tudo que iria acontecer para ficar o mais bonito possível na tevê. Eram os generais de todos os países, e todos eram iguais. Eu continuei me esgueirando pelos tubos, pensando se haveria algum lugar pra ir. Talvez eu devesse morar aqui. Então vi um grande refeitório.

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Trabalhadores eram alimentados com alguma coisa pastosa que saía de um grande triturador. Enquanto eu estava observando, um dos trabalhadores passou mal e caiu inconsciente. Instantaneamente três homens de vermelho escuro pegaram-no e o levaram para trás do balcão. Então eles o jogaram no triturador e houve uma revoada de trabalhadores famintos que se juntaram para repetir o prato. Eu segui em frente segurando o vômito. Passei por um laboratório. Ele era dividido em duas partes. De um lado havia tecnologias incríveis, e os cientistas eram jovens e sorridentes, e inventavam armas, doenças e futilidades. Do outro tudo era rústico e improvisado. Os cientistas pareciam que não dormiam há anos. E eles tentavam inventar coisas úteis e diferentes, que ajudassem o homem sem prejudicar ninguém. Mas poucos eram os inventos, e os cientistas do primeiro lado, que estavam em grande maioria, riam deles o tempo todo. Depois de muito tempo escondido nos dutos, eu encontrei uma saída. Era noite e não havia nada lá fora além de frio. Mas resolvi sair assim mesmo, então comecei a quebrar a grade. Aconteceu que o duto não resistiu e se partiu, e eu caí entre um monte de roupas. Era como se fosse uma lavanderia, mas as roupas eram jogadas numa caldeira para serem queimadas, enquanto roupas novas, idênticas às velhas, esperavam para substituí-las. Alguém entrou na sala, que estava escura, e eu peguei uma camisa e me preparei para estrangular quem quer que fosse até a morte. Era ela, a moça que eu ouvi morrer no salão de conferências. A mulher que eu pensei ter matado. Eu matei uma mulher inocente, ela disse. Não, eu matei. Não, eu joguei o bilhete no colo dela antes de ler, ela completou. Espere, nós não matamos ninguém, não temos culpa das atrocidades desses manipuladores. Somos inocentes. Nós nos abraçamos. Senti uma dor nas costas e vi seu belo quase sorriso, em suas mãos uma seringa, enquanto meus olhos se fechavam involuntariamente. E A palavra! Está vindo pra cima de mim novamente. Como essa briga começou? Eu me lembro de termos sidos amigos. Estava eu andando pela chuva quando ela me disse: Vende-se. Vende-se? O que? A placa? A pessoa que escreveu? A casa? Nesse caso, a casa vende-se? Não seria então “se vende-se“? Ela riu, me acompanhou até em casa, na chuva. Imagine, conversamos por horas. Ficamos amigos. Agora olhe, está vindo na minha direção com uma faca. O que eu fiz a ela? Eu gostava de nossas tardes juntos, na rua. Eu sentado na calçada e ela

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na Lua. Como crianças, nós brincávamos. Eu me perguntava como ela podia ser capaz de dizer qualquer coisa, e ao mesmo tempo nunca fazer sentido por si só. Ela me disse que o sentido nunca existe numa coisa só, mas entre pelo menos duas. Ela era gentil naqueles dias. Lentamente foi se tornando cada vez menos delicada. Até chegar a ponto de não me deixar dormir sossegado. – Que foi? São duas da manhã! Eu quero dormir! – Mas eu quero te contar uma coisa. – Amanhã. – Amanhã eu não vou me lembrar. – Amanhã! – Deixa eu só te contar, é uma poesia... – Outra? Lembra? Você me fez acordar mais tarde pra me contar uma poesia que na verdade era plágio de uma música do Renato Russo. Tudo bem, amizades resistem a isso. Você devia suportar um pouco de crítica também. Vê o que estou falando? Olhe você com uma faca na mão. De onde veio tanta raiva? Eu estou tentando me lembrar quando foi que a gente brigou pela primeira vez. Não foi naquela festa? – Flor? – Não, obrigado. – Mas, olha, rima. – Sem rimas, estou bem assim. – Você não era assim... – Como? – Antigamente, você rimava comigo. – Eu era novo, rimas vinham e eu nem sabia o que estava fazendo. – Só um pouco, não faz mal algum. – Não! Esquece isso, olhe os modernistas! Foi uma longa noite. Nos outros dias não nos falamos. Andei pela biblioteca, conheci a Cecília. Tivemos um caso, você sabe. Crise de ciúmes nunca foi seu forte, mas você tem maneiras diferentes de se vingar de mim, não é? Quem foi que começou a discussão naquele dia embaixo da árvore? – Ops! – Tudo bem, é só mel. Mas eu disse que não queria. – Mas é tão bom! – Já tem mel demais. Vamos limpar isso antes que as formigas venham. – Deixa escorrer, assim que eu gosto! – Mas...

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– Hum, que bom! – Agora minha mão tá toda suja. – Deixa de ser fresco. – Como você pode gostar tanto de mel? Eu prefiro escuridão. – É só por mel nos olhos. Tudo bem, até que eu gostei. E eu sei que amigos não deveriam dormir juntos, mas você insistiu e eu não resisti. Nem vem, foi você que me seduziu. Do jeito que você era, quem resistiria? Eu não. – Canalha! – Eu? Por que? – Porque a culpa é sua. – Porque a culpa é sempre de quem escreve? – Ah! Quero ver você dizer que a culpa é minha. Não mesmo! Eu sou a vítima! – Mas que droga, você sempre faz isso! Tudo ficou bom e mal ao mesmo tempo. Sei que leva um tempo pra superar aquela sensação estranha, mas valeu a pena. Acho que nos entendemos melhor. Porém, foi aí que começou o ciúme descarado: – Que isso? Surrealismo? Você anda saindo com surrealistas é? Aquelas bestas? – Não são bestas, são muito interessantes. Você devia conhecer. – Sei, aqueles textos mal construídos. Pura falta de criatividade. Parece dadaísmo. – Pro seu governo dadaísmo é mais legal que muita besteira por aí. Aquelas coisas metrificadas suas! – Aquilo foi uma fase, quer parar de me encher? – Eu não, você que me encheu primeiro. “Faz uma rima”, lembra? – Ah! Cala boca e me escreve... E agora? Será que você já gostou de mim de verdade? Sem autopiedade, penso isso porque eu continuo o mesmo, será que você não vê? As pessoas mudam, é claro, mas em essência eu ainda sou o mesmo. Você devia gostar de mim pela minha essência, não pelo resto, não acha? Além disso, nunca deixei de gostar de você. Agora, você parece que quer me matar! E quer mesmo! Quero dizer, ela quer. Eu sei que ela não fala mais comigo quando eu falo assim, mas esqueço de vez em quando. Só ela não percebe como somos inseparáveis. Eu faço de tudo pra ela, e o que eu recebo? Larga a faca! LARGA A FACA!

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AI! Viu só? Eu sabia que você ia fazer isso. Ai. Acho que foi fundo. Ai, ai. Pára de me segurar, liga pro médico. Só uma coisa me consola: nunca te traí, mesmo quando escrevi outras, nunca foi nada sério. Eu queria só uma palavra, e é a única palavra que eu amo, a única que eu preciso...

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A lua vermelha Acordei. Estava deitado na grama. Noite passada havia sonhado que corria de plantas carnívoras a noite inteira e hoje me encontrava cansado. Um padre vem zumbindo no meu ouvido. "Acorde, amigo". Você não é meu amigo. Já havia me acostumado a ignorar o que eles dizem como se fossem mosquitos. Mas de vez em quando era interessante deixá-los em dúvida. Então ouvi o padre dizendo: "Por que está aqui?". Porque eu estaria? Loucura. "Qual é a sua perturbação? Parece normal para mim". Sou um colecionador de perturbações mentais. Descubro novas maneiras de usar meu cérebro e então... eu aplico. Personalidades múltiplas, paranóia sobre a paranóia, todas as manias, contradição de cada estado mental e negação profunda sub-epilética em todas as suas formas. Esquizofrenias em todos os estados e mais alguns que eu mesmo descobri. "Já procurou Jesus?". Já, mas ele achou que eu queria me curar. Acontece que eu gosto de ser assim. Ele me expulsou. "Jesus não expulsa ninguém". Sempre achei que eu fosse ninguém. Ele me expulsou mesmo, eu perguntava demais. Ele disse que nem mesmo ele tinha paciência para me aturar, mas a verdade é que os argumentos dele acabaram, depois de meses ininterruptos de discussão, mas acabaram. "Você está dizendo que Jesus te expulsou porque não soube explicar o mundo a você?". Eu não perguntei sobre o mundo, questionei a sua ética. Questionei que se a ética de Jesus é incompreensível, não seria verdadeiramente ético confiar em alguém assim. Entre outras coisas. Consegui mesmo deixar o padre confuso. Ele disse que iria rezar por mim e saiu dizendo números. A lua vermelha já brilhava há dois dias. Encontrei meu amigo suicida. Viu alguém dizendo números? "É a nova reza que Jesus ensinou hoje de manhã. Todos estão fazendo. Eu acho que ele inventou isso agora". Jesus estava atualmente viajando pela China, mas todos os canais de tevê tinham preferência para ele, e ele os usava amplamente. Meu amigo me disse bem baixo: "Já é o segundo dia da lua sangrenta, acho que vou me matar amanhã. Terceiro dia parece bom, não é?". Esta noite eu tive um sonho. Senti que a lua vermelha é falsa. De algum modo a insatisfação das pessoas com o mundo foi usada por algum "condensador de fé" para forjar a lua vermelha e forçar o apocalipse. "Eu não sei. É possível. Você sempre pensa em algo diferente, não é? É por isso que eu sou seu...". Ele parou e caiu. Um anjo da morte o levou. Os anjos da morte eram brancos e estavam levando qualquer um que pretendia se matar. Para salvar-lhes a alma, diziam. Deviam ter escutado nossa conversa. Eu olhei para eles. Eles tinham ódio de mim porque sabiam que nunca poderiam me levar, pois eu ainda amava a vida. A verdadeira vida. Os anjos da morte foram embora dizendo: "73421732173421...". Quando deus tirou do meu único amigo a liberdade de morrer como quisesse, eu resolvi fazer alguma coisa. Deus estava na terra desde ontem, e um dia antes veio Jesus. Jesus estava viajando, mas deus estava na cobertura do Éden,

