Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação Curso de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso
MULHER E HEROÍNA: REPRESENTAÇÃO FEMININA DA PERSONAGEM KATNISS EVERDEEN, DE JOGOS VORAZES
Autora: Jaqueline Clarindo Batista Chaves Orientadora: Prof. MSc. Fernanda Vasques Ferreira
Brasília - DF 2016
Jaqueline Clarindo Batista Chaves
Mulher e heroína: Representação feminina da personagem Katniss Everdeen, de Jogos Vorazes
Monografia apresentada ao curso de graduação em Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Jornalismo. Orientadora: Ferreira
Brasília 2016
Prof.
MSc.
Fernanda
Vasques
Monografia de autoria de Jaqueline Clarindo Batista Chaves, intitulada "MULHER E HEROÍNA: REPRESENTAÇÃO FEMININA DA PERSONAGEM KATNISS EVERDEEN, DE JOGOS VORAZES", apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo da Universidade Católica de Brasília, em 23 de junho de 2016, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:
___________________________________________________________ Prof. MSc. Fernanda Vasques Ferreira Orientadora Comunicação Social – UCB
___________________________________________________________ Prof. Dra. Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Comunicação Social – UCB
___________________________________________________________ Prof. MSc. Angélica Córdova Machado MiIletto Comunicação Social – UCB
Brasília 2016
A todas as mulheres que ainda não conhecem a força que têm dentro de si.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus pela vida, proteção e todas as bênçãos recebidas. Por todas as oportunidades concedidas e por todas as pessoas maravilhosas que colocou em meu caminho ao longo dessa caminhada. Aos meus pais por todo o apoio, por terem sempre acreditarem em mim me dando a liberdade de seguir os meus sonhos e nunca permitirem que eu desistisse. A minha irmã querida, que sempre esteve ao meu lado nesse caminho me apoiando e aconselhando. Amo vocês. A minha orientadora Fernanda Vasques Ferreira por ter embarcado comigo nessa aventura, por seus puxões de orelha e conselhos. Por nunca ter deixado que eu desanimasse e por ter acreditado em mim. Esse trabalho não seria possível sem o seu enorme apoio e companheirismo. Agradeço também a todos os professores que estiveram comigo durante o curso em especial à Rafiza Varão, Angélica Córdova, Isabel Clavelin e Sofia Zanforlin, que com seus ensinamentos e conselhos contribuíram grandemente para minha formação profissional, intelectual e pessoal. A todos os meus tios e tias, primos e primas, e avós amados, que mesmo estando perto ou longe contribuíram de alguma forma com meu crescimento intelectual e principalmente como ser humano. Não posso citar nomes, pois sou capaz de esquecer de alguém, mas quero que todos sintam que sou grata por seus conselhos e afeto. Quero agradecer também a todos os meus colegas de turma, que caminharam comigo nessa incrível jornada. Agradeço em especial à Mariana Nunes, que hoje não é apenas colega, mas é como uma irmã. Tudo o que enfrentamos juntas ficará guardado para sempre no meu coração. Sou e serei grata eternamente a todos, que mesmo sem saber fizeram parte da conclusão de mais uma etapa dessa grande jornada da vida. Meu muito obrigada!
NĂŁo ĂŠ possĂvel ser jornalista sem se entender a sociedade. I. F. Stone
RESUMO
Referência: CHAVES, Jaqueline Clarindo Batista. Título: Mulher e heroína: Representação feminina da personagem Katniss Everdeen, de Jogos Vorazes. 2016. Jornalismo – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2016.
Jogos Vorazes foi publicada em 14 de setembro de 2008 nos Estados Unidos com a autoria da escritora americana Suzanne Collins. Em 2010 o estúdio LionsGate adquiriu os direitos para uma adaptação cinematográfica dos livros, que se tornou a 14ª maior bilheteria de lançamento na América do Norte. A história, que é uma distopia, se passa em um período futurístico não definido e tem como protagonista uma mulher. Por meio de análise de conteúdo e fílmica, esse projeto busca analisar como a protagonista, Katniss Everdeen, é representada levando em consideração os estudos sobre gênero. Parte-se das hipóteses que as mudanças nos estereótipos femininos fazem parte das construções narrativas do cinema, a protagonista foge da característica “donzela em perigo” e a produção fílmica participa ativamente do processo de construção de gêneros. Nota-se que a ficção acompanha as mudanças nas representações sociais a respeito do papel da mulher e a personagem traz algumas inovações, porém ainda é possível perceber permanências em relação à ideia de feminino e a tais estereótipos.
Palavras-chave: Representação. Gênero. Katniss Everdeen. The Hunger Games.
ABSTRACT
The Hunger Games was published on 14 September 2008 in the United States with the authorship of the American writer Suzanne Collins. In 2010 the Studio LionsGate acquired the rights for a film adaptation of the books, which became the 14th highestgrossing release in North America. The story, which is a dystopia, takes place in a futuristic period not defined and has as protagonist a woman. Through content and film analysis, this project seeks to analyze as the protagonist, Katniss Everdeen is represented taking into consideration studies about gender It is unlikely that changes in female stereotypes are part of the narrative structures of filmmaking, the protagonist flees the feature "damsel in distress" and the filmic production participates actively in the process of building genres. Note that fiction follows the changes in social representations regarding the role of women and the character brings some innovations, but it is still possible to realize permanence in relation to the idea of female and such stereotypes.
Keyword: Representations. Gender. Katniss Everdeen. The Hunger Games.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1: Mãe de Katniss durante a cerimônia da Colheita ...................................... 46 Figura 2: Katniss e Primrose se despedem após a Colheita .................................... 47 Figura 3: Primrose, a mãe e Gale se encontram na praça para receber os vitoriosos .................................................................................................................................. 48 Figura 4: Katniss e seu amigo Gale na floresta antes da cerimônia da Colheita...... 50 Figura 5: Katniss chega à Colheita e se identifica .................................................... 51 Figura 6: Broche de ouro em forma de Tordo, símbolo da revolução ...................... 51 Figura 7: Katniss e Petta recebem orientações sobre a roupa do desfile ................ 52 Figura 8: Tributos dos Disttitos 1 e 2 encaram Katniss e Petta ................................ 53 Figura 9: Katniss durante o treinamento, como de costume o cabelo com uma trança lateral ........................................................................................................................ 53 Figura 10: Katniss durante a entrevista com Caeser Flickerman ............................. 54 Figura 11: Katniss na arena durante os jogos .......................................................... 54 Figura 12: Katniss e Petta na segunda entrevista com Caesar Flickerman ............. 55 Figura 13: Katniss e Peeta se beijam mostrando para o público a veracidade do romance .................................................................................................................... 58 Figura 14: Katniss e Peeta dividem as amoras envenenadas .................................. 60 Figura 15: Katniss e Peeta observam a chegada do aerodeslizador que os levará para casa ........................................................................................................................... 60 Figura 16: Katniss e Peeta declaram seu amor durante entrevista da vitória .......... 61 Figura 17: Katniss em sua caçada matinal antes da cerimônia da Colheita ............ 63 Figura 18: Katniss se voluntaria aos Jogos no lugar da irmã Primrose .................... 63 Figura 19: Katniss improvisa um funeral para Rue, cobrindo seu corpo com flores . 65 Figura 20: Katniss trata dos ferimentos de Peeta, salvando a vida do garoto ...........66
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 1.1 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA .......... 11 1.2 OBJETIVOS, HIPÓTESES E METODOLOGIA ................................................ 14 2 REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE .................................................................... 17 2.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ....................................................................... 17 2.2 IDENTIDADE .................................................................................................... 21 3 A MULHER E O CINEMA ...................................................................................... 23 3.1 A ORIGEM DO CINEMA ................................................................................... 23 3.2 O SURGIMENTO DA MULHER NO CINEMA ................................................... 25 4 JOGOS VORAZES, A SAGA ................................................................................ 29 4.1 A ORIGEM DA SAGA ....................................................................................... 29 4.2 JOGOS VORAZES ........................................................................................... 29 4.3 EM CHAMAS .................................................................................................... 31 4.4 A ESPERANÇA ................................................................................................ 33 4.5 ADAPTAÇÃO ................................................................................................... 35 5 MÉTODOS E ANÁLISE ......................................................................................... 40 5.1 ANÁLISE DE CONTEÚDO ............................................................................... 40 5.2 ANÁLISE FÍLMICA ........................................................................................... 41 5.3 TESTE DE BECHDEL ...................................................................................... 43 6 KATNISS EVERDEEN, MULHER E HEROÍNA ..................................................... 45 6.1 A FAMÍLIA ........................................................................................................ 45 6.2 BELEZA E FIGURINO ...................................................................................... 48 6.3 ROMANCE ....................................................................................................... 56 6.4 HEROÍSMO ...................................................................................................... 61 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 68
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1. INTRODUÇÃO
1.1 APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA Desde seu início o cinema clássico hollywoodiano possui imenso potencial comunicativo e é um dos principais meios de comunicação de massa, com destaque na sociedade contemporânea. Poderoso por sua capacidade de atingir grande público e influenciar na formação de ideias, conceitos e estereótipos, o cinema não atua simplesmente como forma de arte, mas, de certa maneira, também como um reprodutor e criador da realidade. As narrativas distópicas1 presentes nas grandes franquias cinematográficas da atualidade, assim como a saga estudada na presente pesquisa, têm seu início no século XX com as grandes decepções2 da época e despertou a partir dos anos 2000 o interesse do público jovem. As grandes tramas são ambientadas em mundos destruídos e fragmentados, nos quais o jovem é oprimido e responsável pela mudança da sua realidade. Feios (2005-2007), Jogos Vorazes (2008-2010), Maze runner (2009-2011), Divergente (2011-2014), A seleção (2012-2015) ... A lista de distopias juvenis advindas na última década é imensa e geram milhões em um mercado que cresce cada vez mais. Os sucessos na literatura se tornaram ainda maiores depois de suas adaptações no cinema, que muitas vezes sofrem mudanças provocadas não apenas por questões estéticas, mas também por questões econômicas, que influenciam, direta ou indiretamente, o teor do filme. Robert Stam (2008) afirma que a essência da obra a ser adaptada é dada apenas como ponto de partida para a obra derivada, e não propriamente como ponto de chegada. Na realidade, podemos questionar até mesmo se a fidelidade estrita é possível. Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à Para o autor Michel D. Gordin (2010, p. 1), a distopia “é a utopia que deu errado, ou a utopia que funciona apenas para um segmento particular da sociedade”. Se utopia é algo idealizado – a própria perfeição – a distopia seria a imperfeição ou a intolerância às condições mínimas de vida humana. 2 Período histórico que engloba o início do século XX, que foi marcado por grandes decepções, com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o pós-guerra, a grande crise econômica de 1929 e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). 1
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mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (STAM, 2008, p. 20)
A Saga Jogos Vorazes foi publicada em 14 de setembro de 2008 nos Estados Unidos com autoria da escritora americana Suzanne Collins. The Hunger Games, no original, passou 300 semanas consecutivas na lista de bestsellers do New York Times. Ele foi distribuído em 56 territórios e em 51 idiomas, vendendo mais de 85 milhões de cópias em todo o mundo. No Brasil o livro foi lançado em maio de 2010. Segundo Suzanne Collins, a ideia para Jogos Vorazes surgiu enquanto ela passeava pelos canais na televisão. Em um canal, a autora observou pessoas competindo em um reality show e em outro viu cenas da Guerra no Iraque. As duas coisas "começaram a se confundir de um modo muito inquietante" e a ideia para o livro foi formada. A sensação de perda que Suzanne teve quando o pai prestou serviço militar na Guerra do Vietnã também contribuiu para o desenvolvimento da obra. O
estúdio
LionsGate
adquiriu
os
direitos
para
uma
adaptação
cinematográfica do livro, que foi dirigido por Gary Ross, o roteiro do filme foi escrito pela própria Suzanne Collins, com ajuda do diretor de revisão Billy Rae. A produção foi iniciada na primavera norte-americana de 2011 e o filme lançado em 22 de março de 2012, com Jennifer Lawrence no papel de Katniss Everdeen, Josh Hutcherson como Peeta e Liam Hemsworth como Gale. Jogos Vorazes quebrou vários recordes de bilheteria e se tornou, na época, a 14ª maior bilheteria de lançamento na América do Norte de todos os tempos gerando quase US$ 700 milhões de dólares em bilheterias de todo o mundo. A história se passa em um país chamado Panem, em um período futurístico não definido, que fica localizado na antiga América do Norte. Panem é formada por uma grande cidade central chamada de “Capital”, que é rodeada por 12 distritos, que são nomeados de 1 ao 12, mais pobres responsáveis pela confecção de tudo o que é consumido na Capital. Cerca de 74 anos antes dos eventos do livro havia um 13º distrito que foi destruído pela Capital, nos chamados “Dias Escuros”, ao se rebelar.
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Para que nenhum outro distrito de revoltasse contra a Capital e para que a destruição do distrito 13 ficasse para sempre na memória da população, foram criados os Jogos Vorazes, uma competição anual que é transmitida ao vivo pela televisão local. Durante uma celebração chamada “Dia da Colheita” são selecionados por sorteio uma garota e um garoto entre doze e dezoito anos de cada distrito, em um processo obrigatório. Os tributos, como são chamados, são forçados a entrar em uma perigosa arena, controlada pela Capital, e precisam lutar entre si até que reste apenas um sobrevivente. No livro, o ponto de vista pelo qual a história é narrada é da protagonista Katniss Everdeen, uma garota de dezesseis anos que mora no Distrito 12 com a mãe e a irmã. Katniss perdeu o pai em uma explosão numa mina de carvão, quando tinha onze anos, e desde então sustenta sua família caçando ilegalmente na floresta. Katniss é uma mulher de personalidade forte, corajosa, destemida, determinada, inteligente, audaciosa, astuta, estratégica, revolucionária, guerreira e valente, mas como qualquer garota de sua idade tem medos e incertezas. A presente pesquisa tem como objeto de estudo a protagonista da Saga Jogos Vorazes, Katniss Everdeen, e busca analisar sob quais aspectos a personagem foi construída. Levando em consideração os estudos sobre gênero, pretende compreender em que medida a protagonista é um novo modelo de representação cinematográfica feminina, que foge do estereótipo donzela em perigo. Sem deixar de considerar as atualizações nos estereótipos femininos e a representação das mulheres no cinema, o presente estudo se justifica no campo da Comunicação a partir do fato de que a análise a respeito das questões de gênero é pertinente para que se reflita acerca do tema, uma vez que eles são importantes construtores de realidades. O estudo das representações sociais e da representação das mulheres no cinema é de extrema importância para a formação profissional do comunicador e jornalista. Debates e discussões sobre o tema são fundamentais para a formação de pensamentos críticos e ideológicos. O protagonismo feminino da história mobiliza, empodera e inspira.