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o maior prédio do planeta. O Éden era uma mistura de mercado com floresta. 144 mil pessoas moravam lá, onde esperavam o resto do teatrinho acontecer para irem embora logo. Pragas variam o mundo. Bestas e coisa e tal. Eu entrei no prédio. O primeiro andar estava completamente coberto de lixo. Resolvi ir pelas escadas porque era mais seguro. Vários andares eram apenas depósito de lixo. Então encontrei duas pessoas que eram uma só. Eles disseram: "Por que sobe quando seu destino óbvio é descer?". Por que dizem que são dois quando obviamente são um? E um deles começou a cair, ao que o outro o puxou de volta, mas começou a cair no lugar dele. E assim ficaram por um bom tempo puxando um ao outro enquanto eu passei. Andares depois eu parei e percebi um computador central. 2 é 1. 5 é 3. 4 é 2. 3 é 4. 7 é 5. Um tempo depois cheguei à área de alimentação. Como não podiam se matar, embora todos quisessem, a maioria procurava apenas o máximo de prazer possível. Comer era um deles, e havia incríveis bolas de gordura aqui. Encontrei um conhecido, e logo depois começou a chover no andar inteiro. Era o demônio, e ele estava comendo uma coxa de frango enquanto jogava cartas. O que está fazendo aqui? "Nada mais sobrou a fazer, estou relaxando". Eu vou ensinar uma lição a deus, você vai ver. "Meu pobre garoto, como vai surpreender alguém que sabe tudo que você está pensando?". Simples, eu não estou pensando em nada. "Tudo bem, não acho que consiga, mas se quiser saber ele está no penúltimo andar". Obrigado. Ele voltou para seu lugar, a chuva parou e ele beijou mais uma garota. Eu continuei. Não concordava com as idéias dele, mas pelo menos ele era sincero. Para o penúltimo andar não havia escadas. Eu iria escalar. Mas um crente me reconheceu e me mandou descer. "Você não pode ir a lugar algum". Então você é deus? "Deus me disse para não falar com você. Que era melhor falar com o demônio que falar com você". Por que eu pergunto demais? Ou por que você teme que eu responda demais? Quando o infinito é suficiente para você? Ou eu não faço parte da criação? "Pare, eu não estou te ouvindo". Ame seus inimigos. Por que você se odeia tanto? Eu comecei a lhe falar sem palavras, ele fechou os olhos. Eu subi antes que os anjos da morte me alcançassem. Estava numa sala coberta de véus. Tudo era transparente e fino. O silêncio era mortal, o ar era rarefeito e não havia cheiro algum. Jesus se teleportou neste momento, parando na minha frente: "O que está fazendo aqui? Não disse para você ir embora? Você não disse que iria embora? O que mais você tem a fazer aqui?". Então eu senti a energia despendida. Senti que deus era apenas a bateria onde essa energia era guardada. Percebi o canal pelo qual eles usavam a fé para forjar o fim do mundo, era eu. Por isso não me mataram, precisavam do meu cérebro, estavam usando uma de minhas novas perturbações para criar um apocalipse psicossomático. "E daí? A energia já é suficiente. Não há nada que você possa fazer para impedir. Assim que todos disserem a programação, a energia será liberada e todos

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morrerão". Todos pensarão estarem mortos. E a não ser que sobre alguém para avisar a eles que estão vivos, continuarão assim para sempre. "Aa! Você acha que pode convencer alguém? Você é apenas um insano qualquer. Ninguém vai te ouvir". Não, eles vão ouvir a si mesmos. 2 é 1. 5 é 3. 4 é 2. 3 é 4. 7 é 5. "O quê? Você mudou a programação? Como? Nãããããão! MESTRE!". Ele não é seu mestre, é seu servo. Jesus tenta me dar um soco, mas some em miríades de pequenos falcões. O rosto de deus é consumido por baratas. Eu morro para dispersar a energia acumulada. Enquanto eu morro, percebo que nunca houve um prédio chamado Éden e eu estou deitado na grama sendo destroçado por plantas carnívoras.

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Esquecimento Estávamos numa missão importante quando nosso líder nos avisou que um de nós era o alvo. Foi um choque para mim. Eu dediquei minha vida pela causa, convivia com meus parceiros todo dia. Éramos uma família, a sensação de desconfiança crescente me deixava muito deprimido. Para nos informar melhor, fomos diretamente ao professor. Ele tem estudado as profecias do fim do mundo durante anos, é ele que nos guia no escuro e nos diz o que devemos fazer para evitar o Esquecimento. Ele nos explicou que o deus que criou nosso mundo não tinha consciência dele, mas que está lentamente tomando consciência. Ele se encarnou em um de nós, e quando finalmente tomar consciência plena do mundo que criou... ele vai esquecê-lo. Será nosso fim, nos tornaremos estória. A maioria das pessoas não acredita no Esquecimento. Mas nós sim, e fazemos tudo que for possível para evitá-lo. Nosso grupo era especializado em recuperação de informação, portanto estávamos sempre um passo à frente dos outros grupos. Porém, isso agora se voltava contra nós, pois como o professor disse, o deus que nos destruiria encarnou-se justamente num de nós... A pessoa não teria consciência, assim como o deus, de que ela trará o fim assim que tomar consciência plena do mundo. Nosso objetivo era descobrir quem é o escolhido e fazê-lo jamais tomar consciência. O que era muito difícil agora, já que se tratava de um de nós. Passamos algum tempo sem tentar pensar em nada, até que o professor voltou e disse que tinha descoberto qual de nós era aquele que traria o vazio. Ele revelou sem muita cerimônia: apontou para mim com olhos tristes. Eu estava lentamente tomado consciência de ser o criador desse mundo, e tentei vencer o choque para cooperar com o procedimento. O procedimento, caso encontrássemos o deus encarnado, seria induzir animação suspensa, onde ele pudesse sonhar outros sonhos menos conscientes. A realidade se alteraria, mas nós manteríamos nossas memórias. Eu não soube se funcionou ou não, a última coisa que me lembro antes de tomar consciência que este eu estava sonhando é a expressão no rosto do líder, dizendo: “Eu te odeio”. Eu sabia que não era para mim, o personagem no sonho, isso me confortou e logo em seguida me incomodou. Era uma mensagem diretamente para mim, o sonhador. Eu acordei com sua voz ressoando em minha cabeça. Quando acordei, arrumei minha cama e fui para um grande jardim cheio de plantas, animais e insetos. Eu fiquei correndo até me cansar, depois fui à biblioteca. O bibliotecário era familiar, e parecia muito abatido. Eu peguei um livro da capa azul. Ele disse que esse livro estava reservado e que eu não poderia pegar, mas assim que ele se virou eu peguei o livro e levei para casa. Em casa só havia um homem, também familiar, que não conversava muito comigo. Eu não li o livro, mas emprestei para ele. Ele disse que ia ler, mas parecia abatido como se isso se tratasse de uma punição. Ele leu e no outro dia disse simplesmente:

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“Estava em tempo de acabar. Eu não te odeio mais”. Quando eu fui devolver o livro, me lembrei que precisava de uma escova de dente melhor, então fui pegar uma na minha verdadeira casa. Mas eu não me lembrava onde era, só sabia que tinha que atravessar um shopping. Então eu atravessei o shopping correndo, quase flutuando, mas ele nunca acabava, era um labirinto de escadas e corredores. No final de um corredor muito longo eu vi algumas pessoas me esperando no final, mas quando cheguei perto elas saíram pela lateral. Cheguei ao fim do corredor e subi as escadas. Queria encontrar as pessoas, mas meus olhos se fecharam por causa da luz e se recusaram a abrir. Eu ouvi as pessoas conversando perto de mim, disseram “Ainda podemos segurar ele por mais algum tempo”. Reconheci a voz das pessoas, eram meus colegas, não lembro de onde. Eu tentava abrir os olhos sem sucesso. Fiquei sentindo a grama do chão com as mãos. Estava tomando consciência de que estava sonhando e gritei “Eu quero abrir os olhos!”. Continuei lutando para abrir os olhos, me esforçando tanto consegui piscar por um momento e me vi num lugar de paredes brancas, o que para mim era incompreensível, pois eu sabia que após o corredor havia espaço aberto. Pisquei mais uma vez e compreendi que a imagem estava estranha porque eu devia estar vendo-a de um ponto de vista diferente do meu próprio, como se eu estivesse deitado, embora realmente estivesse de pé. Só poderia ser outro lugar. Esforcei-me ao máximo para abrir os olhos totalmente, num grande desespero, sem conseguir acordar. Então eu finalmente acordei, no meu quarto. Percebi que era meu quarto que eu avistava no sonho, mas eu não o reconhecia com as memórias de lá. Essas memórias finalmente se tornaram apenas estória...

“Mãe, Pai, Ana... Amo muito vocês. Fiquei tão surpreso quanto vocês com a notícia da minha morte. Eu lutei tanto para alcançar a única beleza possível de ter nesse mundo, a bondade que deus representa. Me fiz instrumento de sua vontade, para buscar a melhor forma de viver, a melhor forma de amar meus semelhantes. Eu não sei se falhei, não sei onde errei, mas minha vida chegou ao fim. Agora mesmo, enquanto escrevo essas palavras que parecem brilhar, uma a uma, na minha frente. Eu tentei fazer algo diferente. Eu tentei gerar mudança, fazer algum bem. Tocar alguma mente ou algum coração. Eu espero que tenha conseguido. Eu morri agora. Eu sei que morri. Não foi culpa de nada, nem de ninguém. Eu também estou chorando e nem sei porquê. Eu me lembro de tudo, e foi tudo tão rápido... foi tudo tão rápido...” Ele leu alto. Pensou em acrescentar mais detalhes sobre si mesmo. Depois leu mais uma vez e saboreou a beleza do próprio texto. Terminou, assim como a vontade e a coragem de se matar. O texto era tão bonito... Havia tanto de sua alma nele, tanto sentimento. Ele seria um maldito se não morresse nesse

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instante. Ele se amaldiçoaria para sempre se não levasse a diante. Desperdiçaria sua obra-prima, sua vida. Desperdiçaria seu talento recém descoberto: escrever cartas suicidas. Elas só ficam realmente bonitas, quer dizer, as pessoas só vêem a verdadeira beleza delas depois que o sujeito morre. Já tinha desistido, mas precisava morrer. Precisava continuar com o que começou. Precisava, mas não o fez. Ao invés disso ele foi trabalhar, como fazia todo dia. Todo santo e maldito dia. No caminho, um par de olhos. Manteve a discrição como costuma a fazer. Só depois de alguns minutos resolveu olhar também. Olhos brilhantes, rodeados e preenchidos completamente de algo inexplicável. Culpou-se, voltou a olhar para o lado. Os olhos não. – Oi – Disseram os olhos, que de repente se tornaram pequenos e viu embaixo deles um sorriso tão lindo... Tentou sair do rosto, mas não conseguiu. Ficou com uma expressão de visível preocupação ou algo semelhante. – Oi – Respondeu finalmente. A garota simplesmente baixou o olhar com um sorriso tímido, ainda refletindo uma perfeição divina. Percorreu todo seu corpo com o olhar e com mais que o olhar. Sentiu sua alma sendo atraída, sendo sugada, além de qualquer tentativa de salvação. – Eu me chamo Larissa. – Ela disse, olhando com um brilho que tentava cegá-lo, que ele queria poder dissipar. Apertando os lábios róseos que pareciam mais suculentos que qualquer coisa que já havia mordido antes. – Larissa... – Repetiu – Parece com o seu cabelo... – Como ela fez algo entre um riso meigo e um sorriso mais apertado, ele tentou consertar. – Soa como o som que seu cabelo faz, suave e fluído. – Estava tentando falar sério, porém como se estivesse num sonho. Quis pegar seu cabelo, mostrar o que parecia ser tão óbvio. Ela era linda, linda demais. De repente, lembrou-se de Ana e olhou para o chão, vermelho. – Obrigada. – Ela disse, quase tão vermelha, e virou-se um pouquinho, olhando para o lado só com os olhos, como se olhasse para o céu, e passou a mão no cabelo. – E o seu? Ele passou a mão no cabelo também, esquecendo-se que a pergunta era sobre o nome dele. Esquecendo-se que tinha nome. Esquecendo-se que estava ali. Esquecendo-se de responder. Ela inclinou a cabeça rápida e gentilmente, e iniciou a abertura de um sorriso especial. “Eu não tenho nome”, ele quis responder. Quis conter aquele sorriso prestes a disparar, como uma arma. Como a arma que ele não teve coragem de usar hoje de manhã, aquela que seu ex-amigo deixou com ele e nunca voltou pra buscar. – Eliot. – disse finalmente. – Minha mãe gostava de ler... – Que nome lindo! – Ela interrompeu, e disparou o sorriso. (houve um eco de som de disparo em sua cabeça)