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A autora desta pesquisa teve o primeiro contato com a Saga Jogos Vorazes em 2012. A história em que a protagonista e heroína é uma mulher a impressionou principalmente pela sua voracidade e astúcia. Aconteceram várias discussões com colegas e professores sobre a história e surgiu a vontade de levar o que eram apenas conversas informais para a universidade, fazendo um estudo sobre a saga. Após esta decisão a questão principal foi encontrar em que ponto focar. Na mesma época começou a se interessar bastante sobre estudos de gênero e o papel das mulheres na sociedade. Surge então o tema da pesquisa, Katniss Everdeen e a sua representação.
1.2 OBJETIVOS, HIPÓTESES E METODOLOGIA A presente pesquisa tem como objetivo geral compreender a representação da mulher nos filmes da Saga Jogos Vorazes. Em seus objetivos específicos pretende-se identificar se a personagem Katniss Everdeen é um novo modelo de representação feminina e ainda analisar as características sob as quais a protagonista foi construída. Parte-se das hipóteses de que as mudanças nos estereótipos femininos fazem parte das construções narrativas do cinema, a protagonista foge da característica “donzela em perigo” e a produção fílmica participa ativamente do processo de construção de gêneros. Bem como, a ficção acompanhou as mudanças nas representações sociais a respeito do papel das mulheres. Nesse trabalho serão utilizados o primeiro livro e o primeiro filme da Saga Jogos Vorazes. Tendo como objetivo geral compreender a representação da mulher no filme e livro da série, fundamenta-se nas leituras das respectivas obras. Serão observados, ainda, vários elementos, tais como: a narrativa, a adaptação, o roteiro, a fotografia, bilheteria e prêmios conquistados. O primeiro método utilizado para analisar as obras é a análise de conteúdo que, no livro Análise de conteúdo, é definido por Laurence Bardin (2011) como uma técnica de pesquisa que reúne um conjunto de instrumentos metodológicos que se
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aperfeiçoam constantemente e que se aplicam a discursos diversificados, mediante decodificação da mensagem. [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 2011, p. 42).
Segundo a autora, esta abordagem tem como finalidade fazer deduções lógicas justificadas quanto à origem das mensagens consideradas. No presente estudo a personagem Katniss é, então, considerada a mensagem. Além de levar em consideração o que é dito em determinado texto, a análise de conteúdo também leva em conta como é dito. O segundo método escolhido é a análise fílmica. No artigo Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s) Manuela Penafria (2009) afirma que o processo de análise fílmica implica em duas etapas: descrever o produto e estabelecer relações entre os elementos que foram decompostos, ou seja, interpretá-los. Para melhor desenvolvimento da pesquisa optou-se por não escolher apenas uma forma para fazer a análise, mas mesclar o que a autora determina como análises de conteúdo e de imagem e som, que serão delimitadas ao longo deste trabalho. A Teoria das Representações Sociais, desenvolvida pelo psicólogo social Serge Moscovici (2012) em sua obra A Psicanálise, Sua Imagem e Seu Público, servirá como instrumental teórico-metodológico. Por meio das análises, esta pesquisa busca entender como a protagonista Bem como a teoria da Identidade desenvolvida pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2005), em seu livro Identidade. Para a análise também será utilizado o Teste de Bechdel, criado pela chargista e cartunista americana Alisson Bechdel no ano de 1985, e que tem como objetivo analisar se filmes e outras peças televisivas são considerados machistas ou não. O teste leva em consideração três critérios: primeiro, é preciso que o filme tenha no mínimo duas mulheres, com nomes; segundo, que elas conversem uma com as outras; e, por último, que elas conversem sobre algo que não seja um homem. Entre as obras brasileiras já existentes relacionadas ao tema, estão os artigos Mulher-Maravilha: estudo sobre a representação da mulher e do feminino nas histórias em quadrinhos, de Beatriz da Costa Pan Chacon, apresentado em 2009 no XXV Simpósio de História em Fortaleza; e o trabalho de conclusão de curso
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Representações Femininas em Branca de Neve e os Sete Anões e Valente, de Anira Carolina Meneses de Carvalho Moura, defendido em 2013. Mesmo a Saga Jogos Vorazes sendo bastante nova já existem, no Brasil, alguns estudos científicos sobre a personagem em questão. Há também um artigo apresentado no Intercom 2012 sobre a saga intitulado A globalização e a questão da identidade fragmentada na representação política da protagonista da série Jogos Vorazes das autoras Aimee Andrade Silva e Liana Amaral da Universidade Federal do Ceará. A partir de uma pré-análise de conteúdo dos produtos escolhidos e de uma exploração do material, foram percebidos alguns temas que recebem maior destaque nas obras. Foram definidas, assim, as seguintes categorias para análise: a família; beleza e figurino; romance; e heroísmo. Por meio das análises, esta pesquisa busca entender como a protagonista Katniss Everdeen, é representada levando em consideração os estudos sobre gênero. A abertura dessa pesquisa se dá, no primeiro capítulo Representação e Identidade onde serão exploradas as teorias e autores utilizados para o embasamento teórico. Em seguida, no segundo capítulo A Mulher e o Cinema será feito um apanhado sobre o surgimento da figura da mulher no cinema e as mudanças ocorridas em suas representações ao longo dos anos, abordando também os papéis exercidos na frente e de atrás das câmeras. O terceiro capítulo Jogos Vorazes, a Saga será destinado à uma contextualização da Saga Jogos Vorazes, em que serão levadas em consideração a narrativa, adaptação e o roteiro. Pretende-se ainda fazer uma breve comparação entre filme e livro. No quarto capítulo Métodos e Análise serão delimitados os métodos para a análise. E o quinto capítulo Katniss Everdeen, Mulher e Heroína tratará da análise da personagem Katniss Everdeen, em que serão levadas em consideração suas principais características a serem observadas.
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2. REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE Este capítulo é destinado às teorias e autores utilizados na presente pesquisa para o embasamento teórico. São utilizadas a Teoria das Representações Sociais do psicólogo social Serge Moscovici (2012) e o conceito de identidade abordada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005). Será abordado ainda de que forma as teorias podem auxiliar a analisar a representação feminina no cinema e a compreender em que medida a protagonista da Saga, Katniss Everdeen, é um novo modelo de representação feminina e se a personagem foge do estereótipo donzela em perigo.
2.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A Teoria das Representações Sociais, criada pelo psicólogo social Serge Moscovici (2012) tem como objetivo ilustrar os fenômenos da humanidade a partir de uma perspectiva coletiva, considerando a individualidade. Tendo em vista que as representações sociais são um fenômeno, o autor interessou-se pela mudança de ideais na sociedade. O psicólogo social empregou o conceito de representação social a um estudo sobre a compreensão psicológica no pensamento público publicado no ano de 1961, na França. Em sua obra A Psicanálise, Sua Imagem e Seu Público, Moscovici (2012) enfatiza que o entendimento do fenômeno das representações sociais é mais fácil que sua conceituação. As representações sociais convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas. (MOSCOVICI, 2012, p. 34).
As representações sociais referem-se, segundo Moscovici (2012, p. 22), a “formas de conhecimento socialmente elaborado e partilhado, representantes de uma visão prática e concorrente na construção de uma realidade comum a um grupo social”. Ainda que distanciado do conhecimento científico, as representações sociais tratam do senso comum, não só por sua importância nas influências mútuas diárias
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e na vida social, mas, por suas vinculações com as afinidades por meio de práticas discursivas. Partindo dos estudos sobre gênero, levando em consideração a representação feminina no primeiro filme da Saga Jogos Vorazes pretende-se demonstrar as representações sociais atribuídas à protagonista, Katniss Everdeen. Desta maneira, as representações sociais seriam as construções compartilhadas pelo senso comum e reforçadas pela tradição, inserindo-se nesse contexto a representação social das mulheres. O autor assevera que os estereótipos das representações sociais seriam dificilmente enfraquecidos e afirma que as representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja algo idealizado, o que é ou o que deve ser. Através de sua autonomia e das pressões que elas exercem (mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que eles não são “nada mais que ideias”), elas são, contudo, como se fossem realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível (MOSCOVICI, 2012, p. 40).
Para Moscovici (2012) a estrutura de cada representação parece desdobrada, ela tem duas faces: a face figurativa e face simbólica. O que consiste em uma fonte de incerteza fundamental, que só desaparece quando há uma evolução. Um trabalho que vai além do convencional ou além da figura, que permite suprimi-la. A esse respeito, pensamos que uma mudança de perspectiva é necessária. Para qualificar uma representação social não é mais suficiente definir o agente que a produz. Fica claro que não demonstramos mais no que ela se distingue de outros sistemas também coletivos. Saber “quem” produz esses sistemas é menos instrutivo que saber “por que” foram produzidos. Em outras palavras, para apreender o sentido do qualificativo “social” é melhor destacar que a função corresponde do que as circunstâncias e as entidades que reflete. A função é própria ao social, na medida em que a representação contribui exclusivamente aos processos de formação das condutas e de orientação das comunicações sociais. (MOSCOVICI, 2012, p. 71)
O teórico cultural Stuart Hall (2003) alega em seu livro Da diáspora identidades e mediações culturais que a representação é resultado de uma prática discursiva, afirmando que o ‘real’ é produzido discursivamente e que só o
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conhecemos por meio da linguagem e da conceitualização, embora a realidade exista fora da linguagem, sendo constantemente mediada por ela e através dela. O conhecimento discursivo é o produto não a transparente representação do ‘real’ na linguagem, mas da articulação da linguagem em condições e relações reais. Assim, não há discurso inteligível sem a operação de um código. [...] Não há grau zero em linguagem. Naturalismo e ‘realismo’ – a aparente fidelidade da representação à coisa ou ao conceito representado – é o resultado, o efeito de uma certa articulação específica da linguagem sobre o ‘real’. É o resultado de uma prática discursiva. (HALL, 2003, p. 393)
A psicologia social e a Teoria das Representações Sociais consideram o estudo do senso comum expressivo para o conhecimento da sociedade. O senso comum é frequentemente recriado em nossas sociedades, e seu objeto situa a linguagem e o comportamento habitual entre os sujeitos. No processo de modificação e realimentação do senso comum, as representações sociais contidas são alteradas, eliminadas ou ainda são formadas novas representações. Conforme Moscovici (2012), as representações adquirem autoridade por meio de sua mediação em que os indivíduos alcançam mais elementos que permitem entender diferentes fenômenos do cotidiano. As representações sociais que surgem a partir de teorias científicas acabam modificando o senso comum, de maneira que o assunto não rodeie as classes populares e vá até os representantes da ciência, mas, sim, realize o caminho oposto. O âmbito do senso comum admite alcançar as representações sociais no período em que elas estão circulando e entende como elas são causadas. O senso comum, o conhecimento popular [...] oferece-nos acesso direto a representações sociais. São, até certo ponto, as representações sociais que combinam nossa capacidade de perceber, inferir, compreender, que vêm à nossa mente para dar um sentido às coisas, ou para explicar a situação de alguém. Elas são tão naturais e exigem tão pouco esforço que é quase impossível suprimi-las (MOSCOVICI, 2012, p. 201).
Para compreender melhor algumas representações sociais, é preciso debater dois mecanismos do processo de pensamentos que são definidos por Moscovici (2012) como responsáveis pelos organismos das representações: a ancoragem e a objetivação. Pela ancoragem, os objetivos e as ideias não familiares são comparados a padrões de categorias existentes e conhecidas pelo sujeito, sendo também acertadas para que consigam se encaixar em tal categoria. A ancoragem é um processo de
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classificação e nomeação daquilo que não se conhece, para que deixe de ser algo estranho. No momento em que nós podemos falar algo, avaliá-lo, e então comunicálo (...), então nós podemos representar o não usual em nosso mundo familiar, reproduzi-lo como uma réplica de um modelo familiar. Pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo. De fato, a representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação e de categorias de nomes. (MOSCOVICI, 2012, p. 62)
Já a objetivação reproduz um conceito em uma imagem, encontrando representações não verbais para as ideias. Com o tempo, as diferenças entre a imagem e o conceito são esquecidas, de modo que o conceito perde o caráter abstrato e torna-se como físico, possuindo a autoridade de um fenômeno natural para os sujeitos. A imagem é completamente assimilada e substitui a concepção pela percepção. As imagens se tornam elementos da realidade e não elementos do pensamento. Para transformar o não familiar em algo familiar, as representações usam a memória. Por meio da memória e do conhecimento, o sujeito ativa a imagem e linguagem fundamental para compreender o desconhecido. A ancoragem e a objetivação são formas de lidar com a memória. Pela ancoragem, os objetos são classificados e nomeados, sendo interiorizados. Na objetivação, a memória busca, no interior, conceito e imagem para identificar as coisas externas por meio do conhecimento prévio do sujeito (MOSCOVICI, 2012). A Teoria das Representações Sociais, ao cruzar com a oposição entre objetividade e subjetividade, admitindo a compreensão dos fatos psicológicos em sua extensão social, tem se configurado em um padrão de grande importância nessa frequente investigação. Ela abre espaço e também determina o exercício da interdisciplinaridade,
destacando
o
método
comunicacional,
em
que
as
representações são construídas via comunicação, obrigando a conversa e a troca. Como evoca Rafael Augustus Sêga (2000), de acordo com Serge Moscovici “[...] não existe nada na representação que não esteja na realidade, exceto a representação em si”. Ao longo dos últimos anos os papéis femininos passaram por uma forte transição na sociedade, surgiram também mudanças na representação social das mulheres, e sua representação por meio da mídia e do cinema. A
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personagem Katniss pode então trazer inovações, rompendo paradigmas que envolvem a figura feminina. As representações sociais nascem no curso das variadas transformações que geram novos conteúdos. Durante essas metamorfoses, as coisas não apenas se modificam, são também vistas de um ponto mais claro. As pessoas tornam-se receptivas a manifestações que anteriormente lhes haviam escapado. Todas as coisas que nos tocam no mundo à nossa volta são tanto o efeito de nossas representações como as causas dessas representações. (SÊGA, 2000, p. 132)
A Teoria das Representações Sociais traz um conceito que explora o pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade. Partindo da premissa de que existem formas diferentes de conhecer e de se comunicar, guiadas por objetivos diferentes, que são móveis, predominantes na sociedade: a consensual e a científica, cada uma gerando seu próprio universo.
2.3 IDENTIDADE O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005), em sua obra Identidade, levanta discussões acerca das possíveis identidades ou sentimentos de pertencimento à determinadas culturas, comunidades e nações. O autor propõe a ideia de que a identidade não é definitiva porque os grupos humanos são dinâmicos, mas trata-se de valores negociáveis, uma vez que o indivíduo tem liberdade para tomar decisões. Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda a parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. As identidades flutuam no ar, algumas de nossas próprias escolhas, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. (BAUMAN, 2005, p. 18-19).