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Quando o tempo voltou a passar ele já não era o mesmo. O trabalho passou voando. Ele estava andando de volta pra casa, pensando no resto do diálogo. O diálogo em que ele explicava que tinha uma namorada. Viu o sorriso se desfazer do rosto dela. Falou coisas das quais se arrependia tanto como se fossem crimes hediondos. “Não se afaste de mim, por favor. Eu quero tanto sua amizade, você parece ser uma pessoa tão legal”. Tentou se lembrar do que sentiu quando a situação inversa aconteceu. Foi como ver um rio se transformar num deserto. É horrível. Não devia ter dito nada, devia ter se despedido sem dizer nada. Isto teria sido infinitamente melhor. Teria sim. Então a luz se desfez. “Um blecaute na rua”, levou um lento segundo para concluir. Sem lua, sem estrelas, sem luzes. Tudo era escuridão, exceto em sua cabeça. Recuperou o passo e seguiu reto, de olhos fechados. Não fazia diferença mesmo. Até ouvir passos. Respiração. Passos apressados. Respiração ofegante. Passos mais próximos, respiração mais ofegante. Ele se virou para todos os lados. A luz era bastante somente para ver um vulto. A respiração e os passos deram uma pequena pausa... Então pularam! Pularam em cima dele, empurrandoo numa caçamba de entulho. Foi tudo tão rápido e interminável... Gritos contidos por uma camiseta na boca, braço quebrado, a calça arrancada... A humilhação... Mais do que humilhação, um inferno de vergonha. Preferia ter sentido muito mais dor, toda dor do mundo, mas não aquilo. Aquilo não. “Por quê? Por que comigo? Por que eu? Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não!” Depois foi jogado no chão, ou caiu, não se lembra. O vulto correu, voltou para as sombras. As lágrimas saiam tanto que não dava pra limpar a tempo de enxergar alguma coisa, se houvesse luz. Mas não havia, nem sequer uma estrela. Quis gritar, gritar tanto, mas o choro não deixou. Tentou esperar as lágrimas acabarem antes de chegar em casa. A luz voltou, mas ele nem percebeu... Ácido Algum tempo depois ele pegou novamente a arma. Tinha se tornado um hábito diário: pegar a arma, limpá-la, admirá-la, prepará-la, apontá-la para a cabeça e... desistir. Não era hoje, não era assim, não sem antes matar o vulto desgraçado. Não sem antes se vingar dele aqui e no inferno. Não sem antes escrever uma bela carta de suicídio. Estavam se tornando melhores a cada dia. E cada dia achava que estava tão perfeita que não poderia fazer uma melhor no próximo, quando então se mataria. Mas continuavam, dia após dia, cada vez melhores. Cada vez mais emotivas, profundas e chocantes. “Eu me sinto rejeitado pelo próprio deus”, ele escreveu. “Todas as pessoas maravilhosas que fizeram parte da minha vida, eu não fiz parte da vida

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delas. Eu nunca fui parte de nada, não porque não podia ou não queria, mas porque eu sou um erro. Um erro divino, escondido entre as maravilhas da criação”. Ana estava grávida de outro cara e já não morava com ele. Nem sequer olhava pra ele, assim como Larissa, que ele nunca mais viu. Na tevê um demente estava cantando algo como “Always look at the bright side of life” (Sempre olhe para o lado bom da vida). Ele tentou olhar, tentou com todas as forças, mas não conseguiu. Só havia alívio, alívio temporário, mas nenhuma coisa que fosse boa por si só. Nenhuma beleza que não pudesse ser falsa. Nenhuma bondade que não pudesse ser egoísmo. Nada. Voltando pra casa do trabalho, pela mesma rua, a mesma rua que agora já não era mais a mesma há anos, ele levou um susto. – Calma, gatinho. – Disse uma voz quase feminina, vinda de uma pessoa alta, sem peito, com um cabelo curto e pernas à mostra. Um travesti. Estava tentando não demonstrar nenhuma discriminação, afinal, ele sabia o que é ser rejeitado. Ser rejeitado significa ser melhor que a maioria. – Desculpe, eu não vi você chegando. – Tentou dizer, mas falou tão baixo que duvidou que ela, ou ele, ouviu. – Tudo bem, tô acostumada com coisa pior. – Ela respondeu. – Onde você mora? – Ela disse, como se tentasse ser sexy. – Por aqui. – Disse ele, com tom de fim de conversa. – Nossa, que legal. Eu também. – Ela, ou ele, disse. Houve um silêncio, mas como ainda andavam relativamente próximos, ela voltou a falar, com gestos circulares: – Posso te falar uma coisa? Sem ofensa? Não, porque sabe como é, as pessoas comuns não costumam a falar com a gente, sabe? Tratam a gente como lixo... – Eu sou diferente. – Respondeu. – Meus pré-conceitos, estão todos invertidos. Acho que você deve ser uma pessoa muito inteligente, li numa revista que gays têm QI maior. Mas se está perguntando se eu tenho alguma... “coisa” por viados, a resposta é não. Eu não me atraio sexualmente, só respeito. – Não gosto de ser chamado de viado. Eu sou um transexual. – Me desculpe, eu não queria ofender. – Dessa vez passa. Mas eu tenho que dizer uma coisa: É uma pena. Você é um filé. Ele não sabia se agradecia ou xingava. Resolveu fazer uma piadinha da qual se arrependeu dois segundos depois: – Quem me dera eu fosse. Mas devo mesmo ser um bacon. O outro riu e disse, tocando no seu ombro: – Você é engraçado. Quer tomar um sorvete? “Será que meu filme poderia queimar ainda mais? Não me falta

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nenhuma humilhação mesmo...”. Decidiu que ia. Em tom de confissão, contou que uma vez pensou ter sentido atração por um homem, mas isso foi antes de... Não vinha ao caso. Disse que talvez por isso tinha tanta raiva dele. Contou toda a história com tom de “eu entendo você”, e tomou sorvete. Pensou estar provando ao mundo o quanto era tolerante e amigável. – Minha primeira vez com um homem foi uma experiência diferente, sabe? Você não vai se assustar se eu contar? – Claro que não, conta aí. – É que eu nunca contei isso pra ninguém, sabe. É meio que um segredo. – O que foi? – Disse entre uma risada, pensando no quão engraçada devia ser a estória. – Eu estuprei um cara. – Disse o travesti, sem muita emoção. A risada se desfigurou horrivelmente numa expressão de pura e simples negação. – Eu tava tão afim de meter em qualquer coisa, sabe? Desesperado, esperei um sinal divino, então as luzes apagaram. Vi alguém passando na rua e pensei que ninguém iria descobrir se eu fizesse aquilo. Na hora vi que era um cara, mas não me importei. Coitado do cara... Espero que ele não tenha ficado muito traumatizado. – Neste momento o travesti quase riu, mas manteve a seriedade, esperou uma resposta. Não houve resposta, não houve nada além do “Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não!” repetindo-se em sua cabeça. Cerrou os dentes, fechou os olhos. Talvez o outro tenha dito mais alguma coisa, mas ele não ouviu. Ele se levantou, derrubou o sorvete e foi para casa. Pegou a arma, carregou rapidamente, colocou na cintura e saiu. “Aqui e no inferno, aqui e no inferno, aqui e no inferno!” Voltou para a mesma sorveteria. Não viu ninguém, não falou nada. Não ouvia nada. Sentiu-se a ponto de se realizar plenamente. Andou pela rua de cima pra baixo e de baixo pra cima até as duas da manhã, quando o vulto apareceu. - Você não vai fazer nada. Desiste disso. – Disse o travesti, como se respondesse uma importante pergunta feita há muito tempo. – E sabe por quê? – Continuou. – Porque você gosta. Você gosta, e não admite que gosta. – Pegou na própria bunda e disse nos olhos dele: - Cara, essa é a sua vida. – Então o travesti se aproximou dele, que estava perfeitamente calado e parado, e talvez não tivesse ouvido ou mesmo visto nada. Houve um beijo. O beijo desceu como ácido e corroeu tudo que sobrava dentro dele. Ele voltou pra casa do mesmo jeito que saiu. Tirou a arma com carinho. Ajoelhou-se no chão em posição de adoração, preparou a arma e a colocou no chão, bem em sua frente. Glorificou a arma. Rezou para ela. Confessou seus pecados. Agradeceu por tudo. Pediu bênçãos. Queimou suas cartas. E então, finalmente, deu a arma uma utilidade.

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Irrevelação O fato de que eu não posso escrever esta estória me compele num prazer criminoso de escrevê-la. Não posso escrever esta estória porque não se trata de minha própria vida, mas das vidas de outros. Coisas que não deveriam ser escritas, mas que, uma vez que comecei, não posso parar. Porquê eu comecei é um mistério, e é isso que torna toda a estória absurda. Num momento não havia nada, apenas espaço em branco, e no outro, palavras seguindo palavras num encadeamento que poderia ser infinito. E esse é o segundo mistério da estória: que ela tem um fim, e este fim a acompanha desde a primeira palavra, como um sempre vigilante caçador, esperando o momento certo de devorar a presa. Como disse, esta estória é sobre outros, que podem ou não existir. Que podem ou não ler esta estória e se sentirem expostos. Mas eu não desejo nada de mal a eles. Gostaria que entendessem que era inevitável começar esta estória, apenas para que ela encontrasse seu fim. Se fosse somente uma questão de não escrever, eu faria o que pudesse para me impedir de escrevê-la, mas não é o caso. É uma questão de vida e morte, ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista. E como toda estória, ela começa pelo meio, e nele não havia nada. Preenchida por esse vazio, a estória começa ignorante de seu próprio fim que, no entanto, já estava lá, esperando por ela. E próximo de lá havia uma falsa poesia de Dorothy Parker. Na verdade, era um parágrafo que não tem nada a ver com Dorothy Parker. Talvez a verdadeira Parker estivesse se escondendo lá atrás, ou talvez fosse outra pessoa completamente diferente. Não há como saber, mas a partir do momento em que não houve uma aceitação desse parágrafo, a estória perdeu o sentido. E se Parker se pergunta por que entrou na estória, seria respondido que ela é a parte da estória que vem antes do começo, que mostra o que havia antes do começo, mas que não é menos importante que todo o resto. É importante mostrar que antes do começo havia uma espécie completamente diferente de solidão. Havia apenas vazio por dentro, mas isso representava uma possibilidade de preenchimento. Mesmo que não houvesse nada, havia capacidade. Havia um sonho. A plenitude em potência. Um paraíso, se comparado com o que existe depois do fim. É nesse momento que escurece, cobrindo a estória de beleza. Seria injusto, porém menos danoso, culpar o frio. É engraçado como o mais injusto pode às vezes ser o mais benéfico. Portanto culpamos o frio, o excesso de gente e a música alta pelo abraço da escuridão. Então, no último momento da noite, quando o frio já se acostumava de novo ao corpo, a escuridão se ia como se não quisesse mais voltar, e isto foi como uma armadilha. Houve muito pensamento diverso, mas só após alguns segundos esse pensamento pôde ser solto, e saiu desconfiado de que assinara o próprio