Em Jogos Vorazes, a protagonista Katniss Everdeen se vê forçada a assumir diferentes identidades ao longo da narrativa. Uma vez dentro da arena dos Jogos, a personagem traça uma série de estratégias e assim conseguir patrocínio, o que permitem a sua sobrevivência. Segundo Bauman (2005), a partir da era moderna a identidade se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um grupo a que possam pedir acesso.
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As “novas” relações começam a interferir nas construções cotidianas, nas práticas sociais, como forma de entendimento do mundo. Com isso, as identidades, antes consideradas seguras e estáveis, começam a fragmentar-se. Em sua obra A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Stuart Hall (2005), aponta que as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram a vida social, estão em declínio e com isso surgem novas identidades fragmentando o indivíduo moderno, que era visto como sujeito unificado. Logo não há mais uma identidade única e centralizada, mas um sujeito plural e heterogêneo. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo deslocadas. (HALL, 2005, p. 13)
Na sociedade pós-moderna o problema da identidade se intensifica de forma cada vez mais intrigante e o mundo moderno é repleto de alternativas que inibem ou omitem fraquezas individuais em relação ao outro. Em todo lugar e de diferentes formas, novas identidades surgem ou se incorporam as já existentes, transformando mais e mais o sujeito pós-moderno. [...] a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais — mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta. (BAUMAN, 2005, p. 22)
Bauman (2005) afirma que o conceito de identidade é altamente contestado. O autor adverte que sempre que se escuta essa palavra está havendo uma batalha e que o campo de batalha é o lar da identidade, uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação. Como um assunto individual conduzido com poucos pontos de orientação (e que mudam constantemente), a tarefa de construir uma identidade própria, torna-la coerente e submetê-la à aprovação pública exige atenção vitalícia, vigilância constante, um enorme e crescente volume de recursos e um esforço incessante sem esperança de descanso. (BAUMAN, 2005, p. 89)
Para Bauman (2005, p. 91) na modernidade líquida a identidade não é uma mera "construção social". Ter uma ou muitas identidades é uma tarefa, ou mais precisamente, uma tarefa política.
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3. A MULHER E O CINEMA Neste capítulo será realizada uma revisão de literatura sobre o surgimento da figura das mulheres no cinema e as mudanças ocorridas em suas representações ao longo dos anos. Porém, antes de abordar o papel das mulheres no cinema é preciso, inicialmente, tratar da história do cinema. Embora as mulheres não tenham tido influência no surgimento da Sétima Arte3 seria incompreensível abordar tal tema sem referir os grandes feitos primordiais, atribuídos a homens, e no decorrer do capítulo explorar a evolução do papel das mulheres ao longo da história do cinema. A contextualização histórica que este capítulo trará, irá permitir avaliar o impacto das primeiras manifestações femininas no mundo cinematográfico. Estas manifestações aconteceram nos dois sentidos: por um lado, um papel ou personagem interpretados; por outro, na produção e direção de filmes.
3.1 A ORIGEM DO CINEMA A história do cinema se inicia, naturalmente, com as experiências feitas ao longo de todo o século XIX. Estas eram, quase exclusivamente, jogos ópticos, atribuídos a inventores como William George Horner, Willian Fitton, J. A. Ferdinand Plateau ou Émile Reynoud. Em 1891, Thomas Edison inventou o cinetógrafo e, posteriormente, o cinetoscópio. Foi com base nestes primeiros equipamentos que os irmãos Auguste e Louis Lumière construíram o cinematógrafo: aparelho portátil que realizava três funções, filmar, revelar e projetar, mas a função mais encantadora: possibilitar que mais pessoas pudessem assistir às projeções. Em 1895 foi feita a primeira exibição pública paga de filmes e é, normalmente, esta, a data indicada como o nascimento do cinema. Edison e Lumière foram, então, os primeiros realizadores e apresentaram, na altura, documentários que seriam o
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A expressão do cinema como a sétima surgiu em 1911 dada pelo teórico e crítico do cinema Ricciotto Canudo em sua publicação Manifeste des Sept Arts (Manifesto das Sete Artes), documento que só foi publicado em 1923. Através do manifesto, Canudo, pretendia distanciar a ideia de que o cinema era um espetáculo para a massa, mas aproximá-la e integrá-la a categoria das Belas artes como a música, pintura, escultura, arquitetura, poesia e a dança. Para ele, o cinema é uma arte “síntese”, uma arte total, que conciliava todas as outras artes. Por isso, considerava o cinema a sétima arte.
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incentivo ao início do cinema amador: Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895) foi o primeiro documentário dos irmãos e Vitascope (1896), a primeira produção de Edison. Durante a I Guerra Mundial devido à situação de destruição na Europa, a produção de filmes passa a concentrar-se em Hollywood, o que potencializou a formação e desenvolvimento de grandes estúdios, levando ao surgimento do “Star System”, a “fábrica” de estrelas que encantam multidões. O caso de Mary Pickford, “a noivinha da América” e o de Theda Bara são alguns exemplos. A partir dos anos 1930, e até à II Guerra Mundial, apesar de a produção continuar concentrada principalmente em Hollywood, a França, a Alemanha e a URSS produziram obras de destaque. Na França o cinema mostra uma perspectiva lírica da sociedade, por meio do realismo poético e de melodramas policiais. Na Alemanha nazista, o cinema é utilizado como propaganda do regime – exemplo disso é Triumph Des Willens (1935), de Leni Riefenstahl. Na URSS, também são usadas obras cinematográficas como propaganda, mas com planos impostos por Stalin. Esta época é também referida como “a época de ouro de Hollywood”, que surge após a Grande Depressão e que se baseia numa renovação da indústria. Ultrapassada a II Grande Guerra, realizadores e críticos italianos decidem assumir uma posição mais crítica em relação aos problemas sociais e a rebelarem-se contra os sistemas de produção tradicionais. Surge, então, a relativamente curta experiência do neo-realismo, que, mesmo assim, deixa marcas profundas no mundo cinematográfico, sobretudo em relação à temática, linguagem e no que dizia respeito ao público. Também na Itália, a partir da década de 1950 e 1960, surge uma grande preocupação com a investigação psicológica de uma sociedade em crise, em que são discutidas e feitas reflexões sobre a condição humana e sobre a sexualidade como meio de autoconhecimento e transformação. A partir desta época o cinema passa por avanços e desenvolvimentos das técnicas e dos procedimentos, e um aprofundamento de temas, linguagem, personagens que levam ao cinema como é conhecido hoje.
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No mesmo período, na França, persiste um cinema tradicional e quase exclusivamente acadêmico, as obras são pessimistas e exageradamente politizadas ou reagem ao materialismo e existencialismo. Em 1957, surge, no entanto, um movimento contra o academismo vigente, e que privilegia o cinema de autor, rejeitando o cinema de estúdio e as regras narrativas, esse movimento ficou conhecido com a Nouvelle Vague.
3.2 O SURGIMENTO DA MULHER NO CINEMA O papel das mulheres, diminuto no início da história do cinema, adquire um papel crucial e, muitas vezes, principal. É, assim, desde já notório o impacto das primeiras manifestações femininas neste mundo, embora não devam ser retiradas do contexto histórico em que estão inseridas, que ajudaram na libertação das mulheres e na abertura do seu papel social, sendo uma óbvia arma para o triunfo (maior ou menor) do feminismo no mundo. A pesquisadora E. Ann Kaplan (1983) em sua obra A Mulher e o Cinema os dois lados da câmera afirma que o cinema contemporâneo em relação ao cinema noir, que é um estilo de filme primordialmente policial e de suspense, foi muito mais longe na representação explícita da sexualidade feminina. Para Kaplan (1983) os filmes de Hollywood negam às mulheres uma voz ativa e um discurso, e seu desejo está, na maior parte das vezes, sujeito ao desejo masculino. No início dos anos 1970 houve um grande número de filmes mostrando mulheres sendo estupradas, umas das maiores hostilidades infligida às mulheres, o que expressa a ideia de que as mulheres anseiam o tempo todo por sexo. Com a emergência dos movimentos de liberação das mulheres, o movimento feminista americano passou a estudar a representação da sexualidade feminina nas artes, que a princípio com uma abordagem sociológica, examinava em diversos trabalhos imaginativos os papéis sexuais ocupados pelas mulheres tanto nas artes clássicas quanto nos entretenimentos de massa. Eram avaliados pontos negativos e positivos, de acordo com critérios construídos, que descreviam mulheres completamente autônomas e independentes.
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[..] os numerosos movimentos dos anos 60 produziram mudanças culturais radicais que afrouxaram os rígidos códigos puritanos. Os movimentos de liberação feminina encorajavam as mulheres a tomar posse de sua sexualidade homo ou hetero. A exibição ostensiva da sexualidade feminina tem sido uma ameaça para o patriarcado e tem exigido um nível muito maior de objetividade acerca das causas subjacentes de a mulher ter sido relegada à ausência, ao silencia e a marginalidade. (KAPLAN, 1983, P. 23)
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980 os filmes começaram a mudar esse modelo e astros como John Travolta foram tratados como objeto do olhar feminino e em alguns desses filmes são colocados explicitamente na posição de desejo sexual de uma mulher que controla a ação do filme. Muitas feministas começaram a não se deixar levar pelas chamadas mulheres “liberadas” do cinema, ou pelo fato de ultimamente alguns astros terem sido transformados em objeto do olhar “feminino”. Mas é significativo que em todos esses filmes, quando um homem deixa seu papel tradicional, em que controla a ação e assume o de desejo sexual, a mulher adota o papel “masculino” de dono do olhar e iniciador da ação. Quase sempre perdendo, ao fazê-lo, as características femininas tradicionais – não aquelas de sedução, mas antes as de bondade, humanidade, maternidade. Agora, ela é quase sempre fria, energética, ambiciosa, manipuladora, exatamente como os homens cuja posição usurpou. (KAPLAN, 1983, P. 51)
Esta representação persistente da posição masculina foi bastante criticada pelas análises feministas dos filmes hollywoodianos, que como assevera a autora são construídos de acordo com o inconsciente patriarcal. As narrativas dos filmes são organizadas por meio de linguagem e discurso masculinos que se paralelizam ao discurso do inconsciente. O papel das realizadoras e produtoras mulheres não pode ser negligenciado. Embora, inicialmente, o papel da realização e produção estivesse totalmente entregue aos homens, ao longo dos tempos houve uma abertura cada vez maior destes cargos a mulheres, como em tantos outros cargos tradicionalmente masculinos, o que é sintomático da própria evolução das mentalidades. Surgem então nomes como de Margarethe Von Trotta4, Marguerite Duras5, Chantal
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Margarethe Von Trotta é diretora e roteirista de cinema alemã. Nascida em 1942, estudou Belas Artes e frequentou a escola de dramaturgia em Munique, iniciou sua carreira em Paris na década de 1960. Seu filme mais recente é Hanna Arendt (2013). 5 Marguerite Duras nasceu em 1914, foi romancista, novelista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturga francesa, sendo considerada uma das principais vozes femininas da literatura do Século XX na Europa. Faleceu em 1996.
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Arkeman6, Nelly Kaplan7, Agnès Varda8 na França, Márta Mészáros9 na Hungria; entre outras. Seus trabalhos revelam um avanço significativo nas representações femininas já que vemos as mulheres encontrando uma voz e um posicionamento que se diferencia daquele dos filmes de Hollywood. Por algumas razões complexas, as cineastas europeias começaram a produzir filmes de longa-metragem muito antes das mulheres nos Estados Unidos. Mesmo com a proliferação dos filmes realizados por mulheres no início do movimento feminista, a produção nos EUA se limitou aos curtas. Isso se deu, em primeiro lugar, pela estrutura específica da indústria do cinema americana e, em segundo lugar, pela diferença cultural da posição ocupada pelas mulheres da classe média da Europa. Yvonne Rainer10 foi uma das primeiras cineastas femininas americanas a produzir filmes longa-metragem. Os primeiros filmes independentes feitos por mulheres eram produzidos essencialmente na tradição realista. O realismo, fora do cinema comercial, tinha como objetivo captar em filme experiências das pessoas comuns. O cinema feminino ficou conhecido como um “contra cinema”. Isto é, as cineastas feministas precisam confrontar-se dentro de seus filmes com as representações aceitas da realidade a fim de denunciar sua falsidade. O realismo como estilo é incapaz de mudar a conscientização porque ela não se afasta das formas que corporificam a antiga conscientização. (KAPLAN, 1983, p. 188)
Segundo Kaplan (1983), é essencial para as críticas feministas examinar os processos significantes com cuidado a fim de compreender o modo pelo qual as mulheres foram construídas na linguagem e no filme, e é igualmente importante não
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Chantal Arkeman foi produtora cinematográfica e diretora de fotografia nascida em 1950 na Bélgica. A temática de seus filmes caminha desde uma visão crítica do comportamento da classe média, atendose principalmente à mulher, até os problemas políticos mais gerais da sociedade. 7 Nelly Kaplan nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1931. Em 1953 se muda para a França onde se consolida como escritora e cineasta. Atualmente escreve para a revista literária Le Magazine littéraire e participa da emissora de rádio Des Papous dans la tête, difundida pela Francia-Cultura. 8 Agnès Varda é cineasta e fotógrafa Belga, radicada na França, nascida em 1928. Suas fotografias, filmes e instalações abordam questões referentes à realidade no documentário, ao feminismo e ao comentário social. Hoje atua como professora na European Graduate School. 9 Márta Mészáros nasceu em 1931 na Hungria. É roteirista e diretora de cinema, iniciou sua carreira trabalhando com documentários, tendo feito 25 curtas ao longo de dez anos. Estreou em longasmetragem em 1968, tendo sido o primeiro filme húngaro dirigido por uma mulher. 10 Yvonne Rainer é dançarina, coreógrafa e cineasta americana, nascida em 1934. Seu trabalho é considerado como um desafio experimental e por vezes é classificado como minimalista. Atualmente ela vive e trabalha na Califórnia e Nova York.
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perder de vista o mundo no qual vivemos, e no qual esta opressão adquire formas concretas e muitas vezes dolorosas: Precisamos de filmes que nos mostrem, uma vez que tenhamos dominado (isto é, compreendido integralmente) os discursos existentes que nos oprimem, como nos colocamos em posição diversa em relação a tais discursos. O conhecimento é nesse sentido, poder. (KAPLAN, 1983, p. 201)
Uma vez compreendidos os discursos opressores, as representações e as identidades das mulheres no cinema é possível a reflexão crítica sobre esses estereótipos. A partir disto, a indústria cinematográfica poderá passar a retratar cada vez mais mulheres reais, cada uma com suas verdadeiras identidades e com suas histórias. Personagens como Katniss Everdeen, mesmo que sejam ficcionais, mostram que esta indústria pode acompanhar as mudanças globais.
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4. JOGOS VORAZES, SAGA Este capítulo trata sobre a Saga Jogos Vorazes, em que serão levadas em consideração a origem, distribuição, repercussão, narrativa, adaptação e o roteiro. Para facilitar o entendimento da narrativa, a história de cada livro está localizada em um tópico diferente, sendo eles: Jogos Vorazes (2008), Em Chamas (2009) e A Esperança (2010). No último tópico serão tratadas à adaptação do livro ao cinema e a comparação entre os primeiros livro e filme.
4.1 A ORIGEM DA SAGA A Saga Jogos Vorazes foi publicada em 14 de setembro de 2008 nos Estados Unidos com autoria da escritora americana Suzanne Collins. The Hunger Games, no original, passou 300 semanas consecutivas na lista de bestsellers do The New York Times. O primeiro livro foi distribuído em 56 territórios e em 51 idiomas, vendendo mais de 85 milhões de cópias em todo o mundo. No Brasil o livro foi lançado em maio de 2010. No ano de 2010, Suzanne Collins foi nomeada como uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Time. Segundo Suzanne Collins, a ideia para Jogos Vorazes surgiu enquanto ela zapeava pelos canais na televisão. Em um canal, a autora observou pessoas competindo em um reality show e em outro viu cenas da Guerra no Iraque. As duas coisas "começaram a se confundir de um modo muito inquietante" e a ideia para o livro foi formada. A sensação de perda que Suzanne teve quando o pai prestou serviço militar na Guerra do Vietnã também contribuiu para o desenvolvimento da obra, no qual a protagonista perde o pai aos onze anos de idade em um acidente nas minas cinco anos antes do início da história.
4.2 JOGOS VORAZES A história se passa em um país chamado Panem, em um período futurístico não definido, que fica localizado na antiga América do Norte. O país é formado por
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uma grande cidade central chamada de “Capital”, que é rodeada de 12 distritos, que são nomeados de 1 ao 12, mais pobres e responsáveis pela confecção de tudo o que é consumido na Capital. Havia um 13º distrito que foi destruído pela Capital, nos chamados “Dias Escuros”, ao se rebelar, cerca de 74 anos antes do início da história. Para que nenhum outro distrito se revoltasse contra a Capital e para que a destruição do distrito 13 ficasse para sempre na memória da população de Panem foram criados os Jogos Vorazes, uma competição anual que é transmitida ao vivo pela televisão local. Durante uma celebração chamada “Dia da Colheita” são selecionados por sorteio uma garota e um garoto entre doze e dezoito anos de cada distrito, que é um processo obrigatório. Os tributos, como são chamados, são forçados a entrar em uma perigosa arena, controlada pela Capital, e precisam lutar entre si até a morte. Alguns distritos, como o 1 e 2, preparam seus jovens desde pequenos para os Jogos, esse são chamados também de carreiristas. A protagonista da história é Katniss Everdeen, uma garota de dezesseis anos que mora no Distrito 12 com a mãe e a irmã. Este distrito localiza-se em uma região rica em carvão. Katniss perdeu o pai em uma explosão numa mina de carvão, quando tinha onze anos, e desde então sustenta sua família caçando ilegalmente na floresta, com seu melhor amigo Gale. No dia da colheita, sua irmã mais nova Primrose Everdeen é selecionada para participar dos Jogos Vorazes, mas Katniss se oferece para ir em seu lugar. O outro tributo do Distrito 12 é Peeta Mellark, o filho do padeiro, que tem a mesma idade de Katniss e estuda na mesma escola que ela. Depois de selecionados, Katniss e Peeta são levados para a Capital, onde se encontram com os outros tributos. Eles têm como mentor Haymitch Abernathy, o único morador do Distrito 12 ainda vivo que venceu os Jogos no passado, tornando-se um alcoólatra. Katniss conhece Cinna, o estilista responsável por sua aparência nas apresentações em público, que são importantes para ajudar na obtenção de patrocinadores, pessoas que pagam para que o tributo receba ajuda como suprimentos e remédios, quando estiver na arena. Ao longo dos dias na Capital, Katniss e Peeta são submetidos a uma transformação em suas aparências e recebem
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treinamentos de sobrevivência. Durante uma entrevista Peeta revela o seu amor não correspondido por Katniss, a garota acredita que a atitude dele faz parte de sua tática para conseguir patrocinadores e resolve assumir que também gosta dele. Começam os Jogos e quase metade dos tributos morre no primeiro dia. Ao longo da competição Katniss consegue um arco e flecha e usa suas habilidades de caça para sobreviver, enquanto o número de tributos mortos aumenta. Alguns dias depois, Katniss forma uma breve aliança com Rue, uma garota de doze anos do Distrito 11, que a faz lembrar-se de Prim. Rue é assassinada por outro tributo, que Katniss mata logo depois. Ela canta para Rue e envolve seu corpo com flores, como sinal de respeito por ela e repulsa pela Capital, deixando os moradores do distrito 11 comovidos e agradecidos. Supostamente devido a imagem de "amantes desafortunados" que a audiência tem de Katniss e Peeta, é anunciada uma nova regra durante os Jogos: caso dois tributos de um mesmo distrito sejam os últimos a sobreviver, os dois serão considerados vencedores. Depois de ouvir isso, Katniss sai à procura de Peeta, de quem ela tinha se afastado por acreditar que ele estava aliado a outros tributos. Quando finalmente o encontra, descobre que ele está gravemente ferido na perna. Ela encontra um abrigo para os dois em uma caverna e cuida dele, enquanto age como uma garota apaixonada para manter a audiência interessada nos dois. Quando Katniss e Peeta são os dois últimos tributos, os Idealizadores dos Jogos mudam as regras novamente e, em uma clara tentativa de conduzir os Jogos a um final dramático, dizem que apenas uma pessoa poderá vencer a competição. Ao invés de competir para ver quem sai vitorioso, ambos concordam em cometer suicídio simultaneamente comendo amoras envenenadas, pois não queriam conviver com o fato de terem matado um ao outro e tinham esperança de que a Capital iria preferir dois vencedores ao invés de nenhum. A estratégia funciona, Katniss e Peeta sobrevivem e são declarados os vencedores da 74ª edição dos Jogos Vorazes.
4.3 EM CHAMAS Katniss Everdeen e Peeta Mellark voltam para o Distrito 12, após terem vencido a 74ª edição dos Jogos Vorazes, onde passam a viver na Aldeia dos
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Vitoriosos. No dia em que os dois vão começar uma turnê feita anualmente pelos vencedores, Katniss é visitada pelo Presidente Snow, que deixa claro que Katniss está em perigo por ter quebrado as regras dos Jogos e feito com que fosse possível que ela e Peeta vencessem, o que foi considerado por todos um ato de desafio à Capital e inspirou o início de muitas revoltas nos distritos. Para evitar que suas famílias e as pessoas que amam sejam punidas, Katniss e Peeta precisam convencer toda a população de Panem de que o único motivo de não terem tentado vencer os Jogos sozinhos foi porque estavam apaixonados um pelo outro. Os dois saem em turnê por Panem e depois de terem visitado todos os outros distritos, Peeta pede Katniss publicamente em casamento e ela aceita, esperando que isso seja o suficiente para convencer o Presidente Snow, mas ele diz que não é. Com o objetivo de eliminar Katniss de uma vez por todas, o Presidente Snow anuncia que para o novo "Massacre Quaternário", uma edição especial dos Jogos Vorazes que ocorrem a cada vinte e cinco anos, os enviados de cada distrito serão vinte e quatro antigos vencedores. Como é a única vencedora feminina do Distrito 12, Katniss é enviada, e, quando Haymitch é sorteado como o tributo masculino, Peeta se voluntaria como tributo para ir em seu lugar. Em sua entrevista com Ceasar Flickerman, Katniss usa um vestido de noiva branco, mandado pelo presidente Snow, porém seu estilista Cinna realiza algumas modificações. Ao mostrar o vestido para a plateia ele se incendeia revelando um vestido com a aparência de um Tordo, o símbolo da revolução. A Capital entende isso como mais um ato de rebelião e mata Cinna antes mesmo de Katniss entrar na arena dos jogos. Em sua entrevista, Peeta inventa que ele e Katniss se casaram secretamente e que Katniss está grávida. Peeta inventou tal notícia pois queria fazer com que o Presidente Snow cancelasse o reality, porém sua tentativa fracassa e os jogos continuam de pé. Quando a competição começa Katniss e Peeta acabam se aliando à Finnick Odair, que venceu aos Jogos dez anos antes, quando tinha quatorze anos de idade, e Mags, uma voluntária de oitenta anos, ambos do Distrito 4. A arena é formada por uma área de praia e floresta, cercada por um campo de força. Depois de receberem diversos ataques planejados pelos Idealizadores dos
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Jogos e também se aliarem ao casal Beetee e Wiress do Distrito 3 e a Johanna Mason do Distrito 7, eles descobrem que a arena funciona como um relógio, em que a cada uma hora há um ataque em uma parte diferente da arena. Com Mags e Wiress mortas, Beetee arma um plano que iria supostamente eletrocutar os outros tributos, mas é usado para destruir o campo de força ao redor da arena, quando Katniss tem a ideia de lançar uma flecha no campo de força do teto. Machucada, Katniss desmaia. Ao acordar, ela descobre que todo o Massacre Quaternário era um plano conhecido por alguns dos outros tributos para tirá-los da arena, e que eles estão indo agora para o Distrito 13, que não foi totalmente destruído pela Capital. Katniss descobre também que Johanna e Peeta foram capturados pela Capital, o que a deixa transtornada pois ela queria protege-lo a qualquer custo. Gale visita Katniss e lhe informa que conseguiu fugir do Distrito 12, que foi totalmente destruído pela Capital logo após ao ataque na arena, com suas famílias agora estão escondidos no Distrito 13.
4.4 A ESPERANÇA Katniss, Finnick e Beetee são enviados para o Distrito 13, que está liderando a rebelião. O distrito é governado pela presidente Alma Coin. Lá, Katniss aceita ser o Tordo, o símbolo da revolução. Ela começa a ser filmada e fotografada para a criação de várias propagandas. No Distrito 13, Katniss reencontra sua família, ela e Gale iniciam seus treinamentos para o exército rebelde, entrando em combate pela primeira vez no Distrito 8, após a Capital bombardear um hospital cheio de rebeldes feridos. Mas Katniss começa a demonstrar um fraco desempenho como Tordo e a presidente Coin ordena o resgate de Peeta, Johanna, Annie e Enobaria, achando que esse resgate melhoraria o desempenho de Katniss. Mas Peeta foi telessequestrado, sofreu uma espécie de lavagem cerebral enquanto estava preso na Capital e tenta matar Katniss, mas não consegue. Os médicos do Distrito 13 tentam recuperar a mente dele. Mesmo estando ao lado de Gale, Katniss vê o sentimento por Peeta ressurgir, no entanto sente dúvidas se será possível um futuro ao lado dele.
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Katniss é enviada para o ataque à Capital. Após serem atacados, o capitão do esquadrão, Boggs, acaba perdendo a perna esquerda e morre. O esquadrão, então, decide avançar para o interior da Capital pelo subterrâneo. Lá, o grupo é atacado por bestantes em forma de lagartos e os únicos sobreviventes são Katniss, Gale, Peeta, Cressida e Pollux. Fantasiados, eles procuram por Tigris, uma amiga de Cressida, moradora da Capital e partidária da revolução. Tigris esconde o esquadrão no porão de sua loja até eles terem um novo plano. O plano é cercar a mansão do presidente Snow, invadir a mansão e capturar o presidente, pondo fim à guerra. Mas eles não esperavam que os rebeldes já houvessem avançado demais na Capital e que toda a população da cidade estava se abrigando em frente à mansão do presidente Snow, o que aumentou o policiamento. Os rebeldes atacam o centro da cidade e Gale é capturado. Katniss está sozinha no combate quando vê que Prim, que está entre os médicos rebeldes do Distrito 13. Um aerodeslizador com a insígnia da Capital aparece no céu e bombardeia o campo de batalha, matando Prim e outras milhares de crianças. As bombas causam grandes explosões, e acabam queimando parte do corpo de Katniss. Após o bombardeio, Katniss perde a consciência. Ela acorda depois de algum tempo já dentro da mansão do presidente Snow, que estava sendo usada como hospital provisoriamente pelos rebeldes vitoriosos. Passeando pela mansão, ela descobre o quarto onde o presidente Snow está sendo mantido. Snow diz que não foi ele que ordenou o bombardeamento que matou Prim, e sim Coin. Chega o dia da execução de Snow. A presidente Coin reúne os vitoriosos dos Jogos ainda vivos para sugerir uma última edição da competição somente com as crianças da Capital. Peeta, Annie e Beetee são contra, Katniss, Johanna, Enobaria e Haymitch votam a favor dos Jogos. Katniss vai matar Snow, mas ela pensa no que ele lhe disse e mata Coin no lugar. Ela é presa, ao sair descobre que foi julgada e, surpreendentemente, considerada inocente. Seu médico, após a vitória rebelde, testemunhou dizendo que ela era insana. Haymitch conta que após a morte de Coin houve um pandemônio, quando o tumulto cessou encontraram o corpo de Snow preso em um poste, não sabendo se ele morreu engasgado ou se foi sufocado pela multidão, durante a correria. É realizada uma rápida eleição onde Paylor, antiga comandante rebelde do Distrito 8,
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é eleita nova presidente de Panem. Katniss volta para o Distrito 12 com Haymitch, e Gale passa a viver no Distrito 2. Algum tempo depois, Katniss se casa com Peeta e eles tem um casal de filhos chamados Willow e Rye.
4.5 A ADAPTAÇÃO Em 2010 o estúdio LionsGate adquiriu os direitos para uma adaptação cinematográfica do livro, que foi dirigido por Gary Ross. O roteiro do filme foi escrito pela própria Suzanne Collins, com ajuda do diretor de revisão Billy Rae. A produção foi iniciada em 2011 e o filme teve sua estreia mundial em 22 de março de 2012, com Jennifer Lawrence no papel de Katniss Everdeen, Josh Hutcherson como Peeta e Liam Hemsworth como Gale. Quebrando vários recordes, a obra se tornou a 14ª maior bilheteria de lançamento na América do Norte de todos os tempos gerando quase US$ 700 milhões de dólares em do mundo todo. No Brasil, estreou com um público de 481 mil pessoas em seu primeiro fim de semana e, ao todo, atraiu 1,9 milhão de espectadores. Por se tratar de uma adaptação, o filme traz elementos pré-existentes no livro, mas traz também algumas omissões, resumos e cortes de personagens. Houve também alguns acréscimos de personagens e fatos narrativos da história. Vale ressaltar que a adaptação foi demasiadamente elogiada11 pela crítica por ser bastante fiel ao livro. As adaptações fílmicas, segundo Robert Stam (2006), podem ser estudadas como um fenômeno de “mutação de formas entre mídias”, sugerindo que uma adaptação, assim como uma leitura de um romance, permite uma variedade de interpretações e visões para adaptação, as quais podem ser “inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos” (STAM, 2006, p.27).