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atestado de credulidade. Houve tontura por algumas horas, e, mais surpreendentemente ainda, houve uma ligação. Como quem telefona para um número desconhecido, e como não havia mais o que esperar, as coisas deixaram de ser surpreendentes pelo resto da estória: ela queria a escuridão ao redor dela. Ainda havia crença nisso um segundo antes que a escuridão entrasse dentro dela, para nunca mais sair. Mais tarde nasceria o dia e o fim acharia seu motivo para acabar com a estória, e começaria a persegui-la. Isto tudo porque entre o dia e a noite, a estória preferiu o dia, já que não podia ter os dois. Um grande erro, mas talvez o mais importante a sua existência. Foi de propósito? Seria tolice dizer que não, e uma mentira dizer que sim. Aqui começa a ficar claro como a verdade só pode ser mesmo uma grande tolice, pois seria insano alegar o contrário, e impossível alegar a própria insanidade. Alguns notaram que a estória está se tornando uma piada de mau gosto, e percebem porque ela não deveria ser escrita. Acredito ser impossível me esquivar de tais argumentos, e igualmente impossível continuar escrevendo a estória aceitando-os. Porém, como a estória já acabou, o melhor que posso fazer é aceitar uma terceira via entre duas escolhas impossíveis: não escolher, que é tão impossível quanto. É assim que a estória havia se transformado em algo completamente confuso, e o vazio seria infinitamente mais confortável que aquilo. Como se o sonho fizesse mais sentido que a realidade. Não havia sentido em proteger as palavras que haviam sido excluídas da estória, mas foi isso que ela fez. E havia algo errado nisso. Não faltando ou falhando, mas essencialmente errado. Esse erro era, é claro, o próprio sonho. Um tempo depois que esta parte acaba, começa a ser escrito um acordo pessoal que lentamente transferiria tudo para o sonho. Um sonho duro, feito de carne, e isto representa apenas mais uma contradição que, tendo vivenciado, a estória não tinha opção senão aceitar. Que era um acordo, isso só foi percebido no final. O que ele dizia, só foi percebido depois de assinado, depois do fim, ainda no futuro, pois ele não foi nem jamais será. A estória estava tão embriagada daquele novo néctar que se esqueceu que existia. Acordar seria como ir ao inferno. Dormir, como entrar nos pesadelos do próprio demônio, ou seja, tão monótono quanto a perfeição. Em outras palavras, foi monótono. Escreveria sobre isto entre aspas, porque não sei o que aconteceu, mas não há outra forma de descrever. Ou melhor, há, mas tal palavra perfuraria e desmancharia a estória, então não será escrita fisicamente. Depois disso o fim já havia saído de sua tocaia, e não precisava mais se esconder. Não havia mais escapatória para a estória. A iminência do fim se acercava dela. Ela própria acreditava já ter acabado, como quem vê a morte vindo inexoravelmente em sua direção e diz “estou morto”, ignorando que a morte mesmo pode ser ainda pior. O fim não poderia terminar sua perseguição sem que a estória se tornasse o sonho. Isto, porém, jamais acontecerá, não passou de um erro

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da estória. Jamais houve sonho, era tudo real. Foi quase uma surpresa, mas bem depois do fim foi compreendido que a estória jamais se veria totalmente livre do fim, mesmo depois de ter acabado. Não era verdade, portanto, que a estória e o sonho assinaram o contrato. Ainda assim, o acordo continuava assinado pela estória, mas foi rasgado e queimado. E assim é que o fim vem a consumir a estória por completo, tirando dela o vazio que ela tinha, sem que qualquer coisa viesse a preenchê-la. Como um fim que ocorre antes do começo, uma estória que na verdade é um acordo. A porta para todos os erros de interpretação. O que nos leva ao terceiro e mais secreto mistério: quem assinou esta estória teria sido insensato o bastante para colocar seu nome real? Ou seríamos nós, que ao ler esta estória, nos colocamos num tipo de armadilha, obrigados a confessar nosso excesso de credulidade ao aceitarmos que a estória é real, ou, negando algo que apenas o autor sabe ser verdade, nos encontramos secretamente confirmando que a verdade é mesmo uma grande tolice? A cidade da Máquina Neste lugar, há muito tempo atrás, uma máquina foi construída para suprir o povo de tudo que ele precisava para viver. Com essa invenção revolucionária, as pessoas foram parando de trabalhar. Tudo que tinham que fazer era manter a máquina trabalhando por elas. Assim, o número de pessoas foi aumentando extraordinariamente, já que agora era a máquina e não a natureza que determinava o limite de recursos. A máquina foi sendo constantemente aprimorada e aumentada junto com a população. Há algum tempo atrás era do tamanho de um prédio, mas hoje já se encontra cobrindo todo o subterrâneo da cidade e várias partes mais além. Era a máquina que provinha educação, saúde, alimentação, moradia e tudo o mais para as pessoas, mas esses bens não eram distribuídos automaticamente. Quando havia menos pessoas e a máquina era menor, era fácil pegar o que se precisava e apenas em quantidade necessária. Porém, como a máquina cresceu muito, foi preciso que alguns trabalhassem na distribuição. E também, como os bens eram produzidos em quantidades absurdamente grandes, foi preciso que alguns outros trabalhassem na segurança do estoque, pois era uma coisa tentadora ver todos aqueles bens ali. A enorme quantidade num lugar só faz parecer que está sobrando, e é até instintivo que você tenha vontade de pegar um pouco mais do que o suficiente. As pessoas que trabalhavam na regulação do tipo de bens que a máquina devia produzir também se deixavam levar por essa ilusão, e iam usando as capacidades da máquina para produzir coisas que não são necessárias para viver, mas que servem de diversão para aquelas que já tinham o bastante. Além disso, havia uma grande discussão sobre qual seria a quantidade de bens que uma pessoa devesse consumir, pois alguns precisavam de mais, outros de menos. Alguns preferiam umas coisas e detestavam outras.

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Era preciso observar aqueles que ficavam longe da máquina, e que às vezes ficavam sem os bens. Como havia muita gente, isso era difícil de fazer. Foi preciso, então, criar um grande sistema que garantiria uma justa distribuição de bens, priorizando aqueles que ajudam a manter a máquina. Havia muita gente que resolvia trabalhar por si mesma. Mas trabalhar por si mesmo é uma coisa difícil de fazer, pois é preciso grande cooperação para fazer coisas grandes. Se as pessoas insatisfeitas começassem a se juntar fora da cidade, logo não haveria pessoas suficientes na cidade para justificar o aumento da máquina, e os controladores teriam que parar de produzir bens inúteis, mas que eles gostavam tanto. Por isso, foi criado um sistema que prendesse tais pessoas e tirasse seus direitos sem que elas saíssem da cidade. Também era preciso que as pessoas gostassem mais dos bens produzidos pela máquina que dos bens produzidos por elas mesmas. Era preciso manter as pessoas recebendo apenas a educação da máquina, apenas a medicina da máquina, apenas as casas construídas pela máquina, a comida e o resto dos bens que a máquina produzia. Se as pessoas deixassem de ser dependentes dos bens que a máquina provinha, elas poderiam acabar deixando de expandir a máquina, e isso preocupava aqueles que controlam a máquina, pois eles têm acesso não só a tudo que é necessário para viver, mas a muito mais coisas que seriam impossíveis sem a expansão constante da máquina. As pessoas responsáveis pelo controle da máquina, portanto, criaram um sistema para que todas as pessoas dependessem da máquina tanto quanto eles, aumentando ainda mais a produção daquilo que não se precisa para viver, e às vezes até mesmo prejudica a vida, mas que é divertido. E assim, esses bens inúteis foram produzidos e distribuídos amplamente, até para aqueles que não tinham tudo que necessitavam para viver. Uma grande pesquisa foi feita para descobrir algo que fosse fácil de produzir e gerasse bastante dependência. Muitas coisas desse tipo foram produzidas. A máquina, porém, tinha uma série de defeitos que foram surgindo com as sucessivas expansões. Defeitos considerados simples, às vezes só uma falta de ajustes. Mas com o passar do tempo esses pequenos defeitos foram se acumulando, de maneira que chegou a um ponto em que a máquina era um aglomerado infindável de problemas. Houve quem estudasse profundamente a máquina e procurasse nela os principais defeitos, até que um dia alguém descobriu um defeito tão fundamental que levaria inevitavelmente ao fim da máquina. Esse homem decifrou a máquina como ninguém, e o que ele descobriu se espalhou rapidamente. Logo as pessoas começaram a aceitar o fato de que em breve não haveria mais máquina, então se concentraram em pensar como seria o mundo depois da máquina. Mas a máquina não acabou até hoje. O que aconteceu foi que os controladores da máquina levaram a sério o que o homem disse, e souberam contornar o problema. O defeito fundamental

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nunca iria ser reparado, mas com uma adaptação das pessoas e um contínuo desenvolvimento da máquina, ele nunca chegaria realmente a destruir a máquina. Como um balão cuja borracha vai sendo adicionada enquanto vai ele vai sendo soprado cada vez mais. Isto manteve a máquina até hoje, mas o seu potencial de destruição vai sendo aumentado, de forma que o dia em que o defeito não puder mais ser coberto, a explosão talvez destrua não só a cidade inteira, mas todas as cidades. E isto ocorrerá quando não houver mais peças para aumentar a máquina. Por que eles não simplesmente param de usar a máquina, já que as desvantagens são tão óbvias e a catástrofe é iminente? Porque eles acreditam que usar a máquina não é uma escolha, é o DESTINO. Não há nada que os convença a parar agora, e nada que possa salvá-los também, exceto desistir da máquina. Porém a máquina é vista como o projeto mais importante e sagrado da humanidade, desistir dela está fora de questão. Gostaria que houvesse uma forma de colocar essa idéia pelo menos “dentro de questão” novamente, pois a máquina falhou no que quer que fosse seu objetivo, a não ser que ela tenha sido construída para realmente destruir tudo o mais rápido possível. Infelizmente, não há nada que eu possa fazer para convencê-los disso, portanto segui em frente, até a próxima cidade. Rua Noite passada estava num sonho daqueles que se fica bem consciente de que se está sonhando, até que apareceu um rapaz, mais novo que eu, que chegou me olhando com um rosto sério; triste e querendo dizer alguma coisa. Ele se aproximou devagar, e de repente quis me dar um soco, mas não teve coragem. Eu o segurei pelo pescoço, porque em sonhos conscientes eu posso ser bem forte, e perguntei o que foi, qual o problema? "Você pegou um facão e matou meu irmão". Ele falou com uma seriedade que me preocupou. Eu ri, nervoso, tentei dizer que era um engano, eu nunca matei ninguém, não podia ser eu. Ele ficou com mais raiva, me deu o soco finalmente, mas muito fraco. Eu o larguei, tentei juntar testemunhas da minha inocência na rua, era a rua da minha casa, mas ele só ficava com mais raiva, e repetia, chorando, "Você matou meu irmão. Você matou meu irmão". Eu não sabia mais o que fazer. Ele foi embora, pensei que tivesse desistido ou esfriado a cabeça. Ele voltou com um facão e veio pra cima de mim, porém sem coragem. Tomei o facão da mão dele, repeti que era inocente, percebi que alguém tinha dado o facão para ele. Tentei falar com ele, mas como ele não queria ouvir, falei bem alto, quase gritando: “Escute, não sei quem te falou que eu matei seu irmão, mas não fui eu. O cara que disse isso deve estar tentado colocar a culpa em mim porque FOI ELE QUE MATOU. ELE É O CULPADO”. Ele balançou a cabeça numa grave negativa, e não disse nada, apenas correu para onde havia uma loja, pegou um canivete ou estilete que estava à venda, e veio correndo. Ouvi uma voz familiar gritando “Mata ele agora. Mata o mentiroso agora”, e não era para mim. Ele