“É uma história tão bem escrita que não teria como errar nesta adaptação cinematográfica”. (VEJA, Revista, 2012) "Jogos Vorazes tem uma história convincente, algo a dizer e boas performances. [... Ele] produziu algo que funciona de fato como um filme, não apenas como adaptação de um livro”. (CINECLICK, Site, 2012) 11
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O autor ainda defende que, para analisar ou julgar uma adaptação não é relevante e nem de bom tom considerar questões como “fidelidade” para significar que uma adaptação não alcançou o mesmo “impacto moral” que sua fonte. Mas ao contrário,
deve-se
abordar
essa
fidelidade
a
partir
uma
perspectiva
fundamentalmente intertextual. Em sua obra A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação Robert Stam (2008) afirma que a essência da obra a ser adaptada é dada apenas como ponto de partida para a obra derivada, e não propriamente como ponto de chegada. Na realidade, podemos questionar até mesmo se a fidelidade estrita é possível. Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável. (STAM, 2008, p. 20)
A primeira grande diferença entre o livro e filme é o fato de a narrativa do livro ser em primeira pessoa. No livro, o ponto de vista pelo qual o a história é narrada é o da protagonista Katniss Everdeen, mas com a adaptação para o cinema essa perspectiva foi modificada a fim de apresentar outros pontos de vista presentes na trama. Alguns fatos que não são detalhados no livro podem ser observados no filme como por exemplo o processo de criação dos Jogos. Ainda segundo Stam (2008) são raros os filmes em que é utilizada a câmera para narração em primeira pessoa a fim de que o espectador veja somente o que o protagonista vê. Pelo contrário, os filmes costumam adotar a câmera como “um tipo de narrador em terceira pessoa que se move para representar o ponto de vista de uma variedade de personagens em diferentes momentos” (STAM, 2008, p.72). Outra diferença marcante é o fato do filme trazer uma história bem mais leve que a original no que diz respeito às dores, raivas, o contraste entre os pobres e ricos e principalmente as mortes. O que por um lado pode ter sido uma boa alternativa já que se fosse abordado exatamente como no livro a classificação indicativa do filme teria que ser mais alta. Mas por outro lado essa escolha pode superficializar o fato de que são crianças matando crianças.
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O broche de ouro em forma de Tordo que Katniss usa durante os jogos é mais uma diferença notável. No livro, Katniss ganha o broche de Madge, filha do prefeito do Distrito 12, que foi cortada na adaptação. Já no filme, ela ganha o broche de uma senhora chamada Greasy Sae, uma comerciante. Vale ressaltar ainda que no filme não fica claro que o broche é símbolo do Distrito 12 e uma afronta à Capital. O broche também pertencia a outro tributo, morto em outra edição dos jogos. Alguns conceitos ficaram perdidos com a adaptação, um exemplo são as tésseras. Antes de irem para a cerimônia do dia da Colheita Katniss e Gale dialogam sobre seus nomes estarem inscritos muitas vezes no sorteio. Katniss diz que teme por si própria e pelas 42 tésseras de Gale, mas não explica de fato o que são e como ocorre esse processo, como acontece no livro: Você se torna elegível para a colheita no dia que completa doze anos. Nesse ano, seu nome entra uma vez. Aos treze, duas vezes. E assim por diante até completar dezoito, o último ano de elegibilidade, quando seu nome vai para a piscina sete vezes. Isso é certo para todo cidadão dentro de todos os doze distritos do país de Panem inteiro. [...] Você pode optar por adicionar seu nome mais vezes em troca de tésseras. Cada téssera vale um ano de um magro suprimento de grãos e óleo para uma pessoa. Você pode fazer isso para cada membro da sua família também. Assim, aos doze anos, eu tive meu nome anotado quatro vezes. Uma vez, porque era obrigatório e outras três vezes por causa das tésseras que garantiriam grãos e óleo para mim, para Prim e para minha mãe. Na verdade, precisei fazer isso a cada ano. E as inscrições são cumulativas. Então agora, aos dezesseis anos, meu nome aparecerá 20 vezes na colheita. Gale, que tem dezoito e tem ajudado ou alimentando sozinho uma família de cinco por sete anos, terá seu nome em 42 vezes no sorteio. (COLLINS, 2008, p. 19)
O relacionamento de Katniss com a família, principalmente com a mãe, também sofreu algumas alterações. O que pode deixar o telespectador um pouco confuso, como o fato da protagonista e mãe não se darem muito bem. O filme não explica a origem desse conflito, já no livro Katniss explica por diversas vezes que sua relação com a mãe ficou muito difícil desde a morte do pai, quando esta entrou em depressão deixando as filhas sozinhas. O pai de Katniss tem um papel muito importante na história, mas foi cortado na adaptação possivelmente por falta de recursos financeiros. Durante a narrativa do livro Katniss fala por diversas vezes do pai e de sua importância, como por exemplo foi ele quem a ensinou a caçar e identificar as plantas e raízes comestíveis da floresta. Foi com o pai que Katniss visitou o Prego pela primeira vez e aprendeu a negociar a caça e os alimentos que trazia da floresta.
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Após a cerimônia da colheita os Tributos são encaminhados à uma sala no Palácio da Justiça para se despedirem de seus familiares e amigos. No filme Katniss recebe primeiramente a mãe e a irmã, logo após seu amigo Gale. No entanto, originalmente além desses o pai de Peeta e a melhor amiga Madge também vão se despedir. O padeiro, pai de Peeta, leva um saquinho de biscoitos e promete que vai cuidar para que a irmã de Katniss, Primrose, não passe fome. Quando chegam à Capital os Tributos são maquiados e preparados para a cerimônia de apresentação, que é um desfile pelas ruas da cidade em carruagens. Katniss parece estar muito tímida e assustada no filme, mas no livro ela calcula todos os seus movimentos e se mostra muito à vontade com a plateia. Ela entende que se for bem no desfile poderá conseguir patrocinadores, então manda beijos e cena bastante para o público, que manda flores e grita enlouquecidamente. O patrocínio nos Jogos pode salvar a vida de um tributo, mas no filme, não fica clara a importância de receber uma dádiva dos patrocinadores, nem que isso custa muito caro, especialmente perto do fim dos Jogos. As dádivas enviadas por Haymitch são frutos de patrocinadores e enquanto no livro Katniss se vê forçada a entender o que se passa na cabeça do seu mentor, no filme ele sempre manda bilhetes com dicas sobre o que fazer. Uma das diferenças mais acentuadas entre livro e filme é o fato de Katniss parecer muito menos inteligente. No filme, muitas vezes parece que Katniss está meio perdida na arena e não tem noção que está fazendo. No livro fica bem claro que ela entende de caça, de ervas e como sobreviver em uma floresta, além de desconfiar de todo mundo. No filme quando os Jogos terminam, parece que ela venceu mais por sorte que por mérito. No livro fica bastante claro que Katniss tem consciência de que tudo o que faz dentro da arena é para conseguir patrocinadores e sobreviver. Mesmo o quase suicídio no final dos Jogos foi pensado como uma tentativa desesperada para fazer com que os idealizadores dos Jogos mudassem de ideia e deixassem os dois, Katniss e Peeta, vivos. Katniss sabia que essa atitude seria vista como uma afronta, mas nunca imaginou que seria algo tão grave.
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Como já mencionado anteriormente as cenas de violência são bem mais leves no filme. Um acontecimento que chama bastante a atenção por ter sido omitida na adaptação é o fato de Peeta ter perdido a perna por causa dos graves ferimentos e do torniquete feito por Katniss, no final dos Jogos. Peeta recebe uma perna mecânica na Capital. Katniss perde a audição depois de explodir os alimentos dos outros tributos, que é recuperada ao chegar na Capital. Um ponto marcante na história é o romance, até então encenado, entre Katniss e Peeta, que no filme está muito aquém ao livro. Originalmente, há momentos mais íntimos, mesmo que o objetivo seja comover a população da Capital e conseguir mais patrocinadores. Katniss tem muitas dúvidas em relação ao que sente por Peeta, ela sabe que gosta dele e presa por sua vida, mas até o momento que voltam para o Distrito 12 ela pensa que ele também estava fingindo o romance e toda a história dos “amantes desafortunados”.
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5. MÉTODOS E ANÁLISE Este capítulo tratará dos métodos escolhidos para a análise da presente pesquisa. Antes que seja dado início à categorização é importante delimitar os métodos escolhidos: a análise de conteúdo desenvolvida por Laurence Bardin (2011) e análise fílmica explorada por Manuela Penafria (2009). Também será utilizado o Teste de Bechdel criado pela chargista e cartunista americana Alisson Bechdel.
5.1 ANÁLISE DE CONTEÚDO O primeiro método escolhido para analisar as obras é a análise de conteúdo desenvolvido por Laurence Bardin (2011) em sua obra Análise de Conteúdo, em que é definido como uma técnica de pesquisa que reúne um conjunto de instrumentos metodológicos que se aperfeiçoam constantemente e que se aplicam a discursos diversificados, mediante decodificação da mensagem. [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 2011, p. 42).
Segundo a autora, esta abordagem tem como finalidade fazer deduções lógicas justificadas quanto à origem das mensagens consideradas, o que nos leva a entender que a personagem Katniss Everdeen é então considerada a mensagem. Logo, entendesse que a análise de conteúdo não leva em consideração apenas o que é dito em determinado texto, mas também leva em conta como é dito. Para Bardin (2011) a análise de conteúdo se faz pela prática e para uma aplicabilidade coerente do método, de acordo com os pressupostos de uma interpretação das mensagens e dos enunciados, a análise de conteúdo deve ter como ponto de partida uma organização. As diferentes fases da análise de conteúdo organizam-se em torno de três polos: 1. A pré-análise; 2. A exploração do material; e, por fim, 3. O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação (BARDIN, 2011, p.121). A pré-análise é, segundo Bardin (2011), a primeira fase desta organização de conteúdo objetiva a sistematização para que o analista possa conduzir as operações sucessivas de análise. Assim, num plano inicial, a missão desta primeira
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fase é, além da escolha dos documentos a serem submetidos à análise, também a formulação de hipóteses para a elaboração de indicadores para a interpretação final. A análise pode efetuar-se numa amostra desde que o material a isso se preste. A amostragem diz-se rigorosa se a amostra for uma parte representativa do universo inicial [...] Nem todo o material de análise é susceptível de dar lugar a uma amostragem, e, nesse caso, mais vale abstermos-nos e reduzir o próprio universo (e, portanto, o alcance da análise) se este for demasiado importante” (BARDIN, 2011, p.123).
No momento da exploração do material, segunda fase desta organização, codificam-se os dados, processo pelo qual os dados são transformados sistematicamente e agregados em unidades. O processo de codificação dos dados restringe-se a escolha de unidades de registro, ou seja, é o recorte que se dará na pesquisa. Para Bardin (2011), uma unidade de registro significa uma unidade a ser codificada, podendo esta ser um tema, uma palavra ou uma frase. A última fase da categorização, o tratamento dos resultados compreende a codificação, a inferência e a interpretação. Nesta fase de interpretação dos dados o pesquisador precisa retornar ao referencial teórico, procurando embasar as análises dando sentido à interpretação. Uma vez que, segundo Bardin (2011), as interpretações pautadas buscam se esconde por trás dos significados das palavras para apresentarem, em profundidade, o discurso dos enunciados.
5.2 ANÁLISE FÍLMICA O segundo método escolhido é a análise fílmica abordado por Manuela Penafria (2009) no artigo Análise de Filmes - conceitos e metodologia(s). A autora afirma que o processo de análise fílmica implica em duas etapas: descrever o produto e estabelecer relações entre os elementos que foram decompostos, ou seja, interpretá-los. O objetivo da Análise é, então, o de explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação. Trata-se, acima de tudo, de uma atividade que separa, que desune elementos. E após a identificação desses elementos é necessário perceber a articulação entre os mesmos. Trata-se de fazer uma reconstrução para perceber de que modo esses elementos foram associados num determinado filme. (PENAFRIA, 2009, p. 1-2)
A análise de filmes não é uma atividade recente, uma vez que teve seu nascimento com as primeiras projeções de imagens em movimento. Segundo a
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autora, para que a análise de filmes seja realizada deve-se levar em conta seus objetivos pré-estabelecidos, pois se trata de uma atividade que exige uma observação rigorosa, atenta e detalhada. A análise é uma atividade que perscruta um filme ao detalhe e tem como função maior aproximar ou distanciar os filmes uns dos outros, oferece-nos a possibilidade de caracterizarmos um filme na sua especificidade ou naquilo que o aproxima, por exemplo, de um determinado género. E essa oportunidade poderia ser melhor aproveitada. (PENAFRIA, 2009, p. 4-5)
Penafria (2009) também delimita algumas formas de executar a análise fílmica, sendo elas: 1. Análise textual: Este tipo de análise considera o filme como um texto, é decorrente da vertente estruturalista de inspiração linguística dos anos 60/70 e tem como objetivo decompor um filme dando conta da estrutura do mesmo. O filme é dividido em segmentos (unidades dramáticas/sintagmas) em geral a partir de momentos que indicam a sua autonomia [..] (PENAFRIA, 2009, p. 5-6)
2. Análise de conteúdo: Este tipo de análise considera o filme como um relato e tem apenas em conta o tema do filme. A aplicação deste tipo de análise implica, em primeiro lugar, identificar-se o tema do filme (o melhor modo para identificar o tema de um filme é completar a frase: Este filme é sobre (...). Em seguida, faz-se um resumo da história e a decomposição do filme tendo em conta o que o filme diz a respeito do tema. (PENAFRIA, 2009, p. 6)
3. Análise poética: Esta análise, da autoria de Wilson Gomes (2004), entende o filme como uma programação/criação de efeitos. Este tipo de análise pressupõe a seguinte metodologia: 1) enumerar os efeitos da experiência fílmica, ou seja, identificar as sensações, sentimentos e sentidos que um filme é capaz de produzir no momento em que é visionado; 2) a partir dos efeitos chegar à estratégia, ou seja, fazer o percurso inverso da criação de determinada obra dando conta do modo como esse efeito foi construído. (PENAFRIA, 2009, p. 6)
4. Análise de imagem e som: Este tipo de análise entende o filme como um meio de expressão. Este tipo de análise pode ser designado como especificamente cinematográfico pois centra-se no espaço fílmico e recorre a conceitos cinematográficos, por exemplo, verificar o uso do grande plano por diferentes realizadores; para um determinado poderá ser apenas um plano para dar informação ao espectador [...] (PENAFRIA, 2009, p. 7)
Para melhor desenvolvimento da pesquisa optou-se por não usar um só método para realizar a análise, mas mesclar, do ponto de vista da análise fílmica, as análises de conteúdo e de imagem e som definidas acima. Essa escolha faz com que
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a análise seja mais complexa e busca torna-la mais completa, pois tenta não ignorar nenhum aspecto do objeto analisado. A autora assevera que apenas pela análise de filmes é possível verificar e avaliar, efetivamente, os filmes. “[...] a análise de filmes não é apenas uma atividade a partir da qual é possível ver mais e melhor o cinema, pela análise também se pode aprender a fazer cinema”. (PENAFRIA, 2009, p. 9)
5.3 TESTE DE BECHDEL O teste Bechdel foi criado pela chargista e cartunista americana Alisson Bechdel no ano de 1985. O teste leva em consideração três critérios: primeiro, é preciso que o filme tenha no mínimo duas mulheres, e que tenham nomes; segundo, que elas conversem uma com a outras; e, terceiro, que elas conversem sobre algo que não seja um homem. A partir dos resultados da análise é possível descobrir se o filme tem protagonismo feminino ou não, se é machista ou não. Uma pesquisa feita pela Universidade da Califórnia do Sul, em parceria com o Instituto de Mídia e Gênero Geena Davis, ONU Mulheres e Fundação Rockefeller, em 2013 apontou que apenas 30,9% de todos os personagens com falas são mulheres. Papéis de liderança também são dificilmente reservados ao público feminino, apenas 13,9% dos executivos e 9,5% dos políticos de alto escalão são representados por mulheres. No ensaio Um Teto Todo Seu a autora Virginia Woolf (1929) observou na literatura o que o teste de Bechdel iria destacar na ficção da era moderna: Todas essas relações entre mulheres, pensei, recordando rapidamente a esplêndida galeria de personagens femininas, são simples demais. Muita coisa foi deixada de fora, sem ser experimentada. E tentei recordar-me de algum caso, no curso de minha leitura, em que duas mulheres fossem representadas como amigas. [...] Vez por outra, são mães e filhas. Mas, quase sem exceção, elas são mostradas em suas relações com os homens. Era estranho pensar que todas as grandes mulheres da ficção, até a época de Jane Austen, eram não apenas vistas pelo outro sexo, como também vistas somente em relação ao outro sexo. E que parcela mínima da vida de uma mulher é isso! (WOOLF, 1929, p.21)
Outro estudo, realizado pela New York Film Academy divulgado em 2012, analisou os 500 filmes mais vistos no período, e deixou evidente a hiperssexualização
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do corpo feminino no cinema. Um terço das atrizes (28,8%) aparecem com roupas mínimas ou íntimas, enquanto isto acontece com apenas 7% dos atores. Além de 26,2% das atrizes estarem nuas ou com alguma parte do corpo nua, isto ocorre com apenas 9,4% das personagens masculinos. O site oficial do teste, bechdeltest.com, é uma base de dados com cerca de 4.500 filmes, e mostra quais filmes que passam ou não no teste. Em novembro de 2015, 56% dos filmes listados passavam nos três requisitos do teste, 11% falhavam em um critério, 23% falhavam em dois e 10% falhavam em todos os requerimentos do teste. Além de filmes, o teste tem sido aplicado em outras mídias, como vídeo games e quadrinhos. Aplicando o teste de Bechdel a Jogos Vorazes é possível notar que a obra é qualificada nos três critérios, como é detalhado abaixo: 1º) É preciso que o filme tenha no mínimo duas mulheres, e que tenham nomes: além da protagonista Katniss Everdeen, Jogos Vorazes traz outras personagens mulheres como a irmã de Katniss, Primrose Everdeen; a mentora Effie Trinket; e as tributos femininos Rue, Clove e Glimmer. 2º) É preciso que essas mulheres conversem uma com a outra: durante a narrativa acontecem vários diálogos entre Katniss e as demais personagens, como a irmã, Effie e Rue. 3º) É preciso que a conversa não seja sobre um homem: um exemplo desses diálogos acontece em uma das primeiras cenas no filme, em que Katniss e a irmã Primrose conversam sobre a cerimônia da Colheita que aconteceria mais tarde naquele dia. Além de ter em seu papel principal uma mulher, Jogos Vorazes, de acordo com o teste é considerado um filme com protagonismo feminino. Outros sucessos de bilheteria como: Malévola (2014); Guardiões da Galáxia (2014); A Culpa é das Estrelas (2014) e Annabelle (2014) também foram aprovados.
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6. KATNISS EVERDEEN, MULHER E HEROÍNA Este capítulo é destinado à apreensão e interpretação do objeto de estudo desta pesquisa à luz dos conhecimentos teóricos desenvolvidos nesse trabalho, pretendendo analisar sob que aspectos a protagonista Katniss Everdeen foi construída. Levando em consideração os estudos sobre gênero, buscou-se também compreender em que medida a personagem é um novo modelo de representação cinematográfica feminina que foge do estereótipo donzela em perigo. A partir de uma pré-análise de conteúdo dos produtos escolhidos, levando também em consideração a importância dos conceitos de representação e identidade, percebeu-se alguns temas que recebem maior destaque nas obras. Então, foram definidas as seguintes categorias para a análise: a família; beleza e figurino; romance; e heroísmo. Cada categoria será abordada separadamente em tópicos a seguir.
6.1 A FAMÍLIA O relacionamento entre Katniss e a mãe deixou de ser amistoso após a morte do pai da garota. A mãe, que não tem nome nem no livro e nem no filme, entrou em uma profunda depressão quando o marido morreu, deixando as filhas desamparadas. Katniss não perdoa a mãe por tê-las abandonado quando mais precisaram, o que a forçou a tomar as rédeas da casa e dos cuidados da irmã mais nova. Segundo especialistas, é comum que, em determinado momento da vida, aconteça um rompimento natural entre mães e filhas e a adolescência é um período particularmente difícil para esse relacionamento. É o que confirma a psicóloga e psicanalista, Léa Michaan (2009), explicando que na adolescência a filha tem a necessidade de ser ouvida e levada à sério pela mãe. Neste estágio, a filha sente inveja dos poderes da mãe, não gosta do fato de ainda ser dependente e começa a se rebelar. Tudo o que a menina achava bonito na mãe começa a se tornar feio; ela quer ser o oposto da mãe e tudo o que ela diz, veste ou faz é considerado antiquado. (MICHAAN, 2009, p. 1)
Quando o pai de Katniss morreu, em um acidente na mina de carvão em que trabalhava, a família passou por um período bastante difícil e para que não morressem de fome a protagonista passou então a caçar ilegalmente na floresta,
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negociar as caças no Prego e ter de pegar as tésseras. Katniss, que na época tinha apenas 11 anos, assume os papéis de “homem da casa” provendo o sustento da família e o papel de mãe cuidando da irmã, Primrose. Ao longo do filme Katniss e a mãe contracenam apenas duas vezes, tendo cerca de 30 segundos cada cena. Na primeira cena Katniss chega em casa de sua caçada matinal12 e a mãe diz que separou um vestido seu para que a menina vestisse durante a cerimônia da Colheita. A segunda acontece depois do sorteio, Katniss se despede da mãe e, de maneira ríspida, fala que ela precisa ser forte e cuidar da irmã, mas ao abraçá-la diz que a ama. Quando Katniss está na arena dos Jogos ela é picada por vespas teleguiadas, insetos criados pela Capital que causam fortes dores e alucinações. Sob o efeito do veneno Katniss tem uma visão com a mãe. Na cena ela grita para a mãe e pede que ela responda e que se mexa, remetendo à época em que a mãe entrou em estado catatônico após a perda do marido.
Figura 1: Mãe de Katniss durante a cerimônia da Colheita
Katniss como irmã mais velha sempre exerceu uma posição protetora com relação à irmã, Primrose Everdeen (Prim), e se tornaram mais próximas após a morte do pai e a doença da mãe. Pode-se notar que no relacionamento com a irmã, Katniss
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Todos os dias Katniss e seu amigo Gale se encontram na floresta para caçar alguns animais como: esquilos, coelhos e perus selvagens, que serão negociados no comércio local conhecido como Prego.
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assume a figura materna. Um papel, que em uma sociedade patriarcal, é geralmente atribuído às mulheres e ao sexo feminino. Ao longo do filme Katniss e Prim contracenam quatro vezes, cada cena tem cerca de 40 segundos. No início do filme, a primeira cena das duas juntas, Katniss consola a irmã que acordou assustada por causa de um pesadelo com a cerimônia da Colheita, que aconteceria algumas horas mais tarde. A forte relação entre as irmãs fica evidente no momento em que Katniss se voluntaria aos Jogos no lugar da irmã. A protagonista não suporta a ideia de que irmã mais nova, com apenas 12 anos, vá para a competição e provavelmente seja morta. Após a cerimônia, as duas se despedem e Prim faz com que Katniss prometa que vai tentar ao máximo ganhar e que vai voltar para casa. Em várias outras cenas Prim é lembrada por Katniss e pelos outros personagens. Como por exemplo quando Katniss chega a Capital e conhece seu estilista, Cinna, e ele diz que lamenta o que aconteceu com a irmã. Durante a primeira entrevista com Caesar Flickerman, ela é perguntada sobre o que falou para irmã na hora da despedida e Katniss reforça que prometeu que ganharia a competição e voltaria para o Distrito 12.
Figura 2: Katniss e Primrose se despedem após a Colheita
Na cena final do longa-metragem, Katniss e Peeta são recebidos no Distrito 12 como vencedores dos Jogos. Toda a população do Distrito se encontra na praça central a fim de parabenizá-los pela conquista. Prim, que está sobre os ombros de
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Gale, manda beijos e acena para a irmã. A mãe das garotas também acena e sorri para a filha que acaba de voltar para casa.
Figura 3: Primrose, a mãe e Gale se encontram na praça para receber os vitoriosos
É evidente que Katniss assume várias identidades durante as cenas contracenadas com a mãe e com a irmã, o que corrobora com a afirmação de Bauman (2005, p. 18) de que “As identidades flutuam no ar, algumas de nossas próprias escolhas, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta”. Hall (2005, p. 13) concorda e diz que o “sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos”. Percebe-se que a relação de Katniss com a mãe não é fácil, mas é possível notar que tentam conviver em harmonia e há traços de sentimentos entre elas, o amor. Já o relacionamento com a irmã fica bastante evidente desde o início, afinal Katniss estava disposta a sacrificar a própria vida para salvar a irmã de um destino trágico nos Jogos.
6.2 BELEZA E FIGURINO A beleza, desde os primórdios da história, foi valorizada pela sociedade. No entanto, Umberto Eco (2010) em seu livro História da Beleza afirma que a beleza jamais foi absoluta e imutável, assumindo faces diferentes em cada período histórico e civilização. Segundo o autor, o que é considerado belo depende da cultura e da
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época. Já a autora Naomi Wolf (1992) em sua obra O Mito da Beleza assevera que a importância que se dá à beleza existe de uma maneira objetiva e universal: As mulheres devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm maior sucesso na reprodução. A beleza da mulher tem relação com sua fertilidade; e, como esse sistema se baseia na seleção sexual, ele é inevitável e imutável (WOLF, 1992, p. 15).
De acordo com Wolf (1992, p. 99), as mulheres são treinadas para serem rivais umas das outras no que diz respeito à beleza, devido ao sistema baseado em relação sexual. Para a autora, faz parte da lógica da beleza insistir que sempre considerem as outras como possíveis adversárias. Para a autora o mito da beleza não está ligado apenas à aparência, mas também ao comportamento: As qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável. [...] A juventude e (até recentemente) a virgindade foram "bonitas" nas mulheres por representarem a ignorância sexual e a falta de experiência (WOLF, 1992, p. 17).
Em diversas produções cinematográficas, a vilã é exibida como uma mulher feia, contrapondo-se à bela mocinha. No caso do filme analisado durante os Jogos a beleza é uma questão de sobrevivência. No desfile de apresentação os tributos precisam chamar a atenção do público, afim de conseguirem patrocinadores. Para Katniss a beleza nunca foi uma prioridade até chegar à Capital e entender que deveria parecer radiante para ter maiores chances de sobreviver à arena. Umberto Eco (2010, p. 105) lembra que, nas sociedades antigas, a diferença entre ricos e pobres era manifestada de maneira exemplar por meio do vestuário, das armas e das armaduras: “Para manifestar seu poder, os senhores adornam-se de ouro, joias, e vestem roupas com as cores mais preciosas, como a púrpura”. De acordo com o autor, representam riqueza as cores artificiais, derivadas de minerais ou vegetais e que passam por elaborações complicadas. Sobre as roupas usadas por pobres Eco afirma (2010, p. 105) que os tecidos eram em sua maioria de cores pálidas e modestas: “É normal que um camponês vista tecidos brutos, não tocados pelo tintureiro, consumidos pelo uso, de um cinza ou de um marrom quase sempre sujo”. O que pode ser notado nas roupas dos moradores dos distritos mais pobres como o 11 e o 12.
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Como moradora da Costura, região mais pobre do Distrito 12, Katniss mostra ter um guarda-roupa escasso, o que é comum para os moradores da região. Nas primeiras cenas da película, o figurino da protagonista se resume a uma calça visivelmente gasta, bostas e jaqueta de couro, que são usadas para caçar. Um ponto marcante no figurino de Katniss é a trança lateral usada durante a maior parte das cenas do filme. Sylvia Ardyn Boone, uma antropóloga especialista na cultura Mende (África Oeste - Serra Leoa) explica que as tranças têm um importante papel na sociedade africana. Mulheres com cabelos longos e espessos eram bastante admiradas e esse tipo de cabelo demonstrava força vital, o poder da profusão, prosperidade, sorte na agricultura e fertilidade para gerar filhos saudáveis. Os cabelos dessas mulheres deveriam ter um estilo específico com tranças de raiz e outros estilos de trança com ornamentos como contas, miçangas e conchinhas.
Figura 4: Katniss e seu amigo Gale na floresta antes da cerimônia da Colheita
A cerimônia da Colheita acontece uma vez por ano e é como um feriado, ninguém trabalha e todos os cidadãos são obrigados a irem até a praça central assistir ao evento. É um dia especial, mesmo sendo algo trágico para a maioria da população de Panem, pois terão seus filhos entregues à Capital. No filme, os moradores geralmente vestem roupas mais novas, principalmente os jovens que serão submetidos ao sorteio. Após chegar da caçada matinal, Katniss é recebida em casa pela irmã Primrose, que já está usando a roupa que Katniss usou em sua primeira Colheita. A
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mãe diz ter separado um vestido antigo para que ela usasse durante a cerimônia. É um vestido azul claro simples, com botões e um laço na parte da frente, que havia sido um presente do falecido marido e pai da garota.