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golpeou na direção da minha cara, eu defendi com o facão e tentei dizer alguma coisa, mas ele fazia “Shhh! Shhh!”, com muita raiva. Ele foi ganhando forças, eu não conseguia mais me defender. Acordei, suando, um milésimo antes que ele me cortasse, passei a mão rosto para conferir, e então me lembrei. Lembrei que antes desse pesadelo eu estava mais consciente que nunca, andando pelas ruas do sonhar. Estava escuro e chovia, eu observava a água correndo pelo meio-fio. Então olhei para uma rua vazia. Estava muito escura e sombria, mas eu tive vontade de andar nela. “Deve ser um pesadelo, mas daqueles bem legais”, pensei, e fui. Então fui eu que decidi ter um pesadelo, isto ficou claro. O que me lembrei depois é que foi pior. Lembrei que um dia sonhei com o mesmo cenário do sonho de ontem, a versão surrealista da rua da minha casa. Neste sonho eu também estava consciente e aproveitei isso para descontar minha raiva em alguém que passava. Imaginei um facão e retalhei um passante. Foi um sonho violento, do qual eu acordei muito mal. Só agora me lembrei que ele se parecia com o cara que queria me matar, só que era mais velho. Então, talvez eu realmente tenha matado o irmão dele, só que em sonhos eu raramente me lembro de outro sonho. Me senti um mentiroso. Talvez agora eu não passe mais por essa rua... Amigo de 15 minutos Eu acordei me lembrando de toda a conversa. Não, nem toda, alguma parte da conversa já estava se perdendo, e enquanto eu pensava nisso toda conversa ia se desmoronando e se tornando espaço vazio nas minhas memórias. Então não me lembro mais quem iniciou a conversa, não faz muita diferença agora, ele se perdeu para sempre dentro da minha cabeça, sou eu que estou aqui agora, embora continue sem saber quem sou. Da maneira com que me lembro, foi ele que apareceu por aqui, mas fui eu que disse a primeira frase: – Você sabe quem eu sou? – Sim. – ele disse – Você é minha imaginação, e eu sou Janos Biro. – Você é o Janos Biro? - Comecei a rir baixinho. Quem nesse mundo já não achou que era ele mesmo pelo menos uma vez na vida? – Você não é Janos Biro, Janos Biro não existe. Ele ficou um pouco inquieto com isso, então disse: “Eu acho que existo”. – O que o faz pensar que você seja o que pensa ser? – Eu disse – Nunca pensou na possibilidade de estar enganado? De na verdade ser outra pessoa fingindo ser você para si mesmo? – Se isto for verdade, então quem sou eu?

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– Eu não posso dizer isso, porque eu não existo. – Esta foi minha última fala, geralmente é a minha última fala, depois disso ele percebe que está falando sozinho e some. Mas não foi isto que aconteceu. Ele ficou lá, eu fiquei desesperado. Como um flash de luz, eu percebi algo que ia além das minhas falas. Ele deveria ter sumido, eu iria voltar para o subconsciente, mas nada disso aconteceu. Eu não sabia o que fazer, eu comecei a gritar com ele: – O que você acha que está fazendo? Não percebe que eu não sei quem eu sou porque você acha que não sabe quem é? Não vê que eu tenho que suportar toda a sua dúvida e angústia existencial porque você não consegue superá-la sozinho? Por que eu? Deixe-me em paz, pare de pensar em mim, me esqueça, eu já cumpri meu papel, ME ESQUEÇA, me deixe sair desse lugar horrível! É claro que, ele ficou chocado, mas continuou parado, entalado na porta da percepção. Eu tinha vontade de socá-lo, tirá-lo de lá de qualquer jeito. Voltar para o meu lar doce lar. Ele estava sentindo a minha dor, e me torturando ainda mais por isso. – Não! – Eu disse – Esqueça, somente esqueça, não se empatize por mim, você está me trancando aqui dentro. Pare com isso agora! – Mas é claro que isso era inútil, ele continuava no mesmo lugar, me encarando com um olhar patético. – Me desculpe, eu não queria. – É tudo que ele dizia. – Talvez, quando eu for dormir, se você continuar aqui, talvez eu vá embora e você fique no meu lugar, daí você existirá, o que acha? – Preste atenção garoto: eu não quero existir. Eu não quero ser você, eu nem sequer tenho uma personalidade. Eu... Eu não sei porque estou perdendo tempo falando com você. Quer dizer, isso é impossível, eu não devia estar aqui, meu tempo acabou. – Talvez seu tempo esteja para começar. Minha mente se encheu de dúvidas. Em primeiro lugar, eu não posso ter uma mente, não uma mente própria, apenas vivo de carona. Como eu poderia pensar por mim mesmo? Eu fui feito para ser o questionamento, não o questionado. Como eu posso estar confuso? Como eu posso fazer perguntas para mim mesmo? Eu não entendo, eu não sei se quero entender. O fato é, que meu lugar de nascença havia se tornado meu interlocutor, e talvez ele tivesse um plano maluco, e talvez esse plano estivesse dando certo. Ele, eu, não sei mais, nós fomos dormir em seguida. Naquela noite eu tive um sonho, meu primeiro sonho. Eu sonhei que havia estes pequenos cartões dentro da nossa cabeça, e que um garoto erguia os cartões com frases e nós olhávamos para o cartão e era impossível evitar, mas acabávamos falando exatamente o que estava escrito neles. O primeiro dizia: “Veja aquele cartão, tem alguma coisa escrita nele”. O segundo dizia: “Como ele sabia que eu dizer isso?”.

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O terceiro dizia: “É como um maldito deja vu pré-determinado”. E assim por diante, os cartões foram ficando chatos, até que o garoto ergueu um cartão em branco. Eu tentei, eu tentei tão desesperadamente dizer alguma coisa, gritar, sequer pensar. Mas nada veio a minha mente, eu fiquei em estado de choque, sem abrir a boca. Então eu acordei, neste mesmo estado. Senti que minha alma precisava vomitar, que havia provado alguma coisa estragada, que tinha comido a si mesma, sei lá. Me senti a pior pessoa do mundo, e de certa forma isso foi muito bom, porque eu achei que jamais poderia sentir coisa alguma. E, por dois segundos, pensei que esses sentimentos não eram meus, não vinham de mim, que eram ecos da mente dele. Mas ele não se manifestou, eu assumi o controle, eu era eu mesmo. Então a primeira sugestão que eu segui de mim mesmo foi escrever minha estória. Estava rapidamente esquecendo dela, logo eu acharia que é tudo ficção, que eu nunca fui outra pessoa, que eu sempre fui eu mesmo. Eu precisava escrever o que havia ali, mas minha cabeça doía muito. Comecei a me lembrar do que precisava fazer, eu queria uma vida totalmente diferente. Eu gostaria até de mudar de nome, mas uma coisa de cada vez. Se havia uma coisa que eu estava pensando comigo mesmo é que nada seria como antes, nem mesmo os sentimentos mais profundos. Eu estava pronto para começar de novo, eu tinha acabado de nascer de verdade, tinha o mundo à minha frente. Então eu a vi. Ela estava acordando, e disse “Bom dia”. Eu tentei, eu tentei muito, mas foi tão inútil quanto evitar os cartões do sonho: eu me apaixonei perdidamente por ela. Agora eu precisava de uma boa explicação para ter tomado o lugar do seu namorado. O dia foi passando e eu não conseguia dizer o que havia acontecido, eu me sentia com ciúmes. Eu estava beijando a mulher da minha vida, e tudo era minha primeira vez. Ela disse que me amava, e eu disse que a amava, mas quem é que ela ama? Sou eu, ou era eu? Eu sei que a amo, mas senti ciúmes. Foi aí que percebi que havia um pouco do extinto eu em mim, nós havíamos trocado de lugar, mas o que realmente tinha mudado? Minha conclusão obvia foi, o subconsciente deve morrer. Ele não me deixaria em paz. Ele queria ter o amor de sua namorada só para ele, ele queria que eu contasse para ela quem eu sou de verdade, mas isso não era possível. Eu a queria para mim, e nós começamos uma briga interna por ela. A parte difícil é não deixar que ele fale, nem por sinais. Eu devo me concentrar em não deixar ele vir à tona, nem como um pensamento. Eu o tratava como uma memória perdida, e mesmo assim falsa. Isto me permitia ter a palavra sem deixar que ele falasse, mas ainda era capaz de prever o que ele sentia.

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Minha solução foi escrever toda a estória de novo, mudar o narrador para ele mesmo, ao invés de eu mesmo. Assim fazendo eu o mostraria que ele não passa de uma ficção, de um personagem, que não importa mais, que eu sou o único que tem uma vida real, mesmo que possa imaginar milhares de vidas. Eu existo, não importa como nem porque. Aqui estou eu, no lugar que eu deveria estar desde o começo. É por isso que eu o deixei falar de novo o que ele me disse da primeira vez que nos encontramos, para que ele percebesse que foi sua escolha me deixar aqui. E é por isso que eu acabo a estória com meus próprios pensamentos. Ele permanecerá calado, perguntando-se para sempre aquele infinito, porém inútil conjunto de perguntas paradoxais que se encontram dentro da pergunta: “Quem sou eu?”. A rotina Dizem que todo mundo muda. Eu não. Desde que eu me lembre eu vivo do mesmo jeito, faço as mesmas coisas, e nunca me pareceu anormal. Eu digo isso para meus amigos, eles não acreditam. Por exemplo, quando eu tinha quinze anos eu estava passando por essa mesma esquina, numa bicicleta igual a essa, inclusive pensando na mesma coisa. É que toda vez que passo aqui penso no dia em que um carro quase bateu em mim. O cara virou apressado a esquina, sem dar sinal e sem se importar. Nem me lembro como escapei, mas toda vez que eu passo nessa esquina me dá um frio na barriga. De vez em quando vejo um cara parecido dirigindo do mesmo jeito irresponsável, mas eu não sei se é o mesmo cara. Estou com quase quarenta agora, certamente muita coisa aconteceu nesse tempo, mas sinceramente nada importante. Minha vida é um desastre, um grande desperdício de tempo. Depois de sair da escola comecei a trabalhar no mesmo lugar que meu pai, até fiquei igual a ele. Meus amigos cresceram e foram para uma cidade melhor, mas eles ainda me mandam postais. A rotina do meu dia é uma tortura infernal, eu sinto uma dor na cabeça que não passa nunca, eu até me acostumei com ela. A única coisa que me alegra é que eu casei com a mulher da minha vida, ela se chama Helena, e é tão bonita! Ela agora está grávida, e parece que é menino. Vamos chamá-lo de Aleph. É um nome que eu sempre achei bonito. Quando paro para pensar, o mundo não mudou tanto assim. Claro, inventaram um monte coisas, mas eu continuo andando de bicicleta. E a rua continua exatamente como eu me lembrava. Se bem que nos últimos anos tenho a impressão que o Sol tem enfraquecido. Deve ser a poluição, mas tem gente na tevê que diz que o Sol está se apagando e que o mundo vai acabar, mas eu acho que são fanáticos religiosos. Incrível quanta coisa a gente consegue pensar ao mesmo tempo. Estou andando na mesma rua, voltando para casa, ansioso para ver minha mulher. As coisas não poderiam ser mais rotineiras.