Figura 5: Katniss chega à Colheita e se identifica
Após a cerimônia Katniss se despede da mãe e de Prim, que lhe devolve o broche de ouro em forma de tordo que ela havia ganhado naquela manhã. A partir deste ponto o broche se torna outro elemento marcante do figurino, passando a acompanhar a protagonista durante o filme e mais tarde vem a se tornar o símbolo da revolução dos distritos contra a Capital.
Figura 6: Broche de ouro em forma de Tordo, símbolo da revolução
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Katniss e Petta Mellark, o tributo masculino do Distrito 12, são encaminhados à Capital onde serão preparados para o Jogos. Quando chegam ao local, Katniss é levada a um centro estético onde uma equipe de preparação é encarregada de tirar todas as “impurezas” de seu corpo. Dentre os procedimentos realizados estão depilação, limpeza de pele, manicure e pedicure. O primeiro grande evento que antecede aos Jogos é o desfile dos tributos, que acontece na primeira noite após a Colheita. Os tributos desfilam pela Capital trajando roupas que representam seus respectivos distritos. Como o Distrito 12 é o responsável pela mineração e principalmente pela produção de carvão, as roupas desenhadas pelos estilistas para Katniss e Petta são pretas e cintilantes, se referindo ao minério. Como já mencionado, o desfile é muito importante para os tributos, pois dependendo do desempenho durante o evento as chances de conseguir patrocínio são maiores. Chamar a atenção do público é então uma questão de vida e morte. O estilista de Katniss, Cinna, entende isto e desenvolve roupas que ficam em chamas fazendo com que a plateia enlouqueça e os tributos do Distrito 12 sejam os destaques da noite. Katniss fica conhecida como a “Garota em Chamas”.
Figura 7: Katniss e Petta recebem orientações sobre a roupa do desfile
Antes do início dos Jogos, os tributos são mantidos em um centro de treinamento onde são submetidos a alguns testes de aptidão. Durante esse período de três dias, os tributos vestem uniformes iguais a não ser pela identificação na parte
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das mangas da camisa e nas costas com o número do distrito. Isto faz com que os tributos sejam apresentados e se conheçam antes de irem para a arena.
Figura 8: Tributos dos Disttitos 1 e 2 encaram Katniss e Petta
Figura 9: Katniss durante o treinamento, como de costume o cabelo com uma trança lateral
O último grande evento antes do início dos Jogos, e também o mais importante, é a noite de entrevistas com o apresentador Caesar Flickerman. Cada tributo tem cerca de três minutos para se apresentar para o público e responder as perguntas de Caesar. Os tributos femininos usam vestidos volumosos e brilhantes enquanto os tributos masculinos vestem ternos finos. Durante a entrevista Katniss usa um vestido longo em um tom de laranja forte, que ao ser movimentado em círculos fica com a bainha em chamas. Katniss
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não usa seu penteado habitual, mas as tranças ainda continuam fazendo parte do figurino, mas nesse momento, em um coque preso no alto da cabeça. Mais uma vez a imagem da “Garota em chamas” deixa o público da Capital em êxtase.
Figura 10: Katniss durante a entrevista com Caeser Flickerman
Já dentro da arena dos Jogos os tributos usam outro tipo de uniforme, que também traz uma identificação com o número do distrito. Esse uniforme é equipado e desenvolvido para as condições climáticas da arena. A personagem Katniss passa a maior parte do filme com essa roupa, sendo mais de uma hora. O uniforme é composto por uma calça verde militar, camisa preta, coturnos pretos e uma jaqueta de material impermeável. A trança lateral também está presente durante toda a sequência de cenas na arena.
Figura 11: Katniss na arena durante os jogos
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Após o fim dos Jogos, em que Katniss e Petta são declarados vencedores, acontece uma segunda entrevista com Caesar Flickerman, em que os tributos falam sobre sua jornada dentro da arena até a vitória. Katniss e Petta precisam que a Capital e toda a Panem acredite que estão loucamente apaixonados como uma justificativa para os seus atos vistos como “rebeldes” pelos idealizadores dos Jogos. Katniss usa um vestido amarelo bem claro, com pequenas pedras brilhantes e a saia bem volumosa. Os cabelos não estão penteados com a trança lateral, mas sim soltos em ondas leves, que tentam enaltecer uma figura inocente e ingênua. Petta usa um terno azul celeste, camisa e sapatos pretos.
Figura 12: Katniss e Petta na segunda entrevista com Caesar Flickerman
Cada peça de roupa usada pela personagem durante a trama tem uma determinada função e está cercada de simbolismo. Percebe-se que em alguns momentos o figurino está aí para reforçar os estereótipos das representações sociais das mulheres, que segundo Moscovici (2012, p. 40) seriam construções compartilhadas pelo senso comum e reforçadas pela tradição. Pode-se notar também que alguns aspectos da personagem são valorizados através do figurino, que traz visualmente características de força e feminilidade sem que para isto haja uma exposição sexual do corpo. Mesmo que tais características sejam difíceis de combater. Para Moscovici (2012, p. 40), os estereótipos das representações sociais seriam dificilmente enfraquecidos, “pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível”.
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6.3 ROMANCE Como já citado anteriormente, com a adaptação para o cinema a história sofreu mudanças significativas e uma delas foi o romance entre Katniss Everdeen e Peetta Melark. No livro a história é narrada pelo ponto de vista da protagonista Katniss, fazendo com que o leitor conheça exatamente os pensamentos e sentimentos da personagem. Mas no filme isso não é possível, o que pode dificultar a compreensão do espectador em algumas cenas. No contexto da indústria cultural o aspecto do amor romântico é bastante valorizado. Em sua obra Cultura de Massas do Século XX Edgar Morin (2009, p. 131), afirma que o amor é o tema central da felicidade moderna, e tornou-se também tópico obsessivo da cultura de massa. No cinema ocidental, mais precisamente no cinema hollywoodiano, é difícil encontrar um filme em que o amor não esteja presente. A primeira vez em que o romance entre Katniss e Peeta é declarado acontece na cena da primeira entrevista de Peeta com Caesar Flickerman. Durante a entrevista Caesar pergunta a Peeta se existe alguma garota especial no Distrito 12, ele nega, mas Caesar insiste: - Não? Não acredito. Veja só esse rosto. Um jovem bonito como você? Vamos lá, Peeta, conte. - Bem. Tem uma garota que sempre fui apaixonado. Mas acho que ela nunca me notou até a Colheita. - Vou dizer uma coisa, Peeta. Você vai lá e ganha essa coisa e quando chegar em casa ela vai estar esperando por você. Certo, pessoal? - Obrigado, mas vencer não vai ajudar em nada. - Por que não? - Porque ela veio para cá comigo. (JOGOS VORAZES, 2012, 58min25s)
Após a declaração de Peeta sobre seu amor não correspondido, Katniss fica furiosa e parte para cima do garoto acusando-o de fazer com que ela parecesse fraca perante o público. O mentor deles, Haymitch Abernathy, tenta acalmá-la dizendo que a estratégia deles, na verdade, faria com que ela parecesse desejável e que ele poderia “vender” para os patrocinadores a história dos “amantes desafortunados do Distrito 12”. Katniss entende e decide fazer parte do jogo. A partir daí o romance começa a ser usado como uma estratégia para conquistar o público e consequentemente patrocinadores, que iram contribuir para a sobrevivência dos tributos na arena. Mas com o desenrolar da história percebe-se que o romance encenado era verdadeiro por parte de Peeta, que demonstra seu amor
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por Katniss em outras várias cenas do longa-metragem, que serão delimitadas ao longo do capítulo. Assim que entram na arena dos Jogos, Peeta e Katniss se separam. Katniss se afasta dos outros tributos o máximo que consegue, mas Peeta se alia aos tributos carreiristas dos Distritos 1 e 2, que usam o garoto para encontrar e consequentemente matar Katniss. Algum tempo depois, Peeta e os carreiristas encontram Katniss, que sobe no alto de uma árvore para se salvar, onde tem uma enorme colmeia de vespas teleguiadas. Katniss consegue serrar com uma faca o galho onde está a colmeia, que cai em cima dos outros tributos. Eles correm para fugir dos insetos, mas as ferroadas são muito doloridas e também causam fortes alucinações. Antes de fugir Katniss vai até o corpo e Glimmer, tributo do Distrito 1, para pegar o arco e flecha da garota. Nesse momento Peeta aparece e grita para que ela fuja dali pois, Cato, tributo do Distrito 2, está vindo para matá-la. Ao confrontar o garoto, Peeta é gravemente ferido. Quando acorda, Katniss não se lembra exatamente do que aconteceu e se Peeta realmente a salvou, ou se foi apenas uma alucinação. Katniss continua tentando sobreviver nos Jogos e é então que as regras mudam, sendo agora possível que dois tributos possam sair vencedores, contanto que sejam do mesmo Distrito. É possível notar uma esperança no rosto de Katniss e seus lábios pronunciando o nome de Peeta, antes de partir a sua procura. Peeta está escondido próximo ao riacho, com graves ferimentos e muito fraco. Ao encontra-lo, Katniss o leva para uma caverna e tenta fazer um curativo em sua perna, o que é em vão, pois a ferida já está bastante infeccionada. Percebe-se aqui uma inversão nos papéis da sexualidade, em que a personagem feminina cuida e protege o masculino, que passa a depender única e exclusivamente dela para conseguir sobreviver. Quando chegam à caverna, Peeta tenta resistir aos cuidados e diz que ele não vai conseguir sobreviver. Katniss diz que ele precisa apenas de alguns remédios e que vai dar um jeito de consegui-los, ela se abaixa e o beija na bochecha. O mentor dos tributos, Haymitch, envia para o dois um pote de sopa e nele há um recado para
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Katniss: “Você chama aquilo de beijo?”. Mostrando mais uma vez que o romance é uma estratégia para conquistar o público. Alguns momentos depois, os idealizadores dos Jogos avisam aos tributos que na manhã seguinte será realizado um banquete na Cornucópia, sendo o prêmio algo que eles precisam muito. Katniss logo entende que o remédio que Peeta precisa estará lá, mas para pegá-lo ela terá de enfrentar os demais tributos. Peeta pede para que ela não vá, que não arrisque sua própria vida para salvar a dele, mas ela retruca: - Você precisa e não pode andar. - Não vou deixar que arrisque a vida por mim. - Você faria o mesmo por mim, não faria? - Por que está fazendo isso? (JOGOS VORAZES, 2012, 1h52min51s)
Nesse momento acontece o primeiro e único beijo do casal no filme, mostrando para o público da Capital que Katniss o salvou por estar apaixonada. Segundo Morin (2009, p. 134), o beijo na boca simboliza um tipo sintético de amor: “[...] o beijo na boca é um ato de duplo consumo antropofágico, de absorção da substância carnal e de troca de almas; é comunhão e comunicação da psique no eros”. Na dissertação Um amor desses de cinema: os amores nos filmes de amor hollywoodianos, Karina Gomes Barbosa (2007, p. 104), afirma que na ausência da sexualidade explícita, o beijo é o que definitivamente sela a relação amorosa. “No amor romântico hollywoodiano, é por meio da mágica do toque dos lábios que o compromisso e a promessa do amor eterno são selados”.
Figura 13: Katniss e Peeta se beijam mostrando para o público a veracidade do romance
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Na manhã seguinte, Katniss parte para a Cornucópia afim de conseguir o remédio. Porém, os outros tributos também desejam pegar suas mochilas e Katniss acaba se encontrando com Clove, tributo do Distrito 2, que arremessa uma faca causando um profundo corte na testa da protagonista. As duas garotas lutam ferozmente e Clove está a ponto de dar o golpe fatal em Katniss quando Tresh, tributo do Distrito 11, aparece e mata Clove. De volta à Caverna, Katniss aplica rapidamente o poderoso medicamento nos ferimentos de Peeta. Mesmo tendo Katniss se arriscado e lutado para conseguir o remédio, é possível notar que os cuidados que ela demonstra são algumas das características fundamentais atribuídas às mulheres e mães, que estão sempre zelando e protegendo a vida dos seus. Sendo que esse cuidado não precisa estar necessariamente relacionado à sexualidade. Quando restam apenas os tributos do Distrito 12, supostos vencedores dessa edição dos Jogos, os idealizadores revogam a regra que permitia que os dois saíssem vivos. Katniss olha chocada para Peeta, que diz: - Vá em frente. Um de nós deve ir para casa. O outro deve morrer. Precisam de um vencedor. - Não. Não precisam. Por que deveriam? - Não! - Confie em mim. Confie em mim. (JOGOS VORAZES, 2012, 2h08min20s)
Katniss então tira do bolso da jaqueta as amoras venenosas, que colheu um pouco mais cedo naquele dia, e coloca algumas nas mãos de Peeta. Os dois tributos se entreolham e começam a contar de um a três levando as amoras até à boca, quando o idealizador dos Jogos, Seneca Crane, grita para que parem e os declara os vencedores da 74ª edição dos Jogos Vorazes.
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Figura 14: Katniss e Peeta dividem as amoras envenenadas
Figura 15: Katniss e Peeta observam a chegada do aerodeslizador que os levará para casa
O quase suicídio de Katniss e Peeta não foi visto com bons olhos pela Capital e principalmente pelo presidente ditador, Coriolanus Snow. O mentor dos tributos, Haymitch Abernathy, diz para Katniss que está preocupado, pois suas atitudes poderão suscitar graves consequências e que a única maneira de reverter essa situação seria provar para a Capital que tudo o que fizeram foi por amor. - Se perguntarem, diga que não aguentou. Que está tão apaixonada por ele que era insuportável pensar em viver sem ele. Que preferia morrer a não ficar com ele. Entendeu? (JOGOS VORAZES, 2012, 2h10min41s)
Durante a entrevista da vitória, Caesar Flickerman pergunta o que Katniss estava pensando quando encontrou Peeta no rio e ela responde:
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- A pessoa mais feliz do mundo. Não imagino uma vida sem ele. - E você Peeta? - Ela salvou minha vida. - Salvamos um ao outro. (JOGOS VORAZES, 2012, 2h11min30s)
Figura 16: Katniss e Peeta declaram seu amor durante entrevista da vitória
O romance de Katniss e Peeta tem um papel fundamental na história, pois serve como uma válvula de escape e uma chance para a sobrevivência. Gomes Barbosa (2007) aponta que o amor romântico no cinema Hollywoodiano é visto como salvação e seu poder é enorme. O cinema de Hollywood reforça esta ideia continuamente: o amor romântico tem o poder não apenas de mudar os amantes ou de promover o autoconhecimento deles, mas numa espécie de êxtase religioso, salvá-los do mundo de solidão, incompletude, dasamor e dasajuste social. (GOMES BARBOSA, 2007, p. 109)
Pode-se notar no filme o quanto a exploração banal e exagerada do romance é avidamente consumida pelos cidadãos de Panem. O que pode certamente ser associado aos relacionamentos de pessoas famosas que são desesperadamente consumidos por revistas e tabloides distribuídos ao redor do mundo. Mostrando uma forte crítica da obra à exploração midiática das pessoas.
6.4 HEROÍSMO Ao longo da história, Katniss protagoniza vários atos heroicos, pode-se notar que essas ações são de confronto e de inconformidade. Katniss luta pela própria sobrevivência e pela dos outros. É possível compreender que a protagonista
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apresenta uma representação de emancipação feminina, por ser uma personagem feminina que vem a se tornar símbolo de uma revolução política ao se rebelar contra o sistema opressor. Mesmo que inconscientemente, Katniss demonstra não se deixar levar pelos acontecimentos. Ela constrói sua própria história e surpreende todos aqueles que tentam controlar suas ações, claro que, com as manobras possíveis dentro do sistema no qual está inserida. O que mostra que a protagonista possui identidade e personalidade fortes. De acordo com o dicionário Houaiss (2009, p. 1014), o termo herói apresenta oito significações, dentre as quais reforçam a ideia de força: “indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex., infortúnios, sofrimentos) ou que arriscaria a vida pelo dever ou em benefício do outrem”. Outras significações também podem ser aplicadas à Katniss e classificam a figura do herói como: “figura central e personagem principal de uma obra literária, dramaturgia ou cinema”. Joseph Campbell (1989), em seu livro O Herói de Mil Faces, apresenta o conceito da “Jornada do Herói”, na qual estabelece 12 etapas comuns nas trajetórias dos heróis. Muitas narrativas se encaixam no modelo, mas não contém todas as etapas. O herói nem sempre é um ser humano, podendo ser um grupo de pessoas, um animal ou até uma figura mitológica. Mas o autor assevera que: O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloquência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 1989, p. 28)
A primeira etapa da Jornada do Herói é o “Mundo Comum”, em que o herói é apresentado em seu dia a dia, em sua zona de conforto. Nas primeiras cenas de Jogos Vorazes, Katniss aparece no Distrito 12 e na floresta, lugares onde vive seu cotidiano.
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Figura 17: Katniss em sua caçada matinal antes da cerimônia da Colheita
Na segunda etapa da jornada, o herói recebe um “Chamado à Aventura”, tendo sua rotina quebrada por algo inesperado e incomum. Esta etapa acontece na cerimônia da Colheita quando a irmã de Katniss, Primrose, é sorteada para participar dos Jogos. A protagonista imediatamente se voluntaria e toma o lugar da irmã na competição, impedindo que Prim tivesse um destino terrível. Katniss fica conhecida em toda a Panem por esta atitude, que é vista não apenas como um ato heroico, mas também de coragem.
Figura 18: Katniss se voluntaria aos Jogos no lugar da irmã Primrose
Na terceira etapa, geralmente acontece a “Recusa ao Chamado”, mas neste caso Katniss não poderia recusar, pois ela mesma se voluntariou aceitando imediatamente seu destino. A quarta etapa é chamada de “O auxílio sobrenatural”,
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em que o herói encontra um mentor, que o convence a aceitar ao chamado, dandolhe apoio moral e fornecendo armas, talismãs ou poderes para cumprir com a aventura. O mentor de Katniss é Haymitch Albertany, que não é um mentor convencional. Haymitch é grosseiro e alcoólatra, no entanto, cumpre o papel de ajudar os tributos no desafio mortal que os Jogos representam. Na quinta etapa o herói faz a “Travessia do Primeiro Limiar”, em que deixa o seu lugar comum e parte para o mundo novo. Essa decisão pode ser motivada por vários fatores, entre eles algo que o obrigue, mesmo que não seja essa a sua opção. Esta etapa é então representada pela ida de Katniss à Capital para o início dos Jogos, mostrando o primeiro ponto da virada na narrativa. A sexta etapa é conhecida como “Testes, Aliados, Inimigos”, nela o herói conhece o mundo especial, suas regras, amigos, inimigos e enfrenta diversos testes. Nesta etapa, Katniss enfrenta algumas dificuldades na competição como por exemplo a busca por água e comida, e as queimaduras. Também é nesse momento que as alianças e inimizades começam a se formar. Katniss forma uma breve aliança com Rue, uma garota de doze anos do Distrito 11, que a faz lembrar-se de Prim. Rue tem grandes habilidades para se esconder, encontrar alimento e conhece um gama de plantas medicinais. É ela quem avisa Katniss sobre a colmeia de teleguiadas e a ajuda colocando algumas folhas em seus ferimentos após o ataque dos insetos. Durante o tempo que ficam juntas Katniss e Rue armam uma armadilha para destruir os suprimentos dos tributos carreiristas, que estão acampados no centro da Arena onde fica a Cornucópia. As garotas desenvolvem um tipo de sinal, um assobio usado por Rue em seu Distrito para avisar aos outros que o expediente de trabalho acabou, que sinalizaria que estão salvas e a caminho. O plano dá certo e Katniss consegue explodir todos os alimentos dos outros tributos e corre para ir ao encontro de Rue. Mas quando chega ao local, Rue está presa em uma armadilha e grita por socorro. Katniss a solta, mas não há tempo de impedir o que tributo do Distrito 1 mate Rue com uma lança. Katniss mata o garoto logo depois. Ela canta para Rue e envolve seu corpo com flores, como sinal de respeito por ela e, ao mesmo tempo, repulsa pela Capital.
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Figura 19: Katniss improvisa um funeral para Rue, cobrindo seu corpo com flores
Esta atitude de Katniss é vista como uma afronta pela Capital, pois põe em xeque sua autoridade. Os moradores do Distrito 11 assistem por um telão a morte de seu tributo, e o respeito de Katniss. Eles se mostram indignados com a situação e influenciados pela protagonista, iniciando uma revolução contra os pacificadores. O que mais tarde desencadearia uma guerra civil dos Distritos contra a Capital. Na sétima etapa o herói chega a “Aproximação da Caverna Oculta”, em que se aproxima do objetivo de sua missão, mas o nível de tensão aumenta e tudo fica indefinido. Nessa etapa, os êxitos e falhas de Katniss na arena vão culminando no clímax da competição. É então que acontece o anúncio de que dois tributos poderiam vencer aquela edição dos Jogos, contanto que fossem do mesmo distrito, o que leva Katniss a procurar por Peeta. Katniss encontra o garoto perto do riacho, que está seriamente ferido e desnutrido. Katniss limpa os ferimentos e tenta fazer alguns curativos, quando a situação se agrava, os tributos são convidados à um banquete em que poderia conseguir os remédios para Peeta. Ela, mais uma vez, arrisca a própria vida em prol do outro e o salva.
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Figura 20: Katniss trata dos ferimentos de Peeta, salvando a vida do garoto
A oitava etapa é a “Provação Máxima”, o auge da crise e o herói chega no limite entre a vida e a morte na luta contra o vilão, mas é salvo milagrosamente. Esta etapa pode ser aplicada ao momento em que restam apenas os dois tributos do Distrito 12 e as regras são novamente alteradas, não sendo mais permitido que os dois saiam como vencedores. Contrariando as instruções, Katniss pega algumas amoras venenosas e divide com Peeta, em uma tentativa desesperada de fazer com que os idealizadores mudem de ideia novamente. A artimanha dá certo e na nona etapa da Jornada do Herói a heroína recebe sua “Recompensa”, vencendo toda as provações da Arena. Katniss e Peeta são então declarados os vencedores da 74ª edição dos Jogos Vorazes. Além do prêmio em dinheiro e promessas de glória eterna, Katniss também adquire muito conhecimento durante a jornada. Na décima etapa “Caminho de Volta”, o herói está voltando para casa, mas se depara com uma ameaça muito maior. Geralmente é a parte mais curta da história e em algumas narrativas o herói morre. Após vencerem os Jogos, Katniss e Peeta deveriam voltar para casa, o Distrito 12. No entanto, são mantidos na Capital, para serem medicados e participarem de alguns eventos públicos. A atitude de Katniss, na tentativa de vencer aos Jogos, é vista como uma afronta à Capital por colocar em xeque sua soberania diante dos Distritos. Essa fase representa mais uma provação, na qual a heroína deve novamente enfrentar a morte
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e usar tudo o que foi aprendido durante sua jornada. “E nesse exato momento, a parte mais perigosa dos Jogos Vorazes está para começar” (COLLINS, p. 381). A décima primeira etapa é chamada de “Ressurreição”, em que como recompensa pelo seu sacrifício, o herói ressuscita dos mortos e vence a grande ameaça final, tornando-se um ser superior. Em Jogos Vorazes, a ressurreição de Katniss não é uma batalha literal, mas um embate psicológico. Durante a cerimônia de coroação do tributo vencedor, há um confronto silencioso com o presidente Snow, que pode ser aplicado a esta etapa. Enfim, na décima segunda e última etapa da Jornada, o herói finalmente tem seu “Retorno Transformado”, em que volta para o mundo comum, porém agora como uma nova pessoa, com novos conceitos e totalmente diferente do que era no início. É nesse momento então que Katniss retorna ao Distrito 12 e é recebida por toda a população, completando assim a Jornada do Herói. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (CAMPBELL, 1989, p.36)
Mesmo que a aventura de Katniss não tenha uma conclusão no primeiro filme da Saga, devido à continuidade nos outros volumes, ao cumprir a maior parte das etapas da Jornada do Herói, a protagonista é consagrada como a heroína da trama. Sua representação como heroína fica ainda mais evidente no decorrer da narrativa, em que Katniss se torna o símbolo da revolução contra o sistema ditatorial estabelecido pelo presidente Snow e pela Capital.
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CONCLUSÃO A Teoria das Representações Sociais aponta como suas principais definições as construções compartilhadas pelo senso comum e reforçadas pela tradição. A representação social das mulheres pode ser inserida neste contexto, e é constantemente reforçada por intermédio dos meios de comunicação de massa, entre eles o cinema. A produção fílmica tem um papel significativo na construção de estereótipos acerca das figuras femininas, sendo as personagens alguns dos principais modelos para o público receptor. As representações sociais produzem padrões, identificando as pessoas em parâmetros determinados e, quando alguém não se encaixa, tende a ser excluído e difícil de ser compreendido. É importante questionar os padrões desenvolvidos e refletir a respeito das diversas questões que os envolvem. Compreender a representação de personagens femininas em sagas juvenis possibilita uma inferência do cenário da representatividade feminina. A presente pesquisa teve como objeto de estudo a protagonista da Saga Jogos Vorazes, Katniss Everdeen, partindo da pergunta norteadora: Em que medida a protagonista Katniss Everdeen é um novo modelo de representação cinematográfica feminina que foge do estereótipo donzela em perigo, levando em consideração os estudos sobre gênero? Buscou-se analisar sob quais aspectos a personagem foi construída. Ainda que não coubesse a este trabalho criticar a qualidade da Saga, coube apenas apreender como a personagem foi construída e quais papéis representa em suas construções. Para a análise foram utilizados os métodos Análise de Conteúdo, desenvolvido por Laurence Bardin (2011), e Análise Fílmica, por Manuela Penafria (2009). Ainda foram utilizadas as teorias das Representações Sociais e Identidade exploradas por Serge Moscovici (2012) e Zygmunt Bauman (2005), respectivamente. Jogos Vorazes traz, em 2012, um novo modelo de representação feminina. A protagonista, Katniss não é uma donzela em perigo, e jamais esperaria um beijo de um príncipe que a salvasse: ela deseja ser a protagonista de seu próprio destino e ser autora de sua própria história. A personagem luta por sua sobrevivência e pela
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de sua família, mostrando estar disposta a arriscar a própria vida e até morrer para salvar os seus. Observou-se que apesar das inovações realizadas pela obra é possível perceber também permanências em relação à ideia de feminino. O primeiro conflito, o momento em que Primrose é sorteada na Colheita, é resolvido com o voluntariado de Katniss aos Jogos o que remete ao amor pela irmã, algo ligado diretamente à figura da mulher. Todos os atos heroicos da protagonista a partir daí se dão pelo fato de não suportar a ideia de ver a irmã ser submetida à competição e provavelmente à uma morte cruel. Além disso, ainda há no filme a presença de uma idealização do amor romântico, mesmo que não se enquadre na tradicional ideia do mocinho que salva a donzela em perigo. O romance, mesmo sendo encenado, tem um papel fundamental na história, pois não serve somente como uma válvula de escape e uma chance para a sobrevivência, mas mostra mais uma vez que o amor salva. Katniss se vê rodeada por toda a pressão de permanecer viva e assegurar a sobrevivência dos demais, mas está suscetível a se apaixonar por alguém e encarar, indecisões e sofrimentos, o que pode indicar o quanto a personagem se assemelha à realidade e aos dilemas vividos na adolescência. A personagem mostra estar bem próxima das adolescentes da mesma idade por possuir defeitos, falhas e querer evitar ou fugir dos seus sentimentos. As sagas literárias e fílmicas destinadas ao público jovem são instrumentos interessantes para análise de como o conceito do feminino está sendo criado e transmitido para jovens mulheres por meio da cultura de massa. Essas informações são importantes ao refletir sobre os impactos das representações de gênero dessas personagens no imaginário do público, já que essas representações emitem ideologias importantes na construção cultural de imagens que são vistas como femininas ou não pela sociedade, em específico pelos jovens. A cultura de massa, que por sua vez utiliza os principais veículos culturais como disseminadores de comportamentos e estéticas, pode vir a ser um mecanismo de perpetuação de uma visão machista das mulheres, mas pode também retratar as
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mudanças graduais que estão ocorrendo nas representações do feminino dentro da sociedade moderna. A Saga Jogos Vorazes teve uma repercussão evidente no público jovem, principalmente no público feminino. Por essa razão é importante compreender que existem representações diferentes de papéis de gênero que podem influenciar de várias formas a construção das leitoras e espectadoras sobre estes papéis. Para avançar nesse diagnóstico, seria necessário ampliar este estudo, inserindo a visão das leitoras e as percepções que tiveram das representações expostas. Na realização deste trabalho houve algumas limitações, como por exemplo, a extensão da obra, em que a análise se concentrou em apenas no primeiro filme e livro da Saga. De maneira similar, não se realizou uma pesquisa no âmbito de técnicas cinematográficas, mas sim uma tentativa em inserir as conceituações do cinema para explicar as representações acerca da personagem analisada. Diante das limitações, sugere-se a continuidade deste trabalho, visando introduzir o segundo e terceiro livro juntamente com suas respectivas adaptações fílmicas, em que seria analisada como a representação da personagem é desenvolvida ao longo da Saga.
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