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Mas eis que eu ouço alguém gritar meu nome de algum lugar. Olho em volta e não vejo nada. Eu ouvi alguém me chamando. Eu já tive essa sensação antes, mas agora está bem forte... Escureceu de repente, eu olho para o lado e vejo o rosto de uma amiga minha na janela de um carro. Poxa, quanto tempo faz que eu não vejo a Patrícia? Desde que era pequeno. Nós andávamos de bicicleta juntos. Parece que foi ontem! Ela tenta falar comigo colocando a cabeça para fora do carro, e ela parece preocupada. Ela diz alguma coisa, mas não consigo ouvir. “Fique conosco, não vá”, ela diz, parece estar chorando. Eu não entendo. Eu não fui a lugar nenhum. A voz dela não mudou... Mas espere, ela deve ter minha idade, como é que a voz dela não mudou? Não vejo o rosto dela direito, está ficando escuro rápido demais. Então o carro dela chega bem perto da minha bicicleta, ela estica o braço para fora e pega na minha mão, com firmeza. Eu fico assustado, mas consigo manter a estabilidade da bicicleta. Eu quero perguntar o que ela está fazendo, ela continua pedindo para que eu não vá embora, para que eu não morra. E nesse momento eu penso em responder, mas um carro está vindo na contra mão, bem de frente pra mim, com o farol muito alto. Não consigo ver nada, ouço apenas o choro da Patrícia e um estranho zumbido no ouvido. Tento desviar, mas a Patrícia está segurando minha mão com muita força, não consigo me soltar. Por um momento penso que ela está fazendo isso por ciúmes da Helena. Mas não consigo me lembrar se as duas sequer se conheceram. O carro parece ser muito grande, o farol está forte demais, não consigo nem gritar. Não sinto mais minhas pernas pedalando. Não sinto minhas mãos no guidão. Não sinto o impacto com o caminhão, eu apenas entro lá dentro. Por algum motivo penso naquele dia há anos atrás, e então não me lembro de mais nada...

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A ciência do homem Nada, apenas escuridão e silêncio. Eu fiquei parado por um tempo, até ouvir uma respiração. Não sabia se era a minha respiração, então fiquei em dúvida. – Estou morto? – Perguntei, como que para mim mesmo. – Sim. Estou morto. – Respondeu uma voz, não sei se era minha. Eu percebi que havia uma luz em algum lugar. Eu estava em algum lugar. Não sabia se estava sozinho, então tive medo. Tive pressa de alcançar a luz, mas parei. E se o outro quisesse me matar? Esse parece um lugar perigoso, se eu alcançar a luz ele pode me ver. No escuro pelo menos estou protegido... – Você está sozinho. – Disse a voz. Imediatamente pensei que ela queria me enganar, para que eu não tivesse medo de caminhar até a luz, para que eu me tornasse um alvo fácil. E como eu poderia estar sozinho, ouvindo vozes? Só se eu fosse louco. Mas mesmo um louco é perigoso para si mesmo. Talvez o escuro ainda seja mais seguro. – Você está livre. – Disse a voz. Mas o que é ser livre? Livre para me matar? Livre para caminhar para uma armadilha? Livre para ficar paralisado de terror diante da própria sombra? Isso é liberdade? – Você é senhor do seu destino. – Disse a voz, em tom mais baixo. Senhor? Quer dizer que posso fazer o que quiser com ele? Mas quem disse que não vou me arrepender? Quem disse que vou escolher o melhor? Como posso saber o que fazer se estou no escuro? Não sou senhor do meu destino, o escuro é. Só ele sabe o que acontecerá, eu não sei. Eu tenho escolhas, mas elas não significam nada. Não posso saber o futuro, se eu pudesse seria o senhor do meu destino. – O futuro é o que você faz dele. – Disse a voz, soando como detrás de uma parede. Até este ponto, até o ponto da minha primeira escolha, eu fui o que o passado fez de mim. Se eu estou aqui, é porque me colocaram aqui. Agora alguém me diz que posso escolher meu futuro. É mentira. O passado escolheu meu futuro, eu apenas vou conduzir. Eu não sou livre, não no escuro, não enquanto houver

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alguém que talvez possa me matar, querendo me enganar. – Você deve... – Disse a voz, muito baixo e sem conseguir completar a frase. Eu devo? Se eu devo, não tenho escolha. E uma vez tendo escolhido isso para mim, todo o resto é conseqüência, seja isso o que for. Se fizer a primeira escolha, todas as outras se seguirão dessa. Mesmo que eu volte atrás, não há como voltar atrás nisso. Tudo que eu escolher, vou escolher com base no que penso, sinto e vejo. Coisas que dependem do meu passado, das minhas escolhas passadas, e em última instância dessa primeira escolha, que sou obrigado a tomar. Não há escolha, a não ser que eu fique no escuro. O escuro é tudo que eu tenho de garantido. Eu não vou me mover. Depois disso, a luz se apagou, e o escuro desapareceu. Junto com todo o resto. O código diário Certa vez um homem fez uma bomba e a instalou secretamente nas fundações de um prédio. A bomba estava programada para explodir ao meio-dia em ponto, a não ser que o homem entrasse com um código num aparelho que ele tinha instalado no porão de sua casa. Nesse caso a bomba explodiria ao meio-dia do outro dia. Todo o dia o homem entrava com o código para não explodir a bomba ainda. Ele fez muitas bombas idênticas a essa, e começou a espalhá-las por todos os prédios, bancos, hospitais, escolas, igrejas, postos de gasolina, lojas e todo tipo de construção em que ele pudesse se infiltrar. Dia após dia, ano após ano, o homem se dedicou a instalar secretamente essas bombas, que explodiriam todas juntas caso ele não digitasse o código antes do pôr do sol. Ele percebeu a grandiosidade do seu trabalho, então ele encontrou um herdeiro para continuar sua obra. Este herdeiro encontrou mais pessoas, e logo eles fundaram uma sociedade secreta dedicada exclusivamente a instalar bombas nas fundações de todo tipo de construção. Expandiram tanto que começaram a espalhar também em algumas mansões, condomínios, áreas de recreação, bares, restaurantes e até nos bombeiros e nas delegacias de polícia. Com mais organização e tecnologia, fizeram bombas discretas o suficiente para ser instaladas em casas comuns, mesmo em casas pequenas do interior, e mesmo favelas. Também havia bombas potentes o suficiente para explodir centros culturais, estádios, jardins, indústrias, estúdios de televisão, museus, aeroportos, universidades e parques de diversão. Comemoraram muito quando instalaram nos centros administrativos, no congresso, na câmera dos deputados, nos tribunais de justiça e também nas prisões.

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Muitos anos depois, quando os membros da sociedade secreta já eram pessoas influentes no governo, uma discussão os dividiu. Uma parte pretendia continuar espalhando as bombas eternamente, pois acreditavam que o objetivo não era destruir, mas manter tudo sob uma contínua ameaça de destruição, para que a sociedade funcione corretamente. A outra parte acreditava que as bombas precisavam ser detonadas em algum momento, para completar a obra, ou todo trabalho seria inútil. Mas eles não entravam em acordo sobre quando detonar as bombas. Alguns diziam que deveria ser ao acaso, no dia em que todos eles se esquecerem de entrar o código antes do pôr do sol. Mas outros diziam que isso nunca iria acontecer. Que deveriam detonar quando efetivamente tivessem plantado uma bomba em cada espaço, mesmo embaixo de viadutos, em torres antigas e em estações de abastecimento de água. Porém isso parecia impossível, uma vez que havia muito mais pessoas construindo essas coisas do que membros na sociedade secreta. Seria impossível explodir tudo, então alguns achavam que explodir apenas uma parte era suficiente e o resto cairia junto. Mas outros diriam que se fosse assim, então já deveriam ter detonado as bombas antes, pois se as cidades crescem mais rápido do que se pode acompanhar, a espera diminuiria a efetividade das explosões. Essas discussões continuaram sem solução, os membros começaram a estudar várias possibilidades, mas nenhuma satisfatória. Havia os casuístas, que acreditavam no dia do “Ops, esqueci. BOOOM”. Havia os centralistas, que acreditavam que os alvos deveriam ser centralizados em estruturas mais importantes, e quando isso estivesse completo as bombas deveriam ser detonadas. Mas os mais fortes eram os finalistas, que acreditavam que a sociedade secreta deveria apenas continuar o que tem sido feito, e não se preocupar em detonar as bombas. De fato a detonação seria apenas uma simbologia, já que o verdadeiro trabalho era instalar as bombas e aumentar o raio de ação cada vez mais. E ninguém ficaria vivo para ver o resultado dessa obra de arte, já que, como descobriram alguns membros mais novos da sociedade secreta, a primeira bomba feita pelo homem que começou tudo isso estava instalada secretamente na sua própria casa, logo abaixo do porão, onde ficava o aparelho que poderia detonar todas as bombas caso o código não fosse digitado todo dia antes do por do sol. Em respeito a isso, os membros da sociedade secreta também instalaram bombas em suas próprias casas. Finalmente, os finalistas tomaram controle da sociedade secreta, e aos poucos começaram seu plano. Com sua influência, eles começaram a mudar as idéias das pessoas sobre as bombas. A mídia e a igreja foram fundamentais para isso. Aos poucos, através de gerações, eles fizeram as pessoas acreditarem que bombas não eram ruins, mas sim necessárias, e que cada um deveria ter uma instalada em casa. Com o tempo, eles conseguiram introduzir uma matéria sobre detonação e construção de artefatos explosivos no currículo do ensino médio. Em alguns séculos, todas as pessoas, com raras exceções, estavam trabalhando para

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espalhar bombas em cada centímetro do planeta. Espalhar as bombas automáticas, chamadas comumente de “botes” (porque você as bota e pronto), se tornou não apenas o motor da economia, mas uma virtude moral. As igrejas ensinavam que toda a longa tradição religiosa do mundo se tratava de colocar botes com disciplina, tomando cuidado para não exagerar, para não explodi-las sem querer e assim por diante. A educação estava toda voltada à produção de botes, todo o resto da indústria se tornou mínima e dependente da indústria de bombas. Todas as cidades do mundo comemoravam, todo ano, o dia mundial do botes. Nesse dia elas competiam para ver quem fazia a bomba maior, e a abraçavam cantando hinos às bombas. Era a maior celebração do ano. As cidades com mais botes eram as mais prósperas. As pessoas com mais botes eram as mais famosas. Algumas pessoas protestavam, e tentavam argumentar sobre porque as bombas eram prejudiciais. Alguns diziam que eram prejudiciais porque simplesmente não funcionavam, não iriam explodir nunca. Outros diziam que eram prejudiciais porque explodiriam demais, apenas algumas bombas bastariam para destruir tudo que precisava ser destruído. Outras argumentavam que as bombas eram ruins porque eram construídas de forma errada, e teriam efeitos diversos das funções para as quais eram construídas. Poderiam detonar sem querer, e destruir uma fábrica de bombas, por exemplo. Ou destruir o centro de detonação, onde até hoje o trabalho mais importante do mundo era feito pelos lideres mundiais: entrar o código antes do pôr do sol. Outros reclamavam que as bombas não eram dividas igualmente entre todos, alguns tinham bombas demais, e outros tinham poucas, e isso causava muitos problemas. Outros falavam que as bombas eram feitas de materiais que tinha resíduos tóxicos, e lutavam pela produção de bombas mais ecológicas. A mídia lançou campanhas que diziam: “As bombas somos nós.” Ou “Quem digita o código somos todos nós”. Medidas eqüitativas mantiveram a população mais ou menos controlada sobre isso. Toda essa discussão continuou por anos e anos, algumas foram mais bem sucedidas que outras. Porém havia uma opinião que raramente era discutida, e mesmo quando entrava em discussão era rapidamente descartada, ignorada ou ridicularizada. Era a opinião de que as bombas eram ruins por si sós. Todos que ouviam alguém dizer isso reagiam negativamente: “Essa é uma idéia radical demais, não faz sentido. Você quer jogar tudo fora, a parte boa junto com a ruim, pois é evidente que há coisas boas também. Você não está propondo nada prático, essa idéia é meramente utópica. Nós dependemos da construção de bombas para viver, ou você acha que você teria seu modo de vida sem isso? É pura hipocrisia, você é apenas um revoltado sem causa”, e assim por diante. Outros até aceitavam a idéia de que as bombas eram ruins por si sós, mas não pelo que elas poderiam fazer, e sim porque eram apenas materiais.

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Diziam: “Sim, nossas bombas são ridículas e prejudiciais, pois são feitas de explosivos mundanos. Somos apegamos à matéria. As verdadeiras bombas são espirituais, vem de dentro, não dependem da frágil e impura substância material”. De forma geral, os anti-bombas eram vistos como a escória da humanidade. Ainda que muitos tivessem afinidade com suas idéias, ninguém realmente pensava em deixar de construir bombas. Continuavam a construí-las e espalhá-las com entusiasmo, reclamando apenas do exagero ou do excesso de trabalho que algumas bombas davam. Entre os anti-bombas também se criaram divisões. Alguns anti-bombas planejavam um ataque ao centro de detonação, onde era digitado o código, mas esse era o lugar mais bem protegido do mundo. Além disso, como disseram outros anti-bombas, provavelmente havia outros centros de detonação prontos para um eventual acidente. E uns mais ousados diziam que mesmo que um ataque coordenado segundos antes do pôr do sol, em todos os pontos do mundo, não adiantaria nada, pois provavelmente a polícia pró-bombas agiria antes que todas as bombas pudessem detonar, pois isso levaria um dia inteiro. Além disso, outros ainda diziam que era completamente inútil detonar as bombas, se é que elas explodiriam mesmo, pois isso apenas mataria todo mundo e completaria a profecia apocalíptica dos casuístas. Os anti-bombas anti-detonistas diziam que deveríamos viver sem construir bombas, mas eles eram chamados de românticos e sonhadores. Um grupo chamado esquadrão anti-bombas começou um plano ousado de desarmar as bombas, mas era impossível desarmar todas, então eles se contentavam em tentar desarmar as principais, apesar disso apenas movimentar o comércio para produzir bombas mais caras e mais difíceis de desarmar. Essa ameaça foi chamada de anti-terrorismo. Outro tipo de anti-terrorismo foi feito pelos bombardiários, que queriam detonar as bombas à força, mas raramente eram bem sucedidos. Eles até mesmo construíram bombas para explodir outras bombas, mas novamente isso foi apenas um incentivo para a indústria fazer bombas mais resistentes, aumentar a segurança, ou assimilar a indústria de bombas antibombas. Alguns tentaram sabotar as fábricas de bombas, com igual insucesso, pois isso prejudicaria toda a economia da sociedade. Em algum ponto surgiu um pequeno grupo de pessoas que tentava viver sem construir bombas ou colaborar com a indústria de bombas, por mais que isso implicasse em ser rejeitado pelo resto da sociedade. Essas pessoas discutiam as crenças que levam as pessoas a viver em função das bombas. Elas começaram a atacar as idéias e os pressupostos sobre as bombas, na esperança de que uma mudança de visão faria as pessoas pararem de depender da construção de bombas. Porém elas mesmas chegaram à conclusão que não havia diferença alguma entre basear uma sociedade na construção de bombas e baseá-la em qualquer outra forma de dependência, como havia antes bombas. De fato, não importa se as

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bombas explodem ou não. Não eram as bombas, nem os prédios, era o código. Seu mote principal era: “O código é mortal, as bombas são apenas a conseqüência”. Isso entrava em contradição não apenas com a estrutura política e econômica da sociedade, mas também com a estrutura religiosa e ideológica, uma vez que o código era algo respeitado por todas as pessoas. Até mesmo os anti-bombas rejeitavam os chamados anti-código. Diziam que eles eram reacionários ao não se opor exatamente às bombas, e exagerados ao se opor a algo que parecia ser necessário à humanidade. Todos conheciam o código, ele era considerado bem mais importante à sociedade do que as próprias bombas. Era comum recitar o código antes dormir, nos domingos e em todos os momentos de apreensão ou medo. Mesmo os anti-bombas que não acreditavam na autoridade das igrejas achavam que o código não era realmente o problema. Admitiam uma crença pessoal no código, independente da religião, e por isso negavam a validade de uma crítica anti-código. Tal situação se estende até os dias de hoje. O código é simples. Um único símbolo repetido três vezes, que simboliza a vida, a morte e a salvação. O código diário, o próprio pilar de toda a civilização, era: +++. Três cruzes. Mais, mais e mais. Soma, adição, união, conjunção, adesão, totalização, acréscimo, benefício, melhoramento, ampliação, crescimento, aumento, desenvolvimento, expansão, coesão, massificação, reprodução, replicação, repetição, mania, vício, dependência, acúmulo, capitalização, avanço, progresso, ascensão, elevação, superação, sublimação, transcendência, evolução. Evolução? Quem poderia negar? Da impossibilidade do amor O mundo estava de cabeça para baixo quando ela o viu, sentado, afastado do grupo, com a cabeça abaixada. Assim que o homem cujos olhos ela nem sequer fitou soltou seu corpo nu após o gozo, ela se levantou serenamente e caminhou sobre as almofadas e os corpos em êxtase, deixando um leve rastro de sêmen que escorria. Dois ou três pares de mãos tentaram agarrá-la para fazer ela se abaixar, mas ela ignorou e afastou as mãos e as bocas suavemente, até alcançálo. – Que foi? – Disse ela, sentando-se ao seu lado. – Não está disposto hoje? Precisa de um remédio? – Sua voz é doce como a de uma irmã mais velha. – Antes fosse. Não há remédio que cure minha solidão. – Responde ele. – Solidão? Como pode estar sozinho, se estamos todos com você? – Ao dizer isso ela aponta para a multidão incontável de corpos nus e jovens, fazendo amor despreocupadamente.

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– Seus corpos estão, mas e o sentimento? Onde está o amor? Eu vejo apenas sexo. – Diz erguendo a cabeça em direção ao grupo. – Oh, que lindo, um romântico... – Ela exala um suspiro e o observa ternamente. Ele abaixa a cabeça novamente, ela acaricia sua cabeça com a ponta dos dedos, com a delicadeza de uma mãe. A segunda mão pousa levemente na mão dele, e a acaricia ternamente. A primeira mão desce até o pescoço, sentindo o calor da nuca, enquanto a segunda se aproveita da proximidade do joelho, e começa a acariciá-lo também. – Eu só queria que alguém me amasse. Eu só queria ser amado. – Diz ele, sem ceder ao carinho. – Eu te amo – Ela diz, com uma voz quase inaudível, tomando emprestada a sinceridade de uma criança. – Se você me amasse – Diz ele –, você não soltaria minha mão para ficar com outro, você ficaria comigo. – Vou ficar com você, não vou soltar sua mão. É isso que você quer? – Sim... Sim. – Responde ele, relutante. – Então vamos para as almofadas, vamos voltar para perto dos outros. Estou com frio. Ele balança a cabeça para cima e para baixo, aceitando, mas sem demonstração de entusiasmo. Ao se aproximar das almofadas, ela ajeita uma e pede com as mãos que ele se deite com as costas para baixo. Ele se deita. Sem soltar sua mão, ela se deita sobre ele, começa a beijá-lo no pescoço e lentamente desce até o peito. Continua descendo até o órgão, e o beija lentamente, depois o sente com a boca, e permanece sentindo-o inteiro por um bom tempo. Então ela retorna lambendo a extensão do corpo até o pescoço, e encaixa seus quadris sobre ele, sem soltar sua mão, que ele segura com firmeza. Ela começa a se mover obliquamente sobre ele, que fecha os olhos. – Eu te amo. – Diz ela em seu ouvido. Ele geme ao ouvir as palavras doces. Ela olha ao redor e faz um sinal para as outras garotas. Pouco a pouco várias garotas vão se aproximando, outras garotas se ocupam segurando os rapazes para que eles não atrapalhem. Ele começa a sentir que outras estão beijando seu corpo, querendo sentir

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sua boca, e querendo ser sentidas pela suas mãos. Ela cede espaço, sem soltar sua mão, e cinco ou mais garotas se revezam para sentir o corpo dele da mais variadas formas. Ele não resiste a tantas bocas, tantos lábios, tanto calor, cabelos, seios, mãos, gemidos. Aos poucos ele vai delirando e se entregando ao prazer que vai crescendo até se tornar maior que ele. Quando já não agüenta mais, ele percebe que soltou a mão da amada um momento antes do ápice. Ela se encontrava ali ao seu lado, completamente disponível, com a mão aberta e esperando. Então ele olha para ela, e os olhos dela são como de uma cândida professora que acabou ver seu aluno aprender sua lição... Tânatos Quando você invade o sonho de outra pessoa você pode se tornar consciente, mas não tem controle do sonho. O que torna a experiência muito mais real, e perigosa. Eu me lembro de estar num banheiro, olhando para o espelho, pensando se estava louco. Quando você entra num banheiro, mas não tem vontade de usar e se sente deslocado lá, é provável que esteja no sonho de outra pessoa. Ninguém pensa em banheiro sem ter vontade de usar. Penso agora se a imagem no espelho era minha auto-imagem ou a imagem que outra pessoa tem de mim. Parecia um espelho real. Daquele tipo que faz você dizer: “É assim que os outros me enxergam?”. Como funcionam os espelhos dentro de um sonho? Existiria uma ótica onírica? Eu fiquei um tempo conversando comigo mesmo no espelho, tentando pensar no que fazer. Que lugar é esse, o que devo fazer? Mas a única coisa que me vinha na cabeça era: “Eu pirei de vez”. Não adianta tentar contatar seu amigo, ele provavelmente não estará consciente como você. E tomara que não esteja, porque isso seria muito mais perigoso. Ele poderia confundir você com mais um personagem do sonho. Há maneiras sutis de se comunicar com ele. Eu vi o Fred, e comecei a dizer: “Fred, eu estou pirando, cara. Isso aqui é muito doido.” Mas ele me ignorou, e por algum motivo eu não me surpreendi. Ele começou a falar de outro assunto como se eu não tivesse dito nada, ou como se ele não tivesse ouvido. Ele apontou para um pôster na parede e disse que era um pôster muito doido.

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Seu amigo pode sentir quando você está perto dele, mas é bom não interagir demais com ele. Lembre-se, você está no inconsciente dele, a comunicação aqui é muito restrita. Ele só entenderá mensagens simples. Apareceu uma garota do nada. Ela tomou a cena, falou comigo, mas eu não queria nada com ela. Então ela se dirigiu ao Fred e ele a beijou entusiasticamente. Quando eu digo mensagens simples, quero dizer coisas ligadas ao sexo, principalmente. Sexo é a coisa mais forte no nosso inconsciente. Em segundo lugar vem a comida. São as reações biológicas mais básicas de preservação da espécie, não tem nada a ver com safadeza ou com a teoria freudiana. É um fato. Nesse momento já não estávamos mais num banheiro. Eu ouvi risadas e me desloquei para um lugar onde três amigas estavam sentadas conversando. Elas riram de mim por causa do que aconteceu. É meio embaraçoso estar no sonho de outra pessoa num momento desses. Mas então eu disse para elas: “É o inconsciente, o que esperavam?”. E conversamos por um bom tempo, principalmente sobre a experiência de conversar em sonhos, de como essas conversas são reais. “Eu falo com você exatamente como estou falando agora, e sua maneira de responder é exatamente a mesma”. Ela hesitou para concordar, exatamente como faria na vida real. Claro, porque a imaginação seria menos real que a realidade, se toda a realidade é imaginada por alguém? Nós continuamos conversando por um tempo, então estávamos em campo aberto, o chão era de terra. Um garotinho negro veio chorando até mim. Ele estava rezando: “Jesus, faz o Tiago largar as drogas”. Eu fiquei com tanta pena dele. E nesse momento apareceu um homem grande, e começou a bater no menino, e a brigar com ele. E numa poça de lama ali perto estava um garoto mais velho, dopado. Imaginei que fosse o Tiago. Então eu fiquei ouvindo o choro do menino e me senti tão impotente que caí de joelhos e comecei a chorar, sem conseguir fazer mais nada. Obviamente os instantes em que sua mente encontra a mente de outra pessoa em sonhos são muito raros. Depois disso você vai para outro lugar. Onde? Ninguém pode saber. Os momentos de lucidez acabam sem a gente perceber. Terá sorte se voltar para seu próprio sonho. Neste momento eu ouvi aquela voz interna. Ela disse: “Não faça isso”. Levantei e vi o olhar do menino, sendo arrastado pelo pai. Ele estava decepcionado comigo, por eu não ter conseguido fazer nada. Então eu contive o

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choro, me levantei e fui atrás dele, tentando reparar meu erro. Eu pedia para ele esperar, eu pedia para me deixar ajudar. Em vão. Eu estava andando numa outra rua. Estava definitivamente de volta a mim. Então eu voltei a chorar, de raiva. Eu andava e dizia: “Filho da puta. Filho da puta que fez o mundo assim. Por que o mundo tem que ser assim?”. E a voz interna dizia: “Não tem que ser assim, alguns tentam mudar. Você tenta mudar”. – E o que eu posso fazer? Tudo que eu faço é inútil. – Você não pode perder a esperança. – Tantas vezes eu acreditei, e desacreditei. Eu não quero. – Não acredite no que não quer. – É tão fácil acreditar em salvação nesse momento, é tão tentador... Seria tão confortável. Mas eu não quero. Eu não quero me enganar de novo. – Não se engane, apenas não perca a esperança... Eu acordei. Essa coisinha no meu cérebro é uma armadilha. Essa coisinha que incita ódio e culpa. Essa coisinha que quer que eu acredite numa verdade absoluta. Num momento de fraqueza você encara tudo que tem de ruim no mundo, e você não sabe o que fazer. Você quer aceitar um poder superior regendo tudo, nos confortando como uma mãe consoladora. Mas ser consolado é se entregar ao medo na sua pior forma. Não preciso de consolo, não preciso de alívio. Não vou perder a esperança real, aquela esperança em mim mesmo. Não quero a esperança fantasiosa de que alguém vai consertar tudo magicamente para mim. Faço por mim mesmo, ninguém pode fazer isso por mim. Prezado Público – Diversão sem limites, senhoras e senhores. Venham se surpreender com a incrível habilidade desse homem aparentemente comum que está logo a sua frente. Testemunhem ao vivo o que ele é capaz de fazer. Sem truques, lhes garanto, é tudo genuíno... – Sei que vocês já viram de tudo nesse mundo. Homens sem medo, capazes dos feitos mais incríveis, mas nada se compara ao que este homem (se é que podemos o chamar assim) é capaz de fazer. – O que vão presenciar não é recomendado para crianças, idosos e pessoas frágeis. O que verão é demasiadamente impressionante para descrever com palavras. Se você tem problemas do coração, por favor, não prossiga. Pedimos isso com a maior sinceridade possível, nossos médicos já se cansaram de atender pessoas que não tomaram esse aviso com a devida seriedade, e não devolveremos o dinheiro caso você não suporte ficar até o final.

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– Bravos senhores e destemidas senhoras que sobraram na platéia, vocês não se arrependerão. Contarão isso para seus filhos e netos, que provavelmente não serão capazes de acreditar em vocês, mas não os culpe. Essa experiência única os acompanhará pelo resto de suas vidas. Saberão acima de qualquer dúvida que realmente existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã patifaria. – Senhoras e senhores, sem mais delongas, eu lhes apresento, o maior espetáculo da terra: Janos, o indeciso! Entra no palco um jovem magro, branco, de cabelos castanhos longos e levemente enrolados, um nariz proeminente e um andar esquisito. Costas encurvadas, cabeça baixa, olhos voltados sempre para o chão, braços soltos e a boca tremendo. Ele permanece assim por algum tempo, até que entra outra pessoa no palco. Uma mulher alta, extremamente sensual, carregando dois pacotes. Ela sorri e mostra o primeiro pacote ao público. Letras estilizadas formam a palavra "amor". Em seguida ela mostra o outro pacote. Parece idêntico ao primeiro, mas nele está escrito algo indecifrável, que talvez sejam apenas rabiscos. Os dois pacotes são colocados em frente ao jovem, ele os examina com muita hesitação. Enquanto isso a mulher sorri e faz alguns gestos com a mão, como que chamando a atenção do público para a indecisão do rapaz. O público não esboça reação. Algum tempo depois o jovem começa a balançar a cabeça. Alguns risinhos abafados surgem na platéia. O jovem percebe os risinhos, e começa a morder os dedos, numa enorme angústia. O público começa a rir. Ele balança a cabeça violentamente, dá socos em si mesmo, e quando finalmente caí no chão de joelhos, chorando desesperadamente, o público já está gargalhando tão alto que não se pode ouvir os gritos do rapaz dizendo: "Não, não, não". Ele se deita no chão, já coberto de lágrimas, faz caras muito engraçadas abrindo a boca como se estivesse com muita dor, batendo a cabeça no chão e se arranhado. A essa altura o público ri tanto que uns caem no chão, sem conseguir se conter as lágrimas de tanto rir. Em algum ponto do seu comportamento obsessivo, depois de muito se retorcer no chão, ele pega um dos pacotes, aparentemente sem ver qual dos dois. Ele rasga o pacote procurando desesperadamente por algo dentro dele. Ele rasga o papel que embrulha o pacote, revelando outro embrulho, que ele rasga novamente, e assim se segue que embrulho após embrulho, não havia realmente nada dentro do pacote. Era apenas um amontoado de papéis embrulhados uns nos outros. Com o palco todo coberto de pedaços do embrulho, ele fica parado olhando com uma expressão patética. O público está aplaudindo em pé.

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A mulher então o beija, começa a tirar a roupa e fazer sexo com ele ali mesmo, entre os papéis. Os homens olham apreensivos, com a boca aberta ou urrando palavras sujas. As poucas mulheres parecem estar incomodadas, mas também olham com atenção. A mulher, sentada sobre o jovem, alcança o outro pacote e o abre. A platéia grita horrorizada quando ela tira duas adagas de dentro do pacote, e finca as duas no peito do jovem. Ainda coberta de sangue e sêmen, ela se retira do palco, sorrindo. Dois empregados entram no palco e retiram apressadamente as adagas do peito do jovem, que geme. Eles o levantam e o fazem cumprimentar o público como um boneco de pano. O público aplaude sem muito entusiasmo, a maioria está querendo sair o mais rápido possível deste lugar. – Minhas sinceras desculpas, caro público. Como eu poderia imaginar que ele seria capaz de tal atrocidade contra a própria imagem? O que dirão do seu estado mental agora? Isso piora muito as coisas para ele, senhoras e senhores. Não me culpem, eu sou um mero empregado. Eu não decido o que o artista fará, não tenho responsabilidade alguma. Peço que levem isso em consideração antes de pedirem seu dinheiro de volta. Isso não vai voltar a acontecer, não deixem de nos visitar por causa disso... Por favor? Por favor, prezado público? Por favor?

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Índice:

Uma piada ruim Silêncio O dom superior 5 Guerra E A lua vermelha 11 Esquecimento Ácido Irrevelação

1 3 7 8 13 14 18

A cidade da Máquina 20 Rua 22 Amigo de 15 minutos 23 A rotina 25 A ciência do homem 27 O código diário 28 Da impossibilidade do amor 31 Tânatos 33 Prezado público 35

Tentativa de classificação dos contos deste livro: Oníricos: Esquecimento (pág. 13), Rua (pág. 22), Tânatos (pág. 33)

Surrealistas: Silêncio (pág. 3), Guerra (Pág. 7), E (pág. 8), Amigo de 15 minutos (pág. 23), A rotina (pág. 25), A ciência do homem (pág. 27) Fantasiosos: O dom superior (pág. 5), A cidade da Máquina (pág. 20), O código diário (pág. 28), Da impossibilidade do amor (pág. 31) Insanos: Uma piada ruim (pág. 1), A lua vermelha (pág. 11), Ácido (pág. 14), Prezado público (pág. 35) Metalingüísticos: Irrevelação (pág. 18) janosbirozero@gmail.com antizero.wikispaces.com

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